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Brazilian Journal of Development 14205

ISSN: 2525-8761

Políticas públicas de saúde para as mulheres implementadas no Brasil:


compreensões a partir do conceito de biopoder de Michel Foucault

Public health policies for women implemented in Brazil:


understandings from Michel Foucault's concept of biopower
DOI:10.34117/bjdv8n2-377

Recebimento dos originais: 07/01/2022


Aceitação para publicação: 23/02/2022

Jamille Amorim Carvalho Paiva


Mestrado
Instituição: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Endereço: Av. José Moreira Sobrinho, S/N, Jequiezinho - Jequié – BA, CEP: 45.208-
091
E-mail: [email protected]

Alba Benemérita Alves Vilela


Doutorado
Instituição: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Endereço: Av. José Moreira Sobrinho, S/N, Jequiezinho - Jequié – BA, CEP: 45.208-
091
E-mail: [email protected]

André Souza dos Santos


Doutor
Instituição: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Endereço: Av. José Moreira Sobrinho, S/N, Jequiezinho - Jequié – BA, CEP: 45.208-
091
E-mail: [email protected]

RESUMO
Trata-se de uma reflexão teórico-filosófica com o objetivo de compreender as políticas
públicas de saúde para as mulheres implementadas no Brasil, a partir do conceito de
Biopoder de Michel Foucault. Este autor considera que as intervenções sobre a saúde da
população refletem fundamentalmente uma relação de poder sobre a vida, a partir da
migração do poder disciplinar, que se dirige ao homem-corpo, para o biopoder, que se
dirige ao homem-espécie. No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas
nacionais de saúde nas primeiras décadas do século XX, entretanto, em que pesem os
avanços alcançados até o momento atual, ainda observam-se diversas lacunas relativas ao
cuidado em saúde da mulher. Nesse contexto, as contribuições de Foucault, servem como
ferramenta para compreender o processo de normalização da saúde da mulher no país,
mediante a implementação de políticas públicas que estabeleceram mecanismos
reguladores dos fenômenos coletivos, porém que nem sempre atendem às suas reais
necessidades de cuidado.

Palavras-chave: biopoder, equidade, integralidade do cuidado, saúde da mulher.

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ABSTRACT
It is a theoretical-philosophical approach with the objective of understanding how health
policies for women are thought of by the public in Brazil, based on Michel Foucault's
Biopower. This author considers the health of the family that corporeal life is a
relationship of power over the disciplinary power, which directs the power over the health
of the man-corporate, for the leader to the man-power to discipline life, which directs the
man-power. In Brazil, from women's health, gaps were inserted into women's health
policies in the decades of the twentieth century, however, which are still dated from
women's health to the current moment of women's health. The needs of Foucault's
contributions serve as a tool to understand the process of normalization of health in the
country, through the implementation of public policies that establish regulatory
mechanisms of collective phenomena, but that do not always meet their real needs of
organizations.

Keywords: biopower, equity, comprehensive care, women's health.

1 INTRODUÇÃO
A noção sobre o direito à saúde contida na Constituição Brasileira envolve, dentre
outros aspectos, a compreensão de que, no processo de cuidado, devem ser consideradas
as especificidades dos diferentes grupos, o respeito à dignidade humana e à realidade
vivenciada pelas populações, visando uma assistência integral e a materialização da
justiça e a equidade (BRASIL, 2016).
Ao se pensar em políticas públicas de saúde para as mulheres, é imprescindível
considerar a diversidade inerente a esse grupo, tanto na investigação do perfil
epidemiológico quanto no planejamento de ações, com vistas a garantir a melhoria das
condições de vida e saúde e os direitos de cidadania das mulheres (BRASIL, 2004).
No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nas
primeiras décadas do século XX, sendo limitada, nesse período, às demandas relativas à
gravidez e ao parto. Os programas materno-infantis, elaborados nas décadas de 30, 50 e
70, traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada em sua especificidade biológica
e no seu papel social de mãe e doméstica (BRASIL, 2004). Esses programas são
vigorosamente criticados pela perspectiva reducionista com que tratavam a mulher.
Em 1984, uma proposta de atendimento integral ganhou notoriedade. O Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) marcou uma ruptura conceitual com
os princípios norteadores da política de saúde das mulheres, ao incluir ações educativas,
preventivas, de diagnóstico, tratamento e recuperação. Já em 2004, foi instituída a Política
Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), com vistas à superação
do enfoque biologicista e medicalizador hegemônico nos serviços de saúde. Teve como

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princípios norteadores a qualidade e humanização da assistência, visando atender a


mulher em todas as dimensões, e como diretrizes a integralidade e promoção da saúde,
numa percepção ampliada dos contextos de vida. (BRASIL, 2004; BRASIL, 2016).
Em que pesem os avanços alcançados, no entanto, ainda observam-se diversas
lacunas relativas ao cuidado em saúde da mulher, tais como a infertilidade e a reprodução
assistida, saúde da mulher no sistema prisional, saúde ocupacional, saúde mental e a
inserção da perspectiva de gênero e raça nas ações a serem desenvolvidas (BRASIL,
2004).
Neste sentido, podemos compreender que à medida que as políticas públicas
voltadas à saúde das mulheres foram evoluindo, diferentes aspectos de cuidado foram
sendo privilegiados em detrimento de outros, conforme o contexto histórico, cultural,
político e econômico vivenciado no país em cada época. Para Foucault, o domínio sobre
um conjunto de processos de uma população, constituindo-se objetos de controle dos
governos, designou uma nova tecnologia de poder, a biopolítica ou biopoder, instaurado
a partir da segunda metade do século XVIII (FOUCAULT, 2005).
Neste autor, encontramos uma análise sobre como os processos populacionais
relacionados à natalidade, morbidade, mortalidade e longevidade se constituíram objetos
de saber e alvos de controle da biopolítica, culminando com a introdução de novos
mecanismos, técnicas e tecnologias para enfrentamento dos fenômenos coletivos ao se
considerar a população como entidade biológica passível de regulamentação mediante
mecanismos globais (FOUCAULT, 2005; LACERDA; ROCHA, 2018).
Frente ao exposto, pretende-se neste artigo responder ao seguinte questionamento:
Quais as contribuições do pensamento de Michel Foucault acerca do Biopoder para a
compreensão das políticas públicas de saúde para as mulheres implementadas no Brasil?
Assim, trata-se de uma reflexão teórico-filosófica com o objetivo de compreender
as políticas públicas de saúde para as mulheres implementadas no Brasil, visto que as
intervenções sobre a saúde da população refletem fundamentalmente uma relação de
poder sobre a vida.

2 O BIOPODER E AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE


De acordo com Melazzo (2010), política é um conceito amplo, que pode ser
entendido como uma ciência que estuda os fenômenos alusivos ao Estado ou ao Governo,
bem como o aparato de regras associado à direção dos negócios e à gestão pública e o ato

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de governar os cidadãos. Faz referência ao poder, solução de conflitos ou ações de


tomadas de decisão.
Os debates envolvendo as políticas públicas incidem em um vasto campo
multidisciplinar, com influências de diferentes áreas do saber como as Ciências Sociais e
Humanas, Ciência Política, a Administração Pública, o Direito, a Economia, a Sociologia,
a Antropologia, a Geografia e outras (MACEDO et al., 2016). Para Souza (2006), política
pública pode ser definida como uma área inserida no estudo da política que investiga o
governo frente às grandes questões públicas, ou ainda, um aparato de ações do governo
que resultarão em efeitos específicos.
Tomando como base a obra Em defesa da sociedade (2005), volume que inaugura
a edição dos cursos de Michel Foucault no Collège de France no período de 1975 a 1976,
buscou-se os elementos fundamentais para compreensão do conceito de Biopoder e sua
interrelação com as políticas públicas em saúde.
Nela, Foucault afirma que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a
tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, a assunção da vida pelo poder e a
estatização do biológico. Remonta à teoria clássica da soberania, na qual o direito de vida
e de morte eram atributos fundamentais, que não se localizariam fora do campo do poder
político. O soberano podia fazer morrer e deixar viver. Nesta perspectiva, “o súdito não
é, de pleno direito, nem vivo, nem morto. Ele é (...) neutro, e é simplesmente por causa
do soberano que o súdito tem direito de estar vivo ou (...) de estar morto. (...) a vida e a
morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana” (p. 286).
Foucault afirma que “uma das mais maciças transformações do direito político do século
XIX consistiu não (...) em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania
(...) com outro direito novo (...), um poder exatamente inverso: poder de fazer viver e
deixar morrer” (p. 287).
Para Foucault, essa transformação não se deu “no nível da teoria política, mas,
antes, no nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder” (p. 288). Explica
que no final do século XVII e decorrer do século XVIII surgiram técnicas de poder
centradas no corpo individual, a que chamou de tecnologia disciplinar do trabalho, que
consistia em procedimentos que organizassem a distribuição espacial dos corpos e do
campo de visibilidade, aumento da força útil por meio de exercícios e treinamentos,
sistema de vigilância, hierarquia, inspeções, relatórios. Trata-se de uma primeira tomada
de poder sobre o corpo, no modo da individualização. Já na segunda metade do século
XVIII, segundo Foucault, surge uma nova tecnologia de poder “que não exclui a técnica

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disciplinar, mas que (...) a integra (...) incrustando-se efetivamente graças a essa técnica
disciplinar prévia”, mas que “tem outra superficie de suporte e é auxiliada por
instrumentos totalmente diferentes” (p. 289). , consistindo em “previsões, estimativas
estatísticas, medições globais, (...), intervir no nível daquilo que são as determinações
desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global” (p. 293).
Foucault discute que, enquanto o poder disciplinar se dirige ao homem-corpo, e
“tenta reger a multiplicidade dos homens redundando-os a corpos individuais vigiados,
treinados, utilizados e, eventualmente punidos” (p. 289) - registrado como anátomo-
política do corpo humano, o biopoder se dirige ao homem-espécie, na medida em que
formam “uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida,
(...) como o nascimento, a morte, a produção, a doença” (p. 289) a que chamou de
biopolítica da espécie humana.
A análise empreendida por Foucault (2005) afirma que a biopolítica vai se dirigir
aos fenômenos coletivos que se desenvolvem numa população, num certo período de
tempo, tendo como “as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao
mesmo tempo: da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos
efeitos do meio” (p. 292). Daí se depreenderam “as primeiras demografias, (...) o
mapeamento dos fenômenos de controle dos nascimentos, (...) o esboço de uma política
de natalidade” (p. 290).
Ao considerar a doença como um fenômeno da população, Foucault discute ainda
que a biopolítica, do ponto de vista da morbidade, não tratou somente das epidemias –
famosas e aterrorizantes desde a Idade Média, mas também das endemias: “a forma, a
natureza, a extensão, a duração, a intensidade das doenças reinantes numa população” (p.
290). Assim, no final do século XVIII, ocorreu a introdução de uma medicina voltada à
“higiene pública, om organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de
centralização da informação, de normalização do saber, (...) de campanha de aprendizado
da higiene e de medicalização da população” (p. 291).
Para Agum et al. (2015) política pública abarca a discussão e prática de atos
relacionados ao conteúdo, palpável ou figurado, de decisões explicitadas como políticas;
ou seja, área de edificação e ações de decisões políticas. Entre as inúmeras políticas
públicas existentes em nossa sociedade – educação, habitação, saneamento, lazer,
segurança, dentre outras, destacam-se as políticas públicas de saúde.
No Brasil, no decorrer da história do campo da saúde pública, diversos modelos
de atenção foram adaptados pelos governos para responder às necessidades de saúde da

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população, afinados aos modelos de desenvolvimento econômico, social e político


vigentes em cada momento. Foram influenciados por movimentos de saúde de âmbito
internacional e nacional – medicina preventiva, atenção primária à saúde, promoção da
saúde, etc., com elementos inseridos no Sistema Único de Saúde (GUIMARÃES et al.,
2017).
O direito à saúde é uma fração do conjunto de direitos sociais reconhecidos e
garantidos pela Constituição Federal do Brasil de 1988, que, em seu Artigo 196, define
como alicerce a responsabilidade do estado na garantia da saúde como direito universal
do cidadão (FIGUEIREIDO et al., 2017). De acordo com Lucchese (2004) as políticas
públicas em saúde se unem ao ambiente de ação social do Estado, visando a melhoria das
situações de saúde da população e dos espaços naturais, sociais e do trabalho. Sua
finalidade primordial, articulada às demais políticas públicas do campo social, incide em
organizar os papéis públicos do governo para a promoção, amparo e recuperação da saúde
dos cidadãos e da coletividade.

3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE PARA AS MULHERES NA


PERSPECTIVA DO BIOPODER DE MICHEL FOUCAULT
Encontram-se na literatura diversos conceitos sobre a saúde da mulher. Há
concepções mais restritas que abordam apenas aspectos da biologia e anatomia do corpo
feminino e outras mais amplas que interagem com dimensões dos direitos humanos e
questões relacionadas à cidadania (BRASIL, 2004).
Furtado e Camilo (2016) ressaltam que, para Foucault, o poder encontra-se sempre
articulado a determinado conhecimento, e praticá-lo torna-se cabível através de saberes
que lhe servem de ferramenta e defesa; em prol da verdade se validam e viabilizam
práticas de segregação, acompanhamento, gestão dos corpos e dos anseios.
No começo do século XX, o cuidado à saúde da mulher foi inserido nas políticas
públicas de saúde no Brasil. Na década de 60, o movimento feminista brasileiro,
insatisfeito com as desigualdades de gênero e com a visão reducionista conferida à
mulher, mobilizou-se contra a desconsideração das peculiaridades de homens e mulheres,
apoiando a igualdade social que não ignorasse as diferenças, manifestada hoje na noção
de “equidade de gênero”. A união das mulheres na luta pelos seus direitos e por condições
de vida mais adequadas incitou a adoção, pelo Ministério da Saúde, das primeiras
iniciativas voltadas para o cuidado integral à saúde da mulher (FREITAS et al., 2009).

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Até a década de 1970, a saúde da mulher era vista, como elemento de políticas
públicas de saúde, somente sob o aspecto procriativo, tendo como referência principal a
assistência voltada para o ciclo gravídico-puerperal, reforçando-se a perspectiva da
maternidade conferida à mulher (MEDEIROS; GUARESCHI, 2009). Posteriormente,
com a acelerada alteração do padrão procriativo, configurou-se um cenário de saúde onde
ganharam notoriedade os fatores associados à sexualidade e aos efeitos da contracepção,
que impactaram na medicalização dos ciclos vitais femininos, manifestados pelo
quantitativo elevado de cesáreas e laqueaduras tubárias e, mais atualmente, no incremento
das histerectomias (LEÃO; MARINHO, 2002).
Nesse debate, não se pode perder de vista o contexto de ampliação da inserção da
mulher no mercado de trabalho, o qual exige disponibilidade de tempo e higidez física.
Manter as condições para o trabalho foi outro campo de intervenção da biopolítica
destacado por Foucault (2005) como importante no início do século XIX – a era da
industrialização. Visando enfrentar o envelhecimento, os acidentes e as enfermidades,
que colocavam os indívíduos fora do circuito, a biopolítica introduziu “não somente
instituições de assistência (...), mas mecanismos (...) mais sutis, mais racionais, de
seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc” (p.291).
Em 1984, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), priorizando a investigação da complexidade das questões de saúde das
mulheres, norteando a integralidade da política e enfatizando a autonomia destas acima
das questões reprodutivas(BRASIL, 2004). O PAISM assinala um momento histórico nas
políticas públicas voltadas ao público feminino, em que a integralidade é vislumbrada
como reflexo de uma postura ética e técnica dos profissionais, com uma reformulação da
composição dos serviços de saúde (MEDEIROS; GUARESCHI, 2009).
Um balanço do PAISM nos anos noventa apontam para a expansão das coberturas
de atenção básica a toda população brasileira, universalização do acesso e ampliação da
oferta de serviços de saúde de base municipal com a estratégia do Programa de Saúde da
Família. Já no período de 1998 a 2002, priorizou-se a saúde reprodutiva e, em particular,
as ações para redução da mortalidade materna (pré-natal, assistência ao parto e
anticoncepção). Segundo os autores, embora se tenha mantido como imagem-objetivo a
atenção integral à saúde da mulher, essa definição de prioridades dificultou a atuação
sobre outras áreas estratégicas do ponto de vista da agenda ampla de saúde da mulher
(BRASIL, 2004; COSTA, 2009).

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Em 2004, foi instituída no âmbito do SUS a Política Nacional de Assistência


Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), tendo por finalidade minimizar a morbi-
mortalidade por causas previníveis e evitáveis, além de instituir estratégias de amparo dos
direitos humanos das mulheres (BRASIL, 2004). Norteada pelos princípios de
integralidade do cuidado e proteção da saúde, sob o aspecto de gênero, a PNAISM
demarca ações, estabelece regras nos padrões de atenção à saúde e fundamenta a prática
de profissionais relacionada às particularidades da saúde da mulher (PIZZINATO et al.,
2012).
A agenda no campo técnico de saúde da mulher inseriu elementos relevantes para
o cuidado deste grupo populacional, tais como a assistência às patologias ginecológicas
prevalentes, a prevenção, a identificação e o tratamento do câncer de colo uterino e de
mama (BRASIL, 2014). Ao retomar os princípios do PAISM, a PNAISM progrediu ao
admitir a diversidade entre as mulheres, ao abarcar a saúde de distintos grupos (negras,
indígenas, trabalhadoras rurais, entre outras) e dos distintos ciclos da vida, e ao enfatizar
os direitos sexuais e reprodutivos (LEAL et al., 2018).
Em sua obra História da sexualidade: a vontade de saber, Foucault (1999)
evidencia as relações de poder a partir do sexo: “se por um lado, faz parte das disciplinas
do corpo (...) do outro o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos
globais que induz” (p. 136). O autor destaca que a sexualidade tornou-se, ao longo das
épocas, tema de operações políticas, de intervenções econômicas, de campanhas
ideológicas.
Barcellos (2018) argumenta que as imposições dos moldes de comportamento
denotam uma relação de poder e dominação que produzem ao seu redor um mistério, um
enigma a ser desvendado, culminando nos tabus ainda atuais na sociedade, que impõem
o que se avalia como verdadeiro e afasta posturas ou identidades discordantes do padrão
preestabelecido.
Uma das barreiras a ser enfrentada pelas políticas públicas é o suprimento da
diversidade sexual, étnica, sociocultural e econômica que perpassa o universo feminino
brasileiro. Essa diversidade colabora para o incremento da vulnerabilidade às patologias
e para o distinto perfil epidemiológico das mulheres. Assim, esses aspectos necessitam
ser enfatizados na reformulação da PNAISM, possibilitando uma prática mais próxima
da realidade local e, portanto, com resultados mais eficazes (FERREIRA, 2013).
Mesmo frente aos avanços, as políticas públicas de saúde para as mulheres
mantêm, primordialmente, intervenções voltadas à fase reprodutiva, configurando-se

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ainda como desafio a ampliação do cuidado (PASQUAL et al., 2015). A assistência às


mulheres deve ser fundamentada não só em procedimentos clínicos, mas em ações de
promoção da saúde, acolhimento, fortalecimento do vínculos, entre outras estratégias que
desenvolvam a autonomia da mulher para o seu autocuidado (SANTOS et al., 2016).
Mais recentemente, o Ministério da Saúde tem preconizado que a atenção à saúde
aconteça no âmbito da Rede de Atenção à Saúde (RAS), conceituada como uma rede
articulada de serviços de saúde que visa ofertar o cuidado integral nos diferentes níveis
de complexidade do sistema de saúde, a uma determinada população. Neste contexto,
entende-se que na Atenção Primária à Saúde (APS), os profissionais estejam em posição
estratégica para garantir o cuidado à saúde das mulheres, enfatizando a importância do
acolhimento, escuta e acompanhamento longitudinal (ARBOIT et al., 2017).

4 CONCLUSÃO
A reflexão acerca das políticas públicas de saúde para as mulheres implementadas
no Brasil nos possibilitou perceber que, a cada momento histórico, ao enfocar
determinadas partes do corpo, seus funções e disfunções como elementos principais ou
não, o poder público vai definindo quais métodos devem ser abordados, que condutas
necessitam ser incluídas ou excluídas, sendo a mulher, muitas vezes compreendida
biologicamente, pela anatomia de seu corpo (MEDEIROS; GUARESCHI, 2009).
Nessa perspectiva, as contribuições de Michel Foucault sobre Biopoder servem
como ferramenta para compreender o processo de normalização da saúde da mulher,
mediante a implementação de políticas públicas que estabeleceram mecanismos
reguladores dos fenômenos coletivos, porém que nem sempre atendiam às suas reais
necessidades de cuidado (LACERDA; ROCHA, 2018). Para os mesmos autores, se, por
um lado, as medidas sobre os processos vitais aumentam a qualidade de vida da
população, por outro, também efetivam um domínio sobre os sujeitos, uma vez que as
políticas públicas de saúde definem o escopo de cuidados que será ofertado pelo sistema
público de saúde.
Foucault (2005, p.294) observa que, mediante mecanismos globais, a biopolítica
busca “agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilibrio, de regularidade;
(...) de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar
sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação”. Assim, refletir sobre a saúde
da mulher no âmbito das políticas públicas de saúde requer lidar, ao mesmo tempo, com
as dimensões regulatórias, de autonomia, de empoderamento individual e coletivo;

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envolve tensões e demandam constante atenção e trabalho conjunto (FERREIRA NETO


et al., 2009).
Em que pese os desafios ainda presentes, um destaque importante para os
numerosos avanços observados nas políticas públicas de saúde para as mulheres foi a
participação das mesmas na luta pela saúde e pela valorização da classe social e do gênero
na sua determinação social (COSTA, 2009).
Para Foucault (2005), embora o poder de soberania – absoluto, dramático,
sombrio, consistisse em poder “fazer morrer”, com a tecnologia do biopoder, há uma
possibilidade cada vez maior de “intervir para fazer viver, (...) aumentar a vida, controlar
seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências” (p. 295).

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