Isabel Allende - O Bosque Dos Pigmeus
Isabel Allende - O Bosque Dos Pigmeus
Isabel Allende - O Bosque Dos Pigmeus
ISABEL ALLENDE
Tradução de Maria Helena Pitta
DIFEL
Título original: El Bosque de los Pigmeos
Depósito Legal nº 21362512004
ISBN 972-29-0712-31 Setembro 2004
Ao Irmão Fernando de la Fuente, missionário em África, cujo espírito vive nesta
história
CAPÍTULO 1
A adivinha do mercado
Safari em elefante
O Missionário
Incomunicáveis na selva
O bosque enfeitiçado
Os pigmeus
O carreiro anunciado pelos bantos era invisível. O terreno acabou por ser um lodaçal
cheio de raízes e de ramos, onde os pés se afundavam comfrequência numa nata
mole de insectos, sanguessugas e vermes. Umas ratazanas gordas e grandes como
cães fugiam à sua passagem. Felizmente calçavam botas até meia perna que ao
menos os protegiam das serpentes. Era tanta a humidade que Alexander e Kate
optaram por tirar os óculos embaciados, enquanto o Irmão Fernando, que pouco ou
nada via sem os dele, tinha de os limpar de cinco em cinco minutos. Naquela
vegetação luxuriante não era fácil descobrir as árvores marcadas pelos machetes.
Mais uma vez Alexander verificou que o clima dos trópicos esgotava o corpo e
provocava uma pesada indiferença na alma. Sentiu saudades do frio limpo e
vivificante das montanhas cobertas de neve que costumava escalar com o pai e que
tanto amava. Pensou que, se ele se sentia acabrunhado, a avó devia estar à beira
de um ataque de coração, mas Kate raras vezes se queixava. A escritora não estava
disposta a deixar-se vencer pela velhice. Dizia que os anos se notam quando se
curvam as costas e se emitem ruídos: tosses, pigarros, estalidos de ossos, gemidos.
Por isso ela andava direita e sem fazer barulho.
O grupo avançava quase às cegas enquanto, das árvores, os macacos lhes
atiravam projécteis. Os amigos tinham uma ideia geral da direcção a seguir, mas não
imaginavam a distância que os separava da aldeia. Imaginavam ainda menos do tipo
de recepção que os esperava.
Caminharam durante mais de uma hora, mas avançaram pouco. Era impossível
apressar-se num terreno como aquele. Tiveram de atravessar vários pântanos com a
água até à cintura. Num deles, Angie Ninderera pisou em falso e deu um grito ao
sentir que se afundava no barro movediço e que os seus esforços para se libertar
eram inúteis. O Irmão Fernando e Joel González seguraram numa das extremidades
da espingarda e ela agarrou-se com as duas mãos à outra. Dessa forma a puxaram
para terra firme. No processo Angie largou o pacote que levava.
- Perdi o meu saco! - exclamou Angie ao ver que este se afundava
irremediavelmente na lama.
- Não importa, menina, o essencial é termos conseguido tirá-la - replicou o Irmão
Fernando.
- Não importa, como? Estão ali os meus cigarros e o meu bâton!
Kate deu um suspiro de alívio: pelo menos não teria de cheirar o tabaco maravilhoso
de Angie, a tentação era muito grande.
Aproveitaram um charco para se lavarem um pouco, mas tiveram de resignar-se
com a lama metida nas botas. Além do mais, tinham a sensação desagradável de
serem observados do bosque.
- Acho que nos espiam - disse Kate por fim, incapaz de suportar a tensão por mais
tempo.
Formaram um círculo, armados com o seu reduzido arsenal: o revólver e a
espingarda de Angie, um machete e duas facas.
- Que Deus nos proteja - murmurou o Irmão Fernando, uma invocação que lhe saía
dos lábios cada vez com maior frequência.
Poucos minutos depois saíram cautelosamente da floresta umas figuras humanas
tão pequenas como crianças; o mais alto não chegava ao metro e cinquenta. Tinham
a pele de um castanho-amarelado, as pernas curtas, os braços e o tronco longos, os
olhos muito separados, o nariz achatado, o cabelo aos nós.
- Devem ser os famosos pigmeus do bosque - disse Angie, cumprimentando-os com
um gesto.
Cobriam-se apenas com tangas; um deles vestia uma esfarrapada camisola de
manga curta que lhe chegava até abaixo dos joelhos. Estavam armados com lanças,
mas não as brandiam ameaçadoramente, usando-as antes como bordões. Traziam
uma rede enrolada num pau que dois deles carregavam. Nadia deu-se conta de que
era idêntica à que tinha aprisionado a gorila no sítio onde aterraram com o avião, a
muitas milhas de distância. Os pigmeus responderam à saudação de Angie com um
sorriso confiante e algumas palavras em francês, passando depois para uma
tagarelice incessante na sua própria língua, que ninguém entendeu.
- Podem levar-nos a Ngoubé? - interrompeu-os o Irmão Fernando.
- Ngoubé? Non... non... ! - exclamaram os pigmeus.
- Temos de ir a Ngoubé - insistiu o missionário.
O da camisola acabou por ser aquele com quem se comunicavam melhor porque,
para além do seu reduzido vocabulário em francês, conhecia várias palavras em
inglês. Apresentou-se como sendo Beyé-Dokou. Um outro apontou para ele com um
dedo e disse que ele era o tuma do seu clã, ou seja, o melhor caçador. Beyé-Dokou
fê-lo calar com um empurrão amistoso, mas pela expressão satisfeita do seu rosto
parecia orgulhoso do título. Os outros desataram a rir às gargalhadas, troçando dele
ruidosamente. Qualquer assomo de vaidade era muito mal visto entre os pigmeus.
Beyé-Dokou meteu a cabeça entre os ombros, envergonhado. Com alguma
dificuldade conseguiu explicar a Kate que não deviam aproximar-se da aldeia porque
era um lugar muito perigoso. Deviam antes afastar-se dali o mais depressa possível.
- Kosongo, Mbembelé, Sombe, soldados... - repetia com expressões de terror.
Quando o informaram de que tinham de ir a Ngoubé a qualquer custo e de que as
canoas só viriam buscá-los dentro de quatro dias, pareceu bastante preocupado,
conversou demoradamente com os seus companheiros e, finalmente, ofereceu-se
para os guiar por uma rota secreta do bosque de volta ao local onde tinham deixado
o avião.
- Devem ter sido eles quem pôs a rede onde a gorila caiu - comentou Nadia,
observando a rede que dois dos pigmeus transportavam.
- Parece que a ideia de ir a Ngoubé não lhes parece muito adequada - comentou
Alexander.
- Ouvi dizer que eles eram os únicos seres humanos capazes de viver na selva
pantanosa. Conseguem deslocar-se pelo bosque e orientam-se por instinto. É
melhor irmos com eles, antes que seja demasiado tarde - disse Angie.
- Já estamos aqui e continuaremos até à aldeia de Ngoubé. Não foi isso que
combinámos? - disse Kate.
- Para Ngoubé - repetiu o Irmão Fernando.
Os pigmeus expressaram com gestos eloquentes a sua opinião acerca do desvario
que isso representava, mas acabaram por aceitar guiá-los. Deixaram a rede debaixo
de uma árvore e, sem cerimónias, agarraram nos pacotes e nas mochilas dos
estrangeiros, puseram-nos às costas e partiram a trote por entre os fetos, com tanta
pressa que era quase impossível segui-los. Eram muito fortes e ágeis, cada um
levava em cima mais de trinta quilos de peso, mas isso não os incomodava, os
músculos das pernas e dos braços eram de betão; enquanto os expedicionários
ofegavam, prestes a desmaiar de fadiga e de calor, eles corriam com passos curtos
e com os pés para fora, como patos, sem qualquer esforço e falando sem cessar.
Beyé-Dokou falou-lhes das três personagens que tinha mencionado anteriormente: o
rei Kosongo, o comandante Mbembelé e Sombe, que descreveu como sendo um
terrível feiticeiro.
Explicou-lhes que o rei Kosongo nunca tocava no chão com os pés porque, se o
fizesse, a terra tremia. Disse que andava com a cara coberta para que ninguém lhe
visse os olhos porque eram tão poderosos que um simples olhar podia matar ao
longe. Kosongo não falava com ninguém porque a sua voz era como o trovão:
deixava toda a gente surda e aterrorizava os animais. O rei falava apenas através da
boca real, uma personagem da corte treinada para suportar a potência da sua voz,
cuja tarefa também consistia em provar a comida, para evitar que o envenenassem
ou o prejudicassem com magia negra através dos alimentos. Avisou-os que
mantivessem sempre a cabeça mais baixa que a do rei. O mais correcto era cair de
bruços e arrastar-se na sua presença.
O homenzinho da camisola amarela descreveu Mbembelé apontando uma arma
invisível, disparando e caindo ao chão como morto; também atirando lanças e
cortando mãos e pés com machete ou machado. A mímica não podia ser mais clara.
Acrescentou que nunca deveriam contrariá-lo mas era evidente que Sombe era
quem mais receava. O simples nome do bruxo punha os pigmeus aterrorizados.
O carreiro era invisível, mas os seus pequenos guias tinham-no percorrido muitas
vezes e, para avançar, não precisavam de ver os sinais nas árvores. Passaram
diante de uma clareira onde havia outras bonecas vodu parecidas às que tinham
visto antes, mas estas eram de uma cor avermelhada, como ferrugem. Quando se
aproximaram, viram que se tratava de sangue seco. Em volta delas havia pilhas de
lixo, cadáveres de animais, fruta podre, pedaços de mandioca, cabaças com
diversos líquidos, talvez vinho de palma e outras bebidas alcoólicas. O cheiro era
insuportável. O Irmão Fernando benzeu-se e Kate recordou ao apavorado Joel
González que estava ali para tirar fotografias.
- Espero que não seja sangue humano, mas de animais sacrificados - murmurou o
fotógrafo.
- A aldeia dos antepassados - disse Beyé-Dokou apontando para a vereda estreita
que começava na boneca e desaparecia no interior do bosque.
Explicou que era preciso fazer um desvio para chegar a Ngoubé, porque não se
podia passar pelos domínios dos antepassados, onde rondavam os espíritos dos
mortos. Era uma regra básica de segurança. Só um tonto ou um lunático se
aventuraria por esse lado.
- De quem são estes antepassados? - perguntou Nadia.
Beyé-Dokou teve alguma dificuldade em entender a pergunta, acabando por
compreendê-la com a ajuda do Irmão Fernando.
- São os nossos antepassados - esclareceu, apontando para os seus companheiros
e fazendo gestos para indicar que eram de baixa estatura.
- Kosongo e Mbembelé também não se aproximam da aldeia-fantasma dos
pigmeus? - insistiu Nadia.
- Ninguém se aproxima. Se os espíritos são incomodados, vingam-se. Entram nos
corpos dos vivos, apoderam-se da sua vontade, provocam doenças, sofrimentos e
também a morte - respondeu Beyé-Dokou.
Os pigmeus indicaram aos forasteiros que deviam apressar-se porque à noite saíam
também para caçar os espíritos dos animais.
- Como sabem se é o fantasma de um animal ou um animal comum? - perguntou
Nadia.
- Porque o espectro não tem o cheiro do animal. Um leopardo que cheira a antílope
ou uma serpente que cheira a elefante, é um espectro - explicaram-lhe.
- É preciso ter bom olfacto e aproximar-se muito para os distinguir... - troçou
Alexander.
Beyé-Dokou contou-lhes que, antigamente, não tinham medo da noite ou dos
espíritos dos animais, só dos espíritos dos antepassados, porque estavam
protegidos por Ipemba-Afua. Kate quis saber se se tratava de alguma divindade,
mas ele corrigiu-a. Tratava-se de um amuleto sagrado que pertencia à sua tribo
desde tempos imemoriais. Pelo que conseguiram perceber da descrição, tratava-se
de um osso humano e continha um pó eterno que curava muitos males. Tinham
usado esse pó uma infinidade de vezes durante muitas gerações, sem que este
acabasse. Cada vez que abriam o osso, encontravam-no cheio daquele produto
mágico. Ipemba-Afua representava a alma do seu povo, disseram, era a sua fonte
de saúde, de força e de boa sorte para a caça.
- Onde está? - perguntou Alexander.
Informou-os, com lágrimas nos olhos, que Ipemba-Afua tinha sido roubado por
Mbembelé e que estava agora em poder de Kosongo. Enquanto o rei tivesse o
amuleto, eles careciam de alma, estavam à sua mercê.
Entraram em Ngoubé já a luz do dia desaparecia e os seus habitantes começavam a
acender archotes e fogueiras para iluminar a aldeia. Passaram diante de umas
esquálidas plantações de mandioca, café e banana, de alguns altos currais de
madeira - talvez para animais - e de uma fileira de palhotas sem janelas, com
paredes inclinadas e telhados em ruínas. Algumas vacas de longos chifres
mastigavam as ervas do chão e por toda a parte corriam frangos meio depenados,
cães famélicos e macacos selvagens. Alguns metros à frente, abria-se uma avenida
ou praça central bastante ampla, rodeada de casas mais decentes, palhotas de
barro com telhado de zinco ondulado ou palha.
A chegada dos estrangeiros provocou uma gritaria e, em poucos minutos, as
pessoas da aldeia acorreram a ver o que se passava. Pelo aspecto pareciam
bantos, como os homens das canoas que os tinham trazido até à bifurcação do rio.
Mulheres vestidas de andrajos e crianças nuas formavam uma massa compacta
num dos lados do pátio, através da qual abriram caminho quatro homens mais altos
que a restante população, indubitavelmente de outra etnia. Vestiam calças
esfarrapadas do uniforme do exército e traziam espingardas antiquadas e cintos de
balas. Um deles tinha um chapéu de explorador enfeitado com penas, uma camisola
de manga curta e sandálias de plástico, os outros vinham em tronco nu e estavam
descalços; ostentavam tiras de pele de leopardo amarradas nos bíceps ou em volta
da cabeça e cicatrizes rituais na cara e nos braços. Eram umas linhas de pontos,
como se debaixo da pele tivessem pedrinhas ou contas incrustadas.
Com o aparecimento dos soldados, a atitude dos pigmeus alterou-se. A segurança e
a alegre camaradagem que demonstraram no bosque desapareceram
repentinamente; atiraram a carga para o chão, agacharam as cabeças e retiraram-se
como cães espancados. Beyé-Dokou foi o único que se atreveu a fazer um gesto de
despedida aos estrangeiros.
Os soldados apontaram as armas aos recém-chegados e ladraram algumas
palavras em francês.
- Boa tarde - cumprimentou Kate em inglês, porque encabeçava a fila e não lhe
ocorreu dizer outra coisa.
Os soldados ignoraram a sua mão estendida, rodearam-nos e empurraram-nos com
as culatras das armas contra a parede de uma palhota, perante o olhar curioso dos
mirones.
- Kosongo, Mbembelé, Sombe... - gritou Kate.
Os homens hesitaram diante do poder daqueles nomes e começaram a discutir no
seu idioma. Fizeram o grupo esperar durante um tempo que lhes pareceu eterno,
enquanto um deles ia em busca de instruções.
Alexander reparou que a algumas pessoas faltava uma mão ou as orelhas. Também
viu várias crianças, que observavam a cena a alguma distância, com úlceras
horríveis na cara. O Irmão Fernando disse-lhe que eram provocadas por um vírus
transmitido pelas moscas; ele vira a mesma coisa nos acampamentos de refugiados
no Ruanda.
- Cura-se com água e sabão, mas pelos vistos aqui nem sequer isso há -
acrescentou.
- Não disse que os missionários tinham um dispensário? - perguntou Alexander.
- Estas úlceras são muito mau presságio, filho; significam que os meus irmãos não
estão aqui, de outra forma já as teriam curado - replicou o missionário, preocupado.
Decorrido muito tempo, já noite cerrada, o mensageiro regressou com a ordem de os
conduzirem à "árvore das palavras", onde se decidiam os assuntos do governo.
Indicaram-lhes que agarrassem nas bagagens e os seguissem.
A multidão afastou-se, dando passagem, e o grupo atravessou o pátio ou praça que
dividia a aldeia. No centro viram que se erguia uma árvore magnífica, cujos ramos
cobriam como um guarda-chuva a largura do recinto. O tronco tinha uns três metros
de diâmetro e as grossas raízes expostas ao ar caíam de cima como longos
tentáculos e mergulhavam no chão. Ali esperava o impressionante Kosongo.
O rei estava sobre um estrado, sentado num cadeirão de felpa vermelha e madeira
dourada com pés inclinados, de um antiquado estilo francês. De ambos os lados
erguia-se um par de dentes de elefante colocados verticalmente e várias peles de
leopardo cobriam o chão. Rodeavam o trono uma série de estátuas de madeira com
expressões assustadoras e bonecos de bruxaria. Três músicos com casacos azuis
de uniforme militar, mas sem calças e descalços, batiam uns paus. Archotes
fumegantes e duas fogueiras iluminavam a noite, dando à cena um ar teatral.
Kosongo estava enfeitado com um manto inteiramente bordado de conchas, penas e
outros objectos inesperados, como tampas de garrafa, rolos de fotografia e balas. O
manto devia pesar uns quarenta quilos. Além disso usava um chapéu monumental
com um metro de altura, adornado com quatro chifres de ouro, símbolos de potência
e coragem. Ostentava colares de dentes de leão, vários amuletos e uma pele de
pitão enrolada na cintura. Uma cortina de contas de vidro e ouro tapava-lhe a cara.
Uma bengala de ouro maciço, com uma cabeça dissecada de macaco no punho,
servia-lhe de ceptro ou báculo. Da bengala pendia um osso talhado com desenhos
delicados; pelo tamanho e pela forma, parecia uma tíbia humana. Os forasteiros
deduziram que se trataria possivelmente de Ipemba-Afua, o amuleto descrito pelos
pigmeus. O rei usava grossos anéis de ouro nos dedos, com formas de animais e
grossas pulseiras do mesmo metal, que lhe cobriam os braços até ao cotovelo. O
aspecto era tão impressionante como o dos soberanos de Inglaterra no dia da
coroação, embora noutro estilo.
Num semicírculo em volta do trono estavam os guardas e ajudantes do rei. Pareciam
bantos, como a restante população da aldeia, ao contrário do rei que,
aparentemente, era da mesma raça alta dos soldados. Como estava sentado, era
difícil calcular o seu tamanho, mas parecia enorme, embora isso também pudesse
ser efeito do manto e do chapéu. O comandante Maurice Mbembelé e o bruxo
Sombe não se viam em lado nenhum.
Mulheres e pigmeus não faziam parte do círculo real mas atrás da corte masculina
havia uma vintena de mulheres muito jovens, que se distinguiam dos outros
habitantes de Ngoubé porque estavam vestidas com tecidos de cores vistosas e
enfeitadas com pesadas jóias de ouro. À luz vacilante dos archotes, o metal amarelo
brilhava contra a sua pele escura. Algumas tinham crianças ao colo e havia vários
miúdos brincando à sua volta. Deduziram que se tratava da família do rei e chamou-
lhes a atenção as mulheres parecerem tão submissas como os pigmeus. Pelos
vistos não tinham orgulho da sua posição social, mas medo.
O Irmão Fernando informou-os de que a poligamia era comum em África e,
frequentemente, o número de mulheres e filhos revelava poder económico e
prestígio. No caso de um rei, quantos mais filhos tivesse, mais próspera era a sua
nação. Nesse aspecto, como em muitos outros, a influência do cristianismo e da
cultura ocidental não tinha mudado os costumes. O missionário alvitrou que as
mulheres de Kosongo talvez não pudessem escolher o seu destino e tivessem sido
obrigadas a casar-se.
Os quatro soldados altos empurraram os estrangeiros, indicando-lhes que deviam
prostrar-se diante do rei. Quando Kate tentou erguer os olhos, uma pancada na
cabeça fê-la desistir de imediato. E assim ficaram, engolindo o pó da praça,
humilhados e trémulos, durante longos e incómodos minutos, até os músicos terem
cessado o bater dos paus e um som metálico ter posto fim à espera. Os prisioneiros
atreveram-se a olhar para o trono: o estranho monarca agitava um sino de ouro na
mão.
Quando morreu o eco do sino, um dos conselheiros aproximou-se e o rei disse-lhe
alguma coisa ao ouvido. O homem dirigiu-se aos estrangeiros numa mistura de
francês, inglês e banto para anunciar, em jeito de introdução, que Kosongo fora
designado por Deus e tinha a missão divina de governar. Os forasteiros tornaram a
enterrar o nariz no pó, sem vontade de pôr em dúvida esta afirmação.
Compreenderam que se tratava da boca real, tal como Beyé-Dokou lhes tinha
explicado. A seguir o emissário perguntou qual era o objectivo desta visita aos
domínios do magnífico soberano Kosongo. A sua voz ameaçadora não deixou
margem para dúvidas sobre o que pensava do assunto. Ninguém respondeu. Os
únicos que entenderam as suas palavras foram Kate e o Irmão Fernando, mas
estavam transtornados, desconheciam o protocolo e não queriam arriscar-se a
cometer uma imprudência; talvez a pergunta fosse apenas retórica e Kosongo não
esperasse resposta.
O rei aguardou alguns segundos a meio de um silêncio absoluto, depois agitou
novamente o sino, gesto que foi interpretado pelo povo como uma ordem. A aldeia
inteira, menos os pigmeus, começou a gritar e a ameaçar com os punhos, fechando
o círculo em redor dos visitantes. Curiosamente, não parecia uma revolta popular
mas um acto teatral executado por maus actores; o alvoroço era executado sem o
mais pequeno entusiasmo e alguns deles riam-se mesmo dissimuladamente. Os
soldados que dispunham de armas de fogo completaram a manifestação colectiva
com uma inesperada salva de tiros para o ar, que provocou na praça uma fuga em
tropel. Adultos, crianças, macacos, cães e galinhas puseram-se em fuga, refugiando-
se o mais longe possível e os únicos que permaneceram sob a árvore foram o rei, a
sua reduzida corte, o atemorizado harém e os prisioneiros, deitados no chão,
cobrindo a cabeça com os braços, certos de que tinha chegado a sua hora.
A calma voltou aos poucos à aldeola. Terminado o tiroteio e dissipado o ruído, a
boca real repetiu a pergunta. Desta vez Kate Cold pôs-se de joelhos, com a pouca
dignidade que os seus velhos ossos lhe permitiam, mantendo-se abaixo da altura do
temperamental soberano, tal como Beyé-Dokou os instruíra, e dirigiu-se ao
intermediário com firmeza, mas tentando não provocá-lo.
- Somos jornalistas e fotógrafos - disse, apontando vagamente para os seus
companheiros.
O rei cochichou alguma coisa ao seu ajudante e este repetiu as suas palavras.
- Todos?
- Não, Vossa Majestade Sereníssima, esta senhora é dona do avião que nos trouxe
até aqui e o senhor de óculos é um missionário - explicou Kate, apontando para
Angie e para o Irmão Fernando. E acrescentou, antes que fizessem perguntas sobre
Alexander e Nadia: - Viemos de muito longe para entrevistar Vossa Originalíssima
Majestade, porque a vossa fama ultrapassou as fronteiras e espalhou-se pelo
mundo.
Kosongo, que parecia saber muito mais francês que a boca real, fixou o olhar na
escritora com uma expressão de profundo interesse, mas também de desconfiança.
- O que queres dizer, mulher velha? - perguntou, através do outro homem.
- No estrangeiro há uma grande curiosidade pela vossa pessoa, Vossa Altíssima
Majestade.
- Como é isso? - disse a boca real.
- O senhor conseguiu impor paz, prosperidade e ordem nesta região, Vossa
Absolutíssima Majestade. Chegaram-nos notícias de que é um guerreiro corajoso,
conhece-se a vossa autoridade, sabedoria e riqueza. Dizem que é tão poderoso
como o antigo Rei Salomão.
Kate continuou o seu discurso, enredando-se nas palavras, porque não praticava
francês há vinte anos, e nas ideias, porque não tinha muita fé no seu plano. Estavam
em pleno século XXI, já não havia aqueles reizinhos bárbaros retratados nos maus
filmes, que se assustavam com um oportuno eclipse do Sol. Calculou que Kosongo
estava um pouco fora de moda mas que não era nenhum tonto. Um eclipse do Sol
não bastaria para o convencer. Ocorreu-lhe, no entanto, que devia ser susceptível à
adulação, como a maioria dos homens com poder. Não tinha feitio para louvar
ninguém, mas na sua longa vida tinha verificado que se pode dizer a um homem a
lisonja mais ridícula que este, regra geral, acredita. A sua única esperança era de
que Kosongo engolisse aquele anzol grosseiro.
As suas dúvidas dissiparam-se rapidamente, porque a táctica de elogiar o rei teve o
efeito esperado. Kosongo estava convencido da sua origem divina. Durante anos
ninguém questionara o seu poder; a vida e a morte dos seus súbditos dependiam
dos seus caprichos. Considerou normal que um grupo de jornalistas atravessasse
meio mundo para o entrevistar; estranho era não o terem feito antes. Decidiu
recebê-los como mereciam.
Kate Cold interrogou-se de onde viria tanto ouro, porque a aldeia era das mais
pobres que ela já vira. Que outras riquezas haveria nas mãos do rei? Qual era a
relação de Kosongo com o comandante Mbembelé? Possivelmente planeavam
ambos retirar-se para gozar das suas fortunas num lugar mais atraente que este
labirinto de pântanos e selva. Entretanto a população de Ngoubé vivia na miséria,
sem comunicação com o mundo exterior, electricidade, água limpa, educação ou
medicamentos.
CAPÍTULO 7
Prisioneiros de Kosongo
Com uma mão, Kosongo agitou o sininho de ouro e com a outra ordenou aos
habitantes da aldeia, que continuavam escondidos atrás das palhotas e das árvores,
que se aproximassem. A atitude dos soldados mudou, inclinando-se até para ajudar
os estrangeiros a levantar-se e trazendo uns banquinhos de três pernas, que
puseram à sua disposição. A população aproximou-se cautelosamente.
- Festa! Música! Comida! - ordenou Kosongo através da boca real, indicando ao
aterrorizado grupo de forasteiros que podiam sentar-se nos banquinhos.
O rosto do rei coberto pela cortina de contas voltou-se na direcção de Angie.
Sentindo-se observada, ela tentou desaparecer atrás dos seus companheiros mas
na realidade o seu volume era impossível de esconder.
- Acho que está a olhar para mim. Os olhos dele não matam, como dizem, mas sinto
que me despem - sussurrou a Kate.
- Talvez pretenda incorporar-te ao seu harém - replicou esta na brincadeira.
- Nem morta!
Kate admitiu para consigo que Angie podia competir em beleza com qualquer uma
das mulheres de Kosongo, apesar de já não ser tão nova. Ali as meninas casavam-
se na adolescência e, em África, a piloto podia considerar-se uma mulher madura.
Mas a sua figura alta e gorda, com os dentes muito brancos e a pele lustrosa era
bastante atraente. A escritora tirou da mochila uma das suas preciosas garrafas de
vodka e colocou-a aos pés do monarca, mas este não pareceu impressionado. Com
um gesto depreciativo, Kosongo autorizou os seus súbditos a desfrutarem da
modesta oferta. A garrafa passou de mão em mão entre os soldados. A seguir, o rei
tirou um pacote de cigarros entre as pregas do manto e os soldados entregaram um
por cabeça aos homens da aldeia. As mulheres, que não eram consideradas da
mesma espécie que os varões, foram ignoradas. Também não ofereceram aos
estrangeiros, perante o desespero de Angie, que começava a sofrer os efeitos da
falta de nicotina.
As mulheres do rei não eram mais consideradas que a restante população feminina
de Ngoubé. Um velho severo tinha a função de as manter na ordem, dispondo para
isso de uma fina cana de bambu que não hesitava em usar para lhes fustigar as
pernas sempre que lhe apetecia. Aparentemente não era mal visto maltratar as
rainhas em público.
O Irmão Fernando atreveu-se a perguntar pelos missionários ausentes e a boca real
respondeu que nunca houve missionários em Ngoubé. Acrescentou que não eram
visitados por estrangeiros há anos, excepto por um antropólogo que chegou a medir
as cabeças dos pigmeus e que se pôs a andar poucos dias depois, por não suportar
o clima nem os mosquitos.
- Deve ter sido Ludovic Leblanc - suspirou Kate.
Recordou que Leblanc, seu arqui-inimigo e sócio na Fundação Diamante, lhe dera a
ler o seu ensaio sobre os pigmeus da selva equatorial, publicado numa revista
científica. Segundo Leblanc, os pigmeus eram a sociedade mais livre e igualitária
que se conhecia. Homens e mulheres viviam numa estreita camaradagem, os casais
caçavam juntos e partilhava-se igualmente o cuidado das crianças. Entre eles não
havia hierarquias, os únicos cargos honoríficos eram os de "chefe", "curandeiro" e
"melhor caçador", mas estas posições não implicavam poder ou privilégios mas
apenas deveres. Não existiam diferenças entre homens e mulheres ou entre velhos
e jovens; as crianças não deviam obediência aos pais. A violência entre membros do
clã era desconhecida. Viviam em grupos familiares, ninguém possuía mais bens que
os outros, produziam apenas o indispensável para o consumo diário. Não havia
incentivos à acumulação de bens porque, assim que alguém adquiria alguma coisa,
a família tinha o direito de a tirar. Tudo era partilhado. Era um povo ferozmente
independente, que não fora subjugado nem sequer pelos colonizadores europeus,
mas nos tempos mais recentes muitos deles tinham sido escravizados pelos bantos.
Kate nunca tinha a certeza da percentagem de verdade contida nos trabalhos
académicos de Leblanc mas a sua intuição disse-lhe que, no que se referia aos
pigmeus, o pomposo professor podia estar correcto. Pela primeira vez, Kate sentia a
sua falta. Discutir com Leblanc era o sal da sua vida, era o que a mantinha
combativa; não lhe convinha passar muito tempo longe dele, porque o seu carácter
podia amolecer. Nada assustava tanto a velha escritora como a ideia de se
transformar numa avozinha inofensiva.
O Irmão Fernando tinha a certeza de que a boca real mentia a respeito dos
missionários perdidos e insistiu nas perguntas até Angie e Kate lhe recordarem o
protocolo. Era evidente que o assunto incomodava o rei. Kosongo parecia uma
bomba-relógio pronta a explodir e eles estavam numa posição muito vulnerável.
Para homenagear os visitantes, ofereceram-lhes cabaças com vinho de palma,
umas folhas com aspecto de espinafres e pudim de mandioca; também uma cesta
com ratazanas enormes, que tinham assado nas fogueiras e temperado com jorros
de um óleo alaranjado, obtido das sementes de palma. Alexander fechou os olhos,
pensando com nostalgia nas latas de sardinhas que estavam na mochila, mas um
pontapé da avó devolveu-o à realidade. Não era prudente rejeitar o jantar do rei.
- São ratos, Kate! - exclamou, tentando controlar as náuseas.
- Não sejas aborrecido. Sabem a frango - replicou ela.
- Foi o que disseste da serpente do Amazonas e não era verdade - recordou-lhe o
neto.
O vinho de palma acabou por ser uma beberagem pavorosa, doce e nauseabunda,
que o grupo de amigos provou por cortesia, mas não conseguiu engolir. Por outro
lado, os soldados e os outros homens da aldeia beberam-no em grandes goles até
não haver ninguém sóbrio. Diminuíram a vigilância mas os prisioneiros não tinham
para onde fugir, estavam rodeados pela selva, pelo miasma dos pântanos e pelo
perigo dos animais selvagens. As ratazanas assadas e as folhas acabaram por ser
bastante mais sofríveis do que o seu aspecto levava a pensar. O pudim de
mandioca, pelo contrário, sabia a pão demolhado em água com sabão, mas estavam
todos esfomeados e engoliram a comida sem melindres. Nadia limitou-se aos
amargos espinafres, mas Alexander surpreendeu-se chupando com agrado os
ossinhos da pata de um rato. A avó tinha razão: sabia a frango. Melhor dizendo, a
frango fumado.
De súbito, Kosongo tornou a agitar o seu sino de ouro.
- Agora quero os meus pigmeus! - gritou a boca real aos soldados e acrescentou
para proveito dos visitantes: - Tenho muitos pigmeus, são meus escravos. Não são
humanos, vivem no bosque como os macacos.
Trouxeram para a praça vários tambores de diversos tamanhos, alguns tão grandes
que tinham de ser carregados por dois homens, outros feitos com peles esticadas
sobre cabaças ou enferrujados bidões de gasolina. A uma ordem dos soldados, o
reduzido grupo de pigmeus, o mesmo que guiou os estrangeiros até Ngoubé e que
permanecia à parte, foi empurrado em direcção aos instrumentos. Os homens
colocaram-se nos seus postos, cabisbaixos, reticentes, sem se atreverem a
desobedecer.
- Têm de tocar música e dançar para que os seus antepassados conduzam um
elefante até às suas redes. Amanhã vão caçar e não podem voltar de mãos vazias -
explicou Kosongo utilizando a boca real.
Beyé-Dokou deu umas batidas experimentais, para marcar o tom e aquecer, e os
restantes juntaram-se-lhe. A expressão dos seus rostos alterou-se, pareciam
transfigurados, os olhos brilhavam-lhes, os corpos moviam-se ao compasso das
mãos, enquanto o volume aumentava e se acelerava o ritmo dos sons. Pareciam
incapazes de resistir à sedução da música que eles próprios criavam. As vozes
elevaram-se num canto extraordinário, que ondulava no ar como uma serpente e
parava de repente para dar lugar a um contraponto. Os tambores adquiriram vida,
competindo uns com os outros, juntando-se, palpitando, animando a noite.
Alexander calculou que meia dúzia de orquestras de percussão com amplificadores
eléctricos não conseguiria igualar aquilo. Os pigmeus reproduziam nos seus toscos
instrumentos as vozes da natureza, algumas delicadas, como a água nas pedras ou
o salto das gazelas; outras profundas, como passadas de elefantes, trovões ou
galope de búfalos; outras eram lamentos de amor, gritos de guerra ou gemidos de
dor. A música aumentava de intensidade e rapidez, atingindo um apogeu, depois
diminuía até se transformar num suspiro quase inaudível. Assim se repetiam os
ciclos, nunca iguais, cada um deles magnífico, cheios de graça e de emoção, como
só os melhores músicos de jazz poderiam igualar.
A outro sinal de Kosongo trouxeram as mulheres, que até essa altura os
estrangeiros não tinham visto. Mantinham-nas nos currais de animais que ficavam à
entrada da aldeia. Eram pigmeias, todas jovens, vestidas apenas com saias de ráfia.
Avançaram arrastando os pés, numa atitude humilhada, enquanto os guardas lhes
davam ordens aos gritos e as ameaçavam. Ao vê-las houve uma reacção de
paralisia entre os músicos, os tambores pararam de repente e por instantes só o seu
eco vibrou no bosque.
Os guardas ergueram os bastões e as mulheres encolheram-se, abraçando-se
mutuamente para se protegerem. De imediato, os instrumentos voltaram a ressoar
com um novo brio. Então, perante o olhar impotente dos visitantes, produziu-se um
diálogo mudo entre elas e os músicos. Enquanto os homens fustigavam os tambores
expressando toda a gama de emoções humanas, da ira e da dor, ao amor e à
nostalgia, as mulheres dançavam em círculo, balançando as saias de ráfia,
erguendo os braços, batendo no chão com os pés descalços, respondendo com os
seus movimentos e com o seu canto ao chamamento angustiado dos seus
companheiros. O espectáculo era de uma intensidade primitiva e dolorosa,
insuportável.
Nadia escondeu a cara entre as mãos; Alexander abraçou-a com firmeza,
prendendo-a, porque receou que a amiga saltasse para o centro do pátio com a
intenção de pôr fim a esta dança degradante. Kate aproximou-se para os avisar de
que não fizessem nenhum movimento em falso, que poderia ser fatal. Bastava ver
Kosongo para compreender a razão: parecia possesso. Estremecia ao ritmo dos
tambores como se fosse sacudido por uma corrente eléctrica, sempre sentado no
cadeirão francês que lhe servia de trono. Os enfeites do manto e do chapéu
tilintavam, os pés marcavam o ritmo dos tambores, os braços agitavam-se fazendo
soar as pulseiras de ouro. Vários membros da sua corte e até os soldados
embriagados se puseram também a dançar, seguidos depois pelos restantes
habitantes da aldeia. Passado pouco tempo, havia um pandemónio de gente
contorcendo-se e pulando.
A demência colectiva cessou tão subitamente como tinha começado. Perante um
sinal que só eles perceberam, os músicos deixaram de bater nos tambores e a
dança patética das suas companheiras parou. As mulheres agruparam-se e
retrocederam na direcção dos currais. Com o silêncio dos tambores, Kosongo
imobilizou-se de imediato e a restante população seguiu o seu exemplo. Só o suor
que lhe escorria pelos braços nus recordava a sua dança no trono. Nessa altura, os
forasteiros repararam que trazia nos braços as mesmas cicatrizes rituais dos quatro
soldados e que, tal como eles, tinha braceletes de pele de leopardo em volta dos
bíceps. Os cortesãos apressaram-se a endireitar-lhe o pesado manto sobre os
ombros e o chapéu, que ficara inclinado.
A boca real explicou que, se não partissem rapidamente, iriam presenciar Ezenji, a
dança dos mortos, que se pratica em funerais e execuções. Ezenji era também o
nome do grande espírito. Esta notícia não agradou ao grupo, como era de esperar.
Antes que alguém se atrevesse a pedir pormenores, a mesma personagem
comunicou-lhes em nome do rei que seriam conduzidos aos seus "aposentos".
Quatro homens levantaram o estrado onde estava o cadeirão real e levaram
Kosongo em andas rumo à sua casa, seguido das mulheres, que carregavam as
duas presas de elefante e guiavam os filhos. Os transportadores tinham bebido tanto
que o trono balançava perigosamente.
Kate e os amigos agarraram na sua bagagem e seguiram os dois bantos providos de
archotes, que os guiaram iluminando o caminho. Eram escoltados por um soldado
com bracelete de leopardo e uma espingarda. O efeito do vinho de palma e a dança
desenfreada pusera-os de bom humor; riam-se, brincavam e davam palmadas
bonacheironas uns aos outros, mas isso não tranquilizou os amigos, porque era
óbvio que os levavam como prisioneiros.
Os chamados "aposentos" acabaram por ser uma construção rectangular de barro e
telhado de palha, maior que as outras casas, na outra extremidade da aldeia,
mesmo à beira da selva. Tinha dois buracos na parede a fazer de janelas e uma
entrada sem porta. Os homens dos archotes iluminaram o interior e, diante da
repugnância daqueles que iam passar a noite ali, milhares de baratas correram pelo
chão escondendo-se nos recantos.
- São os bichos mais antigos do mundo, existem há trezentos milhões de anos -
disse Alexander.
- Isso não os torna mais agradáveis - respondeu Angie.
- As baratas são inofensivas - acrescentou Alexander, embora na realidade não
tivesse a certeza disso.
- Haverá cobras por aqui? - perguntou Joel González.
- Os pitões não atacam na escuridão - troçou Kate.
- Que cheiro terrível é este? - perguntou Alexander.
- Pode ser urina de ratazana ou excremento de morcego - esclareceu o Irmão
Fernando sem se alterar, porque tinha passado por experiências similares no
Ruanda.
- Viajar contigo é sempre um prazer, avó - riu-se Alexander.
- Não me chames avó. Se não gostas das instalações, vai para o Sheraton.
- Morro por um cigarro! - gemeu Angie.
- Esta é a tua oportunidade de abandonar o vício - replicou Kate, sem muita
convicção, porque também sentia a falta do seu velho cachimbo.
Um dos bantos acendeu outros archotes, que estavam colocados nas paredes e o
soldado ordenou-lhes que não saíssem até ao dia seguinte. Se houvesse dúvidas
acerca do significado destas palavras, o gesto ameaçador com a arma dissipou-as.
O Irmão Fernando quis saber se havia alguma latrina nas proximidades e o soldado
riu-se, achando a ideia bastante divertida. O missionário insistiu e o outro perdeu a
paciência e deu-lhe um empurrão com a culatra da espingarda que o atirou ao chão.
Kate, habituada a fazer-se respeitar, interpôs-se com grande determinação,
postando-se diante do agressor e, antes que este arremetesse também contra ela,
meteu-lhe uma lata de pêssego em calda na mão. O homem agarrou no suborno e
saiu; passados alguns minutos voltou com um balde de plástico e entregou-o a Kate
sem mais explicações. Aquele recipiente desconjuntado seria a única instalação
sanitária.
- O que significam aquelas tiras de pele de leopardo e as cicatrizes nos braços? Os
quatro soldados têm as mesmas - comentou Alexander.
- Pena não podermos entrar em contacto com Leblanc; poderia com certeza dar-nos
uma explicação - disse Kate.
- Julgo que estes homens pertencem à Irmandade do Leopardo. É uma confraria
secreta que existe em vários países de África - disse Angie. - Recrutam-nos na
adolescência e marcam-nos com aquelas cicatrizes. Assim podem reconhecer-se
em qualquer parte. São guerreiros mercenários, combatem e matam por dinheiro.
Têm reputação de ser brutais. Fazem um juramento de se ajudarem durante toda a
vida e de matar os inimigos mútuos. Não têm família nem amarras de qualquer
espécie, excepto a união com os seus irmãos do leopardo.
- Solidariedade negativa. Ou seja, qualquer acto cometido por um dos nossos é
justificável, por mais horrendo que seja - esclareceu o Irmão Fernando. - É o
contrário da solidariedade positiva, que une as pessoas para construir, plantar, nutrir,
proteger os fracos, melhorar as condições de vida. A solidariedade negativa é a da
guerra, da violência, do crime.
- Vejo que estamos em muito boas mãos... - suspirou Kate, muito cansada.
O grupo dispôs-se a passar uma noite má, vigiados da porta pelos dois guardas
armados de machetes. O soldado retirou-se. Assim que se instalaram no chão com a
bagagem a fazer de almofadas, as baratas voltaram, passeando-se por cima deles.
Tiveram de se resignar às patinhas que se lhes metiam pelas orelhas, lhes coçavam
as pálpebras e espreitavam por baixo da roupa. Angie e Nadia, que tinham o cabelo
comprido, amarraram lenços na cabeça para evitar que os insectos fizessem aí o
ninho.
- Onde há baratas não há cobras - disse Nadia.
Acabara de ter aquela ideia que deu o resultado esperado: Joel González, que até
essa altura era uma pilha de nervos, acalmou-se como por encanto, feliz por ter as
baratas como companheiras.
Durante a noite, quando o sono, finalmente, venceu os seus companheiros, Nadia
decidiu agir. Era tanta a fadiga dos outros que iriam dormir pelo menos algumas
horas, apesar das ratazanas, das baratas e da proximidade ameaçadora dos
homens de Kosongo.
Nadia, no entanto, estava demasiado perturbada com o espectáculo dos pigmeus e
decidiu averiguar o que se passava naqueles currais, onde tinha visto desaparecer
as mulheres depois da dança. Tirou as botas e deitou a mão a uma lanterna. Os dois
guardas, sentados no lado de fora com os machetes sobre os joelhos, não
constituíam um impedimento para ela, porque há três anos que praticava a arte da
invisibilidade aprendida com os índios do Amazonas. O povo da neblina
desaparecia, confundindo-se com a natureza, com os corpos pintados, em silêncio,
deslocando-se com leveza e com uma concentração mental tão profunda que só
conseguia manter-se por um tempo limitado. Essa "invisibilidade" tinha permitido que
Nadia saísse de apuros em várias ocasiões, por isso a praticava amiúde. Entrava e
saía das aulas sem que os colegas ou professores se dessem conta e mais tarde
nenhum deles se lembrava se nesse dia ela tinha estado na escola. Circulava no
metro de Nova Iorque cheio de gente sem ser vista e, para o provar, colocava-se a
poucos centímetros de outro passageiro, olhando-o directamente, sem que o
afectado manifestasse qualquer reacção. Kate Cold, que vivia com Nadia, era a
principal vítima deste treino tenaz, porque nunca tinha a certeza se a rapariga estava
ali ou se a tinha sonhado.
A jovem ordenou a Borobá que ficasse quieto na palhota, porque não podia levá-lo
com ela. Em seguida respirou fundo várias vezes até acalmar por completo a sua
ansiedade e concentrou-se em desaparecer. Quando se sentiu pronta, o corpo
deslocou-se num estado quase hipnótico. Passou por cima dos corpos dos amigos
adormecidos sem os tocar e deslizou até à saída. Lá fora, os guardas, aborrecidos e
intoxicados com o vinho de palma, tinham decidido revezar-se na vigilância. Um
deles estava encostado à parede a roncar e o outro perscrutava o negrume da selva
um pouco assustado, porque tinha medo dos espectros do bosque. Nadia apareceu
no umbral, o homem voltou-se para ela e, por um momento, os olhos de ambos
cruzaram-se. Ao guarda pareceu-lhe estar na presença de alguém, mas
imediatamente essa impressão se apagou e uma sonolência irresistível obrigou-o a
bocejar. Ficou ali, a lutar contra o sono, com o machete abandonado no chão,
enquanto a silhueta esbelta da jovem se afastava.
Nadia atravessou a aldeia no mesmo estado etéreo, sem chamar a atenção das
poucas pessoas que permaneciam acordadas. Passou perto dos archotes que
iluminavam as construções de barro do recinto real. Um macaco insone saltou de
uma árvore e caiu-lhe aos pés, fazendo-a voltar ao corpo durante alguns instantes,
mas imediatamente se concentrou e continuou a avançar. Não sentia o seu peso,
parecia que estava a flutuar. Desta forma chegou aos currais, dois perímetros
rectangulares feitos com troncos cravados na terra e amarrados com lianas e tiras
de couro. Uma parte de cada curral tinha telhado de palha, a outra metade estava
aberta ao céu. A porta fechava-se com uma pesada tranca, que só podia abrir-se do
exterior. Ninguém vigiava.
A rapariga deu a volta aos currais tacteando a paliçada com as mãos, sem se
atrever a acender a lanterna. Era um cercado firme e alto, mas uma pessoa decidida
podia aproveitar as protuberâncias da madeira e os nós das cordas para trepar.
Perguntou a si própria por que não fugiam as pigmeias. Depois de dar algumas
voltas e verificar que não estava ninguém nos arredores, decidiu levantar a tranca de
uma das portas. No seu estado de invisibilidade só podia deslocar-se com muito
cuidado, mas não podia agir como o fazia normalmente; teve de sair do transe para
forçar a porta.
Os sons do bosque povoavam a noite: vozes de animais e de pássaros, murmúrios
das árvores e suspiros da terra. Nadia pensou que com razão as pessoas não saíam
da aldeia de noite: era fácil atribuir aqueles sons a forças sobrenaturais. Os seus
esforços para abrir a porta não foram silenciosos, porque a madeira rangia. Uns
cães aproximaram-se a ladrar, mas Nadia falou-lhes no idioma canino e calaram-se
imediatamente. Pareceu-lhe ouvir o choro de uma criança mas, passados alguns
segundos, cessou; ela voltou a empurrar a tranca com o ombro, mas esta era mais
pesada do que calculara. Finalmente conseguiu tirar a viga dos suportes, entreabriu
o portão e deslizou para o interior.
Nessa altura, os seus olhos já se tinham habituado à noite e pôde aperceber-se de
que estava numa espécie de pátio. Sem saber o que ia encontrar, avançou
silenciosamente até à parte coberta com palha, calculando a sua retirada em caso
de perigo. Decidiu que não podia aventurar-se na escuridão e, após uma breve
hesitação, acendeu a lanterna. O raio de luz iluminou uma cena tão inesperada que
Nadia deu um grito e quase deixou cair a lanterna. Umas doze ou quinze figuras
muito pequenas estavam de pé no fundo do aposento, com as costas encostadas à
paliçada. Julgou que eram crianças, mas imediatamente se deu conta de que eram
as mesmas mulheres que tinham dançado para Kosongo. Pareciam tão
aterrorizadas como ela própria, mas não emitiram o mais pequeno som; limitaram-se
a olhar para a intrusa com os olhos arregalados.
- Shhht... - disse Nadia, levando um dedo aos lábios. - Não lhes vou fazer mal, sou
amiga... - acrescentou em brasileiro, a sua língua natal, e repetiu-o depois em todas
as línguas que conhecia.
As prisioneiras não entenderam todas as suas palavras, mas adivinharam as suas
intenções. Uma delas deu um passo em frente, embora permanecesse encolhida e
com o rosto tapado, e estendeu um braço às cegas. Nadia aproximou-se e tocou-
lhe. A outra afastou-se, receosa, mas depois atreveu-se a dar uma olhadela de
soslaio e deve ter ficado satisfeita com o rosto da jovem forasteira, porque sorriu.
Nadia esticou novamente a sua mão e a mulher fez a mesma coisa; os dedos de
ambas entrelaçaram-se e aquele contacto físico acabou por ser a forma mais
transparente de comunicação.
- Nadia, Nadia - apresentou-se a rapariga, batendo no peito.
- Jena - replicou a outra.
Depressa as outras rodearam Nadia, tocando-a com curiosidade, enquanto
cochichavam e se riam. Uma vez descoberta a linguagem comum das carícias e da
mímica, o resto foi fácil. As pigmeias explicaram que tinham sido separadas dos
seus companheiros, aos quais Kosongo obrigava a caçar elefantes, não pela carne,
mas pelos dentes, que vendia a contrabandistas. O rei tinha outro clã de escravos
que explorava uma mina de diamantes um pouco mais a norte. Assim fizera a sua
fortuna. Recompensava os caçadores com cigarros, um pouco de comida e o direito
de verem as suas famílias por um bocado. Quando o marfim ou os diamantes não
eram suficientes, intervinha o comandante Mbembelé. Havia muitos castigos, o mais
suportável dos quais era a morte e o mais atroz era perder os filhos, que eram
vendidos como escravos aos contrabandistas. Jena acrescentou que restavam muito
poucos elefantes no bosque, que os pigmeus tinham de procurá-los cada vez mais
longe. Os homens não eram numerosos e elas não podiam ajudá-los como sempre
tinham feito. Escasseando os elefantes, o destino das suas crianças era muito
incerto.
Nadia não tinha a certeza de ter entendido bem. Supunha que a escravidão tinha
acabado há muito tempo, mas a mímica das mulheres era muito clara. Mais tarde,
Kate confirmar-lhe-ia que nalguns países ainda existiam escravos. Os pigmeus são
considerados criaturas exóticas e compravam-nos para realizar trabalhos
degradantes ou, se tivessem sorte, para divertirem os ricos ou ainda para os circos.
As prisioneiras contavam que faziam as tarefas pesadas em Ngoubé, como plantar,
carregar água, limpar e até construir as palhotas. A única coisa que desejavam era
reunir-se com as suas famílias e voltar para a selva, onde o seu povo tinha vivido em
liberdade durante milhares de anos. Nadia demonstrou-lhes por gestos que podiam
trepar a paliçada e fugir, mas elas replicaram que as crianças estavam presas no
outro curral a cargo de duas avós e que não podiam fugir sem elas.
- Onde estão os vossos maridos? - perguntou Nadia.
Jena disse-lhes que viviam no bosque e só tinham licença para visitar a aldeia
quando traziam carne, peles ou marfim. Os músicos que tinham tocado os tambores
durante a festa de Kosongo eram os seus maridos, disseram.
CAPÍTULO 8
O amuleto sagrado
Os caçadores
Vaguearam por entre as árvores sem saber para onde se dirigiam. Alexander
descobriu uma sanguessuga colada à perna, inchada do seu sangue, e tirou-a sem
alarde. Sentira-as no Amazonas e já não as receava, mas ainda lhe causavam
repugnância. Na vegetação exuberante não tinham como orientar-se, tudo lhes
parecia igual. As únicas manchas de cor no verde eterno do bosque eram as
orquídeas e o voo fugaz de um pássaro de plumagem colorida. Pisavam uma terra
avermelhada e mole, ensopada de chuva e semeada de obstáculos onde a qualquer
momento podiam dar um passo em falso. Havia pântanos traiçoeiros escondidos sob
um manto de folhas flutuantes. Tinham de afastar as lianas que nalguns lugares
formavam verdadeiras cortinas e evitar os espinhos afiados de algumas plantas. O
bosque não era tão impenetrável como lhe parecera anteriormente; havia espaços
entre as copas das árvores por onde passavam os raios de sol.
Alexander trazia a faca na mão, disposto a cravá-la no primeiro animal comestível
que passasse ao seu alcance, mas nenhum lhe deu essa satisfação. Várias
ratazanas passaram-lhe entre as pernas mas eram demasiado velozes. Os jovens
tiveram de aplacar a fome com uns frutos desconhecidos e amargos. Como Borobá
os comeu, calcularam que não eram venenosos e imitaram-no. Receavam perder-
se, como de facto já o estavam; não sabiam como regressar a Ngoubé nem como
encontrar os pigmeus. A sua esperança era serem encontrados por eles.
Estavam há várias horas deslocando-se sem rumo determinado, cada vez mais
perdidos e angustiados, quando de repente Borobá começou a guinchar. O macaco
tinha-se habituado a sentar-se em cima da cabeça de Alexander, com a cauda
enrolada em volta do pescoço e agarrado às orelhas deste, porque daí via melhor o
mundo do que no colo de Nadia. Alexander sacudia-o lá de cima mas, ao primeiro
descuido, Borobá voltava a instalar-se no seu lugar favorito. Por ir montado na
cabeça de Alexander, viu as pegadas. Estavam apenas a um metro de distância mas
eram quase invisíveis. Eram pegadas de grandes patas, que esmagavam tudo à sua
passagem e faziam uma espécie de vereda. Os jovens reconheceram-nas
imediatamente, porque as tinham visto no safari de Michael Mushaha.
- É o rasto de um elefante - disse Alexander, esperançado. - Se há um por aqui, com
certeza que os pigmeus também estão perto.
O elefante tinha sido perseguido durante dias. Os pigmeus seguiam a presa,
cansando-a até a enfraquecerem completamente, depois atiravam-lhe as redes e
encurralavam-na; só nessa altura atacavam. A única trégua que o animal teve foi
quando Beyé-Dokou e os seus companheiros se afastaram para conduzir os
forasteiros à aldeia de Ngoubé. Durante essa tarde e parte da noite, o elefante tratou
de voltar aos seus domínios, mas estava fatigado e confuso. Os caçadores tinham-
no obrigado a entrar em terreno desconhecido, não conseguia encontrar o seu
caminho e andava em círculos. A presença dos seres humanos, com as suas lanças
e redes, anunciava o seu fim; o instinto advertia-o, mas continuava a correr, porque
ainda não se resignara a morrer.
Durante milhares e milhares de anos, o elefante enfrentou o caçador. Na memória
genética dos dois está gravada a cerimónia trágica da caça, na qual se dispõem a
matar ou a morrer. A vertigem do perigo é fascinante para ambos. No momento
culminante da caça, a natureza contém a respiração, o bosque fica em silêncio, a
brisa desvia-se e, no fim, quando se decide a sorte de um dos dois, o coração do
homem e do animal palpitam ao mesmo ritmo. O elefante é o rei do bosque, o maior
e mais pesado animal, o mais respeitável, nenhum outro se lhe opõe. O seu único
inimigo é o homem, uma criatura pequena, vulnerável, sem garras nem presas, que
consegue esmagar com uma pata, como uma lagartixa. Como se atreve aquele ser
insignificante a enfrentá-lo? Mas uma vez começado o ritual da caça, não há tempo
para ver a ironia da situação, o caçador e a presa sabem que esta dança só acaba
com a morte.
Os caçadores descobriram o rasto de vegetação esmagada e ramos de árvores
arrancados de raiz muito antes de Nadia e de Alexander. Há muitas horas que
seguiam o elefante, deslocando-se com uma coordenação perfeita, para o cercarem
a uma distância prudente. Tratava-se de um macho velho e solitário, provido de dois
dentes enormes. Era apenas uma dúzia de pigmeus com armas primitivas, mas não
estavam dispostos a permitir que lhes escapasse. Em tempos normais, as mulheres
cansavam o animal e levavam-no até às armadilhas, onde eles aguardavam.
Há alguns anos, no tempo da liberdade, faziam sempre uma cerimónia para invocar
a ajuda dos antepassados e agradecer ao animal ter-se entregue à morte; mas
desde que Kosongo impôs o seu reino de terror, nada era igual. Até a caça, a
actividade mais antiga e importante da tribo, tinha perdido as suas características
sagradas para se transformar numa matança.
Alexander e Nadia ouviram os longos bramidos e sentiram a vibração daquelas
patas enormes no chão. Nessa altura já tinha começado o acto final: as redes
imobilizavam o elefante e as primeiras lanças cravavam-se no seu dorso.
Um grito de Nadia deteve os caçadores com as lanças erguidas, enquanto o elefante
se debatia furioso, lutando com as suas últimas forças.
- Não o matem! Não o matem! - repetia Nadia.
A jovem colocou-se entre os homens e o animal com os braços levantados. Os
pigmeus repuseram-se rapidamente da surpresa e tentaram afastá-la, mas nessa
altura Alexander saltou para a arena.
- Basta! Parem! - gritou o jovem, mostrando-lhes o amuleto.
- Ipemba-Afua! - exclamaram, caindo prostrados diante do símbolo sagrado da sua
tribo que por tanto tempo estivera nas mãos de Kosongo.
Alexander compreendeu que aquele osso talhado era mais valioso que o pó que
continha; mesmo vazio, a reacção dos pigmeus seria a mesma. Aquele objecto tinha
passado de mão em mão por muitas gerações e eles atribuíam-lhes poderes
mágicos. A dívida contraída com Alexander e Nadia por lhes terem devolvido
Ipemba-Afua era enorme, não podiam recusar nada àqueles jovens forasteiros que
lhes traziam a alma da tribo.
Antes de lhes entregar o amuleto, Alexander explicou-lhes por que razão não deviam
matar o animal, que já estava vencido nas redes.
- Restam muito poucos elefantes no bosque, depressa serão exterminados. O que
farão nessa altura? Não haverá marfim para resgatar os vossos filhos da escravidão.
A solução não é o marfim, mas eliminar Kosongo e libertar de uma vez as vossas
famílias - disse o jovem.
Acrescentou que Kosongo era um homem vulgar e comum, a terra não tremia
quando os pés dele a tocavam, não podia matar com o olhar ou com a voz. O seu
único poder era o que os outros lhe atribuíam. Se ninguém o receasse, Kosongo
perdia importância.
- E Mbembelé? E os soldados? - perguntaram os pigmeus.
Alexander teve de admitir que não tinham visto o comandante e que, com efeito, os
membros da Irmandade do Leopardo pareciam ser perigosos.
- Mas se vocês têm coragem para caçar elefantes com lanças, também conseguem
desafiar Mbembelé e os seus homens - acrescentou.
- Vamos à aldeia. Com Ipemba-Afua e com as nossas mulheres podemos vencer o
rei e o comandante - propôs Beyé-Dokou.
Na qualidade de turra - melhor caçador - tinha o respeito dos companheiros, mas
não tinha autoridade para impor nada. Os caçadores começaram a discutir entre si
e, apesar da seriedade do assunto, desatavam de repente às gargalhadas.
Alexander considerou que os seus novos amigos estavam a perder um tempo
precioso.
- Libertaremos as vossas mulheres para que lutem convosco. Os meus amigos
também ajudarão. A minha avó com certeza se lembrará de algum truque, é muito
esperta - prometeu Alexander.
Beyé-Dokou traduziu as palavras de Alexander, mas não conseguiu convencer os
seus companheiros. Eles pensavam que aquele patético grupo de estrangeiros não
seria muito útil na altura de lutar. A avó também não os impressionava, era apenas
uma velha de cabelos eriçados e olhos de louca. Por outro lado, eles contavam-se
pelos dedos e só dispunham de lanças e de redes, enquanto os seus inimigos eram
muitos e poderosos.
- As mulheres disseram-me que no tempo da rainha Nana-Asante os pigmeus e os
bantos eram amigos - recordou-lhes Nadia.
- É verdade - disse Beyé-Dokou.
- Os bantos também vivem aterrorizados em Ngoubé. Mbembelé tortura-os e mata-
os se desobedecem. Se pudessem, livrar-se-iam de Kosongo e do comandante.
Talvez se ponham do vosso lado - sugeriu a rapariga.
- Mesmo que os bantos nos ajudem e derrotemos os soldados, resta ainda Sombe, o
feiticeiro - alegou Beyé-Dokou.
- Também conseguiremos vencer o bruxo! - exclamou Alexander.
Mas os caçadores rejeitaram veementemente a ideia de desafiarem Sombe e
explicaram em que consistiam os seus poderes aterradores: engolia fogo, andava
pelo ar e sobre brasas ardentes, transformava-se num sapo e a sua saliva matava.
Embrulharam-se nas limitações da mímica e Alexander entendeu que o bruxo se
punha em quatro patas e vomitava, o que não lhe pareceu nada do outro mundo.
- Não se preocupem, amigos, nós encarregamo-nos de Sombe - prometeu, com
excessiva confiança.
Entregou-lhes o amuleto mágico, que os amigos receberam comovidos e alegres.
Tinham esperado vários anos por esse momento.
Enquanto Alexander argumentava com os pigmeus, Nadia aproximara-se do elefante
ferido e tentava acalmá-lo no idioma aprendido com Kobi, o elefante do safari. O
enorme animal estava no limite das suas forças; tinha sangue no dorso, onde
algumas lanças dos caçadores o tinham ferido, e na tromba, com que batia no chão.
A voz da rapariga falando-lhe na sua língua chegava-lhe de muito longe, como se a
ouvisse em sonhos. Era a primeira vez que enfrentava seres humanos e não
esperava que falassem como ele. Por puro cansaço, acabou por prestar atenção.
Lenta mas determinadamente, o som daquela voz atravessou a densa barreira do
desespero, da dor e do terror e chegou-lhe ao cérebro. Pouco a pouco, foi
acalmando e deixou de se debater sob as redes. Passado pouco tempo imobilizou-
se, espreitando, com os olhos fixos em Nadia, sacudindo as suas grandes orelhas.
Exalava um cheiro a medo tão forte que Nadia o sentiu como uma bofetada, mas
continuou a falar, certa de que ele a compreendia. Perante o assombro dos homens,
o elefante começou a responder e depressa ficaram com a certeza de que a menina
e o animal conversavam.
- Fazemos um acordo - propôs Nadia aos caçadores. - Em troca de Ipemba-Afua,
vocês poupam a vida ao elefante.
Para os pigmeus o amuleto era muito mais valioso que o marfim do elefante, mas
não sabiam como tirar-lhe as redes de cima sem morrerem esmagados pelas patas
ou trespassados pelos próprios dentes que pretendiam levar a Kosongo. Nadia
garantiu-lhes que podiam fazê-lo sem perigo. Entretanto, Alexander aproximara-se o
suficiente para examinar os cortes das lanças na pele grossa.
- Perdeu muito sangue, está desidratado e estas feridas podem infectar. Receio que
o espere uma morte lenta e dolorosa - anunciou.
Então, Beyé-Dokou agarrou no amuleto e aproximou-se do animal. Tirou um
pequeno tampão de uma das extremidades de Ipemba-Afua, inclinou o osso,
agitando-o como um saleiro, enquanto outro dos caçadores abria as mãos para
receber um pó esverdeado. Por sinais, indicaram a Nadia que o aplicasse porque
nenhum deles se atrevia a tocar no elefante. Nadia explicou ao ferido que iam curá-
lo e, quando adivinhou que este tinha compreendido, pôs o pó nos cortes profundos
das lanças.
As feridas não se fecharam milagrosamente como ela esperava mas, passados
alguns minutos, deixaram de sangrar. O elefante voltou a cabeça para tactear o
dorso com a tromba, mas Nadia avisou-o de que não devia tocar-se.
Os pigmeus atreveram-se a tirar as redes, uma tarefa bastante mais complicada que
colocá-las mas, por fim, o elefante ficou livre. Resignara-se ao seu destino, talvez
tenha chegado a transpor a fronteira entre a vida e a morte, e de repente viu-se
milagrosamente livre. Deu alguns passos incertos, depois avançou na direcção da
selva, cambaleando. No último instante, antes de desaparecer bosque adentro,
voltou-se para Nadia e, olhando-a com um olho incrédulo, levantou a tromba e
lançou um bramido.
- O que disse? - perguntou Alexander.
- Que o chamemos, se precisarmos de ajuda - traduziu Nadia.
Dentro de pouco tempo cairia a noite. Nadia tinha comido muito pouco nos últimos
dias e Alexander tinha tanta fome como ela. Os caçadores descobriram pegadas de
um búfalo, mas não as seguiram porque eram perigosos e andavam em grupo.
Tinham línguas ásperas como lixa e podiam lamber um homem até lhe arrancarem a
carne e deixá-lo no osso, disseram. Não conseguiam caçá-los sem a ajuda das
mulheres. Levaram-nos a trote até um grupo de palhotas minúsculas feitas de ramos
e folhas. Era uma aldeia tão miserável que não parecia possível ser habitada por
seres humanos. Não construíam casas mais sólidas porque eram nómadas,
estavam separados das familias e tinham de deslocar-se cada vez mais longe à
procura de elefantes. A tribo não possuía nada, só aquilo que cada indivíduo
conseguia levar consigo. Os pigmeus fabricavam apenas os objectos básicos para
sobreviver no bosque e caçar, o resto obtinham-no através de trocas. Como a
civilização não lhes interessava, outras tribos julgavam que eles eram como
macacos.
Os caçadores tiraram de um buraco do chão meio antílope coberto de terra e
insectos. Tinham-no caçado dois dias antes e, depois de comerem uma parte,
tinham enterrado o resto para evitar que outros animais o arrebatassem. Ao ver que
ainda estava ali, começaram a cantar e a dançar. Nadia e Alexander verificaram
mais uma vez que, apesar do sofrimento, era uma gente muito alegre quando estava
no bosque, qualquer pretexto servia para brincar, contar histórias e rir-se às
gargalhadas. A carne exalava um cheiro fétido e estava meio verde mas, graças ao
isqueiro de Alexander e à habilidade dos pigmeus para descobrir combustível seco,
fizeram uma pequena fogueira onde a assaram. Também comeram com entusiasmo
as larvas, lagartas, vermes e formigas coladas à carne, que consideravam uma
verdadeira delícia, e completaram o jantar com frutos selvagens, nozes e água dos
charcos do chão.
- A minha avó avisou-nos de que a água suja nos daria cólera - disse Alexander,
bebendo com as duas mãos porque estava morto de sede.
- Talvez a ti, que és muito delicado - troçou Nadia -, mas eu criei-me no Amazonas;
sou imune às doenças tropicais.
Perguntaram a Beyé-Dokou a que distância ficava Ngoubé mas este não conseguiu
dar uma resposta precisa porque, para eles, a distância media-se em horas e
dependia da velocidade a que se deslocavam. Cinco horas a andar equivale a duas
a correr. Também não conseguiu apontar a direcção porque nunca tinham tido uma
bússola ou um mapa, não conheciam os pontos cardeais. Orientavam-se pela
natureza, conseguiam reconhecer cada uma das árvores num território de centenas
de hectares. Explicou que só eles, pigmeus, tinham nomes para todas as árvores,
plantas e animais; as outras pessoas achavam que o bosque era apenas um
emaranhado verde, uniforme e pantanoso. Os soldados e os bantos só se
aventuravam entre a aldeia e a bifurcação do rio, onde estabeleciam contacto com o
exterior e negociavam com os contrabandistas.
- O tráfico de marfim é proibido em quase todo o mundo. Como o fazem sair da
região? - perguntou Alexander.
Beyé-Dokou informou-o que Mbembelé subornava as autoridades e dispunha de
uma rede de sequazes ao longo do rio. Amarravam os dentes debaixo dos botes de
modo a ficarem debaixo de água e transportavam-nos desta forma em plena luz do
dia. Os diamantes iam no estômago dos contrabandistas. Engoliam-nos com
colheres de mel e pudim de mandioca e, dois dias mais tarde, quando estivessem
num local seguro, expulsavam-nos pela outra extremidade, método repugnante mas
seguro.
Os caçadores falaram-lhes do tempo anterior a Kosongo, quando Nana-Asante
governava Ngoubé. Nessa época não havia ouro, não se traficava marfim, os bantos
viviam do café, que transportavam pelo rio até às cidades, e os pigmeus
permaneciam a maior parte do ano caçando no bosque. Os bantos cultivavam
hortaliças e mandioca, que davam aos pigmeus em troca de carne. Faziam festas
em conjunto. Existiam as mesmas misérias, mas ao menos viviam livres. Às vezes
chegavam botes trazendo coisas da cidade, mas os bantos compravam pouco
porque eram muito pobres e aos pigmeus não lhes interessavam. O governo tinha-
se esquecido deles, embora enviasse de vez em quando uma enfermeira com
vacinas, ou um professor com intenção de construir uma escola, ou um funcionário
que prometia instalar electricidade. Partiam depressa. Não suportavam a distância
da civilização, adoeciam, enlouqueciam. Os únicos que ficaram foram o comandante
Mbembelé e os seus homens.
- E os missionários? - perguntou Nadia.
- Eram fortes e também ficaram. Quando eles chegaram, Nana-Asante já não
estava. Mbembelé expulsou-os mas eles não se foram embora. Tentaram ajudar a
nossa tribo. Depois desapareceram - disseram os caçadores.
- Como a rainha - insinuou Alexander.
- Não; não como a rainha... - responderam, mas não quiseram dar mais explicações.
CAPÍTULO 10
Para Nadia e Alexander aquela era a primeira noite passada totalmente no bosque.
Na noite anterior tinham estado na festa de Kosongo, Nadia tinha visitado as
escravas pigmeias, tinham roubado o amuleto e incendiado a casa real antes de
saírem da aldeia, de modo que não lhes pareceu muito longa; mas esta pareceu-
lhes eterna. Debaixo da cúpula das árvores, a luz desaparecia muito cedo e voltava
muito tarde. Estiveram mais de dez horas encolhidos nos refúgios miseráveis dos
caçadores, suportando a humidade, os insectos e a proximidade de animais
selvagens, coisas que não incomodavam os pigmeus que só receavam os
fantasmas.
A luz da madrugada surpreendeu Nadia, Alexander e Borobá acordados e
esfomeados. Do antílope assado só restavam os ossos queimados e não se
atreveram a comer mais fruta porque lhes provocava dores de barriga. Decidiram
não pensar em comida. Depressa os pigmeus também acordaram e puseram-se a
conversar entre si, durante muito tempo e na sua língua. Como não tinham chefe, as
decisões exigiam horas de discussão em círculo mas, assim que chegavam a um
acordo, agiam como um só homem. Graças à sua espantosa facilidade para as
línguas, Nadia entendeu o sentido geral da conferência. Alexander, pelo contrário, só
conseguiu perceber alguns nomes que conhecia: Ngoubé, Ipemba-Afua, Nana-
Asante. Finalmente aquela conversa animada terminou e os jovens ficaram a par do
plano.
Os contrabandistas viriam buscar o marfim - ou os filhos dos pigmeus - dentro de
dois dias. Isso significava que deveriam atacar Ngoubé num prazo máximo de trinta
e seis horas. A primeira e mais importante atitude a tomar, decidiram, seria fazer
uma cerimónia com o amuleto sagrado para pedir a protecção dos antepassados e
de Ezenji, o grande espírito do bosque, da vida e da morte.
- Passamos perto da aldeia dos antepassados quando formos para Ngoubé? -
perguntou Nadia.
Beyé-Dokou confirmou que, efectivamente, os antepassados viviam num sítio entre
o rio e Ngoubé. Ficava a várias horas de caminho do sítio onde estavam nesse
momento. Alexander lembrou-se de que, quando a avó Kate era nova, percorrera o
mundo com uma mochila às costas e costumava dormir em cemitérios, porque eram
muito seguros, ninguém lá ia de noite. A aldeia dos espectros era o local perfeito
para prepararem o ataque a Ngoubé. Aí estariam a pouca distância do objectivo e
completamente seguros, porque Mbembelé e os soldados nunca se aproximariam.
- Este é um momento muito especial, o mais importante na história da sua tribo.
Acho que devem fazer a cerimónia na aldeia dos antepassados... - sugeriu
Alexander.
Os caçadores pasmaram com a completa ignorância do jovem forasteiro e
perguntaram-lhe se por acaso no seu país faltavam ao respeito aos antepassados.
Alexander teve de admitir que nos Estados Unidos os antepassados ocupavam uma
posição insignificante na escala social. Explicaram-lhe que a aldeola dos espíritos
era um local proibido, nenhum humano podia lá entrar sem perecer imediatamente.
Só lá iam para levar os mortos. Quando falecia algum elemento da tribo, realizava-
se uma cerimónia que durava um dia e uma noite, depois as mulheres mais velhas
envolviam o corpo em trapos e folhas, amarravam-no com cordas feitas com a fibra
de casca de árvore, a mesma que usavam para as suas redes, e levavam-no para
descansar com os antepassados. Aproximavam-se depressa da aldeia, depositavam
a sua carga e saíam a correr o mais depressa possível. Isto efectuava-se sempre de
manhã, em plena luz do dia, após inúmeros sacrifícios. Era a única hora segura,
porque os fantasmas dormiam durante o dia e viviam de noite. Se os antepassados
fossem tratados com o devido respeito não incomodavam os humanos, mas quando
eram ofendidos, não perdoavam. Receavam-nos mais do que aos deuses, porque
estavam mais próximos.
Angie Ninderera contara a Nadia e a Alexander que em África existia uma relação
permanente entre os seres humanos e o mundo espiritual.
- Os deuses africanos são mais compassivos e razoáveis que os deuses de outros
povos - dissera-lhes. - Não castigam, como o deus cristão. Não existe um inferno
onde as almas sofrem por toda a eternidade. O que de pior pode acontecer a uma
alma africana é vaguear perdida e só. Um deus africano jamais mandaria o seu
único filho morrer na cruz para salvar pecados humanos, que pode apagar com um
só gesto. Os deuses africanos não criaram os seres humanos à sua imagem e
também não os amam, mas ao menos deixam-nos em paz. Os espíritos, pelo
contrário, são mais perigosos, porque têm os mesmos defeitos que as pessoas, são
avarentos, cruéis, ciumentos. Para os manter tranquilos, é necessário oferecer-lhes
presentes. Não pedem muito: um jarro de bebida, um cigarro, o sangue de um galo.
Os pigmeus julgavam ter ofendido gravemente os seus antepassados e por isso
padeciam às mãos de Kosongo. Não sabiam qual teria sido a ofensa nem como
emendá-la, mas calculavam que a sua sorte mudaria se aplacassem o seu
aborrecimento.
- Vamos à aldeia deles perguntar-lhes por que estão ofendidos e o que pretendem
que façam - propôs Alexander.
- São fantasmas! - exclamaram os pigmeus, horrorizados.
- Nadia e eu não os tememos. Vamos falar com eles, talvez nos ajudem. No fim de
contas, vocês são descendentes deles, devem sentir alguma afeição, não acham?
Inicialmente a ideia foi totalmente rejeitada mas os jovens insistiram e, depois de
discutirem durante muito tempo, os caçadores aceitaram encaminhar-se até às
proximidades da aldeia proibida.
Ficariam escondidos no bosque, onde preparariam as suas armas e fariam uma
cerimónia, enquanto os forasteiros tentavam parlamentar com os antepassados.
Caminharam durante horas pelo bosque. Nadia e Alexander deixavam-se conduzir
sem fazer perguntas, embora muitas vezes julgassem que estavam a passar pelo
mesmo sítio. Os caçadores avançavam com confiança, sempre a trote, sem comer
nem beber, imunes à fadiga, mantidos apenas pelo tabaco preto dos seus
cachimbos de bambu. Para além das redes, lanças e dardos, aqueles cachimbos
eram as suas únicas posses materiais. Os dois jovens seguiam-nos tropeçando a
toda a hora, enjoados de cansaço e de calor, até se terem atirado ao chão,
recusando-se a continuar. Precisavam de descansar e de comer alguma coisa.
Um dos caçadores disparou um dardo a um macaco que lhe caiu aos pés como uma
pedra. Cortaram-no aos bocados, arrancaram-lhe a pele e fincaram os dentes na
carne crua. Alexander fez uma pequena fogueira e assou os pedaços que lhe eram
destinados e a Nadia, enquanto Borobá tapava a cara com as mãos e gemia; para
ele era um acto horrível de canibalismo. Nadia ofereceu-lhe rebentos de bambu e
tentou explicar-lhe que, dadas as circunstâncias, não podiam recusar a carne. Mas
Borobá, apavorado, voltou-lhe as costas e não permitiu que ela o tocasse.
- Isto é como se um grupo de símios devorasse uma pessoa à nossa frente - disse
Nadia.
- Na verdade é uma grosseria da nossa parte, Águia, mas se não nos alimentarmos
não conseguiremos continuar - argumentou Alexander.
Beyé-Dokou explicou-lhes o que pensavam fazer. Apareceriam em Ngoubé ao cair
da tarde do dia seguinte, quando Kosongo esperava a quota de marfim. Ficaria, sem
dúvida, furioso ao vê-los chegar de mãos vazias. Enquanto alguns deles o distraíam
com desculpas e promessas, outros abririam o curral das mulheres e trariam as
armas. Iam lutar pelas suas vidas e resgatar os seus filhos - disseram.
- Parece-me uma decisão bastante corajosa, mas pouco prática. Acabará num
massacre porque os soldados têm espingardas - alegou Nadia.
- São antiquadas - insinuou Alexander.
- Sim, mas continuam a matar de longe. Não se pode lutar com lanças contra armas
de fogo - insistiu Nadia.
- Nesse caso, temos de nos apoderar das munições.
- Impossível. As armas estão carregadas e os soldados têm cintos de balas. Como
conseguiremos inutilizar as espingardas?
- Não percebo nada disso, Águia, mas a minha avó esteve em várias guerras e viveu
durante meses com guerrilheiros na América Central. Tenho a certeza de que ela
sabe como fazê-lo. Temos de voltar a Ngoubé para preparar o terreno antes de
chegarem os pigmeus - propôs Alexander.
- E como o faremos sem que os soldados nos vejam? - perguntou Nadia.
- Iremos durante a noite. Julgo que a distância entre Ngoubé e a aldeia dos
antepassados é pequena.
- Por que insistes em ir à aldeia proibida, Jaguar?
- Dizem que a fé move montanhas, Águia. Se conseguirmos convencer os pigmeus
de que os antepassados os protegem, sentir-se-ão invencíveis. Além disso, têm o
amuleto Ipemba-Afua, isso também lhes dará coragem.
- E se os antepassados não quiserem ajudar?
- Os antepassados não existem, Águia! A aldeia é apenas um cemitério. Passaremos
ali algumas horas tranquilamente, depois viremos contar aos nossos amigos que os
antepassados lhes prometeram ajuda na batalha contra Mbembelé. Esse é o meu
plano.
- Não me agrada o teu plano. Quando se tenta enganar, as coisas não acabam
bem... - disse Nadia.
- Se preferires, vou sozinho.
- Já sabes que não podemos separar-nos. Irei contigo - decidiu ela.
Ainda havia luz no bosque quando chegaram ao sítio marcado pelos
ensanguentados bonecos vodu que já tinham visto anteriormente. Os pigmeus
recusaram-se a seguir nessa direcção, porque não podiam pisar os domínios dos
espíritos esfomeados.
- Não creio que os fantasmas sofram de fome, supõe-se que não têm estômago -
comentou Alexander.
Beyé-Dokou apontou para os montes de lixo que estavam nos arredores. A sua tribo
fazia sacrifícios de animais e levava oferendas de fruta, mel, nozes e bebidas, que
colocava aos pés dos bonecos. Durante a noite a maior parte desaparecia, engolida
pelos espectros insaciáveis. Graças a isso viviam em paz, porque quando os
fantasmas eram bem alimentados não atacavam as pessoas. O jovem insinuou que
as ratazanas com certeza comeriam as oferendas mas os pigmeus, ofendidos,
rejeitaram completamente essa sugestão. As velhotas encarregadas de levar os
cadáveres até à entrada da aldeia durante os funerais podiam testemunhar que a
comida era arrastada até ali. Às vezes ouviam gritos arrepiantes, capazes de
provocar um pavor tal que o cabelo embranquecia em poucas horas.
- Nadia, Borobá e eu iremos aí, mas precisamos que alguém nos espere aqui para
nos guiar até Ngoubé antes do amanhecer - disse Alexander.
Para os pigmeus a ideia de passar a noite no cemitério era a prova mais
contundente de que os forasteiros não estavam bons da cabeça, mas como não
tinham conseguido dissuadi-los, acabaram por aceitar a decisão. Beyé-Dokou
indicou-lhes a rota, despediu-se deles com grandes demonstrações de afecto e
tristeza, porque tinha a certeza de que não voltaria a vê-los mas, por cortesia,
aceitou esperar por eles no altar vodu até à madrugada do dia seguinte. Os outros
também se despediram, admirados com a coragem dos dois jovens forasteiros.
A Nadia e Alexander chamou a atenção o facto de, naquela selva voraz, onde só os
elefantes deixavam rastos visíveis, haver um carreiro que ia até ao cemitério. Isso
significava que alguém o usava com frequência.
- Por aqui passam os antepassados... - murmurou Nadia.
- Se existissem, Águia, não deixariam marcas e não precisariam de caminho -
replicou Alexander.
- Como sabes?
- É uma questão de lógica.
- Os pigmeus e os bantos não se aproximam deste sítio por motivo algum e os
soldados de Mbembelé são ainda mais supersticiosos. Esses nem sequer entram no
bosque. Explica-me quem fez este carreiro - exigiu-lhe Nadia.
- Não sei, mas investigaremos.
Após uma caminhada de meia hora viram-se de repente numa clareira, diante de um
muro circular, grosso e alto, construído com pedras, troncos, palha e barro. Presas
ao muro viam-se cabeças dissecadas de animais, caveiras e ossos, máscaras,
figuras talhadas em madeira, recipientes de barro e amuletos. Não se via qualquer
porta, mas descobriram um buraco redondo, com uns oitenta centímetros de
diâmetro, colocado a uma certa altura.
- Julgo que as velhotas que trazem os cadáveres os atiram por este buraco. No
outro lado deve haver uma pilha de ossos - disse Alexander.
Nadia não chegava à abertura, mas ele era mais alto e pôde espreitar.
- O que há aí? - perguntou ela.
- Não vejo bem. Mandemos Borobá investigar.
- Como te pode passar isso pela cabeça?! Borobá não pode ir sozinho. Vamos todos
ou não vai ninguém - decidiu Nadia.
- Espera-me aqui, volto já - respondeu Alexander.
- Prefiro ir contigo.
Alexander calculou que, se escorregasse através do buraco, cairia de cabeça. Não
sabia o que iria encontrar do outro lado; era melhor trepar o muro, uma brincadeira
de crianças para ele, dada a sua experiência de montanhismo. A textura irregular da
parede facilitava a subida e, em menos de dois minutos, estava encavalitado no
muro, enquanto Nadia e Borobá esperavam lá em baixo, bastante nervosos.
- É como uma aldeola abandonada, parece antiga, nunca vi nada semelhante - disse
Alexander.
- Há esqueletos? - perguntou Nadia.
- Não, está tudo limpo e vazio. Talvez não metam os corpos pela abertura, como
pensámos...
Com a ajuda do amigo, Nadia saltou também para o outro lado. Borobá hesitou, mas
o medo de ficar sozinho impeliu-o a segui-la; nunca se separava da dona.
À primeira vista, a aldeia dos antepassados parecia um conjunto de fornos de barro
e pedras colocados em círculos concêntricos, numa simetria perfeita. Cada uma
daquelas construções redondas tinha um buraco a fazer de porta, fechado com
bocados de tecido ou casca de árvore. Não havia estátuas, bonecos ou amuletos. A
vida parecia ter parado naquele recinto cercado pelo muro alto. Ali a selva não
entrara e até a temperatura era diferente. Reinava um silêncio inexplicável, não se
ouvia a algazarra dos macacos e dos pássaros do bosque, nem o repicar da chuva,
nem o murmúrio da brisa entre as folhas das árvores. A quietude era absoluta.
- São tumbas. Devem pôr aí os seus defuntos. Vamos investigar - decidiu Alexander.
Ao levantar algumas das cortinas que tapavam as entradas, viram que lá dentro
havia restos humanos colocados em ordem, como uma pirâmide. Eram esqueletos
secos e quebradiços, que talvez estivessem ali há centenas de anos. Algumas
choças estavam cheias de ossos, outras estavam com ossos até metade e algumas
permaneciam vazias.
- Que coisa tão macabra! - observou Alexander, estremecendo.
- Não entendo, Jaguar... Se ninguém entra aqui, como pode haver tanta ordem e
limpeza? - perguntou Nadia.
- É um mistério - admitiu o amigo.
CAPÍTULO 11
A luz sempre ténue sob a cúpula verde da selva começava a diminuir. Há dois dias,
desde que tinham saído de Ngoubé, que os amigos só viam o céu pelas frinchas
existentes entre as copas das árvores. O cemitério estava numa clareira e puderam
ver por cima um pedaço de céu, que começava a tornar-se azul-escuro. Sentaram-
se entre duas tumbas, dispostos a passar umas horas de solidão.
Nos três anos decorridos desde que se conheciam, a amizade entre Alexander e
Nadia tinha crescido como uma grande árvore até se transformar no que de mais
importante existia nas suas vidas. O afecto infantil do início evoluiu à medida que
amadureciam, mas nunca falavam disso. Não necessitavam de palavras para
descrever esse sentimento delicado e receavam que, ao fazê-lo, se partisse como
cristal. Expressar a sua relação por palavras significava defini-la, estabelecer limites,
reduzi-la; não a mencionando, continuava livre e incontaminada. Em silêncio, essa
amizade expandira-se subtilmente, sem que eles próprios percebessem.
Nos últimos tempos, Alexander sofria mais do que nunca a explosão das hormonas
própria da adolescência, que a maior parte dos rapazes sofre mais cedo; o corpo
parecia-lhe um inimigo, não o deixava em paz. As suas notas na escola tinham
baixado, já não tocava música, até as excursões à montanha com o pai, que antes
lhe eram fundamentais, aborreciam-no. Sofria ataques de mau humor, brigava com a
família e depois, arrependido, não sabia como fazer as pazes. Tornara-se
desajeitado, enredado num emaranhado de sentimentos contraditórios. Passava da
depressão à euforia numa questão de minutos, as suas emoções eram tão intensas
que às vezes se interrogava se valeria a pena continuar a viver. Nos momentos de
maior pessimismo pensava que o mundo era um desastre e que a maior parte da
humanidade era estúpida. Apesar de ter lido livros a esse respeito e de, na escola,
se discutir a fundo a adolescência, ele sofria-a como uma doença inconfessável.
- Não te preocupes, passámos todos pelo mesmo - consolava-o o pai, como se se
tratasse de uma constipação; mas depressa faria dezoito anos e a sua situação não
melhorava. Alexander quase não conseguia falar com os pais, punham-no louco,
eram de outra época, tudo o que diziam parecia antiquado. Sabia que o amavam
incondicionalmente e estava-lhes grato por isso, mas achava que não podiam
entendê-lo. Só com Nadia conseguia partilhar os seus problemas. Na linguagem
cifrada que usava com ela por correio electrónico conseguia descrever o que lhe
acontecia sem se envergonhar, mas nunca o fizera pessoalmente. Ela aceitava-o tal
como ele era, sem o julgar. Lia as mensagens sem dar opinião, porque realmente
não sabia o que responder; as suas inquietações eram diferentes.
Alexander pensava que a sua obsessão pelas raparigas era ridícula, mas não
conseguia evitá-la. Uma palavra, um gesto, um toque, bastavam para lhe encher a
cabeça de imagens e a alma de desejo. O melhor paliativo era o exercício: fazia surf
no Pacífico de Inverno e de Verão. O choque da água gelada e a sensação
maravilhosa de voar sobre as ondas devolviam-lhe a inocência e a euforia da
infância, mas aquele estado de espírito durava pouco. As viagens com a avó, pelo
contrário, conseguiam distraí-lo durante semanas. Diante da avó conseguia controlar
as emoções e isso dava-lhe alguma esperança; talvez o pai tivesse razão e aquela
loucura fosse passageira.
Desde que se encontraram em Nova Iorque no início da viagem, Alexander olhava
para Nadia com outros olhos, embora a excluísse totalmente das suas fantasias
românticas ou eróticas. Nem sequer conseguia imaginá-la nesse plano. Ela
pertencia à mesma categoria das irmãs: unia-os um carinho puro e ciumento. O seu
papel era protegê-la de quem pudesse fazer-lhe mal, especialmente de outros
rapazes. Nadia era bonita - pelo menos era o que lhe parecia - e, mais cedo ou mais
tarde, teria um enxame de apaixonados à sua volta. Não iria permitir que aqueles
zângões se aproximassem dela; a simples ideia punha-o frenético. Reparava nas
formas do corpo de Nadia, na graciosidade dos seus gestos e na expressão
concentrada do seu rosto. Gostava das suas cores, do cabelo louro escuro, da pele
morena, dos olhos como avelãs; podia pintar-lhe o retrato com uma paleta reduzida,
do amarelo ao castanho. Era diferente dele e isso intrigava-o: a sua fragilidade
física, que escondia uma grande força de vontade, a sua atenção silenciosa, a forma
como se harmonizava com a natureza. Sempre fora reservada, mas agora parecia-
lhe misteriosa. Adorava estar perto dela, tocá-la de vez em quando, mas era-lhe
muito mais fácil comunicar com ela à distância; quando estavam juntos baralhava-
se, não sabia o que dizer-lhe e começava a medir as palavras, parecia-lhe que às
vezes tinha as mãos muito pesadas, os pés muito grandes, a voz muito alta.
Ali, sentados na escuridão, rodeados de tumbas num antigo cemitério de pigmeus,
Alexander sentia a proximidade da amiga com uma intensidade quase dolorosa.
Amava-a mais do que tudo no mundo, mais do que aos pais e a todos os amigos
juntos, receava perdê-la.
- Que tal Nova Iorque? Gostas de viver com a minha avó? - perguntou-lhe, para
dizer alguma coisa.
- A tua avó trata-me como uma princesa, mas sinto saudades do meu pai.
- Não voltes para o Amazonas, Águia, fica muito longe e não podemos comunicar
um com o outro.
- Vem comigo - disse ela.
- Irei contigo para onde quiseres, mas primeiro tenho de estudar medicina.
- A tua avó diz que estás a escrever sobre as nossas aventuras no Amazonas e no
Reino do Dragão de Ouro. Vais escrever também sobre os pigmeus? - perguntou
Nadia.
- São só apontamentos, Águia. Não pretendo ser escritor, mas médico. A ideia
ocorreu-me quando a minha mãe adoeceu e tomei a decisão quando o lama Tensing
te curou o ombro com agulhas e orações. Apercebi-me de que a ciência e a
tecnologia não chegam para curar, há outras coisas igualmente importantes.
Medicina holística, creio que é como se denomina o que quero fazer - explicou
Alexander.
- Lembras-te do que te disse o xamã Walimai? Disse que tens o poder de curar e
que deves aproveitá-lo. Creio que serás o melhor médico do mundo - garantiu-lhe
Nadia.
- E tu, o que queres fazer quando acabares o liceu?
- Vou estudar idiomas de animais.
- Não há institutos para estudar idiomas de animais - riu-se Alexander.
- Então fundarei o primeiro.
- Seria bom viajarmos juntos, eu como médico e tu como linguista - propôs
Alexander.
- Isso acontecerá quando nos casarmos - replicou Nadia.
A frase ficou suspensa no ar, tão visível como uma bandeira. Alexander sentiu que o
sangue lhe provocava formigueiros no corpo e que o coração lhe saltava no peito.
Estava tão surpreendido que não conseguiu responder. Como não se lembrara
disso? Tinha vivido apaixonado por Cecilia Burns, com quem não tinha nada em
comum. Este ano perseguira-a com uma tenacidade invencível, aguentando
estoicamente as suas inconveniências e caprichos.
Enquanto ele agia ainda como um miúdo, Cecilia Burns transformara-se numa
mulher feita, embora tivessem a mesma idade. Era muito atraente e Alexander já
não tinha esperança de que ela reparasse nele. Cecilia desejava ser actriz,
suspirava pelos galãs do cinema e planeava tentar a sua sorte em Hollywood assim
que fizesse dezoito anos. O comentário de Nadia revelou-lhe um horizonte que até
então ele não contemplara.
- Como sou idiota! - exclamou.
- O que quer isso dizer? Que não nos vamos casar?
- Eu... - balbuciou Alexander.
- Olha, Jaguar, não sabemos se vamos sair vivos deste bosque. Como talvez não
nos reste muito tempo, falemos com o coração - propôs ela seriamente.
- É evidente que nos casaremos, Águia! Não há qualquer dúvida - replicou ele, com
as orelhas a arder.
- Bom, faltam alguns anos para isso - disse ela, encolhendo os ombros.
E durante uma longa pausa não tiveram mais nada a dizer um ao outro. Alexander
sentia-se sacudido por um furacão de ideias e de emoções contraditórias, que iam
do receio de voltar a olhar para Nadia em plena luz do dia, até à tentação de beijá-la.
Tinha a certeza de que nunca se atreveria a fazer isso... O silêncio tornou-se
insuportável.
- Tens medo, Jaguar? - perguntou Nadia, passada meia hora.
Alexander não respondeu, pensando que ela lhe adivinhara o pensamento e se
referia ao novo receio que despertara nele e que naquele instante o paralisava. À
segunda vez, compreendeu que ela se referia a uma coisa muito mais imediata e
concreta.
- Amanhã será preciso enfrentar Kosongo, Mbembelé e talvez o bruxo Sombe...
como o faremos?
- Logo se verá, Águia. Como diz a minha avó: é preciso não ter medo do medo.
Sentiu-se grato por ela ter mudado de assunto e decidiu que não voltaria a
mencionar o amor, pelo menos até estar a salvo na Califórnia, separado dela pelo
largo continente americano. Através do correio electrónico seria um pouco mais fácil
falar de sentimentos, porque ela não conseguiria ver-lhe as orelhas vermelhas.
- Espero que a águia e o jaguar venham em nossa ajuda - disse Alexander.
- Desta vez vai ser preciso mais do que isso - concluiu Nadia.
Como se respondesse a um chamamento, sentiram nesse instante uma presença
silenciosa a poucos passos do local onde se encontravam. Alexander agarrou na
faca e acendeu a lanterna. Nessa altura uma figura arrepiante surgiu diante deles
enquadrada pelo feixe de luz.
Paralisados de susto, viram a três metros de distância uma velha bruxa, envolta em
andrajos, com um cabelo enorme, branco e desgrenhado, tão magra como um
esqueleto. Um fantasma, pensaram os dois imediatamente, mas logo a seguir
Alexander pensou que devia haver outra explicação.
- Quem está aí? - gritou em inglês, levantando-se de um salto.
Silêncio. O jovem repetiu a pergunta e tornou a apontar a lanterna.
- É um espírito? - perguntou Nadia numa mistura de francês e banto.
A aparição respondeu com um murmúrio incompreensível e retrocedeu, cega pela
luz.
- Parece ser uma velhota! - exclamou Nadia.
Finalmente, perceberam claramente o que o suposto fantasma dizia: Nana-Asante.
- Nana-Asante? A rainha de Ngoubé? Viva ou morta? - perguntou Nadia.
Depressa dissiparam as suas dúvidas: era a antiga rainha em corpo e alma, a
mesma que tinha desaparecido, aparentemente assassinada por Kosongo quando
este usurpou o trono. A mulher tinha permanecido anos escondida no cemitério e
sobrevivera alimentando-se com as oferendas que os caçadores deixavam para os
seus antepassados. Era ela quem mantinha o local limpo; quem colocava nas
tumbas os cadáveres que deitavam pelo buraco do muro. Disse-lhes que não estava
sozinha mas em muito boa companhia, a dos espíritos, com quem esperava reunir-
se definitivamente dentro de pouco tempo, porque estava cansada de habitar o seu
corpo. Contou-lhes que antes era uma nganga, uma curandeira que viajava até ao
mundo dos espíritos quando entrava em transe. Vira-os durante as cerimónias e
tinha-lhes pavor mas, desde que vivia no cemitério, perdera-lhes o medo. Agora
eram seus amigos.
- Pobre mulher, deve ter enlouquecido - sussurrou Alexander a Nadia.
Nana-Asante não estava louca, pelo contrário; aqueles anos de recolhimento
tinham-lhe dado uma lucidez extraordinária. Estava informada acerca de tudo o que
acontecia em Ngoubé, estava a par de Kosongo e das suas vinte mulheres, de
Mbembelé e dos seus dez soldados da Irmandade do Leopardo, do bruxo Sombe e
dos seus demónios. Sabia que os bantos da aldeia não se atreviam a lutar contra
eles porque qualquer sinal de rebelião pagava-se com tormentos terríveis. Sabia que
os pigmeus eram escravos, que Kosongo lhes tinha tirado o amuleto sagrado e que
Mbembelé vendia os filhos deles se não lhe levassem marfim. E sabia também que
um grupo de forasteiros tinha chegado a Ngoubé à procura dos missionários e que
os dois mais jovens tinham fugido de Ngoubé e iriam visitá-la. Estava à espera
deles.
- Como pode saber tudo isso? - perguntou Alexander.
- Contaram-me os antepassados. Eles sabem muitas coisas. Não saem apenas de
noite, como as pessoas julgam; também saem de dia, andam com outros espíritos
da natureza por aqui e por ali, entre os vivos e os mortos. Sabem que vocês lhes
pedirão ajuda - disse Nana-Asante.
- Aceitarão ajudar os seus descendentes? - perguntou Nadia.
- Não sei. Vocês terão de falar com eles - decidiu a rainha.
Uma enorme lua cheia, amarela e radiante, surgiu na clareira do bosque. Durante o
tempo da lua, aconteceu no cemitério qualquer coisa de mágico que, nos anos
vindouros, Alexander e Nadia recordariam como um dos momentos cruciais das
suas vidas.
O primeiro sintoma de que alguma coisa extraordinária estava a acontecer foi os
jovens conseguirem ver à noite com a maior clareza, como se o cemitério estivesse
iluminado pelos focos potentes de um estádio. Pela primeira vez desde que estavam
em África, Alexander e Nadia sentiram frio. Tiritando, abraçaram-se, para incutir um
ao outro coragem e calor. Um crescente murmúrio de abelhas invadiu o ar e, diante
dos olhos maravilhados dos jovens, o local encheu-se de seres translúcidos.
Estavam rodeados de espíritos. Era impossível descrevê-los porque não tinham
forma definida, pareciam ser vagamente humanos mas transformavam-se como se
fossem desenhos de fumo; não estavam nus nem vestidos; não tinham cor, mas
eram luminosos.
O intenso zumbido musical de insectos que lhes vibrava nos ouvidos tinha um
significado, era uma linguagem universal que eles entendiam, semelhante à
telepatia. Não precisavam de explicar nada aos fantasmas, de lhes contar nada, de
lhes pedir nada por palavras. Aqueles seres etéreos sabiam o que tinha acontecido e
também o que aconteceria no futuro, porque na dimensão em que se moviam não
havia tempo. Ali estavam as almas dos antepassados mortos e também as dos
seres por nascer, almas que permaneciam indefinidamente num estado espiritual,
outras prontas para adquirir forma física neste planeta ou noutros, aqui ou ali.
Os amigos ficaram a saber que os espíritos raramente intervêm nos acontecimentos
do mundo material, embora às vezes ajudem os animais através da intuição, e as
pessoas através da imaginação, dos sonhos, da criatividade e da revelação mística
ou espiritual. A maior parte das pessoas vive desligada do que é divino e não se
apercebe dos sinais, das coincidências, das premonições e dos minúsculos milagres
quotidianos através dos quais se manifesta o sobrenatural. Deram-se conta de que
os espíritos não provocam doenças, desgraças ou morte, como tinham ouvido, e que
o sofrimento é causado pela maldade e pela ignorância dos vivos. Também não
destroem aqueles que violam os seus domínios ou os ofendem, porque não
possuem domínios e não há forma de os ofender. Os sacrifícios, ofertas e orações
não chegam até eles; a sua única utilidade é tranquilizar as pessoas que fazem as
oferendas.
O diálogo silencioso com os fantasmas durou um tempo impossível de calcular. De
uma forma gradual, a luz aumentou e então o recinto abriu-se a uma dimensão
maior. O muro que tinham trepado para entrarem no cemitério dissolveu-se e viram-
se a meio do bosque, embora não parecesse o mesmo onde tinham estado
anteriormente. Nada era igual, havia uma energia radiante. As árvores já não
formavam uma massa compacta de vegetação, agora cada uma tinha o seu próprio
carácter, nome, memórias. As mais altas, de cujas sementes tinham brotado outras
mais jovens, contaram-lhes as suas histórias. As plantas mais velhas manifestaram
o seu desejo de morrer rapidamente para alimentar a terra; as mais novas
estendiam os seus rebentos tenros, agarrando-se à vida. Havia um murmúrio
contínuo da natureza, formas subtis de comunicação entre as espécies.
Centenas de animais rodearam os jovens, alguns cuja existência desconheciam:
estranhos okapi de pescoço comprido, como pequenas girafas; ratos-almiscarados,
gatos-de-algália, manguços, esquilos voadores, gatos dourados e antílopes com
riscas de zebra; formigueiros cobertos de escamas e uma multidão de macacos
empoleirados nas árvores, tagarelando como crianças na claridade mágica dessa
noite. Diante deles desfilaram, em harmonia, leopardos, crocodilos, rinocerontes e
outras feras. Aves extraordinárias encheram o ar com as suas vozes e iluminaram a
noite com a sua plumagem atrevida. Milhares de insectos dançaram na brisa:
borboletas coloridas, escaravelhos fosforescentes, grilos barulhentos, pirilampos
delicados. O chão fervilhava de répteis: víboras, tartarugas e grandes lagartos,
descendentes dos dinossauros, que observavam os jovens com olhos de três
pálpebras.
Estavam no centro do bosque espiritual, rodeados por milhares e milhares de almas
vegetais e animais. As mentes de Alexander e de Nadia expandiram-se novamente e
perceberam as ligações entre os seres, o universo inteiro entrelaçado por correntes
de energia, por uma rede admirável, fina como seda, forte como aço. Perceberam
que nada existe isolado; cada coisa que acontece, de um pensamento a um furacão,
afecta as restantes. Sentiram a terra palpitante e viva, um grande organismo
embalando no seu regaço a flora e a fauna, os montes, os rios, o vento e as
planícies, a lava dos vulcões, as neves eternas das montanhas mais altas. E essa
mãe-planeta faz parte de outros organismos maiores, unida aos astros infinitos do
imenso firmamento.
Os jovens viram os inevitáveis céus de vida, morte, transformação e renascimento
como um desenho maravilhoso no qual tudo acontece simultaneamente, sem
passado, presente ou futuro, agora desde sempre e para sempre.
E, por fim, na última etapa daquela fantástica odisseia, compreenderam que as
inúmeras almas, assim como tudo o que existe no universo, são partículas de um
espírito único, como gotas de água de um mesmo oceano. Uma única essência
espiritual anima tudo o que existe. Não há separação entre os seres, não há
fronteira entre a vida e a morte.
Em momento algum daquela incrível viagem Nadia e Alexander sentiram medo. No
princípio pareceu-lhes que flutuavam na nebulosa de um sonho e sentiram uma
calma profunda. Mas à medida que a peregrinação espiritual lhes expandia os
sentidos e a imaginação, a tranquilidade deu lugar à euforia, a uma felicidade
irresistível, a uma sensação de enorme energia e força.
A Lua continuou o seu passeio pelo firmamento e desapareceu no bosque. Durante
alguns minutos a luz dos fantasmas permaneceu no ambiente, enquanto o zumbido
de abelhas e o frio diminuíam pouco a pouco. Os dois amigos acordaram do transe e
viram-se de novo entre as tumbas, com Borobá agarrado à cintura de Nadia.
Durante um bocado não falaram nem se mexeram, para preservar o encantamento.
Finalmente olharam-se, perplexos, duvidando do que tinham vivido, mas nessa
altura surgiu diante deles a figura da rainha Nana-Asante, que lhes confirmou não ter
sido apenas uma alucinação.
A rainha estava iluminada por um intenso brilho interior. Os jovens viram-na tal como
era e não na forma com que lhes aparecera ao princípio, uma velha miserável, só
ossos e farrapos. Era na verdade uma presença magnífica, uma amazona, uma
antiga deusa do bosque. Nana-Asante tornara-se sábia durante esses anos de
meditação e solidão entre os mortos; varrera do coração o ódio e a cobiça, nada
desejava, nada a inquietava, nada temia. Era corajosa porque não se agarrava à
vida; era forte porque a movia a compaixão; era justa porque intuía a verdade; era
invencível porque a apoiava um exército de espíritos.
- Há muito sofrimento em Ngoubé. Quando a senhora reinava havia paz, os bantos e
os pigmeus lembram-se desse tempo. Venha connosco, Nana-Asante, ajude-nos -
suplicou Nadia.
- Vamos - replicou a rainha sem hesitar, como se durante anos se tivesse preparado
para esse momento.
CAPÍTULO 12
O reino do terror
Durante os dois dias que Nadia e Alexander passaram no bosque, uma série de
eventos dramáticos desencadeou-se na aldeia de Ngoubé. Kate, Angie, o Irmão
Fernando e Joel González não voltaram a ver Kosongo e tiveram de entender-se
com Mbembelé que era, sob todos os aspectos, mais temível que o rei. Ao saber do
desaparecimento de dois dos seus prisioneiros, o comandante preocupou-se mais
em castigar os guardas por tê-los deixado sair, que com o destino dos jovens
ausentes. Não se empenhou minimamente em encontrá-los e quando Kate Cold lhe
pediu ajuda para ir procurá-los, recusou-a.
- Já estão mortos, não vou perder tempo com eles. Ninguém sobrevive à noite no
bosque, só os pigmeus, que não são humanos - disse-lhe Mbembelé.
- Nesse caso, mande alguns pigmeus acompanhar-me na busca - exigiu-lhe Kate.
Mbembelé tinha o hábito de não responder a perguntas e muito menos a petições,
por isso ninguém se atrevia a colocá-las. A atitude de desfaçatez daquela velha
estrangeira provocou-lhe mais perplexidade que fúria, não conseguia acreditar em
tanta insolência. Permaneceu em silêncio, observando-a através das suas sinistras
lentes espelhadas, enquanto gotas de suor lhe escorriam pelo crânio liso e pelos
braços nus, marcados com as cicatrizes rituais. Estavam no "seu gabinete", para
onde tinha mandado levar a escritora.
O "gabinete" de Mbembelé era um calaboiço com uma desconjuntada secretária
metálica a um canto e duas cadeiras. Horrorizada, Kate viu instrumentos de tortura e
manchas escuras, que pareciam ser de sangue, nas paredes de barro caiadas. A
intenção do comandante ao recebê-la ali era, sem dúvida, a de intimidá-la. E
conseguiu-o, mas Kate não estava disposta a revelar fraqueza. Dispunha apenas do
seu passaporte americano e da sua carteira profissional de jornalista para a
proteger, que de nada serviriam se Mbembelé se apercebesse do medo que sentia.
Pareceu-lhe que o militar, ao contrário de Kosongo, não engoliu a história de terem
vindo para entrevistar o rei; o militar suspeitava com certeza que a verdadeira razão
da sua presença ali era descobrir o que acontecera aos missionários desaparecidos.
Estavam nas mãos daquele homem, mas Mbembelé devia avaliar os riscos antes de
se deixar dominar por um arroubo de crueldade, não podia maltratar estrangeiros,
deduziu Kate com demasiado optimismo. Uma coisa era maltratar os pobres diabos
que dominava com mão de ferro em Ngoubé, e outra, muito diferente, era fazê-lo a
estrangeiros, sobretudo se fossem brancos. Não lhe convinha uma investigação das
autoridades. O comandante teria de se livrar deles o mais depressa possível; se
soubessem de mais, não teria outra alternativa senão matá-los. Sabia que não se
iriam embora sem Nadia e Alexander e isso complicava as coisas. Kate concluiu que
seria melhor terem bastante cuidado, porque a melhor saída do comandante era os
seus hóspedes sofrerem um bem planeado acidente. Não passou pela cabeça da
escritora que pelo menos um deles fosse visto com bons olhos em Ngoubé.
- Como se chama a outra mulher do seu grupo? - perguntou Mbembelé depois de
uma longa pausa.
- Angie, Angie Ninderera. Ela trouxe-nos no seu avião, mas...
- Sua Majestade, o rei Kosongo, está disposto a aceitá-la entre as suas mulheres.
Kate Cold sentiu que os joelhos lhe fraquejavam. O que não passara de uma
brincadeira na noite anterior transformava-se agora numa desagradável - e talvez
perigosa - realidade. O que diria Angie acerca das intenções de Kosongo? Nadia e
Alexander deveriam regressar rapidamente, conforme dizia o bilhete do neto. Nas
viagens anteriores também tinha passado por momentos angustiantes por culpa
daqueles miúdos mas, em ambas as ocasiões, tinham voltado sãos e salvos. Tinha
de confiar neles. A primeira coisa a fazer seria reunir o grupo, depois pensaria na
maneira de voltarem à civilização. Ocorreu-lhe que o súbito interesse do rei por
Angie podia servir ao menos para ganharem um pouco de tempo.
- Deseja que comunique a Angie a petição do rei? - perguntou Kate, quando foi
capaz de falar.
- Não é uma petição, é uma ordem. Fale com ela. Vê-la-ei durante o torneio que
haverá amanhã. Entretanto têm autorização para circular pela aldeia, mas proíbo-
vos de se aproximarem do recinto real, dos currais e do poço.
O comandante fez um gesto e de imediato o soldado que montava guarda na porta
agarrou Kate por um braço e levou-a. A luz do dia ofuscou por um momento a velha
escritora.
Kate reuniu-se com os amigos e transmitiu a mensagem de amor a Angie, que a
aceitou bastante mal, como era de esperar.
- Jamais farei parte do rebanho de mulheres de Kosongo! - exclamou, furiosa.
- Evidentemente que não, Angie, mas poderias ser amável com ele por alguns dias
e...
- Nem por um minuto! Claro que, se em vez de Kosongo, fosse o comandante... -
suspirou Angie.
- Mbembelé é um animal! - interrompeu-a Kate.
- É uma piada, Kate. Não pretendo ser amável com Kosongo, com Mbembelé ou
com quem quer que seja. Pretendo sair deste inferno o mais depressa possível,
recuperar o meu avião e fugir para onde estes criminosos não consigam apanhar-
me.
- Se você distrair o rei, como propôs a senhora Cold, podemos ganhar tempo -
alegou o Irmão Fernando.
- Como quer que faça isso? Olhe para mim! A minha roupa está suja e molhada,
perdi o meu bâton, o meu cabelo está um desastre. Pareço um porco-espinho! -
replicou Angie, apontando para os cabelos enlameados que se espetavam em várias
direcções.
- As pessoas da aldeia têm medo - interrompeu-a o missionário. - Ninguém quer
responder às minhas perguntas, mas já liguei algumas pontas soltas. Sei que os
meus companheiros estiveram aqui e que desapareceram há vários meses. Não
podem ter ido a parte nenhuma. O mais provável é serem mártires.
- Quer dizer que os mataram? - perguntou Kate.
- Sim. Creio que deram as suas vidas por Cristo. Espero que, pelo menos, não
tenham sofrido muito...
- A sério que o lamento, Irmão Fernando - disse Angie, subitamente séria e
comovida. - Perdoe a minha frivolidade e o meu mau humor. Conte comigo, farei o
que puder para o ajudar. Dançarei a dança dos sete véus para distrair Kosongo, se
quiser.
- Não lhe peço tanto, menina Ninderera - replicou tristemente o missionário.
- Chame-me Angie - disse ela.
Passaram o resto do dia à espera que Nadia e Alexander voltassem e a vaguear
pela aldeola, tentando obter informações e fazendo planos para fugirem. Os dois
guardas que se tinham descuidado na noite anterior foram presos pelos soldados e
não foram substituídos, de modo que ninguém os vigiava. Ficaram a saber que os
Irmãos do Leopardo, que desertaram do exército regular e chegaram a Ngoubé com
o comandante, eram os únicos com acesso às armas de fogo, que se guardavam na
caserna. Os guardas bantos eram recrutados à força na adolescência. Estavam mal
armados, principalmente com machetes e facas, e obedeciam mais por medo que
por lealdade. Sob as ordens do punhado de soldados de Mbembelé os guardas
tinham de reprimir a restante população banto, ou seja, as suas próprias famílias e
amigos. A feroz disciplina não dava escapatória; os rebeldes e os desertores eram
executados sem julgamento.
As mulheres de Ngoubé, que antes eram independentes e participavam nas
decisões da comunidade, perderam os seus direitos, foram obrigadas a trabalhar
nas plantações de Kosongo e a atender às exigências dos homens. As jovens mais
bonitas destinavam-se ao harém do rei. O sistema de espionagem do comandante
utilizava mesmo as crianças, que aprendiam a vigiar os seus próprios familiares.
Bastava ser acusado de traição, mesmo que não houvesse prova, para perder a
vida. No início assassinaram muita gente, mas a população da zona não era
numerosa e, ao ver que estavam a ficar sem súbditos, o rei e o comandante tiveram
de refrear o seu entusiasmo.
Também contavam com a ajuda de Sombe, o bruxo, a quem convocavam quando os
seus serviços eram requeridos. As pessoas estavam habituadas aos curandeiros ou
bruxos, cuja missão era servir de ligação com o mundo dos espíritos, curar doenças,
realizar encantamentos e fabricar amuletos de protecção. Achavam que, regra geral,
o falecimento de uma pessoa era provocado pela magia. Quando alguém morria, o
bruxo tinha de averiguar quem tinha provocado a morte, desfazer o feitiço e castigar
o culpado ou obrigá-lo a pagar uma retribuição à família do defunto. Isso dava-lhe
poder na comunidade. Em Ngoubé, como em muitas outras partes de África, sempre
houve bruxos, uns mais respeitados que outros, mas nenhum como Sombe.
Não se sabia onde vivia o macabro feiticeiro. Materializava-se na aldeia como um
demónio, e, uma vez efectuada a sua incumbência, evaporava-se sem deixar rasto e
não voltavam a vê-lo durante semanas ou meses. Era tão receado que até Kosongo
e Mbembelé evitavam a sua presença e ambos se mantinham fechados em casa
quando Sombe aparecia. O seu aspecto impunha terror. Era enorme - tão alto como
o comandante Mbembelé - e quando entrava em transe adquiria uma força
descomunal, era capaz de levantar pesados troncos de árvore que nem seis homens
conseguiam mover. Tinha cabeça de leopardo e um colar de dedos que, segundo
diziam, tinha amputado as suas vítimas com o gume do seu olhar, tal como
decapitava galos sem lhes tocar durante as suas exibições de feitiçaria.
- Gostaria de conhecer o famoso Sombe - comentou Kate quando os amigos se
reuniram para contarem uns aos outros o que tinham descoberto.
- E eu gostaria de fotografar os seus truques de ilusionismo - acrescentou Joel
González.
- Talvez não sejam truques. A magia vodu pode ser muito perigosa - disse Angie,
estremecendo.
Na segunda noite na palhota, que lhes pareceu eterna, os expedicionários
mantiveram archotes acesos, apesar do cheiro a resina queimada e da fumarada
preta, porque ao menos podiam ver as baratas e as ratazanas. Kate passou horas
de vigília, com o ouvido aguçado, esperando que Nadia e Alexander regressassem.
Como não havia guardas à entrada, pôde sair para apanhar um pouco de fresco
quando o peso do ar dentro de casa se tornou insuportável. Angie reuniu-se com ela
lá fora e sentaram-se no chão, lado a lado.
- Morro por um cigarro - resmungou Angie.
- Esta é a tua oportunidade de largares o vício, tal como eu fiz. Provoca cancro de
pulmão - avisou-a Kate. - Queres um gole de vodka?
- E o álcool não é um vício, Kate? - riu-se Angie.
- Estás a insinuar que sou alcoólica? Não te atrevas! Bebo uns goles de vez em
quando para a dor nos ossos, mais nada.
- Temos de fugir daqui, Kate.
- Não podemos ir sem o meu neto e Nadia - replicou a escritora.
- Quanto tempo estás disposta a esperar por eles? Os botes vêm buscar-nos depois
de amanhã.
- Nessa altura, os miúdos já estarão de volta.
- E se isso não acontecer?
- Nesse caso vocês vão, mas eu fico - disse Kate.
- Não te deixarei aqui sozinha, Kate.
- Tu irás com os outros pedir ajuda. Terás de entrar em contacto com a revista
International Geographic e com a embaixada americana. Ninguém sabe onde
estamos.
- A única esperança é que Michael Mushaha tenha recebido alguma das mensagens
que lhe enviei via rádio, mas não contaria muito com isso - disse Angie.
As duas mulheres permaneceram em silêncio durante muito tempo. Apesar das
circunstâncias em que se encontravam, conseguiam apreciar a beleza da noite sob
a Lua. A essa hora havia muito poucos archotes acesos na aldeia, excepto os que
iluminavam o recinto real e a caserna dos soldados. Chegava-lhes o rumor contínuo
do bosque e o aroma penetrante da terra húmida. A poucos passos de distância
existia um mundo paralelo de criaturas que nunca viam a luz do Sol e que agora
espreitavam das sombras.
- Sabes o que é o poço, Angie? - perguntou Kate.
- Aquele que o missionário mencionava nas cartas?
- Não é o que imaginávamos. Não se trata de um poço de água - disse Kate.
- Não? Então o que é?
- É o local das execuções.
- O que dizes?! - exclamou Angie.
- É o que te estou a dizer, Angie. Fica atrás da casa real, rodeado por uma paliçada.
É proibido aproximar-se.
- É um cemitério?
- Não. É uma espécie de charco ou tanque com crocodilos...
Angie levantou-se de um salto, sem conseguir respirar, com a sensação de ter uma
locomotiva no peito. As palavras de Kate confirmavam o terror que sentia desde que
o avião chocou na praia e deu consigo presa naquela região bárbara. Hora a hora,
dia a dia, foi fortalecendo a convicção de que caminhava inexoravelmente para o
seu fim. Sempre achou que morreria jovem num acidente do seu avião, até Má
Bangesé, a adivinha do mercado, lhe pressagiar os crocodilos. De início não levou
muito a sério a profecia, mas, como teve alguns encontros quase fatais com aqueles
animais, a ideia foi-se enraizando no seu espírito e transformou-se numa obsessão.
Kate adivinhou o que a amiga estava a pensar.
- Não sejas supersticiosa, Angie. O facto de Kosongo criar crocodilos não significa
que sejas o jantar deles.
- É o meu destino, Kate, não posso fugir.
- Vamos sair daqui com vida, Angie. Prometo-te.
- Não podes prometer-me isso porque não o podes cumprir. Que mais sabes?
- Atiram para o poço aqueles que se revoltam contra a autoridade de Kosongo e
Mbembelé - explicou-lhe Kate. - Soube-o pelas mulheres pigmeias. Os maridos têm
de caçar para alimentar os crocodilos. Elas sabem de tudo o que acontece na aldeia.
São escravas dos bantos, fazem o trabalho mais pesado, entram nas palhotas,
ouvem as conversas, observam. Andam livres durante o dia, só as prendem à noite.
Ninguém lhes liga porque acham que não têm inteligência humana.
- Achas que foi assim que mataram os missionários e que, por isso, não há qualquer
rasto deles? - perguntou Angie com um calafrio.
- Sim, mas não tenho a certeza, por isso ainda não o disse ao Irmão Fernando.
Amanhã tentarei descobrir a verdade e, se for possível, darei uma vista de olhos ao
poço. Temos de fotografá-lo, é uma parte essencial da história que penso escrever
para a revista - decidiu Kate.
No dia seguinte, Kate apresentou-se novamente diante do comandante Mbembelé
para lhe comunicar que Angie Ninderera se sentia muito honrada com as atenções
do rei e estava disposta a considerar a sua proposta, mas precisava de, pelo menos,
alguns dias para decidir, porque tinha prometido a sua mão a um feiticeiro muito
poderoso no Botswana e, como toda a gente sabia, era muito perigoso trair um
bruxo, mesmo à distância.
- Nesse caso, o rei Kosongo não está interessado na mulher - decidiu o
comandante.
Kate retrocedeu imediatamente. Não esperava que Mbembelé o levasse tão a sério.
- Não acha que deveria consultar Sua Majestade?
- Não.
- Na realidade Angie Ninderera não deu a sua palavra ao bruxo, digamos que não
tem um compromisso formal, compreende? Disseram-me que por aqui vive Sombe,
o feiticeiro mais poderoso de África. Talvez ele possa libertar Angie da magia do
outro pretendente... - propôs Kate.
- Talvez.
- Quando virá o famoso Sombe a Ngoubé?
- Fazes muitas perguntas, mulher velha, aborrecidas como as mopani - replicou o
comandante, fazendo o gesto de afugentar uma abelha. - Falarei com o rei Kosongo.
Veremos a forma de libertar a mulher.
- Mais uma coisa, comandante Mbembelé - disse Kate da porta.
- O que queres agora?
- Os aposentos onde nos colocaram são muito agradáveis, mas estão um pouco
sujos, há um pouco de excremento de ratazanas e de morcegos...
- E?
- Angie Ninderera é muito delicada, o mau cheiro põe-na doente. Pode mandar uma
escrava para limpar e preparar-nos comida? Se não for muito incómodo.
- Está bem - replicou o comandante.
A criada que lhes destinaram parecia uma criança, vestia apenas uma saia de ráfia,
media uns escassos metro e quarenta de altura e era magra mas forte. Apareceu
munida de uma vassoura de ramos e começou a varrer o chão a uma velocidade
surpreendente. Quanto mais pó levantava, pior eram o cheiro e a porcaria. Kate
interrompeu-a porque na realidade solicitara a vinda dela com outros fins: precisava
de uma aliada. Inicialmente a mulher pareceu não entender as intenções e os gestos
de Kate, punha uma expressão parada, como a de uma ovelha, mas quando a
escritora mencionou Beyé-Dokou, o rosto dela iluminou-se. Kate compreendeu que a
estupidez era fingida, servia-lhe de protecção.
Através da mímica e de algumas palavras em banto e em francês, a pigmeia
explicou que se chamava Jena e era a mulher de Beyé-Dokou. Tinham dois filhos, a
quem via muito pouco, porque os mantinham fechados num curral, mas por agora as
crianças estavam a ser bem tratadas pelas avós. O prazo para Beyé-Dokou e os
outros caçadores aparecerem com o marfim era só até ao dia seguinte. Se
falhassem perderiam os seus filhos, disse Jena a chorar. Kate não soube o que fazer
diante daquelas lágrimas mas Angie e o Irmão Fernando tentaram consolá-la
argumentando que Kosongo não se atreveria a vender as crianças tendo um grupo
de jornalistas por testemunhas. Jena era de opinião que nada nem ninguém poderia
dissuadir Kosongo.
O sinistro tantã dos tambores enchia a noite africana, fazendo estremecer o bosque
e aterrorizando os estrangeiros, que o ouviam da sua palhota com o coração pesado
de maus presságios.
- O que significam estes tambores? - perguntou Joel González, trémulo.
- Não sei, mas não devem anunciar nada de bom - replicou o Irmão Fernando.
- Estou farta de passar o tempo com medo! Há dias que o peito me dói de tanta
angústia, não consigo respirar! Quero sair daqui! - exclamou Angie.
- Rezemos, meus amigos - sugeriu o missionário.
Nesse instante apareceu um soldado e, dirigindo-se apenas a Angie, anunciou que
se efectuaria um "torneio" e que o comandante Mbembelé exigia a sua presença.
- Irei com os meus companheiros - disse ela.
- Como queira - replicou o emissário.
- Por que tocam os tambores? - perguntou Angie.
- Ezenji - foi a resposta concisa do soldado.
- A dança da morte?
O homem não respondeu, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Os membros do
grupo conferenciaram. Joel González era de opinião que se tratava da morte deles:
seriam eles os actores principais do espectáculo. Kate fê-lo calar.
- Estás a pôr-me nervosa, Joel. Se pretendessem matar-nos, não o fariam em
público. Não lhes convém provocar um escândalo internacional assassinando-nos.
- Quem ficaria a saber, Kate? Estamos à mercê destes dementes. Que lhes importa
a opinião do resto do mundo? Fazem o que lhes apetece - gemeu Joel.
A população da aldeia, excepto os pigmeus, reuniu-se na praça. No chão tinham
desenhado um quadrilátero com cal, como um ringue de boxe, iluminado por
archotes. Sob a "árvore das palavras" estava o comandante acompanhado pelos
seus "oficiais", ou seja, pelos dez soldados da Irmandade do Leopardo, que se
mantinham de pé atrás da cadeira que este ocupava. Ia vestido como sempre, com
calças e botas do exército, e trazia os seus óculos espelhados, apesar de ser de
noite. Levaram Angie Ninderera para outra cadeira, colocada a poucos passos do
comandante, ignorando por completo os seus amigos. O rei Kosongo não estava,
mas as suas mulheres apinhavam-se no sítio habitual, de pé atrás da árvore,
vigiadas pelo velho sádico com a varinha de bambu.
O "exército" estava presente: os Irmãos do Leopardo com as espingardas e os
guardas bantos armados com machetes, facas e bastões. Os guardas eram muito
jovens e davam a impressão de estar tão assustados como a restante população da
aldeia. Depressa os estrangeiros compreenderam a razão.
Os três músicos com casacos militares e sem calças que na noite da chegada de
Kate e do seu grupo batiam com paus, dispunham agora de tambores. O som que
produziam era monótono, lúgubre, ameaçador, muito diferente da música dos
pigmeus. O tantã continuou por muito tempo, até a Lua unir a sua claridade à dos
archotes. Entretanto tinham trazido bidões de plástico e cabaças com vinho de
palma, que passavam de mão em mão. Desta vez ofereceram às mulheres, às
crianças e aos visitantes. O comandante tinha whisky americano, certamente obtido
de contrabando. Bebeu alguns goles e passou a garrafa a Angie, que a recusou
dignamente, porque não queria estabelecer nenhum tipo de familiaridade com
aquele homem. Mas quando ele lhe ofereceu um cigarro não conseguiu resistir, não
fumava há uma eternidade.
Diante de um gesto de Mbembelé, os músicos rufaram os tambores, anunciando o
início da função. Da outra extremidade do pátio trouxeram os dois guardas
encarregados da vigilância da palhota dos forasteiros e sob cujos narizes Nadia e
Alexander tinham fugido. Empurraram-nos para o quadrilátero, onde permaneceram
de joelhos, com as cabeças inclinadas para o chão, tremendo. Eram muito jovens,
Kate calculou que teriam a mesma idade do neto, uns dezassete ou dezoito anos.
Uma mulher, talvez a mãe de um deles, deu um grito e atirou-se para o ringue, mas
foi imediatamente retida por outras mulheres, que a levaram abraçada, tentando
consolá-la.
Mbembelé pôs-se de pé, com as pernas separadas, as mãos nas ancas, o maxilar
protuberante, o suor brilhando no seu crânio rapado e no seu dorso nu de atleta.
Com essa atitude e os óculos de sol que lhe escondiam os olhos, era a própria
imagem do vilão dos filmes de acção. Ladrou algumas frases no seu idioma, que os
visitantes não entenderam, a seguir voltou a instalar-se reclinado na cadeira. Um
soldado entregou uma faca a cada um dos homens que estavam no quadrilátero.
Kate e os amigos não tardaram a perceber as regras do jogo. Os dois guardas eram
obrigados a lutar pelas suas vidas e os seus companheiros, bem como os familiares
e amigos, eram obrigados a presenciar aquela forma cruel de disciplina. Ezenji, a
dança sagrada, que os pigmeus executavam antigamente antes de irem caçar para
invocar o grande espírito do bosque, tinha degenerado em Ngoubé, transformando-
se num torneio de morte.
A luta entre os dois guardas castigados foi rápida. Durante alguns minutos
pareceram dançar em círculos, com os punhais na mão, à espera de um descuido
do adversário para assestar o golpe. Mbembelé e os soldados incitavam-nos com
gritos e assobios, mas os restantes espectadores mantinham um silêncio agoirento.
Os outros guardas bantos estavam aterrados porque imaginavam que qualquer
deles poderia ser o próximo condenado. As pessoas de Ngoubé, impotentes e
furiosas, despediam-se dos jovens; só o medo de Mbembelé e o enjoo provocado
pelo vinho de palma impediam que explodisse a revolta. As famílias estavam unidas
por múltiplos laços de sangue; os que viam aquele torneio pavoroso eram parentes
dos rapazes dos punhais.
Quando por fim os lutadores decidiram atacar-se, as lâminas dos punhais brilharam
um instante à luz dos archotes antes de descerem sobre os corpos. Dois gritos
simultâneos desgarraram a noite e ambos os rapazes caíram, um deles
contorcendo-se no chão e o outro de gatas, ainda com a arma na mão. A Lua
pareceu parar no céu, enquanto a população de Ngoubé sustinha a respiração.
Durante longos minutos o jovem que jazia por terra estremeceu várias vezes e
depois ficou imóvel. Então o outro largou o punhal e ajoelhou-se com a testa no
chão, cobrindo a cabeça com os braços, num choro convulsivo.
Mbembelé levantou-se, aproximou-se com uma lentidão estudada e, com a ponta da
bota, deu meia volta ao corpo do primeiro. A seguir sacou a pistola que trazia no
cinto e apontou para a cabeça do outro jovem. Nesse mesmo instante, Angie
Ninderera atirou-se para o centro da praça e pendurou-se ao comandante tão célere
e com tanta força que o apanhou de surpresa. A bala bateu no chão a poucos
centímetros da cabeça do condenado. Uma exclamação de horror percorreu a
aldeia: era absolutamente proibido tocar no comandante. Nunca ninguém se
atrevera a opor-se a ele daquela forma. O acto de Angie provocou uma
incredulidade tão grande no militar que este demorou alguns segundos a recuperar
do estupor. Isso deu a Angie tempo suficiente para se colocar diante da pistola,
tapando a vítima.
- Diga ao rei Kosongo que aceito ser sua mulher e que quero a vida destes rapazes
como presente de casamento - disse a mulher com voz firme.
Mbembelé e Angie olharam-se nos olhos, avaliando-se com ferocidade, como dois
pugilistas antes do combate. O comandante tinha mais meia cabeça de altura e era
muito mais forte do que ela. Tinha além disso uma pistola, mas Angie era uma
daquelas pessoas com uma confiança inabalável em si própria. Achava-se bonita,
esperta, irresistível e tinha uma atitude atrevida, que lhe servia para levar avante a
sua vontade. Apoiou as duas mãos no peito nu do odiado militar - tocando-o pela
segunda vez - e empurrou-o com suavidade, obrigando-o a retroceder. Acto
contínuo, fulminou-o com um sorriso capaz de desarmar o mais valente.
- Vamos, comandante, agora sim, já aceito um gole do seu whisky - disse
alegremente, como se em vez de um duelo de morte, tivessem presenciado um
espectáculo de circo.
Entretanto, o Irmão Fernando seguido por Kate Cold e Joel González, aproximaram-
se também e trataram de levantar os dois rapazes. Um deles estava coberto de
sangue e cambaleava; o outro estava inconsciente. Seguraram-nos pelos braços e
levaram-nos quase arrastados até à palhota onde estavam alojados, enquanto a
população de Ngoubé, os guardas bantos e os Irmãos do Leopardo observavam a
cena com o mais absoluto assombro.
CAPÍTULO 13
David e Golias
A última noite
Os festejos começaram por volta das cinco da tarde, quando o calor diminuiu um
pouco. Entre a população de Ngoubé reinava um clima de grande tensão. A mãe de
Nzé tinha posto a correr entre os bantos que Nana-Asante, a rainha legítima, tão
chorada pelo seu povo, estava viva. Espalhou também que os estrangeiros
pensavam ajudar a rainha a recuperar o trono e que essa seria a única oportunidade
que teriam para se livrarem de Kosongo e de Mbembelé. Até quando iriam permitir
que recrutassem os seus filhos para os transformarem em assassinos? Viviam
vigiados e sem liberdade para se moverem ou pensarem, cada vez mais pobres.
Kosongo levava tudo o que produziam; enquanto ele acumulava ouro, diamantes e
marfim, a restante população não dispunha nem de vacinas. A mulher falou
discretamente com as filhas, estas com as amigas e, em menos de uma hora, a
maior parte dos adultos partilhava a mesma inquietação. Não se atreveram a contar
com a participação dos guardas, mesmo que estes fossem membros das suas
próprias famílias, porque não sabiam como iriam reagir. Mbembelé fizera-lhes uma
lavagem ao cérebro e mantinha-os dominados.
A angústia era maior entre as mulheres pigmeias porque nessa tarde terminava o
prazo que lhes permitiria salvar os filhos. Os maridos conseguiam sempre chegar a
tempo com os dentes de elefante, mas agora alguma coisa mudara. Nadia deu a
Jena a fantástica notícia de que tinham recuperado o amuleto sagrado, Ipemba-
Afua, e de que os homens não viriam com o marfim mas com a determinação de
enfrentarem Kosongo. Elas também teriam de lutar. Durante anos tinham suportado
a escravidão julgando que, se obedecessem, as famílias conseguiriam sobreviver
mas a mansidão de pouco lhes servira e as suas condições de vida eram cada vez
mais duras. Quanto mais aguentavam, pior era o abuso que sofriam. Tal como Jena
explicou às companheiras, quando não houver mais elefantes no bosque, acabarão
de qualquer forma por vender os filhos. Mais valia morrer na rebelião que viver na
escravidão.
O harém de Kosongo também estava alvoroçado porque já se sabia que a futura
mulher não tinha medo de nada e que era quase tão forte como Mbembelé, que
troçava do rei e que tinha deixado o velho atordoado com um único sopapo. As
mulheres que não tiveram a sorte de ver a cena não podiam acreditar. Sentiam terror
de Kosongo que as obrigara a casar-se com ele e um respeito reverência pelo velho
de maus fígados encarregado de as vigiar. Algumas pensavam que, em menos de
três dias, a arrogante Angie Ninderera seria domada e transformada em mais uma
das esposas submissas do rei, tal como acontecera com cada uma delas; mas as
quatro jovens que a acompanharam ao rio e lhe viram os músculos e a atitude
estavam convencidas de que não seria assim.
Os únicos que não se davam conta de que alguma coisa estava a acontecer eram
precisamente aqueles que tinham de estar mais bem informados: Mbembelé e o seu
exército. O poder subira-lhes à cabeça e sentiam-se invencíveis. Tinham criado o
seu próprio inferno, onde se sentiam confortáveis e, como nunca tinham sido
desafiados, descuidaram-se.
Por ordem de Mbembelé, as mulheres da aldeia encarregaram-se dos preparativos
para o casamento do rei. Decoraram a praça com uma centena de archotes e com
arcos feitos com folhas de palmeira, amontoaram pirâmides de fruta e cozinharam
um banquete com o que tinham à mão: galinhas, ratazanas, lagartos, antílopes,
mandioca e milho. Os bidões com vinho de palma começaram a circular cedo entre
os guardas, mas a população civil absteve-se de beber, tal como instruíra a mãe de
Nzé.
Estava tudo pronto para a dupla cerimónia do casamento real e para a entrega do
marfim. A noite ainda não tinha caído mas os archotes já ardiam e o ar estava
impregnado do cheiro a carne assada. Sob a "árvore das palavras" perfilavam-se os
soldados de Mbembelé e as personagens da sua patética corte. A população de
Ngoubé agrupava-se de ambos os lados da praceta e os guardas bantos vigiavam
nos seus postos, armados com machetes e cacetes. Para os visitantes estrangeiros
tinham arranjado banquinhos de madeira. Joel González tinha as suas máquinas
fotográficas preparadas e os restantes mantinham-se alerta, preparados para agir
quando chegasse o momento. A única que estava ausente era Nadia.
Num lugar de honra sob a árvore Angie Ninderera esperava, impressionante com a
sua túnica nova e os seus enfeites de ouro. Não parecia minimamente preocupada,
apesar de muitas coisas poderem correr mal nessa tarde. Quando Kate lhe falou dos
seus receios pela manhã, Angie replicou que ainda não tinha nascido o homem que
conseguisse assustá-la e acrescentou que Kosongo ia ver quem era ela.
- Depressa o rei me irá oferecer todo o ouro que tem para que eu me vá embora
para bem longe - riu-se.
- A menos que te atire para o poço dos crocodilos - resmungou Kate, bastante
nervosa.
Quando os caçadores chegaram à aldeia com as redes e as lanças, mas sem os
dentes de elefante, os habitantes da aldeia compreenderam que a tragédia já tinha
começado e que nada conseguiria detê-la. Um longo suspiro saiu de todos os peitos
e percorreu a praça; de uma certa maneira as pessoas sentiram-se aliviadas.
Qualquer coisa era melhor do que continuar a suportar a horrível tensão daquele dia.
Os guardas bantos, perplexos, rodearam os pigmeus esperando instruções do seu
chefe, mas o comandante não estava ali.
Decorreu meia hora durante a qual a angústia dos presentes aumentou até níveis
insuportáveis. Os bidões de bebida circulavam entre os jovens guardas, que tinham
os olhos injectados e se mostravam loquazes e desorganizados. Um dos Irmãos do
Leopardo ladrou-lhes alguma coisa e eles, de imediato, deixaram os recipientes de
vinho no chão e perfilaram-se por alguns minutos, mas a disciplina não durou muito.
Um rufar marcial de tambores anunciou por fim a chegada do rei. Abria a marcha a
boca real, acompanhado por um guarda com uma cesta cheia de pesadas jóias de
ouro de oferta para a noiva. Kosongo podia mostrar-se generoso em público porque,
assim que Angie passasse a fazer parte do harém, as jóias voltariam ao seu poder.
Seguiam-no as mulheres cobertas de ouro e o velho que as vigiava, com a cara
inchada e quatro dentes soltos dançando-lhe na boca. Notava-se uma mudança
evidente na atitude das mulheres, já não se comportavam como ovelhas mas como
uma manada de animadas zebras. Angie fez-lhes um gesto e elas responderam com
grandes sorrisos de cumplicidade.
Atrás do harém iam os carregadores levando em andas a plataforma sobre a qual ia
Kosongo sentado no cadeirão francês. Ostentava o mesmo traje, com aquele
chapéu impressionante e a cortina de contas a tapar-lhe a cara. O manto parecia
chamuscado nalguns lugares mas em bom estado. A única coisa que faltava era o
amuleto dos pigmeus preso ao ceptro. No seu lugar havia um osso semelhante que,
à distância, podia passar por Ipemba-Afua. Ao rei não convinha admitir que lhe
tinham roubado o objecto sagrado. Além do mais, tinha a certeza de que não
precisava do amuleto para controlar os pigmeus que considerava criaturas
miseráveis.
O cortejo real parou no centro da praça, para que ninguém deixasse de admirar o
soberano. Antes que os carregadores levassem o estrado para o seu lugar sob a
"árvore das palavras", a boca real perguntou aos pigmeus pelo marfim. Os
caçadores avançaram e a população inteira pôde verificar que um deles trazia o
amuleto sagrado, Ipemba-Afua.
- Acabaram-se os elefantes. Não podemos trazer mais dentes. Agora queremos as
nossas mulheres e os nossos filhos. Vamos voltar para o bosque - participou Beyé-
Dokou sem que a voz lhe tremesse.
Um silêncio sepulcral recebeu este pequeno discurso. A possibilidade de uma
rebelião dos escravos não tinha ocorrido ainda a ninguém. A primeira reacção dos
Irmãos do Leopardo foi matar a tiros o grupo de homenzinhos, mas Mbembelé não
estava com eles para dar a ordem e o rei ainda não reagira. A população estava
perplexa porque a mãe de Nzé não tinha dito nada a respeito dos pigmeus. Durante
anos, os bantos beneficiaram do trabalho dos escravos e não lhes convinha perdê-
los, mas compreenderam que se quebrara o equilíbrio anterior. Pela primeira vez
sentiram respeito por aqueles seres, os mais pobres, indefesos e vulneráveis, que
revelavam uma coragem incrível.
Kosongo chamou o seu mensageiro com um gesto e murmurou-lhe alguma coisa ao
ouvido. A boca real deu ordem para trazerem as crianças. Seis guardas dirigiram-se
para um dos currais e reapareceram pouco depois conduzindo um grupo miserável:
duas mulheres de idade, vestidas com saias de ráfia, cada uma delas com bebés ao
colo, rodeadas por crianças de várias idades, minúsculas e aterrorizadas. Quando
viram os pais, algumas quiseram correr na sua direcção mas foram impedidas pelos
guardas.
- O rei tem de negociar, é o seu dever. Vocês sabem o que acontece se não trazem
marfim - anunciou a boca real.
Kate Cold não conseguiu suportar mais a angústia e, apesar de ter prometido a
Alexander que não ia intervir, correu até ao centro da praceta e postou-se diante da
plataforma real que estava ainda sobre os ombros dos carregadores. Sem se
lembrar do protocolo que a obrigava a ajoelhar-se, acusou Kosongo aos gritos,
recordando-lhe que eram jornalistas internacionais e que informariam o mundo dos
crimes contra a humanidade que se cometiam nesta aldeia. Não conseguiu acabar
porque dois soldados armados de espingardas a levantaram pelos braços. A velha
escritora continuou a discutir enquanto a levavam, esperneando no ar, na direcção
do poço dos crocodilos.
O plano traçado com tanto cuidado por Nadia e Alexander desmoronou-se numa
questão de minutos. Tinham atribuído uma missão a cada membro do grupo, mas a
intervenção de Kate a despropósito espalhou o caos entre os amigos. Felizmente,
também os guardas e a restante população estavam confusos.
O pigmeu designado para disparar sobre o rei a ampola de anestésico e que se
tinha mantido escondido entre as palhotas, não pôde esperar o melhor momento
para o fazer. Pressionado pelas circunstâncias, levou a zarabatana à boca e soprou,
mas a injecção destinada a Kosongo bateu no peito de um dos carregadores que
seguravam na plataforma. O homem sentiu uma picada de abelha, mas não tinha
uma mão livre para afugentar o suposto insecto. Manteve-se de pé durante uns
instantes e, de súbito, dobraram-se-lhe os joelhos e caiu inconsciente. Os seus
companheiros não estavam preparados e o peso tornou-se insustentável. A
plataforma inclinou-se e o cadeirão francês escorregou para o chão. Kosongo deu
um grito tentando equilibrar-se e por uma fracção de segundo ficou suspenso no ar,
aterrando depois, enredado no manto, com o chapéu inclinado e bramando de raiva.
Angie Ninderera decidiu que tinha chegado o momento de improvisar, uma vez que
o plano original estava arruinado. Em quatro passadas chegou junto do rei caído,
com duas palmadas afastou os guardas que tentaram detê-la e, com um dos seus
longos gritos de índio comanche, agarrou no chapéu e arrancou-o da cabeça real.
O acto de Angie foi tão inesperado e tão temerário que as pessoas ficaram
paralisadas, como numa fotografia. A terra não tremeu quando os pés do rei
pousaram sobre ela. Com os seus gritos de raiva ninguém ficou surdo, não caíram
pássaros mortos do céu nem o bosque se agitou em estertores de agonia. Ao ver o
rosto de Kosongo pela primeira vez ninguém ficou cego, apenas surpreendido.
Quando caiu o chapéu e a cortina, todos puderam ver a cabeça inconfundível do
comandante Maurice Mbembelé.
- Bem dizia Kate que vocês se pareciam demasiado! - exclamou Angie.
Nessa altura os soldados tinham reagido e correram a rodear o comandante, mas
nenhum se atreveu a tocá-lo. Até os homens que levavam Kate para a morte
largaram a escritora e voltaram a correr para junto do chefe, mas também eles não
ousaram ajudá-lo. Por fim, Mbembelé conseguiu livrar-se do manto e levantou-se de
um salto. Era a própria imagem da fúria, coberto de suor, com os olhos arregalados,
deitando espuma pela boca, rugindo como uma fera. Levantou o seu poderoso
punho com a intenção de acertar em Angie, mas esta já estava fora do seu alcance.
Beyé-Dokou escolheu esse momento para avançar. Exigia-se uma coragem imensa
para desafiar o comandante em tempos normais; fazê-lo numa altura destas, quando
estava indignado, era de uma temeridade suicida. O pequeno caçador parecia
insignificante diante do descomunal Mbembelé, que se erguia como uma torre diante
dele. Olhando para cima, o pigmeu convidou o gigante a bater-se num combate
singular.
Um murmúrio de assombro percorreu a aldeia. Ninguém conseguia acreditar no que
estava a acontecer. As pessoas avançaram, agrupando-se atrás dos pigmeus, sem
que os guardas, tão pasmados como a restante população, conseguissem intervir.
Mbembelé vacilou, perplexo, enquanto as palavras do escravo lhe penetravam no
cérebro. Quando finalmente compreendeu o enorme atrevimento que tal desafio
implicava, deu uma gargalhada estrepitosa, que se prolongou em vagas durante
alguns minutos. Os Irmãos do Leopardo imitaram-no, porque calcularam que era
isso que se esperava deles, mas o riso saía-lhes forçado; o assunto tinha tomado
um cariz demasiado grotesco e não sabiam como agir.
Podiam apalpar a hostilidade da população e pressentiam que os guardas bantos
estavam confusos, prontos para se sublevarem.
- Evacuem a praça! - ordenou Mbembelé.
A noção de Ezenji ou duelo corpo a corpo não era novidade para ninguém em
Ngoubé, porque dessa forma se castigavam os presos e de passagem criava-se
uma diversão que o comandante adorava. A única diferença neste caso era
Mbembelé não ser juiz e espectador, mas um dos participantes. Evidentemente, lutar
contra um pigmeu não lhe causava qualquer preocupação, pretendia esmagá-lo
como um verme, mas antes fá-lo-ia sofrer um pouco.
O Irmão Fernando, que se mantivera a uma certa distância, veio agora para a frente
revestido de uma nova autoridade. A notícia da morte dos seus companheiros tinha
reforçado a sua fé e a sua coragem. Não receava Mbembelé porque tinha a
convicção de que os seres malévolos mais cedo ou mais tarde pagam pelas suas
faltas e aquele comandante tinha ultrapassado largamente a sua quota de crimes;
tinha chegado a hora de prestar contas.
- Eu farei de árbitro. Não podem usar armas de fogo. Que armas escolhem: lança,
faca ou machete? - perguntou.
- Nada disso. Lutaremos sem armas, corpo a corpo - replicou o comandante com
uma careta feroz.
- Está bem - aceitou Beyé-Dokou sem hesitar.
Alexander apercebeu-se de que o seu amigo se julgava protegido pelo fóssil; não
sabia que este só servia de escudo contra armas cortantes e que não o salvaria da
força sobre-humana do comandante, que podia esquartejá-lo só com as mãos.
Levou o Irmão Fernando à parte para suplicar-lhe que não aceitasse aquelas
condições, mas o missionário respondeu que Deus velava pela causa dos justos.
- Beyé-Dokou está perdido numa luta corpo a corpo! O comandante é muito mais
forte! - exclamou Alexander.
- Também o touro é mais forte que o toureiro. O truque consiste em cansar a besta -
revelou o missionário.
Alexander abriu a boca para responder e nesse instante compreendeu o que o Irmão
Fernando tentava explicar-lhe. Saiu disparado disposto a preparar o amigo para a
prova tremenda que teria de enfrentar.
Na outra extremidade da aldeia, Nadia tinha tirado a tranca e aberto o portão do
curral onde mantinham as pigmeias fechadas. Dois caçadores, que não tinham
entrado em Ngoubé com os outros, aproximaram-se trazendo lanças que repartiram
entre elas. As mulheres deslizaram como fantasmas por entre as palhotas e
colocaram-se em redor da praça, escondidas pelas sombras da noite, preparadas
para agir quando chegasse o momento. Nadia reuniu-se com Alexander, que estava
instruindo Beyé-Dokou, enquanto os soldados desenhavam o ringue no lugar
habitual.
- Não é preciso preocuparem-se com as espingardas, Jaguar. A única arma que não
conseguimos inutilizar é a pistola que Mbembelé tem no cinto - disse Nadia.
- E os guardas bantos?
- Não sabemos como irão reagir, mas Kate teve uma ideia - replicou ela.
- Achas que devo dizer a Beyé-Dokou que o amuleto não o pode proteger de
Mbembelé?
- Para quê? Isso fá-lo-ia perder a confiança - respondeu ela.
Alexander reparou que a voz da amiga soava quebrada, não parecia totalmente
humana, era quase um grasnido. Nadia tinha os olhos vidrados, estava muito pálida
e respirava agitadamente.
- O que se passa contigo, Águia? - perguntou.
- Nada. Toma cuidado contigo, Jaguar. Tenho de ir.
- Onde vais?
- Procurar ajuda contra o monstro de três cabeças, Jaguar.
- Lembra-te da previsão de Má Bangesé, não podemos separar-nos!
Nadia deu-lhe um beijo na testa e saiu a correr. Na excitação que reinava na aldeia,
ninguém, excepto Alexander, viu a águia branca que se erguia por cima das palhotas
e desaparecia em direcção ao bosque.
Numa esquina do quadrilátero, o comandante Mbembelé esperava. Estava descalço
e vestia apenas os calções que trazia sob o manto real e um cinto largo de couro
com a pistola. Esfregara o corpo com óleo de palma, os seus músculos prodigiosos
pareciam esculpidos em rocha viva e a sua pele brilhava como obsidiana sob a luz
vacilante dos cem archotes. As cicatrizes rituais dos braços e da cara acentuavam o
seu aspecto extraordinário. Sobre o pescoço taurino, a cabeça rapada parecia
pequena. As feições clássicas do rosto poderiam ter sido bonitas se não estivessem
desfiguradas por uma expressão bestial. Apesar do ódio que aquele homem
provocava, ninguém deixava de admirar o seu físico magnífico.
Em contraste, o homenzinho que estava na esquina oposta era um anão que
dificilmente chegava à cintura do gigantesco Mbembelé. A sua figura
desproporcionada e o rosto bolachudo, com o nariz chato e a testa curta, nada tinha
de atraente, excepto a coragem e a inteligência que lhe brilhavam nos olhos. Tinha
tirado a sua camisola amarela miserável e estava também praticamente nu e
engraxado de óleo. Trazia ao pescoço um pedaço de rocha pendurado num cordel: o
excremento mágico de dragão de Alexander.
- Um amigo meu, chamado Tensing, que conhece melhor que ninguém a arte da luta
corpo a corpo, disse-me que a força do inimigo é também a sua fraqueza - explicou
Alexander a Beyé-Dokou.
- O que quer isso dizer? - perguntou o pigmeu.
- A força de Mbembelé reside no seu tamanho e no seu peso. É como um búfalo, só
músculos. Como pesa muito, não tem flexibilidade e cansa-se rapidamente. Além
disso é arrogante, não está habituado a que o desafiem. Há muitos anos que não
tem necessidade de caçar ou de lutar. Tu estás em melhor forma.
- E eu tenho isto - acrescentou Beyé-Dokou, acariciando o amuleto.
- Mais importante que isso, meu amigo, é que tu lutas pela tua vida e da tua família.
Mbembelé fá-lo por gosto. É um rufião e, como todos os rufiões, é cobarde - replicou
Alexander.
Jena, a mulher de Beyé-Dokou, aproximou-se do marido, deu-lhe um abraço rápido
e disse-lhe umas palavras ao ouvido. Nesse instante, os tambores anunciaram o
início do combate.
Em redor do quadrilátero, iluminado por archotes e pela Lua, estavam os soldados
da Irmandade do Leopardo com as suas espingardas, atrás os guardas bantos e na
terceira fila a população de Ngoubé, todos num perigoso estado de agitação. Por
ordem de Kate, que não podia desperdiçar a oportunidade de escrever uma
reportagem fantástica para a revista, Joel González preparava-se para fotografar o
evento.
O Irmão Fernando limpou os óculos e tirou a camisa. O seu corpo ascético, muito
magro e fibroso, era de um branco doentio. Vestido apenas com calças e botas,
preparava-se para fazer de árbitro, apesar da sua pouca esperança de conseguir
fazer respeitar as regras elementares de qualquer desporto. Compreendia que se
tratava de uma luta mortal; a sua esperança consistia em evitar que o fosse. Beijou o
escapulário que trazia ao pescoço e entregou-se a Deus.
Mbembelé lançou um rugido visceral e avançou fazendo tremer o chão com os seus
passos. Beyé-Dokou aguardou-o imóvel, em silêncio, na mesma atitude alerta, mas
calma, que utilizava durante a caça. Um punho de gigante saiu disparado como uma
bala de canhão contra o rosto do pigmeu, que o esquivou por milímetros, o
comandante inclinou-se para a frente, mas recuperou imediatamente o equilíbrio.
Quando assentou o segundo golpe, o seu adversário já não estava ali, estava atrás.
Voltou-se, furioso, e atirou-se para cima dele como uma fera brava, mas nenhum
dos seus murros conseguia acertar em Beyé-Dokou, que dançava nas margens do
ringue. Cada vez que o atacava, o outro escapulia-se.
Dada a escassa estatura do oponente, Mbembelé tinha de lutar para baixo, numa
posição incómoda que lhe tirava força aos braços. Se tivesse conseguido acertar
apenas um dos seus golpes, teria rebentado a cabeça de Beyé-Dokou, mas não
conseguia acertar nenhum porque o outro era rápido como uma gazela e
escorregadio como um peixe. Depressa o comandante começou a ofegar e o suor
caía-lhe sobre os olhos, cegando-o. Calculou que devia moderar-se. Não derrotaria
o outro num único round, como tinha pensado. O Irmão Fernando mandou fazer uma
pausa e o robusto Mbembelé obedeceu imediatamente, retirando-se para o seu
canto, onde o esperava um balde de água para beber e lavar o suor.
Na sua esquina, Alexander recebeu Beyé-Dokou, que chegou a sorrir e dando
passinhos de dança, como se se tratasse de uma festa. Isso aumentou a raiva do
comandante, que o observava do outro lado lutando para recuperar as forças. Beyé-
Dokou não parecia ter sede, mas aceitou que lhe deitassem água pela cabeça.
- O teu amuleto é muito mágico; é o mais mágico que existe depois de Ipemba-Afua
- disse, muito satisfeito.
- Mbembelé é como um tronco de árvore, custa-lhe muito dobrar a cintura, por isso
não consegue bater para baixo - explicou-lhe Alexander. - Vais muito bem, Beyé-
Dokou, mas tens de o cansar mais.
- Já sei. É como o elefante. Como vais caçar o elefante se não o cansares primeiro?
Alexander achou que a pausa era muito curta, mas Beyé-Dokou estava a saltar de
impaciência e assim que o Irmão Fernando deu o sinal, dirigiu-se para o centro do
ringue, a pular como um miudinho.
Para Mbembelé aquela atitude era uma provocação que não podia deixar passar.
Esqueceu a sua resolução de moderar-se e arremeteu como um camião a toda a
velocidade. É evidente que não encontrou o pigmeu pela frente e o impulso atirou-o
para fora do ringue.
O Irmão Fernando pediu-lhe com firmeza que voltasse aos limites marcados pela
cal. Mbembelé voltou-se para ele para o fazer pagar a ousadia de dar-lhe uma
ordem, mas uma assobiadela cerrada da população de Ngoubé deteve-o. Não
queria acreditar no que ouvia! Nunca, nem nos seus piores pesadelos, lhe passara
pela cabeça a possibilidade de que alguém se atrevesse a contradizê-lo. Não
chegou a pensar em formas de castigar os insolentes, porque Beyé-Dokou o
chamou de volta ao ringue dando-lhe por trás um pontapé numa perna. Era o
primeiro contacto entre os dois. Aquele macaco tocara-o! A ele! Ao comandante
Maurice Mbembelé! Jurou que ia despedaçá-lo e depois o comeria, para dar uma
lição àqueles pigmeus ariscos.
Qualquer pretensão de seguir as normas de um jogo limpo desapareceu nesse
instante e Mbembelé perdeu por completo o controlo. Com um empurrão, atirou o
Irmão Fernando a vários metros de distância e lançou-se para cima de Beyé-Dokou,
que de repente se atirou para o chão. Encolhendo-se quase em posição fetal,
apoiado apenas nas nádegas, o pigmeu começou a atirar pontapés curtos, que
aterravam nas pernas do gigante. Por sua vez, o comandante tentava acertar-lhe de
cima mas Beyé-Dokou girava como um pião, rodava para os lados e não havia
maneira de atingi-lo. O pigmeu calculou o momento em que Mbembelé se preparava
para lhe assestar um pontapé feroz e bateu na perna que o sustinha. A imensa torre
humana do comandante caiu para trás e ficou como uma barata de costas, sem se
poder levantar.
Nessa altura o Irmão Fernando já recuperara da pancada, tinha voltado a limpar as
suas lentes grossas e estava outra vez em cima dos lutadores. A meio de uma
gritaria tremenda dos espectadores, conseguiu fazer-se ouvir para proclamar o
vencedor. Alexander saltou para a frente e levantou o braço de Beyé-Dokou, dando
gritos de júbilo que todos os outros seguiam menos os Irmãos do Leopardo, que não
conseguiam refazer-se da surpresa.
Nunca a população de Ngoubé tinha presenciado um espectáculo tão soberbo.
Francamente, poucos se lembravam da origem da luta, estavam demasiado
excitados perante o facto inconcebível de o pigmeu ter vencido o gigante. A história
já fazia parte da lenda do bosque, não se cansariam de a contar de geração em
geração. Como sempre acontece com a árvore caída, passado um segundo já
estavam todos dispostos a fazer lenha com Mbembelé, a quem ainda minutos antes
consideravam um semideus. A ocasião prestava-se a festejar. Os tambores
começaram a soar com um vivo entusiasmo e os bantos começaram a dançar e a
cantar, sem se aperceberem de que nesses minutos tinham perdido os seus
escravos e de que o futuro se apresentava incerto.
Os pigmeus passaram por entre as pernas dos guardas e dos soldados, ocuparam o
quadrilátero e levaram Beyé-Dokou em ombros. Durante essa explosão de euforia
colectiva, o comandante Mbembelé conseguiu levantar-se, agarrou no machete de
um dos guardas e lançou-se contra o grupo que levava Beyé-Dokou triunfalmente.
Instalado sobre os ombros dos seus companheiros, este estava finalmente à altura
do comandante.
Ninguém viu com clareza o que aconteceu a seguir. Alguns disseram que o machete
escorregou nos dedos suados e gordurosos do comandante, outros juravam que a
lâmina se deteve milagrosamente no ar a um centímetro do pescoço de Beyé-Dokou
e depois voou pelo ar como se tivesse sido arrastada por um furacão. Qualquer que
fosse a causa, o facto é que a multidão ficou paralisada e Mbembelé, dominado por
um terror supersticioso, agarrou na faca de outro guarda e lançou-a. Não conseguiu
apontar bem porque Joel González se tinha aproximado e tirou-lhe uma fotografia,
cegando-o com o flash.
Então o comandante Mbembelé ordenou aos soldados que disparassem contra os
pigmeus. A população dispersou-se a gritar. As mulheres arrastavam os filhos, os
velhos tropeçavam, os cães corriam, as galinhas esvoaçavam e no fim só ficaram os
pigmeus, os soldados e os guardas, indecisos entre um bando e outro. Kate e Angie
foram a correr proteger as crianças pigmeias, que gritavam, amontoadas como
cachorrinhos em volta das duas avós. Joel procurou refúgio debaixo da mesa, onde
estava a comida do banquete nupcial e, daí, tirava fotografias sem tempo para focar.
O Irmão Fernando e Alexander colocaram-se de braços abertos diante dos pigmeus,
protegendo-os com o corpo.
Talvez alguns dos soldados tenham tentado disparar e vissem que as suas armas
não funcionavam. Talvez outros, enojados com a cobardia do chefe que até esse
momento respeitavam, se tenham recusado a obedecer-lhe. De qualquer forma,
nenhum tiro se ouviu no pátio e passados instantes os dez soldados da Irmandade
do Leopardo tinham a ponta de uma lança na garganta: as discretas mulheres
pigmeias tinham entrado em acção.
Mbembelé, cego de raiva, não se apercebeu de nada disto. Sabia apenas que as
suas ordens tinham sido ignoradas. Empunhou a pistola, apontou-a para Beyé-
Dokou e disparou. Não soube que a bala não tinha acertado no alvo desviada pelo
poder mágico do amuleto porque, antes de conseguir apertar o gatilho pela segunda
vez, um animal desconhecido caiu-lhe em cima, um enorme gato preto, com a
velocidade e a ferocidade de um leopardo e com os olhos amarelos de uma pantera.
CAPÍTULO 15
Alexander Cold apareceu no apartamento da avó em Nova Iorque com uma garrafa
de vodka para ela e um ramo de tulipas para Nadia. A amiga dissera-lhe que não
poria flores no pulso ou no decote para a sua graduação, como todas as outras
raparigas. Aqueles corsages pareciam-lhe medonhos. Soprava uma leve brisa que
aliviava o calor de Maio em Nova Iorque mas mesmo assim as tulipas estavam
desmaiadas. Pensou que nunca se habituaria ao clima dessa cidade e estava
contente por não ter de o fazer. Frequentava a Universidade de Berkeley e, se os
seus planos se cumprissem, obteria a sua licenciatura em medicina na Califórnia.
Nadia acusava-o de ser muito comodista.
- Não sei como pensas praticar medicina nos sítios mais pobres da terra se não
consegues viver sem o esparguete italiano da tua mãe e a tua prancha de surf -
troçava.
Alexander passou meses a convencê-la das vantagens de estudar na mesma
universidade que ele e, finalmente, conseguira-o. Em Setembro ela estaria na
Califórnia e não seria necessário atravessar o continente para a ver.
Nadia abriu a porta e ele ficou com as tulipas murchas na mão e as orelhas
vermelhas, sem saber o que dizer. Não se viam há seis meses e a jovem que
apareceu no umbral era uma desconhecida. Passou-lhe pela cabeça que estava
diante da porta errada, mas as suas dúvidas dissiparam-se quando Borobá lhe
saltou para cima para o cumprimentar com abraços efusivos e dentadinhas. A voz da
avó chamando por si chegou-lhe vinda do fundo do apartamento.
- Sou eu, Kate! - respondeu ele, ainda desconcertado.
Então Nadia sorriu-lhe e imediatamente voltou a ser a rapariga de sempre, que ele
conhecia e amava, selvagem e dourada. Abraçaram-se, as tulipas caíram ao chão e
ele rodeou-lhe a cintura com o braço e levantou-a com um grito de alegria, enquanto
com a outra mão lutava para soltar-se do macaco. Nisto apareceu Kate Cold
arrastando os pés, agarrou na garrafa de vodka que ele segurava precariamente e
fechou a porta com um pontapé.
- Viste como Nadia está horrível? Parece a mulher de um mafioso - disse Kate.
- Diz-nos o que realmente pensas, avó - riu-se Alexander.
- Não me chames avó! Comprou o vestido nas minhas costas, sem me consultar! -
exclamou ela.
- Não sabia que te interessavas pela moda, Kate - comentou Alexander, dando uma
vista de olhos às calças deformadas e à camisola de algodão com papagaios que a
avó vestia.
Nadia estava de saltos altos, enfiada num tubo de cetim preto, curto e sem alças. É
preciso dizer a seu favor que não parecia minimamente afectada com a opinião de
Kate. Deu uma volta completa para que Alexander a visse. Parecia muito diferente
da miúda de calções e enfeitada de penas de que ele se lembrava. Teria de se
habituar à mudança, pensou, embora esperasse que esta não fosse permanente;
gostava muito da sua antiga Águia. Não sabia como comportar-se diante desta nova
versão da amiga.
- Terás de passar pela vergonha de ir à graduação com este espantalho, Alexander -
disse-lhe a avó apontando para Nadia. - Anda, quero mostrar-te uma coisa...
Levou os jovens até ao minúsculo e poeirento escritório, cheio de livros e
documentos, onde escrevia. As paredes estavam cobertas de fotografias que a
escritora acumulara nos últimos anos. Alexander reconheceu os índios do Amazonas
posando para a Fundação Diamante; Dil Bahadur, Pema e o bebé de ambos no
Reino do Dragão de Ouro; o Irmão Fernando na sua missão em Ngoubé; Angie
Ninderera e Michael Mushaha montados num elefante, e muitos mais. Kate tinha
emoldurado uma capa da revista International Geographic de 2002, que tinha ganho
um prémio importante. A fotografia, tirada por Joel González num mercado em
África, mostrava-o a ele, a Nadia e a Borobá enfrentando uma avestruz furibunda.
- Olha, filho, os três livros já estão publicados - disse Kate. - Quando li as tuas notas
compreendi que nunca serás escritor, não tens olho para os pormenores. Talvez isso
não seja um impedimento em medicina, podes ver que o mundo está cheio de
médicos desajeitados. Mas em literatura é fatal - garantiu-lhe Kate;
- Não tenho olho e não tenho paciência, Kate, por isso te dei os meus
apontamentos. Tu poderias escrever os livros melhor do que eu.
- Posso fazer quase tudo melhor do que tu, filho - riu-se ela, despenteando-lhe o
cabelo com uma palmada.
Nadia e Alexander observaram os livros com uma estranha tristeza porque
continham tudo o que lhes acontecera nos três anos prodigiosos de viagens e
aventuras. Talvez no futuro não surgisse nada comparável ao que já tinham vivido,
nada tão intenso nem tão mágico. Pelo menos era um consolo saber que naquelas
páginas estavam preservadas as personagens, as histórias e as lições que tinham
aprendido. Graças à escrita da avó nunca as esqueceriam. As memórias da águia e
do jaguar estavam ali, em A Cidade dos Deuses Selvagens, O Reino do Dragão de
Ouro e O Bosque dos Pigmeus...
Fim.