10-Out 2018 - Estafeta 261
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Imagem - Memória
GENTE DA CIDADE
Pe. Francisco Filippo
Desde os primórdios de nosso povoa- novembro de 1888; deixo de fazer inven-
mento, a religiosidade de nossos moradores tário dos ornamentos da igreja e digo que
foi uma constante. Essa religiosidade levou fiz aquisição de uma casula de cor branca
os moradores a se organizarem por meio que custou 100$000, de uma capa roxa de
de uma petição, conseguindo com que o custo 75$000, de uma âmbula para levar o
bispo de São Paulo, Dom Sebastião Pinto viático; achei 3 toalhas de altar muito velhas,
do Rego, em dezembro de 1864, concedesse hoje tem bastante delas e também toalhas
faculdade para que se erigisse no bairro do de mãos.
Piquete uma Capela sob a invocação de São Deixo esta igreja para ir paroquiar a igre-
Miguel. Com a participação comunitária, a ja de Santo Antônio da cidade de Machado,
Capela foi construída, em taipa de pilão, sul de Minas.
muito simples, sem aparatos, sem as torres, Declaro, portanto, que fui o primeiro
pobre como o bairro e sua população. Com o pároco desta Freguesia e cumpri os meus
término das obras, a Capela passou a ser uma deveres para com todos e em tudo o que me
referência na paisagem e para os moradores. pertencia. Fico sempre grato a todo o povo
Estes buscaram e conseguiram com que a por ter-me tratado sempre e sempre bem,
Assembleia Legislativa da Província de São especialmente a família do fundador desta
Paulo, por lei de número 10, de 22 de março igreja; enfim, deixo de nomear as famílias
de 1875, elevasse à categoria de freguesia para não ofender a modéstia das mesmas.
o bairro do Piquete, tornando a Capela sua Levo saudade – Freguesia de São Miguel
sede. Para a freguesia foi adotado o nome do Em 1868, o Pe. Francisco já se encon- do Piquete, 20 de abril de 1890.”
padroeiro – São Miguel, cuja devoção muito trava no Brasil. Seu irmão caçula, João, Pe. Francisco Filippo faleceu em 1909,
antiga aumentava dia a dia. a seu exemplo, também seguiu a carreira em Lagoinha e está sepultado no Cemitério
Em outubro de 1888 tornamo-nos Pa- religiosa. Ordenado em 1872, logo veio para dos Passos, em Guaratinguetá. Seu irmão
róquia, por portaria de D. Lino Deodato de o Brasil, influenciado pelo nosso Francisco, caçula, João, o Monsenhor João Filippo de
Carvalho, bispo de São Paulo. A população que, numa carta a ele endereçada, disse-lhe Guaratinguetá, mandou gravar na lápide de
ansiava, cada vez mais, pela chegada do seu “que este país era um vasto campo de ação sua sepultura: “Aqui jazem os restos mortais
primeiro padre. pastoral e apostólica, com muita pobreza de do modelo dos sacerdotes, Padre Francisco,
Eis que a 1o de novembro, com grande padres e muita gente na pobreza.” falecido a 28 de novembro de 1909. Des-
festa, chega a Piquete nosso primeiro vigá- Pe. Francisco fixou-se aqui no Vale do canse em paz.”
rio, Pe. Francisco Filippo – natural de San Paraíba, trabalhando em Paraibuna antes Os irmãos Francisco e João Filippo
Vincenzo de La Costa, província de Cosen- de vir para Piquete, onde permaneceu por atravessaram o oceano e aqui, no Vale do Pa-
za, Itália. De família religiosa, era um dos curto período, partindo em 1890 e deixando raíba, deram testemunhos de fé; trabalharam
quatro filhos do casal Antônio Maria Filippo registrado no Livro do Tombo a pobreza com ardor e coragem evangelizando. Vieram
e Teresa Filippo. da Paróquia de São Miguel: “Declaro que pobres e viveram pobres, e generosamente
tomei conta desta Paróquia no dia 1o de contribuíram para o crescimento espiritual
de nossa população.
Fotos Arquivo Pro-Memória
Página 4 O ESTAFETA Piquete, outubro de 2018
Quis ut Deus
Miguel é símbolo de força e determina- ção moderna, os católicos assimilaram os símbolos desta união e da força necessárias.
ção. Comandante, como arcanjo, das hostes veículos usados como propagação de fé: o Nossa comunidade tem, com a Igreja, na
celestes, combateu Lúcifer, o príncipe da luz, rádio, a TV, a internet. A vibração, a cor, os esperança e no desejo de vida, em Miguel,
que, por possuí-la, quis se igualar a Deus, cânticos, a participação geral tornaram-se um arauto de vitória.
não o aceitando como insuperável, que não formas de interligação. De maneira ecumênica, ou seja, de
se iguala, onipotente, o todo poderoso e Os dias de hoje são simbolizados por pa- aproximação entre os cristãos, uma nova
onisciente, o que tudo sabe. lavras importantes como União, Solidarieda- era nos promete, a todos, caminhos nos
Na crônica celeste, Miguel, consciente de e Paz. As pessoas buscam mais o sagrado quais os primeiros passos, como os que
de sua missão de intermediário entre Deus à medida que a vida lhes parece difícil. Os indicados por Cristo a Simão Pedro, re-
e os homens, pois assim são todos os an- arcanjos são invocados em conjunto como presentaram a fé no futuro e na consoli-
jos em suas hierarquias, num tempo não Foto Laurentino Gonçalves Dias Jr. dação de uma ideia, não como pedras de
determinado, subjugou o antes luminoso à tropeço, mas de construção em terra boa
incerteza das trevas. É, portanto, o motivo e de sementes férteis. E é especialmente
pelo qual a representação do vitorioso é Mateus que nos conduz neste Terceiro
a de um ser masculino jovem, de espada Milênio e na busca da justiça quando
em punho e de uma pequena balança, para nos propõe amar não só oa amigos, mas
avaliar os atos humanos. também os inimigos, a sermos luzes em
No período colonial, a imagem dele corpos luminosos, a termos a certeza da
era uma das mais invocadas. Aparece, fre- providência na multiplicação de peixes
quentemente, nos oratórios, capelas e nas e pães e da exuberância da vinha. Afinal,
canastras dos viajantes. fomos escolhidos entre os chamados
Tornou-se orago, santo protetor e pa- e participantes do tesouro acumulado
droeiro de Piquete. Guardião de nossas no coração como comprometimento
colinas de pé de serra, sinalizadoras dos comunitário.
caminhos difíceis, onde o ouro e as riquezas E é sob a inspiração desse comprometi-
circularam e desafiaram as cobiças e os mento que os cristãos de Piquete, sob as asas
jogos de poder. protetoras de Miguel Arcanjo, querem agir
Em Piquete, comemoramos o 29 de como cidadãos participantes das celebrações
setembro com a tradição da Igreja, hoje dos 130 anos de nossa Paróquia. Os fogos
vigorada com as participações comunitárias que, com certeza espocarão, e suas luzes na
mais evidentes à busca da modernidade. noite densa, não serão efêmeros.
Impactados pelos meios de comunica- Acreditamos nessa conquista.
Reprodução da Internet
de nós, piquetenses, que vem dos primór- sem adornos, sem as torres laterais. Nesse
dios de nosso povoamento, é a devoção a mesmo ano, construiu-se o cemitério e as
São Miguel Arcanjo, árbitro das almas do cerimônias fúnebres passaram a ser reali-
purgatório. zadas na Capela, que, mesmo sem padre
A devoção a São Miguel foi muito difun- colado, aglutinava a população para orações
dida na América portuguesa, personificando e reuniões comunitárias. Em 7 de outubro de
a luta entre o Bem e o Mal. Chegou ao vale 1888 criou-se a Paróquia de São Miguel do
do Paraíba com os primeiros colonizadores Piquete, sendo nomeado seu primeiro pároco
e se difundiu. Essa devoção fez com que, no o Pe. Francisco Fillipo.
início dos setecentos, a 6 de maio de 1719, A população aspirava à emancipação
fosse instituída na Freguesia de Nossa Se- do bairro. Era preciso, então, uma matriz.
nhora da Piedade (Lorena) a Irmandade de O Comendador Custódio Vieira da Sil-
São Miguel, cujo compromisso foi aprovado va, proprietário da Fazenda da Estrela,
por D. Francisco de São Jeronymo, bispo construiu, nas proximidades da igreja,
diocesano do Rio de Janeiro. Em 1852, uma olaria para a construção das torres
houve reforma desse compromisso. Por laterais. Em 15 de junho de 1891 ocorreu
essa época, a devoção a São Miguel Arcan- a emancipação político-administrativa do
jo já havia chegado ao bairro lorenense do bairro e na Matriz foram realizadas ceri-
Piquete, cuja população, para cumprir os mônias solenes. No Natal desse mesmo
preceitos religiosos, se deslocava até a Vila ano concluíram-se as torres.
de Lorena. Assim, os piquetenses passaram A antiga Matriz de São Miguel é para os
a pleitear junto às autoridades eclesiásticas piquetenses o seu maior símbolo. Todos os
autorização para construção de uma capela eventos significativos do município ocorre-
no bairro. Em 1864, por meio de uma petição dos por moradores dos quarteirões: Posses, ram nela, ou nas suas adjacências. Ela faz-se
conseguem de D. Sebastião Pinto do Rego, Ronco, Itabaquara Acima, Ribeirão Ver- presente no acervo iconográfico da Funda-
bispo de São Paulo, provisão que autorizava melho, Serra do Itajubá, Serra dos Marins, ção Christiano Rosa. Nela nossas tradições
a construção de uma capela no bairro, sob a Passa Quatro, Leais, Gonçalves e Godoy. religiosas foram intensamente fotografadas:
invocação de São Miguel, com a condição de A força aglutinadora da Fé e a devoção procissões, casamentos, batizados, primei-
que deveria se localizar em lugar alto e livre a São Miguel impulsionavam a todos que ras comunhões e situações de convivência
de umidade, e que tivesse espaço ao redor sonhavam ver a capela de seu padroeiro propiciadas pela Igreja. Em cada fotografia,
para procissões. O local escolhido foi uma construída. Escravos taipeiros passaram a resgatam-se as micro histórias pertinentes a
colina às margens do Caminho de Minas, pilar as grossas paredes de terra da capela. ela e a muito de nossa memória.
junto a um adensamento populacional. Os À medida que as paredes cresciam, aumen- A Capela de São Miguel e Almas, nossa
moradores passaram, a partir de então, a se tava a expectativa dos moradores para com antiga matriz, foi, no passado, e continua,
reunir, discutindo a melhor maneira para o término das obras. Ao mesmo tempo, no presente, nossa maior referência histórico
execução das obras. Tomaram a frente dos articulava-se a elevação do bairro à condição -religiosa. Por sua importância, foi tombada
trabalhos o Ten. Joaquim Vieira Teixeira de Freguesia, o que veio a acontecer em pelo Conselho Municipal do Patrimônio
Pinto e José Mariano Ribeiro da Silva, apoia- 22 de março de 1875, quando a igreja se Histórico, em 2002.
Mestra e missionária
Cabelos bem esti- Catecismo paroquial – 15/11/1937 Ficou-me esculpida na
cados, rematados em memória a imagem de uma
coque, vestido de tri- mulher de físico frágil, aco-
coline, mangas compri- metida de bronquite asmá-
das, meias de algodão. tica, a subir morosamente
Adereços – apenas um a ladeira da Rua Cel. José
modesto relógio de pul- Mariano, a bolsa recheada
so, o anel de professora de cadernos, em direção ao
primária e uma corrente Grupo Escolar “Antônio
ao pescoço, com a efí- João”. Animada, porém, de
gie de Nossa Senhora, fortaleza interior, capaz de
a quem se consagrara. grandes decisões.
Assim ela se apresen- A serviço do Cristia-
tava no dia a dia, na nismo, soube conjugar
escola e na igreja, para contemplação com ação.
onde sempre direcionou a vida. Foi um dos esteios da vida religiosa de Piquete. Uma religião isenta
Jovem ainda, por sugestão de uma professora que lhe percebera de sentimentalismo. Falava do sagrado com unção e alegria, como
a inteligência privilegiada, cursou a Escola Normal do Instituto de quem saboreia uma guloseima ou uma fruta apetitosa. Nas aulas de
Educação “Conselheiro Rodrigues Alves”, em Guaratinguetá, para catecismo, ao discorrer sobre as passagens bíblicas, fazia-o com tal
onde se mudara, apesar dos parcos recursos financeiros. Confiden- emoção, que nós, crianças, visualizávamos as “Bodas de Caná”, a
ciou-me, certa vez, que, não tendo condições para comprar os livros “A Multiplicação dos pães”, a “Pesca milagrosa”... e nossas vidas,
adotados, valia-se de folhas de papel pardo usadas para embrulhar bafejadas pelo Evangelho, ficavam mais leves, como que transcen-
pães: recortava-as e com elas fazia cadernos na máquina de costura, dentalizadas.
em que copiava, nos fins de semana, os textos gentilmente empres- Ao se referir à Mãe de Cristo, e com muito carinho, reconstituía a
tados por uma das colegas. Sua mãe, para equilibrar o orçamento casinha de Nazaré e a pobreza de Maria afeita aos trabalhos domésti-
familiar, recorria à culinária e esmerava-se em doces e quitutes para cos, e nós a imaginávamos tecendo, varrendo, lavando, transportando
atender a uma vasta freguesia. água e cozinhando, sem idealizações românticas, quase palpável, bem
Em 1927, nomeada professora efetiva do antigo Grupo Esco- próxima de nossas mães mergulhadas no anonimato e na rotina do lar.
lar de Piquete, aqui chegou com 22 anos de idade, após algumas Durante toda a vida foi consultora da comunidade piquetense:
experiências em escolas rurais. Piquete era como uma aldeia, as orientava, dirimia dúvidas e apontava direções. Sabia compreender
famílias formando uma grande família. O trenzinho dos operários e desculpar. Alegrava-se com as nossas pequeninas vitórias e nos
nosso único meio de transporte. Desfile de burros e mulas pelas ruas estimulava a fazer do tempo uma espécie de construção.
poeirentas, com lenha, sacos de carvão e jacás de frutas e frangos. Sem se abater diante das dificuldades e sem se deixar transviar
Boiadas vindas das Gerais atravessavam a cidade, de ponta a ponta, no pessimismo, soube dignificar o trabalho da mulher, revelando
deixando no ar um cheiro adocicado de capim. O Hotel das Palmeiras, que esta é capaz de transpor os limites de uma vida acanhada e sem
com o requinte dos cristais e porcelanas, polarizava a atenção dos perspectivas.
visitantes exigentes. Os velhos casarões ainda persistiam de pé e, A saúde precária obrigou-a, infelizmente, a nos deixar. O clima
nas calçadas, ao cair da noite, as famílias, acomodadas em cadeiras úmido e a topografia acidentada de Piquete impeliram-na a buscar
de palhinha, tagarelavam sobre o cotidiano. No coreto da pracinha, Lorena, sua terra natal, onde morreu no dia 26 de maio de 1955,
em frente à Matriz de S. Miguel, as retretas musicalizavam as festas após muito sofrimento, assistida por três sacerdotes. Interessante
e a vida de cada um. que ela sempre nos dizia que uma das grandes graças concedidas
A professora recém-chegada deve ter se encantado com a nova a um católico é poder contar com um padre à cabeceira, à hora
terra – sua simplicidade provinciana, o verdolengo das encostas, extrema da vida.
o azulado sinuoso da Mantiqueira, a transparência das manhãs, as O filósofo Teilhard de Chardin classifica os seres humanos em
noites povoadas de galos e, acima de tudo, a bondade do povo a três categorias: os desanimados, os boas-vidas e os entusiastas. Para
amaciar as asperezas da vida. Logo se fez amada e respeitada. Aqui ele, os entusiastas são ardentes porque se queimam como chama,
ficou e ajudou a escrever a nossa história. Desempenhou, entre nós, nunca se desanimam, lançam-se na vida e acreditam na dimensão
o trabalho de mestra e missionária. do próprio vôo. São nobres, têm Deus dentro de si.
Seu aluno, testemunhei-lhe a estatura moral, o equilíbrio, o bom Leonor Guimarães, mestra e missionária, foi uma entusiasta por-
senso, os gestos comedidos, a voz baixa, às vezes quase sussurrada, que acreditava na utopia e na ação silenciosa de Deus nos corações
nada de grandes expansões. dos homens.
À tarde, no silêncio de sua casa, reunia “os alunos de raciocínio Nós a perdemos no tempo, mas a ganhamos na espiritualidade. O
mais lento”, como eufemisticamente dizia, para aulas gratuitas de importante é que ela nos ensinou a amar o bem e a crer na santidade.
reforço – semeava a palavra e investia no futuro de cada um. Chico Máximo