Comentarios A Um Delirio Militarista Manuel Domingos Neto

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 316

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda,


aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site:
eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando


livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de


servidores e obras que compramos para postar, faça uma
doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."

eLivros .love

Converted by ePubtoPDF
Comentários
a um delírio
militarista
Manuel Domingos Neto
(O r g a n i z a d o r)

Comentários
a um delírio
militarista

1a Edição | Fortaleza – CE | 2022


COMENTÁRIOS A UM DELÍRIO MILITARISTA
© 2022 Copyright by Manuel Domingos Neto

Todos os direitos reservados

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Manuel Domingos Neto

DIAGRAMAÇÃO
Narcélio Lopes

CAPA
Carlos Alberto de Alexandre Dantas

REVISÃO DE TEXTO
Ana Beatriz A de Freitas e Mário Simões

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Comentários a um delírio militarista [livro
eletrônico] / organização Manuel Domingos Neto.
-- 1. ed. -- Fortaleza, CE : Ed. dos Autores,2022.
PDF.

Vários autores.
ISBN 978-65-00-53283-8

1. Agronegócio 2. Ciências políticas 3. Ciências sociais 4. Democracia 5.


Economia 6. Militarismo - Brasil 7. Saúde pública I. Neto, Manuel Domingos.

22-129107 CDD-

Sumário

Apresentação
A música que a banda toca
Marcelo Godoy

Socioleto militarista-autoritário
Francisco Carlos Teixeira da Silva

Projeto de direção do Brasil


Eliézer Rizzo de Oliveira

Implicação do Projeto na conjuntura e na estratégia


José Genoino

A República Velha do futuro


Williams Gonçalves

Geleia geral
Gilberto Maringoni

Globalismo, um encontro doutrinário


Eduardo Costa Pinto

Nem ordem nem progresso


João Quartim de Moraes

Sobrevivência da Doutrina de Segurança Nacional


Rodrigo Lentz

A demanda mundial por alimentos


Rodrigo Medeiros

A volta do liberalismo primário-exportador


Juliane Furno

O mito do desenvolvimento pelo agronegócio


Daví Jose Nardy Antunes
Marilia Tunes Mazon

A agricultura num país para todos/as


João Pedro Stédile

Mineração e desenvolvimento
Ricardo Machado Ruiz
Universidade e Nação
João Carlos Salles

Política e Sistema de Inovação


Luiz Martins de Melo

Ciência, tecnologia e o futuro da nação


Olival Freire Junior
Manuel Domingos Neto

A militarização das escolas públicas


Catarina de Almeida Santos

Ameaças ao SUS
Jose Gomes Temporão

Incompetência militar na saúde


Walter Cintra Ferreira Junior

Amazônia verde-oliva
Adriana Marques
Gustavo Guerreiro
Manuel Domingos Neto

Integração da Amazônia ao Brasil


Ennio Candotti

Amazônia: não há nem integração, nem desenvolvimento


Eron Bezerra

Projeto de futuro triste


Cristina Serra

Apelo à fragmentação nacional


Roberto Amaral

Sem medo de ser mulher


Mônica Dias Martins

A Democracia Reduzida
Lincoln de Abreu Penna

Um governo para a era da guerra híbrida


Piero Leirner

Mudança na Administração Federal


Guilherme A. Lemos da Silva Moreira

Involução e deturpação da Inteligência Estratégica


Priscila Carlos Brandão
Ana Penido

Rebeliões da nova tecnocracia antidesenvolvimentista


Marcio Pochmann

Segurança pública no Brasil projetado


Luiz Eduardo Soares

A formação do policial-soldado
Éder Luiz Martins
Denis Maracci Gimenez

Sistema prisional
Michel Misse

Brasil mal defendido


Manuel Domingos Neto
Marcelo Pimentel Jorge de Souza
Apresentação
Ao longo do período republicano, os militares buscaram
conduzir os destinos do país. Implantaram ditaduras e
contingenciaram governos eleitos democraticamente. Suas
percepções sobre a sociedade brasileira e proposições estão
expostas em revistas militares, teses apresentadas nas
escolas corporativas, documentos governamentais, livros,
autobiografias, artigos de imprensa e palestras.
Apesar desta exposição, compreender o pensamento dos
militares é empreendimento nem sempre exitoso. Demanda
conhecimento de especificidades de organizações
complexas, estruturadas sob injunções externas e sob
demandas de um aparelho de Estado tensionado por uma
sociedade profundamente desigual. Não se trata de um
corpo de ideias imutável, sem nuanças e incoerências. As
formulações das fileiras refletem o embate de clivagens
geracionais e os conflitos de interesses de seus integrantes.
Há diferenças culturais entre os componentes terrestre,
marítimo e aéreo. Nas corporações, há rivalidades agudas.
Especialidades profissionais disputam protagonismo.
Mesmo após a rigorosa triagem ideológica promovida
durante mais de duas décadas pela ditadura instaurada em
1964, não cabe imaginar uma uniformização da
sensibilidade política dos enfileirados. As formulações para
a condução do país foram afetadas por contendas entre
tendências e facções que Alain Rouquié designou como
“partidos militares”.
Com a redemocratização, em curso desde 1985,
prevaleceu a falsa ideia de retraimento do ativismo político
dos enfileirados. Poucos tiveram em conta que, na rotina
das corporações, estaria a formulação de propostas para o
país. O punhado de acadêmicos civis especializados teve
dificuldade para captar a disposição militante dos oficiais.
Os pressupostos e as intencionalidades de suas formulações
não despertaram preocupação na cidadania.
No primeiro semestre de 2018, em conversa com o
almirante Mário César Flores, fui surpreendido com a
informação de que oficiais generais estavam organicamente
envolvidos com a candidatura do deputado Jair Bolsonaro à
Presidência. Eliézer Rizzo, João Roberto Martins, Roberto
Amaral e Wanderley Guilherme dos Santos, aos quais
repassei de imediato a notícia, ficaram igualmente
intrigados. Sabíamos da vontade de mandar e do
conservadorismo das fileiras, mas não esperávamos o
comprometimento corporativo com um oficial histriônico
que, desde jovem, revelara vocação para o terror. O
experiente César Flores evitou participar das reuniões em
que altas patentes militares articulavam um inglório retorno
ao poder por meio da eleição de um elemento repugnado
por seus chefes.
Na época, Piero Leirner se empenhava em reconhecer os
intrincados lances da macabra trama política. Eduardo
Costa Pinto refletia sobre a penetração do
neoconservadorismo estadunidense que orientava o
ativismo das fileiras.
Mas quem suporia que, eleito Bolsonaro, os militares
endossariam a desabrida ofensiva contra instituições
científicas e empresas estratégicas essenciais à própria
defesa do país? Tanto os centros acadêmicos como as
empresas haviam sido estimuladas, na segunda metade do
século passado, por governantes militares que lhes
atribuíam papel indispensável ao desenvolvimento
brasileiro. Quem imaginaria oficiais se expondo ao desgaste
por conta do desmonte de engrenagens estatais voltadas
para a oferta de energia, a proteção ambiental, os
problemas sanitários, o desenvolvimento da cultura e o
cuidado com a memória nacional? Militares se imiscuíram
em todos os domínios da administração pública. Diante de
grave pandemia, negaram valor à ciência e revelaram
incapacidade de atendimento básico à população. De onde
proviria essa postura deletéria?
Hoje, a cidadania não sabe o que esperar das
corporações armadas. Frente às ameaças ao regime
democrático, acompanha, apreensiva, as declarações
indecorosas e os silêncios cúmplices de personalidades
militares. O intervencionismo castrense seria impossível
sem que oficiais houvessem formulado proposições acerca
da administração pública e tramado o retorno aos postos de
mando. Como agiram discretamente e por “aproximações
sucessivas” não receberam a devida atenção.
O hermetismo da linguagem com que eles se exprimem,
os códigos próprios, as simbologias, os recados indiretos, o
jogo de afirmações contraditórias e as mensagens
subliminares que empregam, semeiam propositalmente
equívocos, inclusive entre observadores experientes. O fato
é que a sociedade custeia corporações armadas sem a
devida noção das pretensões de seus integrantes e sem
ousar definir o que delas espera.
Esse desaviso se estende ao conjunto de atores estatais.
À chefia do Poder Executivo, na prática, é vedada a
autoridade suprema sobre as Forças Armadas conferida
formalmente pela Constituição: é impossível comandar o
desconhecido. O Ministério da Defesa, criado há mais de
duas décadas, ainda não dispõe de corpo técnico civil
qualificado. Não tem domínio sobre os negócios militares e
sequer consegue distingui-los dos assuntos de Defesa
propriamente ditos. Em que pese ser um órgão político-
administrativo, sempre foi conduzido por oficiais. Inclusive,
seu titular é usualmente tratado como “representante” das
corporações. Ao longo dos anos, perguntei aos generais
como poderia ser definido um “bom ministro da Defesa”. De
todos recebi a mesma resposta: um político capaz de
conseguir verbas e que não lhes aborrecesse.
No Legislativo, a ausência de assessorias qualificadas
facilitou a aprovação de leis de interesse corporativo sem o
conhecimento de suas múltiplas e variadas implicações.
Tudo foi apresentado simploriamente como de “interesse da
defesa nacional”. Poucos parlamentares se manifestaram
sobre as propostas com algum conhecimento de causa. A
sociedade ficou indefesa diante dos desígnios castrenses. A
institucionalidade republicana não previu contenções
objetivas à autonomia militar. O resultado é que, hoje, os
brasileiros vivem sobressaltados com os inescrutáveis
humores da caserna.
Neste livro, reunimos comentários sobre uma proposta
de lavra castrense apresentada em 22 de maio de 2022.
Trata-se do documento “Projeto de Nação – O Brasil em
2035”, resultado de uma parceria entre o Instituto Sagres, o
Instituto Federalista e o Instituto General Villas Bôas,
entidades sem fins lucrativos beneficiadas com recursos
públicos.
Os comentaristas são professores reconhecidos,
jornalistas experientes e personalidades de destaque na
vida política brasileira. Alguns exerceram mandatos
parlamentares, conduziram ministérios e administraram
importantes instituições públicas. Todos se inserem na linha
de frente da resistência aos ataques à democracia.
Quanto às entidades responsáveis pelo documento em
análise, seus inspiradores e dirigentes são oficiais
superiores que se apresentam como amantes da pátria e
representantes autorizados da vontade coletiva. Julgam-se
moral e intelectualmente preparados para indicar aos
brasileiros o caminho da justiça, da liberdade e da
felicidade.
O “Projeto de Nação” em foco não representa
oficialmente o pensamento de corporações armadas, mas
exprime sentimentos, ideias e proposições correntes nas
fileiras. Suas formulações são compatíveis com a prática
governamental em curso. Não se trata, portanto, de algo a
ser comodamente desconsiderado. Ao contrário, seu estudo
representa uma boa oportunidade de observação do
pensamento militar brasileiro.
A elaboração desse documento foi conduzida pelo
general Luiz Eduardo Rocha Paiva, reconhecido por seu
colega e amigo, general Villas Bôas, ex-comandante do
Exército, como o grande intelectual de sua geração na
Academia das Agulhas Negras. Rocha Paiva é dirigente do
Instituto Sagres, que adota como modelo a “Rand
Corporation”, um think tank estadunidense prestador de
serviços ao Pentágono.
Antes de usar a palavra para apresentar o “Projeto de
Nação” em auditório lotado, Rocha Paiva pediu permissão à
maior autoridade hierárquica presente, o vice-presidente da
República, general Hamilton Mourão. Assim, escancarou a
natureza castrense da solenidade. A análise da carga
simbólica deste evento em que uma banda militar entoa
canção marcante da fase mais truculenta da ditadura
constitui o primeiro capítulo desta coletânea, escrito por
Marcelo Godoy.
O segundo capítulo é de Francisco Carlos Teixeira, que
observa “quem fala”, de “onde fala” e “como fala” no
documento. Os recursos de linguagem do “Projeto de
Nação” alimentam confusões propositadas. Observadas com
atenção, atestam sua natureza militarista-autoritária. A
forma literária empregada ganha tom de profecia que,
certamente, entusiasma parcelas atemorizadas pela
perspectiva de mudanças sociais.
Eliézer Rizzo de Oliveira, no capítulo seguinte, assinala o
ambiente de disputa eleitoral em que ocorreu a divulgação
do documento. Lembra que a expressão “Projeto de Nação”
foi usada anteriormente por forças políticas contrárias ao
projeto militarista. Conclui tratar-se de uma manifestação do
“partido verde-oliva” que pretende permanecer governando
o país e destaca sua intenção de militarizar a vida política e
cultural dos brasileiros.
As implicações conjunturais do documento, assim como
seus rebatimentos sobre as opções estratégicas do Estado
brasileiro são analisadas por José Genoino. Seu texto aponta
que os militares, revelando espírito de casta, inferiorizam a
sociedade e tratam a política como algo errado ou nocivo.
Williams Gonçalves, ao examinar a perspectiva com que
os autores percebem a inserção do país na cena
internacional, aponta a tentativa de camuflar o padrão de
raciocínio que orientou o pensamento militar durante a
Guerra Fria: o documento refere-se a uma postura não
alinhada, mas deixa evidente a opção de aliança estratégica
com os Estados Unidos na medida em que estigmatiza seus
desafiantes, a China e a Rússia.
A amplitude dos propósitos do texto em estudo conduz
forçosamente ao debate conceitual. A palavra “nação”
abriga muitos significados, sendo frequentemente usada
como sinônimo de “pátria”, “país”, “Estado” e “sociedade”.
Invoca sentimentos variados. Seus termos derivados, como
“nacionalismo” e “nacionalista”, arrepiam europeus que não
esquecem os tanques de Hitler e acalantam latino-
americanos esperançosos de autonomia diante dos Estados
Unidos, que se imaginam destinados ao domínio planetário.
No vocabulário político, talvez não haja palavra mais
perigosamente polissêmica. Desde o século XIX, o
sentimento nacional tornou-se a maior fonte legitimadora
do Estado enquanto o apelo “internacionalista” orientou
generosas propostas de reformas sociais.
O “Projeto de Nação” fundamenta-se em conceitos
antigos, presentes na Doutrina de Segurança Nacional, na
“Política Nacional de Defesa” e na “Estratégia Nacional de
Defesa” e em expressões novas, mal definidas,
inconsistentes e até bizarras. No afã de apresentar-se como
derradeiro bastião em defesa do restauro de uma ordem
econômica, política, moral e “psicossocial” solapada por
“inimigos pérfidos”, a extrema direita apela para termos
opacos. “Globalismo”, “marxismo cultural”, “politicamente
correto” e “conservadorismo evolucionista” são expressões
usadas pela militância conservadora.
Gilberto Maringoni, Eduardo Costa Pinto, João Quartim de
Moraes e Rodrigo Lentz analisam este emaranhado
terminológico. O vigor e a profundidade desses professores
ajudam a entender o cipoal de palavras mobilizado para
mascarar intentos regressistas.
O delírio dos autores do “Projeto de Nação” consiste no
sonho de um Brasil exportador de alimentos e minérios.
Difícil imaginar melhor demonstração de saudade do tempo
colonial. O texto é pródigo em revisões históricas
esdrúxulas. Segue a contrapelo da literatura reveladora da
dívida social legada pelo escravismo e pela concentração da
terra e da renda. Defende obstinadamente o primado
patriarcal. Desconhece os gritos dos afrodescendentes. No
afã de glorificar o passado, o Instituto Federalista, uma das
três entidades que respondem formalmente pelo “Projeto de
Nação”, afirma que deseja “promover uma mudança de
mentalidade” de modo a resgatar as “raízes democráticas
originárias” dos primórdios da colonização.
A análise das propostas para que o Brasil retorne ao
passado de exportador de commodities é desenvolvida
nesta coletânea por diversos autores. Rodrigo Medeiros
ressalta que não há como discutir as perspectivas do país
ignorando a insegurança alimentar. Juliane Furno,
retomando Celso Furtado, mostra como o retorno do
liberalismo primário-exportador interrompe o modelo de
desenvolvimento que visava a autonomia do país, deixando
aos governantes a condição de liquidatários da promessa de
futuro melhor. Daví Antunes e Marília Tunes Mazon
desmontam a mitologia relativa ao desenvolvimento
baseado no agronegócio.
A realidade apresentada no documento em análise é de
tal forma repleta de lacunas que torna o Brasil
irreconhecível. Entre estas lacunas inaceitáveis está a
ausência dos trabalhadores que alimentam os brasileiros.
João Pedro Stédile comparece neste livro propondo uma
agricultura destinada a eliminar a fome com alimentos
saudáveis por meio de tecnologias que protejam a natureza.
Este modelo pressupõe a democratização do acesso à terra,
notadamente em áreas próximas às cidades, de forma a
baratear a logística de distribuição. Requer ainda a
disseminação de conhecimentos técnicos da agroecologia e
a fabricação de bioinsumos, máquinas e implementos que
reduzam a dureza do trabalho agrícola e aumentem a
produtividade.
A análise do sonho de eternizar o Brasil na condição de
exportador de commodities é enriquecida com o capítulo de
Ricardo Ruiz sobre a exportação de minérios. A mineração
gera pouca oportunidade de emprego, não estimula a
diversificação de atividades de que precisamos, expõe os
brasileiros às flutuações de uma demanda sobre a qual não
têm controle, aprofunda nossa vulnerabilidade estratégica e
agride a natureza. Nada disso comove os autores do
“Projeto de Nação”.
O documento prima pela falta de criatividade. Como já
referido, suas proposições se assentam em teses
desenvolvidas por neoconservadores estadunidenses, para
os quais o ambiente universitário tornou-se inimigo da
sociedade em decorrência da falta de respeito aos valores
tradicionais. A universidade é percebida como celeiro de
perversos dedicados a solapar os fundamentos da
sociedade brasileira.
João Carlos Sales responde aos detratores do ensino
superior: a universidade pública, autônoma, democrática,
acessível, criadora, livre de amarras, sintonizada com os
anseios da sociedade é instrumento libertário. Apenas os
inimigos do povo se interessam em estigmatizá-la e sufocá-
la.
A pesquisa e a inovação são referenciadas no
documento dos militares de forma inconsistente e confusa,
própria dos que tomam o mundo acadêmico como inimigo e
endossam o negacionismo assumido pelos atuais
governantes. Luiz Martins Melo apresenta o papel
estratégico dos sistemas nacionais geradores de progresso
técnico enquanto assino, com Olival Freire Júnior, anotações
sobre a postura dos militares frente à produção do
conhecimento científico no Brasil.
A noção mais precisa do que os autores do “Projeto de
Nação” pretendem em relação à educação dos brasileiros
está na proposta de militarização de escolas públicas,
analisada por Catarina de Almeida Santos. Este quesito é
provavelmente o que mais desrespeita o ordenamento
constitucional. Hoje, milhares de crianças e adolescentes
são instruídos no espírito da caserna. As chamadas “escolas
cívico-militares” atentam contra a aspiração por um país
democrático.
A negação do valor da ciência por parte dos governantes
custou a vida de centenas de milhares de brasileiros na
pandemia da Covid-19. O “Projeto de Nação” ignora as
lições da tragédia. A perversidade de seus autores revela-se
ainda mais integralmente com as propostas de desmonte do
aparato estatal de saúde, analisadas nesta coletânea por
José Gomes Temporão e Walter Cintra Ferreira Junior.
Há muitas décadas, a defesa da Amazônia tem sido
realçada como argumento legitimador de gastos públicos
com as corporações militares. Os apelos neste sentido são
caricaturais: os brasileiros assistem com frequência
soldados de armas na mão singrando rios na densa mata.
Na Amazônia, o Exército forma “rambos” preparados para a
guerra na floresta, que chamam de “selva”. Os que pagam
a conta são levados a imaginar que a região esteja
protegida por guerreiros indômitos.
Não obstante o saldo catastrófico da intervenção da
última ditadura militar na Amazônia, que exibe índices
vergonhosos de pobreza, numerosos generais se
apresentam como habilitados a planejar sua integração ao
desenvolvimento brasileiro. A Amazônia desponta como
tema privilegiado no “Projeto de Nação”. Trata-se de
assunto explosivo, posto que diretamente relacionado a
inquietantes problemas ambientais e humanitários.
Nesta coletânea, assino com Adriana Marques e Gustavo
Guerreiro comentários às propostas castrenses para a
Amazônia. Consideramos que não há demonstração mais
eloquente da índole colonial das fileiras do que sua postura
diante dos povos originários. Ennio Candotti e Eron Bezerra,
ao dissertarem sobre o que fazer na região, desnudam a
fragilidade da visão tecnocrática dos militares. Por sua vez,
Cristina Serra relembra catástrofes ambientais e sublinha
que a mentalidade dos autores do “Projeto de Nação” nos
reserva um futuro triste.
Uma das propostas inverossímeis no documento em
exame é alcançar o que seus autores denominam de
“Coesão nacional e sentimento coletivo de Pátria”. Ao
analisá-la, Roberto Amaral inicia por algo elementar: coesão
pressupõe a atração de indivíduos; requer o atendimento a
anseios concretos e a disseminação da crença em um
projeto comum. Ocorre, afirma Amaral, que a proposta
castrense não faz remissão a esse mundo: ignora
contenciosos históricos, desconhece os sofrimentos da
maioria, passa ao largo de demandas inadiáveis. No lugar
de coesão social, a inspiração liberal-conservadora
aprofunda a fragmentação da comunidade nacional.
Mônica Dias Martins considera que o projeto castrense
compreende a preservação da estrutura patriarcal, machista
e homofóbica da nossa sociedade e sublinha o desrespeito
com as mulheres, que compõem a maioria. A democracia
prometida pelos pretensos projetista do futuro é falsa,
observa Lincoln de Abreu Penna, porque elege como modelo
uma estrutura de poder erigida para o domínio do Ocidente.
Apesar de alegarem se contrapor a “radicalismos” e
“extremismos”, os autores do documento orientam-se pelo
liberalismo radical e pelo conservadorismo extremado.
Partem de uma noção corrente entre os intelectuais
autoritários desde a República Velha (1889-1930), para
quem a representação política e a burocracia estatal seriam
cronicamente despreparadas e corruptas.
O que os militares propõem como modelo de gestão
para assegurar a consecução de seu futurismo
conservador?
Piero Leirner assinala que a reforma nas instituições de
governo já está em curso há algum tempo e resulta do fato
de os militares emprestarem à política categorias usadas na
guerra. Suas iniciativas se desenvolvem a partir de um
“sistema híbrido”.
O “Projeto de Nação” imagina que, em 2035, estaria
estabelecido um “Centro de Governo” (CdG) preparado para
superar obstáculos, orientar, coordenar e “garantir a
convergência de estratégias e ações estratégicas” por meio
de “aplicação de técnicas, ferramentas e práticas flexíveis e
adequadas às diferentes realidades existentes entre
instituições e nas unidades da federação”.
No desenho militarista, a Secretaria de Assuntos
Estratégicos teria sido elevada ao nível de superministério,
capaz de conduzir um “Sistema Integrado de Gestão
Estratégica” com capacidade para orientar e acompanhar
todos os órgãos administrativos. Um arcabouço legal estaria
montado para o Estado cumprir suas atribuições de garantir
o desenvolvimento, a segurança e o bem-estar da Nação.
Piero Leirner lista as iniciativas legislativas em curso
para configurar um país dominado pela vontade castrense.
Sua análise é complementada por Guilherme Lemos, que
disserta sobre a estrutura administrativa preconizada.
Regimes totalitários necessitam de serviços de
inteligência bem estruturados e orientados. A concepção
militarista desta atividade do Estado é estudada por Priscila
Carlos Brandão e Ana Penido.
Como se explica que os militares brasileiros, depois de
experimentarem reprovação pelo exercício de poderes
ditatoriais, ousem formular proposições tão abrangentes e
agressivas?
Marcio Pochmann oferece uma possibilidade de
explicação ao apontar o surgimento de uma nova
tecnocracia antidesenvolvimentista, que compreenderia os
militares. A tecnocracia adventícia seria legitimada por meio
de valores mercantis adotados no comportamento em
relação ao público. Face à sua apregoada competência,
ganharia importância na tomada de decisões e no exercício
de poder.
As mudanças ocasionadas no interior do establishment
se desenvolvem desde o ingresso passivo e subordinado do
Brasil na onda globalizante dos anos 1990. Para Pochmann,
é nesta época que a maioria política antidesenvolvimentista
se consolida.
A valorização de técnicas gerenciais na formação
profissional dos militares ocorre desde então. Hoje, a
mentalidade “gerencialista” está integrada à cultura das
corporações armadas. Trata-se de um fenômeno inspirado
na “revolução dos assuntos militares” ocorrida nos Estados
Unidos no período em que começou a circular a ideia de
unipolaridade.
O Brasil em 2035 desenhado por militares não venceu os
tormentos em que se debate ao longo da história: a
desigualdade de renda e de oportunidades, a exclusão
social legada pelo escravismo colonial, a mentalidade
predatória, o atrelamento a potencias estrangeiras. Em
consequência, o Estado mantém esquema repressivo
garantidor da segurança dos de cima contra os impulsos
mudancistas dos de baixo.
O delírio militarista pressupõe supressão das liberdades.
Como registra Luiz Eduardo Soares, sequestrado o último
vestígio democrático, a soberania popular é encarnada pela
vontade dos detentores da força. A pretensão militarista não
se resume ao controle das instituições armadas, mas
compreende também a subtração da autoridade civil e a
subordinação da ordem política.
No que diz respeito à segurança pública, o documento
utiliza categorias do senso comum e não considera o
conhecimento acumulado sobre o tema. Assinala Luiz
Eduardo: negligencia evidências disponíveis e confunde
autodescrições formais das instituições com seu
desempenho efetivo. Em consequência, agride a
racionalidade, indicando a intensificação de práticas que
apenas agravam os problemas. A violência policial letal,
assim como a desigualdade e o racismo são abstraídos no
tratamento da segurança pública.
Contudo, para Luiz Eduardo, seria incorreto tratar o
documento como um amontoado invertebrado de
enunciados. Sob a colcha de retalhos, há uma estrutura
ideológico-política que articula diagnósticos e proposições
mirando a tutela castrense sobre a sociedade e o Estado.
O capítulo redigido por Éder Luiz Martins e Denis Maracci
Gimenez sobre a formação do policial-soldado confirma o
que o “Projeto de Nação” pretendeu ignorar: o Estado
dedica-se a formar homens que percebem a cidadania como
inimiga.
Em consequência, temos um sistema prisional
arrepiante. Michel Misse o descreve como inteiramente fora
da ordem legal, com superpopulação sistêmica, com
práticas de tortura normalizadas, enfim, um depósito
imundo de gente pobre, predominantemente negra,
invisível para a maior parte da sociedade. As condições
ignóbeis das prisões brasileiras são conhecidas desde
sempre. Espalhadas por todo o país, mostram, aos que
querem ver, os desdobramentos do colonialismo escravista
gerador da sociedade brasileira.
Escrevi o último capítulo desse livro com Marcelo
Pimentel Jorge de Souza. Tratamos das proposições relativas
à Defesa nacional. Trabalhamos intrigados com o fato de o
“Projeto de Nação” oferecer tão pouca atenção à
especialidade de seus autores. São admiráveis a
superficialidade, as imprecisões, generalizações e
contradições presentes nas duas páginas dedicadas à
Defesa. Assuntos militares propriamente ditos, como as
missões, a composição, organização e as capacidades dos
instrumentos de força do Estado não são tratados. Os
militares que elaboraram esse documento estiveram mais
voltados para firmar suas posições político-ideológicas e
projetar sua vontade de domínio sobre a nação, que
percebem como dádiva do quartel.
Há quem imagine a obra inspirada pelo general Villas
Bôas e seus camaradas como algo a ser menosprezado. Os
autores reunidos nesta coletânea não raciocinam desta
forma. Compreendem tratar-se de uma publicação
reveladora do pensamento de profissionais das armas que
nunca abdicaram da pretensão de conduzir os destinos do
Brasil. Não há sinais de que possam mudar de postura.
Aliás, de índole.

Manuel Domingos Neto


Parnaíba, 25 de agosto de 2022
A música que a banda toca
Marcelo Godoy[1]
A solenidade começou às 19 horas no auditório da
Poupex, em Brasília. Para quem não conhece o lugar,
importante é saber que se trata de uma organização
privada mantida com dinheiro de militares do Exército. A
sede fica no Setor Militar Urbano, na capital do País. Um
conjunto de bandeiras dos estados e a do Brasil foi posto no
fundo do palco, atrás da tribuna no qual seriam feitos os
discursos. Ela seria logo ocupada pelos diretores de três
institutos: o Sagres, o Federalista e o Villas Bôas, que se
sucederam para apresentar um documento de 93 páginas.
Tratava-se do “Projeto de Nação”.
Cada um dos oradores procurou enfatizar o suposto
caráter privado do documento e a colaboração de civis e de
militares para a confecção das propostas. Diziam que do
governo não saiu um tostão para financiar o trabalho; que o
trabalho foi voluntário. Não apenas se buscava dissociar o
documento do governo de Jair Bolsonaro, mas também das
Forças Armadas.
Toda a aposta era tratar o trabalho como um documento
suprapartidário, acima das paixões e ideologias, para assim
apresentá-lo como um manual para futuras administrações,
criando estabilidade ao País.
Os autores mal escondiam o desejo de manter a política
sob tutela de um documento e do órgão burocrático
encarregado de vigiá-lo, executá-lo, como se em uma
democracia fosse um estamento – e não a Constituição –
que pudesse dizer aos governantes eleitos o que fazer e não
o contrário.
Ninguém percebeu ou se importou em perguntar se a
proposta não usurpa a soberania popular expressa no voto,
como se os 57 milhões de votos recebidos pelo atual
governo fossem eternos e representassem a única e
legítima visão de mundo, a alma indivisível da Nação.
A solenidade, porém, foi composta não apenas de
discursos e documentos, mas também de símbolos e sinais
que também ajudam a iluminar a superfície das declarações
no palco da Poupex. Eles revelam uma promiscuidade
imprópria que se pretendia negar entre institutos privados,
o governo e as Forças Armadas. Uma meia dúzia deles se
apresentou aos olhos dos observadores que compareceram
à cerimônia ou assistiram pela internet a transmissão ao
vivo feita pelo Instituto Sagres.
O primeiro sinal foi a presença do vice-presidente da
República, o general Hamilton Mourão. Disse Mourão sobre
o projeto: “É um trabalho inédito. Tem a grande finalidade
de dar um rumo que tanto precisamos neste momento que
vivemos no nosso País”. Não é todo evento particular ou de
lançamento de algum tipo de documento que pode contar
com o prestígio daquele que ocupa o segundo cargo mais
alto do Executivo. Mesmo que o vice-presidente seja
considerado carta fora do baralho nos corredores dos
palácios de Brasília, ele é ainda um ator político importante.
Simboliza a presença dos militares no governo e suas
ligações com o projeto. Mourão estava ali porque,
certamente, concorda com muito do que ouviu e está
expresso no documento.
Antes dele, foi a vez do coordenador do projeto, o
general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, contar à
plateia sua visão a respeito do documento. Começou com a
declaração protocolar de que fora autorizado pelo vice-
presidente para fazer a apresentação do “Projeto de Nação”.
E revelou como os institutos receberam apoio do governo e
do vice-presidente. De acordo com ele, os ministérios
usaram suas estruturas para distribuírem questionários da
pesquisa pelo País, cujas respostas moldaram o documento
final.
“Tivemos o apoio do general Mourão, que nos permitiu ir
aos ministérios, não para receber o mailing dos ministérios,
mas para levar a consulta aos ministérios, que poderiam
disseminar a consulta pelo Brasil todo, eles mesmos, os
ministérios. A consulta foi para todo o Brasil. Mais de 2,5 mil
pessoas responderam”, afirmou Rocha Paiva. Assim é fácil.
Se não houvesse a logística pública – e ela foi confessada –
a pesquisa não teria sido possível. O general parece
acreditar que o favor não tem custo, que a máquina pública
pode ser mobilizada para quebrar o galho de um amigo.
Na plateia estava o chefe do Estado-Maior do Exército,
general Valério Stumpf. Eis outro sinal interessante. Para
marcar que fora ao evento sem representar o Exército, o
general vestia trajes civis. Mas isso não foi mostrado aos
que estavam acompanhando a solenidade pela internet. Só
quem estava no auditório e o conhecesse poderia ver o
cuidado tomado pelo militar que, ao contrário de Mourão,
não discursou no evento. Teve, no entanto, o nome
anunciado até pelo vice-presidente, quando Mourão
discursou na solenidade.
O mestre de cerimônia também não esqueceu de
anunciar outra presença curiosa em um evento particular: a
banda do Regimento de Cavalaria de Guardas, os Dragões
da Independência. Foi ela quem cuidou da trilha sonora da
solenidade e da execução do Hino Nacional. Ela dividiu essa
tarefa com outro símbolo presente na festa: o Coral do
Colégio Militar do Distrito Federal. Foram os jovens
estudantes que abrilhantaram o evento cantando Aquarela
do Brasil.
Nos dias que se seguiram ao evento, generais próximos
ao Comando alertaram a interlocutores civis que o projeto
não se “coadunava com o pensamento e o comportamento
da Força”, porque ela “sempre foi aberta ao diálogo”, como
provaria a postura da instituição no pós-regime militar.
Pelo argumento dos generais, um estudo prospectivo
não seria aceito no Exército se matizado ideologicamente,
como era o caso daquele proposto pelos três institutos. O
“Projeto de Nação” afrontaria “visceralmente a didática da
construção de cenários”.
Por fim, alegava-se que, se o Exército quisesse dar
conotação institucional ao projeto, teria se associado ao
projeto através do Centro de Estudos Estratégicos, mas não
o fez. Eis os principais argumentos dos que reagiram à
associação do documento à Força Terrestre.
Os militares reconheceram que a sombra do general
Villas Bôas, ex-comandante do Exército, fortalecia a equipe
promotora do estudo e aumentava a intensidade da
associação entre os autores do projeto e a Instituição. Não
só. Se o desejo do Comando era evitar que o evento
ganhasse ares oficiais, a presença da banda dos Dragões da
Independência e do Coral do Colégio Militar apontava
justamente no sentido contrário. Nada disso se moveria
nem se apresentaria no auditório da Poupex sem ordem
superior.
Admite-se que seja difícil negar a colegas com os quais
até ontem se dividia o quartel-general a cessão da fanfarra
e dos jovens cantores. Tudo pode parecer inofensivo. Mas
não é. No passado, o muro entre o governo e a instituição
militar se liquefez na República cada vez que civis procuram
os militares para resolver querelas. Agora, não são mais os
civis que procuram os militares da ativa, mas seus colegas
da reserva que ocupam cargos na Esplanada e pretendem
manter o poder para executar um projeto que não é
conservador nem liberal, mas reacionário. Prega-se a
cobrança de mensalidades de universidades públicas e o
fim da gratuidade no SUS. Mas se reserva a austeridade ao
povo, pois não se mexe um milímetro nos privilégios de
militares. Ficam intocadas aposentadorias integrais e a
paridade de vencimentos com a ativa bem como suas
gratificações e auxílios.
Assim, o tratamento diferenciado entre civis e militares é
outro símbolo da origem do documento, além do uso da
estrutura dos ministérios em um governo em que 6 mil
militares ocupam funções civis. “Alguém aqui não quer esse
Brasil?” questionou Rocha Paiva sobre as medidas previstas
no documento. “Ninguém mais pode dizer que o Brasil não
tem projeto de nação. Tem. Não interessa a autoria. O
projeto não tem dono, apenas autores”, afirmou Rocha
Paiva.
O discurso do general esconde um embuste. A própria
confecção do documento não teria sido possível se o projeto
não fosse a expressão de pensamentos compartilhados
pelos militares pelo simples fato de que é difícil acreditar
que os ministérios do governo Bolsonaro aceitassem pôr à
disposição a mesma rede logística para a elaboração de
trabalho igual patrocinado pelo Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra.
Mas foi quase no fim da cerimônia, quando o professor
Joanisval Brito Gonçalves, secretário adjunto da Secretaria
de Assuntos Estratégicos (SAE), da Presidência da
República, subiu ao palco que se dissipou qualquer
dubiedade. A fanfarra dos Dragões da Independência tocou
Eu Te Amo Meu Brasil enquanto o professor recebia seu
exemplar do projeto.
Composta por Dom e Ravel, a música se tornou um dos
símbolos da ditadura militar. Ninguém se preocupou em
mudar a trilha sonora. Melhor assim. Nada mais apropriado
para saber que música a banda toca.
Socioleto militarista-autoritário
Francisco Carlos Teixeira da Silva[2]

“Eu não tento prever o futuro. Eu tento preveni-lo”


Ray Bradbury
Utopia: “Qualquer descrição imaginativa de uma
sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em
instituições político-econômicas verdadeiramente
comprometidas com o bem-estar da coletividade”.
Uma definição simples e escolar de utopia não seria
perigosa nem assustadora. Talvez fosse, em outros tempos,
um problema apenas para seus autores. No entanto, no
texto que vamos analisar, “Projeto de Nação”, uma espécie
de utopia social, política e intelectual forjada a partir de um
locus militar e a partir de um socioleto militarista (estamos
aqui adiantando nossa tese central de trabalho) sua
realização seria, de fato, grave risco para um conjunto
imenso de pessoas e o próprio destino do país.
O mote de trabalho proposto a partir de Ray Bradbury,
autor da obra talvez mais instigante e aterradora da ficção
científica, “Fahrenheit 451”, é, contudo, uma temática post
factum. Sim, o grande terror de “Fahrenheit 451” já havia
acontecido quando o livro foi publicado em 1953. A “Grande
Queima de Livros” pelos nazistas – “Bücherverbrennung” –
se deu em 10 de maio de 1933, com a destruição pública de
obras de Walter Benjamin, Sigmund Freud, Karl Marx,
Thomas Mann entre outras, como autores “degenerados”,
“ideologias judias” ou “não germânicas”. Bradbury pode
assustar milhões de pessoas com um gênero não muito
novo de literatura: a profecia post factum. Tratava-se do
risco “...de repetir o passado – para citar o muito suspeito
professor Ernst Nolte – que se nega a passar”.
É nessa direção que o “Projeto de Nação” se inscreve:
um velho gênero literário, fantasiado de exercício de
cenarização, de projeção matemático-estatístico e, no
entanto, assume a forma de uma profecia e como “veículo”
recorre a um socioleto corrente no ambiente militar.
É sobre essa forma literária antiga e esse veículo
vernacular que vamos trabalhar.
Quem fala?
Desde o primeiro momento em face do “Projeto de
Nação”, sabendo de sua origem, da cerimônia de
lançamento e sua celebração, nos deparamos com a
pergunta necessária: quem são seus autores “materiais” e
“intelectuais”, seu lugar social de fala – e aqui nos
referíamos a Michel de Certeau (“A Escrita da História”) e
sua análise da “Operação Historiográfica”.
A remissão da ficha catalográfica aponta para uma
fundação – “Sagres”, um ente coletivo – enquanto a
segunda capa identifica dois autores, um “general” e uma
“professora”. Ao final do texto, consta uma lista de
“autores” do “Projeto de Nação” com sete nomes de
“revisores”, sendo que dois são generais, Alberto Mendes
Cardoso e Maynard Santa Rosa, e um coronel, Abreu Sturari.
Outros dois são embaixadores, Camilo Torres e Macedo
Soares, e um professor, Veléz Rodrigues, ex-ministro da
Educação do governo Bolsonaro, demitido no curso de uma
imensa polêmica sobre sua capacidade de gestão da imensa
máquina pública. Coube largamente a Velez Rodrigues
colocar de volta na agenda pública a questão da
revisão/negação nos livros didáticos da História da Ditadura
Civil-militar entre 1964 e 1985/8.
Acrescentamos ainda uma lista de trinta membros do
próprio “Instituto Sagres” e mais dois nomes In Memoriam.
Ou seja, temos uma lista de quarenta “autores” atribuíveis
ao “Projeto de Nação”.
Temos aqui, em relação ao conceito original de “lugar
social de fala”, conforme propõe Michel de Certeau, uma
dificuldade: a natureza autoral do texto em questão. Ou se
trata de um imenso trabalho coletivo de grande
envergadura, ou foi realizado de forma autoral pelo duo de
capa – o general Rocha Paiva e a professora Maria Veronica
Korillo Campos – e submetido a uma “revisão” e
comentários pelo grupo de “revisores” – de fato, um grupo
“de notáveis”. A lista de “Membros do Instituto Sagres”
funcionaria como exatamente isso, uma lista de notáveis.
É bastante provável que alguns tenham sido chamados a
contribuir em virtude de sua formação e expertise
acadêmica mas, no entanto, a redação, forma e
desdobramento do documento – e veremos isso à frente –
guarda uma natureza tal que aponta para uma autoria mais
centrada e resultante de um longo período de experiências
e trabalhos muito semelhantes, embora não tão
estruturados e orgânicos, com o ambiente militar espelhado
no “Projeto de Nação”.
Cabe desde logo alguns esclarecimentos sobre o
universo mental e ideológico sob o qual o “Projeto de
Nação” é organizado.
Em primeiro lugar, a presença da “Fundação Sagres”: um
vasto complexo de entidades de educação informal, privada
(dita de interesse público) criada em 1942, em Goiânia –
quando da fundação oficial da cidade, pelo Estado Novo
varguista. Em seguida vemos a visão positivista-integralista
da História do Brasil, com a versão da existência real de
uma “Escola de Sagres” montada e dirigida para desbravar
os mares pelo Infante Dom Henrique. Neste sentido, a
historiografia do Estado Novo recepcionou plenamente a
Historiografia nacionalista do Estado Novo salazarista
português e manteve-se acrítica e, ainda hoje, quando se
discute, com clareza, o “mito” da existência de uma “Escola
de Sagres” em Portugal. No entanto, mantemos em nossos
currículos escolares como certa a existência, em Sagres, de
uma “Escola de Navegadores”.
Uma outra questão reside em torno do “lugar de fala” da
lista de celebridades dos revisores. Vejamos quem são a
partir dos generais. Alberto Cardoso, nascido em 1940
(portanto com 82) foi o idealizador do Gabinete de
Segurança Institucional/GSI e seu primeiro “Ministro Chefe”.
É especialista em Inteligência, Contra Insurreição e um leitor
criativo de Sun-Tzu. Maynard Santa Rosa, figura chave em
todo esquema militar bolsonarista durante o período
eleitoral e na sua aceitação entre os oficiais superiores.
Trouxe para a agenda de governo uma visão orgânica de
mundo e do papel do Brasil nas relações internacionais, em
especial em face das chamadas “Ongs”, do seu papel na
Amazônia e na construção dos conceitos de “globalismo” e
“internacionalismo” do Grande Capital, muito próximo de
Olavo de Carvalho. Propôs uma série de obras gigantescas
na Região Amazônica, inclusive em terras indígenas,
visando a sua “definitiva integração ao país e ainda uma
“Reforma Política” em face do desequilíbrio dos “Três
Poderes” e as ingerências do Poder Judiciário, dito ativismo,
nas demais esferas da gestão pública. Sem dúvida,
malgrado a sua saída brutal do Governo, em 2019, suas
ideias permaneceram – ao menos na fala do bolsonarismo –
como parte fundamental da agenda atual de governo.
Já Velez Rodrigues, é um ex-ministro da Educação, cuja
administração foi marcada pela profunda crise de gestão e
inaptidão administrativa, com forte viés de perseguição
político-ideológica a partir da assunção de uma agenda de
Educação para o Brasil baseada nas ideias de Olavo de
Carvalho – que explicita sua influência sobre o governo para
em seguida ensaiar um rompimento – desencadeando uma
“guerra interna” no MEC e uma forte oposição aos próprios
militares. Cabe acrescentar que coube a Rodriguez abrir a
questão da “Revisão da Revolução de 1964”, tema até
então, relativamente consensuado em torno do conceito de
“Ditadura Civil-militar” de 1964-1988, com uma “abertura”
proposta e, de certa forma patrocinada, pelos próprios
militares. A proposta de Rodriguez de “desideologizar” o
livro didático, de revisão negacionista em especial em
relação a existência da ditadura, de torturas e sequestros
reabriu no país um amplo debate sobre a natureza de 1964,
do AI-5, da participação dos militares no regime e sua
comparação com o governo Bolsonaro, mobilizou a
comunidade acadêmica.
Um outro “autor” assinalado do “Projeto de Nação”, Raul
José de Abreu Sturari, coronel do Exército com dois
doutorados, um na Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército (Eceme) e outro na Escola de Guerra Naval (EGN), é
especialista em cenários. Isso é importante em estudos das
“relações entre civis e militares”, com alta capacidade de
abstração e instrumentalização e modelagem de recursos
cibernéticos. Na verdade, a presença do coronel Sturari
aponta para recursos bastante superiores àqueles aplicados
ao “Projeto de Nação” e, com certeza, à sua forma muito
pouco ortodoxa de trabalho de sistemas de previsão
normalmente utilizados por aqueles no mundo de negócios,
finanças, militares e outros.
Quem, pois, representam tais pessoas? Essa é a questão
imediata, após uma identificação precária, da autoria do
“Projeto de Nação”. O que podemos dizer é que, mesmo
parecendo muito com o bolso-fascismo, não são tipicamente
representantes do bolsonarismo e foram liminarmente
expelidos ao longo do governo Bolsonaro. Ou imaginavam
“tutelar” o capitão-mito ou estavam mais além da “direita”
do próprio capitão, criando estridências em situações
difíceis para o governo. No momento em que a díade
Esquerda-Direita é uma topológica, tais pessoas – que foram
para o Governo em cargos subalternos e puramente
ideológicos, como o próprio general Rocha Paiva, ou foram
excluídos, como o general Santa Rosa – explicitam uma
extremidade da díade ainda não alcançada pelo
bolsonarismo e, contudo, expressa no “Projeto de Nação”.
Estamos aqui perante a um fenômeno duplo.
1. Aquilo que Max Weber denomina de “vantagem do
pequeno número”, ou seja, a “...possibilidade que tem os
membros de uma minoria dominante de pôr-se rapidamente
de acordo e criar e dirigir sistematicamente uma ação
societária e racionalmente ordenada, encaminhada para
conservação de sua posição dirigente”. Tal “pequeno
número” representa um grupo dentro das Forças Militares
que, em verdade, não representa o conjunto dos “militares”
ou mesmo as próprias Forças Armadas – por exemplo,
oficialidade média ou cabos e sargentos –, mas um grupo
que se aferra ao poder com a dificuldade paralela
exponencial ao crescimento do próprio grupo dos
dominadores. Forma-se, assim o que Weber denomina de
“aparato de mando”, construindo, desta forma, uma relação
entre os dominadores e os dominados mediada pela ação
desse conjunto de pessoas e formas sociais que se colocam
à disposição daqueles que possuem o mando e para os
quais organizam a economia política da dominação.
2. A ocultação desse aparato e do papel de tais
mediadores. Esse ponto é tarefa fundamental para garantir
a legitimidade da dominação. O “Projeto de Nação” é, para
além de sua pretensa cenarização, um claro esforço de
ocultação do aparato de mando dos dominadores por
intermédio da construção ideológico-discursiva, via um
socioleto, de um mundo melhor, para o qual caminhamos a
partir de um rompimento com a ordem democrática – como
veremos em seguida.
Como falam?
Victor Klemperer (1881-1960), um filólogo que viveu sob
o Terceiro Reich, pôde perceber e analisar “desde dentro” a
torção e o torturamento da língua alemã como um
fenômeno próprio da construção do nazismo e da sua
“normalização”.
O uso do idioma e a construção de um verdadeiro
socioleto, por vezes um “idioleto” ampliado – quando se
chega à ausência de sentido, aos anacolutos bruscos, ao
baixo calão – próprio e empobrecido extensivamente a um
grupo político e social, repleto de chavões e lugares-
comuns, além de metáforas, metonímias e paráfrases, é
capaz de ocultar e evitar o debate, a contradição de ideias e
opiniões e, ao mesmo tempo, apaziguar a ansiedade
coletiva, dando ao indivíduo alcançado pelo mal-estar a
sensação de possuir uma chave universal de interpretação
do mundo.
Coube a Jean Pierre Faye, em “Langages Totalitaires” a
construção do modus operandi pelo qual a linguagem
assume, por esta via de redução da ansiedade, o papel
central de construção inicial do fascismo e das ditaduras de
extrema direita, normalizando as ações extremistas e
preparando, assim, o caminho para a ação política fascista.
Nesse sentido, a linguagem fascista e, por extensão, da
extrema direita, longe de ser uma “cortina de fumaça” –
como muitas vezes se coloca – exerce um importante papel
de normatização do anormal e a fundamental
autoidentificação de grupos políticos. A emergência nos
nossos dias de uma poderosa “galáxia” de grupos,
movimentos, partidos e regimes de extrema/ultradireita,
alguns de características nitidamente
fascistas/fascistizantes, trouxe para a cena política uma fala
fortemente perturbadora, variando entre a proposição de
utopias direitistas até o inumano, passando pelo baixo
calão, recusando o debate e destruindo o espaço público
enquanto a “ágora” para ação comunicativa.
No registro da “disforia” semântica textual, a
comparação entre os termos “Democracia” e “Civismo” na
análise do “Projeto de Nação” revela que “Democracia”
ocorre com a menor frequência enquanto “Civismo”, um
valor da comunidade proponente, supera “Democracia”
como valor universal.
Já o termo “Corrupção”, um elemento disfórico que atrai
de imediato o desconforto e a condenação do auditório
direcionado do “Projeto de Nação” – militares e seus
complementos de classes médias –, alcança o ponto
máximo de frequência, o que justifica e embasa a proposta
fundamental para a qual o “Projeto de Nação” foi redigido: a
“Mudança”, que funciona como uma violenta metonímia
para a interrupção da normalidade democrática –
“Mudança” por “golpe de Estado” – e o estabelecimento de
um Estado de Exceção denominado de “Centro de
Governo”.
O texto em questão apresenta tipicamente a forma de
um socioleto, linguagem específica de um típico grupo com
suas particularidades e singularidades. O socioleto do
“Projeto de Nação” é, ele mesmo, uma emanação de uma
linguagem muito mais ampla, a linguagem das Forças
Armadas, composta de seus próprios lugares, vocábulos,
locuções e principalmente um sem número de abreviações,
quase sempre um elemento “barreira” que distingue e
separa militares de civis.
O socioleto do “Projeto de Nação” é, contudo, em vista
de seu público – embora não direcionado para um público
“em geral”, aberto para um público mais amplo – mais
flexível, menos “cifrado” que a linguagem “dos quartéis”. É
indubitável que podemos seguir seu enraizamento até a
linguagem castrense.
Numa primeira abordagem do socioleto do “Projeto de
Nação” em relação direta com suas origens, podemos
perceber singularidades e tendências para as cifras e
hermetismos, e um inevitável dualismo do bem contra o
mal:
LOCUÇÕES ESTRUTURANTES DO SOCIOLETO
Elementos Elementos
“Eufóricos” “Disfóricos”
Globalismo União/Pátria
Civismo Ativismo
Valores Morais Minorias
Ideais Ideais Radicais
Conservadoras
Desideologização Ideologias
Educação Educação (de
Esquerda)
Sistema Político Sistema Político
(novo) (velho)
Novas Lideranças Velhas
Lideranças
Centro de Judiciário Forte
Governo
Coesão Social Luta de Classes
Ao longo do documento, tanto na sua “Introdução
histórica” quanto nas suas proposições de campo
específico, os elementos “eufóricos” e seus pares
contrários, “disfóricos”, se refazem constantemente como
locuções estruturantes que supõe “cortes” e “quebras”
discursivas, para optar, ao contrário da boa prática, para
apenas um cenário final em 2035. Ficamos, assim, sem
saber qual foi a metodologia utilizada na construção do
mundo de 2035: cenários possíveis? Projeções matemático-
estatísticas?
A autoria opta por uma só forma de enunciação do
futuro em 2035 baseada em um questionário de pessoas
escolhidas previamente (não houve divulgação do número,
locais, perfil dos entrevistados ou do próprio questionário).
Neste sentido, o “Projeto de Nação” é um texto singular, não
permitindo, pela ausência de exposição de sua metodologia,
se enquadrar em nenhuma das situações básicas de
prescrutar o futuro. Sem metodologia para verificação, o
“Projeto de Nação” não deixa de ser, no entanto, um texto
para debate.
Existe uma longa história de documentos similares. O
texto aproxima-se muito de um gênero, como enunciamos,
de profecia, ou seja, uma forma que afirma prever o futuro,
dizer o que pode acontecer num tempo futuro: a prophetia,
com a proficiência das ferramentas de ver à frente, como
explica a própria palavra na sua origem προφητεία –
profetes, à frente, e phanai, falar, mais tarde latinizada e,
daí, passada para a maioria dos demais idiomas ocidentais.
Contudo, ainda como “profecia”, dá-se clara
inconsistência narrativa, causando uma “oscilação”
constante no regime de temporalidade da narrativa do
“Projeto de Nação” como apresentado. O texto introdutório,
na sua pretensão de fazer a história de um tempo futuro,
emerge muito mais como “simulacro” (no sentido
empregado por Baudrillard) do que uma realização,
emulando uma condição “Matrix”.
A proposta trata de três tempos que deveriam ser
claramente definidos: 2035, o tempo “da realização”, em
que o narrador apresenta o “Brasil após a ‘Mudança’”; 2022,
o tempo “do passado” e o tempo “da Mudança”, algum
momento na década de 2020, quando se deu a “a aceitação
da transformação”.
Esses tempos, não se apresentam em ordem “histórica”
sequencial nem em forma de histórica regressiva, mas,
aparentemente confusa, oscilante.
O “regime de tempo” do “Projeto de Nação” que se
pretende um cenário, se realiza como uma forma de
“tempo” futurista, como a descrição de uma sociedade
futura que realizou, para o bem, a maioria das questões que
afligiam sua população.
No entanto, o tempo é fluido, fugidio, escapa do autor e
retorna ao ponto de partida numa necessidade constante de
reafirmação e convencimento do seu próprio movimento,
posto que ainda existem reações e oposições a essa
sociedade de sucesso no futuro e, portanto, o “retrato” do
caos, da corrupção e da desunião do passado – 2022 – deva
ser sempre exposto: “... há ainda reações de diversos
setores”. Mesmo depois de uma década – qual o tempo? –
de felicidade, há uma oposição ao “sistema”.
A necessidade permanente de convencimento, de
sedução pela utopia de 2035, gera uma insegurança sobre o
tempo do bem-estar de que fala o autor.
De onde o autor fala? Há na passagem da página 12
para página 13 uma quebra notável no discurso: no
segundo parágrafo a autoria inicia o texto com a seguinte
forma: “No Brasil, atualmente, é visível a união de esforços
entre determinadas entidades nacionais e o movimento
globalista...”
O “Projeto de Nação” apresenta uma realidade em três
tempos: o presente e o futuro e um passado que flui entre
estes constantemente num efeito de bullet time, onde os
indivíduos assistem ao avanço de realidades competitivas
que acabam por se revelar simulacros.
Ora, estaríamos, ainda, no mundo da Utopia de 2035, no
entanto o advérbio (de tempo) “atualmente” [ainda em
2035] provoca uma quebra no regime de temporalidade do
texto que explicita a dificuldade de gestão argumentativa
dos autores e a insistência na construção do “outro”
conveniente, o inimigo útil na divisão do “nós” e “eles” para
a simplificação da visão de mundo e de Brasil a ser
superado pela “mudança”. O “nós” patriótico – e sujeito
desinencial que fala do futuro – é, pois, moralmente
superior e o “eles”, caracterizado como “... poderosas
lideranças patrimonialistas e fisiológicas, em grande parte
corruptas, e as correntes de pensamento ideológico radical
e liberticida”, inimigas da pátria, devem ser vencidas.
Voltamos aqui ao conceito de “vantagem de pequeno
grupo”, conforme a expressão de Max Weber, ao tratar da
“dominação e dos fundamentos da sua legitimidade” que,
entretanto, sofre dura ameaça quando (1) expande seu
número na colonização do Estado e quando (2) a ocultação
do aparato de mando se torna mais difícil.
Ao longo do texto introdutório toda a história da utopia
de 2035 é uma história da adoção dos valores da
“Estratégia Nacional”, uma coleção de valores cívicos e
morais que distingue os bons daqueles que são maus em
2022. O texto “oscila” entre regimes de tempo explicitando
a insegurança da autoria e, contudo, permite perceber que
haveria um ponto de algidez da crise entre o “velho” e o
“novo” em algum momento na década de 2020, quando a
“Estratégia Nacional” teria sido adotada, origem da utopia
de 2035.
A “Mudança”
A autoria do documento, elíptica, identificada apenas
pelo contexto, permite de forma também oculta, sem
nomeação, operar uma nova disruptiva textual, na página
14, quando informa que a sociedade brasileira começou sua
transformação quando abandonou as estruturas políticas
tradicionais [referência à Constituição de 1988?] “…
passando a seu modo atual”, ou seja, a construção da
Utopia de 2035.
Somos, pois, informados que em “algum momento da
década de 2020” – final do Governo Bolsonaro? – Dá-se
então, através de tal “ruptura” a “adoção” da “Estratégia
Nacional” visando os “Objetivos Nacionais”.
Estamos, então, em pleno domínio do socioleto do
“Projeto de Nação”, do que ele revela e do que ele oculta. É
quase necessário estabelecer um vade mecum da
novilíngua do poder que empolga o Estado e o Governo para
entender os processos em questão. Em primeiro lugar,
estabelecer que se deu uma interrupção do processo legal,
constitucional, de sucessão “em algum momento da década
de 2020”. O que se anuncia aqui, sob a forma de metonímia
para “golpe”, é uma intervenção inconstitucional na
República. Tal intervenção gera um grupo que assume a
“direção do Estado”, daí resultando uma nova entidade não
prevista na Constituição de 1988 (Note Bene: embora a
Constituição seja citada várias vezes no texto, não é citada
expressamente a Constituição de 1988).
Emerge da ruptura, pois, um “Centro de Governo” – uma
outra metonímia, desta vez para “ditadura” – que terá um
papel fundamental, “a partir de algum momento da década
de 2020”, na construção da Utopia de 2035, sendo o
responsável pela “mudança” – um simples substantivo
feminino que no texto tem a função de passar
desapercebido, ocultar, minimizar, a grande transformação
à revelia do “velho sistema político” que permitirá a
formação do “Centro de Governo (CdG) essa entidade
central que assumirá as funções executivas de implantação
da “Estratégia Nacional/EN”.
Ou seja, estamos falando de um golpe de Estado que
implanta um governo autoritário, uma ditadura – uma forma
de metonímia seguida de outra metonímia com a função de
adocicar o texto. É ele que opera e gere o “Sistema
Integrado de Gestão Estratégica-Siege-BR, responsável pela
implementação da “Estratégia Nacional”, onde estão
inscritos os “Objetivos Nacionais” – puro socioleto tecnicista-
militarista-direitista, derivado da novilíngua maior vigente
nas Forças Armadas. Carlos Fico dissertou sobre a
idealização do militar como um “técnico” autônomo,
apolítico e pronto para a gestão pública da República (“O
Regime militar no Brasil”, Saraiva, São Paulo, 2004).
Volta-se, então – para dar alguma credibilidade ao papel
do CdG –, a uma quebra discursiva: “...nos últimos anos, já
é possível afirmar que significativa parcela [qual?] da
população vê a EN como fonte de motivação” (p. 14).
Embora tenha que admitir que as resistências continuem.
No típico realismo militar, a admissão de resistência à
“mudança” se coloca como possibilidade com a qual tenha
que se lidar e reprimir.
Todavia, a Utopia 2035 não para aí. Há detalhes. O
“sistema”, como passa a ser descrito o produto da
“Mudança”, lembrando as ficções de Ray Bradbury, é
efetivado por “coordenadores” e “articuladores”, os
funcionários do CdG, que são flexíveis e contemplam
mudanças.
Na definição de tais “funcionários” emerge, ainda uma
vez de forma elíptica, a própria definição tradicional do
militar vigente de forma quase secular na caserna brasileira:
um agente do progresso, capacitado para gestão científica,
longe do político corrupto e portador de novas práticas e de
múltiplas capacidades.
Esse “autorretrato” complacente – distante da tragédia
da gestão da Covid-19 por um general – continua marcando
as Forças Armadas. Vemos aí a projeção de um diagnóstico
particular da História do Brasil produzido nas escolas e
academias militares que reproduzem tanto a ideologia do
“militar apolítico” quanto da “tutela sobre a República”. Ou,
talvez, de forma mais profunda, seja uma mentalité. O
“Projeto de Nação” tenta exportar como modelo para o
conjunto do país uma matéria-prima da Utopia de 2035.
Contraditoriamente, reafirma a contínua tentação de
segmentos e indivíduos das Forças Armadas de fazer
política, inclusive, política partidária, sob o manto do
apoliticismo. Fazer política sob a afirmação de não fazer
política é um contínuo da tradição brasileira, como explicou
de forma pioneira Alfred Stepan em “Os Militares na
Política”. O texto em pauta reafirma uma tradição que
retoma 1889, 1922, 1930, 1945, 1961, 1964, 1977, 2014,
2016 e a crise atual na Nova República. Ou seja, estamos
em face da necessidade de se buscar onde reside o
elemento reprodutor da “cultura”, habitus, ideologia ou
mentalité constitutiva da “Teoria – ou doutrina – da Tutela
Militar sobre a República”. É a ideia-chave imposta ao
republicanismo brasileiro de conceder uma “licença de
correção de rumo” aos militares, desde a Proclamação da
República e à revelia das constituições republicanas e da
cultura jurídica brasileira, dos chamados males da
República. Tal noção de “Tutela” é espúria ao verdadeiro
republicanismo e, simultaneamente, fonte das inumeráveis
crises.
Sua origem reside na crença da sobrevivência de um
“Quarto Poder”, herdeiro do Poder Moderador do Império
decaído como um tribunal de recursos de todas as causas
da República, passado da figura do último Imperador, em
1889, para as Forças Armadas, o que lhes concederia um
Poder de Intervenção na vida pública brasileira. Os Militares,
pois, veriam a si mesmos como (a) apolíticos e técnicos
competentes; (b) detentores de um pretenso “poder de
Tutela” decorrente da herança do Poder Moderador do
Imperador; (c) os únicos verdadeiramente conhecedores do
país; (d) patriotas acima de todos os demais cidadãos.
Desta forma, estariam aptos a propor a melhor forma de
gerir o país e fundar as leis capazes de administrar a Nação
e mesmo impor “Mudanças” que tivessem que ser feitas à
revelia de compromissos democráticos constitucionais.
A Utopia de 2035 é, assim, uma projeção autoritária dos
únicos competentes e patriotas existentes no país.
Contudo, há resistência.
Projeto de direção do Brasil
Eliézer Rizzo de Oliveira[3]
No primeiro semestre de 2022, o Brasil vive a conjuntura
pré-eleitoral para a renovação da Câmara dos Deputados,
Senado, Assembleias Legislativas e governos estaduais,
mas o destaque é a corrida à Presidência. Para
compreendermos os diversos significados do “Projeto de
Nação”, convém destacar a participação militar no governo
Bolsonaro, tão extensiva que temos hoje o governo de
militares no regime civil. Destacamos também o padrão
autoritário de exercício do poder presidencial de inspiração
fascista: sobretudo a violência verbal, a desvalorização das
instituições democráticas e a permanente ameaça de golpe
militar.
Consideremos três fatores nesse cenário de
recomposição das forças políticas no nível nacional. O
primeiro fator é o próprio presidente Bolsonaro com sua
agressividade, baixo teor institucional, desprezo pelo
sofrimento humano, confronto com o Judiciário, patética
personalidade no plano internacional e, sobretudo, suas
relações com as Forças Armadas. Se depender do capitão
que cultua as armas, não as vacinas, a eleição ocorrerá
somente se a urna eletrônica for submetida a auditagem
física, hoje impossível. Diz que não reconhecerá a derrota
sem o cumprimento desta condição. Na verdade, o
presidente alimenta um golpe contra as instituições
democráticas e colocou a urna eletrônica sob o manto da
Defesa Nacional, tornando-a um tema militar.
O segundo advém dos(as) candidatos(as). Lula é o mais
provável para despedir Bolsonaro do Palácio do Planalto,
mas o jogo eleitoral se encontra apenas no início. Somente
nas urnas se encontrará o resultado no final de outubro. O
último fator: o que fazer com as Forças Armadas, visto que
nosso regime democrático comporta um governo de
militares? De nada adianta anunciar que pretende mandá-
los para casa, como disse Lula, é imperativo ter projeto para
a Defesa Nacional. Até agora, somente o bolsonarismo
cultiva um projeto: precisamente, projeto de continuidade.
O momento é propício para pensar o país. A Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a mais
representativa entidade científica nacional, promove uma
série de seminários chamada “Projeto para um novo Brasil”.
É justo aguardar propostas muito importantes para diversas
áreas. De seu lado, desde 2020, Ciro Gomes divulga
propostas de governo. Em maio, vieram à luz os
documentos “Projeto de Nação e Diretrizes do Programa de
Governo da chapa Lula-Alckmin”. Este é o contexto do
“Projeto de Nação”, que se inscreve na campanha de
reeleição, na continuidade do bolsonarismo com ou sem
Bolsonaro. Suas teses inspiram-se no neoliberalismo
ultraconservador que promove o encolhimento dos espaços
de participação democrática e de direitos sociais e políticos
em diversos países. Sua expressão maior nos Estados
Unidos é o ex-presidente Donald Trump, que bateu de frente
com o sistema de saúde pública implementado pelo
presidente Obama. No início de 2021, derrotado por Biden,
Trump tentou um golpe de Estado. Bolsonaro inspira-se em
Trump e desmoraliza a democracia brasileira.
A Doutrina de Segurança Nacional fornece elementos
conceituais a este projeto de poder: a Estratégia Nacional
(política de governo com fins e meios determinados), os
óbices (as dificuldades a superar) e o Poder Nacional (a
capacidade de atuação composta das expressões política,
econômica, militar e científico-tecnológica, no plano
nacional e no internacional). O “Projeto de Nação” fixa-se
nos quatro primeiros artigos da Constituição de 1988 que
versam sobre os Princípios Fundamentais da nossa
democracia: a soberania, a cidadania, a dignidade das
pessoas, os valores sociais do trabalho e livre iniciativa, o
pluralismo político, o poder que emana do povo (exercido
diretamente ou por representantes), os objetivos da
República e os princípios regentes das relações
internacionais.
No entanto, não incorpora o magnífico artigo 5º que
estatui, dentre outros direitos, a igualdade de todos perante
a lei, a igualdade de homens e mulheres em direitos e
responsabilidades; a busca da erradicação da pobreza; a
proibição da tortura; a liberdade de manifestação, de
pensamento e de culto; a inadmissibilidade de “provas
obtidas por meios ilícitos”; a proibição da “ação de grupos
armados, civis ou miliares, contra a ordem constitucional e o
Estado Democrático”, definida como crime inafiançável e
imprescritível, assim como o terrorismo, o tráfico de drogas
e a tortura.
O “Projeto de Nação” é uma manifestação do “partido
verde-oliva” que pretende permanecer no governo do Brasil.
É por isso que se encaminha ao sistema político, aos
eleitores e aos brasileiros em geral. Aborda inúmeros temas,
alguns de grande relevância.
Passo a comentar alguns que sugerem a militarização da
vida cultural e política, cujos eixos “são a liberdade e a
ordem, com destaque para a liberdade política e econômica
e a ordem social e moral”. Valores liberais também, como a
liberdade com responsabilidade e a “franca oposição ao
coletivismo involuntário, imposto pelo Estado”. A
militarização cultural – ou seja, o controle social com ênfase
no sistema educacional – projeta na sociedade atitudes e
valores próprios do meio militar: “especial atenção está
sendo conferida à valorização de boas práticas de
comportamento, civismo, cidadania e disciplina dos alunos,
bem como à formação e ao aperfeiçoamento de professores
no tocante aos aspectos profissionais, comportamentais,
morais e éticos”. Não sem motivo, alude às escolas cívico-
militares, início da militarização do ensino público.
A educação é examinada sob o prisma da desconfiança,
assim como os direitos humanos, ambientalismo e
indigenismo, cujos atores (progressistas, esquerdistas e
outros) seriam aliados do globalismo; portanto, inimigos
internos. Os(as) docentes politizariam os estudantes para
que não gozassem a liberdade de pensamento, mas se
submetessem à orientação e ideologia dos professores,
militantes sob suspeita: “Tudo era feito para que o aluno
fosse obrigado a pensar exatamente como pensava o
professor, caso contrário não conseguiria se formar e
tampouco seria aceito pelo grupo”. Eu rejeito com
indignação tal afirmação, eu jamais me identifiquei com ela,
tampouco trabalhei em universidade em que tal ocorresse.
Qual a saída, segundo o “Projeto de Nação”? A
introdução da educação moral e cívica, de provável saudosa
memória para os signatários.
Outro instrumento para assegurar a militarização da
educação universitária é a reformulação do “processo de
escolha de reitores das universidades públicas, de modo a
restringir as influências de grupos de interesses políticos,
ideológicos e outros que não voltados ao bem comum”. Ora,
o processo vigente de participação de docentes,
funcionários e estudantes, de um lado, e a deliberação dos
órgãos colegiados na definição dos reitores (e nomeação
por governadores e presidentes), de outro lado, tem o
fundamento constitucional da gestão democrática do ensino
público. Este processo pode merecer aperfeiçoamento, não
o abandono.
Inspirado no fantasmagórico Decreto 477 publicado dois
meses após o AI-5 da ditadura militar, o “Projeto de Nação”
pretende coibir a política na universidade. Justo ao
contrário, é preciso impulsioná-la como ambiente de
cidadania. Pretende, ainda, cobrar das universidades o
oferecimento, com excelência e responsabilidade social, do
ensino, da pesquisa e da extensão seguindo a mentirosa
afirmação de Bolsonaro de que as universidades públicas
não fazem pesquisas. Um exemplo dentre milhares: o
Instituto Butantan, a Universidade de São Paulo e o
Hemocentro de Ribeirão Presto desenvolvem uma terapia
celular contra o câncer, em benefício de milhares de
pessoas, que será provavelmente aplicada pelo SUS: mais
de 50 pesquisadores trabalham há vários anos com o
mesmo objetivo, segundo Dimas Covas, presidente do
Butantan.
Causa espanto que oficiais generais formados em
sistema de educação pública e gratuita, das escolas de
cadetes (com alimentação, saúde, residência, bibliotecas,
equipamentos esportivos e culturais, soldo e contagem de
tempo) aos cursos de Estado-Maior, vinculem-se à
proposição do ensino pago nas universidades públicas.
Prefiro a formulação democrática do jornalista e professor
Eugênio Bucci, da Universidade de São Paulo: a gratuidade
reafirma que todos têm direito à educação superior.
Por fim, até 2035 o documento vislumbra “Neutralizar o
poder das correntes de pensamento ideológico radical e
utópico, que advogam antivalores culturais brasileiros, bem
como um estado centralizador e gestor do desenvolvimento
e do bem-estar da população”. Como fazê-lo senão pela
repressão?
Terminou? Não! O “Projeto de Nação” sugere a cobrança
dos serviços de saúde do SUS.
Implicação do Projeto
na conjuntura e na estratégia
José Genoino[4]
Este capítulo foi elaborado levando em conta os artigos
do companheiro Roberto Amaral, “É preciso compreender o
processo histórico para nele intervir” e “É preciso deter o
golpe que nos ameaça”.
O “Projeto de Nação” apresentado por militares está
inserido no processo em curso desde 2014, que preparou o
golpe de 2016 e resultou na eleição do atual presidente, em
2018. Esse processo teve continuidade na militarização do
governo e do Estado e numa política de intervenção nas
instituições governamentais responsável por políticas que
afetam a sociedade.
Os resultados desse processo são visíveis: a calamidade
social, o agravamento da concentração da renda, o
desgaste ambiental e a entrega do patrimônio público
brasileiro.
O atual contexto faz parte de um histórico de ameaças
constantes ao processo eleitoral de 2022, com sinalização
de riscos para as liberdades políticas. É um contexto de
negação da soberania popular inserida na Constituição.
Não cabem ilusões nem ingenuidade acerca das
iniciativas castrenses. É necessário denunciar as tentativas
golpistas e as ameaças de uso da violência. Está claro o
interesse em dar continuidade ao golpe de 2016 através de
formas autoritárias, sejam militares, sejam híbridas, sejam
amparadas nos instrumentos milicianos, em setores da
segurança pública, da segurança privada e da própria
reserva militar.
O “Projeto de Nação” posto em debate se apoia em
valores conservadores e autoritários. Foi lançado com apoio
de aparato institucional: a Secretaria de Comunicação Social
e a Fanfarra da Cavalaria de Guardas. O Vice-Presidente da
República esteve presente. O lançamento demonstrou a
tutela exercida sobre o governo. Os militares agiram como
donos da nação e do Estado. Revelaram acentuada
autonomia e interesse em protagonizar a definição do futuro
do Brasil.
Ao invés de partirem de pesquisas da realidade
brasileira, partem de uma conceituação valorativa tendo
como fundamento o autoritarismo e o conservadorismo
típicos da ofensiva da direita, inclusive no plano mundial.
Demonstram de forma tosca e descarada a adesão ao
modelo econômico neoliberal e aos postulados do que
chamam de “conservadorismo evolucionista”.
Revelaram-se ainda “antiglobalistas”, algo indefinido,
confuso, mas de claro teor regressista. Não se
constrangeram em admitir como missão do aparelho militar
se pronunciar sobre questões que dizem respeito ao poder
político e à sociedade, o que é um absurdo.
O documento lançado fortalece as tentativas de
militarização do governo e da sociedade. Representa uma
iniciativa de conturbação política e institucional às vésperas
de uma eleição decisiva.
Além disso, reflete algo mais profundo: demonstra a
ideia de as Forças Armadas serem fundadoras da nação e
donas da própria sociedade. Mostra autoritariamente a
grande autonomia em relação às instituições republicanas,
como se não tivessem que prestar contas a ninguém e não
admitissem qualquer controle. Trata a sociedade de maneira
inferiorizada e a política como algo errado ou nocivo. Revela
o elitismo conservador e o fortalecimento do espírito de
casta, inclusive quando se referem às questões corporativas
das Forças Armadas.
Os militares pretendem usar a aplicação da garantia da
Lei e da Ordem para legitimar sua tutela. A ideia de agir
para assegurar a Lei e a Ordem está em todas as
constituições brasileiras, até mesmo as da época do
Império, para legalizar e legitimar as intervenções
castrenses. Os militares usam esse dispositivo
constitucional para viabilizar o processo de construção do
autoritarismo conservador, de um mandonismo sobre as
instituições, baseados na ideia de que existe “inimigo
interno” e guerra cultural. Alegam ainda a falsa ideia de um
“marxismo cultural” e de que é preciso combater o
“politicamente correto”.
O documento propõe muitas coisas para o Estado e a
sociedade, mas pouco se refere à Defesa Nacional
propriamente dita. Não demonstra preocupação efetiva com
a preservação dos interesses do país diante da ação de
potências estrangeiras. Revela sintonia absoluta com o
pensamento conservador tradicional e subalterno da classe
dominante brasileira. É doutrinariamente fundamentado no
mito do poder moderador.
No “Projeto de Nação”, o País é idealizado com base no
pensamento oligárquico e elitista. A própria questão da
Segurança Pública é vista como controle de um povo fraco,
com uma visão preconceituosa e sempre no sentido de
imposição e de uma vontade de tutelar.
A confusão entre Nação, Estado e Governo é a base
teórica desse mandonismo que tem herança na escravidão,
na grande propriedade da terra e na repressão política às
várias tentativas de lutas populares no Brasil.
É importante ressaltar que esse documento tem um
respaldo no pensamento médio nas Forças Armadas que
não pode ser menosprezado, porque do ponto de vista
doutrinário, do ponto de vista filosófico, do ponto de vista
da formação militar, ele acaba refletindo definições
estratégicas que dão às Forças Armadas o poder de definir
objetivos nacionais permanentes, objetivos estratégicos,
sem nenhuma legitimidade.
Os objetivos do Estado definidos nos princípios
fundamentais da Constituição constituem uma base
essencial da ação governamental, mas eles não partem
dessa ideia. Eles partem de uma visão ultrapassada e
autoritária, que vem do período da Guerra Fria, da Escola
Superior de Guerra, de objetivos nacionais permanentes e
do conceito de guerra interna.
É claro que esse assunto vai exigir por parte das forças
democráticas e populares uma postura crítica, uma postura
de combate, uma postura de enfrentamento.
Precisamos rejeitar essa tentativa de tutela. O
autoritarismo está presente no atual governo de maneira
orgânica, de maneira umbilical, mas também coloca
elementos para que a tutela seja mantida com ou sem o
atual governo. O “Projeto de Nação” visa uma perspectiva
de tutela continuada, mesmo com a derrota do atual
governo.
Neste sentido, é fundamental compreendermos que não
é um documento qualquer. Os três institutos que
elaboraram esse documento dialogam com setores
importantes das Forças Armadas e de elementos da classe
dominante.
Não foi por acaso que, na mesma ocasião, houve a
manifestação inesperada do presidente do Bradesco
enaltecendo o Exército. Não é por acaso que esse governo
militarizado e esse Estado militarizado têm atendido
integralmente aos interesses da classe dominante, seja com
as financeirizações, privatizações, proteção dos monopólios
e do agronegócio, seja através da eliminação dos direitos
sociais e das políticas públicas. Ocorreu uma precarização
da soberania nacional.
Ao falar da privatização da saúde e da educação, o
“Projeto de Nação” estabelece pontes com o
conservadorismo econômico que marcou nossa história.
O documento mostra insensibilidade com o povo
brasileiro. Não apresenta nenhuma sinalização de crítica à
distribuição de renda, à miséria social, à barbárie social no
país, à crise da Covid, aos dados sobre o número de pessoas
passando fome. Nem aparentemente eles demonstram
cerimônia na defesa do que é o pior do sistema capitalista
de dominação no Brasil.
Querem tutelar a sociedade, não dialogar. Querem
dominar os brasileiros. Por isso que, ao tratar do aparato de
segurança e informação do Estado, o documento prioriza a
vigilância, o controle e a dominação da sociedade.
Repito, portanto, que esse documento tem de ser
combatido de maneira política. Ele representa, mais do que
uma ameaça, é um pensamento que tenta se legitimar.
O enfrentamento estratégico da própria luta pelas
liberdades políticas e a defesa do processo de eleições em
2022 exige que tenhamos uma posição clara de combate a
esse tipo de tutela – aqui me refiro mais diretamente aos
dois artigos do Roberto Amaral sobre os riscos, sobre o
clima de ameaças que pairam sobre as eleições de 2022.
Nós temos de tratar essas ameaças como uma questão
política, relacionando-as com os programas econômico e
social e com as saídas estratégicas para o país.
O estudo do documento exige que consolidemos uma
posição sobre o papel das Forças Armadas. Trata-se de uma
necessidade para a construção da democracia. Precisamos
revogar parte importante do artigo 142, desmilitarizar a
segurança pública e conceber novos instrumentos de
proteção da cidadania.
Precisamos estabelecer a quarentena para todas as
carreiras de Estado, incluindo as Forças Armadas.
Precisamos também extinguir a Justiça Militar permanente
e, evidentemente, garantir a subordinação das Forças
Armadas ao poder civil, que emana da soberania popular.
Um projeto democrático e popular para o Brasil exige a
definição da política de Defesa Nacional como
responsabilidade de múltiplas instituições públicas que
respeitem a soberania popular. Defesa Nacional é uma
política pública, é uma política de Estado, não uma política
concebida e executada por corporações militares.
Os referenciais, diretrizes e estratégias de defesa
nacional, incluindo a dimensão militar, devem expressar a
vontade popular, ou seja, a vontade da nação. A formação
dos militares deve estar subordinada aos valores do regime
democrático, às características democráticas e pluralistas
da nossa sociedade e, principalmente, tendo como base os
“Princípios Fundamentais” da Constituição Federal de 1988.
Os militares devem estar a serviço da política de Defesa
Nacional definida pelas instituições e pelo regime
democrático.
Tendo em vista o longo histórico de rupturas do regime
democrático protagonizadas pelas corporações militares,
qualquer conivência, qualquer atitude de conciliação com
esse papel tutelar representará um grande risco. Não
podemos viver em regime democrático permanentemente
ameaçado pela espada. Sempre que tivemos reformas
democráticas, nacionalistas e sociais, ocorreram
interrupções autoritárias, normalmente com um
pronunciamento militar ou com um golpe militar.
Portanto, é necessário fundir as bandeiras da luta
democrática com uma visão programática do que tem que
ser feito depois de derrotar o atual governo. Precisamos
desmontar o desmonte do país e desenvolver um programa
de reconstrução e transformação.
Na discussão sobre o posicionamento dos militares, é
fundamental definirmos o Brasil que queremos.
A República Velha do futuro
Williams Gonçalves[5]
O documento em análise, ao tratar de Geopolítica
Mundial, imagina a inserção internacional do Brasil em
2035. O exercício apresenta o Brasil em determinada
situação ideal, caso as medidas consideradas necessárias
por seus redatores sejam tomadas desde hoje.
No projeto não há explicitação nítida da ideia de inserção
internacional. A ideia encontra-se implícita. Porém
recorreremos a ela para expor à luz o que o documento
tanto diz quanto deixa de dizer.
A ideia de inserção internacional é constituída por três
elementos fundamentais. O primeiro diz respeito à realidade
do país em diferentes dimensões – econômica, tecnológica,
política e cultural. O segundo refere-se a como o Estado
entra no cálculo estratégico das grandes potências. O
terceiro remete à maneira de como o Brasil atuaria no meio
internacional, em vista da realidade do país e das
tendências do sistema internacional, para proporcionar
níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento
econômico-social para o conjunto da população.
Consideramos válido esse critério de analisar o “Projeto
de Nação – o Brasil em 2035” à luz desses três elementos
porque ele tanto nos permite entender o Brasil idealizado
pelos autores, como o que eles pensam do Brasil de hoje.
Uma projeção como essa acaba, afinal, revelando mais o
que eles pensam a respeito do Brasil de hoje do que será o
futuro.
A análise que aqui nos propomos se limitará a alguns
aspectos do documento, mais especificamente àqueles
voltados para o que os autores denominam Geopolítica
Mundial. Mesmo com essas limitações é possível trazer à
tona a visão de mundo que informa o projeto.
Em relação ao primeiro elemento constitutivo da
inserção internacional, o documento é chocantemente claro.
Em 2035 o Brasil terá feito uma inequívoca opção pelo
liberalismo ao ser aceito pela OCDE e se consolidado como
grande potência agrícola. Para os autores do projeto, o
futuro do Brasil estará nas mãos do agronegócio. Tanto a
indústria, como a ciência e a tecnologia estarão a serviço
dos interesses desse setor da economia: o agronegócio
seria “sustentáculo e o grande responsável pelo
crescimento econômico nacional”. Em outra passagem, o
documento registra: “o agronegócio também tem sido a
locomotiva de nossas exportações e o maior responsável
por nossos êxitos como integrantes do comércio mundial”.
Os responsáveis pelo documento não avistam qualquer
contradição na exaltação do liberalismo como diretriz
econômica para o país e sua adesão à OCDE e a veemente
crítica que tecem ao “globalismo”. Ao fazer uso dessa ideia
cara ao guru da extrema direita brasileira Olavo de
Carvalho, os autores curiosamente denunciam o abusivo
poder econômico da elite financeira, responsável pelo
“ultracapitalismo” dos bancos e dos conglomerados
empresariais. Aparentemente não se dão conta que, ao
postularem a integração à OCDE como algo positivo e
alvissareiro, estão justamente escancarando as portas para
a desinibida atuação dessas forças que seriam responsáveis
pelos males causados pelo “globalismo”.
Ainda como fundamental elemento constitutivo da
realidade, em 2035 o país experimentará estabilidade
democrática. Para os autores a estabilidade seria alcançada
por meio do combate à corrupção, pela clara inclinação
ideológica da maioria do povo pelo conservadorismo, em
nome do qual combateu-se o “politicamente correto”, e pela
vassourada nas escolas e universidades, mediante a qual foi
possível desideologizar os currículos e reforçar valores
morais, éticos e cívicos.
Por outras palavras, o que o documento quer evidenciar
é que a estabilidade democrática depende diretamente da
exclusão de forças políticas que não comungam com o perfil
conservador. O que configura uma estranha forma de
conceber o regime democrático.
Ao apresentar a maneira como o Brasil entra no cálculo
estratégico das grandes potências, o documento prevê que
em 2035 o sistema estará estruturado multipolarmente,
havendo predominância de Estados Unidos e China,
enquanto União Europeia, Reino Unido, Japão, Índia e Rússia
ocuparão lugar de potência de primeira ordem, seguidos de
potências médias e de não-potências.
O Brasil terá uma política de “neutralidade pragmática e
ética”, será um não-alinhado em face de “alguns conflitos
interpotências rivais no Entorno Estratégico do Brasil,
particularmente entre os EUA e seus aliados versus China e
Rússia, com ameaças à soberania nacional e
comprometendo a liderança regional do Brasil”.
Essa visão de futuro revela a boca torta pelo continuado
uso do cachimbo. Senão vejamos. Depois de ter
apresentado o sistema internacional como multipolar, os
autores do documento especulam acerca de conflitos entre
Estados Unidos e seus aliados de um lado, e China e Rússia,
de outro. Isto é, situam o Brasil como não-alinhado num
sistema multipolar, ao mesmo tempo em que se referem à
existência de dois blocos, mas também nada dizem sobre o
fator que justificaria o não-alinhamento, uma vez que todos
concorrem numa economia mundial de mercado.
É evidente que a antiga Guerra Fria continua a formar
pano de fundo da análise. Se não existem mais países
comunistas, como existiram no passado, mesmo porque o
documento sublinha que a China desempenha importante
papel na economia brasileira, qual pode ser o critério de
distinção? Só há um: o critério norte-americano de separar
países democráticos e países autoritários.
Se o Brasil não está em nenhum desses blocos, onde
está? Evidentemente que só pode estar junto com os EUA,
contra China e Rússia.
Aos olhos dos responsáveis pelo documento, parece que
China e Rússia são intrinsecamente comunistas, façam a
reforma que fizerem que nada mudará sua essência
comunista e autoritária. Esses pressupostos colidem com a
ideia de multipolaridade. A bipolaridade continua a habitar a
mente dos responsáveis pelo projeto.
O segundo aspecto interessante dessa previsão sobre a
posição do Brasil no sistema internacional é a ideia de
liderança regional do Brasil. Em nenhuma parte do texto fica
explicada essa liderança. Fala-se dela como se fosse algo
natural. Não se faz qualquer menção à integração regional.
O Mercosul e os demais processos de integração são
completamente ignorados. O documento deixa
subentendido que o “Entorno Estratégico” é hostil, daí a
necessidade de fortalecimento do poder militar.
As referências a esse entorno são no sentido da
“projeção de poder”, tanto em relação à América do Sul,
quanto à Costa Oriental da África.
O projeto ignora que não há Estado potência isolado.
Todo Estado potência se pronuncia em nome de uma
comunidade, defendendo valores. Se o Brasil considera seus
vizinhos do subcontinente e do além-atlântico potenciais
inimigos, será Estado potência pronunciando-se em nome
de quem? Por outro prisma, como poderá alcançar essa
posição de Estado potência cercado de vizinhos hostis?
Para concluir essa sucinta análise, podemos destacar o
seguinte:
– O Brasil idealizado apresenta uma economia agrário-
exportadora. A agricultura deve ocupar posição central na
economia do país, estando os demais setores produtivos a
seu serviço;
– O Brasil tem regime democrático. Porém uma
democracia que exclui todos os que destoam das diretrizes
estabelecidas por aqueles que representam uma suposta
maioria liberal conservadora. Uma democracia que, enfim,
rejeita o dissenso.
– O Brasil coloca-se numa posição fora dos círculos
decisórios do sistema internacional de poder. Busca apenas
uma posição de neutralidade pragmática e ética que lhe
permita funcionar lucrativamente como um dos celeiros do
mundo, sem oferecer contribuição assertiva para o
desenvolvimento e a paz mundiais;
– O Brasil está desligado de qualquer compromisso de
integração. BRICS, Mercosul, CPLP não merecem qualquer
consideração.
– O chamado Entorno Estratégico do Brasil é visto como
fator de permanente ameaça e desestabilização por atrair o
interesse estratégico das grandes potências e não como
fator de agregação e potencialização do desenvolvimento
econômico-social.
Enfim, os responsáveis pelo “Projeto de Nação” projetam
um futuro em que o país encontra seu passado. A impressão
que causa é que desejam a volta da República Velha!
Geleia geral
Gilberto Maringoni[6]
O “Projeto de Nação” em análise nesta coletânea se
caracteriza por presunção intelectual, grandiloquência
retórica, insuficiência teórica, rarefeita consistência
conceitual e fragmentação narrativa. Este capítulo examina
o tratamento dispensado a três complexos conceitos
sociológicos: nação, soberania e globalismo.
Ao longo de 100 páginas, a palavra “nação” é repetida
103 vezes, “soberania” aparece 23 vezes e em 6
oportunidades o “globalismo” é colocado. A tentativa de
explicar o que pretendem os autores tropeça logo nas
páginas iniciais.
“’Projeto de Nação’ é um nome consagrado na sociedade, cujo
significado mais preciso reflete, na realidade, o que seria uma
Estratégia Nacional (ou Política Nacional, ou Grande Estratégia,
ou ainda, Plano de Estado)” (Pág. 3).
Se o nome é “consagrado na sociedade”, todo mundo
deveria saber do que se trata e qualquer explicação seria
dispensável. Vamos repetir o que está escrito: o “significado
mais preciso” do “Projeto de Nação” refletiria, na realidade,
o que seria uma Estratégia Nacional (ou Política Nacional, ou
Grande Estratégia, ou ainda Plano de Estado). Alhos,
bugalhos e retalhos são lançados a esmo, com o intuito
aparente de mudar de assunto.
Tudo é tudo, o que parece ser o sinônimo disso pode ser
também antônimo. Nação é um dos temas mais
controversos das Ciências Sociais. Não há uma definição
única, o que abre espaço para todo tipo de charlatanismo
retórico.
Nação... Do que se trata?
Francesco Rossolillo, no “Dicionário de Política”,
organizado por Norberto Bobbio, assinala que
“A história do termo tem sido um grande paradoxo. A referência
à Nação foi, no decorrer da Revolução Francesa e, mais tarde,
desde meados do século XIX até nossos dias, um dos fatores
mais importantes no condicionamento do comportamento
humano na história política e social. Em nome da Nação se
fizeram guerras, revoluções, modificou-se o mapa político do
mundo”.

O uso político da palavra teria, segundo Rossolillo,


surgido na Revolução Francesa, em fins do século XVIII.
“Não obstante isso tudo, o conteúdo semântico do termo,
apesar de sua imensa força emocional, permanece ainda
entre os mais confusos e incertos do dicionário político”,
afirma ele.
Um dos ensaios clássicos sobre a constituição das
nações foi produzido por Ernest Renan (1823-1892). O
contexto era de exacerbação dos nacionalismos e da
formação ou de reconfiguração dos Estados nacionais na
Europa, na segunda metade do século XIX. Em 1882, no
anfiteatro principal da Sorbonne, Renan profere a
conferência “O que é uma Nação?”.
De início, Renan alerta que a nação seria “uma ideia,
aparentemente clara, mas que se presta aos mais perigosos
mal-entendidos”. O historiador vê o conceito como
inexistente na Antiguidade clássica e sua formação
coincidiria com o advento do capitalismo. É aí que começam
a se formar laços de identidade entre grupos humanos
variados.
Identidade é outra controvérsia filosófica e sociológica
que deveria ser examinada por aqueles que pretendem
produzir um “Projeto de Nação”. A palavra é citada apenas
três vezes – como “identidade nacional” –, mas tampouco
define o que está em pauta.
O que produziria identidade entre pessoas, para a
formação de uma nação? Renan examina vários atributos –
geografia, língua, raça/etnia, religião, costumes e os vai
descartando um a um, com argumentos sólidos. “A
consciência instintiva que presidiu a confecção do mapa da
Europa não considerou de nenhuma forma a raça, e as
primeiras nações da Europa são nações de sangue
essencialmente misturado”. Renan vai além: “A religião
também não poderia oferecer uma base suficiente para o
estabelecimento de uma nacionalidade moderna”.
A partir daí, argumenta:
“Uma Nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas
que, para dizer a verdade, são uma só, constituem essa alma,
esse princípio espiritual. Uma está no passado e a outra no
presente. Uma é a posse em comum de um rico legado de
lembranças. A outra é o consentimento atual, o desejo de viver
juntos, a vontade de continuar a fazer valer a herança que se
recebeu indivisa”.
Assim, a nação seria antes de tudo um ato de vontade
consciente, um movimento pensado e planejado e não fruto
de um determinismo mecanicista.
“Uma nação é, assim, uma grande solidariedade, constituída
pelo sentimento de sacrifícios já feitos e daqueles que ainda
estão por fazer. Ela supõe um passado. Ela se resume,
entretanto, no presente por um fato tangível: o consentimento, o
desejo claramente expresso de continuar a vida em comum. A
existência de uma nação é (perdoem-me essa metáfora) um
plebiscito diário, como a existência do indivíduo é uma afirmação
perpétua da vida”.
Entre os inúmeros estudos realizados sobre o tema, com
destaque para a segunda metade do século XX, a de maior
credibilidade e aceitação é o livro “Comunidades
imaginadas”, de Benedict Anderson. Segue um trecho
definidor:
“Dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte
definição de nação: uma comunidade política imaginada – e
imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo
tempo, soberana. (...) Ela é imaginada porque mesmo os
membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão,
encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus
companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva
da comunhão entre eles”.
Era a essa imagem que Renan se referia quando
escreveu, com seu jeito levemente irônico:
“Ora, a essência de uma nação consiste em que todos os
indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que
todos tenham esquecido muitas coisas”.

Voltemos a Anderson:
“Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial
do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As
comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade,
mas pelo estilo em que são imaginadas”.

Se é difícil definir pontos de contato e características


comuns entre populações para a conformação da nação,
vale a pena defini-la – ou a identidade nacional – pelo
contraste. Em situações de conflito ou agressão externa, a
unidade ou coesão nacional tende a se fortalecer, como
forma de defesa. O inimigo passa a ser o “outro”, o que nos
é adverso, diferente, o que não comunga de nossos ideais,
desejos, anseios, modo de vida, costumes etc. A construção
do “outro” acaba sendo fundamental para a construção da
identidade nacional.
A exacerbação de tensões e construção de um “outro” é
uma forma de reduzir contradições e desidratar a influência
de adversários internos, visando não apenas o
fortalecimento de uma unidade coletiva, mas o
fortalecimento de um governo que – aos olhos da maioria –
se arrogue a encarnar o que se denomina “sentimento
nacional”. A nação, assim idealizada, uniria a todos e seria a
grande mãe a acolher seus filhos, à exceção dos que lhe
renegam.
Essa formulação ideal e autoritária – pelo fato de quem
detém o poder ter a prerrogativa de definir quem é o
antinacional – tem a característica de mascarar
diversidades e desigualdades sociais e conflitos distributivos
internos. Ela se manifesta no discurso do povo ordeiro e
pacífico – a ser tutelado – que teria sofrido alguma agressão
por parte de seus inimigos.
O nacionalismo é um atributo ideológico de grande
apelo. Trata-se de um conceito ambíguo. É totalizante – ou
includente – e excludente a um só tempo. Tem como
fundamento o contraste entre o nacional e o não-nacional.
Unir a nação – ou um grupo – contra o inimigo comum é sua
marca essencial. Unir a nação significa no Brasil militarizado
unir o cidadão de bem, de preferência armado, contra o
inimigo do momento.
Com base em tais interpretações, Rossolillo, no já citado
“Dicionário de Política”, afirma que “Nação não passa de
uma entidade ideológica, isto é, do reflexo na mente dos
indivíduos de uma situação de poder”. Os militares e
agregados que produziram o volume aqui examinado
pretendem impor na verdade uma concepção autoritária de
como dirigir a sociedade, sob o rótulo de “Projeto de
Nação”.
Eric Hobsbawm, no livro “Nações e nacionalismo desde
1789”, afirma não considerar “a Nação como entidade
social originária ou imutável. (...) Ela é uma entidade social
apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado
territorial moderno”.
Assim, o que dá materialidade e objetividade ao conceito
de nação é o advento do Estado-nação. É possível falar de
projeto de Estado com objetividade e é isso, na verdade, o
que os autores do Projeto pretendem. Um Estado autoritário
e centralizador na política e ultraliberal na economia.
Banalização da soberania
A formação do Estado moderno percorreu acidentados
caminhos desde a Idade Média e seu advento se dá por
exigências do desenvolvimento econômico, vale dizer, do
capitalismo. O marco histórico se situa em 1648, nos
tratados da Paz de Westfália, após a Guerra dos Trinta Anos,
quando, pela primeira vez, organizações sociais e políticas
de distintas localidades na Europa se reconhecem como
semelhantes e negociam entre si.
A palavra “soberania” é mencionada 23 vezes no
“Projeto de Nação”, como já observado. Na maioria dos
casos, é contextualizada de forma genérica, como
“soberania nacional”. Duas vezes é colocada como
“soberania no agronegócio” e uma vez como “soberania
para explorar seu próprio patrimônio”. É mencionada
também quando trata de “minerais de alto valor estratégico
para a segurança e desenvolvimento do Brasil”, sem que
maiores detalhes sejam fornecidos.
Na Introdução, é definido que soberania é “um dos cinco
Fundamentos da República Federativa do Brasil (Art. 1º da
Constituição Federal) — é a situação de um país quando não
existe um ator superior em seu território”. Não existem
concepções de soberania tecnológica, soberania energética
ou soberania política. A visão é unidimensional, típica de
livros de Educação Moral e Cívica do início dos anos 1970.
O Estado nacional moderno tem algumas características
básicas: a territorialidade com fronteiras definidas, uma
administração centralizada, moeda única, monopólio da
violência em seus domínios e pactos de convivência, na
forma de constituições e leis que estabelecem as relações
de convivência sob seu abrigo.
Frente a um sistema internacional que vai se formando,
o principal atributo dos Estados é sua soberania. Como
sintetiza Cristina Pecequilo, em “Política internacional”:
“Juridicamente, os Estados reconhecem-se mutuamente,
respeitando seus limites territoriais (respeito aos princípios de
não-intervenção e não-ingerência), e estabelecem relações
diplomáticas entre si. Em síntese, três componentes materiais
compõem estas unidades políticas, o território, a população e o
governo. Todos os Estados são, portanto, soberanos dentro de
seu determinado território. A partir deste princípio básico, a
ordem internacional é definida por meio dos intercâmbios e
choques que se estabelecem entre os atores da política”.
O pesquisador britânico Hedley Bull coloca as questões
nos seguintes termos, no livro “Sociedade anárquica”, um
clássico das Relações Internacionais:
“O ponto de partida das Relações Internacionais é a existência de
Estados, comunidades políticas independentes, cada uma das
quais possui um governo e afirma a sua soberania com relação a
uma parte da superfície terrestre e a um segmento da população
humana. De um lado, os Estados têm, com relação a esse
território e a essa população, o que poderíamos chamar de
‘soberania interna’, ou seja, a supremacia sobre todas as demais
autoridades dentro daquele território e com respeito a essa
população; de outro, detêm o que se poderia chamar de
‘soberania externa’, que consiste não na supremacia mas na
independência com respeito às autoridades externas”.

Essa sintética digressão conceitual é feita para


traçarmos parâmetros de avaliação das partes que tratam
de política externa no “Projeto de Nação”. Por não
apresentar claramente o que entende por nação, Estado
nacional e soberania nacional, o documento não para em
pé. Tem como primeiro eixo metodológico o que denominam
de “Geopolítica mundial”. Tudo é apresentado por meio de
verbetes estanques, sem totalização conclusiva.
O primeiro tema tratado intitula-se “Nova ordem mundial
multipolar”, com predominância de EUA e China. O objetivo
central delineado para a política externa seria a
“Capacidade do Brasil em manter a neutralidade, sem
alinhamento com uma das potências líderes no jogo do
poder mundial, em 2035”. O argumento é o seguinte:
“Em 2035, consolidou-se um mundo multipolar conflituoso, com
predominância, mas não hegemonia, dos EUA e da China. Esses
atores atraem potências de primeira ordem – União Europeia,
Reino Unido, Japão, Índia e Rússia –, potências médias e não-
potências como aliados ou alinhados. O Brasil procura garantir o
máximo de neutralidade, de modo a preservar um alto nível de
liberdade de ação, pois as duas potências são muito importantes
em nossas relações econômicas. É uma neutralidade pragmática
e ética, que visa a manter relações positivas com ambas,
valorizando nossos interesses, evitando dobrar-se a pressões e
coações e aproveitando as oportunidades geradas pelo próprio
conflito. Para tanto, o Brasil busca ampliar sua autonomia
econômica, científica e tecnológica (CT), psicossocial (coesão
nacional), diplomática e militar, além de diversificar suas
parcerias nas relações internacionais, de modo a diminuir a
influência política e econômica dessas duas potências. Assim, se
tornou mais influente no cenário mundial, com um grupo de
não alinhados, firmando-se como potência emergente”. (grifo
meu)
É difícil entender o que exatamente os militares
propõem. A meta básica de qualquer Estado no plano global
deve ser a de manter sua soberania frente aos conflitos
existentes e, a partir desse pressuposto, tomar posições. O
documento menciona “um grupo de não-alinhados”, numa
suposta referência ao conjunto de países da periferia que,
livres do jugo colonial no II pós-Guerra, reuniu-se na
Conferência de Bandung, em 1955, buscando uma atuação
sincronizada como Movimento dos não-Alinhados, em meio
às tensões da Guerra Fria. O centro dessa ação conjunta não
era de uma hipotética neutralidade, mas uma autonomia de
ação, somente possível com a crescente afirmação de suas
soberanias.
Ter como objetivo maior alcançar a “neutralidade”, por
mais que essa condição seja acompanhada de adjetivações
variadas denota uma preocupante limitação de horizontes,
até porque, mais uma vez, os intelectuais da caserna não
explicam do que se trata. Qual o conceito de neutralidade
aqui? O Brasil deixará de almejar uma posição altiva de
player global?
Neutralidade pode ser posição tática em variadas
situações, desde que a avaliação de cada uma dessas
situações seja racional. O exercício que o texto faz é supor
uma conjuntura futura em que não haveria hegemonia
definida entre as duas maiores potências do mundo, sem
explicar, mais uma vez, do que se trata.
O mundo conheceu uma espécie de hiato de hegemonia
entre a perda de proeminência do Império Britânico, em
1914, e a afirmação dos EUA como superpotência, após
1945. Foram tempos de duas guerras mundiais,
entremeados por uma crise econômica profunda no centro
do sistema e por choques políticos de alta intensidade na
Europa.
Quando se fala em “não hegemonia” entre as maiores
potências é preciso esclarecer as causas e consequências
dessa situação. “Não hegemonia” é situação raríssima no
contexto global e não se pode jogar a frase com a mesma
sem cerimônia com que alguém tira um par de coturnos dos
pés para calçar chinelos.
Voltemos à neutralidade e sua característica
multifacética. Em votações no âmbito de organismos
multilaterais, a neutralidade muitas vezes embute uma
discordância aberta com determinada posição dominante.
Significa não acompanhar a maioria dos países, sem se
somar à parte contrária. É uma posição que nada tem de
passiva ou de omissa, como ocorre em outras situações que
também podem ser denominadas como neutras.
Neutralidade diante de polos desiguais também pode
significar adesão à tese dominante, a depender da
correlação de forças de cada momento. Não existe
neutralidade perene em abstrato.
Ao tratar da neutralidade, os autores afirmam que o país
buscará “Alcançar e garantir uma elevada autonomia
internacional nos campos político, econômico, militar,
científico-tecnológico, diplomático e cultural”.
Autonomia é diferente de soberania e ambas são
marcadas por nuances importantes. Soberania nas relações
internacionais refere-se ao poder supremo do Estado sobre
seu território e autonomia refere-se a possibilidades de
determinado ente tomar decisões sob o guarda-chuvas de
um poder maior. Nicola Matteucci, no “Dicionário de
Política”, vai além e define:
“Soberania indica o poder de mando de última instância, numa
sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e
as demais associações humanas em cuja organização não se
encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado”.
Há um sem número de eufemismos para classificar
“autonomia relativa”, “autonomia regional”, “soberania
relativa”, “soberania compartilhada”, etc. O documento não
se coloca de maneira clara em temas controversos,
abusando de lugares-comuns e frases feitas.
O que quer dizer, “fortalecer a capacidade de projeção
do poder brasileiro em seu Entorno Estratégico,
principalmente na América do Sul e na Costa Atlântica
Africana”? O que é “poder brasileiro”? É poder militar? É
poder econômico? E a meta de “ampliar a coesão interna do
país”? Coesão de quê? Para quê? Ampliar quanto?
No plano concreto, vale perguntar:
1.As Forças Armadas brasileiras estão, na prática,
subordinadas ao Comando Militar Sul dos Estados Unidos,
pelo menos desde fevereiro de 2019. A iniciativa se deu
com a incorporação de um general brasileiro àquele
organismo. Para alcançar a propalada autonomia, as FFAA
romperão tal acordo?
2. O “Projeto de Nação” exara um liberalismo extremado,
no qual privatizações e alienação de patrimônio público dão
o tom. Como tais formulações se compatibilizam com a
busca pela soberania, uma vez que o país entregou ao
capital estrangeiro boa parte de sua infraestrutura
energética e de transportes e a capacidade do Estado de
planejar o desenvolvimento?
O fantasma do globalismo
Mas a grande quimera da teorização castrense em
política internacional diz respeito ao “Movimento globalista
mundial”, que dá título à segunda seção da obra. A
expressão é curiosa. Um movimento globalista para valer
não poderia ser local ou regional. Teria de ser mundial. A
redundância parece fazer parte da retórica enfática de
declarações vazias, ao gosto de ordens do dia que não
dizem absolutamente nada. Sigamos o texto.
“Em 2035, o Movimento Globalista procura interferir nas
decisões dos governos brasileiros, ameaçando interesses
importantes, particularmente quando aliado a potências
globais e quando apoiado por relevantes setores nacionais
nos campos político e social”.
O que é “globalismo”? Trata-se de outro conceito de
difícil definição.
O ex-chanceler Ernesto Araújo, em palestra proferida na
Fundação Alexandre Gusmão, em 10 de julho de 2019,
afirmou o seguinte:
“Globalismo é o niilismo, basicamente. Globalismo é a
consolidação daquele niilismo previsto por Nietzsche, ou seja, é a
sociedade liberal ateia submetida aos mecanismos de controle
daquele núcleo gramscista ou comunista, ou fisiologista, como
chamemos.”

A frase de Araújo, como de hábito, mais confunde do que


esclarece. O financista Thorsten Polleit, no site do Instituto
Mises Brasil tenta fazer a diferenciação:
“Globalização econômica significa livre comércio e livre mercado.
Trata-se de um arranjo que não apenas não necessita da
intervenção de governos e burocratas, como funciona muito
melhor sem eles. Indo mais além, trata-se de um arranjo que
surge naturalmente quando não há políticos e burocratas
impondo obstáculos às transações humanas. Já o globalismo é o
exato oposto: trata-se de um arranjo que só existe por causa de
políticos e burocratas. Seria impossível haver globalismo se não
houvesse políticos e burocratas”.
É outro rocambole teórico que recorre ao senso comum
rasteiro da antipolítica para explicar a existência do
globalismo. Um mundo sem políticos e burocratas é um
mundo sem Estado, sem organização social e sem regras,
numa situação de anomia que remete ao estado da
natureza hobbesiano, em que “todo homem é inimigo de
todo homem”. Uma sociedade do vale-tudo, como
defendem os mercadistas radicais.
Para os autores do “Projeto de Nação”,
“O globalismo é um movimento internacionalista, cujo objetivo é
massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la;
determinar, dirigir e controlar, tanto as relações internacionais,
quanto as dos cidadãos entre si, por meio de intervenções e
decretos autoritários. No centro do movimento está a Elite
Financeira Mundial, ator não estatal constituído por
megainvestidores, bancos transnacionais e outros entes
megacapitalistas, com extraordinários recursos financeiros e
econômicos”.
Na geleia geral que ronda a expressão, vislumbra-se a
construção de um “outro” contra quem lutar. O globalismo é
o fantasma que no presente ocupa o lugar que já foi do
comunismo ou da subversão em tempos de guerra fria. É o
alerta de “O lobo! O lobo!”, da peça infantil “Pedro e o
lobo”. Grita-se a todo momento “O globalismo! O
globalismo!” como pretexto para a formação de uma aliança
nacional salvacionista, sabe-se lá de que natureza. Trata-se
da velhíssima lorota de disseminação do pânico para
assustar e dobrar a sociedade com algum propósito
inconfessável.
Em resumo...
A marca maior das partes aqui comentadas do “Projeto
de Nação” é seu caráter autoritário nos propósitos e
desarticulado e rudimentar nas argumentações e
decorrências.
Sem base teórica clara, que não um positivismo
primitivo, pouco conhecimento da realidade brasileira,
conceitos maleáveis, e consequente arrogância no linguajar,
as linhas redigidas pelo que parece haver de melhor na
inteligência militar revela profundas lacunas de formação
educacional e de cultura política por parte de seus autores.
É quase inacreditável que algo de tão baixo nível tenha
vindo a público com a chancela informal do vice-presidente
Hamilton Mourão e do Alto-comando das Forças Armadas. O
material demonstra o tipo de gente que disputa o comando
do país exibindo fardas e coturnos.
Globalismo,
um encontro doutrinário
Eduardo Costa Pinto[7]
Trinta e dois anos após o fim da ditadura militar-
empresarial, as Forças Armadas voltaram à cena político-
partidária em decorrência da profunda crise institucional
brasileira, em curso desde 2015, apostando em seu retorno
ao poder por meio da eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Criador (Forças Armadas) e criatura (candidato) se
venderam para a população como a última linha de
resistência e esperança do restabelecimento da ordem
econômica, política, moral e psicossocial brasileira em
crise, fruto, para eles, do avanço da “corrupção”, do
“politicamente correto/marxismo cultural” e do
“globalismo” que estariam dividindo o país e impedindo
seu desenvolvimento.
Com a vitória do Capitão, o criador voltou ao poder em
2019, com o expressivo aumento de sua presença na
burocracia federal. Entre 2018 e 2020, segundo o TCU, o
número de militares em cargos civis saltou de 2.765 para
6.157. Além disso, obtiveram enormes ganhos corporativos:
tratamento especial no quadro da Reforma da Previdência
por meio de uma verdadeira reestruturação da carreira
militar, que implicou em aumento salarial nos níveis
hierárquicos mais altos e maiores verbas para Ministério da
Defesa, apesar do teto de gastos.
Mesmo com grandes crises ao longo do governo
Bolsonaro (demissão do general Santos Cruz; gestão do
general Pazzuelo no Ministério da Saúde durante a
pandemia Covid-19; casos de corrupção; ameaças à
democracia e ao STF; baixo crescimento econômico e
desemprego; retorno da fome, etc), as Forças Armadas
mantiveram e mantém o seu apoio ao governo. Criatura e
criador querem, sim, seguir em seu projeto político.
Isso ficou explícito no documento “Projeto de Nação”,
que traçou cenários prospectivos (“história do futuro”) para
2035 tendo como hipótese a permanência do projeto em
curso, levado a cabo pelo criador e criatura. O documento
está dividido em 5 eixos e 37 temas estratégicos.
Neste capítulo, analisamos o tema “Movimento
Globalista Mundial”, buscando uma perspectiva crítica a
respeito do que o documento entende como “globalismo” e
“movimento globalista” e como esses elementos
supostamente seriam empecilhos à autonomia (econômica,
social, militar e científico-tecnológica) do Brasil na nova
ordem mundial multipolar de 2035, com predominância dos
EUA e da China.
É evidente que o exercício de poder do Brasil no sistema
internacional, entendido como o exercício de sua vontade
independente da vontade alheia, depende da capacidade do
país em transformar o conjunto de recursos de que dispõe
(poder potencial, população, território, geração de riqueza,
capacitação tecnológica, forças armadas, preparação militar
e prestígio) em poder efetivo. Poder potencial só se
transformaria em efetivo se o país conseguisse ampliar sua
capacidade de resistir a pressões, fatores desestabilizadores
e choques externos em função das opções de suas
respostas e dos custos de enfrentamento. Essa capacidade
de resistência possui quatro eixos principais:
1) moeda e finanças (tipo de atuação no sistema
monetário internacional);
2) capacidade produtiva-tecnológica (estrutura produtiva
e desenvolvimento tecnológico que criam capacidade de
geração de renda e riqueza no território nacional);
3) Ideológico/cultural; e
4) Armas (capacidade bélica) e preparação para a
guerra.
O “Projeto de Nação” dá enorme destaque ao
“globalismo” como um dos principais empecilhos para o
aumento da autonomia do Brasil em 2035. Esses
movimentos internacionalistas, comandado pelas elites
financeiras globais, provocariam crises (divisões entre
segmentos da população) que enfraqueceriam a nação em
sua busca pelo desenvolvimento. Em outras palavras, o
globalismo, para os militares, seria a maior ameaça ao
Brasil.
A partir dessa afirmativa, explícita no “Projeto de
Nação”, cabem algumas perguntas: o termo “globalismo”
utilizado no âmbito das relações internacionais é o mesmo
adotado pelos militares brasileiros? Se não, qual o
significado do termo globalismo adotado pelo documento e
quais suas “relações epistemológicas”?
Segundo Alicia Walker, a palavra “globalismo/ globalism”
passou a ser adotado em língua inglesa em 1943, sendo
utilizado, desde então, não somente como um termo de
linguagem, mas, também, como um conceito em diversos
campos de estudos (cultura, educação, psicologia social,
economia, política, relações internacionais, etc). Segundo o
dicionário Oxford English, o termo “globalismo” é “a crença,
a teoria ou a prática de adotar ou seguir um curso político,
um sistema econômico, etc, baseado em princípios globais
em vez de nacionais; uma perspectiva [visão de mundo]
que reflete uma consciência de escala global, questões ou
implicações; o fato ou processo de grandes empresas,
organizações, etc, operando e influenciando em escala
mundial”.
Rosenboim, em “The Emergence of Globalism: Visions of
World Order in Britain and the United States”, 2017,
apresenta a genealogia da visão globalista surgida entre
1939 e 1950, sobretudo no pós-II Guerra. Afirma que o
globalismo é uma mudança da ordem mundial (bases
normativas para as estruturas geopolíticas, econômicas e
legais) que tem como eixos: uma alternativa à ordem
imperial estabelecida pelas potências europeias;
preocupações com o futuro da democracia, que deveria ser
sustentada por uma nova concepção de ordem democrática
global, ampliando os limites dos Estados nacionais e a
perspectiva da diversidade (concepção pluralista) que
refletiria o pluralismo político, cultural e social.
A despeito de Rosenboim ter identificado a genealogia
da visão globalista, os seus fundamentos teóricos estão
assentados nas ideias liberais, desenvolvidas em momento
anterior àquele período. Em essência, os liberais no plano
econômico, seguindo a linha de Adam Smith, defendem que
o comércio internacional seja uma fonte de relações
pacíficas entre as nações, pois proporcionaria benefícios
mútuos com a ampliação da divisão do trabalho e aumento
da riqueza para todos.
No plano político, as ideais cosmopolitas liberais de Kant,
expressos na obra “A paz perpétua” (1795), advogam que
seria possível, por intermédio do direito internacional e da
ampliação do comércio livre, construir uma liga de alguns
povos, tendo um Estado central que se ampliaria, num
primeiro momento, e evitaria a eclosão de hostilidades até o
estabelecimento, num segundo momento, de uma paz
perpétua, eliminando conflitos entre nações e diferenças
culturais sob a alegação de que a pátria de todos é o
mundo. Isso, por sua vez, criaria uma verdadeira liberdade e
igualdade entre os homens. Tal Estado central, segundo ele,
deveria ser regulado pelas normas do direito internacional.
As ideias globalistas (ou liberal-internacionlistas)
ganharam força no âmbito das Relações Internacionais
desde a década de 1980 com a ampliação das questões
econômicas associadas à ideia de que o mercado é o
instrumento social para a maximização da eficiência. Com
isso, apesar de contratempos, o mundo estaria se movendo
na direção da economia de mercado e do aumento da
interdependência econômica global, reduzindo assim o
poder dos estados nacionais e sua capacidade de regular o
movimento dos capitais. Para os globalistas, os EUA,
regulador do sistema internacional, deveria se apoiar nas
relações econômicas e não nos atores estatais, pois o
mundo do futuro pertenceria às nações comerciais, o que
permitiria um crescimento maior da riqueza, caso houvesse
uma economia mundial mais livre.
Em uma linha crítica ao globalismo é possível afirmar
que, a despeito do avanço da internacionalização liberal,
com o avanço do livre mercado, da liberalização financeira e
do final da União Soviética, não se configurou uma
convergência econômica, nem diminuição da desigualdade
de renda entre as nações e indivíduos, nem muito menos o
estado de paz perpétua kantiano.
Pelo contrário, a perspectiva de a globalização melhorar
a vida das pessoas não ocorreu, inclusive verificou-se uma
deterioração da renda e do mercado de trabalho nos países
centrais que adotaram o internacionalismo e o
cosmopolitismo como eixo. A expansão da
internacionalização liberal não matou o Leviatã estatal, uma
vez que o Estado-nação continuou como elemento de
“regulação” institucional fundamental ao eixo de
acumulação de capital, pois o avanço das empresas
transnacionais não as libertou de sua base nacional, que
legisla e protege esses capitais.
Doremus e outros autores, em “The myth of the global
Corporation”, ao analisarem os casos americanos, japoneses
e alemães, evidenciaram que a origem nacional das
empresas multinacionais interfere de forma significativa em
suas estratégias de pesquisa e desenvolvimento, de
comércio e de investimento fora de seus territórios de
origem. Eles afirmam que as diferentes formas de
organização institucional e das ideologias nacionais
determinam de maneira decisiva a organização e as
estratégias das empresas multinacionais cujas atividades
criam competências tecnológicas nacionais sustentáveis.
Dada a apresentação das origens do termo globalismo e
da forma como ele é utilizado nas relações internacionais,
atrelado ao internacionalismo e ao cosmopolitismo, bem
como à crítica dessa visão de mundo, cabe apresentar a
definição utilizada no “Projeto de Nação”. Nesse documento,
o globalismo seria:
“o movimento internacionalista cujo objetivo é determinar, dirigir
e controlar as relações entre as nações e entre os próprios
cidadãos, por meio de posições, atitudes, intervenções e
imposições de caráter autoritário, porém disfarçados como
socialmente corretos e necessários. No centro desse movimento
está a elite financeira mundial, ator não estatal constituído por
megainvestidores, bancos, conglomerados transnacionais e
outros representantes do ultracapitalismo, com extraordinários
recursos financeiros e econômicos” (p. 12).
“O argumento central do globalismo é de que lidar com
problemas cada vez mais complexos, como crises econômicas,
proteção do meio ambiente, direitos humanos e outros, requer
um processo centralizado de tomada de decisões em nível
mundial. É comum a Elite cooptar, aliar-se ou se alinhar com
potências mundiais, organismos internacionais e ONGs, haja
vista a capacidade desses entes de se projetarem em escala
global” (p. 30).
“No Brasil, atualmente, é visível a união de esforços entre
determinadas entidades nacionais e o movimento globalista,
inclusive com o apoio de relevantes atores internacionais,
visando a interferir nas decisões de governantes e legisladores,
especialmente em pautas destinadas a conceder benesses a
determinadas minorias, em detrimento da maioria da população,
a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico,
usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses e
não pela necessária preservação da natureza, e a provocar crises
que enfraquecem a Nação em sua busca pelo desenvolvimento”
(p. 12).
É evidente que o conceito de globalismo apresentado
pelos militares possui alguns pontos de tangência com o
termo utilizado nas relações internacionais, especialmente
no que diz respeito ao aumento da interdependência dos
mercados, do poder dos segmentos financeiros com o
avanço da globalização produtiva e financeira e da busca da
construção de um Estado-central ao estilo kantiano. O
globalismo é identificado como um movimento
internacionalista que precisa ser combatido para manter a
unidade da nação brasileira, permitindo o seu
desenvolvimento.
Nesse sentido, a doutrina expressa no “Projeto de
Nação” está inserida num conjunto amplo de visões de
mundo antiglobalização constituído de uma miríade de
linhas e sublinhas interpretativas:
1) Anarquistas e movimentos difusos que questionam a
distribuição de renda no mundo no contexto da
internacionalização e do predomínio do mercado. Occupy
Wall Street foi um dos movimentos de destaque nos EUA,
após a crise financeira de 2008, que lançou muitos
americanos à condição de pobreza.
2) Nacionalistas que enxergam a possibilidade de maior
intervenção dos Estados nacionais no sistema econômico
nacional e internacional, voltada ao aumento dos
investimentos, do emprego e renda e a maior regulação dos
sistemas financeiros. Nesta linha, o globalismo não matou o
Leviatã estatal, mas sim modificou a sua forma de atuação,
que pode ser revista.
3) Extremistas de direita, sobretudo norte-americanos,
que enxergam no globalismo um movimento comandado
por financistas judeus esquerdistas, que tem como objetivo
transformar as pessoas e as relações entre os Estados por
meio do “politicamente correto”, que imprimiria aos
indivíduos, de forma disfarçada, valores antinacionalistas e
multiculturais que estariam eliminando as tradições
fundantes das nações ocidentais. Criaria, assim, uma
suposta ditadura da minoria sobre a maioria.
Marcos Ruperto, em “Ideologias da globalização: visões
em conflito de uma nova ordem mundial” (Routledge, 2012,
p. 17), observou:
“Antiglobalistas de extrema direita exploram cepas
profundamente arraigadas do senso comum, articulando em
graus variados o individualismo liberal com identidades
(masculinidade, religiosidade e racismo) para construir uma
imagem do excepcionalismo americano como bastião do
privilégio branco, masculino e cristão. Esta fé levou um
segmento da sociedade americana a interpretar a globalização
como um fenômeno de tirania engolindo os EUA através de uma
conspiração traiçoeira, violando a cidadela do excepcionalismo
americano e destruindo implacavelmente suas qualidades”.

Esse sentimento de insegurança ganha ainda mais forma


no imaginário coletivo num contexto histórico-estrutural de
fluidez e incerteza (no trabalho, nas relações, etc) acerca do
devir, ampliando a percepção de que haveria uma
conspiração traiçoeira de uma Nova Ordem Mundial sob
domínio do movimento globalista.
De forma mais específica, é possível identificar uma
maior aproximação da doutrina antiglobalista do “Projeto de
Nação” com a extrema direita internacional. Vejamos essa
ligação de forma mais detalhada.
Segundo o documento, o globalismo pretende dirigir e
controlar as relações entre as nações e entre os cidadãos
por meio de posições autoritárias disfarçadas de
socialmente corretas. Em outras palavras, o movimento
globalista estaria impondo um senso comum modificado
para a população, disfarçado de “socialmente /
politicamente correto”.
Para o neoconservadorismo norte-americano
(atualmente denominados de alt-right), mais
especificamente o ramo denominado paleoconsertives, que
se expandiu nos anos 1990 e 2000 e chegou ao poder com
o governo Trump, o “politicamente correto” é igual ao
“marxismo cultural”, que seria uma estratégia dos
marxistas em sua luta revolucionária, que teriam migrado
da dimensão econômica para a cultural.
Os eixos constitutivos do pensamento da alt-right estão
assentados nas formulações da “velha direita” coletivista
dos anos 1920 e 1930, a saber: ênfase na “guerra cultural”,
pois a cultura e a moralidade americana estariam sendo
destruídas pelo relativismo e pelo multiculturalismo por
meio do “politicamente correto”, que seriam os
instrumentos utilizados por esquerdistas (acadêmicos,
militantes, jornalistas, etc) e/ou pelas elites financeiras
globais para obterem o controle sobre a maioria da
população.
Dentre os principais ideólogos dessa alt-right, destacam-
se Pat Buchanan, Samuel Francis, Paul Gottfried, Gerald
Atkinson, Paul Weyrich, William Lind. Berkowitz (2013)
afirmou, em 2003, que estava crescendo na alt-right a ideia
de que o “marxismo cultural” seria um movimento
conspiratório com ligações semitas. Em suas palavras:
O comentarista de televisão Pat Buchanan diz que está sendo
usado para “descristianizar” a América. O peso-pesado de
Washington, William Lind, afirma que está transformando os
campi universitários dos EUA em “Coreias do Norte cobertas de
hera”. O comandante naval aposentado Gerald Atkinson teme
que tenha invadido as academias militares do país. O ativista de
imigração John Vinson sugere que visa “distorcer e destruir”
nosso país.
O “marxismo cultural”, descrito como uma tentativa
conspiratória de destruir a cultura e a moralidade
americanas, é o mais novo bicho-papão intelectual da
direita radical. Surpreendentemente, há sinais de que essa
teoria bizarra esteja se popularizando.
Para os paleoconsertives, os estudiosos que trilharam
pelo campo cultural (de Gramsci e Luckas, na década de
1930; passando pela Escola de Frankfurt, nas décadas de
1950 e 1960, até o ativismo contemporâneo identitário pós-
moderno – racial, feminista, LGBT, imigrantes,
ambientalistas, etc) não teriam objetivos honrosos de
compreender a dinâmica cultural do capitalismo, mas sim
teriam uma agenda política oculta para “destruir as
tradições e valores ocidentais”.
Para o “Projeto de Nação”, o movimento globalista é
comandado pelas finanças, pelos conglomerados
transnacionais e atores estatais, como se os Estados não
tivessem mais relevância na configuração da Nova Ordem
Internacional desde o fim da União Soviética.
Em matéria publicada em 2016 pelo The New York
Times, a jornalista Liam Stack (2016) afirmou que a alt-right
estadunidense passou a se referir ao globalismo, após o fim
a Guerra Fria, como o maior perigo para a nação, uma vez
que teria sido a base da Nova Ordem Mundial, com
tentáculos em todos os lugares. Esses tentáculos seriam
controlados por financistas globais, com forte ligação com o
judaísmo.
Exemplo sempre citado pela alt-right é o empresário
judeu George Soros. Nesse sentido, há elementos
antissemitas na teoria conspiratória do “marxismo cultural”.
Para a extrema direita, há uma ligação umbilical entre
comunismo e judaísmo. Os autores judeus da Escola de
Frankfurt seriam, supostamente, a expressão dessa relação.
Cabe observar ainda que não existe essa autonomia
plena das elites econômicas-financeiras e produtivas,
descolada de decisões estatais. Um dos elementos centrais
que afetam os ganhos financeiros no mundo é a taxa de
juros definida pelo Banco Central do EUA (FED). Além disso,
o Estado nacional e suas políticas públicas, especialmente
no campo do direito de propriedade, da inovação e do
financiamento, são fundamentais para a configuração e
expansão de suas empresas multinacionais.
O “Projeto de Nação” destacou ainda que existe no Brasil
uma parceria entre movimentos globalistas (ONG’s,
segmentos financeiros, etc) e entidades nacionais (dentre
as quais parcela dos partidos políticos, do Judiciário, do
Ministério Público e da Defensoria Pública que atuam sob
prisma exclusivamente ideológico) com o objetivo de
exercer ingerência em pauta ambientalista e em favor das
minorias. Nesse ponto, o documento relaciona as ameaças
externas (movimento globalista) em articulação com as
ameaças internas, que para os militares são os comunistas
agora transvestidos de “marxistas culturais”.
Quais seriam os intelectuais orgânicos (“marxistas
culturais”) que sustentariam uma reforma cultural e moral
em prol da revolução socialista no Brasil?
Para o general Avellar Coutinho, em “Cadernos da
Liberdade”, seriam os socialistas e comunistas
(internacionais e nacionais) infiltrados: 1) nos partidos,
como FHC (vinculado ao fabianismo que teria como
importantes representantes Soros, David Rockefeller, Bill
Clinton, entre outros) e como Lula (articulado com Fidel
Castro organizador do Foro de São Paulo); 2) nas escolas e
universidades, com o avanço do pluralismo e da educação
globalista; 3) nos meio de comunicação, que apresentam
valores cosmopolitas contrários a tradição nacional; 4) nas
manifestações artísticas, que subvertem os valores
familiares; 5) nos movimentos sociais (ambientalistas,
movimento negro, LGBT, MST, etc), que criam uma falsa
polaridade e/ou luta de classe por mudanças sociais. Todas
essas pessoas ou instituições estariam criando o senso
comum modificado para realizar a revolução gramscista
socialista pela via pacífica no Brasil utilizando o
instrumental do “politicamente correto”.
Em linhas gerais, é possível afirmar que a visão
antiglobalista do “Projeto de Nação” possui uma forte
vinculação com a ideologia da extrema direita dos EUA.
Chama atenção que o documento transforma “hipóteses
heroicas” dos globalistas (inclusive a ideia de Estado-central
kantiano) em uma realidade efetiva sem maiores
comprovações empíricas. Inclusive, o próprio documento
desenha um futuro, em 2035, em que os Estados nacionais
estadunidense e chinês permaneceram predominantes na
arena internacional.
É evidente que, sob a égide globalista, coordenada pelos
EUA, países periféricos, como o Brasil, teriam seu poder
efetivo reduzido à medida que se inserissem de forma cada
vez mais passiva no mercado internacional, o que
requereria novas estratégias produtivo-tecnológicas e de
defesa nacional capitaneadas pelo Estado brasileiro por
meio de gastos e investimentos públicos.
O globalismo piorou as condições materiais (emprego e
renda) da maioria da população nos países periféricos, mas
daí concluir que há uma conspiração internacionalista (entre
movimento globalistas e nacionais) que articula alta
finanças, “marxismo cultural” e “politicamente correto” e
que isso seria o maior obstáculo à autonomia brasileira no
sistema internacional é outra história. Provavelmente, está
muito além da geopolítica e só pode ser explicada por
dimensões psicológicas.
Nem ordem nem progresso
João Quartim de Moraes[8]
A ironia é fácil, mas inevitável: os “Cenários”
vislumbrados para o Brasil de 2035 pelo recém-divulgado
“Projeto de Nação” são mais regressivos do que
prospectivos. O futuro para o qual apontam remete a um
passado de vassalagem, que remonta à elaboração da
doutrina do alinhamento subalterno das forças armadas
brasileiras ao imperium (no sentido etimológico) da Casa
Branca e do Pentágono e aos vinte e um anos tenebrosos
em que os direitos políticos dos brasileiros foram
confiscados pelas cúpulas militares.
Os principais episódios desse imenso retrocesso
intelectual e político: em 1949, fundação da Escola Superior
de Guerra (ESG), segundo o modelo do War College
estadunidense, formado dois anos antes; a partir de 1950,
persistente confronto ideológico entre a corrente militar
nacionalista e os pró-estadunidenses; a partir de 1952, o
general Golbery do Couto e Silva começou a publicar seus
ensaios sobre a “geopolítica do Brasil”, logo adotados pela
doutrina da ESG; em 1964, a ditadura militar, baseando-se
nessa doutrina, erigiu a “segurança nacional” em dogma de
Estado; em 1969, a nova Constituição outorgada pelo
regime terrorista do Ato 5 estipulou em seu artigo 91 que as
“Forças Armadas são essenciais à execução da política de
segurança nacional”. Será preciso lembrar que essa
“política” foi implementada a fundo pelos DOI-CODI?
Sintomaticamente, a doutrina da segurança nacional
relegou para a obscuridade o princípio democrático da
“defesa da pátria”, introduzido pela Constituição de 1934 e
mantido nas seguintes. Enquanto o patriotismo é um valor
claro e abrangente, “segurança” costuma servir de pretexto
para discriminar e perseguir correntes de opinião
consideradas “ameaças” internas. Com efeito, tal como
definida pelos porta-vozes da ditadura militar, a “segurança
nacional” é o “grau de garantia” que “um Estado
proporciona à Nação que jurisdiciona [...] para consecução e
manutenção de seus objetivos nacionais, a despeito de
antagonismos ou pressões existentes ou potenciais”.
A técnica do sujeito oculto. Nas leis de segurança e
outros documentos da ditadura e de seus continuadores, há
um sujeito oculto, não no sentido gramatical, mas no
sentido político do termo. Gramaticalmente, o sujeito é
claro: o Estado. Ele “jurisdiciona” a Nação, proporcionando-
lhe certo “grau de garantia” em vista “de seus objetivos
nacionais”. Mas quem decide quais são esses objetivos? É
célebre a fórmula l’État c’est moi, atribuída ao rei da França
Luís XIV. Mais discretos, os generais da ditadura abstiveram-
se de proclamações semelhantes. Preferiram não
personificar o sujeito que formulava os objetivos da Nação.
Esse silêncio é funcional. Permite à extrema direita, hoje
cerrando fileiras em torno de Bolsonaro, negar que o regime
instaurado pelo golpe de 1964 tenha sido uma ditadura.
Alega que não havia aqui um ditador e que as instituições
legislativas e judiciárias foram preservadas. Essa alegação é
mistificadora. Sem dúvida, diferentemente do Chile sob
Pinochet e em boa medida da Argentina sob Ongania e mais
tarde sob Videla, a ditadura militar no Brasil não se
identificou individualmente com nenhum general, porque
manteve caráter corporativo. Sem dúvida também, o
Legislativo e o Judiciário, embora expurgados, manietados e
sumariamente amordaçados em momentos críticos, não
foram suprimidos.
Mas é justamente em momentos críticos que se põe a
questão de fundo: quem tomará decisões em última
instância? Ela foi formulada com lúcida crueza pelo grande
constitucionalista antiliberal alemão Carl Schmitt (em
“Politische Theologie”, obra publicada em 1922): “soberano
é quem decide sobre a exceção”. Entendamos: é quem
resolve na prática, quaisquer que sejam os meios, os
impasses institucionais. No nazismo, ao qual Schmitt aderiu
em 1934, o Führer personificava a exceção, como no
fascismo o Duce. No Brasil, a instância soberana era o Alto-
comando das Forças Armadas, que tinha usurpado o
domínio da complexa máquina do Estado.
Além da tortuosa inversão da linha do tempo,
anunciando um futuro que reviveria o pior do passado,
também é falaciosa a relação do “Projeto de Nação” com o
presente. Ele simula exercício de futurologia para 2035, mas
o momento em que foi lançado, meses antes das eleições
de outubro 2022, com Bolsonaro ameaçando diuturnamente
virar a mesa se for confirmada sua derrota, prevista em
todas as sondagens sérias de intenção de voto, confirma
que seus redatores têm os olhos voltados para a atualidade.
Comprovam-no seus vínculos explícitos com o instituto do
general Villas Bôas, que já passou à história brasileira como
peça-chave do golpe parlamentar de 2016 e das
articulações que abriram a Bolsonaro o caminho da
presidência. O “Projeto de Nação” busca conferir algum
verniz teórico à tentativa de preservar os objetivos da
extrema direita com Bolsonaro em 2022, ou sem ele,
quando for o caso.
Outras siglas: Instituto Sagres; CPEAZ – Consultoria
Política e Empresarial para as Américas SEÇÃO BRASIL;
Instituto Federalista, também marcaram presença no
lançamento desse projeto de regressão nacional, que
contou com a participação do vice-presidente Mourão.
Institutos semelhantes, nomeadamente o Ibad e o Ipes,
ocuparam lugar importante na conspiração que articulou o
golpe de 1964. A diferença mais importante entre aquela
situação e a presente é que os grandes meios privados de
comunicação social, a começar da Rede Globo, que
apoiaram o assalto militar ao poder em 1964, agora
rejeitam a barbárie bolsonarista.
À cata de um nome novo para suas velhas ideias
requentadas, os autores do “Projeto de Nação” auto
definem-se como “conservadores evolucionistas”. A fórmula
sugere alguma dialética, mas confunde mais do que
esclarece:
“O Conservador evolucionista não é imobilista, porque advoga
que as mudanças e o contínuo desenvolvimento são necessários
e saudáveis para as nações, mas a progressiva complexidade
conjuntural exige que essas mudanças sejam prudentes e
graduais, levando em consideração a experiência, a História e as
tradições. Vale dizer que, em uma sociedade dinâmica, a
permanência e a evolução são reconhecidas e conciliadas.”
(Pág.15)
Dependendo do que pretenda preservar e do que
pretenda mudar, qualquer corrente política, da extrema
direita à extrema esquerda, pode concordar com
enunciados genéricos como esses, que não definem nada.
Ao se apresentarem como conservadores (em cujo
pelotão de choque eles se colocam), estão explicitando sua
posição no lado direito do espectro ideológico. Declaram-se
também “evolucionistas”, o que traz certa perplexidade.
Evolução, no sentido fundamental, designa a transformação
das espécies orgânicas. Transposto à história das
sociedades humanas, o termo sugere mudanças qualitativas
substanciais. Não parece ser o que o projeto pretende ao
preconizar mudanças “prudentes e graduais”. De qualquer
modo, na linguagem quotidiana, o sentido do termo é amplo
demais para caracterizar uma corrente de opinião. Não seria
mais coerente e, sobretudo, mais patriótico, em vez de
recorrer a esse termo vago, se inspirar no dístico da
bandeira nacional, ordem e progresso?
Lamentavelmente, porém, o “patriotismo” do “Projeto de
Nação” só se manifesta por meio de ficções, inventando
ameaças imaginárias para não encarar os problemas reais.
Assim é o caso quando critica o que chama “globalismo”,
definido como “movimento internacionalista cujo objetivo é
determinar, dirigir e controlar as relações entre as nações e
entre os próprios cidadãos, por meio de posições, atitudes,
intervenções e imposições de caráter autoritário, porém
disfarçados como socialmente corretos e necessários”.
Chamar de “internacionalista” a “elite financeira mundial”,
composta de “megainvestidores [...] e outros
representantes do ultracapitalismo”, é deturpar o
significado do internacionalismo, termo historicamente
associado ao ideal de congraçamento dos povos, uma das
melhores tradições do pensamento político socialista. Ao
acrescentarem que a tal elite do “ultracapitalismo” é um
“ator não estatal”, eles sugerem que a alta finança paira
nos ares, sem suporte da máquina de guerra dos Estados
imperialistas (Otan, Pentágono e agregados). Mas o bonito
papel que em suas elucubrações futurológicas eles atribuem
à IV Frota estadunidense, “protegendo” o Caribe da cobiça
chinesa, não deixa dúvidas a respeito do “ator estatal” que
faz bater seus corações.
A presença do vice-presidente Mourão no lançamento do
“Projeto de Nação” exibiu as ambições continuístas do
dispositivo militar governista. Difícil saber, confirmando-se a
expectativa da derrota de Bolsonaro em outubro próximo,
quantos generais embarcariam com ele em novas aventuras
golpistas. Na hipótese plausível de que tais aventuras sejam
contidas ou fracassem, os articuladores menos toscos da
cúpula das Forças Armadas, sabendo que o nome de J.
Messias provoca repúdio em qualquer ambiente
razoavelmente esclarecido, poderão se afastar do homem
que os levou em 2018 ao centro do poder, para tentar
recompor o campo político da extrema direita, aproximando-
se do lavajatismo.
Deixar aberta tal possibilidade para um futuro bem mais
próximo do que 2035, talvez seja uma das motivações dos
“conservadores evolucionistas”. Os ataques que eles
dirigem ao “globalismo” parecem-nos inscrever-se nessa
perspectiva: são de molde a agradar todo o campo do
extremismo fascistóide, dos “tigrões” bolsonaristas aos
adeptos do moralismo tartufo de Moro e sócios.
Recorrendo à falaciosa vantagem das noções nebulosas,
cuja flacidez permite nelas introduzir alegações ardilosas, os
futurólogos do evolucionismo regressivo sustentam que “o
globalismo tem outra face, mais sofisticada, que pode ser
caracterizada como ‘o ativismo judicial político-partidário’,
onde parcela do Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública atuam sob um prisma exclusivamente
ideológico”. É um dogmatismo arrogante classificar de
“ideológicas” as motivações daqueles que incomodam.
Partindo de bolsonaristas não surpreende, porém: é só
lembrar das caçadas macarthistas às ideologias
progressistas, promovidas em âmbito escolar e cultural pela
ministra que via Jesus na goiabeira e por seus consortes do
mesmo patamar intelectual.
Mais adiante, reescrevendo o passado a partir de seus
próprios preconceitos, os futurólogos de 2035 simulam
constatar retrospectivamente que “até o final dos anos
2010, a criminalidade e a violência cresciam
constantemente”. Atribuem culpa à “leniência” de “setores”
das três instituições integrantes da função jurisdicional do
Estado, acusando-as de verem “a criminalidade como fruto
da luta de classes, onde os criminosos eram qualificados
como vítimas e suas vítimas encaradas como opressores”.
Esta asneira sociológica expressa bem a indigência
mental do senso comum reacionário, que não se dá conta
de que os criminosos não são uma classe, mas toda classe
tem seus criminosos. No Brasil de 2019-2022, não somente
continuaram a prosperar as múltiplas modalidades habituais
da pequena e grande criminalidade, mas a sabotagem do
Executivo federal à luta contra o coronavírus configurou um
crime continuado contra a saúde pública, responsável por
parte considerável dos quase 700.000 mortos que o flagelo
viral provocou no País.
Sintomaticamente, o projeto refere-se apenas aos efeitos
econômicos dessa catástrofe sanitária (em que os
bolsonaristas deixaram indeléveis impressões digitais),
notando, a propósito da “economia mundial”, que seu
“curso evolutivo foi severamente impactado pela pandemia
da Covid-19, no início dos anos 2020”. Para melhor
banalizar a questão, ele acentua a fatalidade natural dos
grandes surtos virais, recorrendo à ficção de uma nova
pandemia em “2027/28, motivada pelo “Xvírus”, um vírus
ainda mais agressivo, mas que foi controlada em menos de
um ano”.
Não esclarece, porém, se esse controle foi obtido graças
à aplicação massiva de cloroquina.
Sobrevivência da Doutrina
de Segurança Nacional
Rodrigo Lentz[9]
O objetivo deste texto é oferecer uma análise do “Projeto
de Nação” a partir dos conceitos da doutrina de ação
política da Escola Superior de Guerra (ESG). Trata-se de
identificar aproximações e distanciamentos entre esta
doutrina e o programa de ação política coordenado por
lideranças da burocracia militar da reserva, sobretudo de
oficiais-generais do Exército, engajadas na disputa pelo
poder político.
Merecem destaque a figura simbólica do general
Eduardo Villas Bôas, que dá nome a um dos Institutos
autores do “Projeto de Nação”, e os generais Luiz Eduardo
Rocha Paiva, Alberto Mendes Cardoso, Maynard Marques de
Santa Rosa, Paulo Chagas e Ridauto Lúcio Fernandes. No
plano operativo, é de se ressaltar outros quadros de oficiais
da reserva ou já reformados, como os coronéis Raul José de
Abreu Sturari, Mário Andreuzza, Jacintho Mendes Lopes
Júnior, Diógenes Lima Neto, José Alberto Cunha Couto;
major Humberto de Sá Garay e o capitão-do-mar Jefferson
de Souza Oliveira, todos militares ligados ao Instituto
Sagres.
No cenário de perplexidade que se formou a partir das
eleições de 2014, depois da participação aberta de militares
na política, um elemento a se destacar é a ampla
desconsideração sobre a permanência de uma atualizada
“Doutrina de Segurança Nacional” (DSN). E não apenas
aspectos remanescentes, como José Manuel Ugarte já havia
identificado, em seu artigo “Doutrina de Segurança
Nacional” no Dicionário sobre Defesa e Soberania (2018).
Em todos os governos civis, esta doutrina continuou
sendo atualizada, aperfeiçoada e adaptada às mudanças
para guiar a ação política dos altos-comandos. Assim como
em seus primórdios, na formulação de Golbery em 1955, a
doutrina tem em seu nome a camuflagem tecnocrática do
“Planejamento Estratégico” e oferece, às elites militares e
civis, uma metodologia de ação política visando à direção
do Estado nacional.
Reconhecer a sobrevivência, a atualidade e os novos
contornos da DSN não implica, de plano, dizer que é ela a
orientadora da ação política da instituição e, mais ainda, de
militares da reserva e da ativa que recentemente passaram
a fazer política partidária. Por isso, convém contrapor seus
termos às elaborações ideológicas e à própria atuação do
conjunto de atores político-militares.
Esse empreendimento é feito conforme a metodologia
da sistematização de crenças de elites políticas aplicada à
DSN, em suas versões editadas entre 1974 e 2016.
Portanto, considero os termos recentes dessa doutrina, até
sua última atualização no governo Dilma Rousseff (2015),
buscando o que há de próximo e/ou distante no programa
ideológico em análise.
Em seu núcleo ontológico, estão as categorias (1)
sociedade política e a (2) concepção de poder; no núcleo
político, essas concepções se estruturam em (3) aspirações
e interesses brasileiros, (4) poliarquia de segurança
nacional, (5) neoliberalismo e (6) ; por fim, a (7)
metodologia da tutela política.
Sociedade política
No “Projeto de Nação” em exame, a visão sobre a
natureza humana e sua organização social é fundamental
para compreender seu sentido ideológico. Em diversas
passagens, o documento se posiciona abertamente como
“conservador”, “conservador evolucionista” e “liberal”,
destacando as bases de sua visão de mundo.
É o mesmo sentido ontológico que permaneceu na atual
DSN. Primeiro, há uma premissa teológica de que todo ser
humano é “criatura do criador” e, sendo o cristianismo a
tradução dessa relação na formação histórico-cultural
ocidental, a natureza humana é composta por três
elementos intrínsecos: a liberdade de iniciativa individual,
em que vigora o livre-arbítrio; a igualdade de oportunidades
para exercer essa liberdade e a natural busca por um “bem
comum” (sic!) de toda ação humana.
A partir dessas premissas, os valores “morais e éticos”,
assim como a corrupção desses valores, assumem
nitidamente caráter sacrocristão do humanismo
conservador como sentido de ordem da organização social e
da própria noção de bem comum. Uma sociedade orgânica,
estruturada por um sistema de relações sociais que devem
seguir a direção do humanismo cristão-conservador,
definindo objetivos coletivos diretamente ligados aos
“interesses vitais” desse organismo social. No caso de uma
nação, os objetivos nacionais.
Assim temos um individualismo orgânico, em que a
liberdade individual está voltada para a evolução de sua
natureza humana e para a ordem em contínua mudança
para conservar as bases evolucionistas da sociedade,
naturalmente desigual e hierárquica.
Daí a importância das estruturas do sistema
educacional, assim como da ordem social e moral, objetos
de atenção vertical do “Projeto de Nação”. Há um conjunto
de valores, estruturados em instituições da nacionalidade,
que conservam ou deturpam o sentido evolutivo do
humanismo cristão-conservador. É uma questão vital e, por
isso, sua conservação reflete na definição de objetivos
nacionais.
Poder nacional
O “Projeto de Nação” também é recorrente em
mencionar o “poder nacional” como principal meio de
atingir aqueles “objetivos nacionais”. Em diversas
passagens, se refere às “expressões” do poder nacional ou
aos “campos” desse poder, sobretudo político, militar,
econômico, científico-tecnológico, diplomático e cultural.
Este, por vezes, também aparece como “sociocultural” e,
principalmente, como “psicossocial”.
Quanto à doutrina, há dois aspectos a se destacar.
Primeiro, a noção de poder nacional: segmentos
organizados da sociedade que, embora tenham suas
distinções e dinâmicas próprias, compõem um uno
indivisível, parte de um só corpo, que deve perseguir o
mesmo objetivo nacional. Não por acaso, a “coesão
nacional” aparece no projeto como uma necessidade dos
meios para se atingir os fins. Neste ponto, suas subdivisões
praticamente reproduzem a estrutura atual da doutrina
sobre as “expressões” do poder nacional: política,
econômica, militar, psicossocial e científico-tecnológico,
esta expressão acrescida a partir da década de 1990. Uma
única peculiaridade é o destaque do campo diplomático da
expressão política, algo não observado na doutrina.
Segundo, diz respeito à relação entre essas expressões.
No “Projeto de Nação” há uma clara defesa de ampliação da
autonomia de todos os campos de poder em relação ao
poder político. Considerando que apenas este se legitima
pelo sufrágio universal em democracias, tal diretriz revela a
permanência da insubordinação como horizonte da
organização do poder. A própria manutenção da separação
do poder militar do poder político é recibo estrutural dessa
mentalidade autoritária.
Na doutrina, após 1988, houve apenas o reconhecimento
da “preponderância” da expressão política, mas com uma
ressalva: se admitiria o “deslocamento do centro decisório”
para outras expressões do poder nacional em caso de
desvio dos objetivos nacionais.
Aspirações e interesses brasileiros
Quanto ao conteúdo dos “objetivos nacionais
brasileiros”, o “Projeto de Nação” é direto em apontar que a
ideologia conservadora-evolucionista-liberal é aquela que
corresponde ao “tradicional perfil psicossocial da Nação”, se
contrapondo às “ideologias radicais”. Com isso, a noção de
“interesses” e “aspirações” nacionais corresponderiam
apenas às ações convergentes a tal ideologia, reproduzindo
uma conhecida mentalidade autoritária na definição da
vontade política do conjunto da sociedade brasileira.
Aqui há três ordens veladas no “Projeto de Nação”, mas
explicitamente descritas na doutrina. Primeiro, uma ordem
baseada na hierarquia nas relações socioeconômicas: o
capital manda e o trabalho obedece, sendo esta a
configuração da “paz social”. Segundo, a cultura europeia
do colonizador, sobretudo portuguesa com seus
incrementos francês, inglês e estadunidense, deve se
sobrepor às demais influências subalternas das culturas
africanas e indígenas, que compõem “subsidiariamente”
nossa formação cultural. Terceiro, uma ordem política em
que as instituições se estruturam e se aperfeiçoam
mantendo essas hierarquias, tendo as elites nacionais o
papel de “interpretar” a vontade nacional e dirigir o povo,
incapaz de fazê-lo diretamente ou pela via de organizações
à margem dessas elites. Manter a unidade dessas três
ordens seria o grande objetivo brasileiro.
Por fim, é de se anotar que o “Projeto de Nação” seja
recorrente em apontar debilidades morais tipicamente
brasileiras: as lideranças políticas são “patrimonialistas”,
“fisiológicas” e “corruptas”; o sistema de ensino é
administrativamente ineficiente, indisciplinado e
antiméritocrático; o corpo docente, débil “moral, ética e
profissionalmente”, completando um cenário corrompido
por “ideologias radicais, utópicas e liberticidas”; já o
empresariado, é dependente de iniciativas governamentais,
pouco “pró-ativo”.
Neste ponto, o “Projeto de Nação” é assertivo na crença
da superioridade moral dos militares no Estado e do
agronegócio na economia.
Poliarquia de segurança nacional
Na ordem política, o “Projeto de Nação” é mais
autoritário do que a DSN, mas se baseia no mesmo
princípio: “liberdade com responsabilidade”. Nesta
formulação, o conceito de democracia é similar à noção de
“Poliarquia” de Robert Dahl: representação política,
competição eleitoral, oposição política, liberdade de
imprensa, separação e harmonia entre poderes, judiciário
independente, sistema de direitos civis e políticos, proteção
às minorias. Porém, essa competição entre elites políticas
teria o acréscimo sistêmico de vetos ideológicos visando à
“estabilidade” do regime político.
Nessa concepção peculiar de democracia, que tenho
chamado de “poliarquia de segurança nacional”, um
governo eleito pelo povo teria o “dever ético” de não se
desviar dos “objetivos nacionais”.
Caso isso ocorra, naturalmente se formaria uma crise –
de ordem moral, econômica e/ou política – em razão das
“disfuncionalidades” produzidas no sistema político:
“polarização partidária”, “fisiologismo”, “clientelismo”,
“ações eleitoreiras” e “busca por hegemonia no poder”.
Inicialmente, caberia ao Poder Judiciário, como centro
gravitacional do sistema político, sanear as
disfuncionalidades. Uma vez fracassando, a crise se
agravaria para um nível “político-estratégico”, exigindo um
temporário “deslocamento” do centro decisório do poder
político para outras expressões do poder nacional, visando
sanear as “disfuncionalidades” e voltar à estabilidade do
regime.
No “Projeto de Nação”, essa concepção de democracia
se revela pelo planejamento de reformas no sistema político
e no Estado, justamente buscando superar tais
“disfuncionalidades”. Para tanto, se observa a diretriz de
aumentar a autonomia das expressões do “poder nacional”
em relação ao poder político, afastando a capacidade da
influência político-partidária – e, com isso, suprimindo a
própria democracia. Somente assim seria possível promover
reformas estruturais no sistema de ensino, capazes de
reverter o pluralismo ideológico produzido nas últimas
décadas pelo processo de democratização da sociedade.
Por isso, ao dizer que os “regimes democráticos
contemporâneos constituem o principal ambiente de
convergência, reconhecimento e reunião entre
conservadores e liberais” o projeto está se referindo a essa
“poliarquia de segurança nacional”: uma democracia sem
pluralismo, uma democracia de ideologia única.
Neoliberalismo
Não havendo inovações no plano ideológico, o “Projeto
de Nação” reproduz os valores do capitalismo liberal
presentes na doutrina desde sua origem. Igualmente,
manifesta as digitais da virada neoliberal dessa doutrina
ocorrida na década de 1980: o mercado deve ser o centro
de decisões da economia e o Estado deve se recolher às
funções normativas e regulatórias, atuando diretamente em
atividades econômicas de forma temporária, subsidiária e
excepcional, em “áreas estratégicas essenciais à segurança
nacional”.
Porém, é de se reconhecer que o “Projeto de Nação”, até
por sua natureza prescritiva de médio prazo para ação
governamental, é muito mais direto em suas diretrizes
neoliberais. Para além de seguir à risca o vocábulo
neoliberal, a previsão de cobrança de mensalidades nos
sistemas de saúde e educação pública revela, a olho nu,
como a ideologia neoliberal penetrou nas entranhas do
pensamento político da instituição militar. Nem mesmo nas
áreas estratégicas de defesa nacional essa mentalidade
escapa, uma vez que a própria concepção de soberania
nacional permaneceu colonizada.
Segurança e defesa nacionais
Se comparadas doutrina e projeto, nesta categoria é que
se pode perceber o alto grau de convergência. E são muitos
os elementos: i) noção de defesa externa subordinada à de
segurança nacional, perfazendo uma visão globalizada; ii)
segurança interna como segurança político-institucional e
ordem interna, incluindo segurança pública; iii) percepção
de ameaças internas e externas, com a identificação de um
inimigo externo que se manifesta internamente entre
nacionais; iv) estrutura sistêmica de óbices e pressões, que
requerem ações de inteligência, contrainteligência,
mobilização e logística nacionais que, em seu conjunto,
eliminem ou neutralizem as forças inimigas.
Sem adentrar em cada um desses tópicos, analisados
por diversos especialistas nesta obra, cumpre apenas
destacar o gravame de natureza política.
Há um claro ponto de partida ideológico para a
percepção do que são ameaças à soberania nacional:
conservadorismo-evolucionista-liberal. Deste ponto, a
disputa pela direção do Estado – e não apenas do governo,
é bom frisar – tem claramente como inimigos internos, em
maior ou menor potencial conjuntural, os grupos sociais que
pautam o nacional-desenvolvimentismo, o trabalhismo
contemporâneo, a sociedade civil ligada aos direitos
humanos e ambientalistas, e as amplas liberdades
democráticas de comportamento e organização social.
A elucubração do “Movimento Globalista Internacional” é
a versão contemporânea possível do velho anticomunismo
que se adapta ao seu tempo como instrumento de coesão e
mobilização ideológica, alicerçado num profundo
fundamentalismo religioso.
Nesse sentido, os aparelhos de Estado já militarizados
são projetados para servirem de instrumento político-
estratégico nesse embate ideológico. O reforço na tinta da
autonomia dos aparelhos diplomático, militar e de
inteligência em relação ao poder político se comunicam
diretamente com a ênfase nas dimensões psicossocial,
científica e tecnológica dessa disputa.
Metodologia da tutela política
Por fim, a metodologia do planejamento estratégico da
doutrina tem muitas digitais no “Projeto de Nação”. Ainda
que não reproduzam exatamente as mesmas técnicas na
elaboração de cenários, há um claro roteiro voltado para a
custódia do sistema político a partir da incidência no
processo decisório nacional: i) análise de ambiente, visando
perceber as correlações de forças internas e externas; ii)
elaboração de cenários, por diferentes técnicas, visando
antever o futuro e projetar uma concepção política que
resulte em objetivos de Estado (médio prazo) e de governo
(curto prazo); iii) uma concepção estratégica, definindo
óbices, diretrizes e ações previamente estudadas em suas
consequências, resultando em programas; iv) a gestão
política, em sua última fase de execução e controle.
A esse respeito, a reforma de um aparelho de Estado
específico dentro da presidência – o Centro de Governo no
âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos – visa
operacionalizar a desejada autonomia burocrático-militar
em relação ao poder político, viabilizando a metodologia da
tutela. A camuflagem tecnocrática da administração de
empresas, se valendo de vocábulos racionais-burocráticos
(eficiência, mérito, profissionalismo, ética, indicadores,
índices), é incapaz de ocultar sua disposição ideológica
voltada para a luta política.
Conclusão
Este breve diálogo entre o “Projeto de Nação” e a atual
Doutrina de Segurança Nacional da ESG pode nos indicar
diversos sentidos. Destaco dois. Primeiro, essa doutrina tem
significativa repercussão na projeção da ação política de
atores militares. Segundo, o próprio debate sobre o conceito
de segurança nacional – e, em último caso, a sua
inadequação para regimes democráticos – foi ignorado de
maneira idealista pela sociedade democrática.
O quanto dessa doutrina orienta o planejamento
estratégico das forças armadas? Sem um teste de realidade
a respeito, será mais longo o caminho da refundação
necessária de nossas instituições militares, que seguirão
como uma força estabilizadora do autoritarismo e
desestabilizadora do regime democrático.
A demanda mundial
por alimentos
Rodrigo Medeiros[10]

Este breve artigo analisa o “Tema 6 – Demanda mundial


por alimentos” do “Projeto de Nação”. Sob a perplexidade
de muitos democratas, desde que foi tornado público o
documento demanda análises críticas. Afinal, qual é o
projeto de país que busca ser a linha estratégica de Estado
para o Brasil no horizonte temporal que se estende até
2035? Um projeto neocolonial?
Ressalto, de imediato, a necessidade de retomarmos as
políticas públicas capazes de garantir a segurança alimentar
da população brasileira. Sabemos pela historiografia
disponível que a nossa tradicional inserção comercial
mundial, de caráter primário-exportador, esteve
invariavelmente associada a relações domésticas
concentradoras de poder político. A temática da reforma
agrária sempre encontrou grandes dificuldades para
avançar porque a posse da terra esteve tradicionalmente
vinculada ao exercício do poder político local e regional.
“Modernizações conservadoras” ocorreram ao longo do
século XX. Mas as estruturas tradicionais de poder,
“neocoloniais”, permaneceram praticamente intactas.
Conforme descreveu Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”
(1995), a nossa formação econômica esteve associada aos
“moinhos de gastar gente”. A exploração predatória da
natureza também integrou esse processo histórico.
Divulgado no dia 8 de junho de 2022, o inquérito da
Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) trouxe informações
muito preocupantes. A insegurança alimentar atinge quase
60% dos domicílios brasileiros. Segundo a Rede Penssan,
não devemos esquecer que houve “a continuidade do
desmonte de políticas públicas, a piora no cenário
econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o
segundo ano da pandemia da Covid-19”. Guardadas as
devidas proporções e distâncias históricas, esse dramático
quadro presente nos remete ao clássico “Geografia da
fome” (1946), de Josué de Castro. Com outras
características, a fome se espalhou para todas as regiões do
Brasil, urbanizando-se.
Josué de Castro denunciou a tentativa de explicação da
fome a partir de fenômenos estritamente naturais e
biológicos, ignorando ou tentando esconder a natureza
política do problema. Quase quatro séculos de escravidão
deixaram marcas profundas na sociedade brasileira. Após a
abolição da escravidão, um golpe militar instalaria a
Primeira República (1889-1930), que se tornaria oligárquica
e antissocial. Em síntese, tivemos o darwinismo social como
linha liberal na economia e um certo conservadorismo nos
costumes tão brilhantemente exposto pelo escritor Machado
de Assis. Naqueles tempos, as questões sociais eram
tratadas como casos de polícia. O café continuava sendo o
principal produto exportado.
Entre 1930 e 1980, o Brasil fez esforços e diversificou a
sua economia, com Getúlio Vargas, contra Vargas e sem
Vargas. A industrialização substitutiva de importações
ajudou a construir uma classe média e a urbanizar
aceleradamente o País. O capital privado nacional revelou-
se a perna fraca do tripé desenvolvimentista e o modelo do
capitalismo associado-dependente consolidou-se como a
regra geral no campo industrial. Problemas sociais e
ambientais acumulados são bem conhecidos no presente. A
crise da dívida externa, na década de 1980, culminou com o
fim do período autoritário. A Nova República herdou um país
em frangalhos, violento e brutalmente desigual, além de
atrasado do ponto de vista institucional, mas que ainda
assim era capaz de sonhar com um futuro melhor em
termos de prosperidade compartilhada.
Desde meados da década de 1980, o processo de
desindustrialização prematura se intensificou, refletindo a
perda relativa de dinamismo da economia brasileira.
Paralelamente, o crescimento do setor terciário não foi
acompanhado por ganhos de produtividade da economia.
Do ponto de vista da balança comercial, a tradição primário-
exportadora se destacou. Processos de modernização
conservadora deram novos impulsos à tradicional inserção
comercial global brasileira. Esses setores produtores de
itens básicos ou de semimanufaturados empregam
relativamente pouca gente e costumam ser intensivos em
capital, algo que repercute na distribuição da renda em
desfavor do trabalho. Estamos falando de setores produtivos
internacionalizados, voltados quase exclusivamente para o
atendimento de demandas externas.
Entre os objetivos estratégicos previstos para o Tema 6
no “Projeto de Nação”, consta a necessidade de “estimular e
proteger o agronegócio nacional como fator estratégico de
segurança alimentar global e nacional”. Devemos buscar
assegurar a segurança alimentar global antes da nacional?
Esforços para ampliar e diversificar a participação do Brasil
no mercado mundial de alimentos também constam como
objetivos estratégicos no documento. Entre as diretrizes
estratégicas, destaco as necessidades de “demonstrar à
opinião pública internacional a sustentabilidade ambiental
do agronegócio brasileiro” e “minimizar a nossa
dependência dos defensivos, insumos e fertilizantes
agrícolas estrangeiros”. Alguém sensato realmente acredita
que adianta que o Brasil adote o negacionismo nos fóruns
internacionais frente aos graves problemas ambientais e
sociais associados ao modelo de expansão territorial do
agronegócio? Ademais, buscar minimizar a dependência
tecnológica brasileira é um esforço contraditório com a
necessidade de promoção do viés econômico-liberal
pretendido no “Projeto de Nação”.
Como óbices, o documento cita “as campanhas
internacionais caluniosas para comprometer a imagem do
Brasil como não cumpridor de critérios de preservação
ambiental” e a “tentativa de potências globais assumirem
papel predominante na exploração e controle do
agronegócio brasileiro”. A invasão da Ucrânia pela Rússia
despertou a importância de termos capacidades
estratégicas científicas, tecnológicas e produtivas para
resistir a pressões internacionais consorciadas. Nesse
sentido, precisamos avaliar criticamente até que ponto a
expansão territorial do agronegócio brasileiro, que produz
commodities, tem sido efetivamente sustentável do ponto
de vista ambiental e até que ponto ele já não é, em boa
medida, associado e dependente de interesses estrangeiros.
A permissão legal para o uso de agrotóxicos proibidos na
União Europeia em território nacional e o crescimento do
desmatamento nos últimos anos revelam graves problemas
ambientais. Poderemos ter problemas comerciais no
horizonte.
No final de 2016, o Congresso Nacional promulgou a
Emenda Constitucional 95, que busca limitar por vinte anos
os gastos públicos primários. Esse teto dos gastos primários
já afeta negativamente as políticas sociais, inclusive as
políticas voltadas à segurança alimentar da população
brasileira. Em janeiro de 2019, a administração Bolsonaro
extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea), órgão responsável por coordenar os
programas federais ligados à segurança alimentar.
Programas de incentivo à agricultura familiar, que é a
principal fonte responsável por boa parte da comida que
chega à mesa das famílias brasileiras, foram extintos ou
esvaziados. Não convém esquecer que em 2014 o Brasil
havia deixado o Mapa da Fome formulado pela Organização
das Nações Unidas (ONU). Atualmente, os índices de
insegurança alimentar e da fome retornaram aos patamares
próximos aos da primeira metade da década de 2000, sendo
o quadro grave em todo o território nacional. Afinal, por que
precisamos desistir de ter políticas públicas de estoques
reguladores de preços de alimentos e de gerenciar a
logística associada? Em nome de um projeto neocolonial?
De acordo com a pesquisa já citada da Rede Penssan,
“nas áreas rurais, a insegurança alimentar (em todos os
níveis) esteve presente em mais de 60% dos domicílios” e
“a fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e
pequenos produtores”. Em síntese, “a pobreza das
populações rurais associada ao desmonte das políticas de
apoio às populações do campo, da floresta e das águas,
seguem impondo escassez”. Nas regiões Norte e Nordeste,
os números chegam, respectivamente, a 71,6% e 68% dos
lares em condições de insegurança alimentar, índices
maiores do que a média nacional. Em 2022, 33,1 milhões de
pessoas não têm o que comer no Brasil. A fome tem cor de
pele no Brasil. Segundo a Rede Penssan, “enquanto a
segurança alimentar está presente em 53,2% dos domicílios
onde a pessoa de referência se autodeclara branca, nos
lares com responsáveis de cor preta ou parda ela cai para
35%”. A fome também tem gênero entre nós. Nas
residências nas quais a mulher é a pessoa de referência, a
fome apresenta-se para 19,3% e nos lares nos quais têm
homens como responsáveis, a fome apresenta-se para
11,9%.
“A fome quase desaparece nos lares com renda superior
a um salário mínimo por pessoa”, destacou o inquérito da
Rede Penssan. Nesse sentido, a persistente inflação de
alimentos é muito preocupante por afetar a segurança
alimentar das famílias brasileiras. Desde meados de 2020,
houve aceleração dos preços dos alimentos. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa
registrada de informalidade foi de 40,1% para a população
ocupada no trimestre terminado em março de 2022, sendo
que a informalidade atingiu 39,1% no mesmo trimestre de
2021. O rendimento real médio do trabalho não tem dado
conta do processo inflacionário no Brasil e tal fato explica,
em boa medida, o baixo desempenho esperado da
economia, pois o consumo é um importante motor da
atividade econômica doméstica.
Em um cenário no qual o índice de preços de alimentos
da Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO, em inglês) pode subir até 45% em 2022,
os governos precisarão agir para garantir o abastecimento
doméstico de alimentos a preços módicos e a tranquilidade
social. Refletindo a gravidade do momento histórico, Pierre-
Olivier Gourinchas, diretor de Pesquisa do Fundo Monetário
Internacional (FMI), em artigo publicado no blog da
instituição, no dia 19 de abril de 2022, afirmou que a alta
dos preços dos alimentos e combustíveis pode elevar
consideravelmente a perspectiva de agitação social nos
países. Segundo Gourinchas, “a escalada de preços dos
alimentos e combustíveis prejudicará as famílias de baixa
renda em todo o mundo, inclusive nas Américas e no resto
da Ásia”. A invasão da Ucrânia pela Rússia aumentou o risco
de fragmentação da economia global em blocos geopolíticos
com padrões tecnológicos distintos.
Conforme indicou o diretor do FMI, as contradições do
padrão de gestão das políticas econômicas dos países
dificultam o avanço de políticas públicas capazes de
enfrentar a transição climática, “enquanto atrasos em lidar
com a crise do clima tornam as economias mais vulneráveis
aos choques de preços das commodities, alimentando a
inflação e a instabilidade econômica”. O Brasil vem
desmontando as políticas públicas capazes de regular os
preços básicos desde 2016 pela via do reformismo
regressivo. Políticas de desmonte dos estoques públicos de
alimentos e de precificação internacional dos combustíveis
revelam que parte dos problemas inflacionários que
vivemos foram criados domesticamente, com um articulado
apoio organizado por quem mais se beneficiou. Essas
políticas reforçaram a concentração de riquezas no topo e
impulsionaram o crescimento da pobreza e a elevação da
insegurança alimentar na base.
Portanto, esforços que apenas busquem reforçar o
tradicional modelo neocolonial não colocarão o Brasil no
rumo da construção da grande nação que ainda poderemos
ser algum dia. Destaco, para finalizar, a matéria assinada
por Cássia Almeida e que foi publicada no jornal O Globo, no
dia 19 de junho de 2022, “O preço do retrocesso”, que
trouxe a análise de indicadores que sofreram retrocessos no
Brasil. Segundo apontou a jornalista, “o Brasil voltou ao
passado na economia, no bem-estar da população, na
educação e no meio ambiente, exibindo indicadores que
remontam há até 30 anos”. A perplexidade revelada em
números por essa matéria nos remete ao efetivo
questionamento da nossa visão comum de progresso, que
definitivamente não se encontra representada em um
projeto neocolonial.
A volta do liberalismo
primário-exportador
Juliane Furno[11]
Parafraseando Celso Furtado, o projeto dos militares é
um “Projeto de Nação” “interrompida”. No bojo da crise
econômica da década de 1980 e o ingresso passivo e
subordinado do Brasil na globalização produtiva e
financeira, Furtado advogou que a construção do modelo de
desenvolvimento de outrora estava interrompida e que os
mandatários do poder não seriam mais que liquidatários do
projeto nacional que, com seus limites, havia alçado o Brasil
ao posto de país com elevada diversificação produtiva,
assentado no dinamismo do mercado interno.
A história se repete como farsa. O “Projeto de Nação”
assenta-se na mesma premissa da desconstrução do
período desenvolvimentista, agora com a particularidade de
ser uma negação do que logrou, inclusive, os próprios
governos militares. O “Projeto de Nação” deixa no passado a
própria filosofia positivista, calcada na modernização e no
progresso via industrialização.
Expressões como “Plano de Desenvolvimento”,
“Planejamento” e “Coordenação Estatal” ficaram como
poeira ao vento, substituídas por expressões “modernas”
que têm muito mais de passado do que de futuro.
Em síntese, antes de esmiuçar o “programa”, o “Projeto
de Nação” advoga um caminho de futuro que beira a uma
espécie de “neocolonialismo”, uma vez que credita ao setor
externo a primazia da determinação do crescimento
nacional. Mais do que propor um modelo “nucleado” no
exterior, tal como caracterizou Caio Prado Jr. quando da
avaliação do “sentido da colonização”, o projeto confere
diminuta presença do Estado; propõe desburocratização e
menciona a extinção dos instrumentos edificados na Era
Vargas, tais como institutos, conselhos e instituições de
Estado, e propõe reformar para reduzir a proteção social e,
portanto, retornar a uma escassa proteção laboral pré-
década de 1930.
Do ponto de vista metodológico, salta aos olhos que o
“Projeto de Nação” não parte de um diagnóstico, mas de
uma suposição do que será o Brasil em 2035, em uma
espécie de análise de conjuntura futurística. Há uma
afirmação categórica de negação da política e do conflito –
aí sim retomando um positivismo parcelar – em que ganha
primazia a figura do “conservador evolucionista”, que é
liberal na economia e conservador nos costumes e nas
tradições. É esse “tipo ideal” weberiano que estabilizará os
conflitos com base na legitimação via consenso técnico,
desideologizado, e que imprimirá um “liberalismo
econômico não desmedido e com responsabilidade de apoio
social como um dos fundamentos da democracia, cabendo
ao Estado o poder regulador sobre ativos econômicos de
alto risco social, no exercício de sua função supletiva, de
subsidiariedade; defende o individualismo econômico, a
competição, a meritocracia e o sistema de livre empresa;
advoga que as intervenções do Estado na Economia devem
regular as relações de mercado e permanecer restritas às
áreas estratégicas essenciais para a soberania nacional;
defende a desestatização da Economia e a iniciativa
privada, tendo em vista as perenes limitações da gestão
pública frente ao arcabouço normativo; reconhece a
garantia da propriedade privada como essencial para a
liberdade, para o estímulo à produção e para o
desenvolvimento socioeconômico e cultural” (p. 16).
Esta citação direta explicita o caráter liberal do “Projeto
de Nação”, em que o Estado se restringe a funções
meramente regulatórias e subsidiárias; retira-se da função
de Estado empresário em áreas sensíveis e estratégicas em
que o setor privado tem baixa propensão ao investimento
pela aversão demasiada ao risco e pauta o desenvolvimento
dos mercados na livre iniciativa competitiva e meritocrática
dos indivíduos que, ao buscarem a maximização do seu
benefício individual, contribuem para o bem-estar coletivo,
desde que o Estado garanta que a “mão invisível” do
mercado atue livremente para equilibrar a oferta e a
demanda.
O ponto mais sensível do “Projeto de Nação” é o que
alça o agronegócio ao motor do crescimento econômico. Em
que pese o agronegócio ter importância substancial à
economia brasileira – prioritariamente na obtenção de
divisas e no relaxamento das restrições externas – ainda
assim, é impossível um país do tamanho do Brasil pautar
seu crescimento nesse setor, principalmente pela forma
com que ele é organizado. Além de impossível, não é
desejável. Vejamos o que diz o “Projeto de Nação”:
“O agronegócio também tem sido a locomotiva de nossas
exportações e o maior responsável por nossos êxitos como
integrantes do comércio mundial. A participação do País no
ranking de comércio exterior é uma das medidas de o quanto
somos relevantes na economia mundial, bem como um dos
fatores de projeção do poder nacional, gerando capacidade de
influenciar fóruns mundiais sobre qualquer tema.” (p. 17).

Há um ponto específico no “Projeto de Nação”, o tema


16, em que são descritas as metas para o agronegócio e
identificados os obstáculos ao seu desenvolvimento. Há
afirmações como “o agronegócio tem sido, há anos, o
propulsor do desenvolvimento” (p. 16) sem que se
apresente dado relativo à sua participação no PIB ou em
outras variáveis como emprego, desenvolvimento local e
arrecadação tributária. Há, ainda, assertivas levianas que
constam no cenário base e que são radicalmente
dissonantes da forma como historicamente são utilizados os
excedentes desse setor: “uma parte dos resultados nele
auferidos são investidos (sic) em setores como educação,
CT&I e em diversos segmentos da indústria, inclusive
naquela inserida (sic) no próprio agronegócio” (p. 56).
Sugere-se, no tema em questão, que o fortalecimento da
indústria brasileira ocorrerá em sintonia com o agronegócio.
Ou seja, resume-se a indústria a um processo de
modernização produtiva de um setor que é, por natureza,
pouco portador de progresso técnico e com baixos efeitos
de encadeamentos produtivos.
O efeito multiplicador das commodities agrícolas é
simplesmente o menor de todos os setores (1,63), ou seja,
sustentar a premissa de um “Projeto de Nação” centrado no
agronegócio – conhecido pelo seu papel na produção de
commodities agrícolas – é abrir mão do crescimento em
bases sustentadas, amparadas em efeitos multiplicadores e
externalidades setoriais dirimidas.
Além disso, duas “metas” chamam atenção pela
contradição com o cenário atual, são elas:
– “Ampliar a participação do Brasil no atendimento às demandas
por alimentos para o mercado interno e o externo, de modo a
que o País tenha elevada autonomia no atendimento à sua
população e seja o maior provedor em escala global”
– “Alcançar autonomia na produção de insumos, defensivos e
sementes agrícolas, a fim de garantir segurança alimentar e
protagonismo do Brasil na área do Agronegócio.” (p. 56).
Atualmente, o Brasil passa por uma crise de alimentos.
São mais de 100 milhões de pessoas que reportam algum
tipo de insegurança alimentar e sua causa não repousa na
baixa produção de alimentos. Dessa feita, a questão central
não é galgar mais espaço e protagonismo no provimento ao
mercado externo, mas o gargalo encontra-se no
abastecimento doméstico.
O agronegócio, da maneira que está organizado, não
está vocacionado para colocar comida no prato do
brasileiro, por isso a meta não dialoga com o diagnóstico da
crise dos alimentos sendo, dessa forma, vazia de sentido. O
que tem ocorrido no governo Bolsonaro, no qual esse grupo
parece se alicerçar, é exatamente o oposto. As políticas de
garantia de alimentação com base no setor compromissado
com a produção diversificada e de alimentos – a agricultura
familiar – estão sendo desmontadas, como é o caso do
Pronaf e do programa de Aquisição de Alimentos (PPA).
Recentemente, Jair Bolsonaro não sancionou o Projeto de Lei
(PL) Assis de Carvalho, que previa um conjunto de políticas
emergenciais ao enfrentamento da fome e do
fortalecimento dos pequenos produtores.
A área plantada de alimentos tem sido sistematicamente
reduzida no país, concedendo espaços para o avanço da
produção de gêneros primários que são commodities e que,
portanto, estão orientadas à exportação. Oitenta e sete por
cento de toda a produção agrícola se concentram na cultura
da soja e do milho.
Além disso, o texto fala em “reduzir a dependência de
insumos”, justamente numa quadra da história de avanços
a passos largos no rumo de uma precoce
desindustrialização, em que a lógica da “abertura e da
ampla concorrência” levou a Petrobras à venda das fábricas
nacionais de fertilizantes, impondo, justamente, maior
dependência desse insumo fundamental à produção
doméstica, fato que não encontra nenhuma menção no
documento.
Por fim, o agronegócio é incapaz de liderar o
crescimento autônomo e sustentável da economia brasileira
pelo seu peso reduzido no Produto Interno Bruto. O setor
não representa nem 30% do PIB e as exportações de
commodities equivalem a apenas 13% do Produto. Além
disso, pela dependência de decisões de investimento que
são tomadas nos países centrais e pela dinâmica dos fluxos
de liquidez que movimentam a taxa de câmbio, a vocação
primário-exportadora aprofunda a dependência e a
vulnerabilidade do ciclo econômico externo. O setor, pouco
intensivo em emprego e em externalidades setoriais, é
incapaz de solucionar o grave excedente estrutural de mão
de obra, característica que nos mantém como uma
economia tipicamente de natureza subdesenvolvida, com
baixos salários que, por sua vez, obstaculizam a dinâmica
do mercado interno.
Por fim, no tema indústria, o plano apresenta conceitos
vazios, metas abstratas como “crescimento do parque
industrial” sem indicativo da sua operacionalização nem
explicitação dos setores que são mais “portadores de
futuro” e que poderão liderar a tentativa de reindustrializar
a economia brasileira. Não é citado o BNDES, a taxa de
juros, a taxa de câmbio nem a constituição de uma política
industrial, sustentando a máxima de que a retomada da
industrialização será efeito espontâneo das livres forças de
mercado, bastando a redução do “Custo Brasil” e a maior
liberdade e segurança dos contratos.
O mito do desenvolvimento
pelo agronegócio
Daví Jose Nardy Antunes[12]
Marilia Tunes Mazon[13]
Ao longo do “Projeto de Nação”, há uma defesa enfática
do agronegócio como centro dinâmico da economia
brasileira e da inserção do país no cenário internacional
como produtor de commodities, visto seu papel estratégico
para a segurança alimentar global.
Sem dúvida, o agronegócio cresceu e passou a gerar
uma parte significativa das exportações nas últimas
décadas. Segundo o Agrostat, entre 1997 e 2018, o saldo
comercial do agronegócio saltou de 15,1 bilhões para 87,6
bilhões de dólares, um aumento de quase seis vezes. O
Brasil se transformou num importante player do
agronegócio mundial, indo muito além dos produtos
tradicionais como cana-de-açúcar e café, tornando-se
também o maior exportador mundial de carne processada
de bovinos e aves, laranja, açúcar, etanol e soja, e o
segundo maior em milho.
Em meio à nossa decadência econômica secular e à
profunda crise social atual, surge uma tendência de se
apegar a mitos e de se exaltar virtudes de um dos poucos
focos de dinamismo do país. Por isso, é preciso analisar com
cautela algumas questões.
Grande parte dos que enaltecem esse importante setor
da economia são defensores de uma pretensa vocação
agrícola brasileira, apoiada numa teoria obsoleta das
vantagens comparativas, de que o país deveria se
especializar no que faz melhor.
Nada poderia ser mais equivocado, uma vez que o
desenvolvimento da produção agropecuária brasileira não
ocorreu naturalmente. A ocupação das terras do Centro-
Oeste, da Amazônia e mesmo de áreas importantes do
Nordeste não decorreu de terras férteis e fartas, disponíveis
a homens arrojados e empreendedores.
É certo que os brasileiros que se aventuraram pelo
interior do país tiveram papel de relevo, mas o
desenvolvimento do agronegócio brasileiro é tributário do
enorme investimento e planejamento realizados pelos
governos da ditadura militar, especialmente depois da
ascensão de Delfim Netto ao Ministério da Fazenda no final
dos anos 1960. A modernização capitalista do campo só
pôde ser viabilizada com altos investimentos públicos por
meio:
1. do crédito fortemente subsidiado durante décadas
para a capitalização dos produtores rurais, especialmente
dos grandes, na região de expansão da fronteira agrícola;
2. da criação da Embrapa, que investiu fortemente na
formação de pesquisadores capazes de propor soluções
para os problemas da agricultura tropical, e da Embrater,
que disseminava o conhecimento e dava assistência técnica
aos produtores;
3. de infraestrutura para a ocupação do Centro-Oeste,
que incluiu a abertura de estradas e os investimentos em
infraestrutura nas novas áreas urbanas.
Apesar do seu papel estratégico, a mitologia criada ao
redor do agronegócio parte de uma percepção equivocada
de sua participação no PIB e na geração de emprego. É
certo que o agronegócio envolve atividades que vão muito
além do setor primário (agricultura, pecuária, pesca, caça e
extrativismo), como as industriais que produzem insumos
para a atividade agropecuária (fertilizantes, defensivos,
implementos, etc), as agroindústrias que processam os
produtos do campo e os serviços de logística, distribuição e
comercialização. Por isso, a despeito do peso relativamente
pequeno da agropecuária no PIB brasileiro (5,1% em 2018,
considerando apenas o setor primário), uma avaliação mais
ampla de suas atividades permite dizer que o agronegócio
tem um peso maior na economia.
Mas, no afã de valorizar o setor e ampliar a sua
importância para a dinâmica econômica do país, alguns
autores estimam que esse número chegaria até a 40% do
PIB. O próprio Centro de Estudos Avançados em Economia
Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, referência nesse campo,
estima que o agronegócio era responsável por 21,1% do PIB
em 2018. Esta metodologia inclui no agronegócio a
totalidade da produção industrial de abate e laticínios,
produtos do fumo, açúcar e biocombustíveis, mas também a
indústria de papel e celulose, de alimentos, calçados,
vestuário e móveis, além de serviços como atacado, varejo,
alojamento e mesmo padarias e lanchonetes.
A inclusão de atividades como restaurantes, padarias e
hotéis infla os dados referentes à participação do setor no
PIB e no emprego e distorce a sua importância sobre a
economia. É difícil imaginar que as padarias do Rio de
Janeiro vendam mais pães ou biscoitos por conta da
expansão da produção de soja no Mato Grosso do Sul. Ou
seja, agrega-se ao agronegócio setores que não têm relação
dinâmica com sua atividade produtiva.
Em consonância com essas ideias, os redatores do
“Projeto de Nação” advogam que o agronegócio é grande e
dinâmico o suficiente para gerar empregos em larga escala
e mover uma economia continental como a brasileira.
Mas o setor tem baixos efeitos dinâmicos, uma vez que
tem estruturas produtivas curtas em termos de
encadeamentos e baixa capacidade de articular serviços
intermediários, além de ser muito automatizado, diminuindo
o seu efeito multiplicador sobre a renda, o emprego (direto
e indireto) e a arrecadação de impostos. Mesmo diante de
um surto de crescimento espantoso do setor, o número de
trabalhadores da agropecuária não familiar era de apenas
cinco milhões de pessoas em 2017.
No período recente, a especialização nacional na
produção e exportação de bens primários não possibilitou
um crescimento econômico significativo, ao mesmo tempo
em que gerou uma estrutura social extremamente desigual
ao seu redor. Seja nas regiões vinculadas à agricultura
familiar, principalmente no Norte e Nordeste, que seguem
mergulhadas na miséria, seja nas cidades do agronegócio,
cujo crescimento foi acompanhado pela expansão da
pobreza urbana.
Além disso, o Brasil também tem transferido parte da
renda e dos empregos de outros elos da cadeia do
agronegócio para o exterior, como o processamento de
grãos. A especialização na exportação de commodities
também tornou o país mais suscetível aos movimentos
especulativos dos preços futuros e do câmbio, que rebatem
nos preços e na disponibilidade interna dos alimentos. Basta
pensar na fome, que se espalha pelo país, frente a um setor
com grandes ganhos no comércio externo e que diz
alimentar o mundo.
Apostar no agronegócio como o vetor de expansão da
economia é esquecer as lições da história do Brasil e de sua
colonização: a produção de commodities não tem grandes
barreiras à entrada e sempre pode ser substituída por
outros concorrentes. Por exemplo, a França tem buscado
desenvolver uma cultura própria de soja e os chineses estão
comprando terras em larga escala na África, de clima
próximo ao brasileiro. A soja começou a ser plantada na
Sibéria em áreas afetadas pelas mudanças climáticas. Para
não deixar de mencionar que a questão ambiental –
devastação da Amazônia, do Pantanal e da Mata Atlântica –
também tem afetado a imagem internacional do Brasil e
ameaçado as exportações.
Diante das razões expostas, a posição do “Projeto de
Nação” surpreende. O ataque à legislação ambiental e
indígena em prol do agronegócio mais primitivo, de baixa
produtividade e predatório, que destrói o meio ambiente
num mundo à beira de mudanças climáticas dramáticas,
parece uma tentativa de reviver um passado em que o
atraso econômico, social e político levou o Brasil a uma crise
de grandes proporções, como na década de 1920.
A defesa da volta do país à condição de exportador de
produtos primários da República Velha por parte de grandes
grupos ligados ao agronegócio é compreensível, tendo em
vista a defesa de seus interesses de curto prazo. Mas causa
grande estranhamento sua defesa por parte de militares
brasileiros, que tiveram papel fundamental na derrubada da
ordem social excludente e arcaica que marcava o país antes
da Revolução de 1930.
Muitos deles, que pensavam o desenvolvimento do Brasil
desde o final do século XIX, criticavam violentamente a
abominável situação social de um país calcado no
agronegócio de então. A Tribuna Militar, jornal que dizia
representar as “classes militares” e os interesses gerais do
país, publicou em 1881:
“O que dissemos do fazendeiro de café aplica-se, mutatis
mutandis, ao fazendeiro de açúcar, aos potentados das
províncias do norte, aos estancieiros do sul, aos mineradores do
centro, etc; são os donos das terras, os proprietários territoriais.
Eles e os negociantes formam a massa da gente que tem o que
perder; eles constituem a nação brasileira, essencialmente
agrícola e deles é que saem os eleitores e vereadores, os
fagundes e os pais da pátria, os comendadores e os barões. O
mais tudo é fósforo, é gente que não tem o que perder. São,
como já dissemos, nove milhões de analfabetos, entestando com
dois milhões de gente que tem, que sabe onde traz o nariz que é
instruída. [...] Planta-se e colhe-se café, planta-se cana e faz-se
açúcar como até aqui, porque o país é essencialmente agrícola.
[...] Os nove milhões de fósforos não servem para nada; quando
muito podem fornecer voluntários para o exército e a armada,
cocheiros e condutores para bondes, guarda-freios e guarda-
cancelas para estradas de ferro, foguistas e por algum milagre,
maquinistas para locomotivas e vapores. Nas fazendas e nas
roças eles são os agregados, os peões, os tropeiros, os capangas.
E como se vê bem claramente, em tempo de eleição essa
caterva adquire uma tal ou qual importância, porque por meio
dela é que se avança à conquista das urnas” (Tribuna Militar,
1881).

Militares como esses, influenciados pelo positivismo e


imbuídos de um verdadeiro sentimento nacional, criaram
uma tradição que desembocou no tenentismo, na Revolução
de 1930 e no Golpe de 1964. Viam que a modernização do
campo era estratégica em um país urbano em crescimento,
mas nunca imaginariam que, em pleno século XXI, parcela
da alta hierarquia militar defenderia o desenvolvimento do
Brasil assentado no agronegócio e não na industrialização e
no planejamento estatal.
A agricultura num
país para todos/as
João Pedro Stédile[14]
Qualquer projeto de país deve começar pela análise dos
problemas que a sociedade enfrenta e indicar como superá-
los. O “Projeto de Nação para 2035” revela a visão estreita e
de classe de seus proponentes. A sua elaboração parte da
perspectiva dos empresários que adotam o modelo do
agronegócio, como se este fosse de todos agricultores. No
fundo, se atém unicamente aos desafios de como fazer para
seguir acumulando riqueza na agricultura.
Diante disso, apresentamos uma outra concepção de
projeto de agricultura, que deve enfrentar os problemas de
toda sociedade brasileira e apresentar soluções que ajudem
a melhorar as condições de vida de todo povo.
I. Os problemas da sociedade brasileira
Não é necessário ser especialista, pesquisador ou
estudioso para constatar que a sociedade brasileira enfrenta
graves problemas decorrentes da forma como está
organizada a produção agrícola. Os problemas que afetam a
todo povo estão escancarados e são publicados todos os
dias pela imprensa. A saber:
a) A fome. As estatísticas demonstram que temos 33
milhões de brasileiros que passam fome todos os dias e
outros 60 milhões têm sua dieta alimentar aquém das
necessidades, com base em produtos ultraprocessados e de
baixo teor nutritivo.
b) Há na sociedade brasileira 4 milhões de famílias que
vivem no meio rural ou periferias das pequenas cidades e,
não tendo terra, estão sujeitas à superexploração como
posseiros, arrendatários, meeiros ou assalariados rurais.
c)Milhares de brasileiros que vivem no interior não têm
emprego fixo e nem renda permanente.
d) A desigualdade social no campo é escancarada pela
concentração da propriedade da terra, que transformou
apenas 1% dos proprietários em detentores de 50% de
todas as terras do país.
e) Fruto da concentração e da distorção do modelo de
ocupação das terras, o Brasil tem mais de 300 milhões de
hectares que poderiam ser agricultáveis, mas apenas 80
milhões são utilizados em lavouras.
f) A maior parte dos municípios do interior do país tem
escolas de ensino fundamental que, em geral, vão somente
até a quarta série. Na maioria dos casos, os jovens precisam
ir para cidades maiores para cursar o ensino médio. Por
outro lado, temos ainda no Brasil 14 milhões de
trabalhadores adultos analfabetos, a maioria vivendo no
meio rural.
g) O modelo predominante na agricultura é
hegemonizado por fazendeiros que agridem o meio
ambiente, cometem diversos crimes ambientais e geram
desequilíbrios e mudanças climáticas.
h) O uso dos agrotóxicos afeta diretamente a natureza,
pois mata a fertilidade do solo, contamina as águas do
subsolo, os rios e a produção agrícola. Matam a
biodiversidade alterando a cobertura vegetal, provocam
mudanças climáticas e afetam o regime das chuvas. Os
agrotóxicos secantes, em especial, sobem às nuvens e
voltam com as chuvas, afetando a atmosfera.
i) Em muitas cidades em todo País, a água potável
servida à população está contaminada pelo glifosato.
j) A utilização intensiva de grandes áreas que
concentram a produção da pecuária bovina provoca a
emissão de gases que afetam todo planeta.
k) O modelo predominante na agricultura é totalmente
dependente de insumos importados (agroquímicos e
agrotóxicos), que tornam a agricultura totalmente
dependente de outros países. Qualquer instabilidade politica
no mundo, como agora, com a guerra na Ucrânia, coloca em
risco o abastecimento dos insumos para o agronegócio.
II. Os modelos de produção agrícola
Nas últimas três décadas, com a hegemonia do capital
financeiro e das empresas transnacionais sobre a
agricultura, três modelos predominaram e se enfrentaram
no Brasil. Dois modelos foram aplicados pelo capital: o
latifúndio predador e o agronegócio. Um modelo, pelos
trabalhadores: a agricultura familiar.
O latifúndio predador não se refere apenas ao
tamanho das propriedades, como o nome indica, mas, sim,
a um modelo de exploração. Esse modelo, também
chamado de latifúndio improdutivo, representa a sanha do
capital de apoderar-se dos recursos da natureza, acumular e
enriquecer. Assim, se apropriam de forma privada de terras
públicas, florestas, água, minérios e biodiversidade. Mas
esse modelo não produz os bens necessários para a
sociedade. Eles se apropriam de bens que deveriam ser
para o bem comum e as necessidades sociais e os
transformam em mercadorias, obtendo assim, uma renda
extraordinária, que lhes permite acumular muito capital.
Estima-se que exista cerca de 30 mil fazendeiros que se
dedicam a esse modelo, sobretudo na fronteira agrícola.
Esse modelo enriquece seus fazendeiros, porém destrói
a natureza e não produz bens necessários para a população.
Provoca desequilíbrios ambientais e climáticos, que afetam
toda a sociedade. E, em particular, tem afetado de forma
criminosa as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
que vivem na fronteira agrícola, com a prática inclusive de
assassinatos a quem resiste à sua sanha.
O modelo do agronegócio atende ao capital dito
moderno e é propagandeado como pop e tec! Baseia-se em
grandes fazendas, que se especializam na produção de
monocultura, usam sementes transgênicas e muito
agrotóxico. É altamente mecanizado e expulsa a mão de
obra.
Esse modelo produz apenas commodities agrícolas para
exportação. No Brasil, são em torno de 350 mil fazendeiros,
entre eles 50 mil que possuem mais de mil hectares e
outros 300 mil que usam áreas de cem a mil hectares.
Dedicam-se basicamente à cana, à soja, ao milho, ao
algodão e à pecuária bovina.
Seus métodos agridem a natureza sobretudo pelo uso
dos agrotóxicos que matam toda biodiversidade e não
geram desenvolvimento nos municípios do interior, já que
seus proprietários dividem a riqueza com as empresas que
controlam o comércio dos insumos e das commodities.
Esses fazendeiros vivem nas grandes cidades e aplicam a
riqueza gerada na agricultura em bens distantes da região
em que foi produzida.
Além de serem isentos de imposto de exportação,
sonegam o pagamento do Funrural para o INSS e têm os
juros e o seguro de seus empréstimos bancários subsidiados
pelo tesouro nacional.
O modelo da agricultura familiar se fundamenta na
produção de alimentos para o mercado interno, apoiada
pelo trabalho familiar. Esses trabalhadores abastecem 80%
do mercado nacional de alimentos e procuram respeitar a
natureza, pois dela depende o sucesso de sua produção,
ainda que alguns usem agrotóxicos.
Há quase 5 milhões de unidades agrícolas familiares em
todo país, com glebas de um a cem hectares, que
empregam 80% da mão de obra existente no meio rural. É
nessas unidades que se generalizam mais as práticas
agroecológicas.
A posição dos governos
Nas últimas décadas, cada modelo teve determinada
relação com os governos que se sucederam em Brasília.
No governo FHC, a prioridade máxima foi promover e
incentivar o modelo do agronegócio. Foi nesse período que
se deu a grande aliança dos fazendeiros com as empresas
transnacionais e os bancos. O governo adotou diversas
políticas públicas de proteção e incentivo, chegando a
isentar o agronegócio de impostos de exportação de
commodities agrícolas por meio da lei Kandir, em vigor até
hoje.
Os governos Lula e Dilma desenvolveram políticas que
limitavam o modelo do latifúndio e adotaram a conciliação
entre o modelo do agronegócio e o modelo de agricultura
familiar. Criaram, inclusive, dois ministérios, um para o
agronegócio e o MDA, para a agricultura familiar. Assim,
adotaram políticas que beneficiaram o agronegócio, mas
também protegiam e incentivavam a agricultura familiar.
Depois do golpe contra a presidenta Dilma, os governos
Temer e Bolsonaro combateram a agricultura familiar e a
reforma agrária. Eliminaram todas as políticas públicas que
as incentivavam e, ao mesmo tempo, passaram a priorizar o
latifúndio improdutivo. Seus legítimos representantes foram
levados para o governo, tanto na política fundiária – com o
ex-presidente da famigerada UDR – quanto na política
ambiental – seu ministro foi didático ao explicar
publicamente que os tempos eram de “passar a boiada” e
tomar medidas que favorecessem o latifúndio na
apropriação dos bens da natureza, sobretudo na fronteira
agrícola.
Em relação ao agronegócio, houve uma política
ambígua. De um lado, liberou-se mais de 600 novos rótulos
de agrotóxicos, que atende os interesses das empresas
transnacionais fabricantes. Por outro, as agressões
ideológicas ao governo Chinês deixaram os fazendeiros
mais lúcidos preocupados, pois um modelo que depende de
exportações precisa tratar bem os compradores. O estímulo
à destruição ambiental prejudica a imagem do agro
brasileiro, sobretudo no mercado europeu.
Os resultados...
A crise econômica aprofundou-se: ressurgiram a fome,
que atinge milhões de brasileiros, o desemprego
generalizado, as agressões ao meio ambiente com tantos
crimes recentes, o desequilíbrio das chuvas que agridem as
populações em áreas precarizadas das grandes cidades, em
especial, nos estados do Rio de Janeiro, na Bahia, em
Pernambuco. Tudo isso deixou claro que os modelos do
latifúndio e do agronegócio não contribuem para resolver os
problemas da sociedade, ao contrário, os agravam.
III. Olhando para o futuro
Diante da realidade agrária, dos problemas que afetam a
toda sociedade brasileira e da falência dos modelos do
latifúndio predador e do agronegócio, os movimentos
populares do campo, dos trabalhadores rurais, de diferentes
origens e características organizacionais têm debatido e
apresentado diversas propostas, que representam um
programa de agricultura popular para atender às
necessidades de todo povo brasileiro.
Essas propostas se baseiam em novos paradigmas para
as funções da agricultura, buscando a produção de
alimentos saudáveis para todo povo, a proteção da natureza
e das águas, a garantia de emprego e renda para toda
população do campo e uma vida melhor para todos.
As principais propostas são:
a) Produzir alimentos saudáveis para todo povo
brasileiro;
b) Proteção dos bens da natureza, combater o
desmatamento e as queimadas, e implementar políticas de
reflorestamento em todo país, no interior e nas cidades.
c)Proteção das águas, tanto dos rios ou nascentes,
quanto dos aquíferos subterrâneos.
d) Democratizar o acesso à terra, com políticas de
reforma agrária, para que todos os sem-terra possam
trabalhar.
e) Priorizar a distribuição de terras em áreas próximas
das cidades, para garantir a produção de alimentos mais
perto do mercado consumidor, com menos custos de
transporte e mantendo a qualidade.
f) Adotar e estimular a matriz da agroecologia em toda
agricultura, promovendo cursos especiais e também nas
universidades em todo o país.
g) Promover a implantação de unidades fabricantes de
bioinsumos, em todos biomas, de fertilizantes orgânicos e
de defensivos biológicos.
h) Promover a indústria de máquinas e implementos
agrícolas voltados para as necessidades dos agricultores
camponeses para reduzir o sacrifício humano e aumentar a
produtividade do trabalho e das terras.
i) Implantar programa de agroindústrias cooperativas
para beneficiamento de alimentos em todos os municípios e
assim gerar empregos especiais para as mulheres e jovens
do campo.
j) Desenvolver programas para implantar projetos de
utilização de energias renováveis, em pequena escala, para
atender às necessidades da população do campo, como
energia solar, eólica e hidrelétrica.
k) Democratizar o acesso à educação em todos os níveis,
desde alfabetização até o acesso dos jovens do campo à
universidade.
Esse programa de futuro é o reforço do modelo de
agricultura familiar modernizada, respeitadora da natureza
e voltada para a produção dos bens necessários a todo o
povo.
Ele se contrapõe aos modelos do latifúndio predador e
do agronegócio, que só representam os interesses dos
capitalistas que veem na agricultura apenas uma
oportunidade para acumular capital.
Sua aplicação não depende de elaboração teórica ou
apresentação como programa de governo. Vai depender,
sim, da capacidade de organização e mobilização da classe
trabalhadora da cidade e do campo e de elegermos
governos comprometidos com os interesses históricos de
nosso povo.
Mineração e desenvolvimento
Ricardo Machado Ruiz[15]
As incontáveis expedições em busca de diamantes, ouro,
prata, esmeraldas e outras pedras preciosas fazem parte da
história de quase todos os países e motivou guerras e
conflitos. Nos EUA, a busca pelo ouro criou cidades no meio
do deserto, vilas no topo de montanhas e empurrou
aventureiros para o extremo oeste empunhando armas,
ocupando terras e exterminando índios. Na denominada
“América Espanhola” surgiram lendas sobre cidades de
ouro, o “Eldorado”. Na Bolívia, em 1545, foi fundada a
cidade de Potosí nas proximidades de uma “montanha de
prata” que foi explorada por séculos com trabalho escravo
indígena.
No Brasil, as “bandeiras” entraram em florestas,
escravizaram indígenas e ocuparam terras, mas o interesse
maior era encontrar ouro e diamante para a Coroa
portuguesa. Quando ouro e diamante foram achados em
Diamantina e Ouro Preto, o Rei enviou para lá todo o
aparato burocrático e militar para controlar a extração,
taxar e transportar os minerais para os cofres da realeza;
como se sabe, esta empreitada não foi pacífica. Todos
queriam ficar ricos e ir para a metrópole com grandes
fortunas: saíram pobres ou desprezados, foram explorar
terras distantes e selvagens e voltariam ricos e respeitados.
Este sonho de aventura, fortuna e glória moveu o
imaginário de muitas pessoas, porém, para parte
largamente majoritária delas, o sonho virou uma realidade-
pesadelo com frustração, miséria e morte. Seja qual for a
sorte de cada um destes aventureiros, é certo que a busca
por minerais valiosos levou à ocupação do território e
definição de fronteiras, mas não construiu nações
desenvolvidas. No Brasil de hoje, alguns ainda sonham em
criar um “Eldorado” que leve o país para além da sua
condição histórica de país subdesenvolvido. Como
argumentarei, a mineração cria riquezas, é importante para
o país, mas não tem capacidade de retirá-lo desta infeliz
posição em que se encontra.
A denominada atividade de extração de mineral é
variada e inclui até extração de petróleo e gás, atividade
que não será discutida aqui. Existem empreendimentos
mineradores modestos, localizados em pequenas áreas,
com precária equipagem, trabalhadores sem qualquer
qualificação técnica e que recebem baixos salários, como na
extração de areia em rios, de pedras e de cascalho.
No outro lado do espectro produtivo se observa
empresas de grande porte com ações em bolsas de valores.
São mecanizadas e automatizadas, contratam milhares de
técnicos especializados e têm equipes de traders que
monitoram preços em mercados internacionais que estão
distantes milhares de milhas náuticas. É o caso da
mineração de ferro, cobre, nióbio, níquel, ouro e alumínio.
Observando estas variadas estruturas produtivas a partir
dos empregos e dos salários, notamos uma marcante
dualidade econômica e social.
Em 2019, antes da pandemia, a indústria extrativa
mineral, exclusive a extração de petróleo e gás, contratava
aproximadamente 174 mil trabalhadores e o salário médio
era de R$3,4 mil, ou seja, empregava menos de 0,4% dos
47,6 milhões de trabalhadores com empregos formais. O
salário médio no Brasil era de R$ 2,9 mil e 55% dos
trabalhadores da extrativa mineral recebiam salários acima
da média nacional, porém, outros 45% tinham salários
abaixo desta média. Obviamente, o elevado grau de
informalidade dos contratos de trabalho subestima este
segundo grupo de trabalhadores com rendas menores.
Aproximadamente 30% dos empregos formais estavam na
extração de minério de ferro e outros 34% extraiam pedra,
areia e argila. A extração de minério de ferro empregava 53
mil trabalhadores, o salário médio era de R$ 5,2 mil,
enquanto que a extração de areia e pedra tinha outros 59
mil empregados, mas com salários de apenas R$ 2,3 mil.
Como dito, a mineração é extremamente dual.
As grandes minas de ferro e de outros metais estão
concentradas nos estados do Pará e Minas Gerais, de onde a
produção é exportada via Rio de Janeiro e Espírito Santo.
São poucos os municípios mineradores: nestes dois estados
mineradores estão 87% dos empregos da extração de ferro.
Em 2019, apenas 17 municípios representavam 91% da
mão de obra da mineração de ferro. É uma riqueza que está
em poucos lugares e controlada por um número reduzido de
empresas.
A indústria extrativa é uma grande empregadora em
algumas localidades e, devido ao seu porte, é a que mais
recolhe impostos, em particular a CFEM (Compensação
Financeira pela Exploração de Recursos Minerais). Devido a
esta escala, a mineração de ferro é sempre uma
oportunidade para muitos empregos, bons salários e melhor
arrecadação. Vale lembrar, porém, que as exportações de
minérios são isentas de impostos estaduais e possuem
alíquotas específicas de imposto de renda. Logo, a sua
contribuição para a arrecadação tributária é relativamente
modesta se comparada a outras atividades produtivas.
Outro aspecto da grande mineração é sua importância
nas exportações. Em 2019, o Brasil exportou US$ 221
bilhões. A mineração foi responsável por quase 16% do total
e somente a mineração de ferro respondeu por mais 9% das
exportações brasileiras. A mineração é uma atividade
importante para os fluxos de comércio internacional, em
particular a extração e o processamento do minério de
ferro, sendo o mercado chinês o mais relevante.
Um aspecto importante da grande mineração é o fato da
sua estrutura produtiva ser muito integrada, quase um
enclave industrial. A mineração tem uma cadeia produtiva
de apoio a montante modesta e, a jusante, tem limitado
processamento e adição de valor. Por exemplo, na
exploração de petróleo, a relação entre emprego nas
atividades de apoio e na extração é de aproximadamente
0,94. Na mineração, esta relação é de apenas 0,02. A
grande mineração é um enclave produtivo, relativamente
autônomo e com restrita cadeia de produção.
Os impactos da grande mineração decorrem da elevada
massa salarial em algumas localidades. As atividades
comerciais e os serviços pessoais florescem no atendimento
à demanda dos trabalhadores e, assim, empregos são
indiretamente criados. Em geral, as máquinas,
equipamentos, insumos, partes, peças e serviços de maior
valor agregado são importados de outras regiões e de
outros países. Mesmo nestas circunstâncias, devido ao seu
porte, a grande mineração é capaz de atrair parte
importante dos recursos, trabalhadores e dos negócios
locais: todos querem vender e trabalhar na grande empresa
mineradora e quem tem uma grande mina vive melhor do
que aquele que não tem.
O sucesso da grande mineração torna a região
dependente, especializada e afasta o interesse em construir
alternativas econômicas. Há uma modesta indução às
atividades com maior complexidade tecnológica e que
diversificam a economia e que não estão conectadas com
as demandas da grande mina. Essa dependência da grande
mineração torna os representantes e mesmo a comunidade
local lenientes em relação a alguns aspectos, tais como os
impactos ambientais: desmatamento, degradação da
infraestrutura pública, poluição do ar, contaminação de
solos, dos rios e, até mesmo, poluição de águas
subterrâneas.
A pequena mineração é ainda mais precária. É intensiva
em mão de obra, paga baixos salários, não tem empregos
formais e pouco estimula a criação de infraestrutura pública
e de negócios privados. A multiplicidade de unidades
dificulta o monitoramento dos impactos ambientais. Muitas
vezes, a pequena mineração utiliza tecnologias mais
prejudiciais ao meio ambiente que a grande mineração.
Como ocorre de forma dispersa no território e tem escala
reduzida, a pequena mineração não é capaz de induzir o
desenvolvimento das economias locais e regionais. Quando
concentrada espacialmente, produz um repentino e
desordenado impacto, por exemplo, carestia, precarização
do trabalho, especulação imobiliária, expulsão e violência
contra as populações locais.
Em suma, a indústria da mineração é relativamente
pequena, está localizada em pouco lugares, é muito dual e,
para os trabalhadores, não é tão rica como diziam as lendas
sobre o Eldorado. Estas características da mineração
levantam dúvidas sobre sua capacidade de articular e
integrar o território, gerar melhores salários para larga
parcela da população e, assim, ser referência para o
desenvolvimento nacional.
A mineração é atividade econômica motriz de algumas
localidades, mas não cria autonomamente alternativas
econômicas. Com a exaustão das minas, a região pode
passar por um esvaziamento econômico e populacional,
degradação da infraestrutura pública, desvalorização de
ativos privados, desmobilização social e empurrar a
população às atividades de subsistência e de baixa
produtividade. No oeste dos EUA, no noroeste da Inglaterra
e da França, em vários locais na África e na Rússia existem
cidades fantasmas, outras foram abandonadas e
consumidas pelo tempo e algumas regiões passaram por
longos períodos de decadência e estagnação. No Brasil,
algumas cidades já estão diante deste desafio: o que fazer
após a mineração?
Esta digressão sobre o desenvolvimento local baseado
em recursos naturais não renováveis é uma ilustração dos
riscos de apostar na mineração como atividade central da
organização econômica nacional. A proposta de elevar o
peso da mineração de 4% do PIB para 10%, conforme
preveem os autores do “Projeto de Nação”, é certamente
temerária e não destaca essa dualidade de rendas e os
riscos da concentração econômica. De fato, tal
concentração é arriscada para qualquer atividade
econômica. Em uma economia do porte da brasileira, a
opção é sempre diversificar as atividades em direção à
produção com maior valor agregado, densidade e
complexidade tecnológica e com largo escopo de produtos e
de mercados e, por fim, observar as cadeias produtivas
internas para ampliar o efeito multiplicador da renda e
emprego.
A mineração é uma atividade que contribui para a
geração de emprego e renda, mas não é condição suficiente
ou necessária para o desenvolvimento econômico.
Atualmente, as grandes empresas mineradoras deslocam
quantidades imensas de minério pelo mundo. Sua
competitividade é resultado da capacidade de extrair
minério em grande quantidade, transportar e entregar em
algum porto e em algum tempo. No final dessa cadeia
produtiva, está a indústria que processa o minério,
manufatura e distribui o produto final. Estas indústrias
podem estar separadas por milhares de milhas. Por
exemplo, o sucesso das exportações de ferro brasileiro é
fundamental para as indústrias siderúrgicas e de construção
civil chinesas, porém, este sucesso da mineração não
produz os mesmos efeitos no Brasil. Enfim, articular as
produções minerais com indústrias a montante e a jusante é
um tema que exige uma discussão diferente do debate
sobre os incentivos à produção mineral.
Como comentado, o “Eldorado minerador” faz parte da
história brasileira desde o primeiro momento que se avistou
o Monte Pascoal, no sul da Bahia, em 1500. Séculos depois,
a competitividade da mineração de ferro em Minas Gerais e
no Pará, algumas recentes descobertas de jazidas de níquel,
lítio, cobre, nióbio e grafite e o boom de commodity de 2005
a 2013 reforçaram a visão idealizada do “grande Brasil
minerador”. Porém, também recentemente, este sonho
perdeu o brilho e está sob ameaça.
Os grandes países importadores de minérios estão
incentivando a produção em larga escala de vários minérios
na África e Ásia. Os preços das commodities minerais
sofreram dramático colapso em 2014-2017 e, até o
momento, o valor de mercado das grandes empresas
mineradoras não se recuperou plenamente.
As rupturas das barragens nos municípios mineiros de
Mariana e Brumadinho e a contaminação de populações
ribeirinhas em Barcarena, no Pará, mostraram os riscos da
grande mineração para a vida humana e o meio ambiente.
A contaminação com mercúrio e arsênio pela mineração de
ouro desregulada e não monitorada comprometeu rios por
longos períodos. As mudanças climáticas tornaram a água
um recurso escasso, o que compromete o padrão técnico-
produtivo de várias minerações. A expulsão e expropriação
de populações tradicionais, o assassinato de indígenas e a
destruição de reservas naturais estão colocando limites ao
sonho do grande “Eldorado minerador”. O êxito exportador
nacional requer adequação às políticas de proteção ao meio
ambiente e aos direitos humanos, o que limita a exploração
predatória ainda tão comum no território nacional.
A atividade mineradora é certamente relevante para o
Brasil, o que se deve discutir é qual mineração. É certo,
porém, que o desenvolvimento nacional articulado à
mineração requer a industrialização de alto valor agregado,
que hoje não existe no entorno da mineração. Estas
atividades produtivas demandam outras políticas de
desenvolvimento tecnológico e construção de outros elos
produtivos.
Atualmente, uma larga parcela da mineração brasileira é
uma precária, pobre e degradante atividade extrativa. Uma
outra parte é produtora de commodities cotadas em bolsas
de mercados mundiais. Seus lucros e dividendos são
majoritariamente apropriados por empresas controladas por
acionistas estrangeiros e fundos de investimento nacionais.
Para eles, o Eldorado ainda existe.
Universidade e Nação
João Carlos Salles[16]

O Talmude narra uma pequena história: “Raba criou


um homem e o enviou a Rabi Zera. O Rabi falou com
ele mas ele não respondeu. Nisso o Rabi disse: Você
deve ter sido criado por meus colegas da academia;
retorne a seu pó”. apud SCHOLEM, Gershom, Judaica
1.
1. A universidade não é um Golem – criatura artificial
que termina por ensandecer quando largada a si mesma.
Tampouco é uma matéria amorfa, um instrumento
desprovido de finalidade própria, que apenas se replicaria
não importa onde, sendo indiferente ao solo no qual se
instala e, logo, sem medida universal nem cor local.
Universidades autênticas são instituições independentes,
destinadas a aprofundar o projeto específico por meio do
qual se constituem e se justificam. Precisam assim ter vida
própria, e não apenas vitalidade.
A força e a eventual sacralidade da instituição
dependem e decorrem de seu vínculo mais íntimo com as
necessidades profundas de uma sociedade específica, a
cuja realização seu projeto público e coletivo deve
corresponder e em virtude da qual deve poder crescer e se
expandir.
Não por acaso, projetos de universidade devem enunciar
as razões que podem justificar seu direito tanto à existência
quanto a um desenvolvimento autônomo. É nessa condição
que a universidade, no contexto específico das deficiências
e das potencialidades de nossa sociedade, pode trazer-nos o
benefício de uma instituição forjada no interesse do
conhecimento, de sorte que os resultados de sua
investigação sejam regidos e limitados tão somente por
padrões eles mesmos racionais e a instituição possa vir ao
encontro da formação de quadros profissionais ou do
interesse da cultura.
A universidade, bem ou mal, sempre traduz um projeto
de nação. Darcy Ribeiro, para dar um exemplo, enunciava
isso, nos idos dos anos sessenta, com muita clareza. Para
ele, pensar o papel de uma universidade necessária seria
compreender seu lugar na luta contra o
subdesenvolvimento. Ou seja, a natureza da universidade,
se pensada por sua essência, derivaria do próprio desafio
colocado à nação.
Para além de qualquer medida unilateral, um interesse
público claramente definido seria a razão profunda do
projeto de uma universidade autêntica e, também,
decorreria naturalmente dessa identidade entre projeto de
universidade e projeto de nação uma assimetria entre a
dimensão coletiva que caracteriza a universidade pública e
qualquer outro empreendimento privado de ensino. Estaria
nessa raiz comum a razão de Estado que faz com que o
empreendimento público seja critério para a avaliação de
todo ensino, de modo que apenas a instância pública pode
validar e avaliar o empreendimento privado, sendo a
inversão dessa ordem (ou mesmo o mero nivelamento entre
público e o privado) um grave sintoma de falência de um
projeto elevado de nação.
Com efeito, não teria força qualquer projeto de
universidade se esta não dependesse dessa aposta que, por
meio dela, a sociedade faz em seu futuro, inclusive
comprometendo-se, por causa desse vínculo essencial, com
o financiamento da educação superior pública. Caso
dissolvida em interesses menores, a universidade perde seu
vínculo com projetos de longo prazo, rendendo-se assim ao
imediato. Deixa de ser uma aposta no futuro, passando a
reger-se por uma equação de menor custo e maior benefício
imediato.
Um efeito desse amesquinhamento está no fato de que,
para ser bem sucedida, tal estratégia de redução da
questão educacional a um cálculo, a universidade deve
passar a ser vista com desconfiança, deve ser apresentada
como um problema, com duas consequências
complementares deveras desagradáveis. A universidade,
transformada em um problema, deve perder a capacidade
de se autodeterminar, como se lhe fosse retirada a
prerrogativa da maioridade própria do esclarecimento. Por
outro lado, reduzida a uma artificial menoridade, deve
todavia procurar autossustentar-se, de modo que, não
sendo mais um valor em si mesma, não sendo mais
considerada um investimento, deve ser limitada ao que se
apresentaria doravante como um gasto.
2. Vamos analisar alguns aspectos desse
amesquinhamento do horizonte da vida universitária, tal
como apresentado nas páginas sumárias do “Projeto de
Nação: O Brasil em 2035” que se referem à educação
superior no Brasil.
Nossa tese é bastante simples. Tal projeto para a
educação superior no Brasil equivale à opção por uma
nação intelectual e moralmente empobrecida. Dessa forma,
é nossa posição, a sociedade brasileira não pode aceitar tal
amesquinhamento de seu futuro. Ou seja, os que têm
responsabilidade com as futuras gerações não podem
aceitar o desenho de uma universidade que não contenha
em sua estrutura uma contribuição decisiva para a
emergência de uma nação que não seja desigual, mas sim
justa e profundamente democrática.
Tal como se apresenta, porém, o texto sobre a educação
superior no “Projeto de Nação” é uma mistura incongruente
de propostas neoliberais e concepções autoritárias. É como
se fosse invocada, por um lado, a defesa de uma liberdade
individual acima de tudo, enquanto, por outro lado, o
governo é chamado a tutelar e a disciplinar a todos. Essa
confusão mostra (ou esconde) bem a inanição intelectual da
formulação, que ademais é incapaz de fazer um diagnóstico
acurado da realidade brasileira, à luz de cujo “diagnóstico”
apresentaria soluções.
Vejamos, primeiro, o aspecto neoliberal da proposta. A
universidade deve se curvar ao setor produtivo,
determinando-se então pelo mercado atual e futuro. Ou
seja, determinar-se-ia de forma heterônoma, como se a
comunidade universitária, o coletivo intelectual e político da
academia não pudesse refletir sobre seu destino e
condicionar os termos do diálogo deveras necessário com o
mercado, a indústria, os diversos interesses do
desenvolvimento da sociedade. Também, reitera-se, a
diretriz estratégica seria a parceria, não com a sociedade
em seu conjunto, mas com o setor privado. Desse modo, a
produção acadêmica não se determinaria pelos padrões
universais e demonstrativos da comunidade científica, mas
sim pela parceria com o setor privado, que serviria para
“viabilizar a seleção de profissionais durante o tempo de
estágio e elaboração de Trabalhos de Graduação, de
Dissertações ou Teses”.
Enfim, a gestão da universidade passaria a ser realizada
segundo um padrão empresarial de avaliação de resultados
e valorização do mérito, talvez através da produtividade e
do impacto de resultados, mas não da qualidade acadêmica
nem da relevância social dos produtos. Para realizar esses
objetivos, caberia o combate, então, à suposta
ideologização da comunidade universitária, que seria vista,
não só como inepta, mas como nociva, pois não lhe caberia
sequer a responsabilidade autônoma da escolha de seus
dirigentes. Ou seja, a redefinição do processo de escolha de
dirigentes opera no suposto de que a comunidade
universitária ou é incapaz ou indesejável, havendo uma
camada dela a ser reprimida ou afastada, porque composta
por “grupos de interesses políticos, ideológicos e outros que
não voltados ao bem comum”.
Desse modo, à luz de uma visão neoliberal de
valorização de empreendimentos individuais e não de
escolhas coletivas, o projeto esboça a transição para a
análise dos óbices a enfrentar, em exercício de circularidade
argumentativa viciosa. Entre tais vícios argumentativos,
vemos a afirmação repetida de uma suposta ideologização
exatamente da comunidade em nosso País que é a mais
acadêmica e científica – ideologização que, por absurdo,
seria curada com alguma forma de educação moral e cívica.
Ou seja, a garantia de “liberdade de pensamento” se daria
no contexto de uma educação cívica, cuja medida não é
esclarecida, trazendo apenas o ranço de alguma educação
militarizada.
O projeto eleva então sua inanição à máxima potência
ao descrever tais movimentos argumentativos circulares,
ora tomando como premissa, ora como conclusão, aquela
proposição não justificada de que a vida acadêmica é lugar
de pura ideologização – afirmação que só faz sentido para
quem esvaziou a universidade de sentido, reduzindo-a à
tarefa de fornecer profissionais e não ciência, de servir ao
mercado e não à produção de conhecimento, de ser gerida
por critérios pouco claros de administração e não por uma
fina articulação entre as finalidades acadêmicas e os meios
disponíveis.
3. Na apresentação do projeto, sugere-se uma proposta
concreta: a cobrança de mensalidades/anualidades na
universidade pública, desenhada retoricamente com o
subterfúgio perverso de que serviria inclusive a alguma
espécie de reparação social. Desse modo, a proposta, que
fere um princípio constitucional, se apresenta como “um
marco importante para a melhoria de desempenho das
universidades públicas”, enfrentando a resistência daqueles
que teriam transformado as Instituições de Ensino Superior
em “centros de luta ideológica e de doutrinação político-
partidária”. Tal proposta, porém, nada tem de ousada,
sendo apenas expressão de cegueira ideológica em relação
a nossa realidade.
Em outros contextos, em outros países, é possível sim
que a cobrança não implique por si destruição do interesse
público. Não se podem, porém, colocar em linha de conta
realidades diferentes. Isso equivaleria a ignorar o que é
próprio da realidade brasileira, sem cuja consideração
atenta não se pode estabelecer um projeto autêntico de
nação. É desconhecer sobretudo a composição do corpo
discente, que não mais vem de camadas abastadas, mas
sim é hoje composto (sic) majoritariamente por estudantes
em vulnerabilidade social. Ademais, a proposta tanto ignora
a matriz orçamentária das universidades públicas, quanto,
sobretudo, fecha os olhos às implicações pedagógicas de
uma tal cobrança em nosso específico ambiente acadêmico.
Como bem considera Eugênio Bucci em recente artigo
publicado no site A Terra é Redonda, “Em outros contextos
sociais, universidades públicas podem cobrar (pouco) de
estudantes. No caso brasileiro, no entanto, o caráter da
gratuidade é indispensável para consumar o caráter público
das nossas universidades. O fato de não haver mensalidade
reafirma o direito à educação superior para todos.” Esse é,
portanto, o contexto específico nosso, que nenhuma
proposta pode desconhecer. Quem pretende quebrar o
princípio da gratuidade não compreende a universidade
como um investimento no futuro, com tarefas específicas
postas por nossa realidade, mas sim estabelece parâmetros
orçamentários abstratos, antes próprios de um negócio,
sem considerar o fato trivial de que, sobre ser perversa, a
cobrança seria um fracasso orçamentário.
Por outro lado, apesar de haver casos de cobrança em
outras realidades, a tendência dos melhores centros vai na
direção contrária e não é sequer desejável em todos os
casos, nunca sendo um valor em si mesma. Como também
nos lembra Bucci em seu texto, instituições importantes
como o MIT têm, ao contrário, ampliado a oferta de bolsas
integrais exatamente para assim atrair os melhores talentos
e lhes favorecer a criatividade acadêmica, além de, com
isso, evitar o desnível de importância entre cursos e a
segregação entre estudantes. Afinal de contas, quem
conhece mesmo a universidade e não a despreza sabe bem
que o ambiente acadêmico sempre melhora quando
superamos cisões e prezamos a diversidade, quando
confiamos, enfim, no talento de nossa gente, a ser cultivado
em um ambiente acolhedor. Ou seja, a universidade mostra-
se uma justa e adequada forma de vida quando a
compreendemos como um lugar de produção do autêntico
mérito e não de mera reprodução das divisões de classe
existentes na sociedade – divisão que, ao fim e ao cabo,
seria transposta para o ambiente acadêmico e agravaria a
clivagem entre cidadãos e clientes.
Projetos que, por diversos ou sutis que sejam,
pretendem desobrigar o Estado desse compromisso
estratégico com o financiamento público da educação
superior tanto não resolvem a questão propriamente
orçamentária quanto quebram o compromisso com um
projeto de nação que tenha o condão de nos unir em
propósitos cívicos e críticos mais elevados. A questão é
deveras grave e urgente, pois tais projetos são sintomas de
um fenômeno ameaçador, qual seja, o de que, por diversas
causas, se quebrou a aura da universidade e, por isso
mesmo, significativas camadas dirigentes não mais nela se
reconhecem. Temos então uma visão amesquinhada de
universidade a esboçar o projeto de uma nação medíocre,
da mesma forma que um projeto medíocre de nação afasta
a universidade de seus valores mais elevados.
4. O projeto fala, pois, em liberdade, mas parece sim
querer nos pôr a ferros. A seus olhos, a instituição
universitária e a comunidade que a constituem não podem
ter vida própria nem autonomia e chegam a ser
apresentadas no que têm de vida acadêmica como
simplesmente indesejáveis. Temos então o paradoxo de
propostas ideologizantes defendidas, de modo sumário e
precário, a pretexto de combate às ideologias. Com isso,
aparece a figura de uma educação moral e cívica, sem que
haja uma medida de civismo que possa se alimentar de um
projeto de nação amparado na principal fonte de produção
de conhecimento em nosso País, a saber, a própria
universidade pública.
Desse modo, temos não só um projeto inane de
universidade, mas também um projeto indigente de nação,
sem liga intelectual e antes conjugado ao desejo de poder
de uma ordem unida. Sintoma grave da ausência de um
projeto de nação elevado está em retirar-se desta a
dignidade necessária e diferenciada da esfera pública. O
“Projeto de Nação ”, então, mais que nivelar o público e o
privado, torna o privado em fonte das demandas a serem
atendidas e dos valores a serem preservados. E com tal
transformação do setor produtivo e do mercado (atual e
futuro) em critérios, temos uma fragmentação da sociedade
em interesses privados e da universidade em uma soma de
indivíduos em competição e não em cooperação.
Talvez estejamos inferindo demais de um projeto que diz
tão pouco e faz afirmações preconceituosas e doutrinárias,
sem amparo em quaisquer dados, sem um diagnóstico
enfim do modo como pesquisa, ensino e extensão se
apresentam em nosso País. De toda maneira, os índices são
suficientes para nossa reação. Dirige-se, afinal, o “Projeto de
Nação” à universidade como se esta fosse o problema e não
como uma aposta legítima da sociedade em um projeto de
futuro, cujos problemas devam ser resolvidos.
Ora, quem não confia na universidade tem um projeto
mesquinho de nação. Quem pretende recusar à comunidade
universitária a capacidade de decidir sobre o processo de
escolha de seu projeto de gestão e, logo, de seus dirigentes,
retira à universidade sua autonomia e sua capacidade de
reflexão, promovendo assim, além de um ataque à
democracia, um desastre gerencial. É um sintoma dessa
incompreensão tratar os reitores como meros executivos,
passíveis de escolha por algum comitê de busca, e não
como representantes do projeto elaborado pela
comunidade, de modo que, como representantes, são
obrigados a reunir habilidades e competências múltiplas,
seja pela capacidade de formulação, seja pela capacidade
de representação.
Ao contrário da acusação feita e repetida, a universidade
brasileira não é o espaço de interações indesejadas e
ideologizadas. É um lugar, sim, de confrontação de saberes
e de gerações, bem como de interações simbólicas,
científicas, afetivas, políticas e culturais insubstituíveis. É
assim um bom lugar de balbúrdia sagrada, porque derivada
de uma promessa cívica e crítica. Dela, devem partir os
melhores influxos de criatividade, nunca podendo ser
doutrinada. A universidade é lugar de tolerância
epistemológica e da experiência do encontro; é lugar onde
matrizes culturais diversas devem juntas dialogar e não se
anular.
A universidade, ao contrário de alguma instituição
hierarquizada de controle, é lugar de boa indisciplina, de
renovação das virtudes que geram autoridade legítima, sem
a qual o conhecimento não avança.
Nada mais contrário à vida universitária que a tentativa
de subordiná-la a uma verdade cívica e moral que lhe seja
estranha. E podemos ser um bom lugar de balbúrdia
intelectual exatamente porque, em função de nossa
natureza mais profunda, jamais podemos ser lugar de
incivilidade, de ignorância, de preconceito, de barbárie.
As universidades não são centros de luxo nem de
desperdício, mas sim o espaço de um refinamento que
desejamos ver cada vez mais acolhedor e ampliado, é
espaço de conhecimentos novos e de saberes que
protegemos. Somos assim, a um só tempo, quebrada e
museu. Somos destinados a todos, mas a todos com plena
qualidade, porque, afinal, somos ciência, cultura e arte.
Somos razão certamente e, todavia, não deixamos de ser
vez ou outra tomados pela boa loucura – que, também na
universidade, é como um sol que não deixa o juízo
apodrecer.
Política e Sistema de Inovação
Luiz Martins de Melo[17]
As políticas públicas de inovação e a construção dos
sistemas nacionais que englobam a ciência e a tecnologia
geram progresso técnico e promovem mudanças no
capitalismo. A observação da experiência internacional tem
mostrado o esforço que países líderes empreendem visando
fortalecer encadeamentos entre os agentes e,
principalmente, adaptar-se às exigências trazidas por
características transversais do progresso técnico: a
convergência de tecnologias, a integração dos sistemas
produtivos e o esmaecimento de fronteiras entre diferentes
áreas do conhecimento.
Dentre os vários agrupamentos de inovação mais
afetados pela expansão tecnológica, destacam-se os setores
de comunicações, transportes (logística) e energia, que
formam a infraestrutura ampliadora e integradora de
espaços geográficos nacional e internacional pela redução
do tempo e do custo de produção, de distribuição e de
processamento de informações. O exemplo clássico dessa
agregação foi a operação integrada da estrada de ferro e do
telégrafo, que abriu espaço à produção em escala para as
grandes indústrias da segunda revolução industrial, no final
do século XIX.
Cada ciclo de mudança tecnológica acarretou alterações
sociais, tornou o mundo “menor”, mais próximo e mais
desigualmente integrado pela capacidade dos países
centrais de promover acumulação, concentração e
centralização do capital por meio de empresas líderes e
oligopolistas com capacidade para o risco e para a obtenção
de recompensas relacionadas à construção e à exploração
das mudanças.
Nesses ciclos ocorreram expansão significativa do
mercado de títulos mobiliários e imobiliários nos países
líderes e principais centros financeiros do capitalismo, o que
ocasionou uma rápida elevação nos preços das
commodities, enorme expansão da concessão de
empréstimos aos mercados de países menos desenvolvidos
e aumento considerável no comércio mundial.
A relação entre os “projetos nacionais” e as políticas de
Estado tornaram os recursos públicos para o financiamento
da inovação relativamente estáveis como proporção do PIB
nos países desenvolvidos, onde também foram direcionados
para as atividades de maior incerteza: infraestrutura,
ciência e tecnologia, formação de recursos humanos para a
pesquisa básica e aplicada. O financiamento funciona como
importante subsídio para o desenvolvimento tecnológico de
alta incerteza em atividades de risco típico do setor privado.
É possível realçar características presentes nos
processos históricos de todos os países desenvolvidos:
direcionamento das empresas para as prioridades de
inovação e de impulso na educação e no treinamento de
pesquisadores, técnicos e trabalhadores; criação de
sistemas de serviços públicos de apoio para a constituição
de estrutura conglomerada da indústria com grandes
empresas de capital nacional que criam e organizam
cadeias produtivas integradoras de pequenas e médias
empresas com homogeneidade tecnológica; e o
estabelecimento de mecanismos de financiamento
específicos para a inovação, sendo o mais famoso deles o
venture capital, nos Estados Unidos.
Cumpre destacar o mais importante instrumento de
apoio à inovação: o poder de compra do Estado, que define
objetivos, prazos, metas e recursos financeiros e humanos
em função de missões prioritárias.
Por último, mas não menos importante, a
compatibilidade entre a política macroeconômica e a
política de inovação com a estabilidade maior das variáveis
básicas para a formação de expectativas positivas sobre o
comportamento futuro da demanda e o retorno do
investimento.
No Brasil, a preocupação explícita com a formação de
uma política de inovação e de um sistema nacional de
inovação começou com a criação do Conselho Nacional para
o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em
1951. Paralelamente, foram criadas organizações para
preencher as necessidades operacionais das diversas
funções do sistema de inovação, como a CAPES, o BNDES e
a FINEP/FNDCT. Pelo lado produtivo, surgiram as grandes
empresas estatais, o núcleo duro do sistema de inovação: a
Eletrobras, a Petrobras, a Telebras, a Vale do Rio do Doce, a
Embraer, a Embrapa e outras.
Nos anos setenta do século passado, o sistema de
inovação já tinha um conjunto completo de empresas e
organizações, mesmo se comparado a países
desenvolvidos. A institucionalidade construída indicava a
concepção de um projeto de nação que manteve uma
política de Estado por cinquenta anos. Mesmo com o golpe e
a ditadura civil-militar de 1964 houve continuidade e
modernização de várias políticas até a crise da dívida
externa do início dos anos oitenta e o que se convencionou
chamar de “década perdida”.
Muitas empresas foram privatizadas e desnacionalizadas
a partir dos anos noventa, especialmente nas áreas de
infraestrutura do sistema de inovação, comunicações,
transportes e energia. Esse processo ainda está em
andamento. Mesmo com essa redefinição da política de
Estado, algumas das empresas essenciais para a
implantação de sistemas de alta capacidade de geração de
tecnologia e de inovação continuam a operar como a
Embrapa, a Embraer e a Petrobras, que ainda resistem ao
esgarçamento institucional. Outro grande resultado foi a
construção de um sistema de pós-graduação e formação de
recursos humanos para a pesquisa.
Essas conquistas não produziram grande mudança
estrutural na nossa economia, mas conseguiram manter as
principais atividades em razoável nível de operação. Em
alguns setores, o desempenho produtivo e inovador se
manteve em paridade com o sistema internacional, como na
agroindústria (com apoio da Embrapa), na prospecção de
petróleo em águas profundas (com a liderança da Petrobras)
e na área aeroespacial (com a Embraer). Todas essas
atividades tiveram o apoio do Estado durante décadas de
maturação.
Porém, a partir do golpe de 2016, com a política do
governo Temer designada como “Ponte para o Futuro” e o
estabelecimento do “teto de gastos” como centro da
política fiscal, o sistema de inovação entrou em processo de
“destruição destrutiva”.
A relação entre a política macroeconômica e a formação
de expectativas positivas para o investimento produtivo e
em inovação tem suas próprias exigências. Ela é dada pelas
características específicas dos regimes macroeconômicos
que se sobrepõem e condicionam as decisões das
empresas, conformando padrões de financiamento e de
governança corporativa, de comércio exterior, de
concorrência e de mudança técnica – conforme explica
Luciano Coutinho em “Regimes macroeconômicos e
estratégias de negócio: uma política industrial alternativa
para o Brasil no século XXI”, texto publicado em 2005.
O ponto principal é que a tentativa de cortar gastos
fiscais não resulta automaticamente em aumento de
investimento em bens de capital se a baixa demanda
agregada persistir e não houver diminuição da capacidade
ociosa.
As empresas, nesse ambiente macroeconômico, ao invés
de investir em novas máquinas, equipamentos e
instalações, com métodos produtivos ajustados às novas
tecnologias e escalas de produção, vão se limitar a
intensificar a utilização da capacidade instalada para não
assumir os riscos inerentes à decisão de imobilizar capital
fixo. Isso causa perda de eficiência e custos crescentes pela
superutilização da capacidade de produção, conforme
Kupfer, em “A doença industrial brasileira” (Valor
Econômico, 14/10/2019).
Soma-se a isso o baixo investimento público em
infraestrutura, que aumenta os custos de logística. Não
houve uma integração positiva entre infraestrutura e a
inovação, mas uma “integração negativa”. A análise de
dados da Pintec/IBGE confirma esse diagnóstico ao mostrar
que houve um aumento do percentual de firmas que
receberam apoio do governo federal ao longo do tempo,
mas esse apoio não se traduziu em um incremento da
inovação na mesma proporção.
Além disso, foi deflagrada uma política de diminuição do
tamanho do Estado com a desintegração da cadeia
produtiva da Petrobras, a venda da Embraer para a Boeing
(que não foi concretizada) e a privatização da Eletrobras.
Tudo isso sem que houvesse avaliação do impacto dessas
políticas sobre o desempenho produtivo e inovador da
economia claudicante. E ainda durante um ciclo de
intensificação da inovação em âmbito mundial, com o
“cluster 4.0”, o aumento da rivalidade tecnológica e militar
entre os Estados Unidos e a China, a pandemia e a guerra
entre Rússia e Ucrânia, que deflagrou uma crise de energia,
de insumos produtivos e de alimentos, com a elevação dos
preços e redução do crescimento mundial.
O impacto desse regime de política macroeconômica
sobre a estrutura produtiva e, em especial sobre a indústria,
foi negativo. Ocorreu a desindustrialização no Brasil entre
1980 e 2016 e os setores de maior intensidade tecnológica
perderam 40% de peso.
A elevada dependência tecnológica de componentes
estrangeiros intensivos em pesquisa e desenvolvimento
limitou o potencial do país para explorar tecnologias
capazes de alavancar o sistema nacional de ciência e
tecnologia e de estimular o crescimento dos demais setores.
Apesar desse processo ser mais grave no setor de
informática, eletrônicos e ópticos, também atinge outros
setores de alta intensidade tecnológica em menor
magnitude, como revelou Morceiro (“Desindustrialização é
um problema?”, Valor Econômico, 07/05/2019).
Com certeza, a combinação de taxa de câmbio baixa e
taxa de juro alta teve um grande impacto no
aprofundamento da desindustrialização. Ocorreu um efeito
restritivo sobre a demanda interna com a transferência do
poder de compra para o exterior em decorrência de
importações de bens de consumo e de insumos industriais e
tecnológicos. A cadeia de fornecedores foi desnacionalizada,
sendo mantida uma permanente pressão sobre a política
monetária e fiscal com o objetivo de não permitir uma taxa
de câmbio mais alta e manter um superavit primário que
garantisse a confiança no pagamento dos juros da dívida
pública.
Um último ponto merece atenção, pois ele continua em
realização e se transformou em uma prioridade do atual
governo. O aumento da participação das empresas
subsidiárias de empresas transnacionais na estrutura
produtiva pode ser considerado como um resultado da
política adotada no país. Esta é uma característica
estrutural do processo de industrialização brasileiro que
difere do sudeste da Ásia.
A participação das empresas estrangeiras na manufatura
brasileira já era muito superior à da Coreia do Sul em
meados dos anos setenta. Sarti e Laplane (Observatório da
Economia Contemporânea, 20.08.2019) atualizaram a
discussão sobre os efeitos da internacionalização,
desnacionalização e desenvolvimento e mostram de forma
contundente que o aprofundamento dos processos de
integração global e de desnacionalização da base produtiva
brasileira não promoveram uma melhora da sua
competitividade e reforçaram, mais do que transformaram,
a estrutura produtiva e a inserção externa preexistente.
Além disso, o teto de gastos levou a um corte drástico
nos recursos para o financiamento da infraestrutura de
ciência e tecnologia, para a formação de recursos humanos
nas universidades públicas, responsáveis por 90% da
produção científica brasileira. O FNDCT, principal financiador
das atividades de inovação, teve mais da metade dos seus
recursos orçamentários contingenciados. A arrecadação
tributária do FNDCT nos últimos anos, devido à elevação
dos preços do petróleo, está em R$10 bilhões, dos quais
menos da metade tem sido colocada em operação,
ocasionando uma retração das atividades de inovação em
toda a sua cadeia de valor.
Pela análise desenvolvida, mostra-se que o sistema
nacional de inovação está em um processo de “destruição
destrutiva” pelas políticas públicas implantadas, em
especial, a partir do golpe de 2016. Esse fenômeno foi
ignorado pelos autores do “Projeto de Nação” em análise
neste livro.
Também se destaca que as novas tecnologias do “cluster
4.0”, ligadas a um imperativo de modernização e inovação
para diminuir a dependência tecnológica, recolocam o
paradoxo implícito do subdesenvolvimento, que é se ver
obrigado a perseguir o objetivo de redução da desigualdade
por meio da adoção de tecnologias que a aprofunda.
Ainda temos algumas atividades de inovação que podem
servir de base para reconstrução do sistema, na direção de
um processo de “destruição criadora” de forma a superar o
paradoxo. Porém, essa reconstrução não pode ser baseada
na mesma concepção que presidiu a criação do sistema e
que vigorou desde o início até crise atual, de “destruição
destruidora”.
Para superar o paradoxo, que não foi destacado no
“Projeto de Nação” em debate, cabe dominar o
conhecimento que faz funcionar a parafernália do novo
paradigma digital (inteligência artificial, sistemas
ciberfísicos, etc) para se capacitar a desenvolver e projetar,
não somente operar, as novas tecnologias.
Somente assim será possível assegurar que a geração
de empregos mais qualificados não venha a se deteriorar
ainda mais. A trajetória para isso é a retomada do apoio aos
sistemas setoriais de inovação já constituídos
(agroindústria, saúde, petróleo, aeronáutica, biodiversidade)
para gerar oportunidades de desenvolvimento.
Essa reconstrução seria baseada em cinco grandes
programas.
O primeiro, seria um amplo investimento na
infraestrutura de ciência e tecnologia para modernizá-la e
dotá-la de centros de referência para a geração e difusão
das tecnologias do “cluster 4.0”, que constituem base para
a modernização da estrutura industrial brasileira e para a
formação dos recursos humanos para a pesquisa.
Importante aqui é o investimento em laboratórios com
capacidade de escala e escopo, dado à atual pequena
capacidade dos existentes.
O segundo, seria um investimento nos sistemas de
infraestrutura de serviços públicos (transporte, energia,
saneamento, saúde e educação) para gerar demanda para a
absorção dos recursos humanos formados no investimento
em infraestrutura de ciência e tecnologia e para as
empresas nacionais que se capacitariam para projetar e
implementar a integração desses serviços públicos que
necessitam de todas as tecnologias do “cluster 4.0” para
sua operação eficiente e atendimento da população.
O terceiro, seria um amplo programa de financiamento
para a introdução das técnicas digitais de gestão nas
pequenas e médias empresas que ainda estão no
paradigma anterior ao 2.0. Isso vai gerar um grande
aumento de produtividade e competitividade para enfrentar
a concorrência internacional.
O quarto, seria um programa para o enfrentamento dos
principais problemas da sociedade brasileira nas áreas de
saúde e urbanização, em especial, na transformação
sustentável do transporte público.
O quinto vem a ser um programa de “grande acordo
verde”, que invista nas tecnologias de energia renovável e
nas suas inovações, na mobilidade elétrica e híbrida e em
um sólido programa de pesquisa científica na Amazônia,
para o aproveitamento do seu potencial inovador, geração
de empregos e restrição à destruição ambiental.
Como já apresentado, o FNDCT com uma arrecadação
tributária de R$ 10,0 bilhões, sem os grilhões do teto de
gastos e do ajuste fiscal, e com a inovação se
transformando em uma política de Estado, é possível sair da
“destruição destruidora” para iniciar o processo de
“destruição criadora”, sem o qual não se estrutura a base
industrial de um real projeto de nação.
Ciência, tecnologia
e o futuro da nação
Olival Freire Junior[18]
Manuel Domingos Neto[19]
Planos relativos ao desenvolvimento científico e
tecnológico indicam a seriedade e a consistência de
projetos nacionais de desenvolvimento.
Aprendemos com as experiências dos séculos XX e XXI
que nações exitosas em seu esforço de desenvolvimento
aceleraram a produção científica. No que diz respeito às
suas capacidades militares, nem se fale: há cinco séculos o
Ocidente tem preponderado por conta de armas e
equipamentos gerados pelo avanço científico e tecnológico.
O desenvolvimento econômico ocorreu
independentemente da natureza dos regimes políticos. Foi o
caso da Alemanha, que com suas descobertas na química e
na metalurgia desenvolveu sua produção industrial e passou
a desafiar a França e a Inglaterra ainda na segunda metade
do século XIX.
A União Soviética e países asiáticos, como o Japão,
Coreia do Sul e, mais recentemente, a China, passaram à
posição de destaque pelo esforço realizado no âmbito
técnico-científico. Israel, pequeno e escasso de recursos, é
outro caso ilustrativo.
O fato é que, com o desenvolvimento capitalista
entrando na fase imperialista, os países que disputaram a
hegemonia se apoiaram na capacitação científica.
O que podemos inferir sobre as propostas relativas ao
desenvolvimento da ciência e da tecnologia constantes no
“Projeto de Nação – O Brasil em 2035”?
Esse “Projeto de Nação” foi elaborado com base em
metodologia que destaca listas de fatores percebidos como
“óbices” a serem superados pela nação. No que concerne ao
desenvolvimento científico e tecnológico, o projeto
estabelece diretrizes que, não passando de obviedades e
truísmos, mostram indigência intelectual e incapacidade de
identificação de entraves.
A primeira grave omissão é o não reconhecimento de
que vivemos hoje tendência de perda de jovens talentos
para o exterior. Esta evasão de cérebros é motivada pelas
precárias condições de trabalho oferecidas e pela ausência
de perspectiva profissional. Qualquer consulta a líderes de
bons grupos de pesquisa no Brasil trará este elemento à
tona.
Considerando-se que a formação de pesquisadores pode
durar décadas (o tempo de formação, da graduação ao
doutorado, não é menor que dez anos), a perda de uma ou
duas gerações de talentos criará obstáculos de difícil
superação para o desenvolvimento científico e tecnológico
do Brasil.
É irônico que militares mostrem insensibilidade diante
disso, vez que conheceram de perto tal fenômeno no início
da década de 1960. Um exemplo que fala por si foi o de
Sérgio Porto: o mais destacado pesquisador brasileiro da
área do laser abandonou o cargo de professor do Instituto
Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em 1960, devido ao
precário apoio à pesquisa. Trabalhou nos EUA por quase
quinze anos. Retornaria apenas em meados da década de
1970, falecendo em 1979.
O segundo silêncio do projeto dos militares diz respeito à
crescente negação do valor da ciência, particularmente
agravado pela partidarização do enfrentamento à pandemia
do coronavírus. Apoiar o governo praticamente significou
considerá-la um mero resfriado. A vacina foi rejeitada com
argumentos estapafúrdios.
O “Projeto de Nação” até reconhece que o Brasil foi um
dos países mais afetados pela pandemia do coronavírus,
“com milhares de perdas humanas e fortes impactos
negativos sobre a economia”. Contudo, nada afirma sobre o
fiasco do governo federal diante do problema. O
gerenciamento da crise foi protagonizado por militares que
ocuparam o Ministério da Saúde.
Ainda relacionado ao ambiente de negacionismo
científico, cabe registrar que o desenvolvimento da ciência
depende tanto dos valores presentes na sociedade quanto
da relação de confiança entre os cientistas e o Estado, não
significando, evidentemente, apoio dos cientistas a
governos específicos.
Uma crise de confiança se instalou, nos últimos anos,
nesta relação. A interferência do governo na divulgação de
resultados científicos considerados inconvenientes foi
decisiva em sua configuração, sendo episódio emblemático
o incidente criado pelo Planalto com os dados sobre
queimadas na Amazônia monitorados há muito tempo pelo
Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (INPE). Como os
dados conflitavam com o discurso governamental sobre a
situação na Amazônia, o governo tentou alterá-los. A recusa
do Diretor Geral do INPE, Ricardo Galvão, em coonestar com
atitude que prejudicaria a credibilidade científica da
instituição, levou o presidente a exonerá-lo.
A degradação das relações com a comunidade científica
foi acentuada com a ocupação dos ministérios da Educação
e da Ciência e Tecnologia por oficiais e pastores sem
afinidade com o trabalho das instituições de apoio à
pesquisa. Entidades arduamente consolidadas ao longo de
décadas foram atingidas pela hostilidade dos governantes.
Eles ainda interferiram arbitrariamente no processo de
escolha dos dirigentes de instituições de ensino superior,
degradando o ambiente acadêmico.
Dentre as diretrizes apontadas para o tema “Ciência,
Tecnologia e Inovação (CT&I) no Brasil” pelo “Projeto de
Nação” não existem referências às ciências humanas e
sociais, como se pudéssemos compreender a sociedade e o
país sem o recurso a tais áreas do conhecimento. Mesmo
projetos considerados estratégicos nos domínios da energia
e alimentação também requerem, para sua implantação
ambientalmente sustentável, o trabalho de cientistas
sociais.
A ausência de referências às humanidades coexiste com
visões autoritárias no conjunto do texto, que apresenta uma
leitura, não explícita, do impeachment da presidenta Dilma
e da eleição do capitão Bolsonaro como expressões de uma
sociedade brasileira conservadora, o que até aqui seria uma
leitura correta.
Contudo, o documento prevê a manutenção da
orientação governamental vigente por quinze anos,
caracterizando-se como um projeto político partidário que
pretende se eternizar.
Agrava tais considerações o fato de o documento não
explicitar o papel da investigação básica, abstendo-se de
fazer a necessária conexão entre esta e as áreas aplicadas
da pesquisa.
Para atingir tais fins o documento defende sistemáticas
intervenções na educação, critica o “globalismo” e o
“ativismo judicial político-partidário”; requer a implantação
de um “Centro de Governo (CdG)” e de um “Sistema
Integrado de Gestão Estratégica (SIGE-BR)”. Tais figuras
institucionais afrontam a Constituição; seu teor
protofascista explica a aversão às ciências sociais, decisivas
para revelar sua matriz político-ideológica.
Mesmo em aspectos em que o documento não é omisso,
as insuficiências são gritantes, particularmente se
considerarmos que é apresentado como um plano
estratégico para os próximos quinze anos.
Quanto ao financiamento da pesquisa, o “Projeto de
Nação” reconhece como óbices a “insuficiência ou não
priorização de investimento para a geração de Pesquisa,
Desenvolvimento, Empreendedorismo e Inovação de
qualidade,” e os “contingenciamentos periódicos de
recursos orçamentários e do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico”. Projeta um
cenário no qual “o percentual do PIB investido em CT&I
aumenta de 1,3% para próximo de 2%”. Trata-se de
aspiração modesta, a ser atingida ao longo de uma década,
quando a proposição histórica da comunidade científica é de
chegarmos a este patamar de 2% ao longo dos próximos
quatro anos.
Mais grave, contudo, é o documento nada dizer sobre a
dramática redução de verbas para pesquisa nos últimos seis
anos, pelos governos Temer e Bolsonaro.
Ao longo do “Projeto de Nação”, há poucas referências
precisas a temas e projetos estratégicos. Ainda que
proponha “Revitalizar o Programa Espacial e o Programa
Nuclear Brasileiros”, nada é dito sobre projetos específicos,
literalmente travados há mais de uma década. Este é o caso
da tecnologia de propulsão nuclear para os submarinos
indispensáveis à defesa nacional, do reator multipropósito,
indispensável para a autonomia do país na área de
radiofármacos e da tentativa não implementada de
construção de veículos de lançamento de satélites.
Sintomaticamente, a área da sociedade para a qual o
documento é mais preciso quanto ao desenvolvimento
científico e tecnológico do país é o crescimento da
produtividade do agronegócio. Certamente, as ciências
agronômicas têm contribuído para o sucesso dessa
atividade e caberia lembrar aqui a contribuição inestimável
de Johanna Dobereiner – pioneira na pesquisa da fixação
biológica de nitrogênio (FBN), especialmente em
leguminosas tropicais. Suas pesquisas foram fundamentais
para o programa de melhoramento de soja, atualmente
destaque na produção do agronegócio.
Valorizar este segmento da economia em detrimento do
potencial impacto da ciência e da tecnologia em outras
áreas seria advogar o retorno ao Brasil dos fins do século
XIX, potência agrícola na cafeicultura mas sem
industrialização relevante.
A conclusão que se impõe é que o documento é omisso
ou insuficiente nos aspectos do desenvolvimento científico e
tecnológico, fator imprescindível para qualquer projeto de
desenvolvimento de nação soberana.
Seria interessante alguma comparação com outros
momentos em que militares tiveram papel de relevo na
capacitação científica e tecnológica do país.
Antes do surgimento das universidades, as escolas
militares desempenharam papel relevante na formação de
quadros para a pesquisa.
Após a Segunda Guerra, a atuação do almirante Álvaro
Alberto foi decisiva na criação do Conselho Nacional de
Pesquisa (CNPq), no estudo dos minerais estratégicos e no
domínio da tecnologia nuclear. O marechal Casimiro
Montenegro Filho destacou-se na criação do Instituto
Tecnológico da Aeronáutica.
A ditadura militar de 1964, criou universidades, destinou
verbas para a pesquisa e adotou a avaliação de mérito
baseada em Tabela das Áreas de Conhecimento
mundialmente reconhecida, inclusive, institucionalizando as
ciências humanas. Ao estigmatizar as universidades e
menosprezar a comunidade científica, os militares renegam
expressamente seu próprio legado. Não aprenderam a lidar
com um país que passou a dispor de apreciável contingente
de mestres e doutores que o inserem de forma promissora
no mapa da produção mundial de conhecimento.
A concepção de nação propugnada pelos militares ignora
na prática as conturbações ensejadas pela mudança em
curso da ordem mundial. Vivemos hoje sob a expectativa de
conflagração internacional e a capacitação científica e
tecnológica do Brasil é imprescindível. Os militares
menosprezam a necessidade de o país ganhar autonomia
em relação à produção da indústria bélica hegemonizada
pelos Estados Unidos. Projetam uma nação submetida à
vontade alheia.
O “Projeto de Nação” menciona a necessidade de
parcerias dos instrumentos de força com pesquisadores
acadêmicos, mas não revela proposições consistentes neste
sentido. Ao contrário, credita às instituições científicas um
papel negativo na construção da comunidade nacional e,
questionando os investimentos públicos nas universidades,
anuncia o enterro da universidade pública, gratuita, de boa
qualidade e com função social inquestionável.
O “Projeto de Nação” remete o país ao tempo em que,
sendo obrigado a lutar contra o nazifascismo, o fez na
condição de servo da grande potência que buscou e
conseguiu a hegemonia mundial. Não consegue perceber
que a ordem mundial que protagoniza está com seus dias
contados.
A militarização das
escolas públicas
Catarina de Almeida Santos[20]
Pelo menos no discurso, a educação é tida como
importante para a maioria das pessoas. Dificilmente
encontramos alguém que negue a sua relevância, seja para
o desenvolvimento das pessoas, preparação para o trabalho
ou como bandeira de construção da paz. A Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco),
criada em 1946, tendo como ideário a reconstrução do
mundo e a manutenção da paz, traz no preâmbulo do Ato
de criação que “uma vez que a guerra começa nas mentes
dos homens é nelas que devem ser construídas as defesas
da paz”, sendo a educação o caminho mais profícuo para o
alcance desse objetivo.
Nos anos de 1980, mais de três décadas depois, Ronald
Reagan declarou a necessidade de se ter o controle dos
meios e processos educativos, pois, segundo ele, quem
controlasse a educação definiria seu passado e seu futuro,
pois o amanhã estaria “nas mãos e no cérebro” daqueles
que são educados hoje.
O controle almejado pelo então presidente da maior
potência econômica e principal representante do sistema
capitalista, que conta atualmente, no Brasil, com uma
enorme quantidade de policiais atuando nas escolas, parece
não sinalizar para uma educação que tenha como finalidade
contribuir para a construção de um mundo em que homens
e mulheres sejam realmente livres, de uma sociedade
democrática em que as escolas sejam espaços de sua
construção. Ou, como apontou Anísio Teixeira, sejam as
máquinas de fazer a democracia.
Teixeira afirmava ser a escola uma instituição com
características específicas, com membros e interesses
próprios e, como tal, seu governo deveria ter um modelo
democrático, caso contrário não formaria para a
democracia. Dizia que toda a comunidade escolar deveria
se organizar de forma que todos participassem da gestão,
com a divisão de trabalho que se revelasse mais
recomendável, de modo que esta participação
desenvolvesse interesse comum, o que é essencial ao feliz
desempenho da missão educativa da escola. No livro
“Educação e o mundo moderno” ele diz que:
“[o]s processos democráticos de educação requerem, assim,
antes de tudo, a transformação da escola em uma instituição
educativa onde existam condições reais para as experiências
formadoras. A escola somente de informação e de disciplina
imposta, como a dos quartéis, pode adestrar e ensinar, mas não
educa. Nesta escola, a democracia, se houver, será a dos
corredores, do recreio, dos intervalos de aula, desordenada,
ruidosa e deformadora.”
Especialmente a partir da década de 1990 e com ampla
expansão a partir de 2019, o Brasil vem na direção contrária
do que sempre defendeu Teixeira ao militarizar as escolas e
impedir que estas sejam governadas a partir dos princípios
da educação e passem a ser geridas com base no espírito
militar.
Como afirmou o Subsecretário do Programa Gestão
Compartilhada do Distrito Federal – que militariza as escolas
repassando a chamada gestão disciplinar para a polícia –,
Coronel Ferro, em entrevista concedida ao jornalista
Dioclécio Luz para o livro “Escola do medo”, “o modelo
cívico militar traz rotinas de uma instituição militar, embora
seja um Colégio, mas tem todas as rotinas de uma
instituição militar, rotinas de um quartel”.
Nesse sentido, militarizar uma escola é fazer com que
ela passe a funcionar a partir da lógica do quartel e isso se
dá quando as escolas públicas, vinculadas às secretarias
distrital, estaduais e municipais de educação, têm suas
gestões repassadas, por decisão de governadores e
prefeitos, total ou parcialmente, para policiais das diferentes
forças e até mesmo para guardas metropolitanas. Ou ainda,
quando as secretarias de educação adquirem pacotes
educacionais, comercializados por grupos de militares, que
dizem vender a chamada Metodologia do Colégio da Polícia
Militar, embora não exista clareza sobre o que isso
signifique.
Muitas são as justificativas para que os gestores
militarizem as escolas e defendam a presença da polícia no
comando destas instituições. As mais comuns estão na
Portaria Conjunta nº 22/20 – SEE/SSP do DF, que trata da
implementação do Projeto Escolas de Gestão
Compartilhada, que transforma escolas públicas da Rede de
Ensino em Colégios Cívico-Militares:
I – aumentar as taxas de aprovação dos estudantes na
Rede Pública de Ensino [...], assim como acesso a Instituições
de Ensino Superior; II – reduzir as taxas de reprovação,
abandono e evasão escolar dos estudantes [...]; III –
alcançar e superar as metas estabelecidas para o Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica – Ideb [...]; IV –
facilitar a construção de valores cívicos e patrióticos aos
estudantes das unidades de ensino; V – aumentar a disciplina e o
respeito hierárquico; VII – obter avanços nos parâmetros de
segurança pública cidadã na comunidade escolar, VII –
reduzir o índice de criminalidade no âmbito escolar, bem
como na região onde a escola esteja situada (grifos
nossos).
Segundo a Constituição Federal de 1988, a segurança,
assim como a educação, é um direito social de todas as
pessoas e sua garantia é dever do Estado. As forças
militares e seus profissionais são os responsáveis pela
segurança pública, cabendo às polícias militares fazer o
policiamento ostensivo e preservar a ordem pública.
O art. 3º do Decreto-lei nº 667, de 2 de julho de 1969,
que reorganiza e define papéis e responsabilidades das
Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares,
afirma que cabe às Polícias Militares, no âmbito de suas
respectivas jurisdições:
a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões
peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo,
fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de
assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem
pública e o exercício dos poderes constituídos;
b) atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em
locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível
a perturbação da ordem;
c) atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação
da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças
Armadas; (grifos nossos)

O Decreto define ainda que para ingressar no quadro de


oficiais os pretendentes deverão ser formados em cursos de
oficiais da própria Polícia Militar ou de outro Estado.
As funções a serem desempenhadas e a formação
exigida nos levam a crer que os policiais das diferentes
forças devam ser insumo de qualidade para a segurança,
não tendo formação ou funções que possam garantir
melhoria da qualidade da educação e, consequentemente,
melhoria nos resultados nas taxas de aprovação e índices
educacionais.
Outros dois argumentos amplamente utilizados para
militarizar as escolas são a redução da violência e do índice
de criminalidade no âmbito escolar, bem como na região
onde a escola está situada. Como podemos observar tanto
na CF de 1988 como no Decreto-lei nº 667, de 2 de julho de
1969, e legislações posteriores, os responsáveis pela
Segurança Pública são as polícias. Como não há relatos ou
dados que demonstrem que temos casos significativos de
violência em escolas localizadas em cidades ou bairros
seguros, infere-se que não se pode imputar à educação e às
escolas a responsabilidade pela violência.
Sendo a área de segurança e seus policiais os
responsáveis por garantir o direito à segurança, se eles
precisam atuar dentro da escola para resolver o problema
que está além dela, significa que eles falharam e não estão
cumprindo suas funções constitucionais. Por óbvio que os
problemas de segurança, no Brasil, são complexos e têm
relações com múltiplos fatores, inclusive pelo fato de o país
ter historicamente atuado de forma repressiva e não
preventiva, especialmente quando lida com a população
pobre, preta e periférica.
Não se trata de ignorar que temos problemas no campo
da educação, mas de entender que estes não serão
resolvidos com a repressão da polícia e cabe sempre
perguntar: como profissionais que não estão dando conta de
resolver os problemas de sua área, que têm princípios e
treinamento específico, resolverão questões da educação e
da escola, área e espaços para os quais não possuem
formação alguma? Os manuais de orientação para
funcionamento das escolas militarizadas, assim como seus
regimentos, não trazem nenhum elemento que aponte que
a atuação das forças militares possa melhorar a qualidade
do ensino nelas desenvolvido.
O que se pode averiguar em todos eles, assim como no
número de estudantes que recebem transferências nessas
escolas, nas taxas cobradas e uniformes exigidos em
algumas delas, nas exigências dos comandos das polícias,
nas instituições escolhidas para serem militarizadas, é que a
militarização seleciona quem fica nos estabelecimentos.
Não há como imaginar que os defensores da militarização
acreditem que a polícia educa melhor que os educadores e
que a pedagogia do quartel, especialmente seguindo os
princípios e finalidades da educação, seja mais adequada
que a pedagogia educacional.
Nesse sentido, cabe perguntar: se a melhoria da
qualidade da educação não é o foco, por razões óbvias, e a
resolução dos problemas de segurança pública também
não, o que se pretende com a militarização das escolas?
Essa pergunta não tem uma resposta simples, portanto
deixo alguns apontamentos e fatos que vêm permeando a
atuação das polícias em escolas militarizadas, assim como
as justificativas de alguns gestores. Espero com isso ajudar
na reflexão da problemática e na construção de um projeto
de desmilitarização das escolas.
Não há base na Constituição brasileira, na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação em vigor e nem nas demais
leis infraconstitucionais que permita que os profissionais da
área de segurança atuem na gestão das escolas, o que
torna o processo ilegal. Os princípios que regem a educação
nacional são opostos aos princípios do militarismo, que
podem fazer sentido na área de segurança, mas ferem o art.
205 da CF de 1988 e seguintes.
Conforme veiculado no Jornal A Tarde, o ex-governador
de Goiás, Marconi Perillo, pioneiro no processo de
militarização, contou em um evento para empresários em
Salvador, no ano de 2015, um fato que demonstra sua
motivação: “fui num evento e tinha um grupo de
professores radicais da extrema esquerda me xingando. Eu
disse: ‘tenho um remedinho pra vocês’. Colégio Militar e
Organização Social. Identifiquei as oito escolas desses
professores. Preparei um projeto de lei e em seguida
militarizei essas oito escolas”.
O presidente Jair Bolsonaro, ao lançar o Programa
Nacional de Escolas Cívico-Militares, afirmou que as escolas
não militarizadas educam de maneira permissiva, o que
leva à formação de uma juventude perdida e sem futuro. Na
opinião dele, as escolas públicas civis não oferecem ensino
de qualidade e, por isso, é preciso impor a militarização e
garantir algum futuro para a juventude. “Nós não queremos
que essa garotada cresça e, no futuro, seja um dependente,
até morrer, de programas sociais do governo” (Correio
Braziliense, 06.09.2019).
O comandante da PM do Distrito Federal, que atua em
uma das escolas militarizadas, postou em seu perfil no
Facebook o que ele considera mais do que o sucesso da sua
atuação, mas uma experiência de vida, que constituiu,
segundo suas palavras, “o maior aprendizado da minha
história profissional neste lugar”. Segundo ele, apesar de ter
encontrado um ambiente complexo e hostil, a sua atuação e
da equipe estava transformando a realidade.
O sucesso do trabalho de alguém que diz acreditar na
educação e nos jovens da escola foi demonstrado no relato
por meio dos seguintes dados:
Já foram 2.400 advertências (FO’s), 14 ocorrências policiais
militares diversas, dentre brigas, ameaças e apreensão de facas
(05). Atendi em minha sala mais de 100 pais e tivemos que
suspender mais de 15 alunos envolvidos em questões graves na
escola, encaminhei para SOE e Conselho Tutelar uma média de
15 alunos.
Nossa missão é cuidar de gente. Minha regra para a equipe é:
1) Olhar com compaixão;
2) Não julgar;
3) Não condenar.
Esses são os mecanismos e os caminhos para a garantia
do direito à educação, na perspectiva do desenvolvimento
dos sujeitos, da sua formação para viver e construir uma
sociedade plural e diversa, que tenha o respeito e a
liberdade como princípios?
Ameaças ao SUS
Jose Gomes Temporão[21]
A saúde brasileira é analisada no tema 30 (Sistema
Único de Saúde no Brasil) do “Projeto de Nação”. O
documento inicia sua análise com o que considera uma
“incerteza crítica”: os “pagamentos mínimos no Sistema
Público de Saúde, em 2035”.
Essa incerteza é assim descrita:
“No início dos anos 2020, o Sistema Único de Saúde
(SUS) era deficiente e sofria com processos precários de
gestão e controle, consumindo enormes quantias de
recursos dos orçamentos federal, estaduais e municipais,
sem que os cidadãos fossem convenientemente atendidos e
fazendo com que mais de 22% da população recorresse aos
planos de saúde privados. A saúde financeira era um dos
pontos fracos de maior relevância do SUS, comprometendo
a viabilidade e, em consequência, a própria sobrevivência
do Sistema. Assim, a partir de 2022, os governos passaram
a cobrar indenizações, conforme tabela elaborada por
especialistas, exclusivamente por parte das pessoas cuja
renda familiar fosse maior do que três salários-mínimos.
Essa medida aliviou o SUS, em curto prazo e, em 2035, o
Sistema apresenta melhores condições de sustentabilidade,
o que, somadas ao desenvolvimento do setor de
saneamento básico, resultou em substancial melhoria da
saúde pública no Brasil, com a redução do percentual da
população que recorria aos planos de saúde privados.”
O documento traça, então, um objetivo: “Garantir a
sustentabilidade econômico-financeira do SUS, de modo a
aperfeiçoar a qualidade do atendimento de saúde a toda a
população.”
Passemos à análise da proposta.
Não há exatamente um diagnóstico da saúde brasileira
nem tampouco um conjunto de propostas coerentes e
articuladas a ser discutido. Para além de posições político-
ideológicas, aqui falta substância e a mínima compreensão
do que seja política de saúde.
O centro da argumentação é econômico-financeiro. O
documento afirma que o SUS dispõe de “enormes quantias
de recursos dos orçamentos federal, estaduais e
municipais” e acrescenta, como decorrência, “sem que os
cidadãos fossem convenientemente atendidos e fazendo
com que mais de 22% da população recorresse aos planos
de saúde privados”.
O que se entende por “enormes quantias de recursos”?
O Brasil gasta cerca de 9% do PIB em saúde, somando-
se os gastos públicos e privados. Desse total, apenas cerca
de 45% é gasto público, 28% é gasto de empresas e cerca
de 27% representam gastos diretos das famílias com
medicamentos e outras despesas.
Ou seja, a maior parte do desembolso em saúde é
privado. A participação do setor público no total é menos da
metade.
Nos dispêndios das empresas, a quase totalidade é no
financiamento dos planos e seguros coletivos vinculados ao
emprego formal, sendo que, em 2021, apenas a indústria
desembolsou mais de R$ 60 bilhões com planos de saúde
para os trabalhadores e seus familiares. Ou seja, os 22% da
população que usam planos e seguros privados o fazem
custeados total ou parcialmente pelo empregador.
Ressalte-se que, do conjunto do mercado de planos e
seguros, cerca de 90% são planos coletivos vinculados ao
contrato de trabalho e apenas 10% individuais, custeados
pelas famílias.
Além disso, existem inúmeros subsídios e renúncias
fiscais ao mercado privado que retiram anualmente do SUS
cerca de 30 bilhões de reais, aumentando ainda mais o
subfinanciamento estrutural do Sistema.
A segunda parte da proposta refere-se à uma pretensa
solução para esse “desequilíbrio”.
“Assim, a partir de 2022, os governos passaram a cobrar
indenizações, conforme tabela elaborada por especialistas,
exclusivamente por parte das pessoas cuja renda familiar
fosse maior do que três salários-mínimos. Essa medida
aliviou o SUS, em curto prazo e, em 2035, o sistema
apresenta melhores condições de sustentabilidade”.
Ou seja, o diagnóstico afirma que os recursos são
substantivos, porém mal gastos por “processos precários de
gestão e controle” e que a solução seria cobrar das famílias
com mais de três salários mínimos de renda uma
coparticipação no financiamento a partir de uma tabela
elaborada por especialistas. As famílias com renda acima de
três salários mínimos teriam de pagar pelo atendimento no
SUS.
Além da estrutura fiscal altamente regressiva, que
penaliza os de mais baixa renda, o documento propõe, na
prática, aumentar essa regressividade jogando nas costas
da população um ônus adicional. Trata-se de uma proposta
insustentável sob qualquer ponto de vista e que não
contempla nenhum dos problemas estruturais do
financiamento do sistema de saúde público do nosso país.
O fato é que, hoje, o direito à saúde e o interesse
nacional estão em risco. A saúde como valor, direito de
cidadania e dever do Estado nunca esteve tão ameaçada.
Nas três últimas décadas, a sociedade brasileira
desenvolveu um imenso esforço para organizar e colocar
em funcionamento o Sistema Único de Saúde, que traz em
si um projeto de sociedade e um modelo de
desenvolvimento, que se expressam em valores
civilizatórios como igualdade, democracia e emancipação.
Mas esse processo está ameaçado em grande parte pelo
desempenho desastroso do governo federal na condução da
política de saúde desde 2016.
Em seus 34 anos de existência, o SUS é o resultado de
um gigantesco trabalho de integração de esforços de
entidades da sociedade civil, de instituições de ensino e
pesquisa vinculadas à Saúde Coletiva, de universidades,
escolas técnicas e de Saúde Pública, contando com intensa
participação social e institucional (Conselhos, Conferências
e Comissões Intergestores). Temos uma institucionalidade
construída cuidando cotidianamente da saúde e da
seguridade da população brasileira.
Os princípios políticos, as bases conceituais e filosóficas
da reforma Sanitária Brasileira continuam vivos e se
expressam no dia a dia do sistema de cuidados, na
produção acadêmica, nos movimentos políticos e sociais e
em milhares de experiências inovadoras desenvolvidas em
todo o país.
São expressivos e objeto de reconhecimento
internacional os avanços na atenção primária por meio da
estratégia de saúde da família, da política de imunização,
da redução expressiva da mortalidade infantil, da
organização de uma estrutura de vigilância epidemiológica
e sanitária, da política de assistência farmacêutica, de
transplantes de órgãos, do Samu, da política de
enfrentamento da Aids, do controle do tabaco, da política de
sangue e hemoderivados e de outras iniciativas públicas.
Todo esse esforço permitiu que o país construísse uma
forte base tecnológica e de cuidados na saúde que, hoje,
atende 75% da população do país, com grande impacto nas
condições de vida e na redução de iniquidades e
desigualdades de parte importante da população brasileira,
apesar de o fazer enfrentando imensas dificuldades.
Não obstante esses incontestes avanços e o gigantesco
esforço de gestores, profissionais, movimentos e entidades
comprometidas com o SUS, uma série de fenômenos vem
tendo um enorme impacto na sustentabilidade econômica e
tecnológica do sistema, principalmente sobre as transições
demográfica, nutricional, epidemiológica e tecnológica.
Além disso, carecemos de sustentabilidade política dado
que o conjunto da sociedade brasileira não vê o SUS como
um patrimônio da nação e algo a ser preservado e
valorizado como um bem comum a todos e de valor
inestimável.
Cabe destacar que a experiência cotidiana da população
com a rede de atenção é com frequência negativa em
termos de acolhimento, acesso e qualidade. Em muitas
cidades, é difícil o acesso a especialistas e a exames. O
tempo de espera por procedimentos pode ser longo e
penoso.
O conjunto de fenômenos que ameaçam o futuro do SUS
conforma na prática um projeto contra-hegemônico e
envolve dimensões políticas, econômicas, organizacionais e
ideológicas, destacando-se entre outras:
• O intenso processo de mercantilização e privatização
da assistência, que se expressa no grande crescimento do
setor privado.
• A visão largamente disseminada de que o SUS deve
atender prioritariamente aos mais pobres.
• A visão hegemônica, no governo e no parlamento, de
que a Saúde é gasto e, portanto, as questões de eficiência
do gasto e de macrogestão devem ter prioridade sobre
outras dimensões.
Esta visão é muito forte em parte importante da
burocracia estatal, nomeadamente nas áreas do
planejamento e da fazenda. Isto se manteve intacto durante
os 34 anos de SUS. Na verdade, sabemos que saúde é
investimento e que sua dimensão econômica pode,
inclusive, colaborar para a solução da crise.
• A aprovação da Emenda Constitucional 95, que
estabeleceu limites rígidos para os gastos públicos em
políticas sociais por 20 anos a partir de 2016. O
macrofinanciamento setorial continua como um dos
principais desafios. Neste quesito, há uma dupla
determinação: o modo como a riqueza produzida pelo país é
apropriada pelo conjunto da população e a luta pela
apropriação dos fundos públicos no interior do setor saúde.
• O desmonte da estrutura nacional de ciência,
tecnologia, pesquisa e inovação.
• O SUS sofreria de algumas “maldições” que o
fragilizam: ser público, o que se confunde com ser estatal;
pretender ser universal, não diferenciar entre status ou
renda; padronizar seu conjunto de intervenções; atuar na
dimensão coletiva e ver a saúde como direito. Esses
conceitos se chocam com o paradigma dominante em nossa
sociedade que cada vez mais enaltece os princípios do
consumismo, do empreendedorismo, do individualismo, do
mercantilismo: quem pode mais, paga por uma atenção à
saúde melhor.
Sua limitada base social: corporações, sindicatos
e partidos o apoiam apenas na retórica. No DNA desse
processo está a vanguarda do operariado nacional, os
funcionários das estatais, parlamentares e outras
categorias que colocaram como uma das peças centrais
dos acordos coletivos a oferta de assistência médica
privada para si e seus familiares. Este é um dos marcos
da fragilização política do SUS.
Por outro lado, os fatores estruturais que geram doença
e sofrimento brilham no altar da insanidade societária. Isto
fica evidente quando se olha para a vergonhosa situação do
saneamento básico, da contaminação do ar e da água, do
uso de pesticidas sem controle para o cultivo de alimentos,
dos acidentes de trânsito e de trabalho, dos homicídios que
se contam às dezenas de milhares por ano, da violência
cotidiana dos sistemas de transporte urbano de massa, do
abandono, do preconceito, da injustiça generalizada de uma
sociedade estruturalmente enferma.
A saúde precisa de uma verdadeira revolução que
recoloque o cidadão no centro da política e o paciente no
centro do cuidado.
O que pode ser aperfeiçoado?
A prioridade dos esforços da sociedade deve ser a
qualificação e o aprofundamento do SUS: universal,
democrático, financiado com recursos do orçamento fiscal,
gratuito e de qualidade.
Incompetência militar na saúde
Walter Cintra Ferreira Junior[22]
O “Projeto de Nação” põe fim ao mito de que os militares
teriam formação e competência para debater e ou conduzir
as grandes questões políticas e sociais da nação.
Neste capítulo comentarei o que diz o documento quanto
ao Sistema de Saneamento Básico Brasileiro e o Sistema
Único de Saúde no Brasil – SUS.
Sistema de Saneamento Básico brasileiro
Neste tema, o documento dos militares reproduz o
“Novo Marco Legal do Saneamento Básico” estabelecido
pela Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, que tem como
metas garantir o atendimento de 99% da população com
água potável e 90% da população com coleta e tratamento
de esgotos até 31 de dezembro de 2033. A diretriz central
proposta é exatamente a implantação deste Novo Marco
Legal do Saneamento Básico.
Entretanto, a lei tem sido questionada por apresentar
vários dispositivos considerados inconstitucionais, entre
eles a alteração nas competências da Agência Nacional de
Águas que foi renomeada como Agência Nacional de Águas
e Saneamento Básico, assumindo competências de
normalizar e regular os serviços de saneamento básico.
Ocorre que, segundo a Constituição Federal, estas são
competências do ente federativo municipal. A Constituição
permite aos municípios delegar as ações de fiscalização,
mas não as ações de regulação destes serviços. A União e
os Estados são os entes federativos que têm a titularidade
sobre os recursos hídricos, mas os municípios são os
titulares dos serviços de saneamento.
Além disso, a Lei nº 14.026 impõe uma série de
exigências para se obter financiamento federal para os
serviços de saneamento básico, de forma a obrigar que os
municípios se submetam à política de privatizações, seja
por meio de concessão destes serviços ao setor privado,
seja por parcerias público-privadas, ferindo assim, a
condição política dos municípios como entes federativos
autônomos.
O saneamento básico é definido legalmente e pela
Constituição como um serviço público que pode ser
prestado diretamente pelo ente responsável, no caso o
município, ou por meio de concessão ou permissão. Sendo o
saneamento básico um bem público de interesse coletivo,
ele é um monopólio natural do ente estatal que pode, de
maneira facultativa, lançar mão da colaboração do setor
privado. A Lei 14.026 procura inviabilizar a atuação estatal
direta, inclusive impedindo que um ente da federação
contrate com outro ente ou órgão da sua Administração
indireta por dispensa de licitação, conforme previsto no
artigo 24 da Lei 8.666/1993.
A implementação do Novo Marco Legal do Saneamento
defendido no “Projeto de Nação” viola a autonomia política
dos municípios e impõe de maneira coercitiva a privatização
dos serviços públicos de saneamento básico.
O Sistema Único de Saúde no Brasil
Neste tema, o documento é surpreendente, tanto pela
revelação de ignorância e desconhecimento da história,
princípios e funcionamento do SUS, como pelo cenário
imaginado em 2035, no qual a implantação de um sistema
de cobrança de indenizações contra os usuários do SUS,
com renda superior a três salários-mínimos, resultaria em
uma redução do percentual da população que recorre aos
planos privados de saúde por não conseguirem ser
atendidos pelo SUS! Por essa “lógica”, a cobrança de
copagamentos dos usuários promoveria melhores condições
de sustentabilidade ao sistema público de saúde, que
somadas às melhorias de condições de saneamento,
resultaria na melhora da saúde pública e redução da
população que recorre aos planos privados de saúde.
O SUS instituído na Constituição de 1988, fruto de um
movimento de reforma sanitária com forte participação
popular, é uma das principais políticas de Estado para o
enfrentamento e mitigação da desigualdade e das
iniquidades que recaem sobre a população brasileira.
A sua implantação no território nacional promoveu,
talvez, a maior reforma no aparelho de Estado da história do
Brasil. A constituição dos Fundos Estaduais e Municipais de
Saúde para gestão dos recursos financeiros; a exigência da
formalização dos Conselhos Municipais, Estaduais e
Nacional de Saúde, com participação da população; a
organização das redes de atendimento nos diversos níveis
de complexidade, com bases regionais; a implantação de
programas e políticas assistenciais de âmbito nacional; a
criação das agências reguladoras (Anvisa – Agência
Nacional de Vigilância Sanitária e a ANS – Agência Nacional
de Saúde Suplementar). Todo esse arcabouço produziu uma
grande melhoria nas condições de saúde da população, que
passou a ter o acesso à assistência à saúde como direito de
cidadania e promoveu a regulamentação e reorganização do
mercado privado de serviços de saúde de maneira a
proteger o usuário desses sistemas em sua condição de
consumidor.
O subfinanciamento do SUS
O SUS é o maior sistema de saúde público de acesso
universal do planeta. Muitos dos seus programas de
assistências são considerados modelos consagrados em
âmbito mundial: o programa da AIDS, as campanhas
vacinais, o programa de combate ao tabagismo, o programa
de transplantes, entre outros. Apesar de todos esses
avanços, o SUS sempre foi subfinanciado. Quer dizer, nunca
recebeu os recursos financeiros compatíveis com os
objetivos propostos na Constituição Federal e nas suas Leis
Orgânicas. Portanto, não há dúvida que o financiamento do
SUS é questão central a ser resolvida.
Para lidar com o financiamento da saúde no Brasil é
preciso entender como estão distribuídos os gastos no setor
e o funcionamento da remuneração dos prestadores de
serviços, bem como o comportamento dos usuários dos
sistemas de saúde no que diz respeito ao desembolso no
momento que utilizam esses serviços. Desconhecer estas
nuances pode levar a tolices como a proposta dos militares
de instituir copagamento aos usuários com renda superior a
três salários-mínimos. Copagamento é uma medida comum
no mercado de planos privados de saúde usada como fator
moderador do consumo de serviços pelos usuários com
objetivo de reduzir a sinistralidade de seus planos de saúde
ou gastos realizados com os prestadores de assistência à
saúde.
O problema do copagamento é que ele pode levar e
frequentemente leva a uma subutilização dos serviços, ou
seja, o usuário, principalmente de baixa renda, acaba por
não procurar o serviço de saúde mesmo estando doente
porque não tem dinheiro para pagar o copagamento,
agravando assim, a sua condição de saúde.
O copagamento não serve para financiar os serviços de
saúde, muito menos um sistema como o SUS. O recurso
pago pelo usuário no momento da utilização do SUS não
teria impacto significativo na sustentabilidade do sistema.
Ao contrário, uma subutilização dos serviços de saúde
acarretaria piora do quadro clínico dos pacientes que
acabariam necessitando uma atenção mais cara quando
finalmente buscassem a assistência com uma condição
agravada pela demora do início do tratamento.
O financiamento sustentável do sistema de saúde deve
ser feito pela contribuição das pessoas enquanto estão
sadias e economicamente ativas, preferencialmente pelo
pagamento de impostos progressivos conforme a renda do
contribuinte e não no momento em que se encontram
doentes e, com frequência, com seus rendimentos reduzidos
por não conseguirem trabalhar, ou já estarem aposentadas.
Os gastos de saúde no Brasil
Em 2019, os gastos com saúde no Brasil representaram
9,6% do Produto Interno Bruto – PIB. Este é um valor
elevado quando comparado com outros países do mundo:
Chile 9,3%; Colômbia 7,7%; México 5,4% e também está
acima da média dos países da OCDE (Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 8,8%.
Se esses números colocam o Brasil, aparentemente, em
patamar acima da média dos países membros da OCDE, a
coisa muda de figura quando observamos o gasto per capita
com saúde no Brasil comparado a estes países. O gasto
brasileiro per capita ano é da ordem de US$ 1.514, o dos
países da OCDE é de US$ 4.000.
Este quadro fica ainda pior quando lembramos que o
gasto per capita é uma média, ou seja, é o gasto total em
saúde no país dividido por sua população. Não significa,
portanto, uma distribuição equitativa dos recursos gastos
com a atenção à saúde.
Em 2019, apenas 41% de todo o gasto com saúde no
Brasil foi financiado publicamente, principalmente por meio
do SUS; 30% por planos privados (que atendem menos de
23% da população brasileira); 25% foram pagamentos
diretos realizados pelas famílias.
É preciso lembrar que os beneficiários de planos
privados de saúde não deixam de usar o SUS, pois tudo que
não é coberto pelo plano de saúde termina, ao fim e ao
cabo, sendo atendido pelo SUS.
O gasto público com saúde no Brasil representa apenas
3,9% do PIB, o que nos coloca em condição inferior a países
como Colômbia e Chile, 5,7% e 6% respectivamente. A
média dos países da OCDE é de 6,6% e acima de 9% em
países como França, Suécia, Alemanha e Japão.
Enquanto o gasto direto das famílias representa 25% do
gasto total com saúde no Brasil, na OCDE apenas 20% de
todo o gasto de saúde vem das famílias. A proposta dos
militares de cobrar indenização dos usuários do sistema
público apenas oneraria mais as famílias e produziria
resultados de piora das condições de saúde dos usuários e
maior sinistralidade para o sistema público, como explicado
anteriormente.
A adequação do financiamento do SUS passa pela
ampliação dos gastos públicos para garantir que o
orçamento da saúde pública seja compatível com as
necessidades da população e suportado por uma reforma
tributária de caráter progressivo, onde quem pode mais,
paga mais; quem pode menos, paga menos e quem não
pode nada, não paga nada.
A gestão do SUS
Quanto à gestão do SUS, o “Projeto de Nação”
estabelece a seguinte diretriz: “Aprimorar o modelo de
gestão dos recursos materiais e instalações do Sistema”.
O SUS se estendeu por todo o território nacional com
uma estratégia de municipalização da gestão do sistema e
integração nos níveis municipais, estaduais e federal, de
participação de usuários e trabalhadores representados nos
conselhos de saúde dos três níveis de governo.
A regionalização do sistema, a organização e integração
dos diversos serviços, nos diversos níveis de complexidade,
bem como a necessidade de estruturar sistemas de
regulação dos serviços eletivos e de urgência e emergência,
de sistemas de avaliação, controle dos diversos prestadores
de serviços, tudo isso, coloca um grande desafio em termos
de governança e gestão do sistema. É natural que, após 34
anos de sua implantação, a estrutura organizacional e de
gestão do SUS deva ser repensada e renovada para dar
conta de uma nova realidade sanitária e social do Brasil,
bem como, das novas tecnologias assistenciais de gestão.
Os princípios fundadores do SUS: acesso universal, atenção
integral e equidade continuam atuais e necessários.
O recente papel das Forças Armadas na Saúde
Pública
O “Projeto de Nação” cita outras diretrizes sem dar
nenhuma pista do que sejam efetivamente. Entretanto,
duas diretrizes chamam a atenção em especial: “Aprimorar
a capacitação de recursos humanos do Sistema nos
aspectos profissionais e de civismo e de cidadania” e
“Incrementar Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação na
área da Saúde, para maior efetividade do Sistema”.
Estas diretrizes contrastam fortemente com o recente e
vergonhoso desempenho dos quadros das Forças Armadas
que ocuparam cargos de direção no poder executivo, em
particular no Ministério da Saúde, durante o enfrentamento
da pandemia da Covid-19.
Destaca-se a triste e subserviente figura do general
Eduardo Pazuello, que passa para a posteridade como um
dos piores homens públicos da história do Brasil. Alinhado à
postura negacionista e genocida do presidente da
República, faltou ao general, civismo, cidadania e senso de
dever para proteger centenas de milhares de brasileiras e
brasileiros que tiveram suas vidas ceifadas pelo seu descaso
e por sua condução criminosa à frente do Ministério da
Saúde.
A pesquisa, desenvolvimento e inovação e a evidência
científica foram tratados como inimigos pelo general
Pazuello. Com apoio de seus auxiliares, muitos de farda,
esse militar falhou na aquisição das vacinas e na logística,
área em que se dizia especialista, e distribuição dos
insumos de combate à pandemia. O general preferiu
abraçar a defesa de tratamentos comprovadamente
ineficazes contra a Covid-19, desperdiçando recursos e
vidas nacionais como se descartáveis fossem. Assumiu o
Ministério da Saúde em 15 de maio de 2020 quando o
número de mortos pela pandemia era um pouco mais de
15,6 mil. Deixou o ministério, dez meses depois, quando o
Brasil contabilizava quase 280 mil mortos pela Covid-19.
Amazônia verde-oliva
Adriana Marques[23]
Gustavo Guerreiro[24]
Manuel Domingos Neto[25]
O debate acerca do retorno dos militares ao
protagonismo político ganhou força quando oficiais
passaram a interferir no processo eleitoral. O impeachment
de Dilma, a prisão de Lula, a eleição do atual presidente, a
presença de numerosos generais no Palácio do Planalto e as
permanentes ameaças de quebra da ordem institucional,
tornaram inevitável o estudo dos desígnios da caserna.
Neste sentido, o “Projeto de Nação”, objeto de atenção
nesta coletânea, revela elementos importantes. Diante da
falta de dados mais objetivos sobre como pensam os
militares na atualidade, as ideias expostas neste documento
permitem captar sensibilidades cristalizadas no imaginário
castrense.
Do conjunto de elementos expostos, destacam-se
proposições relativas à Amazônia e aos povos originários,
temáticas ordinariamente associadas à proteção do meio
ambiente e aos direitos humanos. Com o abrandamento da
guerra fria, o enfrentamento da “cobiça estrangeira” sobre
a floresta ganhou relevância, tornando-se a principal
justificativa para os investimentos públicos demandados
pelas corporações militares.
Nas noventa e três páginas do documento em análise, a
palavra Amazônia aparece 17 vezes. A maioria das menções
está nos trechos dedicados à Segurança e à Defesa. No
cenário imaginado para 2035, uma corrente política definida
como “conservadora evolucionista liberal” teria exercido o
poder e atenuado as “cisões” na comunidade nacional. A
matriz econômica do Brasil haveria mudado com a
expansão do agronegócio e sua integração à indústria. A
empresa agrícola teria se tornado sustentáculo da economia
e motor do desenvolvimento. Na perspectiva desenhada, a
Amazônia ocuparia papel fundamental em decorrência de
sua vastidão e de sua potencialidade para tais empresários.
Em que pese sua relevância, a temática indígena só aparece
de forma indireta, como um “óbice” à seguinte diretriz:
“Implantar o Zoneamento Econômico e Ecológico (ZEE) Regional
e remover as restrições da legislação indígena e ambiental, que
se conclua serem radicais, nas áreas atrativas do agronegócio e
da mineração”.
O indígena é mencionado implicitamente, quando o
documento utiliza a esdrúxula expressão “legislação
indígena”, pretendendo referir-se à legislação elaborada por
instituições do Estado e da sociedade não-indígena que
tenha os povos originários como objeto. Inobstante os
avanços registrados nas últimas décadas por uma
consistente política voltada para os indígenas e a obstinada
resistência das comunidades aos predadores da floresta, o
Estado brasileiro não reconhece uma “legislação indígena”.
Os redatores do documento afrontam sem medo
evidências científicas e análises acreditadas: o agronegócio
teria salvado a Amazônia ao recuperar áreas devastadas e
improdutivas e promover o desenvolvimento sustentável da
região; isso teria permitido ao Brasil uma mudança em sua
imagem internacional manchada por “críticas duvidosas” à
política de exploração dos recursos naturais em curso. No
futuro imaginado para a região, investimentos públicos e
privados na infraestrutura de transportes teriam
possibilitado uma significativa “integração” da área ao
restante do país.
Há menções à Amazônia relacionadas à necessidade de
saneamento básico, à segurança internacional e à
instalação da rede de fibra óptica. Entretanto, a incidência
maior ocorre quando o “Projeto de Nação” trata de
“Segurança e Defesa Nacional”: são doze menções
presentes nas páginas em que são listadas “incertezas
críticas” relativas à abrangência da “integração da
Amazônia” ao “núcleo de poder nacional” e às demais
regiões do país em 2035.
Essa “integração”, diz o documento, careceria de
aprofundamento. Seria importante alterar a legislação para
permitir a expansão do agronegócio e da mineração, assim
como promover o ecoturismo, a pesca desportiva e
recuperação de estradas capazes de permitir o
“desenvolvimento” da Amazônia. As dificuldades para a
implementação dessas diretrizes adviriam da falta de
consenso sobre as reais consequências da ocupação e
exploração da área, da falta de incentivo para investimentos
privados, da interferência estrangeira malsã e das
características negativas dos próprios amazônidas.
Não há menção às experiências históricas nefastas
promovidas por governos militares. A devastação da floresta
e as práticas genocidas não constituem problemas. A ideia
castrense sobre os povos indígenas pouco mudou nos 132
anos de regime republicano e nos 112 anos de política
indigenista do Estado brasileiro.
A proclamação da República, encabeçada por oficiais,
ensejou expectativas não cumpridas de construção da
comunidade nacional. Nenhuma iniciativa foi tomada para
atenuar os efeitos do regime escravista. Num país agrícola,
o acesso à terra persistia negado para a massa humana
distribuída no gigantesco território. Os indígenas persistiam
na posição de “brutos” ou “ingênuos” e a política
indigenista no início do século XX despontou intimamente
ligada à institucionalização de uma superestrutura jurídica
visando a “proteção” das populações originárias. As noções
de “proteger” e “pacificar” expressavam a vontade de gerir
o infindável conflito original entre o colonizador europeu
“civilizado” e os “bárbaros” que não cediam
voluntariamente espaço ao invasor. Na esteira de práticas
coloniais, o militar que proclamou a República firmou como
única perspectiva para o índio a assimilação da cultura do
colonizador.
A política indigenista republicana teve como expoente o
marechal Rondon, discípulo de Benjamin Constant. O
Marechal revelou preocupação humanista chegando,
inclusive, a rever sua concepção assimilacionista antes de
morrer, mas não se opôs objetivamente à contínua
ocupação de terras para a expansão da fronteira agrícola e
extrativista. A concepção verde-oliva de “integração
nacional” jamais contemplaria o respeito à sobrevivência de
povos originários. Suas terras deveriam estar disponíveis à
exploração capitalista.
O indigenismo oficializado na Primeira República acatou
todos os tipos de violência contra as comunidades
originárias na medida em que se escorava no ideal
totalizante de sociedade, inerente à construção das
nacionalidades. O menosprezo ao indígena como ser
humano se estendia às camadas populares, em particular
aos interioranos racialmente “degenerados” e “arredios à
civilização”, conforme Euclides da Cunha. A proposta de
branqueamento do povo brasileiro, que fundamentou a
atração de europeus desde o século XIX, tinha os mesmos
fundamentos de supremacia étnica que respaldam o
“Projeto de Nação” em análise neste livro.
A percepção castrense em relação aos indígenas foi
superada há muito pelo ordenamento jurídico nacional e
pela legislação internacional sobre direitos humanos,
formalmente acatada pelo Estado brasileiro. Além de
contrapor-se à legalidade, as proposições dos militares
agridem teorias sociais desenvolvidas em torno da temática
indígena. Não há respaldo científico para uma “integração
da Amazônia ao Brasil” baseada na expansão de atividades
econômicas lastreadas em elementos etnocêntricos. A
exploração econômica da biodiversidade é inconcebível sem
a presença do indígena e sem a adoção de práticas
baseadas no saber popular desenvolvido pelos povos da
floresta.
O crescente ativismo dos movimentos indígenas e de
outros atores não-governamentais é plenamente respaldado
pela Constituição de 1988, que afirmou de modo objetivo e
preciso o que seria, de fato, uma política para os indígenas:
aquela em que estes sejam sujeitos e protagonistas. O
“Projeto de Nação” constitui discurso autoritário e
subversivo na medida em que não admite que os próprios
indígenas, por meio de suas organizações, sejam os
principais atores no que diz respeito à construção das
iniciativas estatais que tratem de seus interesses.
O mais expressivo exemplo da influência do movimento
indígena sobre a política estatal se dá com a luta pela terra,
principal eixo mobilizador das comunidades. Trata-se de um
embate direto com o agronegócio ao qual o “Projeto de
Nação” atribui a responsabilidade de escorar o
desenvolvimento econômico. Tal atividade demanda
grandes extensões de terras desimpedidas e de baixo preço.
A questão fundiária, a demarcação e preservação dos
territórios impulsionaram a unidade do movimento indígena
em torno de uma pauta comum contra o Estado tutelador. A
luta pela demarcação tornou possível iniciativas como a
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental nas Terras
Indígenas (PNGATI). O Estado brasileiro foi conduzido à
preservação física e cultural dos indígenas a partir do
diálogo intercultural.
Quando o “Projeto de Nação” investe contra a legislação
existente, revela a mentalidade colonial de seus autores,
que agridem evidências irrefutáveis. As terras indígenas são
melhor preservadas do que as unidades de conservação não
sobrepostas a estes territórios. O Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (IPAM), com o suporte do sistema
MapBiomas, revelou que, entre os anos de 1985 e 2020,
apenas 1,6% das áreas desmatadas no Brasil estavam em
terras indígenas. Isso se deve à congruência entre a
legislação constitucional e as tradições das comunidades
originárias, que veem a floresta como um ambiente
imprescindível à própria reprodução segundo seus usos e
costumes.
O documento lançado pelos militares, ao insistir na
“remoção das restrições indígenas” para “desenvolver” a
Amazônia, expressa a índole sanguinária herdada do
colonizador e endossa as práticas genocidas em curso. O
“Projeto de Nação” pretende a transformação do índio em
camponês pauperizado ou indigente na periferia das
cidades, abrindo espaço para a exploração predatória de
seus territórios.
Darcy Ribeiro dizia que a chamada “integração” do índio
à civilização fatalmente lhe colocaria na condição de
cidadão de segunda e terceira classe, ocupando os espaços
mais precários nas periferias urbanas. Em “Os índios e a
civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno”, Darcy assinalou: “o caráter capitalista do sistema
econômico vigente e a ordenação sócio-política a ele
correspondente, lança a sociedade nacional contra as etnias
tribais”. No tempo presente, valeria assinalar: a “sociedade
nacional” avançou no que diz respeito ao índio. O quartel é
que não acompanhou a tendência da sociedade.
A rigor, nada do que foi relatado no documento é
novidade. Tanto as “vulnerabilidades” visualizadas na região
quanto as soluções propostas para reverter essa situação
estão presentes nas formulações geopolíticas produzidas
por oficiais do Exército ao longo do século XX, recuperadas
e atualizadas nos últimos anos. O espírito dos “Grandes
Projetos” da década de 1970, quando o terrorismo de
Estado chegou ao ápice, é reavivado na ênfase dada ao
papel da mineração e da recuperação de rodovias, como a
BR-319.
A “cobiça internacional” sobre a Amazônia permanece
como um importante elemento simbólico mobilizável nos
momentos em que as atividades predatórias na região são
objeto de crítica da comunidade internacional.
Ainda que nenhuma afirmação sobre a Amazônia contida
no “Projeto de Nação” represente novidade e o ideário
presente no documento preserve o espírito do colonizador e
reavive o autoritarismo dos governos militares, causa
espanto a falta de respeito de seus autores aos preceitos
constitucionais e o distanciamento em relação ao conjunto
de políticas públicas voltadas à defesa do meio ambiente
implementadas ao longo de décadas por diferentes
tendências políticas que assumiram a condução do Estado
brasileiro.
Cabe ter em conta que as proposições do “Projeto de
Nação” estão em curso sob o atual governo, amparado pelo
agronegócio e por mineradoras. Isso se reflete no desmonte
dos serviços públicos fundamentais, como os prestados por
órgãos voltados para a pesquisa científica, para a defesa do
meio ambiente e para a execução da orientação estatal
relativas aos indígenas.
Desde o início, o atual governo tentou eliminar a
credibilidade do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) e desfazer a importância da pesquisa científica
desenvolvida nas universidades públicas. O tratamento
dado à Funai revelou exemplarmente o teor deletério das
proposições castrenses. Apenas duas das 39 coordenações
regionais desta instituição estão hoje sob a chefia de
quadros técnicos e de carreira. As demais são coordenadas
por integrantes das Forças Armadas, policiais militares,
policiais federais e profissionais que nunca tiveram vínculo
com o indigenismo, com a administração pública e com a
defesa da Amazônia. O presidente da Funai, Marcelo Xavier,
um policial federal, trocou todos os ocupantes dos cargos de
chefia no órgão, nomeando militares e policiais.
A Funai passou a executar uma política de perseguição
aos servidores e aos indígenas. As entidades
representativas dos povos originários sofreram com
reiteradas denúncias persecutórias. As novas autoridades
solicitaram intensivamente a instauração de inquéritos
criminais, inclusive em face de pareceres técnicos de seus
próprios quadros, quando estes contrariaram interesses do
agronegócio ou da mineração. A morte do jornalista
britânico Dom Phillips e do servidor da Funai, Bruno Pereira,
afastado do cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados
e Recém Contatados pelo seu trabalho exemplar, é
resultado da carta branca outorgada pelo governo federal
para todo tipo de ocupação ou atividade irregular nos
territórios indígenas.
Do amontoado de afirmações descabidas e desconexas
sobre a Amazônia presentes no “Projeto de Nação”, as mais
estonteantes são as depreciações dos amazônidas. Os
gestores públicos municipais são tidos como despreparados;
os acadêmicos são ignorados; os povos indígenas teriam
que ser retirados da situação de isolamento para viver não
de acordo com as suas próprias tradições, mas em
conformidade com o ideário e a vontade do Exército
Brasileiro. Entre o povo de carne e osso que habita a região
e os militares que se enxergam como tutores do Estado e da
sociedade há um abismo cavado pela arrogância
corporativa.
O patriotismo castrense precisa se entender com as
demandas multifacetárias da sociedade brasileira, entre as
quais se situam a dos amazônidas. O sentimento de
autonomia e unidade é uma condição necessária para a
existência da nação. Essa unidade não pode ser obtida com
a domesticação de grupos étnicos sobreviventes e da tutela
dos amazônidas que, objetivamente, asseguraram e
asseguram à Amazônia a condição de território nacional.
Se a nação resulta de um processo totalizante, conforme
Katherine Verdery, hoje, o dramático choque civilizacional
entre os povos indígenas e a porção dominante da
sociedade brasileira fere a sensibilidade coletiva não apenas
no âmbito nacional. O que está em causa são valores
fundantes da sociedade moderna, com destaque para o
reconhecimento dos direitos humanos.
Finalmente, não há sentido formular “Projeto de Nação”
à margem das condições impostas para a sobrevivência da
espécie humana. São cada vez mais fortes os alertas dos
pesquisadores quanto à precarização das condições
planetárias. O mundo visto pela janela do quartel insiste em
tratar os defensores do meio ambiente como inimigos de
olho nos recursos naturais do Brasil. Sem dúvida, a
ganância movimenta cordões que alcançam os
ambientalistas. Todavia, isso não autoriza os projetistas do
futuro a desdenhar dos cuidados com a terra mãe. Neste
sentido, a proposta em estudo, ao tratar da Amazônia, é
tenebrosa.
Integração da
Amazônia ao Brasil
Ennio Candotti[26]
1. A construção incompleta da nação
A Amazônia não admite um único ponto de vista para
tentar entender sua realidade. São múltiplas também as
posições de onde se observa e descreve a realidade. Pouco
entenderá o observador que olhar a Amazônia de longe, de
uma só posição, de fora dela. Faltará o cimento que permite
somar as observações e razões de outros pontos de vista.
Observando a Amazônia de perto, percebemos que a
construção do país até agora não a incluiu na nação. Não
encontramos nela – e particularmente no seu interior – a
presença das instituições do Estado que defendam direitos
humanos fundamentais e zelem pela obediência às
determinações constitucionais.
A Constituição de 1988, por exemplo, como observou a
jurista Debora Duprat, “passa a falar não só em direitos
coletivos, mas também em espaços de pertencimento, em
territórios, com configuração em tudo distinta da
propriedade privada, essa de natureza individual com viés
de apropriação econômica. Aquelas como locus étnico e
cultural”.
A ausência e omissão no interior dos 4 milhões de km² é
causa de violência. Falta um sistema de saúde (como foi
verificado durante a pandemia de Covid), a educação é
precária, não há planejamento na construção dos núcleos
urbanos. Nas margens dos rios, eles são inundados todos os
anos com graves danos para o povo. O nível das águas dos
rios se eleva 20 metros, periodicamente (há milênios!).
Os recentes assassinatos de Bruno Pereira e Dom
Phillips, no Vale do Javari, revelam o alcance da ausência do
Estado na região e o peso das omissões de altos
funcionários, no caso o presidente da Funai, que, ao
silenciar frente a repetidas violações de direitos humanos e
direitos indígenas sobre suas terras, induzem novas
violações com trágico fim.
Além da complexidade das relações sociais nos núcleos
urbanos, nas comunidades ribeirinhas e nas terras
indígenas no interior, que pouco entendemos, ainda não
compreendemos as reais dimensões da pré-história dos
povos indígenas que a arqueologia nos revela. Mal
deciframos a história geológica em eras remotas e as
marcas da evolução das espécies e dos ambientes que
encontramos na Amazônia.
Explorarei alguns exemplos para justificar a mencionada
“incompleta construção da nação”.
2. O Cráton Amazônia
O fragmento de crosta terrestre sobre o qual repousa a
floresta, o Cráton Amazônia e o Cráton São Francisco, se
move lentamente na superfície da Terra há mais de 2,5
bilhões de anos. Separou-se da África há apenas 150
milhões de anos, dando origem ao Oceano Atlântico. Os
Andes surgiram há 60 milhões de anos e a floresta, com
suas características úmidas atuais, há 5 ou 6 milhões de
anos.
A formação geológica da Amazônia foi determinante
para a formação de paisagens, hidrografia, climas e para a
evolução das espécies no Brasil e nos oito países que
ocupam o Cráton Amazônia. Com eles compartilhamos os
ecossistemas e a história natural.
Hoje, a Amazônia é um imenso laboratório para
pesquisas fundamentais que procuram saber como
preservar a vida no planeta e a sobrevivência da espécie
humana. O estudo das florestas e rios pode revelar os
segredos da evolução das espécies e a formação das
províncias minerais. Precisamos, por exemplo, conhecer as
dimensões dos extensos aquíferos do subsolo, a origem dos
climas, rios e florestas.
3. As sementes ‘recalcitrantes’
Um outro exemplo. Descobriu-se há poucos anos, em
pesquisas realizadas com colaboração internacional, no
laboratório de Isolde Ferraz, no INPA (Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia), que a maior parte das grandes
árvores da floresta tropical como a Castanheira (Bertholletia
excelsa) e a Seringueira (Hevea brasiliensis) têm sementes
denominadas “recalcitrantes”. Isto significa que elas não
podem ser transportadas para locais distantes de onde são
naturalmente depositadas, nem resfriadas para
conservação, como as ‘ortodoxas’, mais comuns em climas
temperados ou frios. Para serem plantadas devem antes
germinar, gerar plântulas que, estas sim, podem ser
transportadas para replantio. A diferença entre “ortodoxas”
e “recalcitrantes” é pouco conhecida e tem grande valor
científico, evolutivo e econômico, particularmente quando
se tenta reflorestar grandes áreas na Amazônia.
Este é um exemplo que indica a necessidade, científica e
econômica, de multiplicar os institutos de pesquisa em
botânica e o quadro de pesquisadores hoje reduzido há
poucas dezenas. Conhecemos menos de 30% da flora
amazônica!
4. A Bergenina
Um terceiro exemplo que revela os meandros da história
de dois e meio bilhões de anos do Cráton, é a molécula da
Bergenina, de onde se extrai a Endopleura Uchi, o Uxi
amarelo. Segundo o catálogo de um dos seus produtores
(Merck-Sigma Aldrich) é vendida a R$ 1.000 a miligrama
(3.000 vezes o valor do ouro!).
Como a Endopleura Uchi produz a Bergenina e por que
ela tem efeitos medicinais nos humanos é um segredo a ser
revelado, que exige muita pesquisa e colaboração científica,
semelhante à pesquisa básica que permitiu decifrar
segredos do átomo no Laboratório internacional do CERN,
em Genebra (do qual participam 27 países). Neste, foram
investidos 10 bilhões de dólares a “fundo perdido”, para
construir um acelerador de partículas, utilizado em
pesquisas sem retorno imediato ou aplicações visíveis. Na
Amazônia não é preciso construir uma grande “máquina”:
ela já está instalada.
A pesquisa com moléculas valiosas extraídas de
produtos naturais tem longa história entre nós. As sementes
desta escola foram plantadas pelo professor Otto Gottlieb
nos anos 1970 e 1980. O mote da escola foi dado pelo
professor Robert Robinson (Prêmio Nobel, em 1947): “uma
planta pode conter 50 substâncias diferentes. A descoberta
de uma só delas pode ser mais importante para a
humanidade que a descoberta de uma nova galáxia” (sugiro
a leitura do artigo “Amazônia tesouro químico”, publicado
por Gottlieb em Ciência Hoje, em janeiro de 1990.
5. Os ribeirinhos
Para encontrar Uxis e cuidar in situ das plantas
recalcitrantes é preciso encontrar cidadãos especializados
em reconhecê-las na floresta, abrir trilhas, entrar e sair
dela. Estas habilidades, como vimos, valem muito mais do
que ouro.
Para contar com a colaboração destes “pesquisadores” é
preciso dar-lhes cidadania plena, cuidados de saúde,
educação, energia, água potável, transporte e adequada
remuneração. Sobretudo, os auxiliar na reconstrução da sua
história: da ocupação e memória do território em que
vivem. Fomentar a criação pelas comunidades indígenas e
ribeirinhas de museus vivos da floresta.
São eles, os povos da floresta, os caboclos e ribeirinhos
que habitam o interior da Amazônia e hoje são
considerados, pelos planejadores do crescimento
econômico, parte do problema social amazônico. Não são
vistos como solução, colaboradores nos cuidados, coleta e
classificação de amostras das plantas da floresta, como
valiosos guias no entrar e sair da mata.
De um ponto de vista estratégico para o estudo e
proteção do patrimônio da nação, os ribeirinhos dos rios e
lagos da Amazônia são semelhantes aos ribeirinhos do
Vietnã, que foram decisivos no apoio aos guerreiros
vietnamitas para derrotar e humilhar o exército americano.
Eles sabiam entrar e sair das florestas; percorrer os
meandros do Mecong.
6. Os liberais ‘Cabanos’
Durante as negociações que precederam a criação da
Zona Franca/Suframa, em Manaus, ocorreu uma insurreição
que revela estar incompleta a construção da nação.
Samuel Benchimol, intelectual ilustre e empresário
‘liberal conservador’, escreveu de Manaus, livros
importantes para entender a Amazônia. Ele registra um
movimento que ocorreu no navio onde estavam reunidos
políticos e empresários influentes para discutir a criação da
Suframa. Escreve em “Amazônia um pouco antes e além
depois” ( p.701):
“Não importa quem decide mas onde se decide, este era o mote
da revolta de 1966 no Navio Rosa da Fonseca. Tramava-se uma
vez mais para excluir Manaus do centro de decisão da política
amazônica.”

Benchimol não hesitou em chamar “novos cabanos” os


companheiros da insurreição que ocorreu no navio.
A Suframa foi instalada em Manaus mas “onde se
decide”, ainda hoje, é incerto.
A questão da marginalização da Amazônia das instâncias
políticas decisórias é significativa e teve nefastas
consequências para o desenvolvimento da região.
Prevaleceram nela forças políticas conservadoras, avessas
às mudanças que o conhecimento recomenda.
Particularmente em uma região singular por sua história
geológica, ecossistemas únicos na Terra e diversidade
cultural milenar.
O desenvolvimento da ciência e tecnologia na Amazônia
foi literalmente ‘contida’ pelas elites conservadoras e pouco
liberais, para evitar “mudanças recomendáveis”.
A Zona Franca recolheu, nos últimos 30 anos, mais de
R$15 bilhões em incentivos fiscais destinados a programas
de pesquisa e desenvolvimento. O Tribunal de Contas
observou que estes incentivos não proporcionaram o
desenvolvimento científico e tecnológico previsto nas leis
que os criaram, em 1991. A Zona Franca gerou crescimento
econômico, mas não promoveu o desenvolvimento social e
econômico desejável, distinção muito bem caracterizada por
Celso Furtado.
6. O desenvolvimento científico e tecnológico
Os exemplos mencionados indicam que a história natural
e humana da região deve ser melhor estudada para
subsidiar decisões políticas, investimentos e prioridades.
Revelam também que, por sua paleo-história e diversidade
cultural e ambiental, a região não pode ser tratada com as
mesmas políticas sociais, ambientais, minerais, de ciência e
tecnologia pensadas para biomas, culturas ou perfis
geológicos diferentes do amazônico. Elas necessariamente
devem ser definidas in situ, nos locais onde devem ser
aplicadas, de modo que o “como fazer” repare quando
necessário as diretrizes do “o que fazer” e sobretudo com
capacidade de avaliar a efetiva execução dos projetos
financiados ou as dificuldades encontradas para realizá-los.
Seria oportuno, portanto, que sejam executados e
avaliados por institutos com sede na Amazônia. Cabe, por
exemplo, perguntar por que o Fundo Amazônia não é
operado diretamente da Amazônia.
Além de criar novos institutos especializados em
questões estratégicas como, por exemplo, a água ou a
biologia dos ecossistemas doce-salgados da foz do
Amazonas, há instituições na região que podem ser
fortalecidas e ter seus quadros multiplicados para que os
desafios de ciência e tecnologia locais possam ser tratados.
O Inpa, o Museu Goeldi, a Embrapa, a Fiocruz, o Instituto
de Medicina Tropical, o Instituto Evandro Chagas, o Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e as
Universidades Federais e Estaduais carecem de quadros em
número e especialização à altura das missões que lhe são
confiadas: sejam elas em fungos, microrganismos, toxinas,
plantas, climas, arqueologia, paleontologia, engenharia de
portos, dinâmica de fluidos, geologia, antropologia,
linguística (150 línguas a decifrar!), história, geografia.
Deve-se também examinar a possibilidade de
incrementar muito a cooperação internacional em questões
de pesquisa básica em ciências humanas e naturais,
formadora e multiplicadora de quadros, como em
engenharia e saúde e promover o intercâmbio de
estudantes principalmente com os países vizinhos.
Deveríamos promover o intercâmbio de um grande
número de estudantes brasileiros nos países da Amazônia e
de estudantes dos países amazônicos nas universidades
brasileiras, principalmente da região. Plantar hoje de modo
a colher dentro de dez anos os primeiros frutos da
cooperação científica e tecnológica amazônica.
Não propomos construir os muros de um novo instituto
internacional na Amazônia, como o CERN de Genebra, mas
de preservar o espírito de cooperação científica que
possibilitou decifrar os segredos do átomo e cimentar a
cooperação científica internacional em pesquisas
fundamentais. As aplicadas serão um subproduto – ou um
spin-off – a ser administrado com soberania.
Observamos que não apenas a construção da nação
ainda não alcançou a Amazônia, mas que os alvos
estratégicos de defesa e do exercício da soberania – e seus
instrumentos operacionais – devem ser repensados, uma
vez que dificilmente se defenderá com ferro e tanto menos
com fogo o patrimônio social, cultural, geológico,
paleontológico e genético amazônico.
Os microscópios e as lentes deveriam ser melhor
explorados pelas forças de defesa e fomento para corrigir a
persistente miopia. A história, severa, julgará a cegueira.
Amazônia: não há nem
integração, nem desenvolvimento
Eron Bezerra[27]
A Amazônia Legal, instituída pela lei 1.806/1953,
engloba os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato
Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do
Maranhão, com uma superfície de 5.217.423 km² (61% do
Brasil), onde residem algo como 12,32% da população
brasileira (26.488.000, em 2022). Abriga em torno de 56%
da população indígena do país, distribuídos em 150 etnias,
inclusive cerca de 19 povos “isolados”. Possui uma
extraordinária e complexa biodiversidade, algo como 20%
da água doce do planeta, e a maior floresta tropical, que
funciona como sumidouro de dióxido de carbono (CO2).
Ao longo das quase 100 páginas do “Projeto de Nação”
não há qualquer referência à questão ambiental,
especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento
sustentável, paradigma essencial para qualquer projeto de
desenvolvimento estratégico, o que evidencia por si os
limites teóricos e ideológicos da proposta.
Essa omissão não é fortuita. Corresponde à concepção
predatória que tem orientado as políticas oficiais de
ocupação da Amazônia – notadamente sob a ótica militar –,
no geral vista como um grande espaço vazio, sem povo e
sem cultura, mero estoque de recursos naturais, cujo
desenvolvimento só será possível com a intervenção
externa. A base teórica desta prática predatória se assenta
em concepções formuladas por pensadores reacionários
como Malthus, Hobbes, Agassiz, dentre outros, mesmo que
os operadores militares nunca tenham lido tais literaturas.
O desprezo pelo povo vem de Thomas Malthus (1766-
1834), expresso em “parece que é uma das leis inevitáveis
que alguns seres humanos sofram pela miséria. Estas são as
pessoas que, na loteria da vida, fracassaram”. E ainda a
defesa da diminuição da população de pobres por controle
da natalidade, guerras e epidemias.
Assim como o viés autoritário é sustentado por Thomas
Hobbes (Leviatã, 1651), para quem a única hipótese de a
humanidade viver em sociedade, sem se autodestruir, seria
sob o domínio de um imperador com poderes absolutos.
E as manifestações de colonialismo encontram guarida
em Louis Agassiz (Viagem ao Brasil 1865–1866) para quem
a Amazônia era um enorme espaço vazio que só se
desenvolveria quando para cá acorressem levas de
europeus e americanos, o que ele verbaliza com uma
interrogação: “não devia a emigração afluir em ondas para
essa região tão favorecida pela natureza e tão vazia de
homens?”.
A Transamazônica, não por acaso, foi anunciada pelos
militares como a rodovia concebida para “levar homens
sem-terra a uma terra sem homens”. Não é surpresa,
portanto, que o chamado “Projeto de Nação” expresse, a um
só tempo, concepções de desprezo pelo povo, autoritarismo
e pensamento colonial.
A ocupação da Amazônia e, por consequência, o uso de
seus recursos naturais sempre foi realizada de forma
predatória. É uma combinação de desprezo pela ciência e
de apologia a concepções políticas ambientais predatórias.
Para uma melhor compreensão dessa polêmica,
classifico as principais correntes que polemizam essa
questão como “produtivistas”, “santuaristas” e
“sustentabilistas”.
Para os “produtivistas”, os recursos naturais são infinitos
ou, no extremo, poderão ser substituídos por recursos
similares ou sintéticos. Sob o argumento de que o “homo” é
tudo e o ambiente é nada, acabam criando uma falsa
dicotomia produção versus conservação, sem compreender
que esses fenômenos são indissociáveis. São também
conhecidos como cornocupianos, em alusão aos cornos da
cabra mitológica que liberavam alimento em profusão.
Consideram toda e qualquer regra de conservação ou
preservação como uma tática de bloqueio e, não raro,
debitam a sua ineficiência produtiva ao “excesso de regra
ambiental”.
Por sua vez, os “santuaristas” absolutizam a natureza
em detrimento do “homo”. Argumentam que os recursos
naturais estão no limite e não suportam mais qualquer novo
uso potencial. Tentam recuperar a teoria de Malthus, razão
pela qual também são conhecidos como neomalthusianos.
São tão metafísicos e anticientíficos quanto os produtivistas.
Embora sustentem uma retórica distinta, a consequência
prática de suas ações é a dicotomia entre produção e
preservação.
Para os “sustentabilistas” é perfeitamente possível
conciliar produção, conservação e mesmo preservação, na
medida em que “homo” e natureza integram o mesmo
ambiente. Partem da premissa de que os recursos são
finitos e que não há ação antrópica ou natural que não
provoque impacto. Isso é da essência da natureza e da
sociedade, uma vez que tudo está interligado,
interconectado e interdependente, bem como em constante
movimento, transformação e evolução. Asseveram,
portanto, que o desafio posto é como reduzir esse impacto e
conciliar a ação produtiva com o interesse popular, tendo
presente a necessidade de elevar o padrão material e
espiritual da humanidade e, ao mesmo tempo, alongar o
uso dos recursos naturais.
A forma de se relacionar com a natureza, segundo as
correntes anunciadas, bem como a aceitação ou a negação
daqueles valores é, em última análise, o que orienta e
determina a relação com o meio ambiente. Como os fatos
demonstram e a história registra, somente a
sustentabilidade permite pensar no equilíbro entre “homo” e
natureza.
E somente é possível falar em desenvolvimento
sustentável para a Amazônia se tivermos presentes, pelo
menos, quatro vetores básicos: Sociocultural, Ciência &
Tecnologia, Infraestrutura e Desenvolvimento Sustentado.
Sociocultural. A compreensão básica de que a
Amazônia é um mosaico composto por cerca de 170 povos,
alguns ainda “isolados”, em diferentes estágios de
organização social, que falam em torno de 150 línguas e
habitam diferentes espaços territoriais é o ponto de partida
para toda e qualquer política que pretenda desenvolver na
Amazônia, salvo se visar destruir e eliminar as populações
nativas/tradicionais e não as integrar de forma soberana.
Uma política que respeite a cultura desses povos, assegure
seu espaço territorial e a necessária rede de serviços
públicos (educação, saúde, segurança, etc), em
conformidade com seus costumes, é pressuposto dessa
política.
Ciência e Tecnologia. Pode parecer mera retórica
acadêmica a afirmação de que na biodiversidade amazônica
pode estar a solução não apenas para a cura de vários
males da humanidade mas também para incrementar o
desenvolvimento econômico e elevar o padrão
socioeconômico da população endógena e nacional. Não é
retórica, é fato. Mas, apesar de importantes avanços tanto
na formação de recursos humanos, infraestrutura
acadêmica e publicações científicas, ainda estamos muito
longe de alcançar um patamar minimamente necessário, o
que é facilmente explicado pela extraordinária
complexidade da Amazônia sob todos os aspectos. Assim,
ampliar a formação acadêmica, especialmente de mestres e
doutores, expandir a infraestrutura destinada ao ensino, a
pesquisa e a extensão são metas essenciais e inadiáveis.
Infraestrutura. Comunicação, transporte, logística,
energia limpa e acessível são itens essenciais no vetor da
infraestrutura. Um espaço geopolítico com 5.217.423 de
km² (lei 1.806/1953), equivalente a 61% do território
nacional, não pode prescindir desses pressupostos como
premissa básica de política de desenvolvimento.
•Comunicação. Boa parte das sedes dos nossos
municípios (nem falo das comunidades) tem internet
precária ou inexistente, o que limita a integração e o
desenvolvimento da região, em todos os sentidos.
• Transporte. As longas distâncias precisam
ser vencidas com uma sólida rede de transportes, de
todas as modalidades, mas especialmente de
ferrovias e hidrovias. A Amazônia tem o privilégio de
contar com uma extraordinária malha hidrográfica,
que pode perfeitamente ser convertida em hidrovias
para assegurar, a um só tempo, o intercâmbio entre
as pessoas e o transporte de produtos e
mercadorias, exatamente o modal mais eficiente e
econômico. Por outro lado, sua geografia favorece a
construção de ferrovias – o segundo modal mais
econômico no transporte de cargas – que igualmente
pode assegurar o transporte e reduzir os custos de
logística.
• Logística. É preciso, de igual forma, uma
rede de portos e aeroportos, bem como de uma
logística de armazéns e rotas regulares entre os
portos nacionais e internacionais, tanto para a
efetiva integração como para reduzir custos no
deslocamento de pessoas e mercadorias.
• Energia Limpa. Embora na Amazônia
estejam construídas, ou projetadas, grandes
hidrelétricas – Belo Monte, São Luiz do Tapajós e
Tucuruí (Pará), Jirau e Santo Antônio (Rondônia) –, no
geral destinadas às demandas de outras regiões do
país, o tema sempre foi e continuará sendo
controverso devido ao impacto ambiental e em
decorrência da topografia predominantemente plana
da bacia amazônica. O caso mais emblemático é o
de Balbina, uma pequena hidrelétrica com 250 MW
de potência instalada que inundou 236 mil hectares,
ou seja, cada MW de potência instalada inundou 944
hectares. Uma área dessas, coberta com painéis
solares de 550 W, teria uma potência instalada de
649.000 MW, equivalente à potência instalada de
2.596 hidrelétricas de Balbina, ou 46 Itaipu (14.000
MW), 58 Belo Monte (11.233 MW), 76 Tucuruí (8.535
MW), 173 Jirau (3.750 MW) e 182 Santo Antônio
(3.568 MW), que estão entre as maiores hidrelétricas
brasileiras.
Desenvolvimento Sustentado. Uso racional dos
recursos naturais deve partir da compreensão de que o
bioma amazônico tem diversos ecossistemas (várzeas,
florestas, igapós, campos naturais, etc), que exigem
tratamento diferenciado. Ademais, é preciso desmitificar
falácias que sugerem limites produtivos da região
condicionados pelo excesso de áreas “bloqueadas” em
unidades de conservação ambiental e ou de terras
indígenas. Algo como 1% da área da Amazônia é suficiente
para assegurar alimento para toda a sua população. Se há
fome é pela concentração de renda na mão de poucos (o
que priva a maioria de ter pelo menos o básico para
sobreviver) e não pela escassez de áreas para produzir
alimentos de forma sustentável.
Mas tudo isso depende de maior protagonismo do
Estado, de um poder público que tenha compromisso com
as demandas populares e seja capaz de produzir um
conjunto de ações que efetivamente integre e reduza as
profundas assimetrias que ainda existem nesta região.
Lógica, aliás, sustentada até mesmo por economistas
liberais como Nicholas Gregory Mankiw, para quem às vezes
o poder público precisa fazer a sua parte. Ou seja, um poder
público que seja capaz de liderar um conjunto de políticas
públicas que levem ao desenvolvimento econômico
sustentável. Desnecessário lembrar que a lógica do atual
governo e a do “Projeto de Nação” caminha no sentido
inverso.
É preciso, portanto, adensar a cadeia produtiva nativa,
verticalizar e agregar valor à matéria prima regional e às
suas potencialidades econômicas naturais, como turismo,
madeira manejada, móveis de todos os padrões, gerar
riquezas com produtos não madeireiros, uso adequado dos
ecossistemas, estimular a piscicultura, agroindústrias,
indústrias de transformação e assegurar ampla rede de
assistência técnica. Tudo isso tem sido ignorado na ação do
Estado na Amazônia e também está ausente do “Projeto de
Nação”.
Projeto de futuro triste
Cristina Serra[28]
No intervalo de pouco mais de três anos, entre
novembro de 2015 e janeiro de 2019, o Brasil registrou dois
dos maiores desastres em barragens de mineração do
mundo, ambos em Minas Gerais, com quase 300 mortos na
soma das duas tragédias.
O colapso da barragem de Fundão, da mineradora
Samarco, na área rural de Mariana, em 5 de novembro de
2015, matou 19 pessoas, devastou três povoados e
derramou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de lama
de rejeitos de minério de ferro no rio Doce, principal
formador da maior bacia hidrográfica inteiramente na região
Sudeste. A lama tóxica percorreu 660 quilômetros entre o
local da barragem e a foz do Doce, no oceano Atlântico,
litoral do Espírito Santo, com perdas sociais e econômicas
em 38 municípios.
O derramamento de lama do reservatório de Fundão é
considerado o maior desastre socioambiental do Brasil e
também o maior do mundo no setor de barragens de
mineração, levando-se em conta os critérios definidos pela
consultoria Bowker Associates, dos Estados Unidos,
especializada em gestão de riscos em construção pesada.
São três critérios: o volume de rejeito despejado no meio
ambiente, a extensão percorrida pela lama e o custo de
recuperação das perdas (estimado inicialmente em US$ 5,2
bilhões, mas até hoje sem um cálculo preciso).
Em 25 de janeiro de 2019, a barragem da mina Córrego
do Feijão, pertencente à Vale, em Brumadinho, também
entrou em colapso, provocando uma das maiores tragédias
humanitárias do Brasil. A onda de lama despejada da
barragem matou 270 pessoas e lançou quase 12 milhões de
metros cúbicos de resíduos de mineração no meio
ambiente.
A lama alcançou o rio Paraopeba e se espalhou ao longo
de dez quilômetros. Estudos mostram que o rio (tal como no
caso de Mariana) foi contaminado com metais pesados, em
níveis muito superiores aos limites permitidos pela
legislação. Monitoramento da saúde de moradores da bacia,
feito pela Fundação Oswaldo Cruz, confirma o impacto
negativo para os seres humanos. Dezenas de comunidades
indígenas e ribeirinhas foram afetadas.
Cabe lembrar ainda que entre essas duas catástrofes,
ocorreu um terceiro desastre em barragem de mineração no
Brasil. Nos dias 16 e 17 de fevereiro de 2018, houve um
transbordamento do reservatório de rejeitos da planta
industrial da empresa norueguesa Hydro Alunorte (maior
produtora de alumina do mundo), em Barcarena, no Pará.
Durante a investigação, foram descobertos dutos
clandestinos que despejavam efluentes não tratados
diretamente no meio ambiente.
Os resíduos tóxicos contaminaram rios e igarapés da
bacia do rio Pará e poços artesianos de centenas, talvez
milhares de famílias ribeirinhas. Até hoje, o número de
famílias atingidas é impreciso, variando de cerca de cinco
mil a até vinte mil, segundo diferentes estimativas.
Felizmente, este desastre não provocou mortes no contexto
imediato. Mas o efeito da contaminação da água na saúde
da população, a longo prazo, ainda carece de estudos
abrangentes.
Por que trago à memória esses três desastres recentes
no setor de mineração ao analisar o “Projeto de Nação”,
objeto de estudo deste livro? O exame de tal projeto precisa
ser feito à luz do conteúdo que traz e daquilo que optou por
ignorar. O projeto destaca a importância da indústria da
mineração para o Brasil, mas se limita a analisar o potencial
econômico e dificuldades para a sua expansão, sem colocar
na balança a necessidade de o setor se adequar às
exigências de maior segurança e sem propor (ou sequer
pensar) em legislação que aperfeiçoe medidas de
prevenção.
Ao longo do texto, o meio ambiente é mencionado, na
maioria das vezes, como um obstáculo ao desenvolvimento
econômico. Os ambientalistas, na verdade, são destaque no
rol dos inimigos da pátria. São classificados como inimigos
internos, aliados dos interesses estrangeiros. Isso ficou
destacado nos capítulos que tratam da presença da
Doutrina de Segurança Nacional na elaboração do
documento em debate. No caso específico da mineração, a
projeção feita pelos militares para 2.035 traça um cenário
de atraso na expansão do setor como consequência de
exigências legais. Como neste trecho:
“Atendendo às manifestações ambientalistas (...) o Brasil
estabeleceu normas mais rígidas para a exploração mineral, que
retardaram o desenvolvimento de pesquisas e (...) de
implementação de estratégias para ampliar a exploração mineral
com agregação de valor aos produtos dela decorrentes”.

Tal cenário não tem base factual. Primeiro, porque a


ciência e o desenvolvimento tecnológico já apontam para a
superação do dilema desenvolvimento econômico x
preservação ambiental. No caso da mineração, o que se
cobra das empresas é o mínimo de respeito aos princípios
da responsabilidade social e ambiental, conforme
preconizado pela Constituição e pelo arcabouço legal que
começou a ser construído ainda durante a ditadura, com a
criação, por exemplo, do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama), em 1981.
É claro que leis podem e devem ser aperfeiçoadas,
sobretudo no sentido de assegurar desenvolvimento
econômico com a proteção e a segurança da população e do
meio ambiente, patrimônio coletivo das atuais e futuras
gerações. Não é o que se observa nas iniciativas legislativas
do governo Bolsonaro e de sua base de apoio no Congresso.
Projetos aprovados e em tramitação apontam para o
desmonte da legislação ambiental – quando esta deveria
aperfeiçoar mecanismos regulatórios em função dos
desastres recentes. Não há propostas no sentido de
“normas mais rígidas”, como apontado no cenário fictício do
texto.
Examinemos a realidade. Um exemplo contundente de
retrocesso foi a aprovação, em outubro de 2020, da nova
Política Nacional de Segurança de Barragens de Mineração.
E aqui peço licença ao leitor para uma importante
explicação técnica. A nova lei não alterou uma brecha
crucial na fiscalização. As investigações dos dois desastres
em Minas Gerais revelaram graves suspeitas de
irregularidades na elaboração dos laudos de estabilidade
das barragens, documento que as empresas apresentam
aos órgãos fiscalizadores atestando que suas estruturas
estão seguras. Sem o laudo, elas não podem funcionar.
O problema é que o laudo é elaborado por auditor
contratado pela mineradora, configurando relação comercial
com altíssimo potencial de conflito de interesses. Com um
laudo positivo, a mineradora vai para o fim da fila da
fiscalização in loco. Na prática, o sistema de fiscalização é
autodeclaratório e faz com que a própria empresa
determine se receberá ou não a visita dos fiscais. Nos dois
desastres, as empresas tinham seus laudos em ordem e deu
no que deu. A nova lei, já sancionada pelo presidente Jair
Bolsonaro, não mudou o processo autodeclaratório.
Outros projetos em tramitação afrouxam ainda mais a
legislação de interesse da indústria da mineração. A
proposta do novo Código de Mineração, em estudo por um
grupo de trabalho na Câmara, é extremamente leniente
com o setor. Considera a mineração “essencial à vida
humana” e de “utilidade pública”.
No Senado, aguarda votação um projeto que desmonta o
licenciamento ambiental existente sob o argumento de
reduzir a burocracia e dar agilidade aos empreendimentos.
Novamente, recorro ao exemplo dos desastres em Minas.
Nos dois casos, houve negligência (no mínimo) do órgão
licenciador, com processos de autorização atipicamente
céleres, em favor da conveniência das empresas e não da
segurança das estruturas. O problema não foi a lei, mas a
má aplicação dela pela autoridade competente.
Os projetos mencionados se somam a outras propostas
pró-mineradoras, como a que libera atividades econômicas
em terras indígenas. Não é à toa. Levantamento do Instituto
Socioambiental, de 2019, nos registros da Agência Nacional
de Mineração, mostra que, naquele ano, havia mais de 500
pedidos de pesquisa do subsolo da terra Yanomami, em
Roraima.
O “Projeto de Nação” também é atravessado pela visão
de que os povos indígenas são um empecilho ou um
inconveniente a ser contornado para que se alcance o
progresso e para integrar a Amazônia ao restante do país.
Aliás, abro parênteses aqui. A visão dos indígenas como
obstáculo é uma evidente contradição com o mito de que a
origem do Exército brasileiro estaria na união das três raças
(brancos, negros e indígenas) para combater o inimigo
holandês na Batalha dos Guararapes (1648-49), mito criado
pelo próprio Exército. Hoje os generais exibem com orgulho
a presença de soldados recrutados nas comunidades
indígenas. Ocorre que estão na mesma condição dos nativos
do tempo colonial: servindo como soldados. Antes, eram
escravizados. Hoje, são, formalmente, cidadãos. Antes,
como agora, são homens desintegrados de suas origens,
sem identidade, sem futuro.
No “Projeto de Nação”, grupos sociais como quilombolas,
ribeirinhos, indígenas, extrativistas, trabalhadores rurais são
tratados como invisíveis, inconvenientes ou como peças de
uma engrenagem a serviço de algum interesse econômico.
Os direitos das minorias são problemas no caminho do
crescimento e da prosperidade. Tal visão é explícita quando
se fala em “remover as restrições da legislação indígena e
ambiental, que se conclua serem radicais, nas áreas
atrativas do agronegócio e da mineração”.
Ao projetar cenários para 2.035, o estudo repete
formulações de sessenta anos atrás sempre que se refere à
Amazônia, ecoando o lema do primeiro general-presidente
da ditadura de 1964, Castelo Branco: “Integrar para não
entregar”. É uma premissa equivocada, que desconhece a
realidade da incorporação da região por meio de processos
historicamente agressivos, que já “integraram” a região às
cadeias internacionais de comércio, seja pela mineração
(notadamente no Pará) ou pelo agronegócio (em vários
estados).
Outro aspecto é a inserção da Amazônia em complexos
fluxos criminosos, também com ramificações internacionais.
A título de exemplo, trago a investigação conduzida pelo
Instituto Escolhas, “Raio X do Ouro”, a respeito da extração
e comercialização do metal no Brasil, entre 2015 e 2020. O
relatório conclui que quase metade da produção nacional do
período (229 toneladas) tem indícios de origem ilegal. A
pesquisa mostra os mecanismos de “lavagem” da
procedência do ouro para introduzi-lo nas cadeias de
comércio, com a participação de instituições financeiras,
para que o produto chegue com aparência lícita no
consumidor final. Uma joia comprada em Paris pode estar
contaminada por crimes ambientais e violações de direitos
humanos cometidas na Amazônia.
O “Projeto de Nação” não dá uma palavra sobre esse
tipo de exploração predatória e criminosa, nem sobre o
passivo socioambiental deixado pelos grandes projetos
econômicos na Amazônia. No entanto, exercita a
imaginação com hipotética exploração mineral predatória
conduzida pela China na Guiana, com impactos no
Suriname, Venezuela e Brasil.
A Amazônia é a maior fronteira de recursos naturais do
planeta e abriga incalculável patrimônio genético ainda
desconhecido. A floresta é produtora de chuva, inclusive
para o agronegócio, considerado preponderante “para o
desenvolvimento sustentável da Amazônia”. Mas a leitura
do documento sugere que a dádiva é vista como maldição.
O projeto não explica como manter a floresta em pé para
que continue atuando como fator de regulação climática e
beneficiando a agricultura em outras regiões do país.
O agronegócio é “propulsor do desenvolvimento”,
“grande demandante da modernização da infraestrutura de
transportes”, “locomotiva das nossas exportações” e “maior
responsável por nossos êxitos no comércio mundial”. O
projeto de futuro condena o país à subordinação colonial de
fornecedor periférico de matérias-primas ou commodities. A
opção pelo agronegócio como base da economia é tão
radical que tudo se subordina aos interesses deste setor,
notadamente a regularização fundiária e o uso de um
elemento estratégico para o futuro de qualquer país, a
água.
O problema é a falta de consistência do texto até para
defender esta visão atrelada ao passado. O documento não
enfrenta o maior desafio da humanidade neste século, as
mudanças climáticas e seus impactos sobre enormes
contingentes populacionais. Apoia-se na mesma visão
negacionista que orientou o atual governo na condução do
combate à pandemia de Covid-19, desastre comandado, em
parte, por um general da ativa à frente do ministério da
Saúde.
A ciência já demonstrou que estamos no limiar de um
mundo hostil ao ser humano. Fome, guerras pela água,
perda de colheitas, secas, tempestades, elevação do nível
dos oceanos, desaparecimento de cidades costeiras não são
enredo de cinema-catástrofe. Apesar do alerta da ciência, o
assunto é tratado com assustadora ligeireza, sem uma
formulação que devolva ao Brasil a capacidade de ser uma
voz respeitada no cenário internacional para discutir como
evitar que o planeta se torne inabitável.
No lugar de argumentos e fundamentação científica,
conceitos vagos e mal formulados. Um exemplo claro: “O
país também desenvolveu o seu enorme potencial em
biodiversidade e biomassa, investindo na bioeconomia e
bioinovação industrial.”
Ora, biodiversidade são todas as espécies de animais e
plantas dos nossos biomas. Portanto, “desenvolver” a
biodiversidade só pode ser entendido como o investimento
na proteção de habitats de espécies ameaçadas e na
criação de unidades de conservação e de proteção
ambiental. Não há uma palavra sobre isso. Ao contrário,
aventa-se a possibilidade de buscar matérias-primas para
produção de defensivos agrícolas (agrotóxicos) “em áreas
indígenas e de proteção ambiental, que poderiam ser
aproveitadas com retorno para as comunidades locais”.
Em outro trecho, mais uma contradição. Fala-se em
“aproveitamento rentável da biodiversidade regional com
vistas aos mercados internos e externos”. Claramente,
percebe-se que quem escreveu não tem a menor ideia
sobre o assunto.
Outro exemplo de mixórdia conceitual: “Implantar
política pública que estimule a ocupação, recuperação,
preservação, conservação e conversão dos 12 milhões de
hectares de áreas de pastagens degradadas do país em
áreas de proteção ou de produção de alimentos
ambientalmente sustentáveis.” Recuperação, conservação,
preservação e conversão são conceitos distintos e de
aplicações, muitas vezes, excludentes.
Em matéria de recursos naturais, o Brasil coleciona
superlativos: temos a maior floresta tropical, o maior rio e a
maior planície alagável do mundo, o Pantanal. Temos um
bioma que só existe aqui, a Caatinga, e a segunda maior
extensão de manguezais (atrás apenas da Indonésia). Os
manguezais fazem a transição entre os ambientes marinho
e terrestre e são uma barreira natural contra a erosão
causada pelas marés e temporais, qualidade essencial em
tempos de aumento do nível do mar. Todos esses ativos (e
muitos outros) fazem do Brasil uma potência ambiental
desde que sejam valorizados.
Não é o que faz o “Projeto de Nação”. Com avaliações
subjetivas inclusive sobre o caráter do povo brasileiro,
confunde visão sistêmica para resolver problemas com
comando único, centralizado e autoritário. O documento é
uma colcha de retalhos em que os capítulos parecem ter
sido escritos por pessoas com visões até contraditórias
sobre como superar muitos dos nossos dilemas. Mais grave
ainda é a impressão de que os autores conhecem o país por
meio de manuais ultrapassados, descolados da complexa
realidade brasileira.
No “Projeto de Nação”, falta, precisamente, um projeto
de nação. Essa coletânea tem como base a ideia de que
projeto de nação é, em essência, projeto de comunidade
que se reconhece e é reconhecida. Comunidade unida pela
esperança de futuro promissor e benéfico para todos.
Neste sentido, o documento em debate não deixa de
projetar um futuro para a comunidade nacional brasileira.
Refletindo a mentalidade colonial de seus autores, trata-se
de um futuro triste e impiedoso. Condena os brasileiros à
subordinação aos interesses dos que pretendem continuar
mandando no mundo sem maiores preocupações com o
meio ambiente e com as aspirações coletivas.
Apelo à fragmentação nacional
Roberto Amaral[29]

“O Brasil tem um grande passado pela frente”


Millôr Fernandes
Impossibilitados de assumir a descoberta do Brasil
(atribuída a um almirante português), os militares
brasileiros se autoproclamam fundadores do país, da nação,
da pátria (da qual são filhos e pais). Para tanto, não hesitam
em construir narrativa própria, desapartada dos fatos, em
que se auto investem de protetores de uma adolescente
sem autonomia volitiva, insegura, frágil, donde carente da
curatela com que a assistem. Não sei se têm consciência de
que, pretensamente sujeitos da história, apenas
desempenham o papel de servidores dos interesses da
classe dominante, os quais jamais se confundem com os
interesses do país em eterna construção.
Da reivindicada preeminência sobre a vida nacional, cujo
exercício se atribuem como uma missão, decorre o
inventado projeto de “coesão nacional e sentimento coletivo
de Pátria” mediante o qual intentam impor um corpo
ideológico concebido na caserna e nos cursos de formação e
especialização acompanhados nas diversas academias
militares dos EUA.
Os militares cuidam não apenas dos limites políticos
impostos ao povo pela curatela que decretaram e
executam, mas querem interferir no ditado de seu futuro, de
sua conformação social, de seu ordenamento político e de
seus valores. Pretendem decidir o que é pátria e como deve
ser amada; o que é democracia e qual democracia deve ser
adotada. Querem decidir o que é interesse nacional e
descuidam da defesa da soberania.
De forma maniqueísta classificam as ideologias como
boas e nocivas, decretam o que entendem como paz social
(e seu dever de assegurá-la), não obstante a pobreza, a
educação segregacionista, o racismo, o preconceito social,
as discriminações de gênero, a opressão da misoginia, a
brutal desigualdade social, a intolerância fraturando a
sociedade, a violência larvar que se espalha como rastilho
de pólvora.
Os militares deliberam que o “perfil psicossocial da
Nação” é “tradicional” e “conservador evolucionista e não
imobilista”, uma formulação esdrúxula.
Nosso país tem seu presente – e seu futuro, se amarras
não forem quebradas – condicionado pelo seu passado.
Feitoria, colônia, império e república foram fundados na
violência da terra farta para poucos donos, no genocídio das
populações nativas, na escravidão de negros e índios, na
servidão de brancos pobres, na exploração do trabalho
assalariado, sob o baraço e cutelo dos antepassados dos
militares de hoje e da população da Faria Lima de hoje. O
Exército cumpre papel repressor como representante do
poder reinol na Colônia e de guarda do capital concentrado
na República.
Nossa história, assaz cruenta, registra um sem-número
de insurgências populares, a contínua resistência dos povos
nativos, levantes de negros, camponeses e pequenos
proprietários; rebeliões de senzalas ao lado de movimentos
autonomistas e guerras pela independência que
percorreram o país de Norte a Sul, todos sufocados por
inaudita violência das forças armadas do Estado brasileiro.
Na República, depois do Massacre de Canudos e de
outros menos conhecidos, a história lhes debita o
assassinato de 8 mil indígenas na última ditadura, erguida
para conter a emergência das massas, que assustava as
forças conservadoras e a geopolítica dos EUA para o
Continente. Durante 21 anos o mandarinato dos generais
procurou dividir a sociedade brasileira. É desse a disjuntiva
fascista “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O rol de assassinados e
torturados jamais se considerará definitivamente apurado.
Os militares não fazem remissão a esse mundo, que é
sua história, e proclamam a necessidade de coesão em
defesa da ordem sustentada na injustiça social e acentuada
no conflito de classes. Amparam um governo
intrinsecamente voltado para o objetivo de fraturar a
sociedade por meio da violência. Uma vez inoculado no
corpo social o germe da violência – e no Brasil de hoje o
principal vetor é o presidente da República – ele próprio
desencadeia sua dinâmica de propagação. A violência está
presente em todos os escaninhos da sociedade.
Os militares exercem a curatela sobre os brasileiros
interferindo no andamento e na narrativa da história,
sempre em defesa da ordem estabelecida pela casa-grande.
Depois de definir a nação que nos reservaram –
conservadora e liberal –, anunciam o projeto de coesão
nacional a ser alcançado mediante a redução ideológica, da
harmonia derivada da subsunção da diversidade, da paz
que só se obtém quando a vida política é subtraída.
Quantos tombarão na vã tentativa de “harmonizar”
pontos de vista? Quem quer homogeneizar a sociedade
diversificada se prepara para matar, ensina a história.
Instrumento de política de um Estado dividido pela luta
de classes, as Forças Armadas exercem o papel de guardiãs
da ordem e do congelamento social. A preservação do statu
quo ante é o pressuposto da segurança que os interesses da
casa-grande reclamam. É o sonho de qualquer Estado
autoritário. É a essência do nazifascismo!
Como futuro, nos acenam com um estado centralizador,
monopolizador de sentimentos e de ideologia, construtor de
valores, fundado na ordem impermeável à contestação, à
diversidade, ao sonho e à utopia que movem a História.
O país da utopia militar será alimentado, diz o “Projeto
de Nação”, pelo “revigoramento do patriotismo, do civismo
e de valores morais tradicionais, em contraposição a valores
sociais, muitos deles contaminados pelas ideologias
radicais”, neutralizadas as correntes de pensamento
ideológico que consideram radical e nocivo. O que estiver
fora de seu receituário deve ser descartado como erva
daninha.
O que pretende tal projeto é a reprodução social do
mundo herdado da colônia, estratificado, preservador do
mando, da soto-posição da sociedade sob o mando do
senhor, branco, rico e proprietário de terras e homens, sócio
do tráfico negreiro internacional, produtor de açúcar ou
algodão ou café destinados ao mercado externo, deixando
pesadas dívidas sociais. Um passado que se projeta no
presente, adiando o futuro, quando a sociedade que aspira
à modernidade e ao republicanismo, persistentemente
postergados, permanece presa aos condicionamentos
históricos do escravismo, do latifúndio, do racismo, do
androcentrismo, da misoginia e da discriminação social.
Uma das metas do projeto, é alcançar o que denomina
de “Coesão nacional e sentimento coletivo de Pátria”. Parte
do pressuposto falso de que “o perfil psicossocial da Nação”
é conservador e que, nos anos que nos aguardam,
evidentemente sob a égide do atual regime, na contramão
da realidade conhecida, terá o país vivido o “sucesso do
modelo econômico liberal”, que congelou o crescimento
econômico, explodiu as taxas de desemprego e levou a
extremos a queda de renda dos trabalhadores, trouxe de
volta a espiral inflacionária, desindustrializou a economia e
procedeu ao processo antinacional de desestatização que,
depois da Eletrobras, ameaça liquidar a Petrobras. Tudo o
que nos divide, o que acentua distâncias sociais e
econômicas. Tudo o que aumenta o distanciamento do povo
do processo político decisório.
Os militares, porém, falam no “revigoramento do
patriotismo, do civismo e de valores morais tradicionais”,
que se teriam imposto “em contraposição a valores sociais”.
E quais valores sociais, senão a prevalência do
individualismo liberal sobre as aspirações coletivas?
Coesão social é a atração comum de indivíduos para
formar um todo. É, ao mesmo tempo, ideologia e emoção,
impulso e situação, resultado e condicionante para muitos
se manterem unidos dentro de uma formação social. Supõe
o atendimento a anseios concretos, a crença em um projeto
comum, como o sentimento de defesa nacional em face da
agressão de um inimigo.
O que seria, afinal, “coesão social” em sociedade
marcada pelo conflito capital-trabalho, minada pela
exploração dos assalariados, pela concentração de renda,
pelo desemprego? Sociedade na qual o 1% de brancos
milionários controla a economia, onde cerca de 35 milhões
de pessoas passam fome e outros 130 milhões vivem abaixo
da linha de pobreza?
Uma sociedade em guerra com seus pobres.
A fragmentada sociedade brasileira foi gerada na
alienação dos interesses nacionais em face dos grandes
impérios; no projeto de uma economia agroexportadora,
especializada em fornecer os produtos tropicais. Não sem
razão, fizemos a Independência (uma negociação com o
Reino intermediada pelos bancos ingleses, que cobraram
rica comissão) sem abolir a escravidão; 67 anos de um
império conservador marcado pelos interesses do latifúndio
e pela escravidão; uma república que nasce preservando os
interesses dos que conspiravam contra a industrialização e
a modernização do país. Uma república juncada de golpes
de Estado e ditaduras levados a cabo para impedir a
realização da vontade popular.
Não há, pois, no horizonte, perspectiva de coesão, senão
a pasmaceira imposta pelo autoritarismo, porque somos
uma sociedade fragmentada, dividida, racista e
preconceituosa, ainda hoje à procura de um projeto
unificador. Sociedade dividida porque reproduzimos na
contemporaneidade os traços de nossa formação, a fonte do
poder inabalável da casa-grande que atravessa toda a
história, preservando o mesmo mando colonial-escravista, o
império da propriedade concentrada sobre a liberdade e a
vida, a depredação ambiental, a derrogação de todas as
tentativas de afirmação do poder popular, a alienação
ideológica, a concentração da terra que por séculos vem
produzindo a miséria no campo e nas cidades.
A sustentar esta ordem, as Forças Armadas.
Sobre essa sociedade age a extrema direita civil e
militar, aprofundando o dissenso que, levado ao paroxismo,
pode nos conduzir a fraturas ainda mais profundas.
Para o agravamento deste quadro contribui a suspensão
dos poucos e tímidos programas de inclusão social,
anatematizados como “populistas”, a adjetivação
depreciativa com a qual a classe dominante rotula toda
iniciativa que leve em conta os interesses das massas
deserdadas pelo capital. “Populistas” seriam os programas
de renda mínima, a política de cotas para ingresso na
universidade pública, que beneficiam indígenas e negros.
Assim se explica a resistência da classe dominante ao
ensino público, gratuito e de qualidade e à universalização
do direito à saúde e à assistência médica.
Ao lado dos militares, empresários e rentistas, é possível
enfileirar negros e os indígenas ainda sobreviventes? Os
camponeses sem terra, os pobres de um modo geral e os
moradores de rua? Os habitantes dos alagados do Recife ou
das palafitas de Manaus e Belém? Os favelados de Rio e São
Paulo e de todas as capitais brasileiras? Os desempregados?
Como pensar em coesão social se o país está
deliberadamente dividido em uma maioria esmagadora de
pobres e muito pobres e poucos ricos que tudo podem
porque controlam a economia e a política? É essa minoria
mínima que formula as leis, que constitui o poder judiciário
e aciona as Forças Armadas para a contenção dos protestos.
É esse estado de classes que divide a nação. O projeto é
aprofundar o fosso social. É o preparo da guerra civil tão
propalada pelos neoconservadores.
Na caminhada para a coesão, os militares indicam
adversários a serem abatidos. Como o trumpismo, em cujo
primarismo se alimentam, elegem como adversária a
“revolução cultural” e o ensino de um modo geral, que teria
abandonado “valores morais, éticos e cívicos”. A “revolução
cultural”, que dizem ser “promovida pelas correntes
ideológicas radicais” por antagonizar o atual modelo de
dominação social sustentado pelo predomínio militar,
precisaria ser erradicada.
O ensino é elevado ao pódio de adversário perigoso,
quando deixa de ser instrumento de reprodução da
ideologia dominante. O conceito de “revolução cultural”,
tomado de empréstimo à ultradireita estadunidense,
conjuga com outras idiossincrasias, como o tal “globalismo”,
o “politicamente correto”, a “ideologia de gênero” e o
“marxismo cultural”. Diz respeito a todo e qualquer
movimento que promova a reflexão, mobilize as mentes,
discuta valores, mexa com o statu quo, inove e que revolva
a pasmaceira que barra o progresso humano.
O ser autoritário, por definição intolerante, não convive
com a liberdade, não se dá bem com o debate, não suporta
o diferente ou o divergente. Termina detestando a vida.
Uma das características do totalitarismo fascista, de par
com sua aversão à cultura, é sempre ver o conhecimento
como fonte de contestação, subversivo, na medida em que
põe em xeque os dogmas que servem à sustentação do
sistema.
A assinatura fascista da utopia militar está na promessa
de “neutralizar o poder das correntes de pensamento
ideológico radical e utópico”. Trata-se de impor a
uniformidade ideológica, o sonho de todo regime opressor.
Mas ao mesmo tempo é seu calcanhar de Aquiles. Por mais
monolíticas que sejam as estruturas estatais voltadas para a
repressão, há sempre uma nesga de espaço por onde aflora,
se imiscui o pensamento contestador, como demonstra a
resistência dos intelectuais brasileiros aos muitos períodos
de ditadura.
Como, por exemplo, demonstra este livro.
Sem medo de ser mulher
Mônica Dias Martins[30]
A imagem de “autonomia, coesão e unidade da nação”,
apresentada superficialmente no “Projeto de Nação”,
contrasta com a estrutura racista, o sistema patriarcal e a
extrema desigualdade social em que vivemos.
O Brasil projetado pelos militares é uma comunidade
sem fissuras, uma nação monolítica, sem povo, sem
indígenas, negros e pobres. Nenhuma atenção a nós
mulheres que representamos 51,7% da população
brasileira!
O silêncio e a exclusão da imensa maioria dos que
compõem a nação indicam uma postura neoconservadora,
que, aliás, é crescente em todo o mundo, simbolizada pela
supressão do direito ao aborto nos Estados Unidos, após 49
anos de vigência.
Neste capítulo desenvolvo uma breve experimentação
analítica sobre três temas – coesão nacional e sentimento
coletivo de pátria, turismo e educação superior – por seu
conteúdo ideológico e sua relação inequívoca com a
estrutura patriarcal, machista e homofóbica de nossa
sociedade.
Não é uma escolha aleatória, posto que a ausência da
mulher nos objetivos, diretrizes e óbices elencados no
documento é reveladora de um ideal feminino
fundamentado na moralidade religiosa, na família
tradicional nuclear e heteronormativa e nos valores
tradicionais de gênero. A palavra “mulher”, rara nos
documentos oficiais, passa a ser substituída pela palavra
“família”, como se sinônimas fossem.
Quanto às milhares de pessoas com diferentes tipos de
orientação sexual, o desrespeito chega ao absurdo de
desconhecer sua existência e participação ativa na
comunidade nacional. Não há dúvidas que é no campo das
ideias que se aprofundam os riscos e as ameaças aos
direitos das mulheres, incitando a misoginia, sentimento de
repulsa, desprezo e ódio contra o sexo feminino. Tais ideias
garantem impunidade e convidam a práticas criminosas
como o feminicídio (um a cada 7 horas), cuja taxa é de 4,8
para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo
a Organização Mundial da Saúde – e a negação do aborto a
vítimas de violência sexual (um estupro a cada 10 minutos),
a exemplo do episódio recente de uma menina de 11 anos
em Santa Catarina.
Coesão nacional e sentimento coletivo de pátria
A nação plenamente constituída em 2035, segundo o
documento em análise, teria perfil conservador e
evolucionista e se assentaria em um modelo econômico
liberal com responsabilidade social e estratégias exitosas de
educação, de modo a evitar a penetração de ideologias
radicais. O patriotismo, em contraposição a “valores sociais”
(sic), redesenharia um novo cenário que atenuaria a cisão
interna, particularmente em seus matizes ideológicos,
étnicos, religiosos, com reflexos positivos para a
estabilidade político-social e a projeção internacional do
Brasil.
Neste cenário fictício, não há menção à divisão sexual do
trabalho, ou seja, ao modo como as tarefas produtivas são
organizadas com base na relação social entre os sexos a
partir de dois princípios: o da separação (atividades
masculinas x atividades femininas) e o da hierarquização (o
trabalho do homem “vale” mais do que o da mulher). É o
caso da empregada doméstica, categoria profissional que
mais emprega mulheres no Brasil: 5,7 milhões, das quais
3,9 milhões são negras, sendo que apenas 28,3% têm
carteira assinada e direitos trabalhistas assegurados,
segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA
(2019).
A precarização e invisibilidade à qual o modelo
econômico liberal submete particularmente as
trabalhadoras (além das domésticas, também as
terceirizadas do setor agrícola, de saúde, limpeza, ensino,
etc) geram graves problemas. Sua posição subalterna no
mundo do trabalho impede condições de remuneração
justas para cerca de 28,9 milhões de famílias chefiadas por
mulheres, segundo a pesquisa “Mulheres Chefes de Família
no Brasil: Avanços e Desafios” (Escola Nacional de Seguros,
2018). De acordo com o documento “Retrato das
Desigualdades de Gênero e Raça” (IPEA, 2016), o número
de lares chefiados por mulheres passou de 23%, em 1995,
para 40% em 2015. Não seria este um dos fatores críticos
para enfrentar “os desafios do desenvolvimento, segurança
e bem-estar do povo”? Para os militares autores do “Projeto
de Nação” esta realidade não conta e, na contramão dos
anseios de uma sociedade sufocada pelo desemprego e
pela fome, elaboram um discurso patriótico que chamam de
“objetivos”, mas que não se sustenta.
É nas “diretrizes” que sobressaem, pela repetição, os
elementos ideológicos motivadores da “grande estratégia
nacional” (sic), que, para efeito de crítica, podem ser
organizados em dois blocos: paralisar os que defendem
“antivalores culturais” e o Estado do bem-estar; estimular o
pensamento liberal e o “conservadorismo evolucionista”.
Quanto ao primeiro, nada é dito sobre os métodos para
combater os que defendem a “revolução cultural” ou o
Estado em seu papel de agente regulamentador, tidos como
radicais. Considerando a atual gestão, não cabem dúvidas
de que será com bala, bíblia e boiada, conforme mostram as
medidas relacionadas à liberação do porte de armas, aos
recursos públicos repassados para líderes evangélicos
lobistas e às alterações na política de demarcação de terras
indígenas, além do desmonte perverso das políticas
públicas para as mulheres, em especial de educação, saúde
e combate à violência.
No alvoroço de mostrar consistência ideológica no que
se refere a “promover o sentimento coletivo de nação e
resgatar a identidade nacional” (sic), o documento se
derrama em alusões sobre a promoção de valores éticos e
do civismo com ênfase na educação e na convivência
respeitosa entre etnias e religiões. Em lapso significativo, as
diferenças de gênero, assim como as desigualdades sociais,
não são mencionadas.
Mostram-se prolixos nas sugestões de ensino de história,
mencionando superficialmente aspectos teórico-
metodológicos, personagens e obras. Aqui cai por terra a
montagem do “Projeto de Nação”, supostamente
desideologizado. O ensino de história nas academias
militares evidencia forte doutrinação de direita, tanto no
conteúdo quanto nos materiais didáticos, conforme estudo
sobre a formação dos oficiais e a democracia brasileira do
coronel aviador reformado Sued Castro Lima (2018). Tal
mentalidade conservadora leva membros do oficialato a
condenar as investigações conduzidas pela Comissão
Nacional da Verdade ou a justificar a perseguição aos
adversários políticos.
Esse conjunto de crenças que pretendem infligir à
sociedade brasileira leva os propositores do “Projeto de
Nação” a martelarem que os entraves à coesão nacional são
as ideias radicais, a “revolução cultural”, a ausência de
patriotismo de grupos minoritários. Não há referências a
partidos políticos, processos democráticos, eleições e,
menos ainda, à violência política de gênero, ou seja, às
atitudes machistas contra mulheres eleitoras, candidatas e
eleitas para cargos públicos no Executivo ou no Legislativo.
Estas são ameaçadas, desrespeitadas, silenciadas, xingadas
e até assassinadas, como aconteceu com a vereadora
Marielle Franco em 2018.
Neste sentido, somos uma sociedade marcada por
relações de poder que permitem às elites representar a
nação a partir de um domínio masculino, reprimindo a
participação da mulher enquanto sujeito histórico, político e
cultural.
O turismo no Brasil
Sem explicitar quais as “boas práticas da indústria
turística” que possibilitariam ao Brasil posicionar-se entre os
melhores do ramo em 2035, nem oferecer informações
sólidas sobre os “reflexos positivos para o desenvolvimento
nacional”, entre eles a geração de emprego e renda, o
documento omite que a principal atração para quem nos
visita continua sendo o turismo sexual. Apenas reconhece
de forma vaga que um dos “óbices” para um
posicionamento mais competitivo no cenário internacional é
a “projeção da imagem turística brasileira no exterior
deficiente e distorcida”.
Nenhuma menção à mulher, retratada com toda sua
“sensualidade”, sujeita a desejos sexuais desatinados,
cantada em verso e prosa, rainha enquanto dura o
carnaval... Quem não lembra da Mulata Globeleza nas
vinhetas da emissora, anunciando o carnaval, dançando
com o corpo nu e pintado?
Os estereótipos ligados ao corpo da mulher brasileira
são disseminados aos estrangeiros, que veem no turismo
uma alternativa de satisfação sexual. Antes sua figura
voluptuosa adornava cartazes de propaganda turística,
anúncios de TV de diversos produtos; hoje a internet tem
importante papel no fomento ao turismo sexual. Tratadas
como objeto, as mulheres continuam sujeitas a um
determinado modelo esquizofrênico de pessoa (santa ou
pecadora), que pretende anular sua potência e suas
características humanas. A situação é ainda mais atroz
quando incluímos o recorte racial para destacar a realidade
das mulheres negras e indígenas.
É difícil traçar um panorama da exploração de serviços
sexuais por turistas que se deslocam de seus locais de
origem com esse único objetivo, quase sempre de forma
ilícita, pois se observa a baixa notificação de casos, devido à
desinformação e ao medo das vítimas, geralmente crianças
e adolescentes. Em 2010, a Secretaria Especial dos Direitos
Humanos contabilizou as denúncias de exploração sexual:
7.701 no Nordeste, 5.669 no Sudeste, 2.960 no Sul, 2.158
no Centro-Oeste e 1.955 no Norte. No período de 2011 a
2019, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos, foram 351 denúncias, sendo o maior
número de casos de turismo sexual infantojuvenil no Rio de
Janeiro e Pará. Essa precariedade de números oficiais parece
não ser levada em conta na elaboração de propostas para
alavancar o desempenho do Brasil nesse setor de atividade
econômica. Mostra a despreocupação e a falta de respeito
com a sociedade brasileira!
Na falta do que falar sobre os motivos que levam
populações mais vulneráveis, em condições de pobreza,
sem assistência do Estado, a se exporem ao turismo sexual,
o documento se esmera em enumerar os fatores que
interessam para a indústria turística alcançar a meta de
figurar entre os vinte países mais bem posicionados no
ranking internacional: competitividade, profissionalização,
infraestrutura, gestão, segurança, etc.
Ao ressaltar as variedades de turismo histórico,
ecológico e cultural, o “Projeto de Nação” revela toda sua
hipocrisia, fingindo ter proposições nobres que contrastam
com o descaso do governo que os militares integram quanto
ao patrimônio histórico e cultural do Brasil. Mais grave em
termos ecológicos e de vidas humanas, a atual gestão
promove o desmonte das instituições responsáveis pela
política ambiental e faz vista grossa para as inúmeras
catástrofes ambientais como nos casos de rompimento da
barragem de Brumadinho e Mariana, dos incêndios florestais
e desmatamento na Amazônia e do derramamento de óleo
no litoral do Nordeste e do Sudeste.
Ensino Básico no Brasil
Obviedades caracterizam este tema estratégico, cuja
meta principal consistiria em situar o ensino fundamental e
médio, no ano de 2035, entre os trinta países mais bem
avaliados pelos índices nacional (IDEB) e internacional
(PISA). Por exemplo, a afirmativa de que a educação
garantiria acesso a emprego e prestígio social é recorrente
há décadas em análises de organismos internacionais como
o Banco Mundial. Promover a educação para erradicar a
pobreza tornou-se uma frase emblemática com o propósito
não apenas de justificar politicamente as reformas
educacionais em um contexto neoliberal excludente, mas de
encobrir as raízes das desigualdades sociais. Isso fica claro
quando lemos os pontos fracos do sistema educacional
brasileiro, que seriam a reforma curricular, as práticas
pedagógicas, a infraestrutura física, os equipamentos
didáticos, a gestão de recursos. Tais formulações
demonstram as conexões ideológicas do “Projeto de Nação”
com um padrão de autoritarismo global, que tornaria o
Brasil um experimento totalitário neoliberal, apoiado por
populistas de extrema direita de vários países.
Nenhuma menção aos graves problemas que vivem as
famílias das comunidades onde se localizam a maioria das
escolas: trabalho infantil, pais desempregados, professoras
com baixos salários, crianças com fome, má qualidade dos
alimentos da merenda escolar, etc. O impacto das facções e
do tráfico de drogas e de armas na vida da periferia
repercute no ensino básico, provocando medo e
insegurança, seja pelas brigas entre gangues, seja pela
possibilidade de invasão da escola. Que tipo de educação
pode haver em territórios controlados por facções, por
policiais ou por autoridades escolares militares? Há
inúmeros relatos de experiências de estudantes e
professores que sofreram vários tipos de violência, mas
poucas denúncias. O documento silencia, lembrando de
drogas apenas no caso do ensino superior para difamar a
imagem das universidades públicas.
Em consequência, observa-se o desinteresse dos
estudantes por um processo de aprendizagem
desconectado da realidade, o que ocasiona alto índice de
reprovação ou repetência, além da queda no número de
matrículas.
Muito mais fácil é atribuir as responsabilidades das
instituições públicas às famílias, leia-se às mães, pela
ausência de “boas práticas de comportamento, civismo,
cidadania e disciplina dos alunos”, imputadas à sua baixa
participação na vida escolar e não pelas condições precárias
de vida e trabalho; ou ao quadro docente, leia-se
professoras, pela “deficiente formação profissional e cívica”.
Sim, professoras, pois segundo o Censo Escolar de 2020,
elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, em todas as etapas da
educação básica, as mulheres são maioria: 96,4% na
educação infantil, 88,1% nos anos iniciais do ensino
fundamental, 66,8% nos anos finais do ensino fundamental
e 57,8% no ensino médio. Foram registrados 2,2 milhões de
professores, atuando em 179,5 mil escolas de educação
básica, sendo que desse total 63% encontravam-se lotados
no ensino fundamental.
A presença destacada de mulheres na educação básica
pode ser percebida de dupla maneira: por um lado, reflete a
visão patriarcal dominante na sociedade brasileira da
vocação feminina “natural” para o magistério,
prolongamento do lar; por outro, representa o predomínio
no mercado de trabalho de mulheres capacitadas, que não
são mais vistas, tal qual prescreviam as leis portuguesas
coloniais, como imbecilitus sexus. Contudo, até as primeiras
décadas do século XX persistia a exigência de ser solteira
ou viúva para que a mulher assumisse a função de
professora pública. Apesar dessa presença majoritária
feminina, não há o mesmo destaque para as pensadoras da
educação e tendemos a citar nomes de homens,
marginalizando teóricas e ativistas como Nísia Floresta
(1810-1885) e Armanda Álvaro Alberto (1892-1967), entre
outras.
Mas isso não é tudo. O documento repete ad nauseum
que a ideologização do ensino básico consistiria na
ingerência, a ser neutralizada, de ideias radicais, utópicas,
próprias de uma revolução cultural. Esse discurso sectário
tem afiliação ideológica em iniciativas estadunidenses como
o no indoctrination e o homeschooling, além de defender a
continuidade de escolas pobres para gente pobre. Os
propositores do “Projeto de Nação” pretendem, portanto,
ampliar o apartheid educacional, muito presente na história
do Brasil. Nesta perspectiva, é revelador o sistema de
avaliação em larga escala introduzido pelo Banco Mundial
no ensino básico para regular a “produtividade e eficácia”,
em detrimento da qualidade do processo de aprendizagem.
Enquanto recebemos elogios por ser uma referência em
informações estatísticas e mensuração de dados
educacionais, nas salas de aula a vigilância sobre o docente
e sua carga de trabalho só aumentam. As práticas tidas
como de excelência estimulam a competição e o
individualismo, valores caros à ideologia neoliberal, ao
tempo que desconsideram a realidade social da escola e
dos estudantes, tornando-se mais um instrumento de
hierarquização.
Partindo de um diagnóstico capenga e mal-intencionado,
o texto traz as linhas norteadoras das alterações
pretendidas, em alguns aspectos mera reprodução do que já
foi apresentado: coibir a ideologização nociva e a influência
dos sindicatos, promover valores e práticas para formação
cívica de docentes e discentes, estimular a aproximação
família-escola, etc. Contudo, há um conjunto de diretrizes
que interessa discutir, particularmente no que se refere ao
ensino médio.
A sugestão de resgatar o modelo das antigas escolas
normais e seu método tradicional de ensino merece
questionamento. Afinal, a quem interessa fomentar o
ideário conservador de uma escola exclusiva para mulheres,
adestradas para conduzir um processo de aprendizado
autoritário e obsoleto no qual cabe ao estudante absorver,
sem contestar, o conteúdo ensinado pelo professor e as
orientações da escola?
A crítica também é direcionada à afirmação sem
justificativa plausível da vantagem em termos de
“disciplina, respeito, higiene, civismo e práticas
pedagógicas” das escolas cívico-militares, estimuladas por
um governo de extrema direita, avesso a práticas e
instituições democráticas. O objetivo é buscar aniquilar
direitos assegurados na Constituição e promover o
militarismo como fundamento para um modelo de escola e
de cidadania, impedindo iniciativas voltadas para uma
educação emancipadora e crítica.
Na continuidade, trago reflexões sobre o sentido político
e ideológico da contrarreforma do ensino médio implantada
pelo governo ilegítimo de Temer e que está em curso. Tal
política não é algo isolado, mas o eixo estratégico das
recentes mudanças impostas à educação brasileira em um
contexto marcado por discussões acirradas sobre o
programa “Escola Sem Partido”, o congelamento das verbas
da educação por 20 anos e o veto à prioridade para o Plano
Nacional de Educação no orçamento de 2018.
Uma das distorções mais perversas da contrarreforma do
ensino médio é a que consagra a separação entre duas
modalidades de formação: uma técnica-profissional, para as
classes trabalhadoras, e outra de cunho científico-
humanista, para as classes dirigentes. Tal dicotomia
configura um dos legados colonial-escravista na educação
brasileira; o racismo foi dissimulado e se alastrou uma
interpretação “culturalista” conservadora de que é natural a
distinção de seres humanos (inferiores e superiores), com
base no acesso à educação e aos bens culturais. Uma
fórmula astuciosa para ocultar a hierarquia e a
desigualdade sociais!
Trata-se de um aspecto central que os militares buscam
expandir e aprofundar quando elencam, de forma
eufemística, as seguintes diretrizes: manter atualizada a
Base Nacional Curricular Comum, normatizar a educação
básica e estabelecer um currículo nacional basilar para o
ensino médio.
A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) retoma a
velha e limitadora oposição entre ensino geral científico e o
técnico-profissional, desconsidera a interdisciplinaridade e a
complementaridade entre campos de saberes específicos, o
que permitiria tanto maior cooperação entre os professores,
quanto melhor compreensão da realidade pelos estudantes
e suas famílias. Parte considerável de estudantes e
professores acredita que as discussões em torno da BNCC
são indissociáveis dos anacronismos da reforma do ensino
médio. Outro ponto de discordância, expresso pelos críticos
da separação entre o ensino geral e o profissionalizante, diz
respeito à ruptura com a visão sistêmica da educação, da
creche à pós-graduação, alimentando o retorno ao falso
dilema humanismo x tecnologia e à oposição inconsistente
entre educação básica e educação superior.
O projeto político das elites tem o intuito de apoiar o
setor privado, direcionando a educação para o mercado de
trabalho. Isso significa investir na alienação e na
instrumentalização da grande massa de jovens que
frequenta a escola pública, a qual agrupa mais de 88% das
matrículas do ensino médio. Porém, não existe ação sem
reação. O questionamento dos professores e a mobilização
dos secundaristas, que ocuparam, em 2016, mais de mil
escolas em todo o país possibilitaram a apresentação, no
Congresso Nacional, de um projeto menos distanciado das
discussões que vinham sendo travadas sobre um ensino
médio público, integral e de qualidade.
Dignidade da nação é dignidade da mulher!
A expressiva frase é repetida enfaticamente durante as
cenas de protesto estudantil exibidas no filme Jana Gana
Mana (Dijo Jose Antony, 2022), cujo título designa o hino
nacional indiano. O tema da película é o assassinato de uma
professora universitária, fato revelador das alarmantes
taxas de feminicídio na Índia: mais de 239 mil meninas
morrem anualmente, ou seja, 2,4 milhões de garotas são
mortas a cada década, de acordo com um estudo publicado
pelo Lancet Global Health em 2018.
Os direitos iguais, sem distinção de sexo ou gênero
(etnia, raça, classe), são elementos fundamentais para
legitimidade da nação; não por outra razão, seu
reconhecimento está explícito nas constituições modernas.
No entanto, a realidade mostra que as mulheres continuam
sendo consideradas inferiores aos homens e sofrendo
discriminações em diversos setores: laborais, educacionais,
familiares, entre outros. A nação, percebida como um
domínio masculino, reprime nossa participação enquanto
sujeito histórico, político e cultural. Neste sentido, ganha
importância a mobilização das mulheres como construtoras
da nação, reivindicando a plena cidadania, entre outras
conquistas.
Em um contexto de extrema vulnerabilidade em
sociedades patriarcais, prossegue a luta contra toda forma
de opressão, seja ela física, psíquica ou patrimonial. A
imagem construída da mulher, identificando-a como um
mero objeto de posse, como uma pessoa menos qualificada
ou frágil, intensifica e legitima vários tipos de violação,
principalmente, o feminicídio, ou seja, a morte por ser
mulher. Não obstante as graves injustiças sociais, as
mulheres resistem e não desistem de ampliar, a cada dia,
sua presença ativa nos espaços públicos e nos círculos
privados.
A Democracia Reduzida
Lincoln de Abreu Penna[31]
O futuro da democracia ocidental é explicitado como
objeto e ao mesmo tempo o objetivo do “Projeto de Nação”.
Ao centrar no Ocidente o documento pressupõe que o
espaço democrático não vai além dessa fronteira. Assim,
deixa transparecer um nítido, embora não assumido,
compromisso com os estrategistas que orientam a política
externa norte-americana.
Essa suposição faz sentido porque ou a democracia, para
os seus autores, possui um formato, um modelo,
presumivelmente indiscutível, logo capaz de orientar as
argumentações sobre o tema, ou o que é exposto esbarra
nos pressupostos da democracia.
Em todos os demais itens ou capítulos do documento
existe a presença de um forte conteúdo seletivo, de cunho
ideológico, expresso na maneira com que discorrem sobre o
cenário de 2035. No que denominam de Incerteza Crítica, os
autores apontam para o que consideram ser “a cisão
político-social evidenciada nas democracias ocidentais
desde o início do século”, turbulência que, no Brasil,
resultaria nas reformas reivindicadas por parte da
população.
O fortalecimento da democracia passaria “pelo
saneamento e a disfuncionalidade do Estado”. Com isso, se
daria um basta à corrupção, que teria a ver com o tamanho
do Estado. Na verdade o que se apresenta é a redução da
democracia, como veremos a seguir.
Ao contrário do que sugere o documento, o Estado não
funciona mal por ser grande em termos de abraçar várias
áreas de atuação ou porque tenha uma penca enorme de
servidores. Nos parâmetros comparativos com as grandes
democracias ocidentais, para gáudio dos que subscrevem o
documento, o Brasil está longe disso.
Se a liberdade é uma das componentes fundamentais da
democracia, o seu conceito não tem necessariamente a ver
com o liberalismo, tanto econômico quanto político. Da
mesma forma, a noção básica de democracia não se
encontra umbilicalmente vinculada ao Ocidente, pois a
própria concepção democrática implica na liberdade de
concebê-la independentemente da formação histórica de
cada nação. Ao associar a democracia ao Ocidente se está a
adotar uma leitura que, na prática, exclui toda e qualquer
orientação democrática que fuja aos padrões ocidentais.
Durante a Guerra Fria, essa leitura de fundo ideológico
era comum, pois os embates entre os dois campos
polarizados impunham que cada qual buscasse validar a
superioridade de seu modo de vida. Passado esse período
que correspondeu à emergência de uma nova etapa da
expansão capitalista, com o advento do neoliberalismo, era
preciso identificar os novos ou velhos inimigos da
democracia Ocidental.
Assim veio à tona o terrorismo, dessa vez de sobrenome
islâmico a partir, claro, de fatos concretos. Alguns, no
entanto, pré-fabricados e até hoje motivo de suspeição. Mas
o anticomunismo não foi abandonado. Foi reavivado para
realimentar a máquina de guerra ou o complexo militar-
industrial, termo usado pelo insuspeitável Dwight
Eisenhower há setenta anos.
Por outro lado, a democracia sendo uma construção
permanente, um contínuo aperfeiçoamento das formas de
organização e de funcionamento interinstitucional, não
admite conceitos cristalizados e respeita a diversidade
histórica e cultural dos povos.
A menção aos óbices que impedem a fluência
democrática, para os responsáveis pelo documento, revela
indisfarçável crítica ao sistema jurídico do País. É evidente
que todas as instituições podem e devem estar sujeitas às
críticas, sobretudo o Poder Judiciário, que não está acima do
bem e do mal. Mas, quando o atual presidente da República
agride os juízes do STF, por exemplo, o silêncio fortalece os
que pregam a destituição dos seus membros. Sobre as
prerrogativas desse Poder, encarregado da observância da
Constituição, nada é dito.
Esse reparo não abona o comportamento dos
componentes da maior Corte brasileira. Erros de condução
houve e não foram poucos, haja visto o impeachment da
presidente Dilma Rousseff. Neste momento, produziram-se
acordos conciliatórios que resultaram na preservação dos
direitos políticos da mandatária afastada.
Todavia, com erros e acertos, a maior representação
jurídica do País precisa ser preservada gostem ou não
aqueles que manifestem reservas, em muitos casos
legítimas. Bulir com essa ou demais instituições políticas é
atentar contra a democracia e o princípio básico do
contraditório. A democracia preserva a coexistência de
opiniões diversas.
Quando o documento, entre outros óbices, aponta “a
ideologização nociva no ensino e cultura”, fica seriamente
comprometido, uma vez que se alguém identifica ideologia
no ensino é porque não admite interpretações distintas e
cabíveis no processo ensino/aprendizagem. A menos que se
tente robustecer o que Paulo Freire chamou de ensino
bancário, onde não há troca, mas tão somente um ensino
direcionado, centrado em cartilhas, longe do espírito do
desenvolvimento crítico no qual o argumento contraditório
deve ser incentivado. Isto é ensino democrático. A formação
de cidadania deve constituir a base curricular que
precisamos implantar para garantir a democracia.
As universidades devem abraçar a busca incessante pela
dignidade, pelo bem-estar, de forma a constituir
representações da democracia como bem social. Não cabe
cercear sua capacidade de investigação e de extensão. As
universidades contribuem para o exercício da democracia
no conjunto da sociedade.
Por fim, como óbice, o documento aponta a
centralização do Estado. O que está no fundo dessa
afirmação é a rejeição de seu papel indutor, uma vez que
seus críticos mais contumazes são os mesmos que tiram
suas ideias da lógica capitalista que induz à crença segundo
a qual o Estado seria um famigerado cobrador de impostos
que precisa ser desmontado em nome da eficiência.
Dessa lógica decorrem as privatizações de seus ativos.
Já se foi a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). A
Eletrobras foi recentemente privatizada. Agora, a
chantagem especulativa visa a Petrobras.
A democracia que temos não comporta mais limitações.
Reduzi-la a modelos que só interessam aos que desprezam
a soberania nacional é crime de lesa pátria. O avanço
avassalador do mercado é que constitui o grande desafio à
democracia.
Por fim, não cabe glorificar um Ocidente que ao longo da
história expandiu as práticas fomentadoras do escravismo,
do colonialismo, do imperialismo e agora se apresenta como
o centro da democracia universal, numa perversa
desvirtuação da história.
Um governo para a
era da guerra híbrida
Piero Leirner[32]
O chamado “Projeto de Nação” partiu de uma ampla
consulta realizada pelo próprio governo, que usou recursos
da Vice-Presidência e dos ministérios para elaborar uma
pesquisa ao longo de mais de um ano.
Segundo consta no site do próprio domínio “gov.br”,
trata-se de “uma parceria dos Institutos Sagres, Villas Bôas
e Federalista, [e] o “Projeto de Nação” é um Projeto de
Estado, alinhado com o arcabouço legal do país, com foco
na proposta de uma gestão estratégica competente do
Estado, no desenvolvimento responsável e perene, na
segurança nacional efetiva e no bem-estar e paz social,
criando condições objetivas para a justa felicidade do povo
brasileiro.
O projeto foi desenvolvido pelo Instituto Sagres, “com
uso de metodologia própria e por meio de articulação com
parceiros públicos e privados, instituições da sociedade civil,
meio acadêmico e um seleto grupo de especialistas que
pensam o Brasil”.
Como se viu amplamente divulgado pela imprensa, seus
responsáveis – especialmente o general Luiz Eduardo Rocha
Paiva, do Instituto Sagres – posteriormente negaram o
aspecto “governamental” do projeto.
No ato de lançamento, realizado no auditório da
Fundação Habitacional do Exército (FHE), Poupex, localizado
no Setor Militar Urbano, em Brasília, se aludiu ao momento
como fonte de inspiração para se implantar aqui, a partir do
plasma desses institutos, algo como a Rand Corporation – o
think tank norte-americano que dá diretrizes ao Pentágono.
A Rand tem como seus principais acionistas o Dept. of
Defense, Marinha, USAF, etc, e seu orçamento gira em torno
de 400 milhões de dólares por ano.
A alusão feita à Rand diz respeito ao modo em que eles
pensaram a “estrutura de governo” no “Projeto de Nação”,
que teria este correlato brasileiro atuando como um braço
auxiliar do “Centro de Governo” (CdG), cumprindo a função
de motor do “Sistema Integrado de Gestão Estratégica”,
proposto pelos autores.
Num exercício de futurologia, algo surreal (o cenário
pensado é o ano de 2035), o “Projeto de Nação” prevê que o
“Centro de Governo [teria] ferramentas para vencer uma
série de obstáculos, no sentido de orientar, coordenar e
garantir a convergência de estratégias e ações estratégicas,
ao tempo em que permite a aplicação de técnicas,
ferramentas e práticas flexíveis e adequadas às diferentes
realidades existentes entre instituições e nas unidades da
federação. O CdG foi um dos fatores que possibilitou ao
Brasil ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e
o Desenvolvimento Econômico), em meados da década de
2020”.
O “Projeto de Nação” foi pensado em eixos e temas. O
tema correlato ao “Centro de Governo” é o sétimo, e entre
suas diretrizes há três que gostaria de destacar:
– “Elevar a SAE [Secrretaria de Assuntos Estratégicos] ao nível de
Ministério, com atribuições para coordenar a formulação da EN
[Estratégia Nacional] e integrar o CdG e um Sistema Integrado
de Gestão Estratégica, elaborar e monitorar Cenários
Prospectivos, orientar os demais Ministérios/Secretarias na
condução das políticas e estratégias setoriais, por eles próprios
formuladas, a fim de garantir o seu alinhamento com a EN”.
– “Atualizar a estrutura e a organização do Estado e do governo,
de modo a regulamentar as mudanças necessárias à
implementação das medidas propostas nesse Tema Estratégico”,
– “Alinhar aos preceitos legais os Objetivos Nacionais, e que eles
sejam apartidários, amparados na modernização de processos
administrativos, bem como numa visão de futuro focada na
efetividade da gestão do Estado no cumprimento de suas
atribuições (desenvolvimento, segurança e bem-estar da
Nação)”.
Embora o texto seja construído como um exercício de
futurologia, gostaria de argumentar que ele na prática dá
um verniz ideológico a algo que já está em curso no Brasil
pelo menos desde 2018 e que foi pensado e executado
pelos mesmos atores envolvidos na sua concepção –
generais que nos últimos anos ocuparam cargos
estratégicos nos comandos militares e no Gabinete de
Segurança Institucional (GSI).
Por incrível que pareça, podemos dizer que o “Projeto de
Nação” praticamente inventa um novo tempo verbal, o
“pretérito do futuro”.
Permitam-me assim apresentar alguns pontos que
mostram que, na realidade, o “Projeto de Nação” só dá uma
cara mais palpável a algo que já está sendo pensado e
implementado há algum tempo.
Chamou a atenção de algumas pessoas, quando da
edição da Medida Provisória (MP) 870, em 1º de janeiro de
2019, que estabeleceu a organização básica dos órgãos da
Presidência da República e dos ministérios, o fato de o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF)
passar sua subordinação do (extinto) Ministério da Fazenda
para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, então
chefiado por Sergio Moro.
Numa visão acrítica, boa parte da mídia repercutiu que,
afinal, como se tratava de órgão que tendo por “missão
produzir inteligência financeira e promover a proteção dos
setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o
financiamento do terrorismo”
(http://www. fazenda.gov.br/orgaos/coaf, acessado em
17/02/2019), nada seria mais justificável, pois se tratava de
uma espécie de continuação de um amplo “projeto de
combate à corrupção” iniciado pelo ex-juiz da Lava Jato.
Entendia-se que tudo era parte de um grande processo
de reforma do Estado. O “combate à corrupção” parecia se
alavancar com uma solução administrativa que contava
com ampla expertise militar, que se difundia em cargos e
ministérios sob controle fardado.
Falo isso pois, parto do entendimento não-trivial de que
os elementos que levaram a essa “nova estrutura do
Estado”, sobre a qual versa a MP, dizem respeito a algo de
difícil compreensão, que é o fato de militares emprestarem
à política as categorias que usam para pensar (e realizar) a
guerra, formando assim um “sistema híbrido”.
Voltarei a este ponto, mas antes gostaria de chamar a
atenção para a mesma MP, que apresenta um ponto muito
menos discutido, que explicita este movimento de maneira
mais clara.
Trata-se de uma linha de um parágrafo do item “G” do
Artigo 5º da MP, aquele que fala das atribuições da
“Secretaria de Governo da Presidência da República”
(SGBR).
Antes de passar a ela, cabe lembrar do que se trata(va)
tal Órgão:
“Secretaria de Governo do Brasil é uma secretaria com status de
ministério ligada à Presidência da República. Foi criada em 2 de
outubro de 2015, pela presidente Dilma Rousseff, resultado da
fusão da Secretaria-Geral da Presidência, Secretaria de Relações
Institucionais, Secretaria da Micro e Pequena Empresa e do
Gabinete de Segurança Institucional.
Durante o Governo Michel Temer, a Secretaria-Geral da
Presidência e o Gabinete de Segurança Institucional foram
recriados. Com isto, a Secretaria de Governo ficou apenas com
as atribuições de Relações Institucionais, ligadas à articulação
política”.
Como sabemos, quando Temer desmembrou a SGBR e
recriou o GSI – pasta ocupada pelo general Sergio
Etchegoyen – toda essa área de inteligência e “segurança
do Estado” passou a ser centralizada pelo militar. A edição
do decreto nº 9.527, de 15 de outubro de 2018, deu, enfim,
uma forma mais centralizada ao GSI, concentrando nas
mãos de quem o ocupa um poder de “chefe de conselho de
guerra”.
O Decreto cria uma “força-tarefa” que, no fundo,
centraliza as seguintes competências:
“A Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime
organizado no Brasil será composto por um representante, titular
e suplente, dos seguintes órgãos:
I – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da
República, que o coordenará;
II – Agência Brasileira de Inteligência;
III – Centro de Inteligência da Marinha do Comando da Marinha
do Ministério da Defesa;
IV – Centro de Inteligência do Exército do Comando do Exército
do Ministério da Defesa;
V – Centro de Inteligência da Aeronáutica do Comando da
Aeronáutica do Ministério da Defesa;
VI – Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério
da Fazenda;
VII – Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da
Fazenda;
VIII – Departamento de Polícia Federal do Ministério da
Segurança Pública;
IX – Departamento de Polícia Rodoviária Federal do Ministério da
Segurança Pública;
X – Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da
Segurança Pública;
XI – Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da
Segurança Pública”.
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Decreto/ D9527.htm, acessado em 17/02/2019)

Ainda que criado um pouco antes das eleições, já nos


estertores do governo Temer, tudo leva a crer que se tratou
de estabelecer a armadura para um governo “amigo”,
poupando-o do ônus de criar superpoderes para o general
que ocuparia a pasta (no caso, veio a ser o general Augusto
Heleno).
Não bastasse isso, voltamos à tal “alínea” da MP 870:
“g) na implementação de políticas e ações destinadas à
ampliação das oportunidades de investimento e emprego e da
infraestrutura pública;
II – supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as
atividades e as ações dos organismos internacionais e das
organizações não governamentais no território nacional”.

Ou seja, ao somarmos as atribuições do Decreto


9.527/18 e da MP 870, veremos a interconexão dos órgãos
de inteligência com aqueles responsáveis tanto pela
administração das políticas de governo quanto pelo
gerenciamento das relações entre o Estado e seus recursos
– através da Receita e do próprio Ministério da Fazenda
(renomeado da Economia).. Isso claramente duplica as
funções do GSI.
Além disso, vimos o estabelecimento de outros decretos:
– o Decreto nº 9.819, de 3 de junho de 2019, que
regulamenta a Câmara de Relações Exteriores e Defesa
Nacional do Conselho de Governo, mas que na verdade
subordina todas as políticas “críticas” ao GSI – de fronteiras
a índios; de crime às atribuições de infraestrutura, e por aí
vai;
– o Decreto nº 9.830/2019, que protege toda a
Burocracia Militar contra possíveis atos dolosos em ações de
segurança – e tudo que está sob o guarda-chuva da
segurança, ou seja, pelo “Projeto de Nação”, o governo
inteiro;
– o Decreto nº 9.794/2019, que faz passar pelo GSI o
carimbo para os cargos federais.
Há ainda outras leis em tramitação, que tendem a
finalmente fechar o desenho de algo parecido ao que seria o
nosso “patrioct act”, mas que por não estarem efetivadas
neste momento não vou discutir aqui, ainda que valha a
pena listá-las. Entre outros, o PL 2.418/2019 – que prevê
monitoramento de redes sociais, elaborado em conjunto
com o PL 3.389/2019, que acaba com o anonimato nelas; o
PL 443/2019, que transforma em crime a militância e
ocupações, manifestações, etc; e o PL 1.595/2019, que
redefine o escopo do “terrorismo”.
Na redação de todos esses dispositivos legais é possível
ver os elementos que estão no “Projeto de Nação” que veio
à tona recentemente. Note-se que eles foram redigidos no
começo de 2019, portanto não é implausível que sua
redação tenha sido pensada durante algum tempo, mesmo
antes de Bolsonaro tomar posse.
Considerando isso, o tal projeto estica para 2035 algo
que já vem ocorrendo desde 2018 pelo menos, que é a
substancialização de um “governo da guerra”.
Nesta forma – híbrida, pela sua natureza militar e política
– está o desenho de um novo Estado, “reinicializado em
modo de segurança”, que subordina o controle de todas as
esferas ao crivo militar.
Trata-se, assim, de um projeto para uma “era da guerra
híbrida” no Brasil.
Mudança na
Administração Federal
Guilherme A. Lemos da Silva Moreira[33]
A visibilidade midiática dada ao “Projeto de Nação” (ou
“Grande Estratégia Nacional” e, por vezes, “Estratégia
Nacional”) desde o seu lançamento esteve fortemente
associada às temáticas do “globalismo”, “ativismo judicial
ideológico”, “mensalidades nas universidades públicas e
pelo atendimento no Sistema Único de Saúde”,
“desideologização do ensino” e “Amazônia”, que apesar de
constituírem elementos estruturantes do projeto acabaram
por “memeficar” quase todas as análises realizadas a
posteriori, deixando de lado, entre outros temas, a estrutura
administrativa do Executivo Federal vislumbrada no texto.
Tal estrutura encontra-se descrita nos dois temas iniciais
do eixo “Governança Nacional”, que versam sobre a
elaboração e implementação da Estratégia Nacional (EN).
Estes temas compõem também o “Projeto de Nação” e o
chamado “Sistema Integrado de Gestão Estratégica” (SIGE-
BR), que trataria de realizar a união entre outras duas
estruturas: a já existente Secretaria Especial de Assuntos
Estratégicos (SAE) e o nomeado “Centro de Governo” (CdG),
cuja criação é vislumbrada pelo documento juntamente com
o SIGE-BR.
Por um lado, os redatores do documento vaticinam a
necessidade de elevar a SAE ao nível de ministério a fim de
que coordene a formulação da EN, elabore e monitore
“cenários prospectivos” e oriente os demais
ministérios/secretarias na condução das políticas e
estratégias setoriais alinhadas com a EN. Por outro,
preveem que o próprio ministro-chefe da Secretaria presida
o CdG, órgão responsável por centralizar as orientações,
coordenações e convergências de estratégias e ações
estratégicas previstas para operarem nos âmbitos da União,
dos estados e do Distrito Federal.
À primeira vista, a criação do CdG ou do próprio SIGE-BR
parecem indicar uma dinâmica na qual a Presidência da
República, que exerce a mais alta chefia do Estado e do
governo brasileiro, transmuta-se simplesmente em um
órgão consultivo, ainda que guarde prerrogativas de
decisão. Conforme expõe o “Projeto de Nação”:
Quanto ao CdG, cabe identificar as diretrizes, em cada Tema, que
impactam mais de um Ministério/ Secretaria. Feito isso, o CdG
promove encontro desses órgãos para elaborarem o
planejamento conjunto para atender às diretrizes comuns. O
Ministério/ Secretaria mais impactado por uma diretriz terá a
coordenação do planejamento a ela referente. Nos casos de
impasse entre esses órgãos, que o CdG não consiga
solucionar, a decisão será levada ao Presidente da
República. (grifo nosso)

Para o “Projeto de Nação” trata-se de alterações na


“estrutura e [n]a organização do Estado e do governo”
brasileiros a serem implementadas via decreto e mantidas
“ao longo de sucessivos governos” até pelo menos 2035.
Isso teria sido “desejado pela maioria da população
brasileira, que se fez ouvir não somente em manifestações
de grande magnitude, mas principalmente nas urnas, em
sucessivos períodos eleitorais”. Apesar do aparente senso
de legitimidade popular empregado nestes trechos e em
muitos outros, no Brasil de 2035 a mais alta autoridade do
Executivo Federal seria não o presidente da República,
eleito pelo voto popular, mas sim o ministro-chefe da
Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, responsável
por presidir o Sistema Integrado de Gestão Estratégica. Este
duplo, SAE/CdG, executaria a gestão dos demais ministérios
e suas respectivas secretarias. Do Ministério de Minas e
Energia à Secretaria de Educação Básica do Ministério da
Educação, tudo passaria pelo ministro da SAE, o qual,
importante lembrar, não ocupa cargo eletivo.
Curioso notar que para além da falsa legitimidade
popular, os redatores preveem “reações” a estas alterações
antidemocráticas. Não por acaso, pretendem a imediata
realização de uma “[...] vigorosa campanha de comunicação
[social] para [...] convencimento da necessidade das
mudanças propostas [...], buscando se antecipar e
assumir a narrativa, antes que grupos ideológicos ou
com interesses grupais fragilizem a implantação
dessas mudanças” (grifo meu), medida que parece
complementar o desejo expresso de “neutralizar” e
“combater” o poder de “[...] correntes de pensamento
ideológico radical e utópico que advogam antivalores
culturais brasileiros”.
Tais medidas são patentemente antagônicas ao que
historicamente se entende como democracia. Empregam
gramática própria da guerra em que se “neutraliza” e se
“combate” inimigos, ao menos no imaginário de seus
idealizadores. Todavia, garantem seus autores, todos esses
elementos estariam em pleno acordo com as “[...] boas
práticas recomendadas pela OCDE” – Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – aos seus
países membros. O documento exterioriza ser a criação de
um Centro de Governo (CdG) na administração pública
federal a condição para que o país entre na Organização.
Ainda que os autores aleguem que o “Projeto de Nação”
não esteja relacionado com as Forças Armadas e com o
atual governo, construído, comandado e controlado
majoritariamente por militares que compuseram nas últimas
décadas o Alto-comando do Exército, é impossível dissociar
suas proposições da forma como as instituições militares,
em especial o Exército Brasileiro, historicamente
interpretam o país e a si mesmas. Os militares consideram-
se responsáveis por fornecer um projeto de nação a um país
fragmentado por interesses diversos e conflitantes, e
ausente de elites “honestas” e “nacionalistas”, como tem
observado o professor Piero Leirner. Além do mais, é notória
a presença de militares prestigiosos na confecção do
“Projeto de Nação” e o suporte de Comandos de Área e do
Estado-Maior do Exército na sua execução e lançamento.
Importante mencionar que o “Projeto de Nação”, que
prevê a estrutura administrativa aqui evidenciada por nós,
recebeu ainda suporte institucional e simbólico da Vice-
Presidência da República, pelas mãos do próprio general
Hamilton Mourão. O general Eduardo Villas Bôas, um dos
idealizadores do documento, é assessor especial do
Gabinete de Segurança Institucional do atual governo, o que
parece, no mínimo, contradizer a dissociação com o governo
federal, ensaiada em lives e esclarecimentos à imprensa,
pelos proponentes do projeto. Ao contrário, é fácil detectar
uma dinâmica na qual governo, Forças Armadas, institutos
proponentes e seus participantes parecem se “hibridizar”,
conforme observou Piero Leirner. Hibridização que se
dissimula no aparente caráter privado e civil (em oposição
ao militar) das instituições proponentes.
A sociedade deve atentar a esses processos de militares
falando expressamente em um documento público sobre o
desejo de se manterem no poder, de manterem o poder no
governo federal, independente da alternância decorrente do
processo eleitoral. Deveria também manter-se vigilante ao
fato de que é a intenção de “convencer os outros” que
separa uma simples vontade expressa publicamente de
uma ação política propriamente dita, o que parece até aqui
ter sido muito bem percebida e interiorizada pelos
proponentes do “Projeto de Nação”.
Involução e deturpação da
Inteligência Estratégica
Priscila Carlos Brandão[34]
Ana Penido[35]
O “Projeto de Nação” propõe uma reforma da atividade
de inteligência estratégica considerando o cenário de
permanência militar no poder até 2035. A proposta parte da
premissa de que, desde 2020, o Sistema Brasileiro de
Inteligência (SISBIN) passou por reformas estruturais que
promoveram integração, coordenação e qualidade de
serviço.
Mas como aferir a melhoria da qualidade no serviço? A
serviço de quem, como e para que serve esse sistema?
Em 19 de setembro de 1997, o Poder Executivo
enviou ao Congresso Nacional o PL no 3.651, que criava o
SISBIN. O PL tramitou por cerca de três anos e resultou na
Lei no 9.883/99, também responsável pela criação da
Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). O produto desse
debate foi uma legislação vaga e pouco prática, com um
conceito de inteligência que não diz nada, porque diz que
praticamente tudo a ela pode caber.
A lei também não regulamenta a relação entre os órgãos
que compõem o SISBIN, sugerindo apenas uma
coordenação de fluxo de informações. Na realidade, é
impossível definir relações institucionais de comando entre
os diferentes órgãos do SISBIN, já que cada um pertence a
corporações distintas e por vezes rivais na disputa por
orçamento e vantagens corporativas.
Mesmo que os anos de 2000 e 2002 tenham lhe
fornecido contornos mais objetivos, com a criação do
Sistema Brasileiro de Inteligência de Segurança Pública e do
Sistema Nacional de Defesa, inexiste mandato para o
sistema atuar como catalisador e coordenador. Não há como
a ABIN, sua agência central, subordinar um órgão de
inteligência da Polícia Federal ou do Exército ao seu
comando, por exemplo. Isso só seria possível por meio de
uma atuação autoritária, que permitisse a interferência do
Poder Executivo no setor. Mesmo na ditadura isso ocorreu
apenas parcialmente, por meio da emergência do Sistema
de Segurança Interna e dos DOI-CODI´s, criados pelas
Diretrizes Secretas do governo Geisel. O problema não foi
resolvido, pois o controle do sistema ficou sob
responsabilidade do Exército, a quem a Aeronáutica e a
Marinha não deviam obediência, como foi assinalado na
tese de doutorado de Priscila Antunes, “SNI&ABIN: uma
leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo
do século XX” (São Paulo, FGV, 2002).
A rivalidade entre os componentes do sistema,
associada ao crescimento exponencial da presença militar
em órgãos civis desde o golpe de 2016 e ao autoritarismo e
desrespeito às regras do jogo democrático recentes,
explicam a anomalia do funcionamento do que temos hoje,
por exemplo, transfigurado na Força Tarefa de Inteligência
(FTI), criada para o enfrentamento do crime organizado no
final do governo Temer.
A atividade de inteligência constitui-se em uma função
pró-ativa e no Brasil não há instrumentos legais para a
realização de interceptações telemáticas que não estejam
enquadradas no andamento de uma investigação, sendo
que a autorização para quebra de sigilo está condicionada à
existência de crimes passíveis de reclusão e não só de
prisão.
É óbvia a necessidade de um país deter mecanismos de
investigação contra o crime organizado, entretanto, essa
definitivamente não é uma atribuição das Forças Armadas e,
se o fazem, é por conta do legado da nossa transição
inacabada. A regulamentação da ABIN não lhe concedeu
mandatos específicos para o afastamento do sigilo
telemático no território nacional.
A FTI está subordinada a uma rede militarizada que tem
no topo o Gabinete de Segurança Institucional, quando o
enfrentamento ao crime organizado deveria ser
operacionalizado pelas polícias. Historicamente, constata-se
o baixo interesse das polícias, sobretudo da Rodoviária e
Federal, em participar da FTI, evitando mandar
representantes para as suas reuniões, como assinalou
Fernando Ameno em “À margem da Lei: forças armadas
tomaram conta de super aparato de inteligência de
Bolsonaro” (27.09.2021).
Considerando a defesa do cidadão, não há a mínima
viabilidade de controle sobre o que os militares estão
fazendo com os instrumentos de inteligência mobilizados
por meio da FTI e que não são assegurados nem a eles e
nem à ABIN. Qualquer regularização desse sistema, que tem
funcionado de forma questionável do ponto de vista legal,
exige mudanças constitucionais, como assinalado no
“Projeto de Nação”: “atualizar a legislação que regula a
atividade de Inteligência, para permitir a seleção de quadros
vocacionados e experientes, no âmbito do Serviço Público e
do mercado, e para garantir segurança jurídica para o seu
exercício”.
Esta diretriz materializa um estratagema para alterar a
legislação que regula o direito à privacidade do cidadão,
concedendo poderes de “espionagem” a distintos órgãos,
que acabam por não ser controlados pela Comissão de
Controle da Atividade de Inteligência (CCAI). Embora a CCAI
esteja marcada pela inércia desde sua criação, situação
agravada desde que passou a ser controlada pelo deputado
federal Eduardo Bolsonaro, é o único órgão com poder
efetivo para fiscalizar os diferentes órgãos que executam a
atividade de inteligência.
O item 33 do “Projeto de Nação” abre a possibilidade de
nomeações de pessoas sem concurso. Se no serviço público
em geral essa modalidade de contratação causa problemas,
no caso do serviço de inteligência possibilita recrutar
espiões e informantes com acesso e proteção do sistema,
mas sem preparo profissional nem mandato legítimo para o
uso dos recursos que serão disponibilizados.
Um esboço desse cenário pode ser visto recentemente,
com as nomeações irregulares de agentes da ABIN para
atuar em outros órgãos governamentais, sobretudo
naqueles com responsabilidade de prover soluções sobre
pautas ambientais e direitos humanos. Agentes são
nomeados reservadamente, identificados apenas pelo seu
número de matrícula, criando um ambiente de hostilidade e
intimidação entre colegas de trabalho, conforme Vasconcelo
Quadros (“Governo Bolsonaro implanta agentes da ABIN em
diversos Ministérios, Pública, 2020). Estes agentes elaboram
dossiês contra opositores do governo e realizam ações
sigilosas no interior de outros órgãos, lembrando a atuação
das Divisões de Segurança Interna e das Assessorias de
Segurança Interna existentes durante a ditadura.
Os “óbices” identificados pelos militares no “Projeto de
Nação”, ao aperfeiçoamento do sistema, merecem atenção.
• Dificuldade do consenso. (Na realidade, o dissenso é a
base do sistema democrático e é imprescindível para seu
aperfeiçoamento).
• Deficiência nas ações de contrainteligência nas
ameaças internas e externas. (No Brasil, o termo
contrainteligência é um guarda-chuva que empresta
legitimidade a diferentes tipos de ação, notadamente
àquelas que ocorrem no ambiente doméstico, direcionadas
ao controle de movimentos sociais).
• Falta de segurança jurídica. (Desejam liberdade para
espionar e utilizar tecnologias intrusivas, sem precisar
assumir responsabilidades por eventuais violações
constitucionais).
• Existência de disputas de poder entre componentes do
sistema. (A disputa por recursos escassos entre
organizações é fato. Esse desafio deve ser resolvido com a
ampliação de mecanismos de cooperação).
• Dificuldade de obtenção de pessoal especializado em
análise e operações. (Essa reivindicação traz implícito o
desejo por mais vagas e maiores salários, de parcerias com
outros países para o treinamento em “soluções” que muitas
vezes não são adequadas para o nosso país, e de liberdade
de contratação, com verbas que não precisam ser
explícitas).
• Fim da exigência de concurso com identificação
ostensiva dos candidatos. (Isso é inviável diante da
ineficácia dos nossos mecanismos de controle externo sobre
a inteligência).
• Preconceito em relação à atividade. (Esta observação
remete à necessidade de autocrítica).
• Falta de compreensão das finalidades do SISBIN. (A lei
não as esclarece, sendo que os militares seguem orientados
pelo conceito de segurança nacional datado da Guerra Fria,
que tem a população como alvo prioritário).
• Deficiência no compartilhamento de informações. (São
os próprios militares que doutrinam sobre a concepção de
que informação é poder).
• Rodízio frequente de membros do subsistema militar.
(O funcionamento do subsistema militar obedece à lógica
corporativa dos próprios militares).
• Ameaças de ataques cibernéticos aos sistemas
computacionais. (De fato, essa é uma área prioritária que
merece atenção e que já seria aperfeiçoada a partir da
atenção cuidadosa às regras de segurança orgânica).
• Possibilidade das potências estrangeiras tentarem
influenciar o sistema. (Essa pressão faz parte da rotina
dessas potências, as quais variam de acordo com os
interesses envolvidos, e se torna mais evidente em
momentos de definição sobre a aquisição de programas
específicos).
• Desvio de finalidade de parte dos servidores. (Seria
cômico, se não fosse trágico, pois as Forças Armadas têm
sido uma das maiores deturpadoras de sua própria função).
• Sindicalização dos profissionais de inteligência. (Todos
os argumentos acima mencionados já explicitam o desejo
de controle autoritário sobre o sistema).
Em suma, existe um problema básico que norteia essa
discussão. Desde a fundação da República, os militares
seguem árduos defensores da nossa elite e nunca tiveram
como objetivo os interesses dos cidadãos brasileiros. O
documento recorre a um discurso estapafúrdio e anacrônico
orientado pelos dilemas da Guerra Fria, para assegurar os
privilégios da elite militar e daqueles por ela acolhidos.
Partindo desse princípio, a segurança (e o trabalho de
inteligência) no Brasil tem como finalidade frear a atuação
política de segmentos descontentes com o cenário político e
ávidos por debate e inclusão.
Um sistema de inteligência estratégica em um país
democrático exige a criação de um órgão central, dotado de
uma cultura institucional efetivamente democrática e
estratégica em termos de inserção no sistema internacional;
com mandato para evitar a superposição, a duplicidade de
esforços, o desperdício de tempo e de recursos humanos e
financeiros e, principalmente, subordinado ao sistema de
freios e contrapesos do sistema democrático.
Rebeliões da nova tecnocracia
antidesenvolvimentista
Marcio Pochmann[36]
A ruína da sociedade industrial, em marcha no Brasil
desde o ingresso na globalização nos anos de 1990,
impactou direta e indiretamente a elite instruída a operar os
poderes estabelecidos por instituições e entidades públicas
e privadas de controle da ordem. O termo establishment
trazido pela literatura anglo-saxônica, por se referir à ordem
ideológica, política e econômica, adequa-se ao objetivo de
considerar exclusivamente o segmento social com forte e
intensa influência nas decisões nacionais, muitas vezes sem
consentimento da maioria da população.
Mais especificamente, a elite instruída instalada no
interior dos aparelhos de Estado, seja civil, seja militar,
desde a década de 2010 mobiliza intensas rebeliões no
establishment do país. O aviso de incêndio foi dado a
partir do levante popular denominado por jornadas de
junho de 2013, seguido da operação Lava Jato, iniciada
nove meses depois, em março de 2014.
Do não reconhecimento do resultado da eleição
presidencial pela oposição derrotada em outubro de 2014
até a retomada do maior prestígio das Forças Armadas,
produzido pelo governo Temer, foram menos de dois anos.
Com o governo Bolsonaro (2019-2022), a presença de
militares em cargos civis no poder Executivo Federal saltou
de menos de 3 mil ocupados, em 2018, para mais de 6 mil,
em 2021. Em 70 órgãos da administração pública federal,
por exemplo, os militares ocupavam a inédita posição de
20% dos quase 15 mil cargos comissionados.
Em maio de 2022, cinco meses antes da eleição
presidencial, três instituições vinculadas à oficialidade
militar (institutos General Villas Bôas, Sagres e Federalista)
tornaram público o documento intitulado “Projeto de Nação:
O Brasil em 2035”. Por compreender que a sucessão de
eventos nos últimos dez anos não se forjou isolada e
espontaneamente, analisa-se, a seguir, ainda que
brevemente, o curso das rebeliões produzidas pela nova
tecnocracia antidesenvolvimentista.
O fim da tecnocracia desenvolvimentista
Ainda na condição de colônia, a crença na superioridade
do conhecimento técnico sobre o saber popular proliferou
pela dominação da minoria branca sobre os povos originais
e miscigenados, considerados inferiores. Mas foi a partir do
final do século 19, com a passagem para o capitalismo, que
a perspectiva de seleto e fechado segmento social
composto por intelectuais, profissionais liberais e
empresários permitiria reorganizar a governança da nova
ordem social em direção à modernidade.
Diante dos limites estabelecidos pelo Estado liberal
durante a República Velha (1889-1930), a Revolução de
1930 conseguiu combinar o ideário positivista com a
emergência das ideologias antiliberais lideradas pelo
movimento tenentista. A construção do Estado moderno,
sobretudo durante o Estado Novo (1937-1945), consolidou
as bases pelas quais o longo período de modernização
capitalista perdurou praticamente até a década de 1980.
A ideologia desenvolvimentista e o estilo tecnocrático
dos governos da época consagraram a centralização
administrativa como fundamental para sustentar o modelo
econômico de substituição de importações, após longo
período de hegemonia agrarista primário-exportadora. A
estruturação do novo establishment se fundamentou na
fração de classe social dos instruídos que, no interior do
Estado moderno em constituição, formatou a tecnocracia
desenvolvimentista na administração pública federal, tanto
civil como militar.
A partir da segunda metade da década de 1950, com a
formação da tríplice aliança entre os capitais privados,
nacional e estrangeiro, com o estatal, houve intensa
expansão das ocupações intermediárias no interior do
mercado de trabalho. A ascensão da classe média
assalariada nos setores público e privado atingiu o auge na
década de 1970, quando o Brasil, junto com a Coreia do Sul,
dois países de passado colonial e de condição periférica no
capitalismo mundial, tinha conseguido levar mais avante a
constituição da sociedade urbana e industrial.
Mas a partir da crise da dívida externa imposta pelo
programa de ajustamento hegemônico dos Estados Unidos,
logo no início da década de 1980, a tecnocracia
desenvolvimentista passou a sofrer intenso questionamento
interno e externo. De um lado, a posição de instituições
multilaterais como o Fundo Monetário Internacional e o
Banco Mundial contribuíram na propagação do Consenso de
Washington em vários países sul-americanos.
De outro, a internalização do receituário neoliberal teve
mais êxito com o ingresso do Brasil na globalização de
forma passiva e subordinada desde 1990. O Estado,
expresso por suas instituições e gestores administrativos,
visto até então como solução ao enfrentamento dos
problemas do subdesenvolvimento, passou a ser tratado
como o centro dos problemas nacionais.
Diante do constante desgaste imposto à antiga
tecnocracia desenvolvimentista, um novo establishment foi
sendo estabelecido, amparado na fundamentação dos
princípios mercantis, sobretudo pela ênfase na privatização
dos aparelhos de Estado. Na política do ajuste exportador,
adotada durante a crise da dívida externa (1981-1983), a
tecnocracia civil e militar instalada no interior da
administração pública foi afetada, pela primeira vez, com o
corte de benefícios e perda do status social.
Mas foi durante a Era dos Fernandos (Collor, 1990-1992,
e Cardoso, 1995-2002) que a tecnocracia
desenvolvimentista foi mais profundamente afetada. A
implantação do programa de privatização e gestão pública
com princípios privados ganhou maior ênfase com a reforma
do Estado definida em 1995, quando a visão da crise do
Estado associada aos governos desenvolvimentistas do
passado se tornou hegemônica. A maioria política para
destruição da “Era Desenvolvimentista” estava, finalmente,
posta em marcha desde os anos de 1990.
Com isso, o planejamento público e as políticas de médio
e longo prazo deram lugar à gestão das emergências, com a
função pública focada fundamentalmente no curtíssimo
prazo. O Estado, cada vez mais transformado em “pronto
socorro” da ruína da sociedade industrial, passou a cumprir
agenda imposta pelo novo establishment constituída pela
emergência regressiva que combinou a implantação da
plataforma internacional de financeirização de riqueza com
a volta do modelo econômico primário-exportador, operados
pela nova tecnocracia antidesenvolvimentista.
A tecnocracia antidesenvolvimentista
A perspectiva de salto tecnológico no capitalismo a
partir dos anos de 1970 tornou estratégica a preocupação
com a reorganização dos governos a partir da constituição
de uma nova tecnocracia de dimensão global. Ainda sob a
denominação de Comissão Trilateral, a sedução da inédita
hegemonia global era antecipada como possibilidade,
sobretudo desde os Estados Unidos, com o fim da Guerra
Fria (1947-1991).
Sob a unipolaridade liderada pelos Estados Unidos, a
pretensão do fim da História pareceria possível, cada vez
mais conduzida pela forma do pensamento único, próprio da
expressão massificada na época: não há alternativa a seguir
(There is not alternative – Tina). Mais uma vez, a fabricação
de ilusões padronizadas e extraídas da indústria cultural
passou a servir aos interesses dominantes, reproduzidos
massivamente em quase uníssono pelos meios de
comunicação e informação.
Na busca de sua legitimação, o processo de alienação
decorrente da formação de mentalidades cada vez mais
distantes da formulação do pensamento crítico. Nesse
sentido, assistimos à emergência de uma nova tecnocracia
que passou a conduzir temas de dimensão global como, por
exemplo, a Agenda 21, Desenvolvimento Sustentável,
Crescimento Inteligente e Parcerias Público-Privadas,
Terceira Via, Aquecimento Global/ Mudança Climática,
Créditos de Carbono, entre outros.
No caso brasileiro, a ascensão inicial de equipes
econômicas com ênfase na formação acadêmica nos
Estados Unidos terminou por secundarizar a visão nacional
desenvolvimentista – até então dominante. Contribuiu para
isso, por exemplo, a organização e expansão do ensino de
pós-graduação no Brasil durante os anos de 1970, ainda
gestada sob os pressupostos da Guerra Fria.
A partir daí, uma espécie de colonialismo mental
terminou contaminando parcela crescente da instrução
assentada na expansão pública e, sobretudo, privada do
ensino superior brasileiro. Sob a denominação de
capitalismo acadêmico, a formação universitária, salvo
exceções, processou-se sob a lógica do produtivismo
quantitativo de dominância tecnocrática globalista,
deslocada das reais necessidades e interesses nacionais.
Passo fundamental para isso foi a adoção do receituário
neoliberal que, a partir dos anos de 1990, transcorreu
associada ao ingresso passivo e subordinado do Brasil na
globalização. As consequências não tardaram, apontando
para o início da ruína da sociedade urbana e industrial, após
seis décadas de sua incompleta constituição, bem como a
formatação de nova tecnocracia antidesenvolvimentista no
interior do establishment do país.
A desarticulação do sistema produtivo, resultante do
abandono do modelo econômico de substituição de
importações, foi acompanhada pelo processo de
desindustrialização. A combinação da especialização
produtiva, provocada pelo retorno ao modelo econômico
primário-exportador, com a montagem interna da
plataforma de financeirização do estoque de riqueza velha
impactou profundamente as classes e frações de classes
sociais no país.
Inicialmente, ocorreu a metamorfose da burguesia
industrial em segmentos rentista ou comerciante no âmbito
do setor privado. De um lado, o deslocamento do capital
vinculado à parcela das unidades produtivas para ativos
financeiros, dependentes de taxas de juros elevadas para se
valorizar e, de outro, a substituição da produção nacional
por componentes importados, subordinada à defesa
constante da valorização cambial.
Em contrapartida, deu-se o declínio absoluto e relativo
do operariado industrial, cada vez mais empurrado à
condição de empreendedor de si próprio nas diversas
ocupações gerais, em sua maioria muito precárias. Na
mesma medida, os postos de trabalho pertencentes às
posições intermediárias e superiores na grande empresa
privada foram submetidos à regressão produtiva, cujo
resultado foi a conversão da classe média assalariada em
proprietária na diversidade dos pequenos negócios
(consultorias, assessorias, conta própria, independente,
microempreendedor).
No âmbito do setor público, a adoção do receituário
neoliberal comprometeu decisivamente o regime jurídico
único definido pela Constituição de 1988. De imediato, a
substituição dos concursos públicos pela implementação da
terceirização nas atividades consideradas meio à função
pública (segurança, transporte, alimentação, asseio e
conservação, secretaria e estoques de materiais, entre
outras).
Ao mesmo tempo, a privatização do setor produtivo
estatal foi seguida pela generalização dos princípios
privados no interior da gestão pública. Ademais da
crescente presença de organizações não governamentais, a
presença de critérios mercantis internalizados nas
atividades dos servidores civis e militares foi trazida pela
formação neoliberal, massivamente difundida no interior
dos aparelhos de Estado.
Em consequência, ocorreu a desvalorização das carreiras
públicas, com a perda de direitos produzidos por seguidas
reformas administrativas, previdenciárias, jurídicas e
institucionais. A reação a isso se deu formatada na defesa
crescente do corporativismo de determinados segmentos da
elite do funcionalismo público.
Entre os servidores civis na administração pública, por
exemplo, a insurgência do espírito de corpo terminou por
reacomodar um conjunto de carreiras de Estado (receita
federal, banco central, polícia federal, procuradoria,
judiciário, legislativo e outras) sob o manto
antidesenvolvimentista. Nesse sentido, a emergência da
ideologia e das práticas lavajatistas pode ser melhor
compreendida enquanto reação organizada pela nova
tecnocracia de mentalidade mercantil (não
desenvolvimentista) ao modo de governança operado até
então pela classe política submetida à dinâmica eleitoral
dominante.
Por outro lado, houve o reposicionamento do serviço
militar, especialmente de sua oficialidade, submetida à
constante desvalorização de suas carreiras e de cortes
orçamentários, próprio do rebaixamento das funções das
forças armadas às práticas coloniais. Ou seja, com a
desindustrialização, o esvaziamento do acesso ao
fornecimento nacional dos componentes tecnológicos e de
equipamentos militares, cada vez mais dependentes da
importação, solapava a noção de soberania da ação armada
da nação.
A reação da elite militar, dentro da perspectiva
neoliberal dominante, foi a de buscar a preservação do
status social e da relevância política com base na transição
para o modelo mercantil de forças armadas, não mais
desenvolvimentista. Pelo modo israelense de organização
da função armada no interior do serviço público, a
operacionalização militar passou a se espraiar nas diversas
atividades de natureza econômica, como saúde, educação,
segurança, infraestrutura, entre outras.
Por conta disso, a presença cada vez mais constante de
militares, seja de inativos, seja de ativos, no interior da
administração pública, revela o modus operandi da nova
tecnocracia de mercado assentada na incubação cultural do
empreendedorismo no interior das forças armadas. Para,
além disso, a apresentação pública em 2022 do documento
“Projeto de Nação” revela, no âmbito militar do serviço
público, a sucessão de rebeliões no interior establisment,
em sequência à ideologia e práticas lavajatistas, imposta
em consonância inicial com a elite civil da administração
pública.
Considerações finais
A noção de nova tecnocracia antidesenvolvimentista se
legitima nos valores mercantis adotados no comportamento
em relação ao público, na tomada de decisões e no
exercício de poder atribuído a especialistas, face à
apregoada competência técnica. Fundamenta-se, em
grande medida, nas mudanças ocasionadas no interior do
establishment a partir do ingresso passivo e subordinado do
Brasil na globalização desde os anos de 1990, quando a
maioria política antidesenvolvimentista se consolidou.
Diante da ruína da sociedade industrial, a antiga
tecnocracia fundada pela perspectiva desenvolvimentista
sofreu intensa reação, especialmente por sua elite instalada
no interior dos aparelhos de Estado. Seja civil, seja militar, a
nova tecnocracia se fundamentou condicionada pelo
receituário neoliberal, traduzindo o apego aos princípios
autoritários, cujas decisões tomadas não estão sujeitas,
necessariamente, ao controle ou questionamento da
população ou, até mesmo, da representação político-
eleitoral.
Segurança pública
no Brasil projetado
Luiz Eduardo Soares[37]
O documento que pretende formular um projeto para o
futuro do Brasil tematiza a segurança pública com
categorias do senso comum conservador, eximindo-se de
considerar o conhecimento acumulado sobre a questão,
negligenciando evidências disponíveis e confundindo
autodescrições formais das instituições com seu
desempenho efetivo.
O resultado é uma agressão à racionalidade: a reversão
do quadro dramático de insegurança proviria da reprodução
intensificada das práticas em curso. Em bom português, o
que se diz é que estamos no caminho certo, só é preciso
fazer mais do mesmo com intensidade redobrada.
Se a militarização das polícias nos trouxe à situação
presente, em que não há prevenção nem investigação, em
que prosperam corrupção e violações, em que os
profissionais se sentem desrespeitados, em que os gastos
bilionários são ineficientes, é porque a militarização não foi
suficiente: caberia radicalizá-la.
Se o encarceramento em massa tem se mostrado inepto
para a contenção da criminalidade e alimentado o crime
organizado, é porque seria preciso prender mais, mais
rápido, por mais tempo.
Se a guerra às drogas tem sido um sorvedouro inútil de
vidas e recursos, é porque não tem sido suficientemente
intensa.
Se o Brasil figura entre os campeões mundiais da
violência letal, o acesso às armas nada tem a ver com isso.
Se grupos milicianos, dos quais participam policiais,
ampliam seu controle territorial criminoso e despótico,
sobre isso o documento silencia.
Se a segurança privada informal mergulha as
instituições policiais no pântano da ilegalidade, subvertendo
relações de autoridade intrainstitucionais, corroendo a
disciplina e submetendo estratégias públicas a interesses
privados, nada disso é pertinente.
Se as ações do Estado em armas têm espelhado e
aprofundado desigualdades, em especial o racismo, e
promovido um genocídio de jovens negros e pobres, a
tragédia acontece em algum distante país, que sangra sob o
radar da sensibilidade oficial expressa no documento.
Registre-se: a violência policial letal, assim como a
desigualdade e o racismo, constituem não-temas, a
despeito de tudo o que sabemos sobre viés de classe, cor e
território da Justiça criminal e das ações policiais. Ao
desavisado que insistir no tema incômodo e lembrar que, no
estado do Rio, um terço dos homicídios é cometido por
policiais, e que execuções extrajudiciais permanecem
impunes, sob as bênçãos do Ministério Público e da Justiça
(de 2003 a 2021, 19.464 pessoas foram mortas por ações
policiais no estado do Rio), o documento responde propondo
a ampliação das garantias de impunidade às ações policiais.
Seria um engano, entretanto, tratar o documento como
um amontoado invertebrado de enunciados. Sob a colcha
de retalhos há uma estrutura ideológico-política que articula
diagnósticos e proposições, por mais primárias que sejam. O
fundo sobre o qual repousa o somatório de fórmulas é sólido
e consistente, quanto a objetivos e pressupostos, e só se
deixa apreender quando nos afastamos das categorias
alusivas exclusivamente à segurança pública e
contemplamos o projeto de poder em seu conjunto. O que
está em foco é a imposição de tutela das Forças Armadas
sobre a sociedade, elevando-as acima dos poderes da
República.
Observe-se que todo o movimento das ideias (conforme
assinalo adiante) aponta para um eixo: a autonomização
das polícias, seu extravio da rota democrática que as
submeteria ao controle externo pela sociedade ou pelo
Ministério Público, ao escrutínio da Justiça e ao comando
político civil. Mas não se trata de autonomia absoluta. Se,
de um lado, se postula a independência dos órgãos policiais
relativamente à autoridade civil, política e judicial, de outro,
o limite é ditado por sua subordinação ao Exército (ou às
Forças Armadas e à Justiça Militar), tácita e explicitamente
apresentado como titular exclusivo do direito ao uso da
força – direito elementar e constitutivo do próprio Estado.
Aqui está a essência do golpe histórico.
Nesse ponto preciso, há uma mudança no traço
distintivo do Estado: sua natureza enquanto detentor
monopolista dos meios de força e titular exclusivo do direito
de empregá-los com legitimidade (encontrando-se, aqui,
portanto, as dimensões fáticas e normativas, em sua
materialidade e em sua qualidade deontológica, o uso da
força “de fato” e “de direito”). Esse monopólio transfere-se
(como se estivéssemos diante de operações simbólico-
discursivas, marcadas por contiguidade metonímica) para
as Forças Armadas, as quais passam então a confundir-se
com o próprio Estado.
Dado que ambas as dimensões se justapõem, o fato e o
direito, o deslocamento dos atributos do Estado às Forças
Armadas se realiza. Em outras palavras: a condição
ontológica do exercício prático da força (de fato) absorve a
natureza deontológica da institucionalidade política, em que
se radica o Direito.
Essa absorção consiste em uma apropriação, porque
promovida como movimento agenciado por atores político-
ideológicos e corresponde à negação do direito e da política,
assim como à abdução da institucionalidade democrático-
republicana. Note-se que a absorção busca realizar-se em
diferentes níveis, simultaneamente: materiais, normativos,
intersubjetivos ou psicossociais, etc. O fato (a força)
subsume, atrofia, submete e na prática extingue o direito.
Aquilo que é, de fato, impõe-se, automaticamente, como
legítimo, embora a legitimidade já tenha perdido aqui toda
a substância, alienada de sua origem (a soberania popular)
e de seu destino (o bem público), em se tomando como
paradigma a própria tradição liberal do Estado de direito.
Sequestrado o último vestígio democrático, a soberania
é encarnada pela vontade dos detentores da força. Em
síntese, o que as Forças Armadas querem não é apenas
controlar as agências armadas, é libertar-se da autoridade
civil e subordinar a ordem política.
Como se vê, o discurso sobre segurança pública no
documento é apenas o avatar da abdução histórica, a
mediação oportuna, o preço que a prepotência militar paga
à razão cínica (resta identificar os interesses de classe e os
estratagemas geopolíticos). Sim, porque falar em segurança
sugere preocupação com o que é comum: direitos coletivos,
garantias, a vida, a incolumidade, a dignidade. Sugere
vocação pública. Soaria mal apresentar um projeto torpe e
rudimentar, comprometido com o pior de nossa história,
como um plano corporativista. É recomendável partir de um
solo comum. Eis aí o verniz civilizado dos que se pintam
para a guerra.
Na sequência, cito as propostas apresentadas no
documento e as comento.
1. “Estudar as vantagens e a viabilidade de criação de
Gendarmeria Federal de fronteiras, portos e aeroportos e de
uma Guarda Costeira, em conformidade com os casos de
sucesso de países amigos.”
Gendarmeria é uma organização militar. Sua eventual
criação aumentaria o elenco de instituições militares e
sugeriria sua vinculação às Forças Armadas, fortalecendo-as
em detrimento do investimento em forças civis e da
descentralização de entidades armadas – as quais deveriam
permanecer subordinadas à autoridade civil. A mesma
observação se aplica à proposta de criação de uma Guarda
Costeira. Em síntese: ambas as propostas são praticamente
consensuais, hoje, entre os profissionais e pesquisadores da
área. O problema está em sua natureza militar, com as
implicações já destacadas.
2. “Avançar o processo legislativo-normativo para
implementação do ciclo completo de polícia para as PMs e a
PRF.”
O estabelecimento do ciclo completo nas instituições
policiais é um imperativo da razão, da funcionalidade e da
experiência, desde que desmilitarizadas as polícias
ostensivas, preventivas, uniformizadas (as atuais PMs), isto
é, desde que suprimida sua dependência do Exército, direta
e indireta, constitucional e infraconstitucional. Caso
contrário, estendendo-se o poder de investigação às polícias
militares, produzir-se-ia no país a militarização da
persecução criminal, traindo-se princípios basilares da
Justiça no Estado democrático de direito.
Para demonstrá-lo, bastaria assinalar um ponto
estratégico: a autonomia do(a) investigador(a) não pode
sofrer o constrangimento da subordinação hierárquica. O
mesmo ponto deve ser destacado no questionamento da
legitimidade do Tribunal Superior Militar, do qual participam
membros das Forças Armadas, cujos vínculos com suas
instituições de origem são mantidos (ou seja, cuja
submissão aos respectivos comandos superiores permanece
vigente, erodindo sua independência).
3. “Estudar a reativação do Ministério da Segurança
Pública, priorizando a sua ocupação por profissionais da
área de Segurança Pública.”
O emprego do verbo priorizar dissolve a substância da
proposta, porque, a rigor, nada significa. De todo modo,
mesmo considerando-se apenas uma sinalização genérica e
subjetiva, deve ser rejeitada. Trata-se de um equívoco.
Usualmente se entende por “profissional da área de
segurança pública” o(a) policial, e não o conjunto dos
cidadãos e cidadãs que trabalham na área, a qual envolve
problemas e tarefas atinentes a vários campos de saber e
expertise. Nesse sentido, o correto seria ampliar a definição
do profissional de segurança para incluir formações diversas
e trajetórias multidisciplinares. Entretanto, dada a
prevalência da definição restritiva, pode-se afirmar que a
sugestão revela-se um erro, uma vez que um eventual
ministério da Segurança, assim como as secretarias
estaduais de segurança, deveriam servir sobretudo para
reforçar o exercício da autoridade política e civil,
responsável, em nome da sociedade, pela elaboração e
implementação das políticas públicas pertinentes.
Deveriam, portanto, atuar como contraponto ao isolamento
corporativista e às perversas dinâmicas de autonomização
inconstitucional.
4. “Criar grupo de trabalho na Secretaria Nacional da
Segurança Pública, para coordenação e troca de
informações pelo canal técnico com todas as PMs, PRF e
guardas civis.”
Curiosamente, exclui-se da rede a Polícia Federal,
endossando a postura isolacionista desta instituição, que
compete com o próprio ministério da Justiça, resistindo à
sua autoridade. É importante salientar que a subordinação
constitucional à autoridade política civil, ditada pela
Constituição, não se confunde com licença a governos para
que manipulem as polícias, segundo interesses privados.
Quanto às guardas civis municipais, cabe ponderar que
estão, hoje, no limbo legal, inchando à sombra de
ambiguidades e contradições, tendentes a se tornar
pequenas PMs em desvio de função (PMs, que, por sua vez,
converteram-se em pequenos exércitos em desvio de
função), copiando-lhes a estrutura organizacional e
reproduzindo seus problemas.
Há, ainda, na proposição, um silêncio e uma falha grave.
O silêncio diz respeito à questão fundamental, que antecede
a “troca de informações”: a produção nacional (operada em
cada estado, em cada município, por cada instituição) de
dados, sua categorização, qualificação, sistematização,
análise e distribuição. Está aí um dos principais pilares –
senão o principal pilar – de toda a complexa constelação
prático-organizacional da segurança. Pilar cuja ausência ou
precariedade arruína qualquer esforço compreensivo e
abrangente, e inviabiliza o funcionamento efetivo das
instituições, sobretudo enquanto sistema. Pois, no Brasil,
este pilar (sob responsabilidade predominante das polícias
civis) ainda está em vias de construção, enfrentando todo
tipo de dificuldade, sob o fogo cruzado de sabotagens,
disputas corporativistas, inércia burocrática, resistências
estamentais, manobras pseudo-políticas e negligências
oficiais.
Exposto, sumariamente, o motivo que justifica a menção
ao “silêncio”, passemos à “falha grave” da proposta, que se
encontra na alusão ligeira, que parece inocente e trivial, à
“coordenação”. Quem conhece, minimamente, ou
remotamente vivenciou o dia a dia da gestão pública, sabe
que não existe efetiva coordenação sem autoridade,
sobretudo numa área tão delicada e atravessada por
conflitos de poder quanto a segurança pública. Portanto,
não faz sentido a proposta de coordenação, formulada em
tom quase displicente, sem que se explicitem as reformas
institucionais (nesse caso, constitucionais) – envolvendo
redistribuição de poder – que teriam de precedê-la para
viabilizá-la.
5. “Promover reformas no arcabouço legislativo, jurídico
e prisional, de forma a reduzir a impunidade e tornar a Lei
efetiva, ágil e igual, de fato, para todos os atores da
sociedade.”
Esta proposta tematiza tudo e, por consequência, nada.
Que reformas seriam essas? A que impunidade se reportam
os autores da proposta, considerando-se que estamos em
um país que encarcera mais de 700 mil pessoas? E não falta
celeridade à punição, não falta “agilidade”, o que falta é
justiça: cerca de 40% dos presos brasileiros aguardam
julgamento – a agilidade da punição é inversamente
proporcional à provisão dos direitos. Ressalte-se que o
encarceramento em massa é seletivo, espelha o racismo
estrutural e a desigualdade de classes – mas a proposta não
menciona a necessidade de mudança da Lei de Drogas, que
respalda a chamada guerra às drogas, a qual tem se
revelado uma guerra racista contra os pobres.
Nossa Justiça criminal, indissociável da segurança
pública, despreza a equidade, que seria o pressuposto
fundamental da Lei com L maiúsculo, como registra o texto
da proposta. Portanto, para ser igual para todos, a Lei teria
de ser aplicada não só contra negros e pobres, e esses
teriam de se beneficiar das mesmas garantias que os
demais cidadãos do país. O Brasil já dispõe da Lei de
Execuções Penais (LEP), que nunca foi, de fato, cumprida.
Se fosse, as unidades penitenciárias não seriam
“masmorras medievais” dominadas por facções criminosas.
Em vez de especificar o teor das reformas, o texto da
proposta opta pela vacuidade e se exime de tematizar os
desafios substantivos.
6. “Estudar e propor uma Lei Nacional de Combate ao
Crime Organizado, que o tipifique e o detalhe e, também,
permita isolar, indiciar, julgar e condenar, de forma ágil e
rigorosa, aqueles a quem um juiz nela enquadrar.”
Mais uma vez, a opção é a generalidade e o endosso a
concepções equivocadas. Em vez de escolher a análise
concreta com base em evidências e se debruçar sobre o
conhecimento acumulado sem preconceitos e ilusões
ideológicas punitivistas, o que tem funcionado e o que não
tem sido efetivo, o que tem sido positivo e o que tem sido
contraprodutivo, os formuladores repetem o senso comum,
acriticamente, cegos para as pesquisas já disponíveis:
querem mais leis, leis mais rigorosas, agilidade.
Se tivessem compromisso com a realidade, examinariam
os efeitos do descumprimento da LEP e do encarceramento
em massa sobre o crescimento das facções criminosas.
Refletiriam sobre o impacto da Lei de Drogas no aumento da
criminalidade, na degradação das instituições e na
disseminação do tráfico de armas. Avaliariam as implicações
desastrosas da flexibilização do acesso a armas e munições
e o significado (quanto a pressupostos e consequências) do
descontrole policial, cujas raízes são as políticas de
execução extrajudicial e a tolerância ao envolvimento de
policiais na segurança informal e ilegal, cujo efeito ostensivo
e dramático é a expansão das milícias. Não há referência,
no documento, às milícias, as quais representam a forma
mais grave de crime organizado, pois expressa a
decomposição do Estado e a intensifica.
7. “Aprimorar a legislação referente às audiências de
custódia e aos ‘saidões’, de modo a corrigir as distorções
atualmente observadas.”
As organizações de direitos humanos e as Defensorias
Públicas têm feito o mesmo apelo no que se refere às
audiências de custódia, ineficazes para proteger garantias
individuais e reduzir o encarceramento em massa – que se
prolonga sem julgamento e sem defesa apropriada. Em vez
de mencionar os “saidões”, o foco crítico deveria ser a fé
pública inconteste dos policiais e o fato de a cumplicidade
corporativista, os incentivos políticos e ideológicos à
violência policial, até mesmo à tortura, e o imobilismo do
Ministério Público – traindo seu dever constitucional de
exercer o controle externo da atividade policial – ter
concorrido para promover iniquidades, seja nas prisões, seja
na brutalidade policial letal. As audiências de custódia têm
sido incapazes de reverter esse quadro.
8. “Reformular a Secretaria Nacional Antidrogas, de
modo a aprimorar os índices de efetividade, aplicando as
melhores práticas internacionais.”
As melhores práticas internacionais apontam para a
progressiva descriminalização e posterior legalização das
drogas. A bússola do documento perdeu o prumo e o trem
da história: aponta para o passado, porque lhe importa
reafirmar convicções, em vez de extrair lições da
experiência.
9. “Criar uma secretaria de pesquisa técnico e científica,
que substitua as organizações não especializadas na área
de Segurança Pública na compilação de dados e análise
estatística de criminalidade.”
Aprendemos com Quine, mestre da lógica, que a melhor
hermenêutica deve se orientar pelo princípio da caridade,
segundo o qual formula-se hipótese que atribua ao
enunciado em exame o sentido mais consistente possível.
Somente mediante o descarte desta hipótese favorável de
leitura alcançar-se-ia, racionalmente, a conclusão definitiva
de que o enunciado em questão não se sustenta.
Acolhamos caridosamente a proposição número nove,
que exigiria supor que as organizações não especializadas,
ou não técnico-científicas referidas são os setores das
polícias que compilam, processam estatisticamente e
analisam dados criminais. Se a proposta recomenda sua
substituição (por organizações especializadas) é porque a
autoridade do Estado (ao qual se dirigem as propostas)
incide sobre elas. E se a autoridade estatal incide sobre
elas, podendo delas dispor, substituindo-as, é porque elas
estão no interior do Estado ou sob o seu poder. Caso a
organização fosse entidade da sociedade civil, um fórum de
segurança pública, um centro acadêmico de pesquisa, um
núcleo da sociedade civil, não haveria como efetuar a
“substituição”. A menos que isso se desse pela supressão
da divulgação pública das informações, graças à qual as
entidades de pesquisa exercem suas atividades. A
opacidade asfixiaria os estudos, mas essa medida
pressuporia a mudança de regime político (da democracia,
embora precária, para a ditadura), não explicitada na
proposta. Portanto, a interpretação benigna confere à
proposta a intenção positiva de qualificar estratos policiais
que atuam na área de dados – deslocando-os para uma
secretaria autônoma em cada estado (o Rio de Janeiro
inovou, criando o Instituto de Segurança Pública, ISP, em
1999, que guarda independência maior do que aquela de
que poderia dispor uma secretaria).
Entretanto, para que fizesse pleno sentido e não fosse
mais que uma boa intenção genérica, deveria ser mais
precisa, o que nos leva de volta à problemática tão
desafiadora dos dados, já referida.
10. “Criar Forças Tarefas Especiais entre a Polícia
Federal, PGR e Judiciário Federal, em cada estado, com foco
em combate à corrupção de grande porte nos governos
estaduais e municipais.”
Esta proposta não faz sentido fora do campo das teorias
conspiratórias, que lhe atribuiriam a intenção de erguer a
espada de Dâmocles sobre executivos estaduais, mantendo-
os politicamente coagidos, chantageados. A proposta
corresponde a um golpe institucional, ao sobrepor ao
ordenamento republicano uma prótese pseudoinstitucional,
ad hoc, que o desloca, artificialmente, para neutralizar a
autonomia federativa e a independência dos poderes.
11. “Ampliar e especializar as atribuições da Secretaria
Nacional Antidrogas, de modo a coibir a apologia aos crimes
de consumo e tráfico de drogas no âmbito da sociedade.”
Esta proposta repete a número 8 e merece o mesmo
comentário.
12. “Garantir os recursos necessários aos PROERDs
(Programas de Educação para Resistência as (sic) Drogas)
das PMs, para o cumprimento das metas estabelecidas em
relação ao público-alvo.”
Eis outra demonstração de desconhecimento de
pesquisas disponíveis e de desprezo pelas evidências. Os
programas citados nunca foram efetivos, como demonstram
os estudos. Policiais ensinando estudantes a evitar as
drogas: alguém de bom senso imaginaria que o programa
pudesse ter sucesso? O tema é sério e as propostas têm de
partir da experiência acumulada. Estão em jogo dinheiro
público, o trabalho de profissionais, credibilidade de
instituições e problemáticas complexas como culturas
jovens e a saúde mental de adolescentes. Não cabe
improvisar e agir irresponsavelmente para fazer, direta ou
indiretamente, a apologia da guerra às drogas. As
substâncias ilícitas implicam em distintas formas de
demanda e consumo, se relacionam de formas
diferenciadas com as configurações comportamentais.
Visões reducionistas que generalizam são equivocadas e
contraproducentes. Nessa matéria, os desafios maiores são
o alcoolismo e o tabagismo.
13. “Iniciar programas de cooperação com países de
similaridade legislativo-cultural para instrução, inteligência
e operações internacionais, principalmente o policiamento
preventivo.”
A colaboração internacional é importante, mas por sua
complexidade e pelos riscos envolvidos não pode ser
tratada de modo superficial e leviano. Esse tem sido o
terreno pelo qual se infiltram agências internacionais,
sobretudo norte-americanas. Convênios possibilitam, não
raro, prebendas e os privilégios operam a cooptação de
profissionais. Mais grave é a colonização ideológica que vem
consolidando as tradições autoritárias, racistas e classistas.
Nos últimos anos, vimos a danosa articulação entre juízes,
promotores e policiais brasileiros com agências norte-
americanas.
14. “Atualizar a legislação que regula as PMs, valorizando
os altos comandos dessas corporações, de modo a limitar a
ingerência político-partidária na carreira dos seus quadros e
no cumprimento de suas missões, bem como a fortalecer
sua ligação com o Exército, haja vista a condição de
reservas da Força Terrestre.”
Esta proposta é a contrafação de um projeto de
modernização, racionalização e democratização do modelo
policial brasileiro. O país precisa de polícias ostensivas não-
militares sem cordão umbilical com o Exército, capazes de
exercer o ciclo completo, assumindo responsabilidades
territorialmente complementares às assumidas pelas atuais
polícias civis, que, por sua vez, no cenário ideal, também
desempenhariam o ciclo completo das atividades policiais,
sem necessidade de unificação.
O documento elenca o que denomina “óbices”.
Dividindo-os em blocos, examinemos alguns, especialmente
reveladores do que, de fato, está em jogo:
A. “Ocupação de cargos de nível Político-Estratégico na
área de Segurança Pública por agentes políticos e
ideológicos.”
B. “Preconceito à ocupação de cargos de nível Político-
Estratégico por oficiais das Polícias Militares.”
O primeiro bloco sugere a necessidade de alinhamento
político-ideológico (para usar categorias do documento) e
de subordinação institucional dos cargos de nível “Político-
Estratégico” à hierarquia cujo vértice é o comando militar. O
repúdio a “agentes políticos e ideológicos” indica sem pudor
que os autores do documento não se identificam como tais.
Deduz-se a existência de um contingente de agentes
políticos e ideológicos que não são “políticos e ideológicos”,
isto é, que são neutralizados por sua identificação com os
proponentes e com o espírito desse sujeito “indeterminado”.
O item B esclarece qualquer dúvida.
C. “Ausência de órgão técnico-científico no Governo
Federal que substitua ONGs financiadas com capital
estrangeiro na compilação, análise e relatórios de índices
criminais no país.”
D. “Poder político e sociocultural de lideranças
ideológicas interessadas no descrédito do Estado, no
tocante à sua atuação no combate à criminalidade.”
O segundo bloco reforça a lógica apreendida na leitura
atenta do primeiro. Os meios institucionais de força devem
se vincular aos comandos militares, eximindo-se de
controles externos. A ideia do externo, que remete ao social,
aqui ganha foros xenófobos quase cômicos, com a alusão ao
“capital estrangeiro”. Quando toda permeabilidade a
controles e comandos externos for suprimida, sê-lo-á
também a amarra normativa, até porque não restará
nenhum instrumento para avaliar, cobrar e corrigir desvios
legais e inconstitucionais. A partir desse momento, os meios
de força dar-se-ão sua própria lei (eis a liberdade sonhada
por Rousseau, aqui na versão pesadelo: em lugar do
cidadão dar-se a si mesmo a lei que deve obedecer, as
Forças Armadas proverão a si mesmas – e a seus apêndices
– essa liberdade).
Em síntese, a força será a lei. Eis a magia terrificante: o
fato vira direito instantaneamente. A postulação nada tem
de engraçada, constitui uma ameaça: essas ONGs devem
ser “substituídas”. Não se está propondo a criação de uma
agência, mas a substituição, o que envolve deslocamento,
supressão, violência, seja por bloqueio no acesso a dados,
seja por censura. O que está em jogo é uma política sombria
gestada por não-agentes político-ideológicos. Esse
contrapoder blindado, que emerge como antiEstado
democrático de direito, exalta a virtude perversa do
solipsismo obscurantista.
E. “Falta de vetor de accountability nas decisões judiciais
com a devida responsabilização por desídia, má fé ou
corrupção.”
F. “Lentidão e leniência do sistema judicial.”
O terceiro bloco poderia suscitar uma leitura benigna,
fosse outro o contexto. No âmbito do documento sob
análise, seria, mais que ingenuidade, erro crasso. O que
está no horizonte é o acuamento da independência do
Judiciário. A hermenêutica sistêmica, neste caso, não
autoriza tergiversações.
G. “Falta de política pública clara de combate à
impunidade, ao consumo e ao tráfico de drogas.”
H. “Perda de controle social pelo Estado em amplas
áreas urbanas.”
I. “Dificuldade para reverter o crescimento dos índices
negativos dos indutores de violência: consumo e tráfico de
drogas ilegais; desagregação familiar; desmotivação e
evasão escolar; promoção de antivalores culturais
contrapostos a valores como honestidade, verdade,
civilidade, bem, moralidade, lisura, respeito à coisa pública,
liberdade de pensamento, vida; e outros.”
O quarto bloco conclama à intensificação da “guerra às
drogas”, indiferente às evidências. A oração bélica cumpre
papel simbólico para mobilizar opiniões e agregar apoios,
sinalizando o caráter antilaico do confronto entre o bem e o
mal. A referência à perda de controle social funciona como
um ato falho, porque é do controle social (democrático) que
se quer escapar do início ao fim desse “plano de
segurança”. A essa altura, já compreendemos qual a
natureza do controle evocado, qual o sujeito, qual o objeto,
quais as metodologias. O último item – amálgama de
platitudes, ecoando as Seleções Reader’s Digest dos anos
1950 – soa como confissão tardia dos ingredientes
ideológicos que se impuseram ao longo do conjunto de
propostas, diluindo-as em pastiche de práticas passadas e
retórica vazia, às quais aqui se confere sobrevida, a
despeito das iniquidades que têm provocado. Nesse
documento, elas aparecem como inovações comprometidas
com o futuro; são mortos-vivos que assombram o presente
e condenam à distopia o futuro do Brasil.
A formação do policial-soldado
Éder Luiz Martins[38]
Denis Maracci Gimenez[39]
Nesta reflexão, procuramos caracterizar traços gerais da
concepção da formação dos policiais no Brasil tomando
como ponto de apoio a visão expressa no “Projeto de
Nação”.
Ao tratar da situação da segurança pública no Brasil, o
documento define como “incerteza crítica” a política de
segurança pública aplicada até 2035 diante do poder das
organizações criminosas (Orcrim), estabelecendo objetivos,
diretrizes e “óbices” para a sua realização. Em continuidade,
trata do sistema prisional brasileiro, definindo como
“incerteza crítica” a sua eficácia em 2035.
Observando os objetivos específicos enumerados para
esses dois temas, a questão central é o enfrentamento do
crime organizado. Destacamos algumas diretrizes que nos
interessam mais diretamente para compreender o tipo de
formação almejada para as forças de segurança no país.
Em primeiro lugar, observamos o tratamento da
segurança pública como questão de segurança de Estado,
principalmente com o conceito presente no documento de
Organizações Criminosas. Observamos também, o
tratamento da questão de segurança pública, fundado
naquilo que o documento denomina “viés político-
ideológico”, tentando demonstrar ser este o principal
empecilho ao funcionamento dos órgãos de segurança
pública. Por fim, verificamos um claro desenho da formação
“militarista”, pretendida pelos autores, para os organismos
policiais, não somente para a polícia militar, mas também
para a Polícia Rodoviária Federal, a chamada polícia penal e
as forças de segurança pública em geral.
Em termos dos objetivos da segurança pública e do
sistema prisional, de um lado afirma-se a necessidade de
implementação de políticas e práticas contra o sistema
criminal para que os índices de criminalidade no Brasil
sejam reduzidos aos moldes de países com IDHs e raízes
culturais similares. De outro, afirma-se que o imperativo é
neutralizar o poder das organizações criminosas violentas
no cenário nacional. Este imperativo é o único objetivo
definido para o sistema prisional.
Consideramos como questão crucial, no documento, a
definição da função das polícias no âmbito da segurança
pública no Brasil. De forma sucinta queremos dizer, e não
somos os primeiros a fazê-lo, que as forças policiais no
Brasil, desde antes, mas principalmente após 1964, foram
direcionadas para garantir a segurança do Estado e não
para efetivar a segurança pública.
Toda a formação policial está voltada para um confronto
entre o Estado e a Sociedade. Não formamos policiais, mas
soldados para um conflito armado com a sociedade. Torna
isso explícito, a genérica definição, presente no documento,
de “Organizações Criminosas”, que pode tomar a forma de
movimentos sociais, partidos políticos, cartéis de drogas,
movimento estudantil, torcidas de futebol, entre outros.
Mais do que isso: considera, sem qualificação, o consumo
de drogas ilícitas como crime.
A atuação das Forças Armadas em atividades de
segurança pública é fruto de uma concepção histórica que
se originou a partir do final da Segunda Guerra Mundial e no
início da Guerra Fria. As Forças Armadas de países
periféricos alinhados aos EUA adotaram a chamada
“Doutrina da Segurança Nacional”. Basicamente, concluía-
se que pela superioridade militar nos quadros da Guerra
Fria, caberia à grande potência do Norte a responsabilidade
pela defesa externa do continente; as forças armadas
nacionais, apenas combateriam o chamado “inimigo
interno”. Sob esse espírito, na década de 1960 e 1970,
foram reprimidos desde integrantes da luta armada,
passando por criminosos comuns e contraventores, como,
por exemplo, o banqueiro Castor de Andrade, preso sob o
espectro do AI-5, em nome da moralidade.
De forma genérica, transformava-se as forças armadas
em polícia. A partir de 1964, com a implantação do regime
militar, a simbiose entre Forças Armadas e Polícia avançou
sobremaneira, com o surgimento dos chamados órgãos de
repressão e a criação do chamado crime contra a segurança
nacional, tornando os delitos crescentemente indiferentes à
luz da Justiça.
Dessa maneira, o “Projeto de Nação” reflete as
condições atuais da política de segurança pública no país,
que decorrem, por um lado, da permanência de um entulho
autoritário que as forças progressistas, divididas, não
conseguiram eliminar durante a Constituinte de 1988; por
outro, o interesse das forças políticas conservadoras na
manutenção dessa estrutura de segurança pública que
vigorou durante o regime militar.
Continuamos submetidos à formação do policial voltada
para a guerra e à formação do soldado voltada para o
policiamento. Não à toa, existe nas escolas de formação das
Forças Armadas um treinamento chamado “Operações de
Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Existem também
diversos cursos de especialização das polícias com a
finalidade de guerra. Exemplos maiores podem ser vistos
nos padrões de treinamento dos batalhões de elite das
polícias militares, na formação dos grupos especializados
dentro das polícias civis e por fim na crescente militarização
do treinamento das polícias em âmbito federal.
Claro está que a questão de fundo é a criminalização da
sociedade ante o Estado. Nesse sentido, não se faz
segurança pública e, sim, segurança de Estado. Quando se
reforça que existe infiltração ideológica nas políticas de
segurança pública, como diz o documento, apenas repisa a
velha doutrina da Segurança Nacional vislumbrando, de
forma anacrônica, fantasmas do passado.
Para piorar o cenário, nos quadros da nossa regressão
econômica sistêmica e desorganização política, com o
agravamento da questão social, não somente jovens
desvalidos em periferias das grandes cidades são
recrutados pelo crime organizado, dentro e fora dos
presídios. Em verdade, formamos também soldados para a
guerra interna que, depois de dispensados das respectivas
corporações, na falta de perspectiva econômica, se tornam
presas fáceis para o crime organizado. Identificamos uma
política de recursos humanos na segurança pública que se
ajusta ao recrutamento do crime organizado. Esses policiais
formados para a guerra são também arregimentados por
forças privadas de segurança.
O problema, principalmente nas polícias militares, mas
não só, começa no recrutamento e na formação do policial.
A formação dos oficiais dá-se nos moldes de academias
militares e não academias de polícias. Os postos
hierárquicos seguem o modelo das Forças Armadas. Os
critérios de promoção e tempo de permanência em cada
posto, também. A rotina é militar, seja com ordem unida ou
em outros aspectos. Em suma, forma-se um oficial militar,
não um policial.
No que diz respeito ao que se ensina, fica claro que o
objetivo é uma luta da corporação contra a sociedade na
defesa e segurança do Estado e das instituições. O conceito
de repressão e garantia da lei e da ordem são os alicerces
dessa formação. O policial sai da academia pronto para uma
guerra e não para defender o espaço público e a segurança
dos cidadãos. Exemplo claro foi a proliferação dos vários
batalhões de PMs especializados em repressão e confronto,
os chamados “Batalhões de Choque”, que somente no
estado de São Paulo são cinco.
No início dos protestos em 2013 em torno do aumento
das tarifas de ônibus, ocorria uma manifestação em uma
importante avenida de São Paulo, previamente acordada
com as autoridades. Em determinado momento, a tensão
aumentou e as mesmas autoridades que concordaram com
a manifestação resolveram convocar a tropa de choque
para que liberasse o fluxo de veículos do local. Ocorreu o
confronto com os manifestantes. Quando entrevistado, o
comandante da tropa de choque disse: “se não queriam que
houvesse esse confronto não poderiam ter nos chamado; se
a solução deveria ser outra, então, não é o batalhão de
choque que deveria ser acionado”.
Na verdade, se radicalizarmos o argumento, não se
ensina policiamento preventivo, mas policiamento
ostensivo, voltado a suspeitos e não a cidadãos. Vários
cursos militares específicos para soldados das forças
armadas são também oferecidos a efetivos de policiais
militares.
Caberia chamar a atenção para o aspecto social do
recrutamento. Uma parte importante dos praças das PMs é
recrutada em setores de baixa classe média e alguns
setores remediados da sociedade.
Em uma sociedade desigual e caracterizada por baixos
salários e mercado de trabalho extremamente frágil, a
inserção no serviço público para essas camadas sociais fica
restrita a poucas profissões. A carreira de policial militar,
que na maior parte das PMS estaduais exige apenas o
ensino médio completo, pode tornar-se atrativa. Em que
pese os baixos salários, para esses setores, é um diferencial
importante de renda e de estabilidade no emprego, além
das possibilidades, pelas relações dentro das corporações,
de atividades de segurança privada como forma de
complementação de renda.
Por fim, destacamos que as recomendações em prol da
militarização das forças de segurança pública, do
endurecimento das leis e das penalidades para enfrentar o
“inimigo interno”, não parecem compatíveis com os desafios
de uma sociedade politicamente organizada no século XXI.
Sob efeitos brutais da desorganização econômica, social
e política no Brasil, nunca se matou tanto e nunca se
prendeu tanto, mesmo considerando a violenta história do
país. A população carcerária brasileira foi multiplicada por
dez desde a última década do século XX, crescimento sem
paralelo, que coloca o país como a terceira população
carcerária do mundo, atrás de Estados Unidos e China, que
registram, respectivamente, quase o dobro e sete vezes a
população do Brasil.
Há uma explosão de mortes no Brasil. Nenhuma guerra
no mundo impôs tantas mortes violentas ao longo dos
últimos quarenta anos. A concepção de segurança pública
para o enfrentamento do “inimigo interno”, promovendo a
formação para a guerra do “policial-soldado” e não para a
segurança da sociedade, aparece como heranças
anacrônicas dos “anos de chumbo”. O “Projeto de Nação”
insiste em nos levar mais ao passado do que ao futuro.
Assistimos diariamente “Notícias de uma Guerra
Particular”, entre a sociedade e as forças policiais, retratada
em documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund ao
final da década de 1990.
Não ocorre uma ação violenta de forças policiais contra a
sociedade como um todo, mas contra os mais pobres.
Inúmeros registros, depoimentos e vídeos mostram, por
exemplo, o treinamento para transformar uma viatura
comum em uma “câmara de gás”, uma simples abordagem
em radical humilhação ou, ainda, o aprendizado de técnicas
de identificação de suspeitos a partir de características
sociais e raciais, que transformam jovens pobres e negros
nas periferias em alvo preferencial da brutalidade e do
enfrentamento com elevada letalidade. A formação do
soldado-policial torna explosiva a situação.
Sistema prisional
Michel Misse[40]
O que mais se pode dizer sobre o sistema prisional
brasileiro que já não se saiba há muitas décadas, há
praticamente um século?
Inteiramente fora da ordem legal, com superpopulação
carcerária sistêmica, com formas variadas de tortura
normalizadas durante o cumprimento de pena ou em prisão
provisória, com inexistência de racionalidade na provisão de
alternativas de recuperação aos apenados, conhecido como
um depósito imundo de gente pobre, sempre mal gerido
pelo Estado, esquecido por todos, invisível para a maior
parte da sociedade... O que mais se pode dizer do sistema
prisional brasileiro?
As expressões “fábrica de criminosos”, “pós-graduação
dos bandidos”, “oficina do diabo” já existiam muito antes do
aparecimento das chamadas facções, como a prever o
inevitável, a profecia que se cumpre a si mesma, a
transformação da prisão em local de organização criminal.
Toda essa disfuncionalidade, toda essa ignomínia, pode
ser um arranjo proposital?
Pode-se dizer que o país é tão desigual, tão miserável,
tão despossuído do valor da vida e da dignidade individual
que a prisão, nessas condições, não incomode a ninguém, a
não ser aos seus frequentadores. Ou será melhor
reconhecer que o sistema prisional é também um retrato
pouco deformado do próprio país que o abriga, que o
instituiu e que o despreza?
Estamos nos aproximando de um milhão de presos,
entre condenados cumprindo penas ou medidas cautelares
nessas mesmas condições. Apesar disso e das dezenas de
milhares de vítimas letais de operações policiais em todo o
país, o sentimento de impunidade continua a servir de
bandeira para que mais prisões desse tipo e mais mortes
em decorrência de ações policiais sejam justificadas.
Pelo menos é o que se extrai do documento produzido
por militares e acadêmicos pouco conhecidos, o “Projeto de
Nação”, no qual são apresentadas proposições para
diferentes setores e problemas do país, entre os quais o
sistema prisional.
Vejamos, com a atenção que quer evitar o asco, o que
preconiza tal documento a respeito.
Ao sugerir que no futuro próximo a taxa de reincidência
dos apenados não será muito menor que a atual, pergunta-
se o documento pela eficácia do sistema prisional brasileiro.
Ao contrário de partir das terríveis constatações a que todos
os especialistas já chegaram sobre não apenas a ineficácia
como, principalmente, o caráter normalizado das
ilegalidades de todos os tipos que constituem o sistema
penitenciário no país, o documento advoga uma lista de
proposições que olimpicamente despreza o homem e a
mulher presos, condenados ou não, submetidos às
condições sistêmicas mais indignas que se pode imaginar
para o cumprimento da pena. Afinal, foram condenados a
perder a liberdade, em regime fechado ou semiaberto, o
que não é pouco, mas não foram condenados a coabitar
com ratos e baratas, a comer mal, a apanhar de outros
presos ou de policiais penais, a ser vítimas de extorsão,
crimes sexuais, roubo, humilhações, enfim, de tudo aquilo
que está na origem da revolta que levou ao surgimento e ao
fortalecimento de organizações criminais dentro dos
presídios brasileiros.
O “Projeto de Nação” despreza inteiramente o fato de
essas facções terem surgido para oferecer proteção
alternativa à falta de proteção do Estado. Não teriam se
desenvolvido e se espalhado por todas as prisões do país
fossem outras as condições de cumprimento das penas.
O que interessa, então, às diretivas do “Projeto de
Nação” para o Sistema Prisional? Pretende desarticular as
facções, entendidas erroneamente como “infiltradas” no
sistema e não como o seu legítimo produto.
Em primeiro lugar, interessa ao projeto fomentar um
melhor e mais qualificado controle sobre os presos por meio
de medidas para melhorar a capacitação do policial penal,
sua carreira de funcionário público, sua formação, o seu
acesso a troca de informações com todas as polícias penais
do país, o seu equipamento tecnológico e o melhor controle
sobre a entrada de objetos proibidos na prisão. Nada contra
a melhoria das condições de trabalho e de carreira do
policial penal. Entretanto, tudo isso não é novidade, vem
sendo proposto também há décadas sem maiores ou
melhores resultados.
Nada se diz sobre o que impede que isso seja feito,
como será feito e com que recursos. Nada se diz acerca da
autoridade capaz de sobrepor-se à generalização dos
esquemas. Nada se fala da violência como moeda dos
mercados ilícitos que funcionam dentro do próprio sistema
operado, em parte, por um número não desprezível de
agentes encarregados do controle formal sobre os presos.
Nenhuma palavra sobre os problemas sistêmicos,
apenas propostas genéricas simpáticas aos policiais penais
mas inócuas em si mesmas para enfrentar o tamanho do
problema, que não decorre principalmente da atuação
desses agentes. Ao contrário, são muitos os policiais penais
que dão a sua vida ao trabalho consciencioso,
compreensivos da tragédia social com que lidam e que
ganham o respeito dos presos.
O que mais propõe o “Projeto de Nação” para o sistema
prisional?
Propõe a construção de mais prisões, prisões de
segurança máxima chamadas de “supermax”, para abrigar
facções em todos os estados e no Distrito Federal. Não se
trata de mudar o foco patológico do próprio sistema mas de
aumentá-lo, espalhá-lo ainda mais, com as mesmas
características que o tornaram o problema a ser enfrentado.
Nenhuma palavra sobre o sistema, como se fosse funcional.
Pretende-se espalhar o Regime Disciplinar Diferenciado para
conter as facções quando se sabe que elas não deixaram de
existir (e até aumentaram) nas prisões que seguiram essa
receita.
O documento desconhece as abordagens
contemporâneas sobre a questão penitenciária em várias
partes do mundo civilizado, os debates, as mudanças
preconizadas ou em curso. Silencia sobre a constatação
trágica de que a grande maioria dos apenados são
trabalhadores pobres de mercados ilícitos frequentados por
uma clientela de classes médias e elites que não correm os
mesmos riscos de seus fornecedores, quando não são eles
próprios os seus patrões, ocultados por uma complexa rede
de intermediários.
Com as exceções que confirmam a regra, o sistema
penitenciário brasileiro abriga principalmente vendedores
varejistas de drogas e de bens furtados ou roubados, de
baixo valor, que se armaram para enfrentar a concorrência
de outras quadrilhas e facções e que, desde o início,
contaram com proteção policial de diferentes tipos, inclusive
na venda de armas roubadas aos quartéis.
Não fosse apenas por ignorância de um problema que é
discutido em todo o mundo, a prisão como uma solução
falida de controle social abrangente, bastaria aos autores do
documento, ao menos, uma menção a experiências bem
sucedidas de reparação penal sem prisão para boa parte
dos crimes cujos autores respondem pela maioria da
população hoje presa no Brasil. Nenhuma palavra, nenhuma
medida inovadora, nenhum gesto de compaixão pelas
condições conhecidas da vida na prisão brasileira. É como
se fosse óbvio que o apenado mereça isso, que faça parte
de sua punição não apenas a perda da liberdade a que foi
condenado, mas todo o sofrimento a que é submetido.
Nada, apenas mais medidas repressivas, mais demanda de
controle, mais prisões, mais segurança máxima.
O documento alcança o seu sentido mais profundo em
sua parte final, quando alinhava suas propostas. A primeira
é exemplar do inextinguível Poder Moderador implícito (ou
explícito?) no texto: “tentar monitorar, através de
observatório oficial, decisões do Poder Judiciário “que
comprometam a segurança pública e a paz social” (sic).
Para fazer o quê? Interferir no Poder Judiciário?
A segunda é mais explícita quando se trata de óbices ao
“Projeto de Nação”: “frouxidão das leis, regulamentos e
normas de execução e de progressão penal”. Aí está o
núcleo duro do argumento: a prisão brasileira é frouxa, leve,
o problema é a falta de leis mais duras, etc, etc.
O Brasil é o quarto país do mundo com mais cidadãos
presos nas condições conhecidas e foi esse um dos fatores
importantes para que – pela primeira vez no mundo – o
crime organizado surgisse e se expandisse dentro do
sistema prisional e não fora dele. As facções que se
multiplicam nos vários estados brasileiros lá chegam
através da movimentação de presos de uma região para
outra. Quando a demanda de ordem pede mais dureza é
porque ela já perdeu o controle, não está tentando mudar a
maneira de controlar mas simplesmente está perdida,
desesperada – e mais dura será a resposta da massa do
crime organizado.
Não é assim que se constrói uma sociedade civilizada.
Leis duras anteriores à modernidade não pacificaram a
sociedade, pelo contrário. A violência declina com leis
respeitadas, com um Estado cujos agentes de controle
social são antes respeitados que temidos, antes confiáveis
porque respeitam a lei que confiáveis por oferecerem
serviços privados de proteção, mercadorias políticas
furtadas ao Estado para uso exclusivo dos que detêm o
poder (“costas quentes”) para negociá-los com os outros
criminosos, os que não detêm essas qualidades
desvirtuadas do Estado.
Antes do final piedoso, o documento acrescenta – contra
a garantia do cidadão livre – que (é preciso romper) com “a
ausência de tipos penais e políticas criminais que impeçam
ao Judiciário soltar criminosos pertencentes ao crime
organizado”. Como quem define quem é criminoso e quem é
organizado é o próprio Estado, não resta ao cidadão senão
requerer compaixão ao Tribunal do Santo Ofício.
O “Projeto de Nação” quer criar tipos penais que não
possam ter direitos de, um dia, sair da prisão? Prisão
perpétua? O terror do Estado sendo brandido por militares
de índole liberal dão bem a conta de suas contradições com
a modernidade.
A pacificação social através da importação de um
discurso, também muito criticado, de punitivismo, oriundo
de sociedades de crenças igualitárias (como os Estados
Unidos da América) não fica bem numa sociedade tão
desigual (e de crenças tão hierárquicas), como a nossa.
Ganhando muito mais que o salário mínimo, não são
poucos os agentes do Estado que competem com os
miseráveis traficantes de mercadorias ilícitas e deles
ganham parte do butim. Não fica bem propor uma reforma
do sistema prisional sem levar em conta todas essas
questões. Afinal, se o sistema, da péssima qualidade das
prisões e da muito dura, da péssima vida dos sujeitos
criminais, não consegue diminuir a taxa de reincidência
criminal, não é porque os policiais penais são mal pagos ou
não têm ciclo completo. Eles são mal pagos e não têm o
ciclo completo pelas mesmas razões pelas quais o sistema
penal é ultrapassado: é o seu abandono, o seu desprezo e a
sua invisibilidade para o cidadão que foi vítima de crime. Se
ele soubesse o que fazem com o “seu” ladrão, com o “seu”
traficante, ele ficaria muito mais inseguro do que está hoje.
A vingança tem dois lados e é infinita, por isso precisa ser
abolida pela Lei.
O argumento de que o sentido do cárcere é a pura
punição tornou-se insuficiente na modernidade.
Abandonaram-se os suplícios, dizem os filósofos. Restaram
dois argumentos: tornar o criminoso, por algum tempo,
incapacitado de agir (pela perda da liberdade) e, pelo custo
pessoal da perda da liberdade, convencer outros possíveis
criminosos que os benefícios do crime não compensam a
prisão.
Se a incapacitação não é apenas perda de liberdade por
um longo período, mas punição, vingança, humilhação,
então a prisão deixa de ser dissuasiva, torna-se uma aposta
pela honra, pela coragem ou pela afronta ao sistema. Torna-
se tudo aquilo para a qual ela não foi criada, nem pensada.
Torna-se o fundamento da revolta e da demanda de
proteção, que será melhor abraçada se vier de
companheiros de sofrimento. Se é para isso que devemos
expandir o sistema, devemos estar conscientes que
também vamos expandir os problemas sociais que levam
cada vez mais brasileiros a viver a terrível experiência da
prisão.
O “Projeto de Nação” é incompetente para tratar do que
considera o principal problema do sistema penal: a
impunidade, a frouxidão das leis, a falta de carreira dos
policiais penais, a progressão de pena, a necessidade,
supostamente não atendida ainda, de aumentar o número
de prisões com regime disciplinar diferenciado. Quantas
prisões a mais serão necessárias? Quantas novas carreiras
de agentes públicos não serão também necessárias para
acompanhar toda essa expansão das prisões em todos os
estados? Diminuir a progressão de pena fará o sistema
inchar ainda mais de presos e insatisfações.
Que tal reconhecer que, nesses ambientes, se tornará
ainda mais difícil a ressocialização dos apenados e cada vez
mais altos os custos de manutenção de um agregado de
depósito de presos como tem sido até hoje?
Prisões pequenas, com no máximo 100 a 200 presos, de
gestão local e segurança máxima, mas com dignidade de
vida para o cumprimento de pena de autores recorrentes de
crimes muito graves, cuja incapacitação seja efetivamente
requerida, espalhadas em grande quantidade pelo país, que
permitam a proximidade do apenado com suas famílias e
que lhes ofereçam alternativas de trabalho e estudo dentro
da prisão; penas alternativas à prisão, de vários tipos;
projetos sociais de prevenção à entrada de jovens nos
mercados ilícitos varejistas; descriminalização da produção
e comércio de drogas atualmente ilícitas, sob regulação
estatal; substituição da prisão por penas que atinjam a
propriedade e os bens de criminosos que detêm maior
poder econômico relativamente aos jovens pobres que
trabalham nos mercados varejistas; justiça restaurativa nos
crimes interpessoais e na justiça juvenil...
São tão profícuas, inovadoras e numerosas as
alternativas à prisão pensada como solução única para
todos os crimes que não caberia listá-las aqui.
Ao fim, fica a impressão que os autores do “Projeto de
Nação”, por ignorância ou desprezo a essas alternativas,
também se ofereceram à preguiça de propor uma parte do
que já é sabido e uma parte do que, por não ter dado certo
há décadas, pareceu-lhes ainda insuficientemente realizado.
Como as polícias, que continuam insistindo há décadas em
operações letais, injustas e inócuas para a segurança
pública, os militares autores desse documento continuam a
apostar no que deu errado, no que não dá certo e no que é
indesejável numa sociedade democrática. Não é um projeto
o que propõem, mas um retrovisor nostálgico e gerencial de
seus tempos autoritários.
Brasil mal defendido
Manuel Domingos Neto[41]
Marcelo Pimentel Jorge de Souza[42]
As formulações do “Projeto de Nação” acerca da Defesa
Nacional de que precisaríamos estão concentradas em
apenas duas de suas noventa e três páginas. São
encabeçadas por um longo título, “Segurança, Defesa e
Projeção do Brasil, diante das restrições internacionais nos
campos militar e científico-tecnológico”. Ao lado de outros
três temas, “Integração da Amazônia ao Brasil”, “Evolução
da Inteligência Estratégica Brasileira” e “Defesa Cibernética
no Brasil”, compõem o eixo temático “Segurança e Defesa
Nacional”.
É intrigante um documento deste teor oferecer tão
pouca atenção exatamente para a especialidade de seus
autores. Como se explica que o espaço reservado à Defesa
seja menor do que os numerosos temas abordados,
excetuados os concernentes à “Saúde” e à “Segurança
Pública”?
Os militares que elaboraram o Plano estiveram mais
voltados para firmar suas posições político-ideológicas.
Admiráveis são a superficialidade e as imprecisões,
generalizações e contradições presentes nessas duas
páginas dedicadas à Defesa. Assuntos militares
propriamente ditos, como as missões, a composição, a
organização e as capacidades dos instrumentos de força do
Estado não são tratados.
A construção das nações é sempre presidida pela
perspectiva de confrontos com interesses estrangeiros. A
nação brasileira não teria como ser diferente. Mas o
documento sonega os complexos problemas das
corporações bancadas com recursos públicos para enfrentar
eventuais agressões. Não é mencionada, por exemplo, a
necessidade de revisão doutrinária de emprego da tropa, de
contenção de desperdício de recursos, de superação de
debilidades operacionais, de correção de desvios de função,
de supressão da endogenia do corpo de oficiais, de
atualização do recrutamento militar, de correção das
fragilidades da articulação com a produção científica e
empresarial, de melhoria na qualificação de quadros
profissionais, de atualização do recrutamento e de
redimensionamento e redistribuição de efetivos.
No “Projeto de Nação” oferecido aos brasileiros, as
corporações parecem impecáveis sob quaisquer pontos de
vista. Os instrumentos de força do Brasil não careceriam de
renovação. As debilidades da nação seriam exclusivamente
da alçada do mundo paisano.
Os autores revelaram mais interesse no gerenciamento
dos negócios públicos de natureza civil que no preparo
profissional para a guerra contra agressor estrangeiro.
Assuntos não caracterizadamente militares, como o
planejamento estatal para a Amazônia, a capacitação
cibernética do país e os problemas atinentes à segurança
pública são tratados como inerentes às Forças Armadas.
No documento, as atribuições da “Segurança” e da
“Defesa” estão em sintonia com os princípios doutrinários
estabelecidos desde a modernização corporativa, ocorrida
na primeira metade do século XX sob a orientação de
militares de potências estrangeiras. As formulações então
desenvolvidas, expressas na Doutrina de Segurança
Nacional, ainda presente na ESG, tiveram por base a
rejeição às mudanças sociais e a inclusão subordinada do
país na ordem internacional dirigida pelos vencedores das
duas guerras mundiais.
Na última ditadura militar, o oximoro “modernização
conservadora” serviu para caracterizar a índole das
iniciativas governamentais. O documento em pauta utiliza a
expressão “conservadorismo evolucionista”, de sentido
igual.
Alteração de palavras não encobre a persistência da
visão castrense da sociedade e do Estado e a renitente
determinação de exercer controle sobre tudo e sobre todos.
No melhor estilo autoritário, ao longo do documento, o
desígnio corporativo é apresentado como a vontade dos
brasileiros ao tempo em que os descontentes com as
estruturas socioeconômicas são estigmatizados como
disseminadores de “ideologias radicais” e, portanto,
inimigos a serem reprimidos.
No passado, os opositores eram formalmente
classificados como “subversivos” e “disseminadores do ódio
e da discórdia”. O “Projeto de Nação” em exame mantém a
mesma percepção. A ótica da guerra permanente ao inimigo
interno credenciaria os instrumentos de força do Estado à
condução do país. No documento, a exposição das variadas
propostas de políticas públicas está sempre vinculada ao
combate aos brasileiros defensores de mudanças.
Os autores afirmam, falseando, que a apresentação de
propostas para a Segurança e a Defesa visa a discussão
com a sociedade. Ora, sequer houve debate entre os
próprios militares. Prevaleceu o componente terrestre na
formulação do documento. Quando lideranças militares
estabelecem projetos tão abrangentes como este,
disseminam confusão na sociedade.
A falsidade de que estariam abertos ao debate é
revelada pela terminologia inacessível em que as
proposições são vazadas. A sociedade não é iniciada em
jargões castrenses. O hermetismo linguístico denuncia
também a pretensão de monopólio do conhecimento dos
problemas da Defesa. Trata-se de artifício conhecido, útil
para encobrir truísmos, omissões, enfim, a displicência com
a Defesa Nacional.
O tema é anunciado de forma grave: a Segurança, a
Defesa e a Projeção do Brasil enfrentariam “restrições
internacionais nos campos militar e científico-tecnológico”.
Que restrições seriam essas? Como negar aos brasileiros
a identificação de estrangeiros que lhes impedem futuro
promissor? Em que pese a inquietante retumbância da
afirmação, os autores evitam descrever objetivamente
atitudes ou iniciativas de atores externos que atuariam
contra interesses nacionais nos “campos” referidos.
A tentativa de ocultação é inócua. É de amplo
conhecimento que apenas as grandes potências ocidentais,
velhas fornecedoras de material de guerra e tecnologias
estratégicas ao Brasil, aporiam as restrições aludidas. Caso
fossem mencionadas, os redatores do documento
evidenciariam a alongada e injustificável dependência
material e ideológica das corporações militares.
Por outro lado, ao destacar enfaticamente a associação
entre os “campos” militar e científico-tecnológico, o
documento desconsidera o ensinamento básico segundo o
qual equipamentos e serviços não resumem a capacidade
militar de um Estado.
Apenas uma visão restritiva e enganadora das
dimensões e da complexidade dos assuntos da Defesa
negaria que a relevância de tais “campos” é contingenciada
por fatores variados, com destaque para a coesão interna e
a boa convivência com os vizinhos.
Quanto à coesão nacional, o documento parte da ideia
de que seria revigorada, assim como o “sentimento coletivo
de pátria”, pelo “sucesso do modelo econômico liberal, com
responsabilidade social”. Pretende que a “cisão interna no
Brasil” seria atenuada com a prevalência do “perfil
psicossocial da nação, conservador evolucionista e não
imobilista” e a preservação de “valores morais tradicionais”.
Sem entrar na discussão sobre as possibilidades de o
liberalismo assegurar futuro digno aos brasileiros, o rígido
condicionamento das perspectivas nacionais à uma
proposição ideológica exclusiva não combina com preceitos
democráticos. Autoritariamente, os autores do documento
imaginam-se capazes de anular o debate na sociedade.
O elitismo da formulação é explícito: a unidade dos
brasileiros seria garantida sem mudanças sociais que
suprimam as explosivas desigualdades herdadas do
passado colonial-escravista e da concentração da
propriedade.
Sendo inimaginável que grandes contingentes
socialmente excluídos deixem de aspirar melhores
condições de vida, restaria acoimar os que sustentam seus
interesses de portadores de “ideologias radicais” e reprimir
suas manifestações.
Aqui, aparece a nostalgia do “Projeto de Nação”: há uma
remessa às experiências ditatoriais protagonizadas pela
caserna ao longo do século XX. O notável é que tais
experiências negaram os fundamentos do liberalismo e
emprestaram papel decisivo ao Estado no desenvolvimento
socioeconômico.
Sociedades fragmentadas e sem sólidas parcerias com
sua vizinhança estarão sempre mais exposta à hostilidade
de estrangeiros cobiçosos. O estreitamento das relações do
Brasil com os países sul-americanos, indispensável à
Defesa, não ganha relevância nas páginas do “Projeto de
Nação” em análise. O destaque é dado à expressão militar
brasileira no continente.
O documento apresenta uma “incerteza crítica” cunhada
nos seguintes termos: “Capacidade de dissuasão militar
extrarregional do Brasil para a Segurança, Defesa e Projeção
de Poder”. Em seguida, expõe uma análise-prognóstico, que
designa como “Mini Cenário Foco”:
“Em 2035, a capacidade de dissuasão militar extrarregional e a
de projeção de poder não são plenas, mas estão ampliadas em
relação ao início dos anos 2020. A liderança e a sociedade
finalmente identificaram ameaças potenciais e reais ao País e,
por isso, se elevou a prioridade e foram acelerados Projetos
Estratégicos da Defesa Nacional. O Brasil resistiu às pressões
internacionais contra seu fortalecimento militar e científico
tecnológico. Assim, o País adquiriu maior liberdade de ação para
defender seus interesses de segurança e de projeção no Entorno
Estratégico. Em consequência, ampliou sua capacidade para
enfrentar pressões alienígenas que ameacem a soberania, a
integridade territorial, a exploração do próprio patrimônio e a
projeção de poder em apoio à Política Externa do Brasil.”

Como o “extrarregional” só pode ser reconhecido com o


discernimento sobre o “regional”, a primeira observação a
ser consignada é a ausência de delimitação de espaços
geográficos, políticos, econômicos e culturais. Tratar-se-ia
de nossa vizinhança imediata? Envolveria todo o Atlântico
Sul e o leste da África? Sobre que espaço o Brasil deve se
preparar para dissuadir potenciais inimigos?
As dúvidas se acentuam quando os autores mencionam
o “entorno estratégico”. Estariam se referindo ao espaço
definido formalmente na Política Nacional de Defesa (PND) e
na Estratégia Nacional de Defesa (END) em vigor? Para a
elaboração destes documentos foram desenhados, no
Ministério da Defesa, com a participação de profissionais
das relações exteriores, economia, política científica,
inteligência e de outras áreas do conhecimento, cenários
prospectivos consistentes, alguns de classificação sigilosa
máxima. Os cenários foram periodicamente revisados para
orientar as Forças Armadas quanto aos seus
planejamentos de capacitações e empregos singulares ou
conjuntos.
Ao que parece, os autores do “Projeto de Nação” não
leram ou não compreenderam ou sequer consideraram os
cenários desenhados.
Ideias alistadas no “Projeto de Nação” foram
contempladas nos documentos em vigor de forma mais
clara, pertinente, sistematizada e organizada, além de
melhor redigidas. Os autores sob análise se basearam em
“especialistas” selecionados a partir da “probabilidade de
ocorrência de um determinado evento”. Mas não identificam
a representatividade político-ideológica destes especialistas,
indispensável para o estabelecimento de uma pluralidade
de opiniões.
O documento afirma que, em 2035, as capacidades
brasileiras de “dissuasão militar extrarregional e a de
projeção de poder” não seriam plenas, mas estariam
“ampliadas” em relação aos anos 2020. Como nada
esclarecem a respeito, é possível que seus redatores
considerem a possibilidade de os atuais projetos
estratégicos da Defesa estarem vencidos.
Sendo assim, trata-se de afirmação imprecisa: não cabe
imaginar que tais projetos, desenvolvidos com substancial
participação estrangeira, aproximem o país da “plenitude”
em matéria de dissuasão.
Os autores não demonstram conhecimentos adequados
no que diz respeito à construção de capacidades
dissuasórias na modernidade. Nenhuma potência cede
poderio militar à outra que não esteja sintonizada em seus
interesses. Há mais de cem anos o Brasil desenvolve
“cooperação” com grandes complexos industriais militares
do Ocidente sem lograr autonomia em matéria de armas e
equipamentos, eufemisticamente designados “produtos de
defesa”. Pelo contrário, como bom cliente, contribuiu para o
fortalecimento dos detentores de tecnologias. Quando os
projetos em andamento estiverem concluídos, as potências
parceiras estarão em patamar tecnológico superior.
O documento revela a intenção castrense de manter o
poder político submisso aos militares sobre os negócios da
Defesa. Uma confirmação deste intuito: em 2035, a
“liderança e a sociedade finalmente identificaram ameaças
potenciais e reais ao País”. O pressuposto desta afirmação é
o de que apenas o militar teria sensibilidade neste domínio.
Esta noção é insustentável. A defesa da soberania
nacional constituiu pilar de organizações políticas
reprimidas ao longo do século XX. No mais, o nacionalismo
que notabilizou muitos comandantes e governos militares
contradiz o liberalismo radical que orienta o atual governo,
apoiado pelos autores do documento.
Os formuladores da proposta não levam em conta que,
por largos períodos, o poder esteve nas mãos de oficiais,
que o exerceram reprimindo contestações. Cabe atribuir-
lhes, e não à sociedade ou às lideranças civis, a
responsabilidade pelo fato de o Brasil não ter logrado
adequada capacidade dissuasória.
Ao considerar que, da atualidade até 2035, os projetos
estratégicos seriam priorizados e acelerados, o “Projeto de
Nação” afasta a possibilidade de reorientações decorrentes
de alternâncias no poder e, sobretudo, de alterações no
quadro internacional. O engessamento das iniciativas do
Estado brasileiro quanto ao estabelecimento de novas
parcerias desconsidera as convulsões vividas pela ordem
internacional resultantes da disputa pela hegemonia.
Das oito diretrizes constantes no “Projeto de Nação”
visando “alcançar o nível de dissuasão extrarregional em
face de potências que, eventualmente, ameacem os
interesses importantes ou vitais para nossa defesa e
projeção de poder”, a primeira é redigida nesses termos:
“Atualizar a Política e a Estratégia Militar de Defesa, de modo a
identificar as áreas estratégicas prioritárias de defesa e de
projeção de poder, bem como ameaças potenciais e ou concretas
aos interesses nacionais”.
A diretriz parece descabida: há cerca de duas décadas o
Brasil atualiza periodicamente sua Política Nacional de
Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), não
uma Estratégia Militar de Defesa, como está escrito – aqui, é
possível ter ocorrido erro de digitação ou manifestação do
subconsciente. Observe-se que a expressão “Estratégia
Militar” reaparece quando o documento trata dos óbices à
Defesa.
Desde a extinção dos ministérios militares que, por
iniciativa do poder político, cederam vez ao Ministério da
Defesa (1999), a definição dos assuntos de Defesa passou
formalmente do âmbito corporativo para o político.
Outra diretriz alude à conscientização de lideranças e da
sociedade sobre a “necessidade de um poder militar e CT
compatível com o status internacional do Brasil, diante dos
desafios que vai enfrentar, em consequência da projeção de
potências globais, rivais entre si, em nosso Entorno
Estratégico”.
O importante a registrar nesta diretriz é a menção ao
“status internacional do Brasil”, exatamente no momento
em que o governo pratica uma política externa isolacionista.
O documento reconhece que a rivalidade entre as grandes
potências repercutirá em nosso entorno estratégico.
Entretanto, evita condenações à inconsistente política
externa em vigor. Refere-se à projeção de potências rivais,
mas omite o elevado comprometimento brasileiro com os
Estados Unidos, exemplificado na colaboração do Exército
com o Comando Sul dos Estados Unidos (USSouthCom).
Menciona, não obstante, a busca pela diversidade de
parceiros para “evitar a dependência exclusiva”. Como se
sabe, neste domínio, Washington exige exclusividade. O
reconhecimento da dependência não basta aos redatores do
documento para concluir que a alternativa para o Brasil é a
produção do que necessita em armas e equipamentos.
Sequer mencionam os efeitos catastróficos, para a
soberania nacional, do desmonte recente de grandes
empresas de engenharia imprescindíveis à autonomia na
produção de material de guerra. A diretriz acerca do
desenvolvimento de “um Sistema Conjunto de Defesa
Antiacesso e de Negação de Área” torna-se uma
manifestação quimérica.
Ao propor a integração das Forças Armadas brasileiras
“nos planejamentos e no desenvolvimento de projetos de
defesa de maior valor estratégico e operacional” e reclamar
“uma ação mais efetiva do Ministério da Defesa como
coordenador e orientador dos citados planejamentos e
projetos”, o documento alimenta outra falsa ideia da
autoridade ministerial sobre as corporações.
Em mais de duas décadas de existência, o Ministério da
Defesa não conseguiu se estruturar de forma a reduzir o
peso dos comandantes, seja em seu cotidiano seja em suas
formulações. Nos últimos anos, a figura do ministro da
Defesa foi inadmissivelmente apresentada como
“representante dos militares”.
A militarização de um órgão de governo de natureza
eminentemente civil fica explícita na seguinte diretriz:
“Atrair os setores empresariais, acadêmicos, políticos e,
especialmente, o diplomático para a participação nos assuntos
afetos à defesa e projeção do Brasil, de modo a assegurar maior
compreensão sobre os desafios ao País na Geopolítica mundial.”

Atores civis devem ser “atraídos” para que fique


assegurada “maior compreensão” sobre os desafios da
geopolítica. Quem lhes atrairia, senão corporações sedentas
de mando?
Outra diretriz segue no mesmo rumo: “Implementar
campanhas de comunicação para conscientizar a Nação e
suas lideranças sobre a importância dos temas de defesa e
projeção de poder”. A nação precisa ser “conscientizada”,
ou seja, precisa acompanhar as formulações dos
comandantes militares. Entre os “óbices” para que o Brasil
se defenda de forma apropriada estaria, segundo os
redatores, a “falta de percepção do jogo do poder mundial,
desconhecimento da História geral e da Geopolítica
internacional e deficiente visão estratégica das lideranças
nacionais e da sociedade como um todo comprometem a
percepção de problemas e ameaças aos nossos interesses
vitais e, em consequência, acabam por restringir os
recursos necessários ao fortalecimento militar e CT do País”.
A sociedade brasileira é percebida como
intelectualmente indigente. Nossas universidades não
propiciaram capacidade de conhecimento da história e da
geopolítica. O país não dispõe de lideranças com “visão
estratégica”...
Em decorrência das debilidades das “lideranças
nacionais e da sociedade”, emerge outro “óbice”: a
“tendência do País a fazer concessões que prejudicam o seu
fortalecimento militar e CT, quando submetido a pressões
políticas, econômicas e psicossociais de potências
estrangeiras”.
O conjunto de proposições apresentadas no “Projeto de
Nação” em relação à Defesa se ampara na crença do
despreparo e da incapacidade do poder político e da
comunidade nacional para garantir a soberania. Apenas os
comandantes militares teriam descortino para preservar os
interesses nacionais. Em outras palavras, a nação projetada
se apresenta como uma dádiva dos quartéis.
Não é bom para a defesa do Brasil que a sociedade
perceba as cúpulas intelectuais e executivas das Forças
Armadas sustentando projetos políticos. Isso repercute
negativamente na coesão corporativa e enfraquece a
credibilidade das organizações militares. Se continuarmos
assistindo à deterioração da imagem das Forças Armadas,
como aconteceu nos últimos anos, que Defesa teremos em
2035?

[1] Repórter especial de O Estado de S. Paulo e autor de “A Casa da Vovó: Uma


biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da
ditadura militar”
[2] Professor Titular de História Moderna e Contemporânea (UFRJ). Professor
Titular de Teoria Social/UFJF. Fundador do Laboratório de Estudos do Tempo
Presente/TEMPO (UFRJ)
[3] Doutor em Ciência Política pela Fundation Nacionale des Sciences Politique e
Professor da Unicamp
[4] Ex-deputado federal
[5] Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[6] Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC,
coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do
Brasil (OPEB) e autor-organizador, entre outros, de “A volta do Estado
planejador – Neoliberalismo em xeque” (Editora Contracorrente)
[7] Professor do Instituto de Economia da UFRJ
[8] Doutor em Ciência Política pela Fundation Nacionale des Sciences Politique e
Professor da Unicamp.
[9] Doutor em Ciência Política pela UnB, professor da UnB, pesquisador do
Observatório sobre Defesa e Soberania do Instituto Tricontinental e membro
do Instituto Front
[10] Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)
[11] Doutora em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da
Unicamp e Economista-Chefe do Instituto para a Reforma das Relações entre
Estado e Empresa (IREE).
[12] Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Professor da Unicamp
[13] Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Professora das Faculdades de Campinas (Facam)
[14] Dirigente do Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
[15] Doutor em Economia pela The New School for Social Research. Professor
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
[16] Professor e ex-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
[17] Economista, doutor pela UFRJ, professor da graduação e da Pós-Graduação
do IE/UFRJ, ex-diretor da Finep
[18] Professor Instituto de Física da UFBA
[19] Doutor em História pela Universidade de Paris, professor aposentado da
UFC/UFF
[20] Professora da Faculdade de Educação da UnB
[21] Médico, doutor em medicina social, membro titular da Academia Nacional
de Medicina, ex-ministro da saúde
[22] Médico sanitarista pela Faculdade de Medicina da USP. Doutor em
Administração de Empresas pela FGV – EAESP. Professor da FGV e Membro do
Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV – EAESP.
[23] Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro
[24] Indigenista da Funai e doutor em Políticas Públicas pela Universidade
Estadual do Ceará (UECE)
[25] Doutor em História pela Universidade de Paris. Professor aposentado da
UFC/UFF
[26] Diretor do Museu da Amazônia, foi presidente da SBPC
[27] Doutor em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia,
Professor de Meteorologia e Climatologia da UFAM
[28] Jornalista e escritora
[29] Jornalista, professor e político. Ex-ministro da Ciência e Tecnologia
[30] Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Estadual do Ceará
[31] Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
[32] Antropólogo, professor da UFSCar
[33] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar)
[34] Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.
Professora da UFMG
[35] Doutora em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Instituto
Tricontinental de Pesquisa Social e do GEDES-UNESP
[36] Professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da UFABC
[37] Doutor em Ciência Política. Ex-Secretário Nacional de Segurança Pública
[38] Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e professor das
Faculdades de Campinas (Facamp)
[39] Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e professor do
Instituto de Economia da mesma universidade
[40] Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
[41] Doutor em História pela Universidade de Paris, professor aposentado da
UFC/UFF
[42] Oficial do Exército Brasileiro na reserva e mestre em Ciências Militares pela
Escola de Comando e Estado Maior do Exército

Você também pode gostar