Livro Trabalho Musica Genero 2019
Livro Trabalho Musica Genero 2019
Livro Trabalho Musica Genero 2019
TRABALHO
MÚSICAe
GÊNERO
Depoimentos de mulheres musicistas
acerca de sua vida laboral. Um retrato
do trabalho no Rio de Janeiro dos anos
1980 ao início do século XXI.
1ª edição
Transcrição
Fabiola Barilo e Yvonne Mathion
R427t
Formato: ePUB
Requisitos de sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-915347-2-2
CDD 331.4
23 Luna Messina
39 Sueli Faria
75 Helena Buzack
1 Vale observar que, em sentido inverso dessa acepção do conceito de cultura, compar-
tilho com Raymond Williams de que a cultura é comum e se dá por meio da construção
coletiva dos membros de determinado grupo social. Isso quer dizer que devemos pen-
sar a cultura como algo inseparável da formação humana, como “um processo social
constitutivo” (WILLIAMS, 1979, p.25).
ção musical. De acordo com Norbert Elias (1995), é nesse período que
iniciam e se consolidam as condições para a transição de uma arte de
artesão para uma arte de artista.
3 O Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro (SindMusi) é uma entidade cria-
da em 1907, inicialmente conhecido como Centro Musical do Rio de Janeiro. Hoje con-
ta com 9.833 músicos cadastrados, sendo desses 3.255 ativos na ocasião da publicação
do artigo. Elaboramos um questionário com 37 questões, que foi enviado por e-mail
aos músicos com cadastro ativo.
4 www.culturatrabalhoedu.uff.br
5 As entrevistas foram realizadas entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019.
Julho, 2019
O que aconteceu?
Em 1988 foi quando todas as gravadoras começaram a se desmon-
tar. Todas as grandes gravadoras e também as produtoras de jingle
se mudaram para São Paulo. A gente aqui no Rio ficou a ver navios.
Acabou! O tipo de trabalho que eu tinha, que era fazendo backing
e criando vocais para muitos artistas de renome, em várias grava-
doras e também em produtoras de jingle, isso tudo minguou. Pra
ter uma idéia do volume de trabalho , eu chegava ao ponto de tra-
balhar de nove da manhã às três da madrugada.
24 Luna Messina
15hàs 21he de 21hàs 3h. Então eu pegava no horário de 9h, depois
ia para outro estúdio correndo e pegava de 15hàs 21h. Depois ia
para outro estúdio para pegar de 21hàs 3h. Era assim... recebendo
por período de gravação seguindo a tabela do sindicato dos mú-
sicos... a gente trabalhava muito mas ganhava o suficiente para
viver bem.
Tinha filhos?
Não, não tinha filhos ainda... Graças a Deus. Porque ia ser pés-
simo se eu tivesse filhos... Mas, um ano e meio depois conheci o
Henrique, meu marido atual, e fui viver com o ele. Henrique tinha
um emprego público, mas trabalhava como ator também. Então,
isso aí, dava para nós dois, a gente se ajustou ali... Eu ainda fazia
uma coisinha ou outra... cheguei a fazer o show do Celso Blues
Boy no Circo Voador, aquele disco dele que é gravado ao vivo. E
outras “cositas” que apareciam... mas, tudo muito pontual, nada
que você pudesse contar com aquele dinheiro no final do mês. E
fiquei logo grávida. Como tinha já quase 40 anos pensei: “Pô, ou
eu tenho esse filho agora ou não tenho mais...”Minha filha nasceu
prematura... e foi confuso. Tive o segundo filho — e eu não queria
ter — mas o Henrique quis ter. Falou: “Não! Você com essa filha
só, que teve problema... você vai ficar neurótica e ela também. É
melhor ter outro.” Aí acabei tendo o segundo, que foi uma ma-
Luna Messina 25
ravilha realmente, ele teve toda razão, foi o que limpou a área da
confusão toda da primeira filha, e normalizou a nossa vida, botou a
vida de novo nos eixos. Mas eu passei o tempo todo com problemas
de trabalho. Dali em diante, vivia de coisas que fazia, aqui e ali,
trabalhos pontuais. Abri até uma padaria em Teresópolis que du-
rou 3 anos.Foi muito difícil para mim. Comecei a dar aula de canto,
depois fiz uns trabalhos como professora de música, dava aula para
criança pequena, o que foi bem legal. Foi um aprendizado muito
bom para mim.
26 Luna Messina
Por que você foi fazer música? Tinha alguma aspiração?
Eu falo para as pessoas que não escolhi isso não. Em nenhum mo-
mento eu fiz essa escolha... Acho que a profissão me escolheu,
desde criança pequena, porque eu comecei a cantar na rua em que
morava. As pessoas gostavam de brincar de cantar na rua, sentava
todo mundo num meio-fio e um levantava e começava a cantar. Eu
também ia e cantava e todo mundo “aêee, muito bem!”. Aí come-
çavam a querer que eu cantasse de novo. Ué, eu tinha que apren-
der alguma música pra continuar sendo cantora, né? A cantora ali
daquela brincadeira de cantar. Porque todo mundo aplaudia tanto,
então deve ser bom esse negócio, né? Aí comecei a me empolgar...
Dali em diante, senti que isso era uma coisa que eu podia fazer, as
pessoas gostavam, mas eu não escolhi nada. Quando fui para a es-
cola, a primeira coisa que aconteceu no ginásio foi me escolherem
para fazer um show de encerramento e cantar, treinar as pessoas e
tocar violão. Eu tinha aprendido a tocar acordeão quando era mais
nova, mas larguei, e aí... com quinze anos fui para o violão. Apren-
di violão clássico... mas quando cantava é que o negócio dava cer-
to, entendeu? Eu sentia que agradava era quando cantava! Então
passei até a me desinteressar pelo violão, até porque... se eu canto
e todo mundo já gosta, porque é que eu vou ficar treinando esse
negócio aqui?
Luna Messina 27
eu não tivesse ambição. Ah, eu gostaria de ser uma cantora de
sucesso! Mas isso sempre ficou como um objetivo longínquo, não
como uma coisa que eu realmente pudesse fazer. Acho que eu ti-
nha medo. Hoje, pensando bem, eu tinha medo das coisas que via.
Como eu lidava muito no mundo da música, no mundo dos produ-
tores... sabe? Você entra pela cozinha e você sabe como a comida é
feita, aí nem sempre você tem o mesmo apetite. Não é isso? Então,
é uma coisa meio assim... Eu falava: “Ai, meu Deus, ter que sair
com o cara do lado para ficar caitituando o disco, ficar batendo em
rádio, aqui e ali, e depois ter que viajar com umas pessoas que eu
mal-conheço... como é que vai ser? Não estou gostando disso, não
quero isso”. E é muito machista esse mundo.
E as gravações?
As gravações eram as gravadoras estrangeiras, que tinham todo
um esquema. Aí sim tinha um recibo. Mas você tinha que assinar
no recibo que você cedia todos os seus direitos pra eles!
28 Luna Messina
era pela tabela. Depois de alguns anos começou um papo de que
era por “pacote”. Então você vai gravar 10 faixas por tanto. Enten-
deu? Cantei em uns discos, que a gente chamava de Disco Inferno,
que era só pout pourri de samba. A gente, nosso grupo de voca-
listas, fazíamos tudo e cada um fazia um pequeno solo. Depois a
gente fazia não sei quantas dobras — de voz, de palma, de riso, de
alegria, de tudo — e aquilo se juntava para fazer aquele som como
se fosse uma festa. A gente chamava de Disco Inferno porque can-
sava muito porque tinha que fazer tudo em 3 ou 4 dias. A gente
trabalhava até ficar rouco, saíamos arrasados de dentro do estúdio,
e ganhávamos aquele “pacote ”. Normalmente era no final do ano,
época em que você estava a fim de ganhar aquele dinheiro, e era
quando eles faziam o tal do disco. Me lembro do nome “Samba,
Suor e Ouriço” e outros com outros nomes mas do mesmo estilo.
Lembra disso?
Lembro, lembro.
Era um grupo que trabalhava sempre muito junto e que fazia isso
com muita facilidade, porque estava acostumado, treinado já para
trabalhar junto.
Luna Messina 29
musical frente às demandas de trabalho?
Eu só estou tendo isso hoje em dia. Não tinha não. Tinha pouquís-
simos momentos em que a gente criava um arranjo, um arranjo
vocal, em que era dado ao grupo essa chance de criar. Deixavam
porque precisavam e não nos pagavam nada por isso.
30 Luna Messina
gimentadores. Entendeu? Para negociar o preço. As mulheres não
eram tão procuradas. Não que não tivesse uma vez ou outra... mas,
não... na maioria das vezes os homens eram os arregimentadores.
Então, a gente ali era empregada, chegava para fazer o que fosse
determinado.
Tipo o quê?
Se você discorda dele, aí ele não te chama mais pra gravar. Uma
Luna Messina 31
vez que isso aconteceu, uma amiga minha — foi uma situação hor-
rível —, porque foi a minha amiga que veio me pedir para que eu
fosse ao produtor pedir desculpas pelo que eu tinha dito, porque
ele não me chamava e também não chamava ela, porque ela fa-
zia parte do mesmo grupo que eu, então que eu tinha que pedir
desculpas a ele para ele voltar a chamar. Então era uma coisa meio
assim, você tinha que ser meio submissa, meio carneirinho, aceitar
tudo e tinham muitas piadinhas, sabe?
Assédio também?
Assédio, aquela coisa... Não maiores porque eu era muito arisca.
Por isso tinha tanto medo de ser uma cantora profissional, porque
eu sabia que eu ia ter que enfrentar e não ia ser fácil e em propor-
ções bem maiores, né? Uma vez o dono de uma gravadora, de um
estúdio de gravação, sentado em frente a mim, pegou a mão assim,
enfiou no bolso, pegou um monte de dólar, abriu os dólares em
leque e começou a se abanar olhando pra mim fixamente, sabe? E
ele era o dono, o dono daquele espaço que eu trabalhava sempre,
era uma situação totalmente constrangedora, entendeu? Não tive
o que fazer a não ser levantar e ir embora... E o pior, a gente não
podia prejudicar os colegas, ainda tinha essa questão, se você fosse
muito dura com aquele sujeito você ia prejudicar os colegas que
costumavam trabalhar junto contigo.
32 Luna Messina
de chácara lá fora, então o pessoal respeitava. Mas depois isso foi
deteriorando de uma forma... você que tinha que sair de fininho,
tinha que dar um jeito de se livrar daquela criatura. Aí eu parei de
trabalhar a noite. Quando começou assim eu não trabalhei mais.
Homens e mulheres?
Homens e mulheres. Porque os mais velhos estão tomando o lugar
de quem está querendo entrar no mercado. Então o mais velho é
olhado assim como “Ah, esse cara ainda tá tocando, poxa, porque
é que ele não para?” Até eu, quando comecei a cantar, quando era
bem nova, tinha essa visão. Falava: “pô essa gente velha ainda tá
cantando?”. Teve até uma vez que cheguei para uma amiga que
gravava sempre comigo e falei: “os novos estão chegando, daqui a
pouco nós somos aqueles velhos aí ...”. Ela arregalou um olhão pra
Luna Messina 33
mim, assustada, e falou: “Luna, quando você falou aquilo eu saí
correndo para pagar o INSS para minha aposentadoria!”
O que é Gigantinho?
É aquele estádio enorme em Porto Alegre. Ela foi fazer o show no
Gigantinho, cheio de gente, pra cantar “Como uma deusa...”Bem
aquele sucesso. O estádio estava lotado! Impressionantemente lo-
tado. E aí, tinha uma hora que ela apresentava a banda e quando
foi me apresentar, teve o maior “êeeee fiu fiu”, teve o maior “fiu
fiu”no Gigantinho e eu morrendo de vergonha, porque eu estava
com uma meia calça preta. Essa era a roupa. Era a mesma roupa
das meninas, mas eu parecia mais, uma... vamos dizer assim, uma
mulata global oba oba do que uma Paquita, entendeu? Aí foi um
fiu fiu só porque a minha saia tava curta e a minha perna é grossa,
grande... nossa!!! Eu fiquei tão envergonhada!
Imagino!
Essas coisas. Já botei meia calça, roupinha de lamê, tive que botar
para trabalhar também num conjunto, também essa mesma situa-
ção ridícula.
34 Luna Messina
Você só queria cantar, né?...
Só queria trabalhar, cantar.
Luna Messina 35
O que mudou e o que permaneceu em relação às suas aspi-
rações no início da carreira?
Às vezes paro pra pensar que poderia ter feito outra escolha, que
poderia ter feito outra coisa na vida. Mas é difícil sustentar isso
porque, pra mim, a música e cantar foi sempre a única coisa na vida
que me dá um prazer imenso. Eu não tenho nada que me dá mais
prazer do que cantar. Nada! Impossível escolher outra coisa.
36 Luna Messina
Como a maioria...
Que não consegue nada. Se não tiver estudado ele fica a ver navios.
Então, é a mesma coisa com o músico. Acho que ele pode dar uma
sorte, mas a maioria não dá sorte. A maioria tem que se instrumen-
talizar para poder ter uma realização profissional. Hoje acredito
também, que o músico que é muito solitário, tem problemas por-
que o trabalho depende de uma rede de contatos e artefatos que
ele precisa também somar aos dele, para poder estar inserido nesse
mundo de hoje, da arte e da cultura.
Luna Messina 37
38 Sueli Faria
SUELI
FARIA NOME: Sueli Mayerle Faria
IDADE: 61
40 Sueli Faria
minha opinião. Ao mesmo tempo em que ampliou o acesso a mú-
sica, banalizou a experiência de ouvir música. Então, hoje é geral-
mente um fundo musical. Outra coisa, a experiência de ouvir música
está muito associada a imagem, principalmente nas novas gerações.
Eu vejo isso em relação aos meus alunos. Então, quando se para pra
ouvir música, geralmente é um clipe, a música não é o foco princi-
pal. A imagem, às vezes, se torna mais importante que a música em
si. Eu acho que isso tudo repercutiu no mercado de trabalho... os
momentos das pessoas irem para ouvir música estão cada vez mais
restritos a poucas pessoas que ainda mantém essa prática. Então,
além do mercado ter ficado restrito, em termos de tamanho, além
dos cachês, dos direitos da gente estarem cada vez mais diminuídos,
sucumbidos, também o público ficou menor...
Um cachê fechado?
É, geralmente um cachê fechado, ou quando era um trabalho mais cole-
tivo de um grupo onde todo mundo dividia as coisas, por couvert. Hoje
não temos nem a garantia de um cachê fechado. E uma coisa que sem-
pre me chamou a atenção é que muitas pessoas que organizavam ban-
das e contratavam, chamavam os músicos para tocar, quando te chama-
vam não diziam quanto era o cachê. Isso era uma prática muito comum.
Chamar o músico, “Oh! tem uma gig tal, vamos fazer dia tal”, e não se
falava em cachê. Isso era uma coisa que me deixava assim... poxa...
Sueli Faria 41
E o cachê vinha depois?
Vinha depois... Então, muitas vezes quando você perguntava “e
qual é o cachê?” as pessoas que chamavam se sentiam até um pouco
ofendidas... Muito doido, né? Isso era bastante comum. Então era
sem contrato, sem nenhuma garantia, pago diretamente e algumas
vezes também você não recebia, acontecia isso também...
Ou demorava bastante para receber porque, às vezes, a pessoa que
organizou o trabalho também não recebia. Então, a gente por uma
consideração àquela pessoa, porque geralmente era um músico ami-
go, conhecido, que já tinha te chamado pra outras coisas... a gente
considerava que estava no risco junto com ele também e... quer
dizer, sempre, nesse aspecto das garantias, dos direitos do trabalho,
sempre foi uma profissão pouco profissional digamos assim, meio
amadora nesse sentido, você não tinha garantia nenhuma.
42 Sueli Faria
às vezes quinta, às vezes algum trabalho durante a semana. Isso
também foi uma época, né? Que essas grandes orquestras, big
bands e tal, que eram orquestras maiores, foram também perdendo
espaço de trabalho para pequenos grupos de baile. Essa coisa foi du-
rante um período, depois disso não. A irregularidade de trabalho foi
a tônica de todo o meu tempo de profissionalização como música.
Sueli Faria 43
Acadêmica ou Técnica...
Eu acho que o grande lance de todo esse processo profissional em
música, toda a minha atuação como instrumentista profissional, foi
o aprendizado. Eu aprendi muito a profissão, na lida, na experiên-
cia prática de tocar. Eu tive o
"Eu aprendi muito a privilégio de tocar com grandes
profissão, na lida, na músicos de uma geração que
44 Sueli Faria
Um conhecimento que pode morrer ali com as pessoas...
É. De uma certa forma eu consegui ter acesso a essa tradição viva,
né?
Sim.
E chegou até mim.
E isso vai ter um impacto daqui uns trinta anos, sei lá, vin-
te anos...
É uma coisa, inclusive, para se estudar. O pessoal tem aí as grava-
ções, né? Mas não tem mais a possibilidade de estar tocando com
os caras, de interagir, o que é bem diferente. De uma certa forma o
pessoal dessa geração também aprendeu muito com as gravações,
porque eles não tinham acesso a muito material de estudo como
a gente teve. O Juarez sempre me falava que quando chegava um
método de harmonia, por exemplo, de jazz americano, todos se
reuniam em torno daquele livro, estudavam juntos... tinha gente
que queria esconder o método para os outros não aprenderem, en-
tendeu? Era um acontecimento, ficavam tirando os solos dos caras
nas gravações, porque é uma geração que bebeu muito na praia
do jazz. Os instrumentistas dos anos 1960 ficavam tirando nas gra-
vações, tudo direitinho, todas as inflexões, os sotaques, as manhas.
E isso é uma coisa assim que eu aprendi com eles diretamente, eles
até me dando toque: “faz assim, faz assado, aqui assim e tal”... e
talvez essa geração, agora, que não tem tanto acesso a estar tocan-
do com esse monte de músico, em grandes formações, vai ter que
voltar novamente a fazer isso que eles fizeram.
Sueli Faria 45
o compositor que é o criador. O instrumentista é um criador, na
medida em que ele recria aquilo que foi proposto. O arranjador é
um criador,��������������������������������������������������������
o improvisador é um criador e o próprio público é cria-
dor. Porque o público recebe aquilo, cada pessoa recebe aquilo e
se relaciona com aquela experiência da sua própria forma. Então
também tem participação naquela experiência musical, naquela ex-
periência estética. Como instrumentista a gente tá sempre criando,
buscando formas de falar aquele texto, aquele discurso, com a sua
própria emoção, com sua própria visão. Então, nesse sentido, sim.
Como improvisadora também, mais ainda, porque daí é criação na
hora, ao vivo, ali, em cima de uma harmonia dada. Como arranjado-
ra também. Não sou compositora, quer dizer, tenho muito poucas
composições próprias, então não me considero, não me dediquei a
isso. Acho que talvez o meu trabalho de criação mais significativo
tenha sido mesmo como intérprete. Minha característica principal
não é de ser uma improvisadora, embora eu goste de improvisar. Em
muitos momentos eu preferia ficar na posição de naipe, de intér-
prete, mais do que exatamente de improvisadora, principalmente
quando achava que tinham grandes improvisadores, preferia não
me colocar. Mas em vários momentos me coloco também como im-
provisadora e gosto também.
E teve retorno?
A gente conseguia aprovar os projetos na Lei Rouanet, mas não con-
seguia o patrocínio. Isso foi uma coisa que aconteceu não só comi-
go, mas com muita gente.
46 Sueli Faria
A que isso se deve?
Bom, isso se deve, eu acho, ao próprio caráter dessa legislação,
porque joga para o mercado a decisão sobre quem deve ser patro-
cinado ou não. E o mercado quer lucro. Então, o mercado se volta
para quem já tem uma grande visibilidade e que vai trazer grande
visibilidade ao seu produto. A ótica do mercado é essa, mesmo que
eles não estejam investindo nada. O que eles investem é o dinheiro
público. Então, na realidade, é um dinheiro que sai do dinheiro pú-
blico, e que é investido. E todo retorno de divulgação eles ganham
de graça. Esse é um aspecto muito equivocado dessa legislação, por-
que a decisão sobre o que é feito com o dinheiro público não pode
ser do mercado. Isso faz com que muita gente que não tinha essa
visibilidade no mercado, mas que tivesse projetos incríveis e super
dentro das condições exigidas e tal, não conseguissem viabilizar os
seus projetos por falta de patrocínio. Na hora de chegar no patro-
cinador, não tinha como, era uma barreira intransponível. Mas eu
fiz trabalhos de gravação onde toquei em discos de pessoas bem
conhecidas. Aí esses trabalhos eram financiados pela Lei Rouanet.
Então, indiretamente, eu fui paga por esse dinheiro, digamos assim,
mas só dessa forma.
Sueli Faria 47
sobre pintoras latino-americanas, artistas plásticas latino-americanas
do tempo das ditaduras. E ali estava falando que as curadoras fize-
ram essa pesquisa, de como que essa arte delas é escondida, como
que a arte da mulher é escondida historicamente. Figuras com tra-
balhos incríveis, inclusive diz que no MASPE o acervo de obras de
mulheres corresponde a 8% do acervo inteiro. Então você vê que, se
hoje em dia é assim, o quanto que não foi pior em outras épocas, e
que a gente já avançou um bom caminho, embora ainda tenha um
longo caminho para avançar na questão da desigualdade de gêne-
ro. Mas ser discriminada por ser mulher... ganhar menos ou ter me-
nos espaço, não. Eu nunca senti. Mas, com certeza, é uma coisa cul-
tural, já que tem muito mais homens tocando. Quando a pessoa vai
pensar em fazer um trabalho, logo surgem muito mais homens na
sua mente. Nós temos um monte de bandas grandes só de homens,
não porque não haja mulheres com capacidade de estar ali tocando.
Experiências que tenham mulheres dirigindo os trabalhos são expe-
riências raras, são fenômenos atípicos. E isso a gente pode falar no
mundo, né? No mundo, a gente vê isso. Você pega... o que é uma
Maria Schneider nos Estados Unidos, por exemplo? É uma experi-
ência rara, é uma coisa rara, principalmente como instrumentistas,
arranjadoras e compositoras. Como cantoras não, né? Porque tem a
questão do timbre, da voz, e aí não tem jeito, tem que ter mulher
mesmo. É por isso que o espaço da mulher no canto, na música vo-
cal, é mais ampliado, porque o homem não pode cumprir esse papel
que a mulher cumpre em razão do próprio timbre. Mas nos outros
espaços, sim, bastante. Então eu acho que o ambiente de trabalho é
um ambiente machista, no sentido de que se reproduzem formas de
relação com a mulher, mesmo que não seja diretamente com você,
mesmo que com você, comigo, sempre houve um respeito, mas era
generalizado as posturas machistas em relação às mulheres. Então a
gente tinha que ouvir “pérolas”, tinha que assistir a “pérolas” ma-
chistas na relação entre homens e mulheres. Mas também sempre
tentei me colocar de uma forma que me respeitassem. O músico, é
uma categoria que a gente pode considerar bastante alienada po-
liticamente, no seu posicionamento político e no questionamento
48 Sueli Faria
sobre as relações. O músico lê pouco e se informa pouco. Trabalhei,
por exemplo, muito com músicos militares, com músicos evangélicos,
que são setores — não necessariamente — mas, que têm uma ten-
dência ao conservadorismo. Quando trabalhei com as orquestras de
baile, por exemplo, o ambiente era muito esse. Mas, por outro lado,
foi o ambiente onde eu aprendi... isso é um lado democrático na
relação do trabalho musical, né? É que, às vezes, a pessoa mais po-
bre, a pessoa negra, a mais periférica, ela tá na direção do trabalho
por causa da sua competência musical. Isso é uma coisa que é uma
exceção dentro do mundo do trabalho. Tem essas contradições, mas
acho que o ambiente de trabalho é machista, as relações são ma-
chistas. A mulher é invisibilizada no mundo profissional da música,
mas isso eu acho que tem também... não é uma coisa assim... “ah,
os músicos são machistas então é assim”. Não. Existe uma tradição
secular de invisibilidade.
É uma reprodução...
É uma reprodução desses valores e que afetam a gente estrutural-
mente, inclusive, como mulher. Então, a possibilidade de você ser
protagonista fica mais difícil.
Sueli Faria 49
como você se coloca na vida, inclusive nas bandas e no trabalho mu-
sical. É muito mais difícil para uma mulher chegar na frente de um
grupo e improvisar, por exemplo, e assumir o papel de protagonista,
naquele momento onde todas as atenções se voltam pra você, do
que pra um homem. A gente tem muito mais trabalho para conse-
guir chegar nesse ponto. A criação, por exemplo, você expor a sua
criação, você se mostrar com muita visibilidade, o que você sente,
o que você é, na sua criação, é mais difícil. E eu acho que isso fica
muito introjetado na mulher e você tem uma dificuldade a mais pra
fazer isso. Não é falta de capacidade, é uma dificuldade a mais pra
conseguir se expor dessa forma e assumir esse papel de protagonis-
ta na situação musical também. E outra coisa, o papel social da mu-
lher, por exemplo. A mulher, por mais que a gente tenha caminhado
em direitos, ainda a mulher é responsável pela casa, pela educação
dos filhos, no caso da mulher que é mãe, isso faz uma grande, uma
enorme diferença. O homem, mesmo que ele já tenha uma cons-
ciência a mais em relação a isso, ele nunca se sente o responsável
por aquilo, é muito raro. Quando tem filhos então... Nossa! É muito
mais difícil. O seu tempo de preparação, o seu tempo de estudo, o
seu tempo de dedicação e o tempo inclusive psicológico, de tran-
quilidade, de fazer isso, fica muito diminuído. Mas eu acho que
não é só isso, tem outros lados também que o fato de ser mulher
acrescenta... traz, eu imagino que o fato de ser mulher traz outro
tipo de coisa para a música, para o fazer musical. Primeiro, que a
mulher tem essa coisa: a própria vida nos levou a ter que atuar em
um monte de frentes ao mesmo tempo. Então, você é multitarefa, é
multiatenção. Você tem que estar, ao mesmo tempo, segurando vá-
rias coisas. É diferente do homem, que é preparado para exercer o
seu papel profissional, digamos, mais plenamente, mais liberado de
outras preocupações. Acho que a gente traz para o trabalho musical
isso também, traz a coisa do cuidado, pela sua própria biologia, por
ser mãe, né? Ou potencialmente mãe. Mas, também, pelo papel que
tradicionalmente foi atribuído a ela. Então, geralmente, você vê em
bandas de mulheres que essa coisa da relação afetiva do cuidado, e
do cuidado do próprio fazer musical, está presente. Acho que tem
50 Sueli Faria
essas coisas que a nossa condição de mulher traz para o trabalho
musical também.
Sueli Faria 51
mulher barbada, um ser de outro planeta que elas não conseguiam
encaixar dentro de alguma representação possível.
52 Sueli Faria
A opção ou não pela maternidade teve alguma relação com
sua vida laboral?
Com certeza teve, pela não maternidade, no caso, né? Porque a
minha profissão nunca me deu condições de ter, dentro do que eu
entendia, de poder ter uma estrutura para ter um filho, criar um
filho, sem depender da ajuda de família, coisas que eu achava que
tinha que dar conta. Então, da forma como me conduzi profissio-
nalmente, nos momentos em que tinha vontade ainda de ter um
filho, isso se manifestou como um impedimento. Como é que eu vou
trabalhar? Como é que eu vou sustentar? Como é que eu vou ter
grana para pagar alguém para ficar com a criança, na medida em
que também não tenho família aqui, estou distante da minha famí-
lia? Era uma coisa que teria que assumir e nunca tive, efetivamente,
condições materiais, fruto do meu trabalho (como música) que me
possibilitassem essa opção. Isso foi bastante determinante, não foi
a única questão, mas foi bastante determinante por optar pela não
maternidade.
Sueli Faria 53
uma qualidade maior, talvez. Então, nem todas as experiências pas-
sam a te interessar. O próprio envelhecimento faz com que deter-
minadas condições do trabalho de músico da noite, por exemplo, já
sejam muito cansativas. Passar a noite tocando... como eu, chegava
às sete horas da manhã em casa depois de um baile, entendeu? Vin-
do com um sax barítono (de ônibus ainda) pra casa. Ainda se podia
fazer isso, né? O Rio mudou, a vida mudou. Ficou muito mais violen-
to e tal. Passei a ter necessidade de melhores condições de trabalho
porque, senão, seria muito perigoso, seria muito sacrificante, seria
muito cansativo. Na medida em que fui precisando de melhores
condições, e o mercado foi me oferecendo piores condições, a ex-
pectativa de viver de música morreu para mim. Hoje não tenho mais
essa expectativa de viver de música. Continuo fazendo trabalhos
profissionalmente, mas a minha sobrevivência vem de um outro
lado que construí. E hoje em dia, por exemplo, me dou o direito de
escolher bastante, coisa que o músico profissional não tem tanta
condição, porque muitas vezes você tem que fazer o que aparece
para sobreviver. Hoje me dou o direito de escolher bastante os tra-
balhos musicais que vou assumir. E com critério não só musical, mas
também com critério pessoal das relações de trabalho, que vão das
relações entre as pessoas. Isso pra mim é muito importante porque
hoje quero qualidade. Quero fazer música num ambiente afetivo,
num ambiente musical que eu goste, num ambiente estético que eu
goste e numa condição que não seja extremamente sacrificante. A
música passou a ser o meu lugar de conforto, o meu lugar de satis-
fação, enquanto que, muitas vezes, no trabalho profissional, princi-
palmente ao final desse processo em que eu vivia de música, a coisa
passou a ser bastante desconfortável.
54 Sueli Faria
sejam apenas tocar. Por exemplo, escolhi esse caminho da educação
musical, tem a ver com a música, depende da minha formação de
música, mas é uma vertente, vamos dizer, paralela. Tem tantos cami-
nhos possíveis, a coisa da pesquisa em música, como é o teu caso, a
coisa desse mundo digital, da música digital, de desenvolver outras
possibilidades na música. Acho que é muito importante a pessoa
pensar que o mercado de trabalho, para o músico, vamos dizer, prá-
tico, concreto, de você estar ali fazendo a tua música, é uma coisa
que me parece cada vez mais restrito. Então, você tem que ter pos-
sibilidades, fora dessa função exatamente, para te complementar.
Porque, senão, entra num processo em que a instabilidade da vida,
as dificuldades da vida material, te deixam tão conflituado, que
não consegue nem fazer a sua música direito. O ser humano tem
que ter o mínimo de condições básicas de sobrevivência para poder
ter paz de espírito e, antes de tocar, a gente tem que comer, né? É
necessário que a gente garanta essas condições. Acho que, dentro
do mundo da música, há possibilidade de fazer esses atalhos ou
essas relações com outras áreas, eu acho muito importante que, na
sua formação, pensando na profissionalização, você já esteja ligado
nesta realidade. Aí eu acho que é possível.
Sueli Faria 55
56 Maria Teresa Madeira
MARIA
TERESA
MADEIRA NOME: Maria Teresa Madeira Pereira
IDADE: 58
Eu lembro.
Tinham vários concertos ali. O S����������������������������������������
��������������������������������������
rgio Dias
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criou varias séries e eu aca-
bei tocando um monte de coisas com ele. Música barroca, principal-
mente, que é a paixão dele. Toquei cravo no Le Noces Champêtre. Fiz
aula de cravo, comecei a me interessar em tocar junto com as pessoas.
Ele me programava e a gente não ganhava um tostão, mas ganhei
muita experiência. E nisso fui montando vários duos que foram muito
frutíferos nos anos 1980. Muitas dessas pessoas são meus parceiros
ate hoje.
E como é que você fazia para ter uma ideia desse valor? É
um trabalho de uma vida que está aqui representado, mas,
em termos monetários, como é que você fazia para pensar
esse valor?
Eu pensava no valor de uma hora-aula do mercado. Apesar do que
o mercado varia muito. Só que a hora aula passou a ser o tempo em
que eu também teria que preparar o repertório. Porque eu não pode-
ria estar lendo à primeira vista. Nunca fui em um ensaio desses lendo,
a não ser que a pessoa falasse: “experimenta isso aqui”. Eu falo isso
para os alunos, “vá no primeiro ensaio com a música pronta, porque
você não sabe nunca com quem você vai tocar”. Então cobrava, às
vezes, mais um pouquinho o valor da hora, mas isso quando eu tinha
mais segurança. Investi muito no início.
Só a mão? (risos)
O Marquinho Viana, pessoa e músico incrível, lá de Belo Horizonte,
era o diretor musical, e acabou me colocando para gravar os pianos
que eu mesma depois dublei, quando teve a minissérie. E aí surgiu
aquela ideia de fazer os vídeo-clipes no final dos capítulos, tocando
com o cantor. Os primeiros não fiz porque viajei com a minha família
e achei até que eles tinham desistido de mim. Quando voltei, me cha-
maram e eu fiz o resto todo. Foi muito legal, mas minha negociação
com a Globo foi o seguinte: fui fazer a dublagem da Chiquinha e aí
eles me fizeram uma proposta para fazer tudo, trabalhar durante
três meses. Eu falei: “Faz uma proposta que eu vou pensar”. Quando
cheguei lá pra fazer a dublagem de mão, na hora que eu falei: “tem
um papel para eu assinar e tal?” Em geral eu tinha uma regra: não ia
ao PROJAC só para assinar papel, fui pouquíssimas vezes. Eu falava:
“Tem que levar pra mim! Não tenho carro, não dirijo...” Então, isso
já ficou uma regra que acabei botando, pela necessidade mesmo. E
eles obedeceram. Aí dessa vez fui assinar e disseram: “Não, isso aqui
já é parte do pacote”. Eu respondi: “Não, o pacote eu ainda estou
pensando... Não bati o martelo!” Quando cheguei em casa da grava-
ção liguei para o diretor executivo e falei: “Olha, foi ótimo. Adorei o
ambiente mas, vou te avisar que eu não vou mais... amanhã eu não
vou...”. E ele perguntou: O que é que aconteceu? Aí expliquei, mas
tava morrendo de medo...
É mesmo?
Tem esse preconceito, gente! Principalmente porque eu sempre fui clas-
se média no subúrbio, eu não fui uma pessoa que sofreu carências. Eu
não tinha ideia que isso era tão...
Forte, né?
É, mas tem.
De que tipo?
Cantada... Isso existe! Favores. Umas conversas assim muito esquisitas,
sabe? A ponto de você ter que falar: “Olha, há certas coisas que eu só
faço de graça — por prazer — mas, não vai ser agora...”
É verdade.
E aí comecei a me dar conta. No começo tinha o meu horário de
almoço como um horário livre pra ensaiar. O meu horário no sábado
e domingo era livre. Mas passei a não ser tão flexível porque via que
muitas vezes havia esse tipo de coisa.
Levou ele?
Não, ficou em casa com o pai. E minha filha, quando nasceu, eu
trabalhava com corais de empresa, trabalhei muito pra me sustentar,
como acompanhadora.
Foi corajosa...
Viajei com minha filha com dois meses de idade, para ficar quase
Não...
Era uma senhora, morreu há pouco tempo. Ela foi a babá da minha
filha quando toquei lá, com Alan Marion, flautista francês fantástico.
Porque, naquele dia, não tinha ninguém para olhar. Ela ficou toman-
do conta da minha filha, eu tive muita ajuda...
Se colocar...
Exatamente. Porque acho que, num tempo de crise, você vai ser mais
exigido ainda, justamente porque os espaços são poucos. No caso
específico do pianista, acho ótimo quando os alunos falam assim:
“Professora, eu vou acompanhar três pessoas que vão fazer o Tes-
te de Habilidade Específica do vestibular de música”. Maravilhoso!
Mas eu falo para eles: “Cobra!” Sabe? Você sai de casa, você tem
que pegar uma condução, você vai ser responsável pelo respeito
que você quer de volta. Acho que isso não é nenhum problema. Se
você chamar algum instrumentista para tocar num casamento, todos
vão ter que chegar lá. Vocês não tocam de graça. Então, pense que
aquilo ali é uma coisa muito preciosa que o pianista faz. Então eu
insisto, porque o pianista não tem a orquestra que eles têm, você vai
acompanhar para eles fazerem prova para o emprego deles, mas não
vai ser o seu. Então usa isso como um trabalho. Acho que primeiro
tem que ter essa conscientização.
Violino ou Viola?
Violino. E comecei a ser solicitada para trabalhos amadorísticos, não
muito profissionais. Eram corais, casamentos e também para subs-
tituir colegas profissionais que trabalhavam na rádio. Nesse tempo
tinham trabalhos nas orquestras das rádios.
Aqui no Rio?
Aqui no Rio. E eu casei. Minha irmã faleceu e fiquei filha única. Meu
pai ficou muito doente e eu, com casamento, faculdade...estava fa-
zendo arquitetura, tudo junto, não deu mais para continuar como
músico profissional ou quase profissional. Então acabei, aos pouqui-
nhos, parando. E fiquei muitos anos parada. Até que comecei a fazer
o curso de musicoterapia e precisava tocar um instrumento. Eu pen-
sei: “eu já toco... toquei violino, vamos ver se eu ainda toco!”, porque
nunca mais tinha pego o instrumento.
De técnica?
De técnica, mas a base ficou na minha memória toda...Aí ele disse:
“Você vai entrar para a orquestra do Maestro Florentino”. E digo:
“Você tá louco!”. Mas, fui para lá. Era uma orquestra com músicos
profissionais e semiprofissionais. Aí eles me colocaram no naipe dos
primeiros violinos e, então, tive que estudar muito. Daí comecei a ver
com os meus tios, todos os dois — o Jaques Nirenberg e o Henrique
Nirenberg— para que me ajudassem a recuperar o que havia perdido.
Uma coisa é você começar do nada, outra coisa é você saber algumas
coisas e procurar aonde está precisando recuperar. Pronto. Aí, come-
cei a tocar e começaram a me chamar para trabalhos esporádicos.
Quando meu marido ficou em uma situação muito difícil e ao saber
76 Helena Buzack
que ia haver concurso na Sinfônica Brasileira comecei então a me pre-
parar. E entrei para a Sinfônica. Fiquei por um ano de experiência e,
se não me engano, fiz concomitante concurso para o Teatro Munici-
pal, mas não passei. Quando terminei esse primeiro ano de experiên-
cia fiz outra prova e entrei para a OSB.
Um hobby?
Não era bem hobby, era trabalhar nas duas coisas. O meu tio, Jaques
Nirenberg, era psiquiatra e músico, e seu filho, o Ivan Nirenberg, é
também psiquiatra e músico. Naquele tempo era difícil viver bem só
de música. Posteriormente, quando a Sinfônica começou a crescer, é
que melhorou o panorama musical.
Helena Buzack 77
Na sua vida laboral você experimentou contratos de traba-
lho muito variados?
Muito variados. Trabalhei alguns anos na Globo. Comecei substituin-
do umas colegas. Uma colega que teve neném e precisava, de vez em
quando, que eu a substituísse e acabou que ela teve problemas e fui
convidada a ocupar o lugar dela.
78 Helena Buzack
nas orquestras. Eu era solicitada, meu marido tinha altos e baixos no
trabalho dele. Então, pra mim foi bom porque me garantiu o futuro.
Quando você saiu da Globo foi por que? Alguma coisa mu-
dou lá?
Eram duas orquestras. Uma da linha de show e outra só estúdio. Ela gra-
vava fundos musicais de novela, de programas diversos, e nós fazíamos o
Teatro Fênix, que era o vídeo. Quase nunca aparecia o nosso som, a gen-
te tocava, mas a gravação era feita no estúdio pela outra orquestra.
Helena Buzack 79
Que loucura...
Aí a situação ficou muito ruim na Globo. Resolveram acabar com a
nossa na linha de vídeo, de show. Então, a orquestra que gravava o
áudio passou a fazer as duas coisas. Eles chamavam às vezes, mas à
cachê. Foi assim que acabou.
80 Helena Buzack
Por conta do casamento, do teu pai que você falou também,
de família, de cuidar da família, você sente que para a mu-
lher isso acontece com mais frequência do que com o ho-
mem, de ter esse cuidado com a família e a profissão ficar
um pouco de lado...
No meu caso sim. As colegas que tiveram ajuda não precisaram parar.
Quando meus filhos cresceram e sem problemas outros, pude voltar a
trabalhar.
Helena Buzack 81
ele não se adaptou. Comprei e fiquei com ela em casa, parada, por
alguns anos. Aí, resolvi voltar à Escola de Música para fazer o Bacha-
relado em a viola e me formei. Na Sinfônica, o naipe de viola estava
muito desfalcado e então o chefe me convidou...
82 Helena Buzack
não sabíamos se eram devidamente higienizadas. Fomos falar direta-
mente com o diretor e ele acatou. A partir daí levávamos nossos trajes.
Helena Buzack 83
nem constava da lista tríplice, ignorada pela Fundação. Daí veio a
ordem de que Minczuk foi o maestro por eles escolhidos. Os músicos,
como sempre, aceitaram. Minczuk, muito prepotente, querendo mos-
trar trabalho, e compromissado com os curadores, passou a substituir
elementos, principalmente os músicos mais velhos. Contratar jovens e
músicos estrangeiros. Isso é que gerou...
84 Helena Buzack
orquestra não é vista como uma coisa essencial. E quando é vista!
Também, esses aparelhos novos, sintetizadores e outras coisas mais,
estão substituindo os instrumentos tradicionais.
Na própria Globo?
Pois é, pois é. E tinha mais essa: embora a lei não permita, não posso
afirmar se não duplicavam os instrumentos nas gravações, tecnica-
mente.
Helena Buzack 85
Chris Mayer
86 Andrea Ernest
ANDREA
ERNEST
DIAS
NOME: Andrea Ernest Dias
IDADE: 56
Alguém te levou?
Sim. Alguns arranjadores amigos da família souberam que eu estava
aqui no Rio e foram me abrindo as portas para esse mercado. E me
estabeleci bem, porque eu tinha boa leitura e boa qualidade instru-
mental, afinação e sonoridade profissional.
Com orquestra?
Orquestras, naipes de flautas, flauta solo, gravava em todo tipo de
naipe de sopros para a música popular, MPB, samba …Gostava do
trânsito de músicos nos estúdios, de encontrar e tocar com músicos e
arranjadores mais experientes. Gravei em vários projetos instrumen-
tais e outros tantos ligados ao choro, como a Orquestra Pixinguinha.
Tinham editais?
Não, naquele tempo não existiam os editais culturais. Eram propostas
88 Andrea Ernest
que essas instituições aprovavam ou não. Os produtores levavam as
propostas, ou você mesmo levava lá, não era tão difícil conseguir pau-
ta para um show ou concerto. O Rio tinha muitas séries de música de
câmara. A RioArte promovia muita coisa nos teatros e nos palcos que
montava nas ruas. Por exemplo, os famosos concertos instrumentais
no Parque da Catacumba... Cheguei a participar de um deles.
Andrea Ernest 89
Recife e também para a Orquestra Sinfônica Nacional, em Niterói. Só
que, na OSN, eu fui classificada em terceiro lugar e em Recife eu pas-
sei em primeiro lugar. Aí, o meu pai deu aquela pressão de pai: “Você
tem que ter um emprego. Você já recusou a ir para dois. Deixou a
Estácio e não foi para Uberlândia”. Como em Recife era orquestra,
era tocar, eu fui. Fiquei uns sete meses lá, com contrato de trabalho
na prefeitura da cidade.
90 Andrea Ernest
"temos trabalhado
universidades públicas, UFRJ e UNIRIO, muito por
que cedem espaços para os ensaios, bilheteria, poucas
porque muitos dos músicos do grupo
são professores, então eles conseguem
vezes tocamos
esse apoio. Se não fosse isso, acho que com patrocínio,
o grupo nem existiria. É paradoxal, fazemos
quanto mais qualificado a gente foi fi- um esforço
cando, menos apoio a gente foi tendo.
Muito desproporcional isso...
fenomenal"
Andrea Ernest 91
eu fiquei me virando com o material que tinha em casa. Como eu
tinha bastante facilidade, então, me preparei, eu me auto-preparei,
digamos assim. Aos 14 anos já estava tocando na Banda Sinfônica da
Escola de Música de Brasília e fiquei ali até entrar na faculdade, com
17 anos. Eu tinha muita liberdade de escolha de repertório, a gente
ouvia muita música popular, muita MPB — só não ouvia o rock, em
casa. Não ouvia porque não entrava, era uma questão de tendência e
gosto, eu acho. E ouvia música caipira, que meu pai gostava. A gente
ouvia muito aquela coleção do Marcus Pereira, de música popular do
Brasil — do Centro-Oeste, do Sudeste, do Nordeste, do Sul — tudo
isso foi dando uma dimensão maior de repertório e de referências
culturais e nacionais. Ouvia muito choro também. O Clube do Choro
de Brasília funcionou na casa de meus pais uns dois anos antes de ter
uma sede própria. Todo sábado era um desfile de chorões da melhor
qualidade. Na adolescência frequentei os festivais de inverno em
Ouro Preto e Diamantina, onde só se tocava música contemporânea.
Então, acho que minha versatilidade tem sua razão de ser.
92 Andrea Ernest
grupos, de sentar na cadeira e ter partituras na frente... Tinha dias
em que eu saía da música contemporânea e ia para o choro, saía de
um show e entrava no estúdio para gravar com Chico Buarque, Ca-
etano, Guinga… Fui me ocupando com todos esses compromissos e
não dediquei muito tempo para criar algo mais pessoal. Isso só apa-
receu mais tarde, a partir do primeiro disco que gravei com o pianis-
ta Tomás Improta, em 2005, lançado pela Biscoito Fino. Com tantos
repertórios diferentes, eu dediquei muito de meu tempo a praticar o
instrumento e a resolver os desafios das partituras. Mas, quando você
fala em criação você está se referindo à composição?
Andrea Ernest 93
- tinha uns programas lá para apresentar jovens músicos - TV Manche-
te, TV Globo, etc, tinha um recibo, uma nota contratual. Igualmente
nos projetos da prefeitura e outros órgãos. Mas em trabalhos como
festas e casamentos, não era comum assinar algum documento.
94 Andrea Ernest
"Viver como
A que você atribui isso, fora des- instrumentista é
se contexto de orquestra, nesses algo muito difícil,
grupos masculinos, a mulher
ainda ser, até hoje, minoria?
é um meio bem
Viver como instrumentista é algo disputado. Agora
muito difícil, é um meio bem dispu- percebo melhor
tado. Agora percebo melhor que se que se trata de
trata de uma desigualdade de gêne-
ro, de um machismo que ainda não
uma desigualdade
foi suplantado. Veja, na orquestra
de gênero, de um
sinfônica e nas universidades, justa- machismo que ainda
mente onde há uma estabilidade, não foi suplantado"
o número de mulheres é maior. Há
um sentido de responsabilidade aí, de segurança pela sobrevivência
da família.
Andrea Ernest 95
espaço a que temos direito, falar sobre o assunto até que a situação
se naturalize.
Você sente que, por conta disso, você tem que mostrar que
sabe mais? Tem uma pressão para isso?
Não. Num primeiro momento, não. Mas, se eu for “catucar” lá no
fundo, acho que sim. Além de cultural, é algo bem pessoal, e a análi-
se ajuda a enxergar e a lidar com esse tema.
Sempre foi assim ou foi uma coisa que você foi aprenden-
do...
Eu fui aprendendo. Nada como ter 56 anos! Mas é um exercício diá-
rio.
96 Andrea Ernest
E em relação ao assédio? Já teve?
Sim, em algumas ocasiões, um ou outro colega inconveniente que
não perde a ocasião de fazer piadinhas machistas de mau gosto, que
eu sempre rebato. Quero dizer, nem sempre rebati, fiz muita vista
grossa, mas agora eu rebato. E uma vez em que um músico quis impor
seu machismo no ensaio, questionando minhas opiniões de forma mui-
to agressiva, se aproveitando de um momento em que não havia mais
ninguém na sala de ensaios, além de nós dois. Era um músico bem mais
jovem do que eu. Mas eu expus o assédio dele ao grupo (mais uma vez,
eu era a única mulher do grupo), e ele acabou se desculpando. Hoje
em dia nos tratamos bem, e continuamos a trabalhar juntos, eventu-
almente. Mas, em geral, eu sou bastante respeitada no meio.
Andrea Ernest 97
Eu quis ser mãe. Eu fui mãe aos 30 anos e tive um filho. Ele tem 26,
agora. E como eu sempre tive muita independência, pude educá-lo
e trabalhar ao mesmo tempo. O pai dele não colaborou nessa parte
material, se ausentou muito rápido de suas responsabilidades. Esteve
muito pouco presente.
Isso gerou algum tipo de sofrimento para você? Ter que dei-
xar?
Não. Sofrimento não... Estava dentro do previsto. Tinha saudades,
mas sabia que ele estava sendo muito bem cuidado e isso me deixava
tranquila.
98 Andrea Ernest
O que seria importante ao músico para manter a atividade
na música como sua principal fonte de renda? Copiar o que
você fez seria impossível. Então, o que você diria para ele,
para esse sujeito-músico que hoje quer viver disso?
Sim, seria impossível reproduzir a minha trajetória. As coisas mu-
daram muito, quase não há mais formalidade nas contratações de
músicos, então é preciso uma organização diferente que permita
garantir uma vida profissional digna. Não falo de sucesso de mídia e
ou imagem, acho que esse pensamento é inconsistente. Penso mais
em ter um bom conteúdo artístico, respeitando o seu próprio jeito
de fazer música. Porém, ter sucesso é algo em que todo artista pen-
sa, algum dia.
Andrea Ernest 99
mudanças para o debate. As questões trabalhistas estão passando ao
largo da realidade, seria bom que fossem discutidas e atualizadas.
Exato. Não têm nem referência, né? Tem que saber empre-
ender alguma coisa...
Exatamente, tem que ser um empreendedor, palavra que está na
ordem do dia e da qual eu não gosto muito, pois traz um sentido
penoso para a vida. As dificuldades existem e sempre existirão, mas
o que se impõe agora é: ”se você não empreender você não será al-
guém”. Todos temos que ser empresários de nós mesmos? É o famoso
discurso da meritocracia, que pode atingir de forma cruel muita gen-
te. Onde estão os empregos de músicos, hoje? Mesmo nas orquestras
o quadro começa a mudar, com banco de horas, perda de garantias.
Vejo muitos jovens tocando pela questionável “contribuição conscien-
te” do público, tentando descolar um pouco de dinheiro em esque-
mas de vaquinha. Acho isso bem ruim, desvaloriza o trabalho como
eu o entendo.
Obrigada, Andrea.
Obrigada a você, Luciana.
Sempre o baixo?
O grave, né? Aquela sonoridade grave sempre me atraiu...
Elétrico ou acústico?
Elétrico. Daí, depois fui aprender a tocar o violão. Estudei na escola
de Música Villa- Lobos, com o professor Leopoldo Carelli Touza He-
reder, já falecido. Ele era gorducho, um pianista, gente boníssima,
educadérrimo. Tinha um carinho comigo. E aí, um belo dia, pergun-
tou — na época era diretor da escola—:“Por que você não aprende
um instrumento de harmonia?” Na verdade, eu não sabia nem o que
significava essa palavra. Ele disse: “Você tem duas opções, ou aprende
a tocar piano ou aprende a tocar violão”. E aí pensei: “Bom, como o
violão é um instrumento de cordas, portátil, bem mais barato e fácil,
talvez tenha alguma coisa em comum”. E preferi o violão. Foi assim
que eu aprendi a tocar violão.
Depois do baixo?
Depois da experiência de tocar o contrabaixo. E, aliás, foi o violão
que me trouxe o pão de cada dia...
De violão?
De violão! As pessoas ligavam para mim e eu não tinha horário. Ro-
dava a cidade o tempo todo, pegava ônibus daqui para ali, pegava
metrô e tal.
As portas se fecharam...
Se fecharam porque parei também de buscar. Imagina, como é que
eu vou...
É mesmo?
Não parece, mas é. É
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uma triste realidade.������������������������
Porque a arte não deve-
No João Caetano?
Naquelas escadas do teatro, ficavam os músicos, todos ali de terno,
com o terninho no colo, todo mundo com seu instrumento, ali...
Que genial!
É. Vou te explicar o outro lado genial disso. Tinha, assim, quem che-
gou primeiro daquele instrumento.
Fila?
Já tinha a fila de quem chegou no contrabaixo. Primeiro, segundo, ter-
ceiro. O barato disso é que enquanto não era chamado, o papo que ro-
Que barato!
E as piadas com base real. Tipo assim, o cara ligava: “Oh, tudo
bem? Olha só, tu vai tocar em Angra dos Reis”. “É mesmo?” “É, na
orquestra do fulano...” “Tá legal...” “A gente tem que ir lá, tal hora,
olha camisa branca e sapato preto, calça preta...” “Ah, tá legal. E aí o
cachê?” “Ah, o cachê é... tu, tu,tu, tu”. Na hora, caía a ligação...
Alguma questão.
Alguma questão, voltada para... Aí você fica assim: “Caramba, o que
poderá ser?” Você vai elencando tudo... E como tem essas questões
de preconceito com isso, aquilo e aquilo outro, tipo, é uma dessas
coisas...
E vai trabalhar!
É complicado... Não, não sei, vai depender do contexto. Se trabalhar na
área da gestão, por exemplo, na coordenação (acho pouco provável),
mas, por exemplo, seu eu trabalhar como orientadora educacional, onde
estiver, vou puxar brasa para essa sardinha. É uma coisa que eu gosto,
mas que também entendo as questões cognitivas (a importância da
música na questão da educação). Heitor Villa-Lobos foi, é e continuará
sendo referência para mim, na área da educação musical. Ele não era
pedagogo, mas conseguiu fazer, conseguiu quebrar barreiras, conseguiu
levar a educação musical para as escolas. Ele regeu o coro orfeônico, era
um cara visionário. Ele trouxe para mim essa referência do ensino, o que
é o ensino musical nas escolas. Eu quero deixar um legado, deixar algo,
deixar uma contribuição. Passei por esse mundo e deixei uma contribui-
ção, anonimamente ou não —, isso não é algo relevante para mim — o
que é importante é ter deixado algo de bom. É isso que é legal.
Ah, maravilhoso!
Esse meu tio me deu esse violão e tal. E eu fazia faculdade, estudava Fi-
losofia e Letras (português e inglês). Eu tinha estudado em uma escola
americana durante muitos anos também. Aliás, é um caso extra. Eu tive
paralisia com 10 meses de idade e minha mãe e meu pai me levaram para
fazer um tratamento nos Estados Unidos quando eu tinha dois anos. Eu
não falava nem português ainda e o pouco que eu sabia falar, na vida,
eu falava em inglês. Então, fiquei um mês lá e, quando voltei, cheguei
em idade de ir para a escola — jardim de infância — me colocaram numa
escola americana. Meus irmãos sempre tiveram muito ciúme, porque eles
sendo mais velhos do que eu (sou a caçula), nunca tiveram essa chance.
Ninguém fala inglês bem como eu falo lá em casa... Mas, enfim, essa é
outra história. Eu fazia Letras. Passei para a faculdade já tocando violão,
tocando violão, tocando violão, tocando violão...
O que você acha que a pessoa tem que fazer hoje para se
manter, de fato, nessa profissão?
Olha, eu não posso dar esse conselho porque não sei. Ainda estou
engatinhando nessa nova situação em que a música se encontra, por-
que foi muito rápido. Foram 20 anos que fez assim ó: brummmmmm.
Vinte anos é pouco tempo para se digerir isso tudo. Mas mudou com-
pletamente, era um esquema, de repente veio outro esquema. Os
problemas aqui eram esses, agora os problemas são outros. Primeiro,
você não tem mais onde tocar. Os espaços acabaram... A crise que a
gente está vivendo nesse país (no mundo!), principalmente no Brasil,
acabou com muitas oportunidades e espaços para artistas. São poucos
espaços, onde dificilmente artistas fora da mídia conseguem chegar.
Tem que aprender a gravar em casa, tem que desenvolver o seu lado
criativo dentro da sua casa... busco muito isso, aprender a usar as pla-
taformas digitais é fundamental... e difícil. Estou tentando aprender
me cercando de gente que já aprendeu e que me ensine. Mas é ainda
tudo difícil para mim. Para a minha geração ainda é difícil entender
Gaita?
Gaita. E tive muita sorte porque fui ter aula com o José Staneck e o
Zé me ajudou muito. Teve o primeiro grupo da Musiarte de música
instrumental e eram todos homens. Eu não quis participar por isso e
o Zé foi quem insistiu para que eu participasse. Ele disse: “Não, Guta,
você vai tocar. Se você não tocar, não estuda mais comigo”. Muito
legal, né? “Mas, eles tocam muito mais que eu, não sei improvisar...”
“Ah! Sabe sim. Você vai para casa e vai estudar escala de blues”. En-
tão, foi assim, esse grupo instrumental, a gente ensaiava pelo menos
três horas três vezes por semana. Isso quando não tinha apresenta-
ção. Quando tinha, a gente ensaiava a semana inteira. Nós íamos
para a casa do baterista e ficávamos ensaiando, era muito legal. Era
com o Eduardo Caribé, o Roberto Mirabelli, o Hiroshi. Hoje, o Hiroshi
toca com o Lulu Santos e o Roberto toca com a Martinália. Quer di-
zer, cada um foi para o seu caminho. Mas, o grande barato é que a
gente se reunia ali para ficar estudando e uma vez por mês a gente
ia na casa do Hermeto Paschoal. Eu tinha 20 anos, 19 para 20. Essa
experiência foi legal para caramba, o que me impulsionou. Pensei:
“Ah! Eu quero fazer isso e nunca mais cantei porque eu queria fazer
música instrumental”.
De gaita mesmo?
De gaita. Acho que eu conheci você até na escola Rio Música.
Você acha que era muito diferente do que a gente tem hoje?
Completamente! O mercado era completamente diferente. Depois
fui estudar com o Ian Guest. A Marisa Gandelman disse para mim:
“Vai para a escola do Ian Guest dar continuidade aos seus estudos.
Vai estudar arranjo com o Ian.” Beleza, fui estudar, estudei arranjo
com o Ian e lá percebi que tinha que tocar mais um instrumento de
sopro. E também na casa do Hermeto, uma vez ele virou para mim e
falou: “Não, tem que tocar!” Imagina! Ele que toca milhões de ins-
trumentos! Aí foi nessa. Foi quando resolvi comprar um trompete.
Comecei a dar aula de gaita no Ian e, a partir daí, comecei a ter aula
particular de trompete para poder tocar e, enfim, abrir esse merca-
do. Se você parar para pensar, ninguém faz isso, tocar trompete e
harmônica...
Sim.
Aí, começaram a vir críticas do tipo: “Como é que você vai tocar trom-
pete? Mulher não toca trompete.”
É mesmo?
É isso. Aí o buraco é mais embaixo, porque tocar gaita é uma coisa.
Eu já tocava, já estava no mercado. Tocava com o Yuri Popoff, gra-
vei com ele, gravei com o Vitor Santos, trabalhava com uma porção
Como gaitista?
Como gaitista. Mas, tinham os trompetistas que já estavam me co-
nhecendo e que me deram uma força. Porque eu precisava trabalhar
e, ao mesmo tempo, queria tocar. Comecei ensaiando, mas aí, come-
çou a faltar um trompetista, começou a faltar outro, aí nessa... “Guta
você pode?”, “Posso, claro!” Ia tocar lá como substituta, mas acabou
que entrei e fiquei na Rio Jazz durante 15 anos. Foi uma boa experi-
ência de baile, o que seria o trabalho da noite.
Olha... é mesmo?
Fazendo cachê por fora também.
É um clichê, né?
Ou então, você improvisa bem e o outro fala assim: “Ah, você toca
bem... Ah, você estudou com o seu marido?...” Oie! Essas coisas assim.
Legal.
Tem, tem. Hoje em dia, tem.
Se espelhar, né?
Não tinha, não tinha.
Mas, você pensou que o fato de não ter filhos tem a ver com
essa questão?
Acho que tem. Até porque, o Flávio também não tinha emprego
fixo, então ia sobrecarregar. Ainda mais tendo que viajar, entendeu?
Do trabalho...
Da vida. Aí foi muito louco, porque, eu falei assim “Ah, então,
quer saber? Eu vou largar. Vou ficar nesse emprego e quando me
mandarem embora, vou fazer uma outra coisa...” E realmente pen-
sei em fazer uma outra coisa. Mas aí eu comecei a estudar com o
Nailson Simões e ele foi muito importante, foi fundamental. Ele
falou: “Guta, você não está tocando bem, por causa disso, disso
e disso...” Ele me “comprou” como aluna. E a partir daquele mo-
Fazendo o quê?
Já tocando como freelancer, trabalhando com cantoras. E aí, com 20
para 21 anos (em 1991), consegui um emprego de pianista, que foi
o único que tive na minha vida, de carteira assinada. Foi em um res-
taurante italiano, aqui na Tijuca, chamado Fiorino. Fiz um teste de
piano e cheguei nesse teste via anúncio de jornal. Tinha acabado de
me mudar para o Catete com a minha irmã e a gente tinha alugado
um apartamento de quarto e sala sem saber como ia pagar. Antes
disso eu morava com a minha mãe em BH, e quando tinha 18 anos
minha mãe faleceu. Meu pai morava no Rio. Daí, meu pai alugou um
apartamento para minha irmã e eu no prédio em que ele morava. Ele
bancou o apartamento por um ano. Ele nessa época já tinha outra
família. Depois de um ano, não deu conta e falou algo do tipo: “Não
posso mais sustentar vocês”.
Caramba!
Minha irmã e eu não tínhamos condições de continuar naquele
apartamento e foi então que nos mudamos para um quarto e sala
no Catete. Fomos morar junto com uma colega da CAL, com quem
minha irmã fazia teatro. A gente não sabia como ía pagar, e naquele
momento li um anúncio no jornal: “Precisa-se de pianista”. Aí fui lá
no Fiorino fazer o teste. Uma cena de filme! Tinha um piano Fritz
Dobbert de meia cauda no salão do restaurante e um banquinho na
varanda do lado de fora, com duas ou três pessoas sentadas espe-
rando a sua vez de fazer o teste. Depois que toquei, uma das donas
do restaurante disse: “Ah, eu gostei muito, toca mais uma, eu vou te
ligar amanhã, toca mais uma”.
Nossa!!!
Isso foi muito bom para mim, em vários sentidos. Tocava de terça a
sábado, das oito à meia noite, e domingo de meio dia às quatro. Foi
maravilhoso para a formação de repertório, para estudo...
Só você...?
Piano solo.
Profissional mesmo?
Não. Meu avô era iugoslavo e morava em Belo Horizonte naquela
Que coisa!
Chegaram ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás, e fizeram
a vida aqui. O meu avô sempre quis ser músico, só que o pai dele era
dono de uma fábrica e — ricos né? — dificilmente a pessoa se torna
músico sendo rico, não é verdade?
Curioso isso!
Teve que ser engenheiro têxtil para tocar a indústria da família, os
negócios da família, mas a alma dele era de músico. Ele era amigo do
pai do Ian Guest.
Em Fort Lauderdale?
Fiquei três meses em Fort Lauderdale e depois fui para outro navio,
enquanto a companhia carioca voltou para o Brasil, pois a empresa
havia falido, parece. Havia uma vaga para tecladista na companhia
Por que?
Provavelmente pensaram: “Ah, você é solteira, já trabalhou em navio,
tem visto C1/D, tem parente lá — eu tinha tias-avós, que eram irmãs
do meu avô, que moravam em Nova Jersey – você não vai voltar!”
Olha só!
Depois disso tudo, dessa construção toda, desse sonho todo, coloquei
o pé na realidade: “Ah... Fiquei no Brasil”. Aí surge o Celebrare.
Que loucura!
Eu sou do começo do Celebrare, do segundo ensaio. Então começa o
Celebrare e a vida toma esse curso…
Que coisa!
Foi uma banda criada para tocar dentro da comunidade judaica, ini-
cialmente. Foi constituída pelo Marco Manela e o baterista Edu Lisso-
vsky.
E a faculdade?
Entrei para a UFRJ em 1995. Fiz um vestibular com 5 vagas, 3 candida-
tos e passei em primeiro lugar! Uma coisa assim! Kkk. Tenho no meu
histórico o 1o.lugar na UFRJ!
Piano mesmo?
Composição. Fiz dois anos e meio, mas chegou uma hora em que fa-
lei: “Não vou ser compositora de música contemporânea, não é isso”.
Aí em 1998 eu fiquei grávida da Clara e tranquei a UFRJ.
Ainda existe?
O Celebrare ainda existe. E aí, diante disso tudo, o que fui fazer? Co-
mecei a me interessar por projetos culturais, fiz um curso de projetos,
que foi uma parada que eu descobri gostar de realizar na época.
Produção?
Sim. Criar projetos! Fiz um curso de Gestão Cultural na Faculdade
Cândido Mendes, um curso lato sensu. Foi ótimo para mim, deu uma
visão geral de várias áreas, aprendi a fazer Projeto Cultural. A pri-
meira pessoa que me deu uma aula sobre projeto na vida foi a Laura
Rónai.
É mesmo?
Eu fui na casa dela e ela me mostrou um projeto que tinha. Depois
trabalharia com ela nesse mesmo projeto, tempos depois. Lindo! Em
seguida, fiz um curso com a Graça Gomes e depois esse MBA de Ges-
tão Cultural, de 2008 a 2010.
Mas, você faz projetos para você mesma atuar ou para ou-
tras pessoas também?
Fiz também para outras. Trabalhava com projetos mesmo. Eu gosto
porque é uma parte criativa: você cria o projeto. Eu não gosto de
trabalhar com a produção, eu gosto de trabalhar com a criação do
projeto, mas tive que fazer produção também. Fizemos um festival ma-
ravilhoso no Parque das Ruínas, depois, fizemos a segunda edição dele,
a Mostra Panacéia Instrumental. A segunda edição fechou com show
do Hermeto e banda, foi legal para caramba, só com projeto de música
boa. Isso foi bacana, sabe? Foi um ano bom, já que, em função desses
projetos, eu consegui dar entrada nesse apartamento aqui.
Que ótimo!
É, saí do aluguel e passei a pagar financiamento da Caixa! Rs.
Pesado, né?
Pode ficar pior? Ficou pior. Era sempre investimento dos músicos.
Vamos ensaiar? Vamos. Você pega e bota a sua gasolina, sem ga-
nhar para ensaiar. Faz tudo isso, monta um projeto todo novo
para ganhar apenas o cachê do show no dia do show, como estava
acontecendo para este novo projeto que inventaram, que seria a
“salvação” e que estrearia no dia 30 de junho no Vivo Rio, uma
Esse ano?
Sim. Desde o lançamento do CD para cá foram 12 shows. Eu consegui
fazer o lançamento na Sala Cecília Meireles, depois a gente foi fazer
Não é mole não. Só pra terminar, além disso tudo, você tam-
bém dá aula particular?
Sim, sempre dei aulas particulares, de piano, teclado, harmonia…
dou aulas para diferentes níveis desde que completei meus estudos
de harmonia e comecei trabalhar profissionalmente. E esse trabalho
de lecionar cresceu tanto quando completei a graduação, quanto o
mestrado. Acho que é uma coisa que só cresce junto com seus estudos
e prática profissional, não é estática. Hoje recebo muitos alunos da
Internet que vêm pelo currículo.
O contato, o convívio...
O contato, o convívio com a música viva, com a música que faz parte
das festas populares, a música que anima a vida do ser humano, da
alma, esse estado, essa coisa que a música faz com o ser humano.
Com seis para sete anos entrei em uma aula de piano, com a filha do
meu padrinho, que era pianista. Ela, sim, professora de piano, Maria
da Graça Santos. Eu amava as aulas de piano. Diziam que eu lia muito
bem, mas eu não lia nada, decorava tudo, ouvia uma vez e já tinha
decorado.
Direito?
É, porque o meu pai era advogado, se aposentou como diretor da
faculdade de Direito. Meu avô foi um dos dois caras que fundou a
faculdade de Direito do Maranhão. Então, eu estava um pouco des-
tinada (era a expectativa) e entretanto não existia, no Maranhão, a
figura do músico profissional. Eu não conhecia, não tinha faculdade
de Música. Não tinha orquestra. Já tinha havido, mas as orquestras
tinham desaparecido.
Você no violão?
Eu nessa altura já estava na flauta, clarinete, cavaco...
Dando aula...
Dando aula. Aliás, posso te dar um exemplo que é, assim, bem ilustrati-
vo: eu tive vários grupos. Tive o Manga Verde com Nilson Chaves, aquele
músico paraense, o Pomar, que tinha o Paulo Romário, pianista. Ele morava
na mesma rua que eu, na Ferreira. A gente ensaiava na casa dele, lá tinha
um piano de cauda. Esse grupo chegou a acompanhar a Elba Ramalho,
nessa época eu estava fazendo outra coisa, não fui acompanhar a Elba.
Se oferecer?
Fui lá “aparecer”, olhar o que estava acontecendo. Cheguei e a situa-
ção era a seguinte: o Dori ensaiando um monte de homem, porque a
peça era O Santo Inquérito do Dias Gomes — que eram todos os perso-
nagens masculinos — um enorme coro, tudo homem e só uma mulher.
No início foi a Isabel Ribeiro, depois a Isabel saiu e entrou a Dina Sfat.
Estava ele ensaiando aqueles homens meio desafinados e ele suando...
Daí eu cheguei, calma, invisível — tinham personagens passando cena
— e comecei a ajudar a ensaiar, como quem não quer nada. E foi óti-
mo, Dori adorou e no final do ensaio ele mostrou as partituras.
Sensacional!
Ao longo dos anos, são quarenta e tantos anos, você diria que
o ritmo de trabalho, de “pintar” uma coisa aqui e outra ali, isso
continua igual? Ou teve algum momento que você sentiu que
isso mudou, que hoje é diferente daquela época? Você vê uma
continuidade ou você vê que teve um momento de ruptura?
De volume de trabalho, teve essa coisa do momento de surpresa do
mercado. Porque o dinheiro maior que rolava da música era indus-
trial, era dos discos — não era entretenimento, música para bar, isso
era complemento, na verdade. Se olhar para trás, com muito cuidado,
eu posso dizer que a minha carreira musical foi intermitente, porque
as minhas maternidades interromperam isso. Quando você pergun-
tou: “Você ia trabalhar com a
Mariana?” Levava a Mariana "Se olhar para trás,
para o teatro, levava na cesti- com muito cuidado, eu
nha, ao Parque Laje, me lem- posso dizer que a minha
bro, estava com ela na cesti-
nha, fazendo espetáculo lá.
carreira musical foi
Deixava alguém olhando, mas intermitente, porque as
sempre tive um esquema... minhas maternidades
interromperam isso"
São três filhos, né?
São três filhos. Então, os pais também ajudaram a segurar a onda, em
vários momentos. Quando os pais não podiam ajudar os avós ajuda-
vam. Essa coisa do sustento familiar, o encargo de você ter que pagar
um aluguel, ter que pagar a escola... A escola dos meus filhos, eu re-
solvi dando aula na escola.
Na escola?
É. Senador Corrêa. A Mariana estudou primeiro no Instituto Nazareth
que era da Regina Yolanda. Ela fez um ano lá. Aí saiu do Nazareth
e foi para a Senador Corrêa — e eu entrei para dar aula lá. Paralela-
Sempre foi?
Sempre foi. Por exemplo, eu ganhei dinheiro com o Mário Lago por-
que ele era comunista. A gente ganhava um e ele ganhava dois, a
proporção era essa. Então, dava mais dinheiro. Ele vendia o show a
tanto, duas cotas eram dele e cada um ficava com uma cota. Eu ainda
tinha uma parte de direção musical.
Era porcentagem?
Era porcentagem. Porque tinha o da casa, do som e ainda tinha do
programador. Mas a gente levava uma graninha para casa. O Choro
na feira foi que abriu o Rio Scenarium, foi o primeiro grupo a tocar
lá.
No Hotel Meridien!
É verdade, foi o nosso primeiro trabalho profissional! Eu tinha uns 18
anos, não tinha feito nem faculdade ainda. Não tinha me formado...
Aí você se formou?
Eu fiquei quatro anos porque comecei mais ou menos do zero. Eu,
para uma pianista de performance (como eles chamam) tocava
muito mal. Mas, para uma pessoa de curso de composição, eu to-
cava para caramba! De repente, de uma “porcaria”, eu passei a ser
uma excelente pianista. E até aquilo me deu um ganho emocional
também, porque os caras achavam que eu tocava pra caramba. Eu
tocava Odeon, Brejeiro, essas coisas nossas, chorinho no piano. Daí,
fui fazer as matérias e voltei até a cantar no chuveiro. É muito louco
isso: voltei a tocar violão, voltei a compor no meu piano, recuperei a
minha essência...
E como é que foi essa volta para cá, já com vinte e poucos
anos, formada?
Ah! Foi o máximo! Foi o máximo porque eu não tinha vontade ne-
nhuma de ficar lá. Nenhuma. Eu tinha um negócio no armário que ia
riscando “xizinho”, contando os dias para voltar, não queria ficar lá.
Porque é uma ilusão enorme isso, de que “Ah, você vai ficar, vai tra-
balhar...” Mentira! Eles vão dar sempre prioridade aos americanos. A
menos que você trabalhe com música brasileira, especificamente. Eu
não tocava bem para arrumar gig lá, de tocar música brasileira. Nem
eu queria isso. Então, foi ótimo. Daí, cheguei aqui e fui acompanhar
umas cantoras chatas para caramba. Foi um trabalho chato, eu não
gostava de fazer isso.
Música popular?
Música popular. Acompanhar cantora para fazer show em casa no-
turna. Aí eu fiz alguns — não muitos — mas fiz alguns. Curti, assim,
E a aposentadoria?
Eu tenho um plano de previdência privada há uns 15 anos, mais ou
menos.
E aula?
Eu dei muita aula, há muito tempo atrás. Dava aula particular de pia-
Ah, é mesmo?
A cantora nunca existiu, né, Lu? Eu queria trabalhar com música, na
verdade. A ânsia era trabalhar com música, mas não sabia tocar piano
popular. Não sei se você lembra que eu escrevia os solos das músicas,
as introduções. Escrevia tudo como se fosse uma música clássica. Eu
lia a partitura. E aí, na ânsia de querer trabalhar... Eu gostava de can-
tar no chuveiro e nem sei se era afinada. Porque, hoje em dia, não
me considero nem um pouco afinada, assim, a ponto de cantar bem.
Eu nunca cantei bem. E aí, acho que só fiz aquele trabalho mesmo.
Quer dizer, aquele trabalho de contrato assinado e tal, a gente fez
no Meridien. Cantei em um monte de barzinho também — com você
e outro violonista — mas foi naquela época, quantos anos a gente
tinha? 17 ou 18 anos? Depois, nunca mais. Eu não me atreveria a can-
tar por aí.
O que você diria para uma pessoa que está começando, que-
rendo ser músico, para sobreviver desse trabalho?
Ah, faça com amor! Sabe? Tenha amor. Eu tenho uma visão poética
da vida.
Mas e esse lance que você acabou de falar... tem que ter a
concretude que você tem que saber jogar nas 11 posições...
É, mas se tiver dentro daquilo que você ama, de alguma maneira...
Você tem que saber, primeiro, tem que determinar o que te encanta,
em primeiro lugar. Eu daria esse conselho. Não pense qual é a área da
música que vai te dar mais dinheiro...
Como é que era isso? O show, por exemplo, vocês eram con-
vidados? Ou vocês iam em um lugar e perguntavam como é
que era para fazer lá... Como é que era?
Um misto, né? Quando a gente finalmente montou o show “Bem
Baixinho” e gravamos o disco, a gente estreou o show lá na CAL, por-
que, nessa época, estava fazendo curso de teatro, na Casa das Artes
de Laranjeiras. E lá o pessoal gostava muito do meu jeito de cantar.
Tinha um teatrinho com um palquinho onde a gente fazia as ativi-
dades teatrais, as aulas e tudo. E daí perguntei: “Posso estrear meu
Vocês se autoproduziam?
Tudo! Produção independente. O acordo com os músicos era muito
engraçado — para não dizer que era trágico, né? (risos) — porque,
era assim: eu sou a cantora, então, eu tinha que fazer aquela parte
mais chata da produção, ir nos jornais, dar as entrevistas, batalhar as
coisas. Tinha umas ajudas até bem bacanas por parte de todos, mas
a parte da ralação era comigo mesma. E daí a gente dividia o cachê
igualmente. Eu não ganhava mais do que uma décima parte.
E eles davam?
Os músicos estão sempre dando aula. Eles tocam e dão aula e aí con-
seguem financiar a própria vida. Eu fiquei na casa da minha mãe até
os 27 anos, porque tudo que eu ganhava investia na minha carreira.
Depois saí de casa com um companheiro, fui morar fora. E ainda fi-
Na licenciatura?
Não, em MPB.
Puxa.
Mas, foi muito legal. Foi bom enquanto durou.
Entendi.
No dia-a-dia da gente, nós não lidamos com isso. Tem 40 anos que eu
canto. Quando que algum músico me deu uma partitura? Nunca ne-
nhum músico me deu uma partitura. Eles mandam a gravação.
Ou coro.
De coro, alguns leem, outros não leem — essa é a realidade dos co-
ros, vai pelo ouvido também. “Ah, vai cantar jingle.” Jingle é que
ele não vai ler mesmo. Eles se desenvolvem pela rapidez da audição.
Tipo: “Olha, é assim: da-ba-da-ba-da”. E o cara faz: “da-ba-da-ba-da.”
O quê mais? “Du-bu-du-bu-du”, e ele repete “Du-bu-du-bu-du”. O
cantor ouve! Acho que a abordagem do aprendizado do cantor na
universidade tem que ser desenvolvida ainda, utilizando essas carac-
terísticas específicas que ele tem.
Bem recente.
E não tinha internet, né? Não tinha essa facilidade de tudo que tem
hoje. Então o GEV era uma forma da gente fazer uma universidade
para nós — de professor de canto popular. Foi aí que começou certa
militância, em torno da defesa do canto popular, porque a gente
encontrava muitas barreiras para o ensino do canto popular. Quem
podia ter aula de canto, antes da nossa geração, ia ter aula com
professor de canto erudito. Até hoje ainda existe gente que acha que
tem que estudar canto erudito para cantar música popular. Então o
GEV era também um espaço que a gente tinha para afirmar a nossa
existência, afirmar a nossa capacidade, afirmar a necessidade do
trabalho que a gente oferecia, né? Então, foi uma militância também
em torno disso. E eu sempre achei que o cantor popular tinha que en-
trar na universidade. E, na era Lula, realmente entrou com mais força.
Te consumiu, né?
Muito doido.
A vaga era minha mesmo! (Risos)
Queria tocar?
É, estava ali porque queria tocar. Tinha uma atração, não pensava muito
em termos racionais. E então, quand��������������������������������
o eu comecei a estudar no Villa-
-Lobos, tinha aquela coisa... Tinham aqueles corredores em que ficavam
De sax?
Sim, mas antes entrei com flauta mesmo. Daí, comecei com esse negócio
de novo, de incomodar insistentemente a minha família: eu queria um
instrumento! Mas ninguém podia comprar, de jeito nenhum. Eles tenta-
vam, mas não conseguiam. Eu era adolescente e isso me gerava mágoa,
até porque era tudo muito difícil. Tinha que ir para Campo Grande, eu
ia de trem, voltava de trem e era cheio, aquela coisa. E não conseguia
comprar um instrumento, e
"eu queria um os anos iam passando, pas-
instrumento! Mas sando, e isso já vinha desde
ninguém podia comprar. o piano. Com uns 16 para
17 anos fui ficando irritada
(...) Eu era adolescente mesmo. Então, cismei que
e isso me gerava mágoa, ia comprar a flauta e, para
até porque era tudo isso, comecei a fazer peque-
muito difícil" nos trabalhos. Além de estu-
dar, eu trabalhava. Trabalhei
em ônibus de criança, ajudando a criança a entrar, entregando a criança
em casa. Trabalhei como esse pessoal que distribui papel na rua. Pegava
esse tipo de bico, principalmente nos finais de semana. Fiz vários bicos,
pequenos trabalhos que iam pintando e eu ia juntando dinheiro, vendo
se ia conseguir comprar a flauta. Meu primeiro objetivo era comprar a
flauta. Foi muito interessante. E daí, consegui comprar a flauta — uma
flauta muito ruim, mas consegui uma flauta transversa. Levei-a para casa
e não falei para ninguém. Cheguei em casa, montei no quarto da minha
mãe — nunca me esqueço desse dia — comecei a tocar aquela flauta.
Quando eles ouviram o som que vieram ver, meu pai e minha mãe dis-
Vivia disso?
Vivia desse tipo de trabalho. E, morando com a família, era mais fácil. Mas,
Ilegal?
Ilegal total. Enquanto eu estava com a Denise, a gente foi fazendo con-
tato com outros músicos em Lisboa. Ela era um tipo de pessoa que fuça
as paradas. Pois ela conheceu um grupo africano maravilhoso e come-
cei a tocar com eles, em Lisboa.
Tinha um mercado?
Tinha um mercado e as pessoas apoiavam. Eu também tinha uma coi-
sa, digamos, exótica. Eu era uma pessoa exótica e atraía muito a aten-
ção. Fiz muita gig, trabalhei muito. Depois fui para Holanda e toquei
lá... Foi quando aqui teve a eleição do Lula e vi que era um momento
legal de voltar para o Brasil. Havia acontecido o que eu esperava, o
que eu acreditava. As duas últimas eleições do Lula eu tinha votado
na Holanda, e aí ele venceu na última.
Você viveu uma fase em que ganhava pouco, mas tinha muito
trabalho aqui no Brasil. Mas, depois que saiu do Brasil é que você
conseguiu ganhar algum dinheiro, viver melhor e ter uma pers-
pectiva, não é? Quando você volta, o que é que você vê em termos
de perspectiva de trabalho, até para se manter como músico?
Comecei a perceber que eu tinha que ter um outro trabalho...
O que você diria para uma pessoa que hoje começa a fazer
música, no sentido de que, de fato essa pessoa consiga so-
breviver desse ofício?
Nossa, que pergunta tão difícil... Porque eu nunca pensei nisso, assim...
É curioso... Essa coisa de virar uma professora de música é algo recente,
então, em termos de pensar nisso, acaba sendo uma resposta quase
educativa. Se pensar em termos educativos, este foi um papel que eu
sempre resisti muito a entrar: eu vim dar aula de música, mesmo, no
último minuto. E, fazendo a licenciatura foi que eu me apaixonei. Mas,
acho que a pessoa deve tentar fazer a própria música. Acho que isso
é muito importante: se você tem o mínimo de veia de fazer a sua pró-
pria música, bota toda a sua energia em fazer a sua própria música. Eu
fiquei muito tempo botando energia e fazendo música de um monte
de gente, e isso é muito mais difícil. Quando você decide fazer a sua
própria música, acho que o caminho é muito mais aberto. Se você con-
segue fazer a sua própria música... Mas, veja, isso eu estou falando en-
quanto analiso a minha experiência de vida. Eu tenho amigos que con-
seguiram se dar bem com música sem fazer a sua própria música — e
estão tocando. Eu não sei por quanto tempo vão estar bem, mas estão
tocando. Eu conheci gente que tocava com a banda do Djavan Sururu
de Capote e que um dia estava super bem e no outro dia perdeu o tra-
balho e acabou-se tudo. Ganhava bem, ganhava tabela tocando com
artista. Mas depois que o trabalho acabou a pessoa ficava maluca ten-
tando arrumar gig. Eu vi vários músicos assim, nessa situação. Então,
acho que se a pessoa tem alguma veia criativa própria, deve investir na
sua própria música — eu acho que esse é o único caminho mesmo.
Já tocava?
Não. Tocava piano e violão de brincadeira, mas não imaginava nunca
que seria músico.
Eram poucos?
Eram poucos... Tocava com o Sr. Clóvis (que era o cara que acompa-
nhava o Jamelão, a Carmem Costa), eu sempre tocava com esse cara,
estou falando de 1994.
Nessas gigs que você fazia, a gente sabe que é uma coisa
meio informal, pago por cachê. Mas, você chegou a receber
por nota contratual? Você lembra disso?
Gig não. Nota contratual foi mais com BNDES, SESC, Festivais...
Diz uma coisa, quando você foi ter a sua filha, você quis ser
mãe ou aconteceu?
Eu queria ter, mas ela aconteceu. (risos)
Como foi?
Então, eu casei com o Dani, e já era um desejo meu ser mãe. Eu queria
ser mãe, só que não tinha a menor noção do que era essa rotina de
ser mãe no meio dessa doideira que é fazer música. Tanto que, aceitei
uma turnê nos Estados Unidos, de três semanas viajando, isso ela esta-
va com três meses de vida. Tive que cancelar e mandar um substituto,
não tinha a menor noção.
Como é que você acha que estaria se você não tivesse, hoje,
nem a Globo nem o CEFET, ou seja, se não tivesse um traba-
lho estável, com todo o know-how que você tem, como é que
você acha que estaria a sua sobrevivência?
Eu não sei se eu ficaria no Brasil. Não sei se eu ficaria aqui.
Por quê?
Por falta de perspectiva. Eu não consigo me imaginar trabalhando só
com gig aqui. É como já te falei, tenho essa coisa de medo de envelhe-
cer, porque acho que tem uma questão de velhice também com a mú-
sica. E é coisa séria. Quanto tempo mais eles vão querer colocar gente
enrugada de cabelo branco num palco? Fora que tem a galera nova,
que vai se formando. Foi o meu caso: eu tocava com a minha galera, que
eram meus amigos, meus colegas, que cresceram junto comigo. A partir
do momento em que você vai envelhecendo, vai ficando meio de fora.
É triste.
É. Tem um lado que é duro, cara, é muito duro! Mesmo o Paulo Mou-
ra, que era um cara super famoso. O Juarez, por exemplo, é apenas
um dentre milhões desses caras, zilhões talvez. Agora, também não
me imagino parando com as gigs... Não faço tanto quanto antiga-
mente, mas, eu tenho uma média de umas duas por semana.
Dançou ballet?
Eu dancei ballet quando era bem pequena. Depois, adolescente, co-
mecei a dançar jazz e sapateado. Eu sapateava muito! E fui professo-
ra de sapateado durante muitos anos. Eu era professora de ballet no
Baby Class do Clube Piraquê e também em academia de dança. Traba-
lhei com isso, não linearmente, por causa dessa história toda. Eu ia e
voltava. Mas, além da dança, também sempre gostei de cantar... Ti-
nha um violão lá em casa, mas eu sempre quis estudar piano, porque
tinha piano na casa dos meus avós paterno e materno. A minha mãe
tinha tido aquela educação um tanto severa, em que ela foi obrigada
a estudar piano, sem querer muito. E eu sempre pedi para estudar
piano, mas ela nunca deixou. Ela dizia: “Não, é um inferno. Você não
vai gostar.” E não me deixou estudar. Então, quando eu cheguei em
certa idade, como tinha um violão lá em casa (era um violão de crian-
ça), peguei aquele violão de criança e com aquelas revistinhas “VIGU
-Violão e guitarra” comecei a tocar e a cantar as músicas de sucesso
que tocavam no rádio.
Nem família?
Ninguém! Zero! Foi ali que comecei a namorar um cara. Tinha uma
casa que a gente alugava na Tijuca — que era o Tijucão — era um
quarto e um estúdio. Um quarto com uma cama de casal para os
Quanto tempo você acha que durou essa fase de ter muito
Era couvert?
Era couvert. O que acontece é que eu era dona do trabalho, mas não
era uma banda. Tinha uns músicos que trabalhavam para mim. Sem-
pre foi assim. Eu nunca fiz uma banda. Quer dizer, fiz uma banda,
mas não vingou. O trabalho que vingou sempre fui eu como a dona
do trabalho. E aí, eu comecei trabalhando com o Marquinho que era
um cara que tinha regras de convivência profissional muito claras na
cabeça dele. Ele não era meu parceiro, não era meu sócio, ele queria
receber pelo trabalho dele. Então, desde muito nova, ele combinava
o mínimo e eu tinha que bancar aquele mínimo dele: eu tinha que fa-
zer o cartaz, eu tinha que pregar o cartaz, eu tinha que pagar xerox
— esse trabalho todo. Tinha uma mala direta — e eu subscritava 500
envelopes por show — eu sentava, colocava no correio as 500 cartas
com aquele cartaz (que era eu quem fazia), mandava reduzir, colocar
Era um investimento?
Sempre foi. Eu tinha um carro junto com a minha irmã, o carro come-
çou a ficar todo ferrado, eu decidi vender a minha parte, porque eu
precisava fazer fotos — eu não tinha foto profissional — precisava
fazer uns cartazes, com data/hora/local, com espaço vazio que você só
preenche a mão. Um cartaz bacana, porque cartaz era uma realidade,
aquilo ficava destacado nos lugares onde a gente colava. Foi investi-
mento a vida inteira e ainda é.
Investindo?
Investindo nessa praia, achando que isso tinha um circuito possível
também.
Sério?
De vai lá, é bom... e�������������������������������������������������
não acontecer nada. Daí eu fui atrás do Guilher-
������������������������������������������������
me Arantes em São Paulo, quando fui lançar o disco em São Paulo.
Fui com uma caixa de vinil e fui para todas as rádios. Eu mesma li-
gava, agendava. Liguei para todas as rádios, para todas as TVs e fui
divulgar o meu disco. Fazia playback, aquelas coisas. E tinha um show
do Guilherme Arantes no Vale do Anhangabaú e eu fui atrás dele,
porque queria falar com ele e ele não me recebeu.
Você teve uma fase relativamente grande que tinha uma de-
manda por trabalho — apesar disso não te sustentar — isso
mudou de lá para cá?
Eu lembro que teve um ano que eu fiz mais show que a Bethânia.
Passei um ano fazendo três shows por semana. E não era na esquina,
em qualquer lugar. A partir de uma época eu não fiz mais. Então, as-
sim, eram três shows por semana, em três lugares razoáveis ou legais,
durante um ano. O que são três shows por semana durante um ano?
São duzentos shows! É muita coisa! Então, tinha lugar para fazer! E
esse dinheiro é nada. E esse nada é o quê? Seriam 150,00 hoje, três
vezes por semana, vamos dizer: se fosse isso, né?
Em termos de quê?
Eu já não sou mais convidada para nada. Projetos, do tipo: “Ah, vou
fazer ali uma série com cantoras, um projeto com cantoras.” Não
acontecem mais. Eu sempre fui chamada para uma ou outra coisa
assim, e nunca fui chamada mais para nada. Acho que sim. Acho que
Isso te incomoda?
Incomoda, porque me dão privilégios por eu ser mulher, porque o
homem não precisa.
O que você diria para uma pessoa que tem 20 anos hoje —
não é mais aquela época — e quer trabalhar com música? O
que ele tem que saber para conseguir se manter, sobreviver
disso?
Eu não sei muito bem o que é que tem para as pessoas de 20 anos
fazerem, porque eu estou em outro momento da minha carreira. Que
circuito que tem para quem tem 20 anos? Vejo a galera fazer show
na rua, passar chapéu, tudo bem amadorístico. Mas eu acho que, mais
do que nunca, você precisa pensar em como você vai sustentar sua car-
VOICE
De que forma você vem atuando?
Tenho cinco profissões: Técnica em eletrônica, Técnica em
Instrumentação Cirúrgica, Técnica em Arquitetura/Estrutura,
Desenhista, e o trabalho que me deu maior prazer foi a Música.
Nessa escola que você foi, daí já pegou a bateria e sentiu que
podia tocar... E já fizeram uma banda?
Era uma audiência do tipo que toda escola tem, mas uma coisa
simples. Aí comecei a desenvolver a percussão. Eu olhei o baixo e
falei: "Eu quero tocar baixo." E ela disse: "Tá, na próxima aula eu
te ensino, se você cantar." Eu respondi: "Eu não vou cantar." Tinha
vergonha de cantar por causa daquele bloqueio quando eu comecei
a cantar. As meninas começaram a rir porque eu tinha oito anos e
Naturalmente.
Eu não sabia o que era afinar. Afinei, sem saber. Não estou falando
isso por soberba, nada disso. Isso aconteceu na minha vida. Eu não
sabia o que era isso. Então, eu chorava muito porque as pessoas me...
Te reprimiam...
Não. Eles toliram, toliram uma coisa que estavam dentro de mim e eu
não sabia... Então, eu tinha que botar aquilo tudo para fora.
Você teve que provar que toca bem, por ser mulher?
Muitas vezes. Eu deixava o trunfo guardado e na hora jogava o trunfo
e deixava os caras de boca aberta. Você sabe que eu estou falando
isso de coração. Existia muita perseguição, muita discriminação contra
as mulheres, mas isso serviu para que elas crescessem. Elas estão se
sobressaindo muito mais. Eu ainda estudo em casa.
Se dá dinheiro, né?
Na verdade, ela criou um caminho tortuoso, sem querer, ela me le-
vou para um lado mais difícil. Porque eu gostava de música simples,
pop. Então tá, comecei a estudar porque minha mãe falou para es-
tudar. Quando vi, estava gostando de tocar.
Tinha Vigú.
Tinha Vigú. Aprendi a ler cifra no Vigú. E tinha aula de clássico. Se
você queria ter uma formação mais profunda, você ia estudar músi-
ca clássica. Quando vi, estava adorando tocar Debussy.
Muito trabalho...
Muito trabalho!
Em 2007, você até falou, teve esse lance do teatro mas, as-
sim, a sua vida profissional teve uma mudança na ênfase
do tipo de trabalho?
Muitas mudanças. Muitas. Eu acho que reencarnei em vida muitas
vezes, artisticamente, porque nasci fazendo uma música autoral,
meio pop-eletrônica, com o Cláudio (que também tinha essa história
de vir do clássico, mais até do que eu). Então, a gente tinha um jeito
virtuosístico de tocar piano, tocar teclado e criar texturas .
Vocês produziam?
Nós produzíamos tudo.
Que louco!
E tocava na rádio, e tocou em programa de TV. Foi usado como tri-
lha, teve um cenário importante. Depois a gente foi para a Europa.
Quando o Duo acabou, eu diria que teve a ver com o plano Collor.
Sua vida laboral musical era isso, era investir no Duo Fê-
nix?
Só isso. Quando pintava alguma outra coisa, eu fugia. Acho até bo-
nito isso, porque eu era muito menina e dizia: “Eu gosto de fazer
isso, é isso o que eu quero da minha vida.” Não queria me dividir. Às
vezes, até tentava outros trabalhos bons — até me arrependo por-
que eu era meio criança e era meio insolente: “Ah, não me interes-
sa.” A pessoa me ligava para um trabalho legal, que outros músicos
adorariam fazer e eu falava: “Não, não quero. Eu tenho o meu tra-
balho.” Meu trabalho não dava exatamente dinheiro, mas dava re-
conhecimento. A gente estava começando a rodar, mas eu também
não tinha preocupação de ganhar dinheiro, queria fazer música.
Por que você começou a dar aula, para ter uma grana?
É interessante. Quando comecei a dar aula, acho que eu tinha
menos de 16 ou 17 anos. Minha mãe é professora, minha avó era
professora, meu pai foi professor. Para mim, dar aula é uma coisa
muito normal. Eu vi minha avó ensinando a empregada a ler,
porque ela achava o fim: “Como é que você não lê? Senta aqui,
menina, que vou te ensinar.” Para mim, é estranho, é meio missão.
Eu também tive professores muito bons. Para mim, dar aula é uma
coisa muito digna, muito importante. O músico, às vezes, acha que
dar aula é bico. Isso é um erro, né? Daí o cara está sem trabalho e
fala: “Agora anuncia que eu vou dar aula, porque eu estou sem tra-
balho.” E eu acho o contrário: eu sempre dei aula e quando tenho
muito trabalho, quando eu tenho que viajar, ou ficar enfiada em es-
tudio gravando eu falo: “Vou ter que parar um mês, porque eu vou
viajar.” Teve aluno que falou: “Então tá, eu espero.” E eu respondi:
“Fica a vontade. Se quiser trocar de professor, porque eu vou parar
três meses.” Mas aí, tem uns malucos que esperam e querem voltar.
Você acha que, apesar de não fazer isso só pela grana, você
acha que o lance de dar aula — que é uma coisa que ficou o
tempo todo na sua vida —, era uma grana mais certa?
Eu sempre dei aula. E, assim, durante toda a minha vida, dando
aula, grande parte — a maior parte do tempo, eu diria — dava para
pagar muita coisa. Tive momentos que a aula não deu também.
Mas, por exemplo, quando meu filho era pequeno, esse momento
foi meio estranho porque eu não tive tempo. Rolou uma desestru-
turação mesmo. Mas, normalmente, a aula sempre deu para bancar
muita coisa. Eu nunca quis viver só de aula, foi uma opção minha.
Eu sempre tirei um dia para dar aula. A minha meta, no máximo,
são 10 alunos. Mais de 10 alunos, eu não aguento. Tem gente que
tem 30 alunos. Eu não aguento.
Como é que era você ter um bebê e ter que ir para a noite?
Como é que você fazia?
As datas não eram fixas , o pai do meu filho ajudava e muito na
criação do Antonio (nosso filho) e na casa, posso falar que nesse
aspecto convivíamos com igualdade, ele levava pra escola, me aju-
dava muito nas compras, colocava pra dormir e segurava as pontas
quando eu viajava e ainda tinha a minha mãe pra colaborar. Mas
o medo de faltar algo em casa me levou a tocar e fazer trabalhos
nunca dantes imaginados, aceitei trabalhos que não passariam antes
pela minha cabeça fazer e isso financeiramente foi muito ruim.
Sério mesmo?
É. Eu vim de um Duo Fênix! É muito louca a vida, né? Eu tinha feito,
com o Duo Fênix, o Festival de Montreux. Fui duas vezes para Mon-
treux — uma com Barrozinho, outra com o Cláudio. New Morning.
Suíça. França. Bulgária. E de repente você está, na frente do [super-
mercado] Mundial, buscando as promoções do mês. Mas, cara, isso é
a realidade. E é necessário a gente entender esse lugar. Porque, quem
não entende isso, fica num salto alto ali... A vida é assim mesmo.
Ela já te conhecia?
Não. E continuou: “Vamos olhar.” E aí, a primeira coisa que a Cláu-
dia Lisboa falou para mim, olhando o meu mapa: “É, realmente
tem uma indicação muito forte com a música, com instrumento e
tal". Porém... — aí eu não vou lembrar exatamente qual foi a casa
em conjunção com câncer com não sei o qual outro signo — tem
uma expressão enorme pela fala e pela voz. Você mexe com isso?”
— Ela perguntou. “Não. Eu estudei piano. Estudei orquestração.”
E ela me interrompeu: “Não, mas, eu estou falando de outra coisa.
E se arrisca!
Eu pensei: “Caramba! É verdade.” Porque, às vezes o músico, como
instrumentista, quer estudar escala a vida inteira. E aperfeiçoa a
técnica. Mas isso não é fazer arte. Isso é ser um bom músico — que é
importante.
Isso no teatro...
No teatro. Eu tenho firma, tenho contador.
Que viagem!
É uma galera que está andando...
Que interessante!
É uma galera de outro lugar.
De percepção?
É,������������������������������������������������������������������
de percepção. O marido dela foi transferido para a USP e eles fo-
ram morar em São Paulo. Ela era uma super-professora de piano, de
percepção, e me passou todos os alunos, que eram na maioria de per-
cepção.
Era subsidiada...
Era subsidiada pela UERJ. Até o Paulo Moura era o responsável pela
parte musical. Mas ele não estava em cena, eu é que ficava em cena.
Fiz um monte de peças com eles, estavam sempre em produção, ti-
nham um repertório enorme... E nesta mesma época, logo que entrei
para a UNIRIO, como eu era muito boa em percepção, uma colega me
passou um trabalho da gravadora Odeon. A gravadora Odeon tinha
uma editora e essa editora servia fazer as transcrições das músicas
que eram gravadas, mas não só pelo selo da Odeon. Pelo que me
lembro, era a única dessas grandes gravadoras que tinha essa editora.
Então, fazia da Sony, de várias outras que também estavam no meu
pacote mensal de músicas.
Quais?
Comecei a trabalhar em estúdio e a fazer trilha para o teatro. Um co-
lega músico me chamou para fazer com ele em dupla. Fizemos muitas
trilhas de, sei lá, umas cinco ou seis peças. A gente fazia no estúdio e
levava o CD.
Você acha que o músico que fica focado em uma coisa só,
em uma especialidade só, perde muitas oportunidades de
trabalho?
É, talvez... depende, não é? O músico de orquestra — que fez aquela
formação para tocar em orquestra — ele vai se focar naquilo e vai tra-
De bares?
De bares, de piano-bares da Zona Sul. Hotéis na orla. Trabalhei anos,
tive até contrato no Caesar Park. Trabalhei lá durante três anos fixos,
de quarta a domingo, tocando música popular e bossa. Mas esse mer-
cado acabou. Em meados dos anos 2000 ou início, talvez. Hoje em dia
não tem mais espaço para a música instrumental.
Você acha que, para a mulher — que não é mais uma joven-
zinha — é mais difícil o trabalho na música?
Eu acho, sinto muito isso agora. Não sei se é uma coisa minha, é uma
sensação. Sinto claramente em alguns trabalhos que faço como can-
Com certeza!
Eu sou mais feliz como eu estou hoje: dando aula em casa, de forma
individual, e tocando, e cantando o repertório que eu quero, o reper-
tório que gosto.
A coisa do improviso?
É, do improviso, de estar tocando em banda, em grupo, sabe? Aque-
le reflexo de você estar ali se comunicando com os outros músicos,
aquela coisa de quarta a domingo, aquela constância.
Como formação.
Como formação. E, um outro aspecto importantíssimo, que fui desen-
volver mais — não no início, mas uns anos depois, muitos anos depois
— que foi essa relação puramente intuitiva. Claro que, esse puramen-
te intuitivo, para quem tem conhecimento, não é sempre puramente
intuitivo, mas, a vivência, o estar ali é intuitivo. Eu tive isso no [bar]
Bip Bip, porque eu morava em frente ao Bip Bip e passei 13 anos da
vida correndo atrás das melodias, sem partitura, sem harmonia.
Isso já no violão?
No violão. Mas, para mim, no piano é a mesma coisa — se o acorde
está na cabeça, está na cabeça nos dois. Então, isso eu vivi. Nunca
tinha vivenciado dessa maneira: de ficar horas sem saber que música
seria tocada. Muitas vezes, sem saber nem o tom, porque o cantor
começava a cantar, não dizia nem o tom.
Na música ou em geral?
Na música não, procurava geral. Eu queria era trabalhar, seja lá com o
que fosse.
De graça?
Todos de graça. Na época, eram todos de graça, e ainda te davam
alimentação. Você só precisava chegar até lá, não pagava nada. E,
antigamente, você colocava a camisa da escola e entrava no ônibus.
Então, era só você ir, era só você chegar lá. Assim eu fiz, fui para lá.
Rádio também?
Rádio também. Eu escutava muito swing, samba rock — porque era
época dos bailes, das bandas de bailes. Então, eu ouvia muito essas
coisas que o meu pai ouvia, minha mãe ouvia. Então, a referência que
eu tinha era essa. Daí, eu fui para a banda, fiz a inscrição e entrei. Só
que, na banda, eles encaminhavam os meninos para o quartel e as
meninas não. Então, eu fiz tudo que eu tinha que fazer, aprendi tudo
que eu tinha que aprender. Eu queria clarinete — não tinha clarinete.
Ele me passou para o trombone, achou que eu tinha embocadura de
trombone, e me deu o trombone.
É mesmo?
Tinha, porque eu não sabia o que era, com todas aquelas pessoas me
olhando... Sem querer, você passa a ter preconceito com o que você
escolheu.
De música?
Não, faculdade, normal. E, ali, você continuava os seus estudos. Daí
ele me levou lá, para tocar naquela banda. E só entrava na banda
quem sabia tocar, quem conseguia tocar.
Eles pagavam?
Não, no começo, não. Eu fiquei ensaiando. Daí eu ia lá e ensaiava.
“Olha, vai ensaiando aí, quando aparecer a vaga... Você segue en-
saiando. Você só não vai para as gigs. Mas, você pode ensaiar com a
gente, para você ir estudando.” E foi assim que eu conheci o Maes-
tro Zuza, o Velhinho Zuza, que gostou de mim à beça... E os outros
Maestros. O Maestro Nelsinho, na época, me ensinou coisa à beça,
também. Para mim era uma escola — porque ali, até então, na Souza
Marques, eu estava vendo dobrados (eu só tinha visto dobrados em
bandas militares, por causa da FUNABEM — porque eles te prepara-
Tinha cachê?
Ali tinha cachê. Menor do que os outros, porque era sub, mas tinha.
Quando começou a rolar esse cachê, aí sim, eu me senti profissional.
Porque daí é que eu fui para os bailes. Dessa parte da Petrobras, aí,
foi que eu consegui ir para os bailes de dança de salão.
Ah, entendi. Você ganhava por mês e tinha que fazer uma
quantidade de apresentações...
Isso. Uma quantidade de apresentações... O que, naquela época, era
legal. Eram 600 reais, mas, naquela época, não era igual agora...
Entendi.
Estou falando de 25 anos atrás. Eu não lembro, ao certo, qual foi a
data que entrei... Acho que foi em 1995 ou 96. Não lembro. Junto com
a Petrobras fui arrumando outras gigs para fazer. Daí o dinheiro era
na mão — que não dava para muita coisa. Então eu fazia uma divisão
do dinheiro... Isso é para a passagem... O dinheiro na mão, se você não
segura, se você não tem um controle, você acaba com ele. E eu não
tinha um comprovante de nada... Nunca tive comprovante de nada...
Na época, eram vinte e poucos bailes (era baile à beça!), todo dia tinha
baile em algum lugar... Então, vinte e poucos bailes, na época, eram 60
reais. Eu tirava desses 60 reais, digamos que, dois, quatro, sei lá, uns 10
reais. Não sei se era isso, não lembro exatamente qual era a conta, mas
era a passagem. E o restante eu guardava. Então eu ia guardando em
casa e ia fazendo as coisas... ia pagando o colégio do Thiago, e com-
prava roupa, comprava as coisas para dentro de casa... E, fazendo essa
dinâmica, eu consegui fazer um consórcio. Esse consórcio eu pagava,
acho que 225 por mês (que eu paguei em 10 anos).
E foi isso que fez você pensar em abrir outras frentes de tra-
balho?
Talvez, talvez. Na verdade, o que me fez pensar em outras frentes
de trabalho, foi essa coisa de não esperar cair do céu. Porque, tem
essa dificuldade, de você ficar esperando só aquilo ali. Só aquilo ali...
Daí, você tenta entrar em uma banda militar, como eu tentei. Uma
vez, prova para guarda. Outra vez, prova para a guarda. Uma vez,
prova para o bombeiro. Sem condição, porque tem muito “peixe”.
A gente sabe disso. Muitos “peixes” de quem tem contato lá dentro.
Passei em quinto lugar em uma. Passei em sexto lugar na outra. Da
outra vez, cheguei até em terceiro, mas era uma vaga só. No bom-
beiro, foi a pior. Eu estudei para caramba! Muita coisa! Estudei uma
peça de confronto! Cheguei lá e tirei zero! Como é que você dá zero
para uma pessoa que já toca? Que estuda uma peça de confronto?
Pelo menos dois tinha que dar para aquela pessoa... Tirei zero. Eu e a
maioria...
Produzindo, né?
Sim. Produção. Eu fiz e, nossa, foi um desespero! Porque, três bandas,
para um concurso. Você tem que ensaiar, arrumar músico para as ban-
das...
Já crescido, né?
Já crescido, já músico também. Já na estrada. Criou o “Tempero de
Vó”. Eu já arrumava uns bailezinhos para fazer — que o pessoal me
conhecia dos bailes. “Ah, quer fazer um baile comigo?” Eu aceitava,
montava a banda e ia lá fazer o baile. Mas não tinha nome. Era uma
banda sem nome. Eram bandas sem nome. Então, montava a banda,
ia lá e tocava, cada um pegava o seu dinheiro. Vambora e tal. De lá
para cá, fui fazendo Carnavais. Acho que por uns cinco anos continuei
montando banda para a RIOTUR, depois cansei — aquela velha his-
tória de RIOTUR não ter dinheiro. Começou a ficar pesado porque a
porcentagem era grande demais em cima do músico. O músico tocava
para caramba e recebia nada, praticamente. Por um dia. Você ter que
pagar 500 reais para um músico em um Carnaval inteiro não tem con-
dição. Agora eu não sei como está, perdi...
Ainda tem?
Ainda tem. Então, eu fui montando as coisas, quando surgiu, na
Foi indo...
Foi indo. Dava para dar alguma coisa para os meninos, outro dia não
dava. Enfim. Daquele jeito, né? Mas, estava chamando gente. O pú-
blico começou a ver. E eu pensei: “Pô, legal... Maneiro.” A partir daí,
vão aparecendo coisas para você fazer. Fui tocar em rodas de samba
— “do Soul ao Samba”. Até então, estava só “Kátia Preta do Soul ao
Samba” fazendo aquele show e tocando nas bandas, e viajando com
outras bandas e fazendo um monte de coisas. Então, aparecem as
Rodas de Samba na minha vida: “Ah, vamos tocar numa Roda comi-
go?” Vamos. “Ah, vamos tocar outra Roda?” E eu fui fazendo. Uma
hora, alguém pergunta: “Onde é a sua Roda de Samba?” A pergunta
era essa: “Onde você toca? Onde é a sua Roda de Samba?” Eu respon-
dia: “Ainda não tenho uma Roda de Samba, não...” Então eu montei:
“Tem Preta na Roda.” Agora tem.