PVC LP Vol2 Miolo
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Língua Portuguesa
PRÉ-VESTIBULAR CECIERJ | volume 2
Diogo Pinheiro
Lucas Laurentino de Oliveira
Maria Luiza Mesquita Rocha
Pré-Vestibular Cecierj VENDA
PROIBIDA
cecierj.edu.br
Língua
Portu
guesa
FUNDAÇÃO CECIERJ
Presidente Material Didático
Rogerio Tavares Pires Diretor de Material Didático
Vice-Presidente de Educação Ulisses Schnaider Cunha
Superior a Distância Diretora de Design Instrucional
Caroline Alves da Costa Diana Castellani
Pré-Vestibular Social Diretora de Material Impresso
Diretor Bianca Giacomelli
Luiz Fernando Jardim Bento Projeto Gráfico
Elaboração de Conteúdo Cristina Portella e Maria Fernanda de Novaes
Diogo Pinheiro, Lucas Laurentino de Oliveira, Ilustração da Capa
Maria Luiza Mesquita Rocha Clara Gomes
Biblioteca Design Instrucional
Any Bernstein, Simone da Cruz Correa de Souza Livia Tafuri e Vittorio Lo Bianco
Vera Vani Alves de Pinho
Revisão Linguística
Licia Matos e Rosane Fernandes Lira de Oliveira
cecierj.edu.br/pre-vestibular-social/
Diagramação
Alexandre d’Oliveira
Tratamento de Imagens e Ilustrações
Renan Alves
Produção Gráfica
Fabio Rapello
FICHA CATALOGRÁFICA
P922
CDD: 469
Proibida a venda.
Referências bibliográficas e catalogação na fonte de acordo com as normas da ABNT.
Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Língua
Portu
guesa
sumário
Este livro foi pensado para abranger o conteúdo literário cobrado nos exames de vestibular.
Com ele, nosso objetivo é propiciar a você uma visita à história artístico-cultural brasileira
através da literatura produzida no Brasil e organizada por alguns estudiosos em dois grandes
períodos históricos: a Era Colonial e a Era Nacional. Por isso, neste livro, estudaremos mani-
festações artísticas produzidas ao longo de um período histórico de cinco séculos – desde o
descobrimento do Brasil (1500 – século XVI) até os dias de hoje (século XXI).
01
Literatura da Era Colonial
brasileira: Quinhentismo,
Barroco e Arcadismo
meta
Apresentar os textos em língua portuguesa produzidos no Brasil durante os 300 anos
do período colonial, refletindo sobre o contexto histórico em que foram gerados e as
concepções estéticas que os fundamentaram.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
Esta unidade pretende apresentar uma síntese capaz de abarcar as produções literárias
no Brasil, em língua portuguesa, de três séculos, ou seja, de 300 anos de colonização
portuguesa –do início do século XVI (1500) até o fim do século XVIII (1700). O que há de
comum nesse período é o fato de a literatura produzida em língua portuguesa no Brasil
ter como aspiração estética a reprodução de modelos portugueses, ou seja, a idealiza-
ção dos clássicos portugueses a que os leitores tinham acesso na época. Muitas vezes,
o conteúdo da literatura produzida no Brasil não refletiu questões “nacionais”, mais
próprias dos acontecimentos cotidianos e históricos deste território; essa tentativa de
apagamento da realidade brasileira nos textos é própria da ideologia dominante colo-
nizadora. Vamos, então, tentar um “garimpo” das questões nacionais e iluminar aquilo
que é fundante em qualquer dominação colonialista.
Essa realidade histórica se estende por 300 anos, acabando por impor um perfil incon-
fundível na literatura produzida no Brasil de 1500 a 1800. Por isso, a seguir, vamos
estudar as formas textuais produzidas nos períodos artístico-literários conhecidos como
Quinhentismo (século XVI), Barroco (século XVII) e Arcadismo (século XVIII).
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9
Nas produções literárias brasileiras, esse período será conhecido como Quinhentismo, e suas
realizações têm duas origens distintas: as informações sobre o Brasil escritas por viajantes de
diferentes nacionalidades (posteriormente traduzidas para a língua portuguesa) e aquelas
recolhidas e consolidadas pelos jesuítas em suas ações “pedagógicas” de evangelização.
Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a
nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também
de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem
contar e falar – o saiba pior que todos fazer. […] Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês,
entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, e ali andamos
todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. […] E assim seguimos nosso
caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de
abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns
sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam
botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã,
topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!
Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de
terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a
Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis
léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças – ancoragem limpa (BRASIL, 19--).
10
Figura 1.1: Carta de Pero Vaz de Caminha (1500). Fonte: Arquivo da Torre do Tombo, Portugal. Disponível em: https://
www.cafehistoria.com.br/carta-de-pero-vaz-de-caminha%EF%BB%BF/ Acesso em: 22 mar. 2021.
Embora esse texto não possa ser classificado como literário em sentido estrito, ele é conside-
rado o marco inicial da literatura no Brasil, carregando uma importância histórica fundamental
por revelar curiosas descrições sobre as riquezas naturais e sobre os nativos e seus costumes.
Aborda também os primeiros momentos de contato entre culturas distintas e suas tentativas
de comunicação e de troca de objetos significativos para cada uma delas.
Desses missionários, um dos padres de maior destaque foi José de Anchieta. Dentre seus muitos
escritos, um deles se revelou de fundamental importância para o Brasil: A arte da gramática da
língua mais usada na costa do Brasil, obra que registrava alguns fundamentos sobre as línguas tupi.
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Pelo conjunto de sua obra, podemos entender que Anchieta dedicou sua vida missionária
ao Brasil. Suas escrituras cobriram vários assuntos e gêneros e, por isso, vamos brevemente
estudar um exemplo de cada tipo delas – sermões, autos e poemas (literatura de catequese).
12
Figura 1.3: José de Anchieta, o Mestre de Piratininga – apóstolo do Brasil. Instituto Plinio Corrêa de Oliveira. Fonte:
https://ipco.org.br/sao-jose-de-anchieta-apostolo-do-brasil/. Acesso em: 25 abr. 2021.
militia est vita “[…] temos diante dos olhos um notável desafio e batalha, que se faz entre duas pessoas mui
hominis super notáveis, que são Jesus e S. Panlo: ha mui grande concurso de gente de parte a parte; de parte de
terram Jesus estão todos os coros angélicos e os santos, de parte do santo estão todos os exércitos infernaes
dos diabos e dos farizêos, desejando uns e outros ter a victoria de sua parte. Si somos guerreiros,
Existe um
homem na Terra como devemos ser, pois militia est vita hominis super terram; si somos esforçados, como
devemos ser, pois somos christãos, e christão não quer dizer outra cousa sinão homem de Christo,
proe nosso verdadeiro e valentíssimo capitão, o qual, ungido com o óleo da graça proe consortibus
consortibus suis, nos ungio também a nós, para sermos valentes e esforçados lutadores e guerreiros contra o
suis Diabo e a Carne, devemos de gostar muito de vêr este tão grande desafio para n’elle aprendermos
Companheiros a vencer e ser vencedor, porque uma cousa e outra nos é necessária: vencer o Diabo, Mundo e
brilhantes Carne, que continuamente contra nós pelejam e trabalham por nos vencer; e deixarmos-nos vencer
de Jesus, contra o qual trazemos continua guerra, dando-lhe contínuos combates com os nossos
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peccados, porque o sermos vencidos d’elle eis a mais gloriosa victoria, que podemos alcançar. Saulus autem
E para que entendamos alguma cousa d’esta batalha de Christo com Paulo, e a maneira devastabat
de pelejar de um e d’outro, ponho diante dos olhos um lobo cruelissimo e mui faminto, ecclesiam,
dezejoso de se fartar de sangue, e de outra parte um cordeiro mansissimo, que não faz mais intrans per
do que defender-se, com padecer e soffrer os bocados e dentadas que lhe dá o lobo, Paulo domos et
trahens viros
lobo cruel, Jesus manso cordeiro. Ouvi a S. Lucas o que conta desta batalha: Saulus autem
ac mulieres,
devastabat ecclesiam, intrans per domos et trahens viros ac mulieres, tradebat in tradebat in
custodiam. […]” (ANCHIETA, 1895, p. 4-7). custodiam
Saul (Paulo)
O fragmento apresentado corresponde à introdução da temática, cuja estratégia discursiva estava
promove uma comparação explícita entre os “personagens” antagônicos, simbolizando, queimando
assembleia,
respectivamente, o mal e o bem, e que servirão de exemplo para o desenvolvimento da
entrando em
argumentação no texto – São Paulo = lobo faminto e Jesus Cristo = cordeiro manso. Não cada casa e
estamos lendo o texto na íntegra para podermos acompanhar completamente os racio- levando homens
cínios que serão apresentados, mas podemos inferir, com base no título do texto, que o e mulheres em
custódia
orador/escritor (padre Anchieta) pretende provar como Cristo conseguiu converter um
lobo faminto em um cordeiro manso. Só com a leitura completa do texto conheceremos
os argumentos apresentados e saberemos se a tese anunciada na introdução – “[…] o sermos
vencidos d’elle [Cristo] eis a mais gloriosa victoria, que podemos alcançar” – foi bem-sucedida,
e se ficou comprovada.
Autos: eram textos destinados à encenação, de natureza religiosa, muitas vezes de temática
relacionada à vida dos santos (hagiografias) ou relacionada a passagens da Bíblia sagrada. Por
isso mesmo, sua função pedagógica era claríssima.
Poema da Virgem
Eis os versos que outrora, ó Mãe Santíssima, te prometi em voto. Enquanto entre tamoios conjurados,
pobre refém, tratava as suspiradas pazes, tua graça me acolheu em teu materno manto e teu poder
me protege intactos corpo e alma.
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas, Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas? ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto, Olha como, prostrado ante a face do Pai,
que a morte tão cruel do filho chora tanto? todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
O seio que de dor amargado esmorece, Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
ao ver, ali presente, as chagas que padece? pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
(ANCHIETA, 20--)
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O fragmento reproduzido está registrado em português moderno, mas foi escrito em português
do século XVI e também em latim. É um poema lírico de profunda devoção religiosa, e aqui só
apresentamos a estrofe inicial. Esse poema foi idealizado durante o período em que Anchieta
esteve refém dos índios tupinambás, quando um acordo era negociado pelos padres Nóbrega
e Anchieta com a Confederação dos Tamoios, em troca de que os indígenas não atacassem
as habitações dos portugueses. Seu domínio da língua tupi certamente ajudou muito nessa
empreitada. Além das muitas outras atividades que desempenhava entre os indígenas, foi
representado em seus momentos de silêncio e isolamento, enquanto escrevia seus poemas
nas areias da praia.
Para compreender a repercussão das ações de Anchieta em terras brasileiras, é preciso ter em
mente a força que a Companhia de Jesus exercia sobre a Coroa portuguesa – era o poder da
ortodoxia da Igreja Católica sobre a Monarquia/Estado. O padre José de Anchieta é conhecido
entre nós como o Apóstolo do Brasil, foi diretor de vários colégios de jesuítas criados no país
entre 1566 e 1597 (século XVI), e também considerado o fundador da cidade de São Paulo, rela-
cionada à criação do Colégio São Paulo.
Apesar dos ataques sofridos pela Companhia de Jesus ao longo dos séculos (as ações de
evangelização no Brasil foram comparadas às Cruzadas da Igreja Católica contra os mouros), a
imagem desse jesuíta seguiu reverberando no imaginário e na memória brasileira, e foi espe-
cialmente recuperada pelo Romantismo, com seu projeto nacionalista em que o herói seria a
imagem redentora do indianismo “cristão”.
Ao longo da primeira metade do século XVI, a Igreja Católica sofreu com a debandada de fiéis,
motivada pela Reforma Protestante, que teve início em 1517 pelas mãos do monge alemão
Martinho Lutero. A reação – articulada em um movimento conhecido hoje como Contrarreforma
– começa a ser orquestrada em 1545, ano em que são decididas, no Concílio de Trento, algumas
medidas que visavam reafirmar os dogmas da Igreja Católica e revitalizar sua influência.
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Neste ponto, cabe a pergunta: o que justifica a estrutura formal intrincada que é marca tão
característica do Barroco? Por um lado, o estilo rebuscado e complexo parece refletir a época de
conflitos, angústia e incertezas na qual o homem desse tempo está imerso. Por outro, é preciso
entender que o poeta barroco escreve fundamentalmente para ser lido por seus pares – outros
poetas – e costuma ter em mente o objetivo de impressioná-los, evidenciando um profundo
domínio das técnicas de composição poética. Nos poemas a seguir, você poderá conferir os
principais traços temáticos e formais da poesia barroca.
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Nesse texto, podemos observar que os versos 2 e 3 exprimem o conflito central do homem
barroco: o choque entre os princípios da fé cristã, de um lado, o desejo de aproveitar a vida
terrena, de outro. Observe que a expressão desse conflito se faz por meio da figura de linguagem
conhecida como antítese. Trata-se de uma figura muito frequente no Barroco, exatamente
porque permite expressar a aproximação de contrários. No primeiro terceto, aparece nova-
mente o conflito central do homem barroco, desta vez sob a forma da oposição entre pecado e
perdão. Novamente, o autor recorre a antíteses, agora entre “vosso amor” e “meu delito/todo
o pecar”, e também entre “pode ter fim” e “infinito”. Observe que, nesse soneto, o eu lírico não
se limita a suplicar o perdão divino. Em vez disso, ele procura demonstrar, por meio de um
raciocínio engenhoso, que sua salvação é uma decorrência lógica dos fatos.
Eis o raciocínio: se (1) o pecar é finito e (2) o amor de Deus é infinito, então (3) o eu lírico deve
ser perdoado por seus pecados.
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Nesse texto, podemos observar que toda a primeira estrofe se estrutura a partir de uma opo-
sição. De um lado, estão os elementos “ardor”, “incêndio” e “fogo”; de outro, “firme coração”,
“mares de água” e “rio de neve”. Podemos entender que o primeiro grupo está associado me-
taforicamente à paixão, ao passo que o segundo se relaciona à contenção emocional, ou seja,
à resistência à paixão. Nota-se mais uma vez, portanto, o recurso à antítese. Cabe observar,
ainda, a aproximação dos opostos: o “incêndio” está disfarçado em “mares de água”, e o “rio
de neve” se converteu em “fogo”. Nos versos 9 e 10, novamente, reconhecemos a aproximação
de opostos, na medida em que o fogo parece adquirir características da neve, e vice-versa. Nos
últimos dois versos, o eu lírico parece caminhar na direção da fusão dos opostos – o que era
antítese se torna paradoxo: “neve ardente” e “chama fria”.
O nome Neoclassicismo nos oferece o ponto de partida para a compreensão da estética árcade.
Antes de tudo, devemos saber que o Arcadismo promove a retomada de valores da cultura
clássica (greco-latina). Dois desses valores são fundamentais para compreendermos essa
escola: a simplicidade e a noção de arte como imitação, ou seja, como reprodução de modelos
preexistentes. De um lado, o ideal da simplicidade se reflete diretamente na linguagem do
Arcadismo – e coloca essa escola em franca oposição à estética barroca. O estilo neoclássico é
claro, limpo e direto; o escritor árcade preza pela comunicação imediata com o leitor.
De outro lado, ao assumir a noção de arte como imitação, o Arcadismo se define como um
estilo fundamentalmente convencional. Isso significa que sua produção é regida por um
conjunto bastante rígido de regras ou convenções. Vejamos algumas:
3. por essa razão, os cenários campestres devem ser idealizados, incluindo elementos como
água fresca e cristalina, prados, clima agradável etc.;
O que teria motivado essas convenções? Tomadas em conjunto, elas refletem o ideal de uma vida
simples, sem luxos ou ostentações. Ao valorizar a simplicidade, os alvos do poeta árcade são a
sofisticação, a pompa e a futilidade características da nobreza e associadas à arte barroca.
Por fim, o resgate de ideais clássicos também se faz presente na poesia árcade de maneira
mais direta, sob a forma de referências a elementos pertencentes ao acervo cultural greco-latino.
Assim, é comum, por exemplo, a menção a deuses pagãos, como Apolo ou Cupido. Da mesma
maneira, são retomados temas presentes na literatura clássica. Dentre eles, o mais famoso é
o ideal do carpe diem. Essa expressão latina, que aparece na obra do poeta Horácio (século I
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a.C.), significa “colher o dia”, “aproveitar o dia”, e traduz a consciência da efemeridade da vida
(o tempo passa e provoca a velhice, a deterioração e a morte). Ao mesmo tempo, assinala a
necessidade de aproveitar o breve período de existência a que temos direito. Nos poemas a
seguir, você poderá conferir, na prática, os principais traços temáticos e formais da poesia
árcade. O primeiro deles é do poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage. O outro é do
brasileiro Tomás Antônio Gonzaga.
No texto, observamos que, logo no primeiro quarteto, começa a se desenhar o locus amoenus
do Arcadismo. A caracterização desse cenário campestre aprazível e convidativo se estenderá
até o final do primeiro terceto, com o acúmulo de elementos como “flores”, “prado ameno”,
“boninas”, “aves de mil cores”, “Zéfiros”, “fresco Tejo”, “alegres campos” e “copadas árvores”.
Note aqui a referência a Zéfiro, figura mitológica que correspondia ao vento do Oeste para
os antigos gregos. Observe também a letra maiúscula em “Amores”, indicando que se trata,
aqui, da divindade que personifica esse sentimento. Esse verso documenta, portanto, a influ-
ência da cultura clássica sobre a literatura árcade. No segundo terceto, dois pontos chamam
a atenção: em primeiro lugar, note como a valorização da vida no campo está ligada a uma
desvalorização da vida citadina, associada à ostentação e à futilidade da nobreza (“da corte a
vã grandeza”); em segundo lugar, note o verso final, que traduz a concepção de que a beleza
reside no equilíbrio e na harmonia manifestos pela Natureza.
20
Lira XIV
(GONZAGA, 20--)
Nesse texto, podemos observar que a primeira estrofe deixa clara a consciência da efemeridade
da vida. Essa percepção é reiterada diversas vezes ao longo do poema, como em “Sem que o
possam deter, o tempo corre”. Na quarta estrofe, as imagens do “corpo já cansado” e do “velho
cordeiro”, em oposição à do “leve filho”, reforçam a noção de que o tempo provoca degradação.
Na última estrofe, aparece com toda a clareza o ideal do carpe diem: se o tempo é capaz de
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“roubar ao corpo as forças / E ao semblante a graça”, então não há motivos para esperar – é
preciso aproveitar a vida.
Resumo
Nesta unidade, estudamos a literatura brasileira da Era Colonial (século XVI ao XVIII, englobando
Quinhentismo, Barroco e Arcadismo.
> Quinhentismo. A visão antropocêntrica de mundo leva à colonização dos territórios “descobertos
e conquistados”, tidos como prêmios por suas conquistas. Um deles é o Brasil, que passa a
ser conhecido na Europa pelas escrituras dos viajantes. As produções literárias nesse período
correspondem à literatura informativa dos viajantes e à literatura catequética.
> Barroco. O resgate dos ideais religiosos cristãos se consolida na Contrarreforma, trazendo de
volta a visão teocêntrica de mundo, que vai entrar em conflito com a visão antropocêntrica
anterior. Como um reflexo de seu tempo, as produções literárias dessa época são marcadas pelo
excesso – de figuras de linguagem, de sentimentalismo, de rebuscamento, de questionamentos.
> Arcadismo. A difusão das ideias iluministas encoraja a retomada de valores clássicos, aliando-os
à simplicidade da vida e à recusa dos excessos – a palavra-chave aqui é contenção.
22
Atividade
Vamos aqui propor uma tarefa comparativa. Observe os dois textos a seguir e busque reconhe-
cer as características marcantes de determinada estética, guiando-se pelas seguintes pergun-
tas:
1. Qual é a voz que fala no texto? Como essa voz está caracterizada?
4. Podemos reconhecer algum tipo e gênero específico de texto? Como reconhecemos a cons-
trução da macroestrutura do texto?
5. Que recursos estilísticos foram utilizados com o objetivo de produzir os efeitos de sentido
conseguidos?
__texto 1
(MATOS, 1996-1998, p. 2)
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23
__texto 2
XLVI
Resposta comentada
Neste exercício de cotejamento dos textos, não vamos necessariamnete responder às perguntas
de maneira sequenciada, vamos nos guiar de forma genérica pelas perguntas formuladas para
a exposição necessária. Iniciemos nossa análise pelo campo temático, reconhecendo a voz que
fala no texto. Em referência a esse tópico, verificamos que, no Texto 1 (Gregório de Matos), a voz
que fala assume uma postura de observador, fazendo reflexões sobre as inconstâncias da vida,
discurso em que não se verifica o uso de pronomes nem verbos na 1ª pessoa do singular (eu).
Dessa maneira, essa seleção de construção de sentença, em que se mesclam o pensamento
objetivo e o questionamento apaixonado, deixa patente a revelação de um tipo de temática
filosófica (note o uso de pontos de interrogação nos versos da 2ª estrofe – v. 5, 6, 7 e 8). Já no
Texto 2 (Cláudio Manuel da Costa), observamos o uso da 1ª pessoa do singular marcando a
presença do eu lírico numa postura em que, se dirigindo à amada (“Não vês, Lise?” – v. 1) de
maneira cortês, compara seu sofrimento ao de uma avezinha (note o uso de pronomes e verbos
– “eu imagino” (v. 5), “minha” (v. 6), “cuido/estou” (v. 7), “me/meu” (v. 8), “giro” (v. 9), “me” (v.
10), “vejo/meu” (v. 11), “minha” (v. 12), “me/mim” (v. 13). Os dois textos tecem reflexões de
natureza distintas – o primeiro é um poema de natureza argumentativa, dirigido ao público em
geral, em que o autor tenta defender um ponto de vista, construindo raciocínios para provar
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sua tese expressa no último verso da última estrofe: “A firmeza somente na inconstância”; o
segundo é um poema de natureza lírica, e muito embora ele tente convencer sua amada sobre
seu sofrimento, o realce fica para a expressão dos sentimentos, dirigindo suas confidências
a um público específico – sua amada Lise. Já pela forma de tratamento do tema, poderíamos
antecipar que o Texto 1 apresenta marcas do período barroco – dualidade, questionamentos,
sofrimento existencial –, enquanto o Texto 2 apresenta características do período árcade –
equilíbrio, serenidade, simplicidade.
Avancemos para a análise do campo formal, ou seja, da construção estrutural dos textos. Os
dois são construídos na forma de sonetos, composição poética fixa estruturada em dois quar-
tetos e dois tercetos, em que se percebe a conclusão das ideias amarradas numa chave de
ouro, típica das construções clássicas. Embora o soneto seja uma invenção da Antiguidade
Clássica, recuperada pelo Classicismo (séc. XVI) e resgatada pelo Neoclassicismo (séc. XVIII),
ele não deixa de ser uma forma poética que agrada muitos artistas de diversas tendências e,
por isso, transita por quase todos os períodos literários – sendo assim, é impossível definir o
período literário apenas porque se trata de um soneto. Mas o reconhecimento da utilização de
alguns recursos estilísticos podem nos ajudar nessa empreitada. Tomando como base o Texto
1, observamos que a figura fundante da primeira estrofe é a antítese, pois os versos de 1 a 4 são
construídos pela aproximação de ideias contrárias: dia x noite, luz x escuridão, triste x alegre,
mostrando que os estados de ânimo, assim como os estados da natureza, se alternam. Já na
segunda estrofe, o autor apresenta questionamentos cuja repetição serve ao objetivo de tentar
compreender a razão da alternância desses estados, que provocam sofrimento existencial,
realçando a insegurança, a incerteza e a inconstância da realidade do mundo: a nova antítese
vem representar a fugacidade dos estados – nasce x morre. A terceira e quarta estrofes desem-
penham a função de reunir e interligar as ideias antagônicas, numa síntese paradoxal de que
a única realidade certa é a mudança – temática que será alimentada pela angústia típica da
visão barroca de mundo. Notamos que o verso 11 (“sinta-se na alegria a tristeza”) e o verso 14
(“a firmeza somente na inconstância”) produzem o efeito de sentido da fusão dos contrários,
implicada, no paradoxo final, a chave de ouro que encerra o soneto de Gregório de Matos. Por
isso podemos dizer que os comentários sobre os aspectos formais do Texto 1 vêm corroborar
o que havia sido afirmado anteriormente – trata-se de um texto do período barroco. Por outro
lado, nas duas primeiras estrofes do Texto 2 (v. 1-8). observamos a construção da ideia de
sofrimento amoroso como se fosse uma brincadeira. Tal efeito é conseguido pela comparação
que o eu lírico estabelece da sua condição com a de uma ave – a amada Lise detém o poder
de controlar a liberdade do eu lírico, assim como o menino controla o laço que prende o pás-
saro (v. 5-8). O que vai marcar a diferença entre essas duas prisões é a ideia de que o pássaro
não tem consciência e sua prisão é involuntária; já no caso do eu lírico, ele fica atormentado
porque tem consciência de que sua prisão é voluntária – ele quer estar preso à amada mesmo
que isso o atormente. Essa diferença de condição dos prisioneiros gera a ruptura dos senti-
dos que havia sido reunida com a figura da comparação; passamos a entender que a prisão
involuntária da avezinha é realçada pela antítese, enquanto a prisão voluntária do eu lírico
é ressaltada pelo paradoxo de se sentir perdido, atormentado, se estiver livre. Mesmo diante
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Ampliando horizontes
ANCHIETA, Padre José de. Cartas inéditas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1989.
VILAR, Socorro de Fátima Pacífico. A Invenção de uma Escrita: Anchieta, os Jesuítas e suas
Histórias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. (Coleção Memória das Letras 21).
Referências
ANCHIETA, Padre José de. A conversão de S. Paulo. São Paulo: Officinas Salesianas, 1895.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4691/1/000607_COMPLETO.pdf.
Acesso em: 11 mar. 2022.
ANCHIETA, Padre José de. Poema da Virgem. Belém, PA: Núcleo de Educação a Distância (Nead)
– Universidade da Amazônia, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/ua000274.pdf. Acesso em: 11 mar. 2022.
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Obras de Bocage. Porto: Lello & Irmão, 1968.
BRASIL. Ministério da Cultura. A carta de Pero Vaz de Caminha. Brasília, DF: MEC, [19--]. Disponível
em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 11 mar.
2022.
COSTA, Claudio Manuel da. Poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional; Departamento do Livro, 20--. Acesso em 28/06/2021. Disponível em http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000038.pdf.
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: BIBLIOTECA VIRTUAL DO ESTUDANTE BRASILEIRO.
São Paulo: USP, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
bv000301.pdf. Acesso em: 21 mar. 2022.
MATOS, Gregório de. Seleção de obras poéticas. São Paulo: Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro – USP, 1996-1998. Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em: 28
jun. 2021.
Literatura brasileira:
Romantismo 02
meta
Apresentar os textos literários em língua portuguesa produzidos no Brasil durante
o século XIX, propondo uma reflexão sobre o contexto histórico em que foram
gerados e uma análise dessas produções literárias que se desenvolveram a partir de
determinadas concepções estéticas fundantes, promovidas tanto no cenário mundial
quanto no brasileiro.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
• refletir sobre as produções literárias brasileiras do início do século XIX e seus au-
tores mais relevantes;
Introdução
No início do século XIX, a sociedade brasileira testemunha diversas mudanças, que têm como
origem a transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. A esquadra portuguesa
transportou toda a comitiva palaciana e familiares (cerca de 10 mil pessoas), bem como seus
pertences, documentos e móveis, e, ainda, a Real Biblioteca de Portugal, com seus mais de 60
mil livros – que deram origem, diga-se de passagem, à Real Biblioteca do Brasil (1810), hoje
Biblioteca Nacional. São frutos da vinda da família real portuguesa instituições como a
Imprensa Régia (1808), o Banco do Brasil (1808), o Jardim Botânico (1808) e a Real Academia
Militar (1810).
Em 1821 – mais de uma década, portanto, após essa viagem –, o rei português D. João VI retorna
a Portugal. Ele deixa no país, contudo, seu filho D. Pedro I, que declara a independência do
país em 1822 e se torna, assim, o primeiro Imperador do Brasil. Nessa época, a vida cultural
na cidade-sede da corte imperial (Rio de Janeiro) fervilha com as manifestações artísticas
influenciadas fortemente pelo espírito romântico, que é embalado nos ideais do individualismo
liberal burguês e da idealização sobre o passado heroico (no caso brasileiro, voltado para a
figura dos indígenas). Esse período das artes será conhecido como Romantismo.
É esse movimento artístico que nós iremos estudar nesta unidade. Nosso foco, é claro, recairá
sobre a literatura romântica brasileira, que abrange obras em versos (poemas) e em prosa
(romances e contos). Mas, antes disso, apresentaremos uma visão da estética romântica,
incluindo sua base ideológica, seus eixos temáticos e suas predileções formais.
O estilo romântico
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29
ser entendida como a manifestação da interioridade do sujeito – o que explica por que seus
textos são escritos frequentemente na primeira pessoa do singular. Essa tendência geral tem
sido rotulada de subjetivismo.
A valorização da perspectiva individual está associada, ainda, a uma das principais marcas
da literatura romântica: a idealização. Há pelo menos dois sentidos – ainda que fortemente
relacionados – para essa palavra. No uso mais corriqueiro, idealizar é enxergar apenas as
qualidades de algo ou alguém. Nesse sentido, podemos dizer que nossos escritores român-
ticos idealizam a natureza brasileira (retratada como majestosa e exuberante), o indígena (a
quem se atribuirão qualidades como coragem, heroísmo e retidão moral) e os protagonistas
dos romances de um modo geral. Por outro lado, o conceito de idealização pode estar ligado
à noção de distância, afastamento: assim, o ideal é algo que não existe na prática, que não
se materializa, existindo apenas como desejo. Nesse sentido, podemos dizer que a literatura
romântica é marcada pela idealização amorosa – o que significa afirmar que as relações
amorosas tendem a se manter no plano de desejo, sem que haja a consumação do amor. Mas
é verdade que esse segundo sentido pode – e deve – abarcar o primeiro: também a natureza, o
indígena e os protagonistas idealizados não se materializam no “mundo real”.
É também o viés subjetivista que poderá explicar outro traço da literatura romântica: a
exacerbação sentimental. Seja quando está cantando as saudades de sua terra, quando está
confessando sua dor e desejo de morrer ou quando está criticando os maus-tratos infligidos
aos escravizados, o escritor romântico é, sobretudo, um sentimental. Ainda que não esteja
tratando diretamente de seus próprios sentimentos (sua angústia, seu sofrimento, sua melan-
colia etc.), o escritor capta a realidade ao redor pelo filtro da emoção. O resultado são textos
fortemente carregados nas tintas emocionais, cujas marcas linguísticas mais frequentes são as
interjeições, os pontos de exclamação e a adjetivação abundante.
Os conceitos mais relevantes para uma compreensão global da literatura romântica estão or-
ganizados no diagrama a seguir:
30
A produção poética do Romantismo brasileiro se divide em três fases, ou três gerações, com
características bem marcadas.
Por outro lado, está presente, no homem romântico, um sentimento de nostalgia em relação
a uma suposta inocência perdida pelo homem ao longo da história. Para o filósofo alemão
Friedrich Schiller, o homem primitivo seria, ele próprio, parte integrante da natureza. No
decorrer do processo civilizatório, porém, nós teríamos nos afastado irremediavelmente desse
estado natural para adentrar o mundo artificial da cultura.
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31
Essa valorização oferece motivação extra para a eleição do indígena, nativo das terras
brasileiras, como elemento fundamental na construção da identidade do país: ocorre que esse
indígena será retratado, pelos nossos escritores românticos, como a própria encarnação do
bom selvagem de Rousseau. Os poemas a seguir nos darão uma boa visão geral da poesia
nacionalista/indianista da primeira geração.
Um velho Timbira, coberto de glória, “Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Guardou a memória Pois não, era um bravo;
Do moço guerreiro, do velho Tupi! Valente e brioso, como ele, não vi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava E à fé que vos digo: parece-me encanto
Do que ele contava, Que quem chorou tanto,
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi! Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”
(DIAS, 20--)
As estrofes citadas compõem o décimo e último canto do poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves
Dias. Considerado a obra-prima da nossa poesia indianista, “I-Juca Pirama” acompanha a
história de um indígena tupi que é capturado por uma tribo inimiga, os timbiras. Diante da
morte iminente, o prisioneiro pede clemência – não por medo ou covardia, mas movido por um
sentimento nobre: ajudar o pai velho e doente. De forma surpreendente, o guerreiro é libertado
e vai ao encontro do pai. Este, no entanto, acaba por descobrir que o filho pedira clemência – e,
julgando-o covarde, sua reação é rejeitá-lo. Finalmente, esse indígena se põe a lutar sozinho
contra a tribo dos timbiras – e, nesse momento, sua bravura é finalmente reconhecida por todos.
Dessa pequena narrativa, a imagem que emerge do indígena é a melhor possível. Solidário e
apegado à família, o tupi é, ao mesmo tempo, valente e honrado. No canto X, um “velho Timbira”
relembra a história, pontuando a narrativa com a expressão “Meninos, eu vi!”, que reforça seu
32
espanto diante da história extraordinária do guerreiro tupi. A adjetivação não deixa dúvidas
quanto à representação idealizada do indígena – “bravo”, “valente”, “brioso”.
Canção do exílio
(Gonçalves Dias)
Como se observa, o poema opõe dois espaços – o exílio, de onde fala o eu lírico, e a terra
distante, para onde ele deseja voltar. O primeiro, representado pelos advérbios “aqui” e “cá”,
corresponde a Portugal; o segundo, referido como “lá”, corresponde ao Brasil. Note como a
terra distante (o “exílio” de que fala o título) é retratada como um lugar único, inigualável, cuja
natureza em muito supera a paisagem europeia.
Por fim, o esquema a seguir sintetiza os principais traços da primeira geração romântica:
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33
Na produção poética, tal sentimento se revela, antes de tudo, pela expressão de pessimismo
e angústia existencial: viver é um fardo, e o poeta é um sofredor. Vem daí a postura conhecida
como escapismo romântico: o eu lírico se mostra permanentemente insatisfeito com o mundo
real, razão pela qual ele deseja evadir-se para outras realidades. Esse desejo pode ser alcan-
çado, de forma provisória, por meio do sonho, da embriaguez ou do delírio febril – e, de modo
permanente, pela morte. Por esse motivo, todos esses elementos povoam o universo temático
do ultrarromantismo, com destaque para a atração pela morte.
É sintomático, nesse sentido, que essa mulher seja representada frequentemente como virgem
ou como anjo. Mais interessante ainda é observar a recorrência de adjetivos como “pálida”,
“branca”, “doentia” ou “lânguida”, que aproximam a mulher amada da representação da morte.
Já comentamos que um dos elementos centrais da estética romântica é o subjetivismo, que
nada mais é do que a tendência a retratar a realidade de um ponto de vista marcadamente
pessoal. Isso explica por que os poemas ultrarromânticos costumam fazer referência a uma
natureza violenta ou soturna – isto é, a cenários naturais onde há tempestades, mares revoltos,
noites fechadas e rajadas de vento. Antítese perfeita do locus amoenus do Arcadismo, esse
locus horrendus (lugar horrendo) nada mais é do que a projeção do estado de alma atordoado
do eu lírico.
Em resumo, a segunda geração romântica pratica uma poesia confessional, marcada pelo pes-
simismo e pela dor de existir. Para eles, o mundo real causa sofrimento, razão pela qual o poeta
está sempre em busca de realidades alternativas. Nesse cenário, a morte aparece como uma
opção extrema, e atraente, para permitir a evasão do aqui e agora. O amor é idealizado – ou
seja, não se realiza fisicamente –, ao mesmo tempo que a natureza, vista sob o prisma dos
sentimentos negativos do eu lírico, é retratada como locus horrendus. Essa caracterização pa-
norâmica pode ser verificada no poema a seguir, bastante conhecido.
Soneto
(Álvares de Azevedo)
(AZEVEDO, 20--)
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Esse soneto é um produto típico do ultrarromantismo. Embora, nele, o amor não se concre-
tize, o poema mal consegue conter uma tensão erótica latente. Realçado na 3ª estrofe pelo
emprego reiterado das reticências, esse erotismo velado contrasta com o transbordamento
sentimental sinalizado pelas sentenças exclamativas das demais estrofes. A mulher, por sua
vez, é retratada, segundo os clichês da segunda geração, como “anjo”, “virgem” e “pálida”. Essa
representação faz surgir uma figura vaga, etérea, que em nada remete à mulher de carne e
osso – trata-se, em suma, da típica figura feminina do ultrarromantismo. Por fim, repare que as
referências a “lâmpada sombria”, “lua” e “noite” ajudam a criar a atmosfera soturna tão carac-
terística da segunda geração.
Pode-se observar aqui o início de uma mudança mais profunda, por meio da qual o subjetivismo
romântico vai, gradualmente, abrindo espaço para um olhar mais objetivo sobre a realidade
externa. Esse processo desembocará na estética realista, que será estudada na próxima unidade.
36
No entanto, deve ficar muito claro que a literatura condoreira ainda é francamente romântica,
uma vez que os problemas sociais são captados pelo filtro da emoção, resultando em uma
poesia marcadamente sentimental. Feito para ser declamado e insuflar os ouvintes, o poema
condoreiro é vazado em um tom grandiloquente, aproximando-se da oratória. São frequentes,
por isso mesmo, as sentenças exclamativas, as hipérboles e imagens associadas à amplidão
dos espaços.
Para verificar na prática essas características, veja o poema a seguir, escrito por Castro Alves, a
título de dedicatória de seu livro Espumas flutuantes.
Dedicatória
(ALVES, 20--)
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37
O poema ilustra alguns traços marcantes da poesia de Castro Alves. Observe, por exemplo,
a referência a espaços amplos, como “mar imenso” (v. 2) ou “horizonte extenso” (v. 4). Essa
mesma referência reaparece sob a forma de hipérbole em “Neste oceano sem fim, sombrio,
eterno…” (v. 10). Observe, ainda, a recorrência de frases exclamativas, que realçam o caráter
dramático e conferem ao poema um tom de oratória, mostrando que se trata de uma peça
própria para ser declamada (e não lida em silêncio).
No que diz respeito ao tema, note que a imagem da pomba voando sobre o mar evoca o
episódio bíblico da Arca de Noé. Com isso, o poeta é associado a um pássaro que sai em busca
de uma terra nova, capaz de trazer a esperança e a liberdade por que ele tanto anseia.
Por fim, é preciso dizer que a poesia de Castro Alves não se alimentou apenas da temática
social. Sua obra apresenta também uma vertente lírica, cuja marca mais evidente é o aban-
dono da excessiva idealização amorosa do ultrarromantismo. Na prática, isso significa duas
coisas: primeiro, as mulheres, agora mais reais e carnais, já não se conformam ao modelo
ultrarromântico das virgens pálidas e anjos etéreos; segundo, os poemas passam a registrar a
possibilidade da consumação física do amor.
Para concluir, segue um brevíssimo resumo das três gerações da poesia romântica brasileira:
38
Poesia engajada:
Castro Alves, Sousândrade (Joaquim de
3ª geração libertação dos escravizados;
Sousa Andrade)
tom de oratória
O único escritor a ter se dedicado a todos os eixos da nossa prosa romântica foi o cearense
José de Alencar, considerado o maior romancista brasileiro do período. Além dele, destacam-se
os nomes de Joaquim Manuel de Macedo, Visconde de Taunay, Manuel Antonio de Almeida,
Bernardo Guimarães e Franklin Távora.
Romances urbanos
Os romances urbanos, ou romances de costumes, retratam o dia a dia da vida na corte (o Rio
de Janeiro) e tendem a focalizar os hábitos e costumes da burguesia. De um modo geral, esses
romances atualizam o tema do indivíduo que luta contra a sociedade. Tipicamente, vê-se um
casal apaixonado que precisa superar obstáculos sociais para concretizar seu amor. Nessa
trajetória, o herói e a heroína do romance enfrentam aventuras, coincidências, surpresas, reve-
lações – enfim, uma sucessão de eventos que caracterizam o enredo de peripécias. O resultado
é o final feliz, quando o casal pode enfim ficar junto e os vilões são punidos.
A importância do enredo de peripécias fica clara quando se sabe que os romances românticos
eram publicados por capítulos nas páginas dos jornais. Nesse contexto, os mistérios e revelações
ajudavam a manter o interesse do leitor e o faziam comprar a edição seguinte. Outro recurso
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39
para tornar a narrativa interessante aos olhos do leitor, produzindo nele um sentimento de
identificação, era a referência a lugares que o público conhecia e frequentava. Ao fazer isso,
nossos escritores adaptam o modelo de narrativa bem-sucedido na Europa – baseado nas
peripécias e no final feliz –, com elementos devidamente incorporados à realidade brasileira,
emprestando à narrativa aquilo que ficou conhecido como cor local.
Romances indianistas
Por terem como protagonista o indígena, o habitante original das nossas terras, os romances
indianistas inscrevem-se em um dos grandes projetos do romantismo brasileiro: construir uma
identidade para a nação que estava surgindo. Para isso, essas obras procuram resgatar o
passado nacional, às vezes sob a forma de mitos e lendas. Os três romances indianistas de José
de Alencar se passam em épocas remotas, ainda que distintas: se em Ubirajara a ação trans-
corre no período pré-cabralino, O guarani e Iracema já focalizam a interação entre o branco e o
indígena. Esta última obra apresenta, explicitamente, a gênese do povo brasileiro, simbolizado
pelo menino Moacir, filho de Iracema (indígena nativa) e Martim (branco europeu).
Nas obras indianistas, nem a imagem da natureza nem a figura do indígena escapam à
idealização romântica. Exótica e majestosa, a natureza será fonte de belezas inigualáveis. O
indígena, por sua vez, encarna todos os atributos valorizados pela moral burguesa: é honesto,
apaixonado, fiel, honrado etc.
Romances regionalistas
A ação dos romances regionalistas se passa no Brasil rural, longe do ambiente urbano da corte.
Dessa maneira, esses romances cumprem a missão de divulgar um Brasil desconhecido para
os leitores da capital. Do interior do Ceará (em O sertanejo, de José de Alencar) ao sertão do Mato
Grosso (Inocência, de Visconde de Taunay), dos pampas gaúchos (em O gaúcho, também de
Alencar) às fazendas do interior do Rio de Janeiro (A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães),
os romances regionalistas compõem um amplo painel da realidade brasileira, contribuindo,
assim, para o projeto romântico de construção de uma identidade nacional.
Das páginas desses romances, emerge uma paisagem exótica – que assinala, na sua singula-
ridade, a própria originalidade do país – e, como era de se esperar, idealizada. Graças a essas
obras, o leitor da capital fica conhecendo também os costumes, os trajes e um pouco do
linguajar típico de um Brasil em muitos sentidos pitoresco e arcaico.
40
Resumo
Nesta unidade, estudamos os textos literários escritos no início do século XIX no Brasil, cujas
caraterísticas marcantes nos levam ao ideário do Romantismo. O nacionalismo crescente
gerado pela independência do Brasil carregou de tintas românticas as manifestações artísticas
dessa época. Delas, o fundamento central do qual todas as outras marcas derivam é o subjeti-
vismo, que acaba por definir características secundárias, como a idealização, o sentimentalismo
exacerbado e a liberdade formal. Estes três aspectos vão tomar coloridos distintos em cada
uma das três gerações da poesia romântica: a primeira (Indianismo), a segunda (Ultrarroman-
tismo) e a terceira (Condoreirismo). Na primeira geração, a idealização vai se aplicar ao amor,
à pátria, aos indígenas, à infância; na segunda, o sentimentalismo exacerbado vai ser marcado
pelo pessimismo (dor existencial), pelo escapismo e pela percepção da natureza como locus
horrendus; já na terceira, a visão de mundo aparece menos idealizada, dando lugar a uma
poesia social engajada com as questões de seu tempo. Por sua vez, na prosa romântica, marcada
pela presença de diferentes tipos de romances (indianistas, urbanos, regionalistas, históricos),
vai imperar um gosto pela descrição subjetiva de personagens e espaços ainda desconhecidos.
Atividade 1
Depois de ler com atenção o texto a seguir, redija uma análise dele, guiando-se pelas seguintes
perguntas:
1. Qual é a voz que fala no texto? Como essa voz está caracterizada?
4. Podemos reconhecer nele algum tipo ou gênero textual específicos? Como reconhecemos a
construção da macroestrutura do texto?
5. Que recursos estilísticos foram utilizados com o objetivo de produzir os efeitos de sentido
produzidos?
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__texto 1
1 Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 25 Mas eu, Senhor!… Eu triste abandonada
2 Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes 26 Em meio das areias esgarrada,
3 Embuçado nos céus? 27 Perdida marcho em vão!
4 Há dois mil anos te mandei meu grito, 28 Se choro… bebe o pranto a areia ardente;
5 Que embalde desde então corre o infinito… 29 talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
6 Onde estás, Senhor Deus?… 30 Não descubras no chão…
13 Minhas irmãs são belas, são ditosas… 37 Cristo! embalde morreste sobre um monte
14 Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 38 Teu sangue não lavou de minha fronte
15 Dos haréns do Sultão. 39 A mancha original.
16 Ou no dorso dos brancos elefantes 40 Ainda hoje são, por fado adverso,
17 Embala-se coberta de brilhantes 41 Meus filhos – alimária do universo,
18 Nas plagas do Hindustão. 42 Eu – pasto universal…
[…]
43 Hoje em meu sangue a América se nutre
19 A Europa é sempre Europa, a gloriosa! 44 Condor que transformara-se em abutre,
20 A mulher deslumbrante e caprichosa, 45 Ave da escravidão,
21 Rainha e cortesã. 46 Ela juntou-se às mais… irmã traidora
22 Artista – corta o mármor de Carrara; 47 Qual de José os vis irmãos outrora
23 Poetisa – tange os hinos de Ferrara, 48 Venderam seu irmão.
24 No glorioso afã!…
49 Basta, Senhor! De teu potente braço
[…]
50 Role através dos astros e do espaço
51 Perdão p’ra os crimes meus!
52 Há dois mil anos eu soluço um grito…
53 escuta o brado meu lá no infinito,
54 Meu Deus! Senhor, meu Deus!!…
(ALVES, 20--)
42
Glossário
Alimária
Besta de carga.
Embuçado
Escondido, oculto.
José
Personagem bíblico, mais conhecido como José do Egito. Segundo o relato, José foi vendido
como escravo aos egípcios por seus irmãos, mas, graças a seu dom de interpretar sonhos,
conseguiu prosperar na nova terra.
Suez
Possível referência ao canal de Suez, construído entre 1859 e 1869, que liga o Mar Mediterrâneo
ao Mar Vermelho.
Resposta comentada
O texto que vamos analisar foi escrito pelo poeta Castro Alves, em 1868. Estamos numerando
os versos do poema, mesmo se tratando de fragmentos pertencentes a partes distintas, apenas
para facilitar a explicação da análise. Trata-se de um poema de 16 estrofes, das quais aqui
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43
reproduzimos apenas nove. Intitulado “Vozes d’África”, esse texto nos surpreende e emociona pelo
tratamento poético construído – nele percebemos a mescla do dramático, do lírico e do épico.
De maneira geral, o poema é marcado pela busca incessante por uma resposta à pergunta
básica da angústia humana diante do sofrimento. Essa busca está registrada já no primeiro
verso da primeira estrofe: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?”. Essa indagação nos
remete a uma outra dúvida ligada à memória coletiva dos cristãos – o momento em que Cristo, já
crucificado, se dirige ao poder divino “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (BÍBLIA,
Mateus 27:46, 20--).
Como se observa, o eu poético acusa o personagem Deus de não ter respondido (v. 1), de ter
se escondido (v. 2) e de estar embuçado (isto é, encoberto até os olhos) no céu (v. 3). A fim de
denunciar o sofrimento do eu poético, esses três versos carregam um tom exacerbadamente
dramático – como se pode observar pelo uso abundante de exclamações e interrogações, além
da superposição de significados negativos suscitada com o termo “embuçado” (ao mesmo
tempo encoberto, traidor, delator) atribuídos a Deus (visto ao final dessa estrofe como um ser
omisso e negligente).
A busca do eu poético se assemelha à de um cavaleiro medieval. Dessa forma, outra memória co-
letiva é conclamada para o texto: a das narrativas dos heróis épicos, cuja saga envolve inúmeras
peripécias e a transposição de obstáculos para que o protagonista consiga chegar ao fim e ser
premiado. No entanto, o que vamos percebendo, estrofe por estrofe, é que o eu poético vai pro-
tagonizar aqui uma desventura sem fim e complexa, diante dos lamentos que vão se sucedendo.
que veremos emergir no final do poema. Nas estrofes seguintes, vamos conhecer as relações
entre as personagens conclamadas a participar da história (“Minhas irmãs são belas, são ditosas”
– v. 13): os continentes Ásia (estrofe 3) e Europa (estrofe 4). Esse é mais um passo importante
para a compreensão gradativa da identidade da irmã África, o eu poético – e a voz que suplica
pela intervenção divina.
As imagens que detalham as irmãs ditosas – Ásia e Europa – evocam atributos de beleza e
riqueza que irão contrastar com as imagens de exploração, indiferença, abuso, descaso e traição
construídas nas estrofes 5, 6 e 7, para caracterizar África. Observe: “abandonada, esgarrada e
perdida” (v. 25-27); “se choro… bebe o pranto a areia ardente” (v. 28); “nem tenho uma sombra
de floresta” (v. 31); “embalde aos quatro céus chorando grito” (v. 35); “Meus filhos – alimária do
universo / Eu – pasto universal” (v. 41-42).
Vamos, então, nos aproximando do clímax do poema, que é alcançado na estrofe 8. O objetivo
dessa estrofe é mostrar como o Novo Mundo – as Américas – se rendeu às vontades das irmãs
ditosas e passou a trair sua irmã África, fazendo de seus filhos prisioneiros e arrastando-os
pelos mares para a escravidão (“Hoje em meu sangue a América se nutre / Condor que trans-
formara-se em abutre / Ave da escravidão” – v. 43-45).
A ideia de traição é arrematada com a analogia entre as irmãs traidoras e uma passagem da
Biblia (Gênesis, 37, 20--) em que os irmãos de José o vendem como escravo para uma caravana
que está a caminho do Egito (v. 47-48). Rumo ao desfecho na estrofe 9, há um retorno ao
clamor, em que o eu poético suplica novamente pelo perdão de seus possíveis pecados, e o
grito ecoa no infinito há mais de 2 mil anos sem que haja uma resposta: “escuta o brado meu
lá no infinito / Meu Deus! Senhor, Meu Deus!” (v. 53-54).
De maneira geral, temos duas grandes figuras de base na construção do poema: a personifi-
cação (prosopopeia) e a antítese. Cada uma delas serve a uma finalidade. Ao personificar, dar
vida aos continentes, o autor propõe criar uma empatia imediata entre leitores e o eu poético,
para que sejamos capazes de nos identificar com o sofrimento da personagem África. Dessa
forma, a personagem idealizada ganha vida, bem a gosto da estética romântica. Além disso, ao
associar a cada “irmã” imagens tão contrárias e distantes, acentuam-se as características do
sofrimento de uma delas. Isto é, fica claro que a felicidade de três delas (Ásia, Europa e América)
depende da exploração e do sofrimento da outra (África).
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Referências
ALVES, Castro. Espumas flutuantes. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Departamento
Nacional do Livro, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
bn000006.pdf. Acesso em: 21 mar. 2022.
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. In: BIBLIOTECA VIRTUAL DO ESTUDANTE BRASILEIRO.
São Paulo: USP, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
bv000021.pdf. Acesso em: 21 mar. 2022.
BÍBLIA Sagrada on-line. Mateus 27:46. Matosinhos, Portugal, 20--. Disponível em: https://www.
bibliaon.com/versiculo/mateus_27_46/. Acesso em 7 jul. 2021.
BÍBLIA Sagrada on-line. Gênesis, 37. Matosinhos, Portugal, 20--. Disponível em: https://www.
bibliaon.com/jose_e_vendido_pelos_irmaos/. Acesso em: 9 jul. 2021.
DIAS, Gonçalves. Canção do exílio. In: BIBLIOTECA VIRTUAL DO ESTUDANTE BRASILEIRO. São Paulo:
USP. 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000115.pdf.
Acesso em: 21 mar. 2022.
meta
Apresentar a literatura real-naturalista brasileira, propondo uma reflexão crítica sobre ela.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
Na unidade anterior, você estudou o Romantismo, movimento artístico e filosófico que
dominou a primeira metade do século XIX. Agora, então, é hora de seguir em frente na linha
do tempo: precisamos conhecer o panorama artístico da segunda metade do mesmo século.
Dito isso, é preciso estabelecer uma distinção: enquanto o Realismo e o Naturalismo envolvem
produções em prosa, o Parnasianismo é um movimento ligado à poesia. É por essa razão que,
nesta unidade, vamos tratar apenas dos dois primeiros – o Parnasianismo ficará para o próximo
capítulo.
Primeiras palavras
Na Introdução, nós dissemos que as três escolas literárias da segunda metade do século XIX –
o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo – constituem, juntas, uma reação ao movimento
romântico. Então, antes de focalizarmos individualmente o Realismo e o Naturalismo, vamos
tentar responder à seguinte pergunta: por que, exatamente, aquelas três escolas marcam uma
oposição ao Romantismo? Que princípios ou características comuns a esses três estilos repre-
sentam uma negação da visão de mundo romântica?
Resposta curta: o ideal de objetividade. Você deve estar lembrado de que a literatura romântica
é marcada pela valorização da imaginação e por uma postura subjetivista. Pois é: a literatura
que se consolida na segunda metade do século XIX – isto é, a literatura realista, naturalista e
parnasiana – vai na direção oposta. O que significa, na prática, o seguinte: no lugar da imaginação,
entra a observação atenta do mundo real; no lugar da postura subjetivista, entra o esforço por
retratar a realidade de modo objetivo.
Para mostrarmos essa oposição na prática, veja os três exemplos a seguir. O primeiro é um
fragmento do romance romântico Lucíola, de José de Alencar. Procure contrastá-lo com os
outros dois exemplos. O segundo trecho foi extraído do romance realista A cidade e as serras
(do escritor português Eça de Queirós), ao passo que o terceiro é a primeira estrofe do poema
parnasiano “Fantástica” (do brasileiro Alberto de Oliveira).
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__texto 1
Lucíola
Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas, refrescava a atmosfera. Os lábios
aspiravam com delícias o sabor desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma
respiração árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da natureza
fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas. (ALENCAR, 20--)
__texto 2
A cidade e as serras
O Cintinho crescera. Era um moço mais esguio e lívido que um círio, de longos cabelos corredios,
narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por
causa da tosse e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina através do 202; e os criados
na copa sempre lhe chamavam a “Sombra”. (QUEIRÓS, 19--, p. 37)
__texto 3
“Fantástica” (fragmento)
No Texto 1, toda a descrição está impregnada do ponto de vista pessoal do narrador. Mais do
que um retrato da paisagem ou da natureza fluminense, o que esse fragmento nos mostra são
as percepções e reações do narrador diante desse cenário. Trata-se, portanto, de uma descrição
marcadamente subjetiva, própria do estilo romântico.
Mas, afinal, de onde vem essa busca? Pelo menos parte da resposta tem a ver com um clima de
euforia em relação ao desenvolvimento científico do período. E qual é a relação entre desen-
volvimento científico e objetividade? Simples: o ideal das ciências é, precisamente, descrever,
analisar e interpretar a realidade, de modo a entender como ela funciona em cada um de seus
aspectos (físicos, biológicos, sociológicos etc.). Para isso, é preciso observá-la com distancia-
50
Ótimo: agora que nós já entendemos o panorama mais amplo no qual o Realismo, o Naturalismo
e o Parnasianismo se inserem, bem como o princípio estético que une esses três estilos (ao
mesmo tempo que os distancia, como um bloco, do Romantismo), podemos começar a tratar
de cada um deles individualmente. Lembrando: nesta unidade, falaremos apenas do Realismo
e do Naturalismo, as duas escolas literárias do período associadas à produção em prosa.
Realismo
Informações iniciais
O início do Realismo no Brasil costuma ser associado à publicação das Memórias Póstumas
de Brás Cubas (1881), revolucionário romance de Machado de Assis. O autor, cuja obra conta
também com uma fase romântica (certamente menos valorizada), publicou ainda clássicos
como Dom Casmurro e Esaú e Jacó. Ao lado de Machado, encontramos, também, Raul Pompeia.
Seu romance O ateneu, porém, é bastante singular, e dificilmente poderia ser enquadrado com
tranquilidade em qualquer escola literária.
Visão geral
Como você já estudou, o compromisso da estética realista é com a realidade objetiva – e não
com a imaginação ou com a interioridade do sujeito. Na tentativa de reproduzir fielmente essa
realidade, os escritores se apegarão aos detalhes. Isso fica claro nesta passagem de Madame
Bovary, livro do escritor realista francês Gustave Flaubert:
Os ruídos da cidade quase não chegavam até eles; e o quarto parecia pequeno, feito de propósito
para encerrar ainda mais sua solidão. Emma, vestida com um penhoar de fustão, apoiava seu coque
no encosto da velha poltrona; o papel amarelo da parede fazia como um fundo dourado atrás
deles: e sua cabeça nua se repetia no espelho com o repartido branco ao meio, e a ponta de suas
orelhas sobressaindo sob seus bandós (FLAUBERT, 2003, p. 238).
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51
e a ganância dos padres tornam-se temas recorrentes. A título de exemplo, observe o fragmento
a seguir, retirado do romance O primo Basílio, do escritor português Eça de Queirós. Nele, a
protagonista Luísa, que tem um caso com Basílio, recebe uma carta de seu marido, Jorge:
Àquela hora, Luísa recebia uma carta de Jorge. Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor, sobre
as más estalagens; histórias sobre o extraordinário parente de Sebastião – saudades e mil beijos…
Não a esperava, e aquela folha de papel cheia duma letra miudinha, que lhe fazia reaparecer viva-
mente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda
a vergonha dos seus desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces.
Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que ele lhe dissera, com que olhos a devorara!…
Recordava tudo – a sua atitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz… E maquinalmente, pouco
a pouco, ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhe, até ficar perdida na deliciosa
lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos (QUEIRÓS, 1971, p. 85-86).
Além de ilustrar o tema do adultério, uma das “doenças sociais” mais frequentemente apon-
tadas nas obras realistas, esse exemplo flagra um procedimento comum nesse estilo literário:
a análise psicológica dos personagens. Pela voz do narrador (“Toda a vergonha dos seus
desfalecimentos cobardes”) e também por meio do discurso indireto livre (“Que horror deixar-se
abraçar, apertar!”), testemunhamos o conflito moral da protagonista, que parece hesitar entre
a lealdade ao marido e as tentações oferecidas pelo amante. Sob o prisma do realismo lite-
rário, porém, não há dúvidas sobre quem sairá vencedor dessa disputa: a autocrítica de Luísa
dura pouco, e rapidamente ela se perde “na deliciosa lassidão […], com o olhar lânguido, os
braços frouxos”. O vício derrotou a virtude.
Naturalismo
Informações iniciais
O início do Naturalismo no Brasil costuma ser associado à publicação da obra O mulato (1881),
romance de Aluísio Azevedo, que também foi autor, dentre outros, de Casa de pensão (1884) e
O cortiço (1890). Além dele, destacam-se os nomes de Adolfo Caminha, autor de A normalista
(1893) e Bom-crioulo (1895), Inglês de Souza, autor de O missionário (1888), e Domingos Olímpio,
autor de Luzia-Homem (1903).
Visão geral
Dissemos anteriormente que o escritor realista incorpora a postura científica ao propor um olhar
objetivo sobre a realidade. O escritor naturalista, contudo, vai além em sua adesão ao cientificismo:
ele se propõe a elaborar o chamado romance experimental (ou romance de tese). Esse é o nome
dado aos romances que pretendiam comprovar, por meio do destino de seus personagens,
teorias científicas (ou, em alguns casos, pretensamente científicas) em voga na época.
Dentre essas teorias, a que mais impactou a produção literária foi, provavelmente, o Determinismo,
paradigma desenvolvido pelo francês Hippolyte Taine. Segundo a doutrina determinista, o
comportamento de um indivíduo poderia ser previsto a partir da conjugação de três fatores: sua
raça, o meio em que vivia e o momento histórico em que estava inserido.
Algumas obras naturalistas procurarão demonstrar a validade dessa tese. É o caso do principal
romance naturalista brasileiro – O cortiço, de Aluísio Azevedo –, repleto de personagens que
acabam por sucumbir ao ambiente degradado e insalubre em que vivem (o tal cortiço que dá
título à obra). Um exemplo típico é o da personagem Pombinha, inicialmente descrita da
seguinte forma:
A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que enfermiça e nervosa ao
último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de menina de boa família. A mãe não lhe permitia
lavar, nem engomar, mesmo porque o médico a proibira expressamente (AZEVEDO, 2004, p. 37-38).
A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu próprio pé, atraída, meter-se-lhe na boca. A pobre
mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgostos não lhe tiraram a vida por uma vez e,
como a desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça
baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre, constituindo-se
a rapariga no seu único amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição (p. 235).
língua portuguesa_unidade 03
53
No destino dessas personagens, dentre outros que povoam a narrativa, ficaria demonstrada
a tese determinista de Hippolyte Taine: o ser humano é incapaz de se manter imune ao meio
onde é criado. É importante lembrar que o Determinismo é, hoje, uma teoria ultrapassada,
sobretudo por retirar do ser humano qualquer possibilidade de livre-arbítrio. Em meio à
euforia cientificista da época, porém, a teoria fez sucesso, a ponto de influenciar fortemente a
produção literária.
Para além do Determinismo, é preciso mencionar, ainda, os estudos do naturalista inglês Charles
Darwin a respeito da evolução e da seleção natural. Graças às descobertas de Darwin, o ser
humano passa a se enxergar como um animal como outro qualquer – movido, portanto, muito
mais pelos instintos do que pela razão. Essa mentalidade está por trás de uma característica
marcante da literatura naturalista: a tendência à animalização do homem, que pode ser cons-
tatada tanto no vocabulário empregado quanto no comportamento e nas reações dos indiví-
duos, sempre guiados por seus instintos primitivos. Para verificar isso na prática, observe os
três fragmentos a seguir, todos retirados de O cortiço.
Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a
fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam
encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea (AZEVEDO, 2004, p. 147).
[…] a Machona, armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um segundo
coice como acabava ela de receber um nas ancas […] (p. 126)
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta
e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. […] A mulher dormia a sono solto.
Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama. “Devia voltar!… pensou. Não lhe ficava bem
aquilo!… Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá-la
no seu desejo. Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril
da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez
estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto,
mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido (p. 14-15).
Nos dois primeiros trechos, atente para o vocabulário empregado, que aproxima o ser humano
do animal. No primeiro caso, os homens são tratados como “animais fortes” com “patas
esmagadoras”, ao passo que a mulher é tratada como “fêmea”. Já no segundo, o vocabulário
referente aos seres humanos inclui termos como “fuças”, “coice” e “ancas”. No terceiro trecho, é
interessante observar o comportamento animalizado do personagem Miranda. Mesmo tomado
por um “estado de lubricidade” (ou seja, de excitação), ele ainda tenta conter seus impulsos
(“Devia voltar!…”). Em uma obra naturalista, no entanto, o lado animal, instintivo, supera o lado
54
racional. É o que vemos acontecer aqui: Miranda, antes de ser um ente racional, é um animal
guiado por seus instintos – é precisamente por essa razão que ele não consegue resistir e se
atira contra a mulher.
A concepção naturalista do homem como animal leva os autores dessa escola a dar prefe-
rência à retratação de classes populares, uma vez que, na visão pseudocientífica da época,
os indivíduos mais pobres eram vistos como pouco civilizados e, portanto, mais próximos do
estado “primitivo” de animalidade. Nesse sentido, Naturalismo e Realismo se opõem, já que
este último focaliza preferencialmente a classe média.
Por fim, é importante sublinhar, ainda, outra diferença entre Realismo e Naturalismo: enquanto
o primeiro se dedica à análise psicológica de personagens individuais, o segundo demonstra
uma preferência acentuada pelas grandes aglomerações humanas. Mais uma vez, essa prefe-
rência pode ser encarada como uma maneira de reforçar a desumanização dos personagens.
A ênfase, no Naturalismo, recai sobre o coletivo. Um exemplo dessa preferência pode ser visto
logo no início do romance O cortiço:
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas
[…]
amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam
as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de
janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite;
a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que
ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que alter-
cavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas.
[…]
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos
e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da
altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se (AZEVEDO, 2004, p. 33).
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55
Você já aprendeu: por seu compromisso com a objetividade, o escritor realista e naturalista
procura “ocultar” ou “apagar” a figura do narrador. Na prática, portanto, tudo se passa como
se o leitor, em vez de ler uma história contada por alguém, estivesse assistindo ao desenrolar
da trama sob seus olhos. Afinal, histórias relatadas por terceiros tendem a incorporar o ponto
de vista de quem está contando – o que contraria o ideal real-naturalista de objetividade e
impessoalidade. Se a proposta é retratar a realidade como ela é, a interferência do narrador
não é bem-vinda. Por isso mesmo, o foco narrativo é em 3ª pessoa.
Certo? Quase. Embora esse seja, sem dúvida, o quadro geral, a verdade é que ele comporta
exceções. E, aqui, a grande exceção é justamente a obra de Machado de Assis, sem dúvidas
o maior escritor brasileiro do período (e talvez de todos os tempos). Pois é: contrariando um
dos princípios básicos da estética de seu tempo, a prosa realista de Machado de Assis tende a
recusar explicitamente o ideal de objetividade.
56
Mas como, exatamente, ele faz isso? De duas maneiras. Em primeiro lugar, optando por pro-
duzir diversas obras em 1ª pessoa – o que equivale, na prática, a apresentar a história sob o
ponto de vista de um personagem específico. Isso contraria o ideal real-naturalista de objeti-
vidade porque, na medida em que a história é contada pela ótica de um narrador-personagem,
não temos como ter certeza de que os eventos narrados correspondem de fato à realidade (do
mundo ficcional em questão).
Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dois era mais imperioso e útil. Velhas
ideias que lhe incutiram em criança vinham agora emergindo do cérebro e descendo ao coração.
Imaginava ir com os pequenos ao morro do Castelo, a título de passeio… Para quê? Para confirmá-la
na esperança de que seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predição contrária.
Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora, além de não crer (nem
todos creem) pode ser que não conte mais de vinte a vinte e dois anos de idade, e terá a paciência
de esperar. Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos
filhos. Podia ser que a visse, pois também se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria
o mesmo gosto? (ASSIS, 20--, p. 12).
Resumo
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57
Atividade
Leia os fragmentos de texto com atenção, observando, sobretudo, os contrastes no modo como
cada texto realiza a descrição dos personagens.
__texto 4
A herança (fragmento)
Venância tinha dois sobrinhos, Emílio e Marcos; o primeiro de vinte e oito, o segundo de trinta e quatro
anos. Marcos era o seu mordomo, esposo, pai, filho, médico e capelão. Ele cuidava-lhe da casa e das
contas, aturava os seus reumatismos e arrufos, ralhava-lhe às vezes, brandamente, obedecia-lhe sem
murmúrio, cuidava-lhe da saúde e dava-lhe bons conselhos. Era um rapaz tranquilo, medido, geral-
mente silencioso, pacato, avesso a mulheres, indiferente a teatros, a saraus. Não se irritava nunca,
não teimava, parecia não
ter opiniões nem simpatias. O único sentimento manifesto era a dedicação a D. Venância. Emílio era
em muitos pontos o contraste de Marcos, seu irmão. Primeiramente, era um dândi, turbulento,
frívolo, sedento de diversões, vivendo na rua e na casa dos outros, dans le monde. Tinha cóleras, que
duravam o tempo das opiniões; minutos apenas. Era alegre, falador, expansivo, como um namorado
de primeira mão. Gastava às mãos largas. Vivia duas horas por dia em casa do alfaiate, uma hora
em casa do cabeleireiro, o resto do tempo na Rua do Ouvidor; salvo o tempo em que dormia em
casa, que não era a mesma casa de D. Venância, e o pouco em que ia visitar a tia. Exteriormente era
um elegante; interiormente era um bom rapaz, mas um verdadeiro bom rapaz. Não tinham pai nem
mãe; Marcos era advogado; Emílio formara-se em medicina. Por um alto sentimento de humanidade,
Emílio não exercia a profissão; o obituário conservava o termo médio usual. Mas, tendo um e outro
herdado alguma coisa dos pais, Emílio mordia razoavelmente a parte da herança, que aliás o irmão
administrava com muito zelo (ASSIS, 20--).
__texto 5
O cortiço (fragmento)
Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado
do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa,
e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por
cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia:
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina,
metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não
pagavam nada para lavar.
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço
de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar;
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acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal
vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de
pretendentes a disputá-los.
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de
varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam
como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras
barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos
de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar,
a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali
mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco (AZEVEDO, 2004, p. 22).
Resposta comentada
O primeiro contraste que podemos observar é que os dois textos tratam de personagens de
naturezas diferentes: no Texto 4, vamos acompanhar uma análise psicológica objetiva de dois
personagens humanos que são irmãos e vivem na mesma casa; já no Texto 5, observamos a
descrição objetiva de um espaço – o cortiço – que vai crescendo avassaladoramente com a
chegada de novos clientes. No caso do Texto 5, o cortiço vai aglomerando humanos até se
transformar, ele mesmo, em um personagem. Estamos, então, diante de uma figura de estilo,
usada para transformar um ser inanimado – o cortiço – em uma criatura viva: trata-se da perso-
nificação. Esse espaço vai sendo tomado, da mesma forma como ocorre a expansão geográfica
de um ser vivo, onde vão brotando novas células, como uma doença que se espalha pelo corpo
do terreno.
Quanto à natureza das descrições, no caso do Texto 4, o fragmento faz parte da introdução do
conto, quando conhecemos a personagem Tia Venância e seus dois sobrinhos: os personagens
Emílio e Marcos. Esses dois são irmãos, cujos perfis são apresentados em oposição: “Emílio era
em muitos pontos o contraste de Marcos, seu irmão.” Emílio, o irmão caçula, “primeiramente,
era um dândi, turbulento, frívolo, sedento de diversões, vivendo na rua e na casa dos outros,
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59
dans le monde. Tinha cóleras, que duravam o tempo das opiniões; minutos apenas. Era alegre,
falador, expansivo, como um namorado de primeira mão. Gastava às mãos largas”, enquanto
Marcos, o irmão mais velho, “era o seu [da tia] mordomo, esposo, pai, filho, médico e capelão. Ele
cuidava-lhe da casa e das contas, aturava os seus reumatismos e arrufos, ralhava-lhe às vezes,
brandamente, obedecia-lhe sem murmúrio, cuidava-lhe da saúde e dava-lhe bons conselhos.
Era um rapaz tranquilo, medido, geralmente silencioso, pacato, avesso a mulheres, indiferente
a teatros, a saraus. Não se irritava nunca, não teimava, parecia não ter opiniões nem simpatias. O
único sentimento manifesto era a dedicação a D. Venância”. A progressiva descrição antagônica
das personagens serve a um propósito no texto que culmina com o inesperado do desfecho (não
vamos revelar – leia o conto!). Podemos observar características de aparência física, compor-
tamento social e humor interno sendo detalhadas para produzir uma imagem quase pictórica,
como se estivéssemos diante de um retrato falado da pessoa e de suas atitudes. O modelo
inicial das ciências da mente serve de forma pragmática ao detalhamento da descrição objetiva
desses perfis.
Já no caso do Texto 5, a presença de um ser inanimado que vai se alargando por outros
horizontes e tomando espaço dos vizinhos nos lembra de que estamos diante da influência
da observação das ciências naturais (físicas, químicas, biológicas): o personagem cortiço é
“humanizado” e mostrado como se estivesse em fase de crescimento, o que seria gerado pela
aglomeração de células vivas (“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma
geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como
larvas no esterco”). Como finalidade principal, as teorias do determinismo científico corroboram
a ideia de que os seres humanos que ajudam a produzir o conglomerado cortiço (protagonista
do romance de Aluísio Azevedo) têm a função de comprovar a tese determinista de que os
homens são fruto do meio em que vivem, determinados pela situação social e histórica e dela
não podem fugir, refletindo-a de maneira inexorável.
Referências
ALENCAR, José de. Lucíola. In: BIBLIOTECA VIRTUAL DO ESTUDANTE BRASILEIRO. São Paulo: USP,
20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000137.pdf. Acesso
em: 22 mar. 2022.
ASSIS, Machado de. A herança. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1878. 20--.
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000063pdf.pdf. Acesso
em: 15 mar. 2022.
60
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Departamento
Nacional do Livro, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
bn000030.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad. Araújo Nabuco. São Paulo: Martin Claret, 2003.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
língua portuguesa_unidade 03
Literatura brasileira:
04
Parnasianismo e
Simbolismo
meta
Provocar a reflexão crítica sobre as literaturas parnasiana e simbolista brasileiras.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
No final do século XIX, a poesia viu florescerem dois projetos estéticos diferentes. De um lado,
o Parnasianismo defende uma literatura baseada na razão e na objetividade. De outro, os
poetas alinhados ao Simbolismo se voltam para a espiritualidade e o misticismo. Nesta unidade,
falaremos de cada um desses estilos separadamente.
Parnasianismo
Informações iniciais
Tendo como marco inicial a publicação de Sinfonias, de Raimundo Correia, em 1883, o Parna-
sianismo foi um estilo imensamente popular no Brasil. Seu representante mais conhecido é,
provavelmente, Olavo Bilac. A seu lado, porém, merecem relevo os nomes de Alberto de Oliveira,
Raimundo Correia e Francisca Júlia.
Visão geral
O projeto parnasiano de poesia é, essencialmente, antirromântico. Por isso, antes de falarmos
sobre o Parnasianismo, vale a pena destacar três características do Romantismo às quais
aquela escola irá se opor. Em primeiro lugar, os românticos enxergam a poesia como manifes-
tação da interioridade do sujeito. Por isso mesmo – e esta é a segunda característica –, não
aceitam que sua poesia se submeta, obrigatoriamente, a rígidos parâmetros formais. Por fim,
a literatura romântica tende a carregar no sentimentalismo.
A escola parnasiana irá combater esses três princípios. Em primeiro lugar, fiel ao projeto que
vigorou em fins do século XIX, o poeta parnasiano rejeitará o subjetivismo da arte romântica,
procurando lançar um olhar objetivo sobre a realidade. Com alguma frequência, essa proposta
se manifestará sob a forma de uma poesia descritiva, pictórica, voltada para a realidade sensível.
Repare que, nesse mesmo período, o Realismo também combate a proposta romântica na
ficção, o que nos leva a considerar o movimento parnasiano como uma expressão do realismo
na poesia. Um bom exemplo dessa tendência, às vezes chamada de descritivismo, aparece no
poema a seguir:
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Fantástica (fragmento)
(Alberto de Oliveira)
Note que o poema nos apresenta a descrição de um cenário: nele, há um palácio cingido por
um rio (“Torvo, imoto em seu leito, um rio o cinge,”), iluminado pela lua (“E, à luz dos pleni-
lúnios argentados,”) e cercado por arbustos. A partir da terceira estrofe, a descrição passa a
focalizar o interior do palácio, com “quedas figuras / De reis e rainhas” e uma série de objetos,
como armaduras, dardos e elmos, além da estátua de uma “bela princesa”.
É interessante, também, destacar nesse poema a orientação espacial, que parece guiar-nos
pelo palácio. O primeiro verso (“Erguido em negro mármor luzidio,”) nos coloca diante do
edifício, em frente às “portas fechadas, num mistério enorme”. Na sequência, o olhar é
conduzido para o entorno e aí vemos o rio, o céu noturno, a esfinge e os arbustos. Então,
somos introduzidos no palácio (“Dentro, assombro e mudez! quedas figuras”), onde nos encon-
tramos cercados por estátuas e objetos antigos, de aspecto medieval (procure se lembrar de
filmes, séries e desenhos que você já tenha visto e que utilizem essa ambientação de castelo).
Avançando mais ainda, encontramos a jovem princesa morta sobre uma espécie de altar.
64
Note como toda essa orientação é cinematográfica: tudo se passa como se houvesse uma
câmera guiando nosso olhar pelos lugares (e destacando objetos e cores no processo). Se isso,
hoje, nos parece algo trivial, uma vez que estamos acostumados a essa linguagem, imagine
para alguém que viveu antes do surgimento do cinema!
Com efeito, essa forma de mergulhar o leitor no poema ilustra um dos elementos centrais da
estética parnasiana: o esforço por proporcionar ao leitor uma experiência sensível. Aqui, estamos
usando a palavra “sensível” com o sentido de “experimentar com os sentidos” – e, se você
analisar com cuidado o poema “Fantástica”, verá que é isso que está acontecendo.
Observe: o tato é evocado pelo material do palácio, mármore (no poema, sem a letra “e”, para
encaixar no esquema métrico); a visão é evocada pela própria “aparição” do palácio, bem
como pela lua cheia “argentada” (ou seja, cor de prata); o olfato é evocado pelo rio e pelos
arbustos (sugerindo um perfume da natureza que cerca esse ambiente fantástico) e também
pelas flores que ornam o leito da princesa (sugerindo um frescor que contraria a presença da
morte); a audição é evocada pelo silêncio que domina toda a cena (“assombro e mudez!”) e
também pelo rumor do rio (ao que tudo indica, o único som que pode ser ouvido no local).
Nesse trecho, como você pode ver, apenas o paladar não é evocado.
Por fim, cabe mencionar o fato de que toda a imagética evocada nesse poema nos remete aos
contos de fadas: o castelo, as armaduras e estátuas, a princesa morta/adormecida. Tudo isso
condiz com o título: “Fantástica”. No fim das contas, o que o poema entrega ao leitor é justa-
mente uma experiência fora do comum – mas não carregada de emotividade, como acontecia
no Romantismo. Nesse sentido, é muito significativa nesse poema a ausência de um eu que
enuncia o texto, ao qual geralmente nos referimos como eu lírico.
Tal tendência a uma poesia pictórica revela uma intenção do escritor parnasiano: aproximar
sua literatura das artes plásticas (diferente do romântico, que tende a valorizar a musicalidade
e a melodia, uma arte considerada menos cerebral por apelar para o lado emocional e para o
inconsciente). Por essa razão, é frequente, nos poemas parnasianos, que o eu lírico veja a si
mesmo como escultor, ourives ou pintor.
No poema a seguir, por exemplo, a poesia é comparada a dois objetos materiais. No quarto
verso, temos uma comparação implícita: a forma verbal “lima” revela que a poesia está sendo
tratada como algum material passível de ser moldado. No oitavo verso, a comparação é explí-
cita: o resultado do trabalho do poema deve assemelhar-se a um “templo grego”.
A um poeta
(Olavo Bilac)
língua portuguesa_unidade 04
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(BILAC, 20--)
É válido ressaltar, nesse poema, a importância que o autor parnasiano dava para o trabalho
poético. Diferentemente do romântico, que procurava passar a impressão de que seus textos
eram fruto da espontaneidade – do “gênio”, como eles costumavam chamar o poeta –, o parna-
siano quer que a poesia seja encarada como labuta, esforço, dedicação. No entanto, esse
trabalho tem de ser feito de tal maneira que o produto final – isto é, o poema – pareça ter surgido
já pronto, perfeitamente acabado (“Não se mostre na fábrica o suplício / do mestre”). Portanto,
para esses autores, só o que importa é a obra de arte – não os processos que a produziram.
Mas como essa concepção se traduz na poesia? Antes de tudo, ela se traduz na opção pela
rigidez formal, com o apego a formas poéticas fixas (sobretudo o soneto), presença de rimas e
esquema métrico regular. Além disso, são valorizados alguns recursos mais específicos, como
as rimas ricas, as rimas raras e o cavalgamento, entre outros.
66
// atenção
Conceitos importantes
Soneto: esquema poético composto por duas estrofes de quatro versos (quartetos) seguidas por
duas estrofes de três versos (tercetos).
Vamos começar a apreciar estas duas últimas características – a perfeição formal e a impassi-
bilidade – a partir do poema a seguir.
Musa impassível
(Francisca Júlia)
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(SILVA, 20--)
O soneto “Musa impassível” pode ser lido como uma verdadeira declaração de princípios
parnasiana. Os quartetos são um elogio à impassibilidade: sugere-se que a demonstração dos
sentimentos (simbolizada pelo gesto “de dor ou de sincero / Luto”) é capaz de enfear o
“cândido semblante”. Por essa razão, deve-se buscar a contenção das emoções (“Em teus olhos
não quero a lágrima”) mesmo em situação extremas (“e diante / De um morto, o mesmo olhar
e sobrecenho austero”). A esse princípio, alguns autores denominam racionalismo.
Os tercetos, por sua vez, revelam a busca pela perfeição formal. Isso fica claro no emprego de
expressões como “hemistíquio d’ouro”, “harmonia crebra”, “estrofe limpa e viva”. Vale atentar
também para a própria composição do poema. Antes de qualquer coisa, trata-se de um soneto –
portanto, um molde formal rígido, ao qual o poeta deve se adaptar. De fato, o esquema métrico
é fixo: todos os versos são alexandrinos, ou seja, contêm 12 sílabas poéticas (Mu/sa! Um/ ges/
to/ se/quer/ de/ dor/ ou/ de/ sin/ce/ro). Há ainda as rimas ricas (como “semblante” / “diante”,
“quero” / “Homero”) e pelo menos uma rima rara (quebra/crebra), sem falar no emprego do
cavalgamento (“sincero / Luto”; “diante / De um morto”).
Além disso, mesmo que esse poema seja escrito em primeira pessoa (“quero”, “dá-me”), não
há propriamente a presença de uma subjetividade tal como vimos no romantismo. Aqui, o eu
lírico se coloca diante da Musa, como se falasse diretamente a ela, louvando-a como uma santa
ou deusa, mas não há a expressão de uma interioridade, de sentimentos ou emoções. Pelo
contrário, é como se o eu lírico pedisse para si a mesma impassibilidade que tanto valoriza na
Musa.
O racionalismo parnasiano e sua busca pela forma perfeita e harmoniosa aproximam essa
estética de um ideal artístico próprio da cultura clássica (greco-romana). Cientes disso, os
poetas parnasianos retomarão com frequência elementos associados a esse universo. O
próprio nome da escola inspira-se no nome de uma montanha grega – o Parnaso – onde
moraria o deus Apolo. A esse respeito, sugerimos que você volte ao fragmento de “A um poeta”:
lá, aparece a referência a um “templo grego”. As referências clássicas também podem ser vistas no
poema a seguir, a que recorremos para sintetizar alguns dos principais traços do Parnasianismo.
Vaso grego
(Alberto de Oliveira)
(OLIVEIRA, 20--)
• Não se constata no poema uma voz pessoal nem qualquer tipo de manifestação senti-
mental. Em vez disso, o que se percebe é a descrição objetiva de um vaso grego. Notam-se
aqui, portanto, as seguintes marcas da estética parnasiana: objetivismo, descritivismo e
impassibilidade.
# lá na plataforma
Parnasianismo e impassibilidade
Qual a relação entre o culto à arte greco-romana e a valorização da impassibilidade? Como visu-
alizamos essa expressão nas obras? Por que o parnasianismo dava tanto valor a isso?
A partir de esculturas e pinturas, veremos como emoções são expressas nas artes plásticas e como
os poetas parnasianos se apropriaram dessas características. Também veremos se a relação entre
esse movimento e a impassibilidade era um consenso entre os poetas da época ou não.
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Simbolismo
Informações iniciais
Iniciado no Brasil em 1893, com Missal e broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo foi um estilo
largamente ignorado pelo público e pela crítica de seu tempo. Entre nós, seus nomes mais
importantes foram Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens.
Visão geral
Na unidade anterior, vimos que o final do século XIX foi marcado por uma euforia com o desen-
volvimento das ciências e, portanto, com uma visão racional da realidade. Além disso, esse foi
também um período de progresso material, capitaneado pela Revolução Industrial.
Muito bem: é precisamente nesse contexto que a poética simbolista será forjada. Mas, diferen-
temente do Parnasianismo, o Simbolismo não irá reafirmar os valores dominantes no final do
século XIX. Muito pelo contrário: ele se constitui como uma reação ao cientificismo, ao racio-
nalismo e ao materialismo vigentes na época.
O poeta simbolista parte do seguinte princípio: por meio da razão, temos acesso apenas a uma
realidade superficial, feita de aparências. Por trás dessa realidade visível, porém, existiria um
outro plano, uma outra dimensão onde se esconde a verdade de cada coisa, a essência oculta
sob as aparências.
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Mas como atingir essa essência, essa verdade? Comecemos por uma resposta negativa: o caminho
não está na razão ou na ciência. O conhecimento racional é medíocre – ele nos revela apenas as
aparências, mas nunca, por assim dizer, a essência verdadeira do universo (podemos chamar
essa essência de Absoluto, para repetir a denominação presente em alguns poemas simbolistas).
A poesia simbolista é uma tentativa de alcançar essa essência. Mas, novamente, cabe a
pergunta: como atingi-la? Eis, agora sim, uma resposta afirmativa: devemos deixar nossos
sentidos atuarem livremente, sem a mediação do intelecto, da razão. A ideia é a seguinte:
esse mundo das essências escapa à nossa compreensão racional. Por isso, não podemos
compreendê-lo de modo claro e organizado, assim como não podemos expressá-lo com os
instrumentos de que a nossa linguagem dispõe. Mas talvez seja possível senti-lo, de modo a
alcançar algum tipo de apreensão não racional, intuitiva. O caminho, repetimos, é um só: sentir
sem pensar, sem racionalizar.
Essa visão de mundo permite explicar duas características fundamentais da poesia simbolista.
Em primeiro lugar, há uma recorrência de expressões sensoriais, fazendo referência a sons, odores,
imagens visuais etc. Por isso mesmo, a figura de linguagem mais comumente associada ao
Simbolismo é a sinestesia, que envolve justamente a conjugação de dois ou mais sentidos em
uma única expressão (por exemplo: “perfume azulado”, que junta olfato e visão; “gosto silencioso”,
que reúne paladar e audição; e “dor vermelha”, que junta tato e visão). Em segundo lugar, o
vocabulário do poema simbolista é propositalmente vago, impreciso. Por isso, ao final da leitura,
ficamos com a sensação de que temos uma ideia do que está sendo dito, mas não é possível
entender de maneira exata e inequívoca aquilo que o eu lírico está tentando comunicar.
Para que essas explicações pareçam mais concretas, acompanhe o poema a seguir.
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Um ser
(Cruz e Sousa)
De quem o eu lírico está falando? Muito pouco é explicitado. O título, vago ao extremo, informa
apenas que se trata de “Um ser”. O soneto não esclarece muito mais. Entendemos que esse ser
tem algo de especial, está acima dos demais. Mas não conseguimos ir muito além disso.
O mesmo ocorre com outras expressões. Esse ser especial mora na placidez da luz – mas, afinal,
o que seria, exatamente, a placidez da luz? Percebemos que é algo bom, e não muito mais do
que isso. Como essa, diversas outras expressões são propositalmente vagas, imprecisas – elas
sugerem muito, mas quase nada informam de modo claro. Veja: “mistérios inefáveis”, “música
infinita”, “luz sonora / das estrelas do Azul”, “fatais poeiras”, “frívolas cegueiras”. É como foi
dito anteriormente: até temos uma ideia do que está sendo dito, mas tudo parece muito vago,
muito fluido, muito pouco palpável. É exatamente essa a proposta do Simbolismo.
Talvez uma boa palavra para definir tudo isso seja o adjetivo que aparece no segundo verso
do poema: “inefável”. Segundo o Grande Dicionário Houaiss, inefável é tudo aquilo “que não
se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza; indizível, indescritível”
(INEFÁVEL, 2022). Podemos dizer que a poesia simbolista tenta aproximar-se do inefável. Para
isso, o melhor que ela pode fazer é sugeri-lo, uma vez que, por sua própria natureza, o inefável
“não se pode nomear ou descrever”.
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Vale também chamar a atenção, nesse soneto, para a recorrência de expressões sensoriais. A
lista remete à visão (“placidez da Luz”), ao tato (“Sente florir”) e à audição (“música infinita”).
Isso sem falar no cruzamento entre visão e audição, criando, no segundo verso do segundo
quarteto, uma sinestesia: “luz sonora”.
Até aqui, ainda não comentamos sobre a temática da poesia simbolista. Você já sabe que a
realidade, nessa escola, é concebida de modo dicotômico: o simbolista supõe a existência de
dois mundos: um ligado às aparências e o outro, às essências. Sabe também que o plano das
aparências corresponde à realidade sensível, ao passo que o plano das essências corresponde
a uma dimensão bem mais abstrata, intangível, que não se pode captar racionalmente.
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Pois bem: essa dicotomia confere à arte simbolista um forte componente de espiritualidade
e misticismo (lembre-se de que falamos, lá no início, que o simbolista recusa o cientificismo
então vigente). Na poesia dessa escola, o corpo e a matéria são sempre marcados negativa-
mente, ao passo que o espírito será marcado de forma positiva. Nota-se com clareza um desejo
de transcendência: é preciso superar o mundo material para encontrar a felicidade no plano
imaterial. O corpo, nesse cenário, é rejeitado: o simbolista o enxerga como um obstáculo à
elevação da alma. Veja isso na prática:
Longe de tudo
(Cruz e Sousa)
Veja que, nesse poema, o plano material é qualificado como “vã matéria”, “baixo mundo” e
“humana e trágica miséria” – ou seja, é marcado negativamente. Por sua vez, o plano das
essências corresponde aos “dons divinos” e à “grande paz”. Estabelecida essa oposição, a
última estrofe se constitui como a expressão de um desejo: o eu lírico sonha com a libertação do
seu corpo e com a transcendência para um plano superior. Nesse momento, ele acredita, as “almas
irmãs, almas perfeitas / hão de trocar, nas Regiões eleitas, / largos, profundos, imortais abraços”.
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Repare que, em ambas as escolas, a temática da morte é recorrente. Seu significado, porém, é
distinto em cada caso. Para os românticos, morte é escapismo, fuga de um mundo que só traz dor
e sofrimento. Já para os simbolistas, o significado é mais profundo: a morte equivale à libertação
da alma, que se encaminha, assim, para um plano superior.
Resumo
Neste capítulo, você conheceu os estilos de poesia que vigoraram no Brasil no final do século XIX:
o Parnasianismo e o Simbolismo. O primeiro é marcado por uma continuidade da proposta
realista, mas aplicada à poesia: ele se caracteriza por recuperar elementos da tradição greco-
-romana e valorizar a objetividade, o sensível e o ideal de arte pela arte. O poeta parnasiano é um
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poeta do concreto, do visual, que se compara constantemente ao escultor. Seus poemas devem
ser encarados como estátuas a serem contempladas em sua forma bem-acabada e ornamental.
Já o Simbolismo é fruto de uma reação aos valores realistas e, portanto, o poeta simbolista
valoriza tudo o que é contrário a eles: o sonho, o abstrato, o vago. Trata-se de uma poesia
marcadamente musical, que valoriza as misturas sensoriais, expressas pela sinestesia. Por
valorizar uma realidade mais profunda, essencial, o poeta simbolista vê sua poesia como uma
forma de exercitar a intuição, de penetrar nesses recantos mais desconhecidos da alma humana,
de vivenciar uma experiência espiritualizada.
Atividade
O poema a seguir é um dos mais conhecidos do parnasianismo brasileiro e de seu autor, Olavo
Bilac. Seu título faz referência a um texto medieval italiano, chamado Divina Comédia e escrito
por Dante Alighieri. Esse texto se tornou um dos maiores clássicos da literatura ocidental e foi
recuperado diversas vezes por poetas de várias nacionalidades. Por exemplo, o poema “No
meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, também faz referência a ele.
Leia com atenção o soneto de Olavo Bilac e procure responder às seguintes questões:
Resposta comentada
Para responder à primeira pergunta, é necessário ter em mente que o parnasianismo valorizava,
sobretudo, a forma do poema. Por isso, é importante destacar os elementos que estruturam
o texto, a começar por sua classificação como soneto. É possível afirmar isso só de olhar o
poema como um todo: 14 versos divididos em dois quartetos seguidos por dois tercetos. Se
quisermos ser mais minuciosos, podemos apontar que os versos são todos divididos em dez
sílabas poéticas, também chamados de decassílabos. Veja:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
É importante destacar que a contagem de sílabas poéticas considera sempre até a última sílaba
tônica do verso, como demonstrado. Prosseguindo com a análise formal, vemos também a
presença de rimas ricas e cavalgamentos. Como foi explicado ao longo desta unidade, dizemos
que uma rima é rica quando ela envolve duas palavras de classes gramaticais diferentes. Por
exemplo: “estrada” (substantivo) e “deslumbrada” (adjetivo), “minha” (pronome) e “continha”
(verbo). É digna de nota, também, a rima “extremo” / “tremo”, que pode ser considerada rara,
pois ela não só é feita entre palavras de classes gramaticais diferentes, como ocorre a partir de
consoante, o que é bem incomum. O cavalgamento ocorre quando um verso termina incompleto,
do ponto de vista sintático. Por exemplo: “E paramos de súbito na estrada/ da vida”.
Por fim, é válido notar como esse poema é muito contido no desenvolvimento de seu tema, ou
seja, ele segue à risca o ideal de perfeição clássica parnasiano, com o máximo de objetividade.
Repare que a mulher a quem o eu lírico se dirige lembra muito a “musa impassível” do poema
de Francisca Júlia: “nem o pranto os teus olhos umedece”. Além disso, podemos afirmar que
o poema apresenta elementos de narração – “vinhas fatigada e triste”, “e paramos súbito na
estrada” –, mesmo que seu significado seja metafórico. Com isso, vemos que a visualidade do
poema é muito valorizada (o que é, como você já viu, uma característica própria dessa escola
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literária). Em outras palavras: podemos ver uma cena se desenrolando, como se estivéssemos
diante de uma tela (de cinema, de televisão etc.).
Passando, agora, para a segunda pergunta, o principal elemento que destoa da estética
parnasiana é o tema do soneto. Trata-se de um poema sobre separação – ou seja, ele apre-
senta o desfecho dramático de uma relação amorosa duradoura. Isso, por si só, está longe das
obras mais representativas dessa escola, que, como vimos, valorizam a impassibilidade e o
distanciamento objetivo, reforçando o ideal da arte pela arte.
Pense bem: aqui, não estamos diante de um vaso grego ou chinês, nem de uma escultura
clássica. Aliás, não se trata nem mesmo de um poema que fale sobre a própria arte poética.
Na verdade, há a clara presença de um eu lírico e de sua interlocutora, e o que se coloca em
destaque é a relação entre eles.
Repare também que, apesar de apresentar uma estrutura tipicamente parnasiana, a linguagem
do poema é simples: há repetições e não encontramos palavras de significado obscuro
ou floreios linguísticos. O poema inteiro é marcado pela simplicidade, e é a partir dela que
sobressaem os sentimentos do eu lírico. Por conta disso, é válido afirmar que a temática do
soneto está mais próxima da estética romântica do que da parnasiana, ao tratar de um desen-
contro amoroso com fim trágico.
Daí partimos para a terceira e última pergunta. Aqui, queremos mostrar o seguinte: é desse
contraste entre uma forma muito contida (tipicamente parnasiana) e um conteúdo muito
sentimental (mais próximo dos ideais do Romantismo) que emerge a beleza do poema. Em
vez de se entregar ao sentimentalismo romântico e seus exageros, o eu lírico concentra toda a
carga emocional do evento em poucas palavras, descrevendo os sentimentos através de ações.
É isso que vemos, por exemplo, em “longos anos, presa à minha/ a tua mão” – note que esse
trecho sintetiza toda uma convivência amorosa, uma relação de confiança, companheirismo,
afeto, parceria. Note também a seguinte passagem: “Hoje, segues de novo… Na partida/ Nem o
pranto os teus olhos umedece,”. Aqui, todo o drama da separação é mostrado com apenas duas
palavras, “na partida”, e o que ela significa é indicado pelo fato de a mulher não chorar, o que
nos leva a pensar em um desencanto, um fim seco, sem grandes emoções.
Dessa maneira, a estética formal está a serviço do tema, criando uma situação em que a
contenção dos sentimentos os torna mais potentes e intensos. Daí que, no último verso, “na
extrema curva do caminho extremo”, a repetição da palavra “extremo” ganha um significado a
mais, pois ela intensifica a sensação de distância entre o eu lírico e sua interlocutora. Toda a
gama de emoções que envolvem um momento de separação está presente, mas elas são veicu-
ladas de modo a fazer com que o leitor as sinta em seu íntimo – e não de forma transbordante
e passional, como é comum nos poemas românticos.
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Referências
BILAC, Olavo. A um poeta. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Rio de Janeiro, 20--. Disponível
em: https://www.academia.org.br/academicos/olavo-bilac/textos-escolhidos. Acesso em: 22
mar. 2022.
BILAC, Olavo. Nel mezzo del camin… In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Rio de Janeiro, 20--.
Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/olavo-bilac/textos-escolhidos.
Acesso em: 16 mar. 2022.
CRUZ E SOUSA, João da. Obra completa: poesia. Organização e estudo por Lauro Junkes. Jaguará
do Sul: Avenida, 2008. Disponível em: link do pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.
INEFÁVEL. In: GRANDE Dicionário Houaiss. São Paulo: UOL, 2022. Disponível em: https://houaiss.
uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-0/html/index.php#2. Acesso em: 16 mar. 2022.
OLIVEIRA, Alberto de. Vaso grego. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Rio de Janeiro, 20--.
Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/alberto-de-oliveira/textos-
escolhidos. Acesso em: 22 mar. 2022.
SILVA, Francisca Júlia da. Musa impassível. In: ESCRITAS.ORG. [S.I., 20--]. Disponível em: https://
www.escritas.org/pt/t/12342/musa-impassivel. Acesso em: 22 mar. 2022.
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Literatura brasileira:
vanguardas europeias
e Pré-Modernismo 05
meta
Introduzir o contexto histórico da arte no começo do século XX, com os movimentos
revolucionários que ficaram conhecidos como “vanguardas europeias”.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
Na Europa, as primeiras décadas do século XX testemunharam uma profusão de movimentos
artísticos cujo ponto em comum foi a contestação da herança cultural do século XIX. Em
conjunto, eles promoveram uma verdadeira revolução nas artes, com inovações estéticas
radicais que levaram ao extremo a experimentação artística na literatura, na música e nas
artes plásticas. Esses movimentos costumam ser referidos como as “vanguardas europeias”.
O Brasil, por sua vez, ainda se via às voltas com o Parnasianismo, na poesia, e o Realismo, na
ficção, estilos que haviam criado raízes na nossa cultura. No entanto, alguns escritores, de
maneira não organizada e dispersa, começaram a experimentar estilisticamente e a contestar
certos valores tradicionais postos por aquelas escolas literárias. Tais autores abrem caminho
para a Semana de Arte Moderna, de 1922, marco inicial do Modernismo brasileiro.
As vanguardas europeias
Futurismo
O marco inicial desse movimento é a publicação, em 1909, do “Manifesto do Futurismo”.
Veiculado no tradicional jornal francês Le Figaro e assinado pelo escritor franco-italiano Fellipo
Tommaso Marinetti, o texto já contém os princípios fundamentais do pensamento futurista.
Três pontos são fundamentais para compreendê-lo. Em primeiro lugar, a recusa explícita de
tudo o que se identifique com o passado e a tradição. Em segundo, a exaltação da vida moderna,
que é identificada, no contexto do acelerado processo de urbanização e industrialização pelo
qual a Europa passava, com o ambiente urbano, o dinamismo, a velocidade e as máquinas
(todos eles, elementos fundamentais do imaginário futurista). Por sua vez, em terceiro lugar, a
postura agressiva e violenta, acompanhada do fascínio pela guerra e pela destruição.
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Manifesto do Futurismo
(Fellipo Tommaso Marinetti)
3. Até agora a literatura refletiu a imobilidade melancólica, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar
o movimento agressivo, a insônia febril, a corrida, o salto mortal, o soco e o tapa.
4. Declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu de uma nova beleza: a beleza da velocidade.
Um automóvel de corrida cuja carroceria é adornada por grandes tubulações como serpentes de
alento explosivo… um automóvel que ruge, que parece correr acima da metralha, é mais belo do que
a Vitória de Samotrácia. […]
7. Só há beleza na luta. Não existe obra-mestra sem um caráter agressivo. A poesia deve ser um
ataque violento contra as forças desconhecidas, para fazer com que se prostrem diante do homem.
[…]
11. Cantaremos […] a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas
elétricas; as estações ferroviárias vorazes devorando serpentes que fumam; as fábricas suspensas
nas nuvens pelos fios de suas fumaças; as pontes lançadas, como saltos de ginastas, sobre rios
ensolarados que brilham como uma cutelaria diabólica; os paquetes aventureiros farejando o hori-
zonte; as locomotivas de peito largo, que batem as patas nos trilhos, como enormes cavalos de aço
embridados por longos tubos; e o voo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices estalam ao vento
como bandeiras e aplaudem como uma multidão entusiasta (MARINETTI, 201-).
É fácil identificar, nesse texto, os princípios básicos do Futurismo. Está lá, por exemplo, a rejeição
ao passado e à tradição artística: “um automóvel rugidor […] é mais belo que a Vitória de
Samotrácia”; “Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo”.
Em maio de 1912, um novo manifesto, conhecido como “Manifesto técnico da literatura futurista”,
irá mostrar de que maneira os ideais do movimento devem se refletir na forma literária. Entre
outros pontos, Marinetti defende a destruição da sintaxe, o emprego do verbo no infinitivo, a
abolição do adjetivo e do advérbio, a abolição da pontuação e a abolição do “eu”. Para ele, o
escritor deve abandonar a linearidade sintática tradicional – isto é, a organização estrutural
do texto em orações e períodos – e priorizar, em seu lugar, o emprego de palavras soltas (em
seus próprios termos, “palavras desligadas e sem fios condutores sintáticos”). No conjunto,
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essas propostas buscam: (1) abolir o subjetivismo romântico, cujo lirismo sentimental não
seria capaz de traduzir a sensibilidade de um mundo cada vez mais industrializado e veloz e,
sobretudo, (2) captar a velocidade, a agitação e o dinamismo da modernidade industrial, na
qual não há tempo a perder com longos períodos recheados de elementos “supérfluos”, como
adjetivos e advérbios.
Figura 5.1: Dinamismo de um automóvel (1912-1913). Autor: Luigi Russolo. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/
File:Luigi_Russolo_dynamism-of-a-car-1913.jpg. Acesso em: 17 mar. 2022.
Cubismo
O Cubismo é uma vanguarda artística que aparecerá, primeiramente, no domínio da pintura.
Seu princípio fundamental é a fragmentação e multiplicação dos pontos de vista. O pintor
cubista pretende registrar, de uma só vez, diferentes perspectivas sobre uma mesma cena. Para
isso, ele capta diversas visões ou pontos de vista de um dado objeto e os reúne em um mesmo
plano. Ao lado dessa característica, é preciso considerar ainda outra: a representação das formas
naturais por meio de motivos geométricos, com predomínio das linhas retas.
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Essas duas características podem ser observadas nas imagens a seguir. A primeira é uma
reprodução do quadro Mulher chorando, de Pablo Picasso. Pela posição da boca, a mulher
parece estar de perfil; por outro lado, podemos ver seus dois olhos, o que sugere que a
observamos de frente. Algo semelhante ocorre na Figura 5.3, uma reprodução da tela O lanche
(mulher com colher de chá), de Jean Metzinger. Além da geometrização do corpo da mulher,
observe que a xícara de chá é cindida em duas partes, representando duas perspectivas que
podem ser captadas simultaneamente pelo observador do quadro.
Figura 5.2: Mulher chorando (1937). Autor: Pablo Picasso. Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-
professores/mulher-chorando-pablo-picasso/. Acesso em: 17 mar. 2022.
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Figura 5.3: O lanche (mulher com colher de chá) (1911). Autor: Jean Metzinger. Fonte: https://www.arteeblog.
com/2015/07/18-pinturas-de-hora-do-cha.html. Acesso em: 17 mar. 2022.
Expressionismo
Pense na palavra “expressão”. Como sugere o prefixo “ex-”, essa palavra denota algo que vai de
dentro para fora (por exemplo, em “exportar”). Trata-se, portanto, de projetar no mundo exterior
a interioridade do sujeito. É esse o princípio fundamental do Expressionismo.
Na pintura, alguns dos recursos formais utilizados para representar esses sentimentos são
os seguintes: imagens distorcidas e exageradas, às vezes lembrando caricaturas; cores fortes,
resplandecentes e contrastantes; pinceladas rápidas e vigorosas, demonstrando vitalidade. Na
escultura, há igualmente uma tendência geral a figuras deformadas ou, ao menos, pouco
realistas. Além disso, também a escultura expressionista reflete os sentimentos de medo e
angústia associados à Primeira Guerra.
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As marcas da pintura expressionista ficam bastante claras na imagem a seguir, uma represen-
tação da tela O grito, de Edvard Munch (talvez a obra mais conhecida dessa escola). Nela, fica
evidente o clima de angústia ou mesmo de desespero: está claro que o grito a que se refere o
título do quadro é um grito de pavor. As cores fortes e as linhas retorcidas, que tornam inve-
rossímil a imagem retratada, ajudam a criar essa atmosfera.
Dadaísmo
O Dadaísmo foi a mais radical dentre todas as vanguardas europeias. Sua característica
marcante é a negação de qualquer lógica, princípio ou valor estético. Parte-se do princípio de
que o mundo e a arte não fazem sentido; portanto, uma obra de arte não pode exprimir coisa
alguma. A ênfase recai, assim, no ilogismo (falta de lógica, falta de sentido) e na gratuidade da
arte (não serve para nada, não tem nenhuma motivação mais profunda).
A ideia de gratuidade da arte aparece no próprio nome do movimento: segundo seu fundador,
o poeta Tristan Tzara, a palavra “dadá” não significa nada. De acordo com ele, o nome foi
encontrado por acaso: colocando uma espátula no dicionário Petit Larousse, o livro se abriu
em uma página aleatória, de onde saltou aos olhos o vocábulo “dadá”.
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Nas artes plásticas, o Dadaísmo ficou conhecido pela técnica do ready-made, criada pelo
artista francês Marcel Duchamp. O procedimento consiste em reaproveitar objetos utilitários
de uso cotidiano (ou seja, não artísticos), promovendo neles pequenas alterações e elevando-os
à condição de obras de arte simplesmente pelo ato de assiná-los, dar-lhes um nome e colocá-los
em exposição em um museu ou galeria.
Um exemplo famoso é a obra Fonte, de Duchamp: como mostra a Figura 5.5, trata-se de um urinol
de porcelana branca. O primeiro ponto a se destacar é a modificação do contexto original do
objeto: em vez de estar em um banheiro, servindo a uma função utilitária, o urinol fica hoje exposto
em museus, servindo à fruição estética – ou, pelo menos, promovendo a reflexão sobre arte. Mas o
objeto também sofreu uma pequena modificação em seu aspecto físico: observe que o cano está
em posição invertida, voltado para o observador. É isso que justifica o nome Fonte.
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Por fim, é preciso dizer que o Dadaísmo deve ser entendido dentro de seu contexto histórico,
com a Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial. Nesse cenário, é possível compreender
a insistência na gratuidade e no ilogismo, pelo menos em parte, como resultado do ceticismo
e do pessimismo causados pela experiência de um mundo em crise.
Surrealismo
Surgido oficialmente em 1924, o Surrealismo é a mais tardia das vanguardas europeias. Seu
princípio fundamental é a negação do conhecimento racional da realidade – e, em contra-
partida, a valorização do sonho, do inconsciente, dos estados alucinatórios, da fantasia e da
loucura.
Nesse sentido, o Surrealismo se propõe a ser mais do que um movimento artístico. A intenção
é apresentar uma nova forma de compreensão da realidade – uma forma que, livre das amarras
da mente cartesiana e racional, está profundamente influenciada pelas ideias de Sigmund
Freud sobre o inconsciente.
Observe: o próprio título da obra revela que a imagem expressa um sonho. Na parte inferior da
tela, vemos, sem qualquer destaque e com dimensões reduzidas, a abelha e a romã reais. E, no
restante da tela, uma situação absolutamente fantástica, que presumivelmente corresponde
ao sonho da mulher que levita sobre uma pedra: um peixe que sai de uma romã e que, por sua
vez, cospe um tigre voador, entre outros elementos absurdos.
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Figura 5.6: Sonho provocado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã um segundo antes de acordar (1944).
Autor: Salvador Dalí. Fonte: https://www.wikiart.org/pt/salvador-dali/sonho-causado-pelo-voo-de-uma-abelha-ao-
redor-de-uma-roma-um-segundo-antes-de-acordar-1944. Acesso em: 17 mar. 2022.
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Figura 5.7: A poetisa (1940). Autor: Joan Miró. Fonte: https://www.wikiart.org/es/joan-miro/the-poetess. Acesso em: 17
mar. 2022.
O Pré-Modernismo brasileiro
Naturalmente, o termo “Pré-Modernismo” diz respeito a algo que aconteceu antes do Moder-
nismo. Como você verá nas Unidades 6, 7 e 8, o Modernismo brasileiro é um movimento
artístico cujo marco inaugural é a Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922. Nesse sentido,
o Pré-Modernismo pode ser definido como o período da literatura brasileira compreendido
entre a Proclamação da República, em 1889, e o início do Modernismo, em 1922.
Do ponto de vista estilístico, ele deve ser entendido como um momento de transição entre os
esquemas formais e temáticos típicos do século XIX (com destaque para o Realismo, o Natura-
lismo e o Parnasianismo) e as revoluções artísticas representadas pelas vanguardas europeias,
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que ganham força principalmente após a Primeira Guerra Mundial. Além disso, do ponto de
vista temático, a produção pré-modernista brasileira irá manifestar uma tendência a refletir
sobre o Brasil da virada do século. Essa preocupação reflete o fato de que o país passava,
nesse momento, por transformações estruturais profundas, como consequência tanto da
Proclamação da República, que reconfigura radicalmente o cenário político, quanto da migração
definitiva do poder econômico do Nordeste para o Sudeste, especialmente com a ascensão de
São Paulo como polo produtor de café.
Feita essa apresentação inicial, passaremos a tratar agora de quatro escritores emblemáticos do
Pré-Modernismo brasileiro: Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato.
Psicologia de um vencido
(Augusto dos Anjos)
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Chama a atenção, à primeira vista, a presença de palavras provenientes das ciências naturais,
como “carbono”, “amoníaco”, “epigênese”, “hipocondríaco”, “inorgânica”. Aliada a isso está uma
consciência dolorosa de si mesmo, como podemos ver logo na primeira palavra do poema:
“Eu”. Temos aqui um eu lírico torturado, estrangulado entre opostos (a escuridão e a rutilância)
e marcado pelos astros para sofrer.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo.
Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram
os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos
e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página,
imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem
brilhos (CUNHA, 2012, p. 322).
Observe como, em poucas linhas, toda uma cena se desenrola. Tudo começa pelo uso da
personificação, que transforma a aldeia em sujeito agente, recusando a derrota. Em seguida,
passamos para um processo de aproximação gradual, no qual se identificam os últimos
“defensores”, que podem ser contados nos dedos de uma mão. Na sequência, a cena é
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Repare no uso de recursos imagéticos e simbólicos para a construção da cena: a aldeia caindo
ao entardecer, como se o sol caísse junto com ela; as figuras dos moradores: um velho, dois
homens e uma criança, representando as fases da vida e também o passado, o presente e o
futuro; a absoluta (e absurda) assimetria do “combate”: 5 mil contra quatro; a animalização
dos soldados, que “rugiam furiosamente”, como se a motivação do ataque fosse puramente
emocional. Tudo isso contribui para uma construir uma expressividade única, capaz de comover
o leitor e engajá-lo no assunto.
Por conta de seu olhar atento, ele foi capaz de nos legar alguns dos livros mais importantes
da nossa literatura. Dentre eles, destaca-se Triste fim de Policarpo Quaresma, uma sátira que
discute profundamente a ideia de pátria. Recuperando o período de governo militar logo após
a Proclamação da República, Lima Barreto pinta seu protagonista, o major Quaresma, como um
genuíno patriota – alguém que faria de tudo por seu país e que, entusiasmado por essa devoção,
chega a tomar atitudes absurdas, como propor o tupi como língua oficial ou cumprimentar as
visitas de acordo com costumes indígenas.
Por meio desse personagem-caricatura, Lima Barreto desvela as muitas dimensões da hipo-
crisia existente nas classes dominantes, em especial entre os militares, que viviam de glórias
passadas e falavam em patriotismo apenas como forma de autoelogio, a fim de continuarem
garantindo regalias e assegurando privilégios. Vejamos um trecho:
Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inuti-
lidades. […] O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de
tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas… Restava disso tudo em sua alma uma satisfação?
Nenhuma! Nenhuma! […]
A Pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabi-
nete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política, que julgava existir, havia. A
que existia, de fato, era a do Tenente Antonino, a do Doutor Campos, a do homem do Itamarati
(BARRETO, 19--, p. 115).
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Nessa passagem, Policarpo Quaresma, prestes a ser assassinado pelo regime do marechal
Floriano Peixoto, reflete sobre sua própria vida, que havia sido inteiramente dedicada à pátria.
A conclusão a que chega é a de que essa vida fora marcada por uma sucessão de decepções.
No fim das contas, a pátria que ele desejava era um sonho – e a pátria real, ele conclui, é aquela
dos conchavos, favorecimentos, censura e repressão.
Uma marca dessa passagem é um recurso estilístico bastante complexo, denominado discurso
indireto livre. Nele, ocorre uma mescla entre os pontos de vista do narrador e do personagem.
Ou seja, o narrador deixa transparecer o pensamento do personagem sem que haja uma sepa-
ração visível entre as duas “vozes”. Com isso, o distanciamento do narrador em relação ao que
ele narra é anulado, e ele passa a veicular o discurso do personagem.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição
será desastre infalível. Há de ser de cócoras. Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira,
é de cócoras, como um faquir do Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúva ou o feixe de três
palmitos. Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!
O conto se constitui como uma análise da figura do caboclo, encarnado no personagem Jeca
Tatu. Por conta disso, é possível constatar um estilo documental que atravessa toda a história,
com o narrador assumindo a tarefa de descrever a realidade de maneira instrutiva. No entanto,
percebemos que ocorre uma mescla entre objetividade e subjetividade, uma vez que o narrador
aponta as características e trejeitos de Jeca Tatu ao mesmo tempo que tece comentários sobre
sua condição social.
Para Lobato, o caboclo se define por uma posição corporal: a posição de cócoras. Essa ideia é
mais do que meramente descritiva – no fundo, o que ela indica é uma situação social. Não à
toa, o personagem se chama Jeca Tatu, com um sobrenome que evoca a imagem de um animal
que vive curvado sobre si mesmo, incapaz de se erguer. Essa animalização é parte da crítica
que o autor faz contra o descaso das autoridades em relação a certos grupos marginalizados.
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Por fim, a frase “como és bonito no romance e feio na realidade” representa um dos aspectos
mais modernos da obra de Monteiro Lobato: o afastamento em relação à idealização romântica
e a busca por retratar uma realidade tal como ela se apresenta, mas, ao mesmo tempo, sem
a pretensão realista de fazer da literatura uma espécie de espelho. Há, portanto, um avanço
no sentido de refletir sobre a realidade e, principalmente, sobre a representação de grupos
abandonados pelo poder estatal.
Resumo
Nesta unidade, você conheceu os movimentos artísticos que marcaram presença na Europa e
no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Na Europa, as profundas mudanças provocadas
pela industrialização e pela Primeira Guerra Mundial despertaram nos artistas a consciência
de que as formas e temas herdados do século XIX já não eram capazes de dar conta da realidade.
Por isso, emergiram movimentos dos mais variados estilos, que revolucionaram a maneira como
se fazia e se compreendia a arte. Desses, destacamos os cinco principais: Futurismo, Cubismo,
Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo.
Atividade
Veja, a seguir, um trecho do poema “Ode ao burguês”, de Mario de Andrade:
(ANDRADE, 20--).
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Agora, leia o seguinte ponto do “Manifesto Futurista”: “Até agora a literatura refletiu a imobili-
dade melancólica, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia
febril, a corrida, o salto mortal, o soco e o tapa” (MARINETTI, 201-).
Cite duas relações, uma de ordem temática e outra de ordem formal, que podemos estabelecer
entre o princípio proposto por Marinetti em seu manifesto e aquilo que foi realizado por Mario
de Andrade em seu poema.
Resposta comentada
A relação temática está evidente logo no começo do poema. Seu título retoma um tipo clássico
de poema: a ode, que se caracteriza pela louvação a alguma pessoa, divindade ou fenômeno
da natureza. Ou seja, odes são, tradicionalmente, poemas elogiosos. Mario de Andrade, contudo,
vira do avesso essa ideia ao fazer uma ode que é, na verdade, um ataque violento dirigido a
um tipo social: o burguês. Daí vemos que o título comporta uma ambiguidade, podendo ser
lido também como “ódio ao burguês”. E, de fato, o primeiro verso rapidamente confirma essa
impressão, já que se inicia com uma afirmação categórica: “Eu insulto o burguês!”. Assim, o
poema de Mario de Andrade faz jus ao princípio de Marinetti, ao tomar emprestada uma forma
clássica (a ode), que exalta a “imobilidade pensativa, o êxtase e o sono”, e a implodir, transfor-
mando-a em um verdadeiro golpe, ou “movimento agressivo”. Com isso, o poema condiz tema-
ticamente com o manifesto, no que diz respeito ao desejo de subverter a literatura tradicional,
destruindo-a e invocando uma nova forma de agir.
cheio de adrenalina que fosse incapaz de articular frases longas. Além disso, as frases curtas
e recheadas de exclamações transmitem um efeito de velocidade, de vertigem, e também de
agressividade, como se cada afirmação fosse uma “bofetada” ou um “soco”. Portanto, a própria
estrutura da estrofe, com versos curtos, entrecortados por frases nominais, todas pontuadas
com exclamação, simula, no plano escrito, a velocidade e a violência defendidas por Marinetti
em seu manifesto.
Referências
ANDRADE, Mario. Ode ao burguês. In: REVISTA PROSA, VERSO E ARTE. 20--. Disponível em:
https://www.revistaprosaversoearte.com/ode-ao-burgues-mario-de-andrade/. Acesso em:
28 mar. 2022.
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17. ed. São Paulo: Ática, 19--. (Bom Livro).
LOBATO, Monteiro. Urupês. In: LOBATO, Monteiro. Contos completos. 1. ed. São Paulo: Biblioteca
Azul, 2014.
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Literatura brasileira:
Modernismo – 1ª fase 06
meta
Apresentar o contexto histórico da primeira fase do Modernismo brasileiro, a Semana
de Arte Moderna, os principais autores e obras do período e suas características
determinantes.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
De maneira consensual, assume-se que o Modernismo brasileiro tem início no ano de 1922,
centenário da independência do país. A data não foi aleatória. Tratava-se de reivindicar a
“independência cultural” do Brasil, propondo uma ruptura radical com as manifestações artís-
ticas dominantes, a saber, o Parnasianismo e o Realismo.
O gatilho para esse movimento, no entanto, ocorreu em 1917, quando a artista plástica Anita
Malfatti voltou dos Estados Unidos e realizou uma exposição de suas pinturas. A reação foi
violenta por parte de setores conservadores da elite intelectual paulistana. A crítica mais
emblemática partiu de Monteiro Lobato, em um artigo intitulado “A propósito da exposição
Malfatti”, que ficou mais conhecido como “Paranoia ou mistificação”. Para ele, as obras da
pintora representavam uma degeneração da arte e eram, por isso, de mau gosto.
A polêmica não se encerrou aí. Pelo contrário, jovens artistas, como Mario de Andrade e Oswald
de Andrade, saíram em defesa da exposição e aproximaram-se, com o intuito de revolucionar
o estado da arte brasileira.
O Modernismo “heroico”
Como dissemos, os modernistas heroicos assumem, de forma radical, uma postura de rejeição à
arte anterior, que será chamada, pejorativamente, de passadismo. A postura antipassadista é,
portanto, o ponto de partida para a compreensão desse momento. Esses artistas buscaram afirmar
a arte moderna em um ambiente intelectual em grande medida obtuso e apegado aos valores
artísticos tradicionais. É essa disposição para o confronto e para o desbravamento de novas fron-
teiras artísticas que dá à primeira fase do nosso Modernismo o apelido de fase heroica.
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praticado pelos escritores românticos. Mesmo porque o momento histórico é outro: se, no
século XIX, era importante construir uma imagem idealizada do país, agora o objetivo é refletir
criticamente sobre nossas origens e nossa identidade.
// atenção
Relembrando: versos livres e brancos
Os conceitos de verso livre e de verso branco já foram apresentados no capítulo sobre
Romantismo. Relembre:
Infância
(Oswald de Andrade)
O camisolão.
O jarro.
O passarinho.
O oceano.
A visita na casa que a gente senta no sofá.
Esse poema ilustra o gosto pela concisão que caracteriza boa parte da produção de Oswald de
Andrade. Poemas extremamente breves e sucintos – às vezes chamados de poemas-minuto –
são uma das marcas mais visíveis de seu estilo. Em alguns casos, como no texto apresentado, o
ideal da síntese vem acompanhado de um estilo telegráfico, em que o sentido global é construído
por meio de flashes, traduzidos sob a forma de frases nominais e baixa frequência de conectores.
Nesse sentido, a poesia de Mario de Andrade é bastante distinta, uma vez que esse autor
não cultiva o estilo telegráfico ou o gosto oswaldiano pela concisão. Ainda assim, é possível
verificar, em alguns de seus poemas, a ruptura da linearidade sintática que marca o primeiro
momento modernista. Veja:
O trovador
(Mario de Andrade)
De imediato, o que surpreende o leitor é a ruptura do fluxo sintático. Em vez de conter frases orga-
nizadas ao redor de um verbo, com estrutura sintática reconhecível, o poema parece basicamente
composto por palavras ou expressões mais ou menos soltas – relacionadas semanticamente, mas
não sintaticamente. Em todo o poema, há apenas três formas verbais (“é”, “sou” e “tangendo”),
sendo duas no mesmo verso. Por outro lado, são recorrentes as expressões nominais justapostas,
sem conexão sintática. As reticências reforçam esse efeito de “palavras em liberdade” (para usar
uma expressão do escritor italiano Filippo Marinetti), já que sugerem uma estrutura fragmentária,
cujas frases não se completam.
Ainda no campo da pesquisa com a linguagem, cabe observar a criação de palavras: tanto
“cantabona” quanto “dlorom” são neologismos, que parecem cumprir no texto uma função
onomatopaica. Por fim, repare que o poema, em coerência com o projeto modernista, é escrito
em versos livres e brancos.
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// atenção
Conceitos importantes
Paródia: obra que retoma um texto consagrado reescrevendo-o de modo jocoso, a fim
de subvertê-lo.
Poema-piada: o nome dado ao tipo de poema curto, de caráter lúdico, muito frequente
sobretudo na poesia de Oswald de Andrade.
Os poemas a seguir servirão para que você observe algumas das características da paródia e
do poema-piada.
Relicário
(Oswald de Andrade)
No baile da corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
Canção do exílio
(Gonçalves Dias)
(DIAS, 20--)
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Observe como a paródia, ao mesmo tempo que resgata um texto consagrado, também o trai,
virando-o do avesso. Entre os dois poemas, há afinidades temáticas (a saudade, o elogio da
terra distante, o desejo de retorno) e formais (como a metrificação). No entanto, a ideia central
do poema de Gonçalves Dias é subvertida na paródia oswaldiana. Se o primeiro é um hino
de louvor a uma terra idealizada, uma espécie de paraíso intocado pela civilização, a paródia
caminha no sentido oposto, valorizando o progresso e a urbanização – portanto, o avanço civi-
lizatório. Esse efeito é obtido pela inserção de termos como “São Paulo”, “Rua 15” e “progresso”,
absolutamente estranhos ao imaginário romântico.
Em outras palavras: com a geração de 1922, a poesia deixa de ser o espaço apenas dos grandes
temas nobres e solenes – como o amor, a morte, a natureza ou a pátria – e passa a admitir
também os assuntos tradicionalmente vistos como apoéticos. Essa conquista, é bom que se
diga, não desaparece após a fase heroica. Em vez disso, perdura na segunda fase modernista e
vai muito além dela, marcando presença em diversas tendências e autores pós-1945 (ainda que
não em todos). Veja os poemas a seguir:
Camelôs
(Manuel Bandeira)
Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo de demiurgos de inutilidades.
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma lição de infância.
(BANDEIRA, 20--);
O capoeira
(Oswald de Andrade)
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Esses dois poemas são profundamente distintos. O primeiro, com versos longos e sintaticamente
encadeados, recria com lirismo uma situação prosaica: camelôs que encantam as crianças com a
venda de “inutilidades”. O segundo, fortemente visual e composto no estilo telegráfico de Oswald
de Andrade, retrata uma briga de rua. Essas diferenças refletem as peculiaridades do estilo de
cada autor, mas, apesar delas, é inegável que ambos se beneficiam de umas das maiores
conquistas do Modernismo para a poesia: a incorporação do trivial, do corriqueiro, do banal.
Embora não seja simples resumir o nacionalismo modernista, que é certamente multifacetado,
um ponto é crucial: de modo geral, a produção desse período joga por terra o ufanismo
romântico. Não há mais espaço para o Brasil idealizado do Romantismo, um verdadeiro paraíso
terrestre habitado por indígenas honrados e bondosos. Por isso, é comum falarmos aqui em
nacionalismo crítico.
Em resumo, podemos dizer que a primeira fase modernista é animada por uma retomada crítica
da questão da identidade nacional. Muitas vezes, isso se faz sob a forma de paródia de textos
do Quinhentismo e do Romantismo. O motivo: esses são os dois outros momentos da nossa
literatura que tematizam explicitamente o Brasil, procurando, de alguma forma, caracterizá-lo
e identificar seus traços definidores. A esse respeito, compare, a seguir, o início de Iracema, do
escritor romântico José de Alencar, e o de Macunaíma, do modernista Mario de Andrade.
Iracema
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais
longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito
perfumado.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava
sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde
pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 2004, p. 14).
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Macunaíma
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo
da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Urarico-
era, que a índia tapamunhas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o
incitavam a falar exclamava:
O início de Iracema revela com clareza o princípio romântico da idealização. Selvagem que
vive em perfeita comunhão com a natureza, Iracema supera, com seus atributos irretocáveis,
a própria natureza: nada nem ninguém será páreo para a doçura de seu sorriso, o perfume de
seu hálito, a destreza e a velocidade de seus pés graciosos.
O mesmo se pode dizer do espaço físico. Iracema, que nasceu em uma “serra que ainda azula
no horizonte”, corria sobre uma “verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas”. São
descrições que, certamente, dignificam os espaços retratados. Macunaíma, por sua vez, nasceu
no “mato-virgem”. Fosse uma obra romântica, talvez pudéssemos esperar o emprego do subs-
tantivo “mata”, capaz de evocar florestas grandiosas e exuberantes. É precisamente o que se vê
em Iracema: “a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu”. A palavra “mato”, porém, traz
uma carga semântica claramente pejorativa. Tanto é assim que a primeira acepção para esse
substantivo, no Grande Dicionário Houaiss, é a seguinte: “vegetação constituída de plantas não
cultivadas, de porte médio, e geralmente sem qualquer serventia” (MATO, 2022).
De todo modo, um ponto deve ficar claro. Apesar da diferença gritante na representação dos
protagonistas – uma heroína idealizada, no primeiro caso; um anti-herói, no segundo –, tanto
Iracema quanto Macunaíma colocam em pauta a questão da identidade nacional. São duas
obras que procuram representar literariamente o Brasil e o brasileiro. No primeiro caso, o
objetivo é reconstruir um passado glorioso, de modo a dignificar o presente daquela nação
ainda jovem. O caso de Macunaíma, por outro lado, é mais complexo: de suas páginas, emerge
o retrato de um país ambivalente, marcado pela diversidade e pelo contraste.
Para esclarecer esse ponto, começamos por lembrar que a obra de Mario de Andrade chama-se
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a
locução “sem nenhum caráter” não se refere a algo como desonestidade ou má-fé. Refere-se,
na verdade, à tese de que o Brasil (ou o brasileiro) não tem uma identidade clara, definida,
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única. Volte ao fragmento anterior: você verá que, embora indígena, Macunaíma nasceu negro;
além disso, em outro momento da narrativa, ele se torna branco.
Por fim, pedimos que você releia o fragmento de Macunaíma, agora prestando atenção à
linguagem empregada. Observe a presença do registro coloquial, em palavras como “meninice”,
bem como a tentativa de aproximar da língua literária do português falado, com a grafia original
“si” para a conjunção condicional “se”.
A literatura de manifesto
Quase todas as vanguardas europeias se apropriaram do gênero manifesto, que até então
apresentava um cunho eminentemente político, para expressar seus programas estéticos
revolucionários. Na unidade anterior, vimos um exemplo desse tipo de texto, com partes do
“Manifesto futurista”. No Modernismo brasileiro, não será diferente. O “Manifesto da poesia
pau-brasil” (1924) e o “Manifesto antropófago” (1928) são nossos principais exemplos, ambos
escritos por Oswald de Andrade.
O primeiro parte do fato histórico de que o primeiro produto de exportação brasileiro (e que
acabou por batizar o país) foi o pau-brasil, para reinvindicar uma nova poesia que não se
limite a copiar, imitar, a estrangeira, mas vá além, torne-se uma “poesia de exportação”. Vemos
no texto uma série de procedimentos típicos das vanguardas, que já foram comentados
anteriormente, como a quebra do encadeamento sintático, a profusão de imagens, a adoção
do coloquialismo, a junção de elementos dissonantes. Veja, por exemplo, o trecho:
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os
[erros. Como falamos. Como somos.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de
[exportação (ANDRADE, 1976).
Quanto ao segundo, podemos afirmar que é uma das maiores conquistas artísticas da literatura
brasileira. Isso porque a noção de antropofagia, emprestada à prática ritualística dos tupi-
nambás (e outros povos), daí em diante vai ser entendida como o modo de fazer arte próprio
do brasileiro: “devorar” tudo o que for alheio e “digerir” criticamente para produzir uma obra
nova, original. O início do manifesto já dita o tom revolucionário a que ele se propõe:
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Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE, 1976).
A frase “tupi or not tupi, that is the question” é, talvez, a mais famosa desse manifesto. Em um
jogo intertextual com a peça Hamlet, de William Shakespeare, em que se lê “To be or not to
be, that is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”), a frase subverte o questionamento
filosófico, acrescentando-lhe uma nova camada de significado: ser ou não ser tupi? Ou seja,
reconhecer ou não as origens múltiplas do Brasil?
Ao fim do trecho, encontramos o “lema” antropofágico: “só me interessa o que não é meu”,
indicando que a arte brasileira modernista não deve voltar as costas para as inovações
estéticas europeias, nem procurar imitá-las literalmente, mas, sim, se apropriar delas, subvertê-
-las, “brincar” com elas.
Dessa forma, tais manifestos são a formalização teórico-estética da arte modernista dessa
fase, que encontramos na poesia e na prosa de seus principais autores.
Em resumo, o Modernismo brasileiro nasce se apoiando sobre duas diretrizes básicas: o anti-
passadismo, postura que irá propiciar uma verdadeira revolução na maneira de produzir litera-
tura, e a reflexão sobre a identidade nacional, em uma retomada crítica do problema que tanto
preocupara nossos intelectuais durante o Romantismo.
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Resumo
Nesta unidade, você viu as circunstâncias históricas que desencadearam o Modernismo brasi-
leiro. Chamado de “fase heroica”, esse período da nossa literatura caracteriza-se pela postura
radical quanto aos valores estéticos tradicionais herdados do século XIX, expressos pelo
Realismo e pelo Parnasianismo.
Seu marco inicial é a Semana de Arte Moderna, de 1922, que procurou realizar a independência
cultural do Brasil, abraçando as inovações vanguardistas e atacando ferozmente as ideias
conservadoras em arte. Entre seus autores, destacam-se as figuras de Oswald de Andrade, Mario
de Andrade e Manuel Bandeira.
O que norteava o Modernismo dessa fase era uma posição antipassadista aliada a um nacio-
nalismo crítico. Tal posição visava romper com os valores artísticos provenientes do século XIX
e desajustados em relação às grandes mudanças sociais pelas quais o país passava. Já o gesto
nacionalista procurava reavaliar a noção de brasilidade, distanciando-se do ufanismo român-
tico e adotando um aspecto mais popular. A adoção de uma linguagem coloquial, mais próxima
do português brasileiro, é o grande exemplo desse gesto.
Atividade
A partir da leitura dos fragmentos do “Manifesto da poesia pau-brasil” e do poema “Poética”,
de Manuel Bandeira, responda às seguintes questões:
__texto 1
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desman-
chando. Duas fases: 1ª. a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário.
De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2ª. o lirismo, a apresentação no templo, os
materiais, a inocência construtiva.
[…]
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres (ANDRADE, 1976).
__texto 2
Poética
(Manuel Bandeira)
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
(BANDEIRA, 2017).
Resposta comentada
Para responder à primeira pergunta, é importante relembrar um dos princípios norteadores da
primeira geração modernista: o antipassadismo. Esse princípio buscava romper com os valores
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artísticos, sobretudo na poesia, provenientes do século XIX. Tais valores eram expressos pelo
estilo parnasiano, dominante até então.
Ora, a frase do manifesto “Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta
parnasiano” indica uma visão questionadora desses valores estéticos, mostrando que, na
prática, o poeta parnasiano era mecânico, não havia originalidade, inspiração artística ou sintonia
com seu tempo. Enfim, era um mero metrificador. Semelhante ideia pode ser depreendida da
penúltima frase: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo”, ou seja, a arte
revolucionária precisa quebrar os paradigmas, os padrões estabelecidos, pois só assim conse-
guirá expressar o mundo contemporâneo de modo adequado. Vale recordar, por exemplo, a fúria
destrutiva dos futuristas, que reconheciam a velocidade como o principal elemento da sociedade
moderna e, portanto, a arte clássica seria incapaz de dar conta dessa conquista da tecnologia.
O poema de Bandeira, por sua vez, revela um eu lírico indignado com a poesia “bem-com-
portada”, submissa, acanhada, covarde. Para ele, essa é a poesia parnasiana, ainda que não
vejamos uma referência tão direta a ela como a do manifesto. Confirmamos essa interpretação
ao lermos os versos “Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho
vernáculo de um vocábulo / Abaixo os puristas”. Neles, é possível entrever o gosto parnasiano
pelas palavras difíceis, pelos termos rebuscados e obscuros, por um purismo que distancia a
língua poética da língua do dia a dia. Para o eu lírico, esse gosto revela uma submissão da poesia
a regras e padrões que estão fora dela, e a poesia não deve se contentar com seguir regras.
Pelo contrário: “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais / Todas as construções
sobretudo as sintaxes de exceção / Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis”. Nesses versos,
lemos a defesa da inovação, da quebra de padrões, do desrespeito à gramática como a tarefa
do lirismo verdadeiro.
língua portuguesa_unidade 06
113
Tais pontos chamam a atenção tanto para o aspecto formal quanto para o aspecto do conteúdo.
Em outras palavras, há o reconhecimento de uma nova forma de poesia e de um novo painel
de temas que precisam ser abordados.
Ora, essas questões são plenamente atendidas no poema de Manuel Bandeira. Quanto
à forma, vemos que todos os versos são livres e brancos. Aliás, há versos muito longos, que
“ferem” o ritmo do poema, incorporando um componente prosaico, isto é, há partes de prosa
dentro do poema, misturando os dois gêneros literários. Versos como “Do lirismo funcionário
público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor”
e “Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos
de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.” quebram o ritmo do poema e
exigem do leitor uma nova forma de interação. Se pensarmos nos sonetos parnasianos, sua
repetição da forma fazia com que os leitores já soubessem como ler os versos. Já no caso de
“Poética”, é preciso um novo esforço que seja capaz de dar conta dessa versificação “caótica”.
Com isso, há uma deformação da estrutura do poema, uma fragmentação (por exemplo, com
estrofes compostas apenas por um verso) e um caos visual que agride esteticamente o leitor,
provoca-o, instiga-o a interagir de outra maneira com o poema. É, como diz o último verso, uma
forma de libertar tanto a poesia quanto o próprio leitor.
Para a segunda fase, vemos que esse novo lirismo convoca as palavras do dia a dia, acabando
com a ideia de que a poesia só trata de assuntos elevados e, portanto, precisa de um voca-
bulário empolado. Os dois longos versos “Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor” e “Será contabilidade tabela de
cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras
de agradar às mulheres etc.”, a que já nos referimos antes, apresentam um “caos verbal” com
diversas palavras tidas como não poéticas. O mesmo se pode dizer de “raquítico”, “sifilítico”
e “bêbedos”, que trazem imagens pouco nobres para o poema. No entanto, é justamente isso
que a nova poesia deve fazer, segundo o manifesto. Ela precisa desautomatizar o leitor, chocá-lo
e, assim, recuperar uma “inocência construtiva”. Resgatar o valor de todas as palavras, pois o
que importa não é a sua beleza, mas o seu uso inovador no espaço do poema. É isso o que a
afirmação “ver com olhos livres” expressa, e o último verso do poema realiza: “– Não quero
mais saber do lirismo que não é libertação.”
Portanto, a nova poesia deve ser libertadora. Ela deve libertar-se das regras tradicionais e,
dessa forma, libertar tanto o poeta quanto o leitor. Só assim é que ela será capaz de “ver” o
mundo “com olhos livres”.
114
Referências
ALENCAR, José de. Iracema. Barcelona: Editorial sol90, 2004..
ANDRADE, Mario de. Macunaíma. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secre-
taria da Cultura Ciência e Tecnologia, 1978.
ANDRADE, Mario de. Pauliceia desvairada. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987.
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia
e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas.
3. ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. Comentários e hipertextos de Raquel R. Souza
(Furg). Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso em: 21
mar. 2022.
ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda
europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguar-
distas. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/
oandrade/oandrade.pdf. Acesso em: 21 mar. 2022.
ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
BANDEIRA, Manuel. Camelôs. In: MANUEL BANDEIRA: Biografia, vida e obra de Manuel Bandeira.
20--. Disponível em: https://bandeiramanuel.blogspot.com/2009/04/libertinagem-camelos.
html. Acesso em: 28 mar. 2022.
BANDEIRA, Manuel. Poética. In: MARTINS, Aulus Mandagará. Aeroplanos da Birmânia. Pelotas,
2017. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/aulusmm/2017/05/14/poetica-manuel-bandeira/.
Acesso em: 18 mar. 2022.
DIAS, Gonçalves. Canção do exílio. In: BIBLIOTECA VIRTUAL DO ESTUDANTE BRASILEIRO. São Paulo:
USP. 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000115.pdf.
Acesso em: 21 mar. 2022.
MATO. In: GRANDE Dicionário Houaiss. São Paulo: UOL, 2022. Disponível em: https://houaiss.uol.
com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-0/html/index.php#2. Acesso em: 18 mar. 2022.
língua portuguesa_unidade 06
Literatura brasileira:
Modernismo – 2ª fase 07
meta
Apresentar o contexto histórico da segunda fase do Modernismo brasileiro, sua relação
com a fase anterior, os principais autores e obras do período e suas características
determinantes.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
Em nossa história literária, costuma-se dividir o Modernismo em fases, considerando os eventos
históricos que modificaram o cenário politico e social brasileiro. A esta altura, você já viu como
se deu a primeira fase, chamada de “heroica” pela radicalidade com que empreendeu a quebra
com a tradição parnasiana e naturalista. Seus principais valores eram o nacionalismo crítico e
o antipassadismo, procurando, ao mesmo tempo, “redescobrir o Brasil” e inovar com as estru-
turas artísticas vigentes.
Nesta unidade, você verá a segunda fase modernista, conhecida como fase de estabilização
ou ideológica, que compreende o período entre 1930 e 1945. Na prosa, destacam-se os nomes
de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Verissimo. Já
na poesia, o nome de Carlos Drummond de Andrade ganha destaque ao lado de outros, como
Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Vinicius de Moraes.
O Modernismo “ideológico”
Em 1930, ocorreu um movimento político que ficou conhecido na história como Revolução de
30, ou Revolução de Outubro, responsável pela ascensão de Getúlio Vargas ao poder e pelo
abalo significativo nas estruturas políticas da República do Café com Leite. Esse movimento
não aconteceu de maneira isolada. Ele veio na esteira da Crise de 1929, quando a bolsa de
valores de Nova Iorque quebrou, provocando um terremoto econômico em todo o mundo
capitalista. O Brasil não ficou imune a isso. As elites cafeicultoras foram as mais atingidas, o
que impactou diretamente esse pilar da economia nacional.
A um cenário de alta instabilidade econômica, seguiu-se uma alta instabilidade política: o resul-
tado das eleições de 1930 foi contestado pelo lado perdedor e o candidato eleito, Júlio Prestes,
não chegou a assumir. Em seu lugar, entrou Getúlio Vargas, que ficaria no poder pelos próximos
língua portuguesa_unidade 07
117
15 anos, primeiro como chefe do Governo Provisório, depois como presidente eleito e, por fim,
como ditador. É nesse período que se insere a literatura da segunda fase do nosso modernismo.
Os escritores modernistas que ganham projeção a partir de 1930 encontram um país bem
diferente de seus antecessores. Nesse contexto, as preocupações estéticas se mesclam a pautas
sociais, como a situação dos camponeses e dos operários. Por vezes, a preocupação social
chega a suplantar a estética, produzindo obras sem grande apuro técnico, mas com forte
intenção de denúncia. É por isso que essa fase recebe o adjetivo de “ideológica”, uma vez que
a intenção de revolucionar a linguagem cede espaço para a intenção de mobilizar a sociedade
por meio da arte. Como veremos, há uma profusão de novos autores e temas que tendem a
ser agrupados segundo determinadas tendências. Dado o limite de espaço de que dispomos,
veremos apenas alguns dos mais representativos do período.
A principal contribuição da prosa modernista dessa segunda fase foi, sem dúvida, o romance
regionalista, também chamado de neorrealista, uma vez que recupera parte das estruturas
narrativas do Realismo do século XIX. A alcunha se deve ao fato de os escritores se voltarem
para a realidade social de seus estados, em geral apartados do núcleo político-econômico
composto por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Apesar de essa tendência se espalhar
pelo Brasil inteiro, é na região Nordeste que o regionalismo se desenvolve com mais força,
produzindo alguns de nossos principais autores, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel
de Queiroz e José Lins do Rego. Deve-se mencionar, ainda, Érico Veríssimo, representante dessa
vertente no Rio Grande do Sul.
Podemos traçar algumas linhas gerais que atravessam as obras desses autores, embora seu
estilo varie grandemente. Precisamos ter em conta, também, que a maioria deles começou a
publicar na década de 1930, mas não parou aí. Por isso, encontramos grandes diferenças de
temática e de estilo dentro da produção de um mesmo autor, quando o olhamos ao longo do
tempo. Dentre as características marcantes da prosa regionalista, destacamos duas, uma
temática e uma formal.
Quanto à primeira, percebe-se o foco nas populações mais pobres, trabalhadores do campo
ou de cidades interioranas. No caso dos romances nordestinos, a seca é um tema recorrente,
seja para evidenciar seu impacto na vida das pessoas, seja para denunciar o descaso gover-
namental. Os romances desse período procuram pôr em evidência a realidade dura dessas
populações, acompanhando-os em sua constante luta pela sobrevivência.
Já quanto à questão formal, nota-se um enxugamento da narrativa, que passa a ser mais
contida e objetiva. Diferente das experimentações estilísticas e carregadas de humor de Mario
118
e Oswald de Andrade, a prosa regionalista tende a ser mais séria, sóbria e condensada. É como se
os autores procurassem refletir na escrita a secura da terra, atendo-se ao estritamente necessário.
A seguir, vamos ver os maiores representantes do regionalismo, Graciliano Ramos e Jorge Amado,
ambos com estilos muito próprios e característicos.
Vidas secas é, sem dúvida, seu romance mais lembrado. É definidor da estética de Graciliano,
sendo marcado pela concisão vocabular extrema, pelo uso elaborado do foco narrativo e pela
forma desnudada de apresentar os personagens e a paisagem. Narrando a saga de uma família
pelo sertão – Fabiano, o pai, Sinha Vitória, a mãe, os dois filhos sem nome, referidos apenas
como “o filho mais velho” e o “filho mais novo”, e a cachorra, Baleia –, Vidas secas é mais do
que um retrato das condições de vida miseráveis dos trabalhadores rurais. Trata-se de uma
grande discussão a respeito da secura da vida que resulta da secura da linguagem. A exploração
sofrida por esses sujeitos é de tal ordem que eles mal conseguem se comunicar uns com os
outros. O romance já começa com um dado emblemático dessa situação: o papagaio que
viajava com eles, pássaro conhecido por seu falatório, fora devorado pela família, que não
tivera outra opção.
Por outro lado, Baleia é tratada como a personagem mais humanizada do romance. É irônico o
fato de ela ter nome e as crianças não. Mais do que isso, seu nome é também irônico, uma vez
que ela é uma cachorra magricela no meio do semiárido e recebe o nome do maior mamífero
aquático do planeta.
Além disso, Graciliano maneja o foco narrativo de maneira tão hábil que foi capaz de transmitir
o ponto de vista da cachorra em um capítulo dedicado exclusivamente a ela, ou melhor, à sua
morte. Muito doente e com suspeita de ter contraído raiva, Baleia é alvejada no traseiro por
Fabiano, morrendo ferida e delirando. Vejamos uma passagem de seus últimos instantes:
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insen-
sibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam
na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha
deixado o fogo apagar-se muito cedo.
língua portuguesa_unidade 07
119
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano,
um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num
chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes (RAMOS, 2011, p. 91).
Repare como há uma alternância entre a descrição objetiva, própria ao narrador observador, e
o aprofundamento subjetivo, na apresentação dos sentimentos e pensamentos de Baleia. Essa
técnica, chamada de discurso indireto livre, transita de modo sutil do ponto mais distanciado
para o mais interiorizado do objeto. Com isso, ocorre uma aproximação gradual, um mergulho
gradativo na psicologia dos personagens, potencializando sua relação com o ambiente e consigo
mesmos. O que surpreende nesse caso é que não se trata de um personagem humano, mas de
um cachorro. Esse aprofundamento psicológico é fundamental para a humanização de Baleia,
de tal modo que o trecho se encerra com ela sonhando com uma espécie de “paraíso canino”.
Nesse ponto, é válido ressaltar que sua vasta produção literária se afasta em alguns pontos
da tônica do segundo Modernismo. Sem deixar de ter a preocupação social característica dos
escritores regionalistas, Jorge Amado tende a representar as camadas populares não apenas
em sofrimento e penúria, mas nas festas, no jogo, na alegria cotidiana. Há, por vezes, um clima
de festividade geral, uma esperança revolucionária, que constrasta com a aridez da prosa de
Graciliano, por exemplo. É necessário destacar o papel central das religiões de matriz africana em
alguns de seus romances, destoando do cristianismo católico hegemônico nas letras brasileiras.
Por outro lado, a valorização da festa e da sensualidade contribui para realçar os momentos
de dor e perda, e a obra, então, converte-se numa dialética difícil, que é a da vida, sempre
imprevisível e inconstante.
Em meio a tanta popularidade, é tarefa árdua indicar qual seria sua principal obra. Capitães
da areia talvez seja a mais representativa dessas características que viemos destacando e,
sem dúvida, uma das mais celebradas. Publicado em 1937, o livro é logo censurado pelo Estado
Novo de Vargas e Jorge Amado acaba sendo preso uma segunda vez (a primeira havia se dado
no ano anterior, ocasião que o fez conhecer Graciliano Ramos). Seu teor revolucionário, de
orientação socialista, é evidente ao acompanhar a saga dos meninos de rua que sobrevivem
em Salvador cometendo pequenos crimes, envolvendo-se em aventuras, apaixonando-se,
brigando e amadurecendo.
O líder do grupo é Pedro Bala, jovem filho de um grevista assassinado. Outros personagens
relevantes são Volta Seca, Professor, Gato, Boa-Vida e Sem-Pernas, todos possuindo uma
120
personalidade única, interesses próprios e desafios que precisam enfrentar. Além disso, há
ainda Dora, órfã de pais vítimas de varíola, que acaba se tornando a mãe do grupo e interesse
romântico de Pedro Bala.
É curioso notar que os nomes são muito significativos para a composição desses personagens.
Isso porque quase nenhum deles é referido por um nome civil, mas por apelidos que ressaltam
características físicas (como Sem-Pernas) ou comportamentais (como Professor). Os nomes
funcionam como um segundo batismo, que cria o sentimento de pertencimento a uma comu-
nidade, reforça os laços de amizade e contribui para eles formarem uma família.
Com isso, percebemos que a caracterização dos personagens de Jorge Amado é um de seus
principais aspectos literários. Não à toa alguns deles saltam para fora dos textos e ingressam no
imaginário popular, sendo Gabriela o maior exemplo disso. Os meninos de Capitães da areia são
ativos, curiosos, agitados, teimosos, questionadores. Suas histórias se entrelaçam de modo que
a relação entre o indivíduo e o grupo é sempre decisiva para a formação de suas personalidades.
Apesar da idade, possuem longas vivências, boas e ruins, conflituosas e afetivas. O leitor é levado
a simpatizar com eles, tal é a forma como o narrador os apresenta, muitas vezes justificando a
violência praticada pelos meninos como um reflexo da violência sofrida por eles. Há uma visão
poética de mundo nesses personagens, e o próprio lugar onde moram, à beira da praia, assume
um aspecto de poesia e liberdade imaginativa. Vejamos o início do romance:
Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se
rebentavam fragorosas ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a
qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta ponte saíram
inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para a aventura
das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas hoje
comidas. Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do mar oceano, as noites diante
dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite
(adaptado de AMADO, 1937).
Já o segundo parágrafo desloca o foco para o entorno do trapiche, mostrando em que espaço
ele se localiza e qual o seu histórico. Repare na presença de adjetivos e advérbios: “grandes
e negras pedras”; “as ondas ora se rebentavam fragorosas ora vinham se bater mansamente”;
“alguns eram enormes e pintados de estranhas cores”. Além disso, o parágrafo se encerra com
descrições poéticas do mar e da noite: “o mistério do mar oceano, as noites eram de um verde
escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite”.
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121
Tais recursos linguísticos contribuem para uma prosa mais fluida, envolvente, que convida o
leitor a apreciar o que está sendo dito. É quase como se o leitor sentisse a brisa do mar à noite,
colocando-se no espaço em que se passa a narrativa. Portanto, a caracterização do espaço e do
tempo de forma onírica, ou seja, como se fosse um sonho, serve para introduzir o leitor nessa
narrativa que será, muitas vezes, atravessada pela imaginação, pelos desejos e vontades dos
protagonistas. Não há um distanciamento objetivo. Pelo contrário, o narrador favorece a pers-
pectiva dos personagens que narra e, assim, ele é capaz de transmitir um mundo de vivências
que contesta e derruba paradigmas e preconceitos, uma vez que a obra foca integrantes de
uma população marginalizada e quase sempre vista como ameaça à ordem social.
Assim, podemos falar de dois movimentos na poesia da segunda geração modernista: amadure-
cimento das propostas revolucionárias da fase anterior e resgate de temas e formas tradicionais.
O primeiro é representado por Carlos Drummond de Andrade, enquanto o segundo é represen-
tado por Cecília Meireles, ambos poetas que iniciaram suas publicações na década de 1930 e se
tornaram marcos importantes da literatura brasileira. Além deles, são dignos de nota Jorge de
Lima, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, que possuem obras extensas e muito variadas.
Além disso, uma vez que os versos livres e brancos conquistaram seu espaço na produção
poética, não havia mais por que rechaçar as métricas tradicionais com tanta veemência. O que
ocorre, então, é o resgate de ritmos e métricas medievais e clássicos, que são retrabalhados
para novos contextos e temas. Talvez o maior exemplo dessa tendência seja o livro Romanceiro
da Inconfidência, de Cecília Meireles, que se vale do romance, um tipo de poema narrativo
muito comum na Idade Média, especialmente na Espanha, para recontar o período da corrida
do ouro de Minas Gerais e a Inconfidência mineira, episódio histórico extremamente relevante
para a formação da sociedade brasileira.
Quanto a sua poética, Drummond tematizou mais do que qualquer outro a vida do sujeito
comum, do funcionário público, em um mundo caótico, indiferente, ameaçador. Sua poesia é
marcada pela relação entre o “eu” e esse mundo. Poemas como “No meio do caminho”, “Poema
de sete faces”, “José” e “A máquina do mundo” são bastante representativos dessa temática.
Neles, encontramos a presença constante de um homem comum dividido entre um destino
grandioso e um destino comum. Não é ele que busca esse destino e, na maioria das vezes, o
sujeito recusa a grandeza. Não se trata mais dos heróis clássicos em busca de glória e fama,
mas de pessoas vivendo suas vidas o melhor que podem, tentando manter sua individualidade
em um ambiente cada vez mais opressivo, que força todos a se comportarem de maneira igual.
É nessa recusa a se conformar que se encontra a potência da obra de Drummond. Vejamos, a
título de exemplo, o poema “Mãos dadas”:
Mãos dadas
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123
Esse poema, bastante conhecido, é claro e direto. Seu compromisso é com uma poesia voltada
para a dura realidade presente. Não à toa, o vocábulo “presente”, nos dois últimos versos, adjetiva
tudo: o tempo, os homens, a vida. Em contraste, a declaração de princípios negativa dos dois
primeiros versos recusa tanto o passado – “mundo caduco” – quanto o futuro. Para o eu lírico,
não há opção que não seja encarar os fatos: “Estou preso à vida e olho meus companheiros”.
Esse ponto é desenvolvido na segunda estrofe. Aqui, fica claro que o escapismo não tem vez:
o eu lírico recusa o suicídio e se nega a fugir para as ilhas. Observe como essa estrofe evoca
elementos caros ao imaginário romântico – os “suspiros ao anoitecer”, a morte, a fuga. Pela
negação desse imaginário, o eu lírico recusa duas das posturas mais fortemente associadas à
arte romântica: o escapismo e a idealização. Em vez de evadir-se, ele exorta seus companheiros
a resistirem: “O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos
de mãos dadas.”
No caso da poeta, as ideias de ruptura e continuidade não são opostas. Herdeira de uma
tradição de poesia ibérica (portuguesa e espanhola), Cecília não rejeita as formas rígidas, com
métrica regular, rima e ritmo. No entanto, seria equivocado afirmar que ela apenas retoma as
estruturas poéticas tradicionais, sem grandes inovações. Na verdade, em virtude do contexto
social e histórico em que está inserida, Cecília combina de modo muito próprio os temas e
motivos modernos às estruturas formais consagradas. Assim, sua obra é imensamente variada
e marcada por uma associação entre a música e a poesia. São muitos os poemas com títulos
que remetem a canções, quando eles mesmos não se chamam “Canção”.
Identificamos nessa associação central a busca por um sentido do fazer poético em um tempo
no qual a função dos poetas já se perdeu, ou seja, a poesia seria uma atividade “inútil”. Ao
124
recuperar o elo entre poesia e música, Cecília reflete sobre a própria prática poética, sobre a
figura do poeta e sobre a relação entre a eternidade da arte e a efemeridade da vida. Em linhas
gerais, podemos dizer que é na dualidade efêmero/temporário x eterno/perene que caminha
sua poesia. Vejamos, como exemplo, o poema “Retrato”:
Retrato
Estruturado em três estrofes com quatro versos cada, o poema apresenta métrica regular e
um tipo de rima mais sutil, chamado rima toante, que ocorre na repetição da sílaba tônica das
palavras, como em “magro” e “amargo”. Em todas as estrofes, os três primeiros versos são
octossílabos, ou seja, têm oito sílabas poéticas. Na primeira, o último verso tem cinco sílabas.
Já nas duas seguintes, o último verso tem quatro sílabas. Com isso, já vemos que se trata de
um poema bem diferente dos que vimos na primeira fase modernista.
Quanto ao tema, ele consiste em uma reflexão sobre a passagem do tempo, que é percebida na
transformação do corpo, especificamente do rosto. O título, “Retrato”, sugere uma situação em
que o eu lírico se vê em um retrato antigo e compara os dois momentos, passado e presente. A
isso se segue uma série de constatações iniciadas por negativas: “eu não tinha”, “eu não dei”. A
pergunta que encerra o poema resume o sentimento de espanto e angústia em que o eu lírico
se encontra: “Em que espelho ficou perdida / a minha face?”
Podemos interpretar esse poema como representativo da dualidade eterno x efêmero, própria
da obra de Cecília Meireles. Ora, o que se vê nele é a passagem do tempo, imperceptível, mas
constante, transformando os corpos e as pessoas sem que elas tenham qualquer controle
sobre o processo. No entanto, o retrato, a arte, é capaz de fixar o tempo, ou pelo menos um
pedaço dele, salvando-o da erosão que consome tudo. O eu lírico subitamente percebe que já
não é mais a mesma pessoa, seu reflexo não é igual, e isso gera angústia e melancolia. Porém,
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quando nos atentamos para o contraste desenvolvido ao longo das estrofes, vemos que há um
meio de driblar esse problema, que é por meio da arte. O poema, como obra artística, é capaz
de conferir a eternidade que falta às coisas do mundo, assim como o retrato é uma espécie de
espelho do passado, fixando uma imagem que resiste ao tempo.
Resumo
Nesta unidade, você viu como se deu a transição entre a fase heroica do Modernismo e sua
fase ideológica ou de estabilização. O marco que as separa não é de ordem artística, mas
política, dada a turbulência ocorrida em 1930, motivada por diversos fatores, que acaba por
inaugurar uma nova fase da vida social brasileira, chamada de Era Vargas.
A literatura não esteve alheia às transformações que ocorreram na esteira desse movimento
político. Os primeiros modernistas conseguiram modificar o cenário artístico nacional de forma
decisiva. Com isso, já não era mais necessária uma postura tão combativa e iconoclasta. O que
se seguiu, então, foi o amadurecimento de algumas tendências iniciadas em 1922, além do
resgate de elementos da tradição literária ocidental.
Atividade
Leia a seguir o poema “O trovador”, de Mario de Andrade, que você viu no capítulo anterior, e
o poema “Motivo”, de Cecília Meireles. Em seguida, responda às perguntas:
O trovador
Motivo
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
língua portuguesa_unidade 07
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Resposta comentada
Para responder à primeira pergunta, precisamos analisar com cuidado os elementos principais
de ambos os poemas. Com relação a “O trovador”, percebe-se que é composto por versos livres
e brancos, em estrutura estrófica irregular, tendo a primeira estrofe nove versos e a segunda,
apenas um. Além disso, vemos um uso incomum da organização sintática, que provoca
estranheza ao leitor, como no verso “Sentimentos em mim do asperamente”, uma escassez de
formas verbais e a presença de neologismos, como “cantabona” e “dlorom”, que apresentam
caráter de onomatopeia. Quanto ao conteúdo, vemos que se trata de um metapoema, ou seja,
um poema que fala sobre o fazer poético. Isso já é anunciado pelo título, uma vez que
“trovador” é a maneira medieval de se referir aos poetas, que na época também eram músicos,
faziam trovas, pequenas canções. No entanto, no caso do poema, mais do que mera referência,
há uma recuperação desse sentido de poesia, juntamente com a mescla de culturas. O poeta,
trovador moderno, é uma mistura de influências, o que fica claro no último verso: “Sou um tupi
tangendo um alaúde”.
Já sobre o poema de Cecília Meireles, vemos que sua estrutura é regular: quatro estrofes de
quatro versos, os três primeiros com oito sílabas poéticas e os últimos com duas sílabas
poéticas. Além disso, em todas as estrofes o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo
rima com o quarto. Não há grandes inovações vocabulares, nem estranhezas sintáticas.
Conseguimos entender sem dificuldade o que é dito, ainda que se utilize uma linguagem mais
abstrata. Quanto ao conteúdo, verificamos que também se trata de um metapoema. Mais do
que isso, há uma ligação íntima entre a poesia e o canto, como mostram o primeiro verso da
primeira estrofe – “Eu canto porque o instante existe” – e, também, o primeiro verso da última
estrofe – “Sei que canto. E a canção é tudo”. Aliás, o próprio título já indica essa ligação, uma
vez que motivo é um tipo de canção ou uma forma de se referir à melodia. No poema, vemos
que o eu lírico se identifica com tudo o que é transitório, característica confirmada por vocábulos
como “fugidias”, “vento”, “instante”, e pelas oposições “desmorono” x “edifico”, “permaneço” x
“me desfaço”, “fico” x “passo”. Dessa forma, estamos diante de uma oposição entre o transitório
e o permanente. O poeta pode ser passageiro, mas a poesia é eterna.
Nesse ponto, já ficam claras as diferenças e semelhanças entre os textos. Vamos apontá-las
de modo mais direto: em termos de forma, o primeiro é constituído por irregularidades, tanto
no tamanho das estrofes quanto no dos versos, sendo até meio difícil identificar seu ritmo,
ao passo que o segundo é inteiramente regular, com o ritmo evidente e musical. Em termos de
conteúdo, o primeiro se coloca de forma histórica e social, ligando-se aos “homens das primeiras
eras” e mostrando que é resultado da mistura de culturas que é o Brasil, um tupi tangendo um
alaúde. Já o segundo se coloca de maneira difusa. O poeta é um ser transitório e indefinido, se
transformando constantemente, vivendo para cantar.
Por outro lado, as semelhanças surgem principalmente no plano do conteúdo. Ambos são
metapoemas que aproximam a poesia da música e o poeta do cantor. Também é possível ver
o uso de figuras de linguagem que procuram expressar esse aspecto inefável da poesia, como
nos versos “Na minha alma doente como um longo som redondo…” e “Tem sangue eterno a asa
ritmada”. Há, ainda, a semelhança na atitude do eu lírico de se autodefinir a partir da poesia:
“Sou um tupi tangendo um alaúde” e “Sou poeta”.
Fazendo a ponte para a segunda pergunta, percebemos que os dois textos transitam em um
terreno comum: a metapoesia. No entanto, suas diferenças, principalmente na forma, se devem
a projetos poéticos bastante distintos. Como vimos, a pouca presença de verbos, os neologismos,
a quebra da ordem sintática tradicional são características marcantes do Modernismo da
primeira fase. Ao mesmo tempo, a utilização de métrica e rima regulares, que recuperam
estruturas clássicas da tradição literária, é um traço marcante de uma das tendências do
Modernismo da segunda fase. O poema de Mario de Andrade é combativo, irreverente, aproxi-
mando elementos díspares, como tupi e alaúde, e apostando em construções estranhas. Já o
poema de Cecília Meireles é reflexivo, imaginativo, utilizando imagens duais para transmitir a
ideia principal de alternância do eu lírico. No entanto, vemos que há linhas de força que vão
de um a outro, como a aproximação entre poesia e música, a menção ao poeta como cantor, o
uso de figuras expressivas que deem conta de uma questão abstrata, a poesia.
Com isso, percebemos que o Modernismo da segunda fase não é simplesmente contrário ao
da primeira, tampouco eles são opostos em seus projetos. Ambos estão preocupados com
questões estéticas muito semelhantes, mas encontram soluções diferentes, de acordo com as
influências que tiveram e as propostas que os nortearam. Em 1922, o mais importante era abalar
as estruturas que engessavam a arte, tornando-a vazia e desligada da realidade. Já em 1930,
era essencial inserir essas novas formas artísticas no contexto social, valendo-se da liberdade
conquistada para desenvolver projetos próprios.
129
Referências
AMADO, Jorge. Capitães da areia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. Adaptado.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ANDRADE, Mario de. Pauliceia desvairada. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987.
metas
Apresentar o contexto histórico da arte na segunda metade do século XX, mais
precisamente a partir de 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial, e os
movimentos originários de estética modernista que se estenderam até o final da
década de 1960. Paralelamente a isso, conhecer e compreender os escritores que
compuseram esse momento de aglutinação de valores e ideais artísticos na literatura
brasileira, que também ficou conhecido como Geração de 45.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
No contexto mundial, as produções artísticas após o término da Segunda Guerra Mundial (1945)
vão reunir orientações muito variadas, passando a acentuar a valorização de formas desconexas.
Acaba-se por se trazer à tona um resgate em forma de aglutinação das estéticas cubista,
expressionista, surrealista e dadaísta, que se apresentaram como tendências de vanguarda no
início do século XX. No Brasil, essas tendências vão assimilar novas formas e conteúdos em
função da realidade brasileira e dos anseios de nossos artistas em representar nossa própria
identidade múltipla e ampliar a busca diversificada dessas variadas angústias.
Visão geral
Nessa terceira fase do Modernismo (conhecida como Geração de 45), presencia-se a rejeição da
primeira geração modernista e dos seus valores propagados para a poesia: o antipassadismo, a
nacionalidade crítica, a liberdade de forma – a dessacralização da arte, de forma geral.
O que vai surgir na poesia da Geração de 45 é uma recuperação de certas tendências estéticas
da vanguarda do início do século XX – uma busca pela palavra-signo ou palavra-imagem, de
forma a condensar os significados, pois há uma intencionalidade na ruptura total da sintaxe.
Mais tarde, a partir da década de 1970, vamos assistir a uma ávida necessidade de engajamento
com a realidade social brasileira, e vemos surgir o poema-social, a poesia marginal e os
músicos-poetas, diante de uma realidade político-social de muito conflito interno vivido nos
20 anos de ditadura militar (1964 a 1984). Na prosa, a exploração do psicológico e dos conflitos
entre o homem e a modernidade, a busca da universalização e de uma literatura engajada e o
mergulho no realismo fantástico e no romance de reportagem passam a ser o foco. A crônica,
o conto, a prosa autobiográfica e o teatro ganham força.
Prosa
A prosa vai se destacar pelas novas formas que passa a assumir no cotidiano da produção
artística e da preferência dos leitores – o conto, a crônica, a prosa autobiográfica etc. Os relatos
se tornam introspectivos e fazem um mergulho profundo na alma e na natureza humanas.
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133
Intimista
Clarice Lispector (1920-1977)
A publicação do primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, em 1944,
já indiciava um novo caminho na prosa brasileira. O aprofundamento da análise psicológica
dos personagens, com um estilo introspectivo alternando com uma visão por vezes onírica,
revelava um olhar preocupado com a universalização da natureza humana, na busca de
compreensão do mundo moderno, bem como dos conflitos humanos e suas contradições.
O dia de Joana
O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede
de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal
apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria
tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio
de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.
Lembrou-se do marido que possivelmente a desconheceria nessa ideia. Tentou relembrar a figura de
Otávio. Mal, porém, sentia que ele saíra de casa, ela se transformava, concentrava-se em si mesma e,
como se apenas tivesse sido interrompida por ele, continuava lentamente a viver o fio da infância,
esquecia-o e movia-se pelos aposentos profundamente só. Do bairro quieto, das casas afastadas,
não lhe chegavam ruídos. E, livre, nem ela mesma sabia o que pensava (LISPECTOR, 20--, p. 10).
Podemos observar, no fragmento, que Clarice busca representar de forma aglutinada os conflitos
internos da personagem por meio do discurso indireto livre. Essa escolha estilística valoriza o
acompanhamento, de muito perto, do âmago da personagem, imbricando o registro de falas/
pensamentos e mesclando-os com o discurso do narrador em 3ª pessoa. Muitas vezes, a
percepção do limite entre essas duas formas de registro – o do discurso da personagem e o do
narrador observador – fica dificultada, dando origem a um estilo que passou a ser conhecido
como “fluxo de consciência”. Por meio dessa estratégia, simboliza-se mais nitidamente a
angústia da personagem e seus conflitos existenciais. Observe:
Enunciado 1 – “A certeza de que dou para o mal [pensamento da personagem], pensava Joana
[narrador].”
Enunciado 2 – “Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal [pensamento da personagem],
pensava ela surpreendida [narrador].”
Entre esses dois enunciados, existe um longo fio que se ocupa em criar no leitor uma dúvida
razoável sobre se estamos diante do pensamento da personagem ou da fala do narrador: “O
que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela
sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não
era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões?”.
134
As formas verbais não deixam claro se é a personagem ou o narrador que fala; apenas chegamos
a desconfiar, pela seleção vocabular, de que poderia tratar-se de indagações do narrador, mas
não podemos assegurar isso. Persiste a incerteza criada para que o leitor possa sentir com
mais intensidade a mistura de sensações, como se o narrador tivesse assumido a identidade e
as contradições da personagem.
Regionalista
…Aí, eles riram um p’ra o outro, e eu cá quieto, fazendo de conta que não estava vendo… Queriam-por-
que-queriam que eu chegasse vinte mil-réis. Mas eu sabia que cigano tem uma esganação medonha,
mesmo que doença, p’ra baldrocar cavalos, e fiz fincapé, suspirando, mentindo que nem um botão
de calça eu não podia voltar. Ai, seu doutor meu amigo, a cacunda do bobo é o poleiro do esperto!…
Eles tinham que dar o beiço e cair o cacho!… E eu fiquei mesmando…
…Por fim, quando eu relanceei que eles já estavam meio querendo me aceitar, entrei de zápede,
espadilha e treis: – Bom, mas vocês têm de me voltar dez’tões de lambujem, que é p’ra uma cacha-
cinha, porque o dinheiro aqui na minha terra anda vasqueiro…
…Mentira pura! Eu queria volta era só por a-mór de desonrar a raça toda de ciganos, p’ra uma vez!…
(ROSA, 2001, p. 312-313).
O fragmento em questão retrata a fala do personagem principal do conto, Manuel Fulô de Pei-
xoto, que, em diálogo com o personagem Doutor, relata uma passagem em que ele enganou “a
ciganagem”, com quem viveu durante anos aprendendo a conseguir vantagens na troca ou ven-
da de animais, especialmente cavalos. Nesse trecho, lemos que a empreitada planejada por
ele ia sendo bem-sucedida, embora não se veja o resultado. Ao final, ele consegue seu objetivo
– “desonrar a raça toda de ciganos”. Como consequência dessa façanha, o que ouvimos mais à
frente na estória é que Manuel Fulô passou a ser desacreditado pelos habitantes do local, que
nunca mais quiseram fazer negócio com ele, pois todos diziam que ele enganava até ciganos.
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O que podemos observar nesse trecho é a quantidade exuberante de expressões e ditos po-
pulares, recheando o texto com a riqueza do linguajar coloquial, realçado pelo uso de incontá-
veis reticências e pontos de exclamação. As expressões sublinhadas no texto fazem ressoar a
variante sertaneja e trazem a singularidade das criações sintáticas e vocabulares que dão um
colorido muito próprio aos textos de Guimarães Rosa.
As muitas peças escritas por Suassuna já revelavam seu engajamento com a crítica social e,
por isso, fica clara sua preferência pela construção de farsas. Essa espécie literária permite
produzir um texto de humor quase pastiche e cheio de trapaças, mas carregado de moralidade,
com um olhar de reprovação diante de determinados comportamentos humanos. Para nossa
leitura, a seguir, reproduziremos um fragmento de outra peça premiada do escritor, O santo e
a porca.
EURICÃO – Preço por minha porca? Ai! Socorro! Ladrão! Pega o ladrão!
EURICÃO – Ai a crise, ai a carestia! Ai Santo Antônio! Veja o que querem fazer comigo!
EURICÃO – Ai minha porquinha que herdei de meu avô e esse criminoso quer tomar! Ai minha
porquinha! (Cai desfalecido numa cadeira).
EUDORO – Está bem, homem de Deus, se não quer vender, não venda! Precisa essa agonia?
Diabo duma esquisitice danada! Vá ser esquisito assim no inferno!
[…]
Essa farsa trata as questões de crítica social do comportamento humano como uma comédia
de disfarces, engodos e traições, com a finalidade de confrontar os atos dos personagens em
cena. Ela se passa em um vilarejo do sertão de Pernambuco. São sete os personagens – Eurico
Arábe, dono de armazém que escondia seu “tesouro” num baú; Benona Arábe, sua irmã;
Margarida, sua filha; Caroba, sua empregada; Eudoro Vicente, rico fazendeiro da região; Dodó,
seu filho, e Pinhão, seu empregado.
Urbana
Por vários dias, o protagonista – “o homem” – visita a mesma loja de antiguidades, cuidada
pela personagem “a velha”. Passeia o olhar pelas pilhas de quadros e livros, panos “embolo-
rados” e sempre detém o olhar numa antiga tapeçaria que ocupa toda a parede do fundo da
loja. O cenário da tapeçaria era o de uma caçada. A cada dia ele percebia a cena cada vez mais
próxima, achava que as cores iam ficando mais nítidas, mas não se atrevia a tocá-la, apesar
de sentir cada vez mais forte o cheiro de mato. À noite, em casa, imaginava ou sonhava que
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percorria o bosque, achava que já tinha vivido ou que já tinha pintado aquela cena. O trecho a
seguir é de quando ele volta à loja para observar a tapeçaria.
‘Conheço o caminho’, repetiu, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas.
E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando
embaçada, lá longe? Imensa, real, só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo
teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um
armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram
entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore!
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os
pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No
silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se
arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha
de prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo
caçado?… Comprimiu as palmas das mãos contra a cara embraseada, enxugou no punho da
camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.
Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando
a folhagem, a dor! “Não…”, gemeu de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou
encolhido, as mãos apertando o coração (TELLES, 2009. p. 50).
O conto constrói uma realidade mágica em que o protagonista se vê transportado para dentro
do objeto de seu fascínio e transformado em parte dele. Para criar essa ambientação do
fantástico, percebe-se a descrição progressiva na mescla dos cenários da loja e do bosque
(visto na tapeçaria), e das sensações vividas pelo protagonista até cair no chão, deixando indí-
cios de que ele teria sido atingido por uma flecha no coração.
LOJA BOSQUE
“a dor”
“Ouviu o assobio da seta varando a folhagem”
“gemeu de joelhos”
Poesia
A poesia da 3ª geração modernista aponta para um retorno ao culto da forma, a exemplo dos
poetas parnasianos e simbolistas. Nas décadas seguintes, essa valorização formal dá surgimento
a uma nova tendência – a poesia concreta. Com o concretismo, a valorização da forma chega a
ser entendida como imagem e podemos observar poemas como criações artísticas visuais.
Catar feijão
1. 2.
Catar feijão se limita com escrever: Ora, nesse catar feijão entra um risco:
joga-se os grãos na água do alguidar o de que entre os grãos pesados entre
e as palavras na folha de papel; um grão qualquer, pedra ou indigesto,
e depois, joga-se fora o que boiar. um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, toda palavra boiará no papel, Certo não, quando ao catar palavras:
água congelada, por chumbo seu verbo: a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
pois para catar esse feijão, soprar nele, obstrui a leitura fluviante, flutual,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. açula a atenção, isca-a como o risco.
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A primeira observação nos leva para o aspecto formal. Podemos afirmar que a metrificação oscila
entre 10 e 12 sílabas métricas (decassílabo e dodecassílabo). A pouca presença de rima final –
“alguidar” (v. 2) / “boiar” (v. 4); “papel” (v. 3) / “papel” (v. 5) – dá lugar a assonâncias e aliterações
internas, tais como: “catar” (v. 7, 9) / “jogar” (v. 8) / ”quebrar” (v. 12); “feijão” (v. 9) / “grão” (v. 10,
11, 12) / “não” (v. 13) / “atenção” (v. 16); “oco/eco” (v. 8); “isca” (v. 16) / “risco” (v. 16). Não podemos
dizer que são meras coincidências ou que foram produzidas ao sabor da intuição, foram palavras
“catadas” e colocadas no papel com rigor arquitetônico, bem a gosto parnasiano.
Já a temática constrói-se sobre uma comparação entre o ato cotidiano de catar feijão e o de
catar palavras para “jogar na folha de papel”; nisso os poetas parnasianos e os modernistas
neoparnasianos se distanciam – o poeta parnasiano é comparado a um artífice quase divino,
e jamais lhe ocorreria compará-lo a um cozinheiro, tarefa corriqueira. No caso de João Cabral,
uma de suas características marcantes é justamente se valer de elementos muito comuns para
falar de poesia. Sua poética é a do canavial, da pedra, da cabra, do feijão.
O formato de soneto nos remete ao parnasianismo, mas seu conteúdo carrega, sem dúvida,
alguns traços simbolistas, com a sugestão de “alma penada” (v. 4), “morte” (v. 8), “manchas de
sangue” (v. 9) e “me assassinaram” (v. 10). Há que se assinalar que se observa também um
recurso da poesia parnasiana, o cavalgamento, do verso 2 para o verso 3: “[…] É bom ficar/
Aqui […]”, além do uso excessivo de reticências ao gosto da poesia simbolista, criando um
clima vago e impreciso. No entanto, esses recursos servem a um propósito criativo final: não
podemos deixar de assinalar que essa combinação oportunista se inscreve numa aspiração
bem modernista – capturar sentidos pela ironia.
Nesse caso, o eu poético recusa-se a viver no passado, rejeita esse mergulho nas memórias
dolorosas em busca de si mesmo. O que se percebe é um desejo de abandonar as imagens de
saudade, amor, ou mesmo da infância; de se reconstruir como um personagem Frankenstein
– “o belo monstro ingênuo e sem memória…” (v. 14) – e ficar “bebendo um chope no meu bar”
(v. 3), sem o constante assédio interior das baladas da memória, para as quais se dirige:
“deixa-me em paz, Alma Penada!” (v. 4).
Concretistas
Os primeiros a divulgarem um manifesto, em 1958, intitulado Plano-Piloto para a poesia
concreta, foram os irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos, acompanhados de Décio
Pignatari, na Revista Noigandres, nº 4, que recebeu o nome do grupo fundado em 1952. A
partir de então, foi publicada uma série de poemas intitulados “Poetamenos”. Mais tarde, a
esse grupo se agregam Lygia Clark, Hélio Oiticica e Ferreira Gullar.
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Figura 8.2: Poema concreto “Coca cola”, de Décio Pignatari. Fonte: Campos, Pignatari e Campos (1975, p. 85).
Figura 8.3: Poema concreto de Haroldo de Campos. Fonte: Campos, Pignatari e Campos (1975, p. 123).
142
Neoconcretistas
O grupo de poetas concretistas sofre uma baixa de adesão. Ferreira Gullar, por divergências
conceituais, abandona o grupo paulista para criar uma nova corrente, que viria a ser conhecida
como Neoconcretismo. Sua discordância reside na ideia de que poesia não existe sem palavras,
enquanto as tendências concretistas enveredaram por experiências que teorizavam que o
poema visual poderia ser construído sem palavras, bastando forma/imagem.
A galinha
Morta Agora
flutua no chão. as penas são só o que o vento
Galinha. roça, leves.
Não teve o mar nem Apagou-se-lhe
quis, nem compreendeu toda a cintilação, o medo.
aquele ciscar quase feroz. Cis- Morta. Evola-se do olho seco
cava. Olhava o muro, o sono. Ela dorme.
aceitava-o, negro e absurdo. Onde? onde?
Nada perdeu. O quintal (GULLAR, 2012, p. 24).
não tinha
qualquer beleza.
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O que nos chama a atenção de imediato é a distribuição das palavras pelo papel, regra de
ouro do Concretismo; essa disposição facilita a visualização de uma ruptura sintática da
sentença, valorizando mais o ritmo das palavras e os sentidos construídos pelas aproximações
ou afastamentos. Rompe-se com a noção de estrofe, apontando que os versos são dispostos
ao bel prazer do artista, sem obediência a uma suposta margem. Mesmo o uso de sinais de
pontuação é raro, porque as palavras devem sobressair livres. Inclusive, ao separar as sílabas
da palavra “ciscar”, nos versos 6 e 7 – “[…] Cis-/ cava. […]” –, separando-as em versos diferentes,
o poeta cumpre o realce da ação repetitiva da galinha em seu ciscar, cavando o mesmo chão
repetitivamente, sem novos horizontes.
Resumo
Muitos autores começaram sua produção artística anteriormente a essa época (1945) e
continuaram após a década de 1960, mas aquilo que ficará marcado no panorama da literatura
nacional são os textos – prosa ou poesia – que demonstram uma inovação no tratamento dos
conteúdos e, principalmente, no domínio estético da linguagem.
144
Atividade
Vamos ler um fragmento do Canto 1 – “O retirante explica ao leitor quem é e a que vai” – da
obra Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, que você já deve ter visto na Unidade
2 do Volume 1 deste material didático. Nosso intuito é observar a construção formal e temática
do texto.
– O meu nome é Severino, que é a morte de que se morre
não tenho outro de pia. de velhice antes dos trinta,
Como há muitos Severinos, de emboscada antes dos vinte,
que é santo de romaria, de fome um pouco por dia
deram então de me chamar (de fraqueza e de doença
Severino de Maria; é que a morte severina
como há muitos Severinos ataca em qualquer idade,
com mães chamadas Maria, e até gente não nascida).
fiquei sendo o da Maria Somos muitos Severinos
do finado Zacarias. iguais em tudo e na sina:
[…] a de abrandar estas pedras
Somos muitos Severinos suando-se muito em cima,
iguais em tudo na vida: a de tentar despertar
na mesma cabeça grande terra sempre mais extinta,
que a custo é que se equilibra, a de querer arrancar
no mesmo ventre crescido algum roçado da cinza.
sobre as mesmas pernas finas, Mas, para que me conheçam
e iguais também porque o sangue, melhor Vossas Senhorias
que usamos tem pouca tinta. e melhor possam seguir
E se somos Severinos a história de minha vida,
iguais em tudo na vida, passo a ser o Severino
morremos de morte igual, que em vossa presença emigra.
mesma morte severina: (MELO NETO, 20--).
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Resposta comentada
Trata-se de um poema dramático que conta a estória de um “retirante nordestino”, que migra
do sertão pernambucano para a cidade de Recife (capital) e, no caminho percorrido, acompanha
a morte e o enterro de muitos conterrâneos, mas também o nascimento de um menino. Esse
nascimento traz força para continuar vivendo e resistindo à opressão. É um auto de Natal, peça
de dramaturgia que já foi encenada, e há vozes de personagens diferentes que se alternam a
cada canto, conforme a desventura narrada.
O que observamos nesse fragmento do Canto 1 é a apresentação desse personagem feita por sua
própria fala, em que tenta detalhar a diferença entre ele, “Severino da Maria do finado Zacarias”,
e os demais Severinos do sertão de onde se retira. Toda a sua apresentação não chega a ser
suficiente para o reconhecimento de sua identidade, porque o objetivo desse canto é mostrar
um Severino que, na verdade, representa muitas outras pessoas nessa mesma condição.
Poderíamos dizer que o eu poético Severino desse poema é uma parte que representa um
todo. Nesse caso, o todo social composto por inúmeros retirantes, não importa que nome
tenham, pois sofrem todos dos mesmos problemas e têm as mesmas condições de vida –
“Somos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida:” (v. 11 no fragmento transcrito). Assim, o
Canto 1 serve ao propósito do autor de produzir uma metonímia capaz de abarcar todos os habi-
tantes do sertão em igualdade e identidade. Dessa forma, o poema ganha em densidade e vigor.
As descrições não acabam por aqui. O eu poético sente necessidade de apresentar um perfil
dessa vida severina: “na mesma cabeça grande/ que a custo é que se equilibra,/ no mesmo
ventre crescido/ sobre as mesmas pernas finas/ e iguais também porque o sangue,/ que usamos
tem pouca tinta”. Mostra, inclusive, que o destino de todos os Severinos – sua “sina” – é igual:
“a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima,/ a de tentar despertar/ terra sempre
mais extinta,/ a de querer arrancar/ alguns roçados da cinza”.
Não é à toa que o título do poema (composto de 18 cantos) é Morte e vida severina. O substantivo
comum usado para nomear e distinguir indivíduos passa a ser usado como adjetivo que determina
um tipo bem específico de vida e de morte – o daqueles retirantes do sertão. Para especificar o
que seria morte severina, o eu lírico exemplifica: “é a morte de que se morre/ de velhice antes
dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/
é que a morte severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nascida)”.
Podemos concluir dessa apresentação inicial (que será comprovada no decorrer dos demais
cantos) que a vida severina é muito difícil, injusta e indigna. Os “severinos”, de que fala o eu
lírico, passam fome e não têm trabalho suficiente para o sustento de suas famílias, pois nem
146
o conseguem tirar da terra seca. Isso os leva a migrar para outras terras mais “doces” (a elas
assim se refere em cantos subsequentes, porque são regiões banhadas pelos rios). E o ciclo
vida/morte os acompanha geração após geração.
O rigor formal que João Cabral se impõe perpassa todo o poema, modificando o ritmo e a
métrica de cada canto conforme a necessidade temática. Cabe relembrar que os ritmos de
canções infantis e populares são a redondilha menor (5 sílabas) ou a redondilha maior (7 sílabas).
Aqui, no Canto 1, observamos o ritmo da redondilha maior em todos os versos (exceto o v. 2),
fazendo lembrar as cantigas populares, inclusive da literatura de cordel. Para corroborar a
sonoridade, é de chamar a atenção a rima final em /-ia/, que acontece em inúmeros versos:
“pia”/ “romaria”/ “Maria”/ “Zacarias”/ “dia”/ “Senhorias”, além de outras palavras que aqui não
figuram, pelo recorte do fragmento: “freguesia”/ “sesmaria”/ “havia”/ “vivia”.
O que mais impressiona é que, tendo sido escrito em 1954, esse texto possa ser tão atual. Mesmo
sabendo que muitos migrantes nordestinos vieram buscar trabalho e uma vida menos dura na
região Sudeste, será que o mesmo ciclo de indignidade e injustiça se repete? Basta conferir,
nas periferias das capitais dessa região, a população excluída dos direitos à cidadania em sua
luta pela sobrevivência.
Referências
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos
críticos e manifestos (1950-1960). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.
GULLAR, Ferreira. Melhores poemas. Seleção de Alfredo Bosi. São Paulo: Global, 2012.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 19--. Disponível em:
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2019/08/lispector-perto-do-coracao-
selvagem.pdf. Acesso em: 19 abr. 2022.
MELO NETO, João Cabral. Catar feijão. In: MELO NETO, João Cabral. Educação pela pedra. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2008. p. 222.
MELO NETO, João Cabral. Morte e vida severina. 1974. In: NÚCLEO INTERINSTITUCIONAL DE
LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL, São Paulo, USP, 20--. Disponível em: http://www.nilc.icmc.usp.
br/nilc/literatura/morteevidaseverina.htm. Acesso em: 19 abr. 2022.
ROSA, João Guimarães. Corpo fechado. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira: 2001. p. 293-324.
língua portuguesa_unidade 08
147
TELLES, Lygia Fagundes. A caçada. In: TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p. 47-50. Disponível em: https://kbook.com.br/wp-content/
files_mf/antesdobaileverdelygiafagundestelles.pdf. Acesso em: 19 abr. 2022.
Ampliando horizontes
metas
Interpretar e analisar textos literários, a partir de diretrizes organizacionais – estrutura,
conteúdo, recursos –, levando em consideração que os textos selecionados apresentam
a mesma temática, mas estilos literários diferentes.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
Introdução
Nesta unidade, vamos praticar a competência de leitura e interpretação de textos literários.
Tomando por fio condutor a temática amorosa, uma das mais frequentes em nossa literatura,
serão desenvolvidos estudos de seis poemas, cada um pertencendo a um estilo de época abor-
dado em unidades anteriores. Primeiramente, apresentaremos a temática a ser explorada e a
justificativa de seleção dos textos; então, desenvolveremos a interpretação e a análise compa-
rativa deles, que serão divididas em três partes. De modo geral, seguiremos os seguintes passos:
2. apreensão global do poema, observando aspectos como o assunto tratado, o tom sele-
cionado em função da seleção vocabular e os movimentos de tratamento do tema;
3. verificação das relações entre a forma e a construção temática, a partir dos recursos
linguísticos utilizados para a produção dos sentidos, e de como eles refletem as principais
características do estilo literário em questão.
A lírica amorosa
Quem nunca se emocionou ouvindo uma canção de amor? Ou então se pegou torcendo para
os protagonistas da novela ficarem juntos no final? De fato, a temática amorosa está por toda
parte: nas músicas, nos filmes, nos livros, nas peças de teatro, e assim por diante. Não seria
exagero afirmar que esse é o assunto mais recorrente em toda a história das artes. Com a
poesia não é diferente.
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Gregório de Matos
__texto 1
Prazer e pesar
(MATOS, 2013)
Como estudamos na Unidade 1, o homem barroco é marcado pela dúvida existencial entre o
divino e o humano, pelo sofrimento ligado à fé e à religiosidade em confronto com os prazeres
da vida mundana. Esse embate de opostos se traduz na angústia do eu poético entre devotar-se
inteiramente a Deus ou experimentar os amores carnais, isto é, tem lugar um conflito amor
espiritual x amor corporal.
No poema de Gregório de Matos, observamos a forma poética do soneto, composto por quatro
estrofes – dois quartetos e dois tercetos – e apresentando uma “chave de ouro” na conclusão, que
sintetiza a ideia principal. Todos os versos têm dez sílabas métricas (ou seja, são decassílabos):
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O conectivo “e”, presente já no título – “Prazer e pesar” –, marca a união dos campos semânticos
que, conforme vamos observar, geram sentimentos contraditórios. Aqui, Gregório usa com
primor esse modelo de construção, criando movimentos temáticos que se unem e se apartam
continuamente, produzindo um confronto dinâmico. Distinguimos três grandes movimentos
do poema:
1. corresponde à 1ª estrofe e constata a ligação existente entre prazer e pesar, por meio
do Amor. Destacam-se a alternância nos dois primeiros versos – “prazer e pesar/ pesar e
prazer” – e a presença de palavras que expressam união: “irmanados” (v. 1), “unidos”
(v. 3), “vinculados” (v. 4). No entanto, o termo “divididos” (v. 2) introduz a problemática, pois
indica a desarmonia entre os sentimentos;
A conclusão, na última estrofe, mostra que, mesmo após reconhecer os problemas do amor
terreno, o sujeito ainda não se convence de abandoná-lo e dedicar-se apenas ao amor divino.
Por isso, ele prefere entregar seu destino à Fortuna (sorte), suplicando por um prazer que não
traga tanta dor (dois pesares), tampouco só ocorra após a morte, uma vez que a palavra
“Prazeres” possivelmente remete ao cemitério dos Prazeres, localizado em Lisboa, Portugal.
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Lira II
(GONZAGA, 20--)
Os conflitos que atormentavam o homem barroco serão resolvidos pelo homem árcade por
meio de uma volta aos referenciais greco-latinos. Podemos perceber essa mudança de direção
já pelo título do poema de Tomás Antonio Gonzaga. A lira era um instrumento musical, de cor-
das, muito comum na Antiguidade grega, tendo sua invenção atribuída ao deus Hermes. Com
isso, o autor recupera a tradição clássica da poesia, associando-a à música.
Os versos são heptassílabos (contêm sete sílabas poéticas). Essa metrificação também é cha-
mada de redondilha maior (a menor é o verso com cinco sílabas) e é muito comum nas cantigas
de roda e canções medievais portuguesas. Vejamos:
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A forma da redondilha se aproxima do nosso falar cotidiano, o que contribui para outra carac-
terística importante da estética árcade: a simplicidade. Os poetas dessa escola recusavam o
ornamentalismo barroco em prol de uma linguagem direta e simples. Isso se relaciona à valo-
rização da vida campestre, longe do tumulto da cidade. Assim, forma e conteúdo se encontram
para produzir um efeito de arte singela, agradável.
Há ainda que se comentar o esquema de rimas. Aqui, há um padrão que se mantém por todo o
poema: ABACDEEC. As letras que não se repetem indicam versos brancos e sua presença também
faz parte da valorização da poesia clássica, que não rimava.
Passando ao conteúdo, vemos que o poema constrói um retrato. Não à toa, a primeira palavra
é “pintam”. Esse é mais um aspecto do Arcadismo que remete à poesia greco-latina: fazer com
que o poema pareça uma pintura, daí a abundância de descrições. Mas o que é descrito, pintado,
nessa lira? O Amor. Com efeito, o eu poético, que se dirige a sua amada, Marília, conta primeiro
como o Amor é representado na arte, para depois oferecer a sua versão. A primeira estrofe é
justamente a descrição que se costuma fazer do Cupido, deus romano do amor. Repare nas
expressões que contribuem para formarmos uma imagem desse deus: “menino vendado”,
“aljava de setas”, “arco empunhado na mão”, “asas nos ombros”, “corpo despido”.
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155
No entanto, o sujeito poético discorda dessa imagem, e a segunda estrofe começa com
“porém”, conectivo que denota oposição. Nela, os versos “Ora pois, eu vou formar-lhe/ Um
retrato mais perfeito” indicam exatamente o que será feito em seguida: as estrofes posteriores
são permeadas de descrições que formam a “verdadeira” imagem do Amor. Vejamos algumas
passagens que constroem esse retrato: “compridos cabelos”, “o branco do rosto”, “redonda e
lisa testa”, “arqueadas sobrancelhas”, “voz meiga”. Além disso, há comparações entre sua face
corada e rosas, os lábios e rubis, os dentes e marfim. Na parte final do poema, o sujeito conta
como foi “ferido” por esse Amor, narrando as ocasiões em que o encontrou.
A última estrofe surge com uma revelação: o retrato de Amor que o poeta “pintou” é o da
própria Marília. Os poetas antigos descreviam o Amor como um menino de asas e com flechas
porque não o conheciam verdadeiramente. Já o sujeito poético, por ter se apaixonado por
Marília, não precisa recorrer à imagem de um deus, pois o Amor está ali, diante dele.
Dessa forma, percebemos que o amor árcade é harmônico, singelo, agradável. Não há cons-
ciência pesada nesse eu poético: ele sabe que viver o amor é estar em companhia da pessoa
amada. No entanto, também é importante ressaltar que os impulsos do desejo são postos de
lado. Não há uma vivência corporal desse amor, ele se resume a um “estar junto”. É o que
vemos nos versos: “Pego em teus dedos nevados,/ E querendo dar-lhe um beijo,/ Cobriu-se
todo de pejo,/ E fugiu-me com a mão”. Aqui o poeta mostra que, quando ele procurou se
aproximar fisicamente da mulher amada, o que é indicado pela palavra “beijo”, ela recusou e
escapou ao contato, como demonstra a palavra “pejo”, que significa vergonha, pudor.
Em resumo, o Arcadismo valoriza um amor recatado, sem emoções avassaladoras nem dilemas
profundos. Isso está em acordo com seus princípios estéticos de vida campestre, a ideia de
“aproveitar o dia”, a fuga da cidade e os referenciais clássicos.
Álvares de Azevedo
__texto 3
Por mim?
(AZEVEDO, 2020)
Neste momento, chegamos aos suspiros do Romantismo de meados do século XIX. Estamos
diante de um período conhecido como mal do século, que marcou a 2ª geração romântica:
eram poetas desencantados com a vida, que faziam surgir delírios e visões fantasmagóricas
em seus textos. Em contraste com os ideais árcades, os românticos são atravessados por
emoções violentas, quase sempre relacionadas à impossibilidade de concretizar o amor.
Por aí já notamos uma diferença significativa em relação ao amor árcade, e mesmo ao amor
barroco. No Romantismo, o sentimento amoroso tende a ser unilateral, o eu poético necessita
expressar o seu amor, independentemente de ele ser correspondido ou não. Como o amor
verdadeiro não consegue ser realizado nesta vida, o poeta quase sempre se encontra em
estado de sofrimento. É nesse embate entre uma paixão avassaladora e a impossibilidade de
concretizá-la que o sujeito poético se despedaça, recorrendo a modos de fugir da realidade,
como o sonho, o delírio, o álcool e até mesmo o suicídio.
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2. na 3ª estrofe – quebra dessa expectativa, realizada exatamente nos dois últimos versos,
como uma surpresa. Vemos a desesperança e o engano do eu poético por não ter seu amor
correspondido.
Repare na diferença entre os retratos da mulher amada: “E seus olhos são uns sóis” (“Lira II”);
“Teus negros olhos uma vez fitando/ Senti que luz mais branda os acendia” (“Por mim?”). No
primeiro, os olhos são comparados a sóis, uma luz intensa que clareia tudo. No segundo, eles
são negros, iluminados por uma luz fraca, branda. O Arcadismo valoriza o dia, ao passo que
o Romantismo prefere a noite. Nessa estética, a personagem feminina é sempre associada a
alguma figura etérea, às vezes quase incorpórea – aqui, no caso, a um anjo (serafim).
Olavo Bilac
__texto 4
(BILAC, 2013)
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“corpo”, “boca”, “beijo”, “terra”. As palavras “coração” e “terra”, apesar de serem usadas
no sentido metafórico, suscitam imagens bastante palpáveis: o coração como órgão e a terra
como chão.
Já a segunda é marcada pelo manifesto do amor físico. É o desejo que se faz presente, desejo
de “Ter nos braços teu corpo delicado/ Ter na boca a doçura de teu beijo”. No entanto, essa
paixão é vista de modo negativo, como um tipo de amor menor, mais rude, baixo. É a visão
compartilhada tanto por árcades, que rejeitam os desejos intensos, quanto por românticos,
que só acreditam no verdadeiro amor espiritual.
O que o poema de Olavo Bilac faz, então, é uma defesa desse amor “baixo”, mostrando que é um
engano crer que se pode amar sem desejar. Daí os versos: “E as justas ambições que me conso-
mem/ Não me envergonham”, isto é, o eu poético admite seu amor físico e ainda argumenta que
é melhor amar alguém fisicamente do que ficar idealizando um amor que nunca se concretiza
(“pois maior baixeza/ Não há que a terra pelo céu trocar”). Podemos ler, nesses versos, uma crí-
tica à noção de amor valorizada pelos românticos. O eu lírico ainda alega que esse amor físico,
“baixo”, é o que verdadeiramente engrandece o homem, invertendo uma tradição que vinha des-
de a Antiguidade, em que o amor espiritual era visto como a meta a ser alcançada.
Assim, em um poema formalmente rígido, repleto de convenções e regras, Olavo Bilac, seguindo
a estética parnasiana, mostra a valorização do amor terreno, em claro contraste ao que vimos
nos amores barroco, árcade e romântico.
160
Alphonsus de Guimaraens
__texto 5
(GUIMARAENS, 2013)
Vamos agora acompanhar as vozes misteriosas do Simbolismo. Essa escola conferia aos textos
maior liberdade composicional. O poema mostrado, por exemplo, parece assemelhar-se a um
diálogo ou a um desabafo, haja vista a presença de travessões no início dos versos ímpares.
São três estrofes de quatro versos cada, sendo que não há um ritmo regular, pois observamos
diferentes métricas, talvez para acompanhar as diferentes mudanças da vida em relação ao
sentimento amoroso.
No que se refere às rimas, observamos o mesmo padrão nas três estrofes – rimas alternadas:
ABAB. Elas reforçam a ideia de alternância e transformação dos sentimentos relacionados às
experiências da vida humana, marcada pelo ciclo biológico nascer/crescer/envelhecer/morrer.
Dessa forma, o amor simbolista procura se dirigir “diretamente” ao próprio amor. Não há a
presença de uma pessoa amada a quem se referir, nem dilema entre corpo e espírito. Na
verdade, o Simbolismo reconhece que o único amor possível é o do espírito. Lembremos que,
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para os simbolistas, o corpo é uma espécie de fardo, de prisão da alma. Portanto, o amor físico
não pode ser eterno, uma vez que é ligado à matéria perecível e está em constante mudança.
1. “coração implume” (v. 2), “primeiras rosas” (v. 3), “primeiros beijos” (v. 4) – trata-se
do início do amor, em que tudo é novo e cheio de vida. Repare, inclusive, na sinestesia
olfato-paladar, no verso: “E os primeiros beijos como têm perfume!”;
2. “prantos de abandono” (v. 5), “coração que morre” (v. 6), “folhas tombam quando vem
o outono” (v. 7) – o amor não é só a alegria do começo, é também marcado por angústia e
tristeza, podendo perecer e acabar;
3. “noites inteiras de agonia” (v. 9-10) e letargia, “tristeza das rosas derradeiras” (v. 11), “os
últimos beijos são amargos” (v. 12) – por fim, como parte da vida humana, o amor também
morre, mesmo contra a nossa vontade.
Contudo, como é comum na poesia – e o Simbolismo leva isso ao extremo –, há diferentes in-
terpretações para essas “vozes misteriosas” do amor. Destacamos três leituras possíveis para
a ideia de inconstância desse sentimento:
1. os romances têm natureza volúvel. Amamos quem não nos ama e vice-versa, assim como
podemos amar uma pessoa durante um tempo e o sentimento esmorecer aos poucos;
3. a vida humana pode ser vista como a passagem pelos diversos amores: o materno, o
fraterno, a amizade, a paixão. Todos os tipos de amor são carregados de incertezas e
expectativas. Há sempre o risco de perder a pessoa amada.
Auxiliam também na composição desse cenário ambíguo o uso de travessões, reticências, pontos
de exclamação. As reticências contribuem para a sensação de fugacidade, de indeterminação.
Oswald de Andrade
__texto 6
(ANDRADE, 2017)
No século XX, o Modernismo surge como um terremoto, abalando todas as estruturas artísticas
de então. Os valores estéticos são questionados e subvertidos, as formas tradicionais, abando-
nadas ou revistas, nada fica como estava. As diversas vanguardas experimentam novos meios de
pintar, escrever, atuar. Nesse turbilhão de acontecimentos, o tema do amor não estaria a salvo.
É assim que, nesse poema de Oswald de Andrade, o amor aparece no título acompanhado da
expressão “poesia futurista”. Com isso, o poeta deixa claro que não se trata do amor tradicional-
mente entendido, mas daquele que é possível nos tempos modernos. Inclusive, a dedicatória a
uma suposta “Dona Branca Clara” parece brincar com as descrições românticas da mulher ama-
da, sempre branca, de pele tão clara que parece um fantasma. Dessa forma, como seria o amor
num mundo cheio de fábricas, de cidades atulhadas, de guerras mundiais, de automóveis?
A resposta de Oswald de Andrade é: não existe amor puro. Isso porque a própria forma do poema
não é “pura”: observe que ele não traz uma estrutura poética tradicional, como um soneto,
com estrofes, metrificação e rimas. É, na verdade, um poema em forma de receita culinária. Os
verbos, que iniciam quase todos os versos, estão no modo imperativo: “Tome-se”, “Acrescente-se”,
“Adicione-se”, “Deite-se”, “Coloque-se”, “Agite-se”, “dê”. Entretanto, os ingredientes não são
gêneros alimentícios, mas, sim, “beijocas”, “Desejo”, “Ciúme”, “Melancolia”. Há apenas uma
exceção: “dois ovos”, o que torna o poema ainda mais irônico. Se, até esse verso, pensávamos
estar diante de uma “receita para amar”, a súbita aparição dos ovos é uma surpresa que
subverte nossa leitura.
É na chave do humor que Oswald de Andrade vai abordar a temática amorosa. Com as quebras
de paradigmas do Modernismo, não faz sentido tratar o amor com a mesma solenidade de
antes. Nessa linha, podemos entender o conteúdo do poema como o amor sendo uma receita
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que não gera nada. Vários elementos entram na mistura: o desejo, o ciúme, a melancolia, a
fatalidade, mas não é possível saber no que ela vai dar. E aí o desfecho do poema é altamente
significativo. Os versos “E dê de duas em duas horas marcadas/ No relógio de um ponteiro só!”
transitam da receita culinária para a receita médica e apresentam uma metáfora bastante
engenhosa. Ora, o que seria um “relógio de um ponteiro só”? Podemos interpretar como o
próprio coração humano, uma vez que ele marca o tempo, mas sem diferenciar segundos,
minutos e horas. Dessa forma, a recomendação “dê de duas em duas horas marcadas” assume
um sentido quase absurdo, pois como se marcam horas nesse relógio? É justamente esse
absurdo que o poema realça para descrever o amor.
Em resumo, o amor modernista é marcado pela ironia, pelo absurdo, pelo questionamento.
Aqui, mais do que falar sobre uma relação amorosa ou sobre a ideia de amor, o importante é
oferecer uma nova abordagem a esse tema tão recorrente na poesia.
Os períodos literários
Você deve ter percebido, ao longo da leitura dos poemas, que cada estilo de época valoriza
aspectos contrários aos de seu antecessor. De fato, quando olhamos em retrospectiva, perce-
bemos que as escolas literárias se sucedem por oposição, o que poderíamos entender, inicial-
mente, como um comportamento cíclico do pensamento artístico.
Entretanto, é só na aparência que a sucessão dos períodos literários é cíclica, porque vemos
que, com o avanço do tempo, os estilos posteriores não repetem simplesmente o que veio
antes, mas acrescentam a isso suas próprias características e ideias. Apesar de Arcadismo e
Parnasianismo, por exemplo, valorizarem a cultura greco-latina, as duas escolas diferem entre
si em outros pontos. Basta vermos os poemas analisados nesta unidade.
Com efeito, o que a leitura em sequência desses poemas revela é como, na literatura, a forma
se torna mais importante que o conteúdo. Ou seja, o tema pode ser o mesmo, mas as maneiras
de abordá-lo é que serão diferentes. Isso reflete, em grande medida, a cultura de cada época,
englobando aspectos sociais, históricos e estéticos. Por outro lado, precisamos ter em mente
164
Resumo
Nesta unidade, fizemos uma viagem através das principais escolas literárias, tomando como
fio condutor a temática amorosa. O objetivo foi mostrar como cada estilo trabalha esse tema,
realçando seus aspectos principais.
Dessa forma, vimos que o Barroco transporta seu dilema entre a busca religiosa e a vivência
mundana para a experiência do amor, com o sujeito poético reconhecendo que o amor humano
é inconstante e cercado de perigos, mas ainda assim desejando experimentá-lo.
O Arcadismo leva o amor para o campo, procurando uma vivência tranquila e pastoril. Assim,
a relação entre o sujeito poético e a mulher amada é de proximidade, mas sem excesso de
sentimentos. O importante é viver a vida calmamente.
O Romantismo, por sua vez, é marcado por uma vida amorosa atribulada. Seu grande problema
é a impossibilidade da concretização do amor na vida terrena. Para os românticos, amar é o
mesmo que sofrer.
O Parnasianismo, com sua ideia de perfeição formal e inspiração greco-latina, almeja vivenciar
o amor humano, físico, carnal. É através da experiência corporal do amor que o ser humano
se engrandece.
Por fim, o Modernismo tem por objetivo quebrar os paradigmas anteriores, buscando o amor
possível num mundo que atravessa mudanças radicais. Por isso, seu amor é irônico, bem-
-humorado, inventivo e desafiador.
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Atividade
Leia, a seguir, os poemas “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo, e “amor”, de Oswald de
Andrade, e responda: como esses textos abordam a temática amorosa dentro dos respectivos
projetos estéticos do Romantismo e do Modernismo? Quais as suas diferenças e semelhanças?
__texto 7
Namoro a cavalo
Alugo (três mil réis) por uma tarde Mas eis que no passar pelo sobrado
Um cavalo de trote (que esparrela!) Onde habita nas lojas minha bela
Só para erguer meus olhos suspirando Por ver-me tão lodoso ela irritada
À minha namorada na janela… Bateu-me sobre as ventas a janela…
(AZEVEDO, 20--)
166
__texto 8
amor
humor
(ANDRADE, 1974. p. 157)
Resposta comentada
O poema de Álvares de Azevedo é composto de dez estrofes com quatro versos cada. Todos
eles são decassílabos, com esquema rímico distribuído entre o segundo e o quarto versos,
sendo os restantes brancos.
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Percebemos, no poema, a presença de vários tópicos caros à estética romântica: uma estrutura
formal que segue determinadas regras (a metrificação) e inova em outras (a rima), o desenga-
no amoroso, a expressão dos sentimentos e emoções do sujeito poético. Há, ainda, referência
à tradição literária, com a moça sendo comparada a Dulcineia, personagem do romance O
engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, e o próprio eu poético
se comparando a Dom Quixote.
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No entanto, o que chama a atenção nesse poema é o fato de ele ser uma caricatura das histó-
rias românticas: o jovem apaixonado que anda a cavalo e leva flores e versos, a moça que fica
à janela esperando o namorado chegar, a necessidade de superar obstáculos para encontrar
a pessoa amada (nesse caso, vencer a distância entre Catumbi e Catete). Em vez de seguir o
padrão dessas histórias, o poema produz uma cena cômica, um rapaz enlameado que leva um
fora e ainda cai do cavalo.
Diante da contração máxima do poema, uma única palavra de duas sílabas, percebemos as
aproximações formais entre ele e o título. Afinal, "amor" e "humor" rimam, e a diferença entre
as palavras é de apenas duas letras. Como o "h", em início de palavra, não é pronunciado no
português, na fala essa diferença é ainda menor: apenas uma vogal. Assim, o poeta sugere uma
equivalência inusitada: amor = humor. Se atentarmos bem, há uma ambiguidade interessante
nessa associação, pois humor pode ser entendido como bom humor ou mau humor. Retirando
o adjetivo que indica a positividade ou negatividade do termo, o poema revela que o amor é
tão variável quanto o humor: um dia está bom, outro dia está mau, e assim por diante.
Portanto, esse poema é altamente subversivo, tanto na forma quanto no conteúdo, seguindo
de perto a tendência modernista de questionar e desafiar as convenções literárias da época.
Quando comparamos os dois poemas, notamos que eles compartilham não só a temática
amorosa, como também o tratamento dessa temática. São textos cômicos, irreverentes, irônicos,
que quebram a expectativa do leitor. No caso de Álvares de Azevedo, essa quebra é mais
surpreendente ainda, pois ele viveu no auge do Romantismo brasileiro, em que os valores
dessa estética eram a tendência dominante. Em “Namoro a cavalo”, o poeta se distancia
desses valores para rir deles, o que não deixa de ser uma autoironia, considerando que se trata
do mesmo autor de “Por mim?”. Já Oswald de Andrade se mostra plenamente consciente das
mudanças de seu tempo, um período que atravessa várias quebras de paradigmas. Esse poema,
tão extremamente conciso, revela uma grande inovação formal, que marca de modo decisivo
o nosso Modernismo.
Aliás, é na forma que os poemas mais se diferenciam. Apesar de seu tom irônico e de apre-
sentar uma estrutura menos comum, “Namoro a cavalo” ainda segue os padrões da época, em
especial no que toca a métrica. Vimos que o decassílabo era uma medida largamente utilizada
pelos poetas brasileiros, principalmente nos sonetos. Já “amor” subverte duplamente a
estrutura formal: é um poema de uma palavra só, mas que rima com o título e, juntos, apresen-
tam uma “métrica regular”, já que “amor” e “humor” são, ambos, díssilabos. Assim, ao mesmo
tempo que quebra os paradigmas poéticos, ele parece acenar para a tradição literária, repleta
de convenções e regras formais.
168
Por fim, os dois poemas servem para verificarmos que as diferenças entre os estilos literários
não são rígidas. É possível encontrarmos pontos de contato e de divergência quando comparamos
as produções de diferentes épocas. Por sinal, é dessa maneira que percebemos as transforma-
ções estéticas ao longo do tempo. Nada muda do dia para a noite, e certas abordagens que são
raras em um período podem se tornar tendência em outro.
Referências
ANDRADE, Oswald de. amor. In: ANDRADE, Oswald de. Obras completas: poesia reunida. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. p. 157.
ANDRADE, Oswald de. O amor – poesia futurista. Marcos Alvito, 5 maio 2017. Disponível em:
http://marcosalvito.blogspot.com/2017/05/poema-de-hoje-238-semana-oswald-de.html.
Acesso em: 25 abr. 2022.
AZEVEDO, Álvares de. Namoro a cavalo. Escritas.org. 20--. Disponível em: https://www.escritas.
org/pt/t/12191/namoro-a-cavalo. Acesso em: 26 abr. 2022.
AZEVEDO, Álvares de. Por mim?. Poetisarte. 2020. Disponível em: https://poetisarte.com/autores/
alvares-de-azevedo/por-mim/. Acesso em: 25 abr. 2022.
BILAC, Olavo. Ao coração que sofre. Luso-poemas. 20 mar. 2013. Disponível em: https://www.
luso-poemas.net/modules/news03/article.php?storyid=1895. Acesso em: 25 abr. 2022.
GONZAGA, Tomás Antonio. Lira II. In: GONZAGA, Tomás Antonio. Marilia de Dirceu. FUNDAÇÃO
BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro, 20--. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/bn000036.pdf. Acesso em: 25 abr. 2022.
GUIMARAENS, Alphonsus de. O amor tem vozes misteriosas…. Portal Travessias, 8 dez. 2013.
Disponível em: https://astravessias.org/blog/o-amor-tem-vozes-misteriosas-alphonsus-de-
guimaraens/. Acesso em: 25 abr. 2022.
MATOS, Gregório de. Prazer e pesar. Portal Travessias, 8 dez. 2013. Disponível em: https://
astravessias.org/blog/prazer-e-pesar-gregorio-de-matos/. Acesso em: 18 mar. 2022.
língua portuguesa_unidade 09
Práticas de leitura: da
10
organização fundamental
à superfície do texto –
textos literários
metas
Interpretar e analisar textos literários em prosa e em verso.
objetivos
Esperamos que, ao final desta unidade, você seja capaz de:
• reconhecer o gênero e o tipo textual, assim como o tema central de textos literários
como etapa preliminar da atividade de interpretação;
Introdução
Nesta unidade, você praticará a competência de leitura. Para isso, serão desenvolvidos estudos
de dois textos literários, um em prosa e um em verso. Em cada caso, a estrutura será a mesma:
na parte 1, será apresentado o texto a ser interpretado e, na parte 2, desenvolveremos a leitura
e a análise do texto.
Nesta seção, será promovida uma primeira aproximação entre o leitor e o texto. Trata-se do
momento inicial da atividade de leitura, quando serão observados aspectos como tipo textual,
gênero textual, tema central, entre outros.
Já nesta, saindo do plano mais geral para o nível do detalhe, observaremos os elementos gra-
maticais, estilísticos e textuais responsáveis por produzir os sentidos do texto.
O texto
__texto 1
Mysterium
Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais
fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende
do tempo e do acaso.
Eclesiastes
língua portuguesa_unidade 10
171
Ao tempo e ao acaso eu acrescento o grão de imprevisto. E o grão da loucura, a razoável loucura que é
infinita na nossa finitude. Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos,
trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação.
Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas
respostas, acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a realidade com o imaginário,
faço ficção em cima de ficção, ah! Tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta
do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, quer a
luz da razão.
Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel trans-
parente, me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na
busca das descobertas, “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa. Preciso agora atravessar o
cipoal dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus!
Os indevassáveis signos e símbolos. Ainda assim, avanço em meio da névoa, quero ser clara em meio
desse claro que de repente ficou escuro, estou perdida?
Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antonio
Candido) onde aprendi que num texto literário há sempre três elementos: a ideia, o enredo e a
personagem. A personagem, que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única
ou se repetir, tive uma personagem que recorreu à máscara para não ser descoberta, quis voltar num
outro texto e usou disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade.
Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a ideia é representada
por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega
naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos.
Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! Prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco.
O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida, consegui fazê-lo sorrir? Acho que
sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as persona-
gens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A
uma condenação. E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, ah!
Odiosa essa fatalidade dos seres humanos (inventados ou não) caminhando para o bem e para o mal.
Sem mistura.
Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltar às divagações
iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado. Desem-
brulhando esse próximo, também vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obum-
brar novamente nesta viragem-voragem do ofício.
TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
O texto é uma espécie de relato de uma situação anterior, na qual a enunciadora – que se
apresenta como escritora – conversou com uma plateia formada por leitores. Ao longo dessa
conversa, ela vai sendo provocada pelo público a explicar o funcionamento de seu processo
172
Embora o tema não seja informado de maneira direta, é possível identificá-lo no decorrer da
leitura. A primeira pista aparece logo no primeiro parágrafo, quando a enunciadora faz uma
comparação entre sua vida e sua obra. Na sequência, no segundo parágrafo, ela afirma que “os
leitores pedem explicações”. Até esse momento, ainda não sabemos exatamente sobre o quê.
Sobre a vida da escritora? Sobre sua obra? Sobre a relação entre as duas coisas?
A dúvida se desfaz por completo no terceiro parágrafo, com o seguinte fragmento: “É tamanha
a minha perplexidade diante do processo criador”. Está explicado: a curiosidade dos leitores
e as explicações que eles pedem dizem respeito ao “processo criador” da enunciadora. Isso
fica evidente no início do quarto parágrafo, quando ela reproduz algumas das perguntas feitas
pelos tais leitores curiosos: “Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance?”.
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173
Temos, portanto, uma escritora que vê o processo criativo como algo misterioso, inexplicável,
e leitores que anseiam por esclarecimentos e explicações racionais. Diante desses leitores
impertinentes, a escritora poderia simplesmente responder que não sabe explicar, ou mesmo
que não existe explicação – e ponto final. Mas não é isso que ela faz. Na tentativa de satisfazer
seu público, ela faz um esforço para entender racionalmente seu próprio processo criativo, a
fim de traduzi-lo e explicá-lo para o leitor.
É disso, fundamentalmente, que trata o texto “Mysterium”. No fundo, o que ele nos mostra é a
tentativa de uma escritora de compreender e explicar racionalmente o fenômeno da criação
literária. Desde o início, a enunciadora admite que não tem essa compreensão. Entretanto, se
propõe a tentar alcançá-la.
Vamos, agora, observar um pouco mais detidamente cada uma dessas partes. Nos parágrafos
de 1 a 3, vemos o reconhecimento da impossibilidade de explicar a criação literária. Nesse
momento, a enunciadora apresenta sua visão sobre o processo de criação: para ela, trata-se de
um mistério, ou seja, de algo sem explicação. Essas ideias dão a tônica dos três primeiros
parágrafos. No primeiro: “mas tudo sem explicação, não tem explicação”. No segundo: “começo
a misturar realidade com imaginário, faço ficção em cima de ficção”; “mas agora ele está pedindo
lucidez”. Já no terceiro: “E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! Os
indevassáveis signos e símbolos”.
A resposta é não. Para perceber isso, note, primeiramente, que duas das explicações apresen-
tadas são contraditórias entre si. No quarto parágrafo, faz-se referência à personagem de uma
obra que reapareceu disfarçada em outro texto. Com isso, ilumina-se um aspecto importante
do processo de criação literária: a relativa autonomia dos personagens em relação à vontade
do criador. Afinal, se uma personagem aparece numa história por conta própria e ainda se dá
o luxo de usar uma máscara para enganar o autor, é porque, em alguma medida, ela tem “vida
própria”. Note que a comparação com os seres humanos reforça essa ideia de autonomia:
“assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade”. No entanto, logo no pará-
grafo seguinte, o personagem é comparado a um inseto que não tem possibilidade de decidir
174
sobre seu próprio destino; pelo contrário, ele se submete passivamente à ideia que estrutura
e move a narrativa (e que é representada pela aranha).
Ora, qualquer um que tivesse chegado a uma explicação clara e racional para o fenômeno da
criação literária teria elaborado uma teoria consistente e livre de contradições. A presença de
explicações contraditórias mostra que a enunciadora está tateando o caminho, tentando
compreender o fenômeno, mas ainda não obteve uma explicação sólida, completa e satisfa-
tória. Isso fica claro quando, no sexto parágrafo, ela é contestada por um “leitor desconfiado”,
que aponta um problema em sua explicação.
Tal contestação conduz ao desfecho, no sétimo parágrafo, quando a enunciadora sente – para
falar em português claro – que “se enrolou”. Em suas próprias palavras: “Começo a me sentir
prisioneira dos próprios fios que fui inventar”. E resolve, então, “jogar a toalha”, ou seja, admite
seu fracasso e desiste de encontrar uma explicação racional definitiva para a criação literária:
“melhor voltar às divagações iniciais”.
Em suma, podemos dividir o texto, esquematicamente, em três partes estruturais. Essa divisão
está sintetizada no quadro a seguir.
PARTE
PARÁGRAFO(S) SÍNTESE EXPLICAÇÃO
ESTRUTURAL
Recursos linguísticos
Como vimos, o texto “Mysterium” mostra uma escritora que não compreende seu processo
criativo esforçando-se para racionalizá-lo e entendê-lo. Trata-se, portanto, da tentativa de sair
de um estado de perplexidade/ignorância e alcançar uma compreensão racional.
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175
Para falar sobre essa tentativa, a enunciadora usa uma metáfora. Nela, tanto a ignorância
quanto a compreensão racional são representadas como lugares. Assim, na metáfora, aban-
donar a situação de desconhecimento e compreender como se dá a criação literária equivale
a sair de um lugar para entrar em outro. Nesse sentido, o processo de descoberta (que, como
vimos, acaba fracassando) é representado metaforicamente como uma travessia.
// atenção
Metáfora geral
Passar da ignorância para a compreensão (sobre o processo criativo) equivale a sair de um lugar
e entrar em outro.
Verbos Substantivos
atravessar cipoal
avanço névoa
É interessante notar que são criadas ainda outras analogias para expressar o estado de con-
fusão e ignorância em relação à dinâmica da criação literária. No início do terceiro parágrafo, a
enunciadora se compara a um caramelo embrulhado em papel transparente. A imagem traduz a
ideia de que ela está confusa ou enredada em meio a tantos conceitos e explicações teóricas.
Uma imagem muito semelhante, aliás, aparece no último parágrafo: “começo a me sentir pri-
sioneira dos próprios fios que fui inventar”. Há, porém, uma pequena diferença entre os dois
casos. No primeiro, como é usado o conectivo “feito”, tem-se a figura de linguagem conhecida
como comparação. Já no segundo, como não aparece nenhum conectivo, tem-se, propriamen-
te, uma metáfora.
“Névoa”, “cipoal”, “caramelo embrulhado”, “prisioneira dos próprios fios”. Todas essas analo-
gias (três metáforas e uma comparação) mostram o estado de confusão mental da enunciadora,
ou seja, sua dificuldade de compreender racionalmente o fenômeno da criação literária. Mas a
analogia não é o único meio para isso. Pelo menos quatro outros recursos contribuem para
176
Observe o final do primeiro parágrafo: “mas tudo sem explicação, não tem explicação”. Como
as duas frases justapostas são sinônimas, apenas uma delas seria necessária para passar a
mensagem. Se a intenção é meramente dar o recado, duplicar a informação é inteiramente
desnecessário. Por que, então, a autora optou por essa redundância?
Resposta: porque, nesse caso, repetir uma mesma ideia com outras palavras ajuda a passar a
sensação de que a enunciadora está confusa, perdida, desorientada. Às vezes, quando estamos
confusos, ficamos repetindo uma mesma coisa diversas vezes, sem conseguir articular um
pensamento claro. No primeiro parágrafo de “Mysterium”, é exatamente isso que acontece. Ao
repetir a mesma ideia em duas frases consecutivas, a enunciadora revela que não consegue
formular uma explicação clara e coerente – o que denuncia seu estado de confusão mental (em
outras palavras, mostra que ela ainda não conseguiu fazer a travessia metafórica da ignorância
para a compreensão racional).
Isso também fica evidente no último período do terceiro parágrafo. Aqui, a antítese se
manifesta pela aproximação das palavras “claro” e “escuro”. Ao exprimir a mudança brusca da
claridade para a escuridão, a antítese reforça a ideia de que a enunciadora está mentalmente
confusa, perdida, desorientada – ou seja, ainda não conseguiu passar da perplexidade/igno-
rância para uma situação de compreensão racional.
O quadro a seguir sintetiza alguns dos recursos linguísticos empregados para sinalizar a situação
de confusão, ignorância ou perplexidade da enunciadora.
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177
Como você já sabe, o quarto parágrafo inaugura a segunda parte estrutural do texto, quando a
enunciadora passa a tentar elucidar os mistérios da criação, procurando compreender racio-
nalmente seu processo criativo. Aqui, ela recorre a três recursos, a fim de iluminar ou esclare-
cer o funcionamento desse processo.
Em primeiro lugar, tenta explicar a criação literária a partir dos ensinamentos de uma “aula
distante”. Logo de saída, observe o seguinte: ao evocar, em seu texto, um texto anterior (no
caso, um texto oral, proferido em uma aula), a enunciadora lança mão do recurso conhecido
como intertextualidade. De acordo com a teoria que ela recorda, um texto literário apresenta
sempre três elementos: ideia, enredo e personagem. Note que, para dar mais credibilidade a
sua explicação, ela cita Antonio Candido, renomado estudioso da literatura brasileira. Ao fazer
isso, recorre a um argumento de autoridade.
Logo depois, ainda no quarto parágrafo, ela busca esclarecer sua dinâmica criativa recorrendo
à exemplificação: trata-se da referência à personagem que reaparece disfarçada em outra obra,
sobre a qual já comentamos na seção anterior.
Finalmente, a autora também emprega uma metáfora para tentar esclarecer o funcionamento de
seu processo criativo. Estamos falando da metáfora da teia de aranha, que aparece no quinto
parágrafo. Nela, há três elementos (teia, aranha e inseto), correspondentes aos três elementos
da “aula distante” de Antonio Candido (enredo, ideia e personagem, respectivamente).
O texto
__texto 2
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179
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1972.
Observe, ainda, que o eu poético é um narrador em primeira pessoa, ou seja, um narrador que
é também personagem da história narrada. Ao mesmo tempo, a narrativa é construída sob
a forma de diálogo, como se o narrador conversasse diretamente com sua amada. Quanto à
estrutura formal, de imediato observamos que o poema é composto de cinco estrofes de
tamanhos bastante próximos: entre sete e dez versos cada uma.
O tema central está indicado no título: o poema trata de uma relação amorosa “através das
idades”. Lendo o texto, vemos que a palavra “idades” não se refere, aqui, à passagem da vida
do ser humano, e sim à progressão do tempo histórico. Assim, cada uma das “idades” que os
personagens atravessam corresponde a um momento histórico distinto.
O passado engloba diferentes épocas, referidas em ordem cronológica, bem como diferentes
espaços: Grécia Antiga (“eu era grego, você troiana”); Império Romano (“Virei soldado romano/
Perseguidor de cristãos”); invasão árabe na Península Ibérica, que ocorre no século VIII
(“Depois fui pirata mouro”); e monarquia absolutista na França, estendendo-se até o momento em
que estoura a Revolução Francesa – “Depois (tempos mais amenos)/ Fui cortesão de Versailles”.
O presente, por sua vez, corresponde à última encarnação do eu poético e ao momento de
180
enunciação do texto. Podemos, com facilidade, situá-lo no século XX (como mostra a referência
à Paramount, estúdio norte-americano de cinema).
A essa oposição entre passado e presente, corresponde uma outra, que pode ser formulada
assim: possibilidade x impossibilidade de concretização do amor. No passado, o amor jamais se
concretiza. No primeiro caso (Grécia Antiga), o eu lírico, que é grego, morre em uma luta contra
o irmão da interlocutora, que é de família troiana. No segundo caso (Império Romano), ele
procura salvá-la, mas ambos são mortos por um leão (pode-se ver aqui uma retomada, pelo
avesso, do episódio bíblico em que o profeta Daniel é salvo da cova dos leões). Já no terceiro
caso (invasão árabe), ele, muçulmano, tenta capturá-la, mas ela, que é cristã, suicida-se antes.
Finalmente, no último momento representativo do passado (absolutismo francês), o amor não
se concretiza porque ela decide ser freira – e, depois, ambos são mortos na guilhotina, em
consequência da tomada do poder pelos revolucionários.
Concretização do amor no
Parte 2 5
presente (final feliz).
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181
Recursos linguísticos
Em primeiro lugar, observe como a separação entre as duas partes estruturais (presente e
passado) é marcada gramaticalmente. Ela ocorre por meio de dois elementos: tempos verbais
e advérbios (ou locuções adverbiais) de tempo.
Da mesma forma, na primeira estrofe aparece a locução adverbial “desde tempos imemoriais”,
ajudando a contextualizar a narrativa no passado. Por outro lado, a quinta estrofe começa com
o advérbio “hoje”, marcando a passagem do passado para o presente.
No início de nossa análise, dissemos que o poema é construído como se fosse um diálogo, já
que o eu poético se dirige diretamente a sua amada, que atua, portanto, como interlocutora.
Isso fica marcado pela presença reiterada do pronome de tratamento “você” e do pronome
oblíquo de segunda pessoa “te”.
Resumo
Nesta unidade, apresentamos a análise de dois textos literários, seguindo três etapas: (i) primeiras
impressões, com uma visão panorâmica dos textos; (ii) identificação de sua organização e
macroestrutura, e (iii) identificação dos recursos linguísticos responsáveis pela construção dos
sentidos neles.
O primeiro texto foi uma crônica de Lygia Fagundes Telles que gira em torno do processo de
criação literária na qual ela se vê enredada em problemas concernentes à oposição mistério x
racionalidade. Já o segundo é um poema narrativo de Carlos Drummond de Andrade que tam-
bém trata de oposições – no caso, duas: não concretização x concretização do amor e passado
x presente.
É importante ter em mente que essas análises procuram trabalhar conhecimentos que foram
vistos ao longo do Volume 1 de nosso curso, tratando-se, pois, de aplicações práticas de
conceitos teóricos sobre o texto.
182
Atividade
Agora é sua vez de interpretar um texto literário! Leia com bastante atenção o texto a seguir e
procure analisá-lo segundo as três etapas que vimos: (i) primeiras impressões, (ii) organização
fundamental e macroestrutura, e (iii) recursos linguísticos.
__texto 3
Vizinho –
Quem fala aqui é o homem do 1.003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mos-
trou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua
própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que
estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não
o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito
ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1.003. Ou
melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1.003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o
senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas
de outros. Eu, 1.003, me limito a Leste pelo 1.005, a Oeste pelo 1.001, ao Sul pelo Oceano Atlântico,
ao Norte pelo 1.004, ao alto pelo 1.103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números
são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos
fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e
da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento
de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a
se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para
tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho,
está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda
outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e
prometo silêncio.
… Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à
porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”.
E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos
a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando
canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da
vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
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183
Resposta comentada
1 – Primeiras impressões
O texto de Rubem Braga é uma crônica, gênero textual em prosa que se caracteriza por tomar
como ponto de partida um fato cotidiano banal, para, a partir dele, desenvolver reflexões.
Nesse caso, o fato cotidiano é a reclamação que o “senhor 903” apresenta, inicialmente por
carta, ao “homem do 1.003”: “me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho
em meu apartamento”. A partir daí, a crônica se estrutura também sob a forma de carta (ou,
segundo o título, de recado), em resposta ao vizinho que havia se queixado.
A crônica “Recado ao senhor 903” reproduz o formato de uma carta, que teria sido enviada
como resposta à reclamação do vizinho de baixo. Logo de início, ainda no primeiro parágrafo,
o enunciador declara que dá toda a razão ao vizinho: “Devo dizer que estou desolado com tudo
isso, e lhe dou inteira razão”. A partir daí, segue afirmando que irá mudar seu comportamento,
que compreende a reclamação e que sabe da necessidade de respeitar o regulamento: “O re-
gulamento do prédio é explícito”; “Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje
em diante, um comportamento de manso lago azul”.
No entanto, depois de dar razão ao vizinho e de prometer mudanças, ele deixa claro que não
gostaria de ter que fazer isso. Na verdade, preferiria que tudo fosse diferente: que os vizinhos
tivessem mais proximidade e intimidade (de modo que não precisassem se comunicar por
cartas enviadas pelo zelador), e que pudessem celebrar, beber, comer e dançar juntos madru-
gada adentro, mesmo após o horário de silêncio.
É aqui que encontramos a oposição fundamental do texto. Vamos formulá-la assim: mundo
real x mundo imaginado. No mundo real, os vizinhos não têm qualquer intimidade: a distân-
cia é tanta que um não sabe sequer o nome do outro: “pois como não sei o seu nome nem o
senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números”. Também no mundo real, as leis e
regulamentos obrigam os moradores a manter o silêncio após um determinado horário (“O
regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a
Polícia”) e, quando isso não acontece, ocorrem queixas, conflitos, reclamações (“Recebi depois
a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal”).
184
A um mesmo tempo, o mundo real é caracterizado como um lugar chato, monótono, com muito
controle e muita disciplina – e nenhuma poesia ou imaginação.
Do ponto de vista da macroestrutura textual, a crônica apresenta duas partes estruturais bem
delimitadas. Nela, a oposição básica entre mundo real e mundo imaginado se manifesta da se-
guinte forma: o primeiro parágrafo corresponde ao mundo real (primeira parte), ao passo que
o segundo e o terceiro parágrafos se associam ao mundo imaginado (segunda parte).
3 – Recursos linguísticos
Já vimos que essa crônica reproduz o formato e a linguagem de uma carta endereçada a um
interlocutor específico – simulando, portanto, um efeito de conversa com ele. Esse efeito se ma-
nifesta gramaticalmente por meio de um pronome de tratamento (“senhor”) e de um pronome
possessivo que se refere à segunda pessoa do discurso (“sua própria visita pessoal”; “sua vee-
mente reclamação verbal”).
O mais interessante, porém, é observar o contraste entre o mundo real e o mundo imaginado.
Como você já viu, o mundo real é o mundo da disciplina, do rigor, da ordem, da Lei, da seriedade
e da frieza nas relações. Já o mundo imaginado está associado ao lirismo, à imaginação, à falta
de disciplina, à poesia e ao calor humano. Mas como essa oposição fica marcada textualmente?
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185
De imediato, observe o título da crônica: nele, o vizinho do enunciador é referido como “se-
nhor 903”. Trata-se, aqui, de uma metonímia: o nome do morador é substituído pelo número de
seu apartamento. Esse procedimento, inclusive, é mencionado de forma explícita no primeiro
parágrafo: “Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1.003 se agita; pois como não sei
o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números”. Note que, nesse
trecho, a metonímia dá origem a duas personificações (“903 dormir” e “1.003 se agita”). Ao tra-
tar o vizinho, metonimicamente, por um número, e não por seu nome (ou, melhor ainda, algum
apelido), o enunciador deixa marcada a falta de proximidade entre os dois.
A partir daí, o enunciador passa a mencionar uma série de números: 1.003, 1.005, 1.001, 1.004,
903. Logo adiante, a insistência nos algarismos se torna tão gritante que produz um efeito
cômico: 22:45, 903, 22, 7, 8:15, 783, 109, 527, 305 – absolutamente tudo vira número. É evidente
que isso não é apenas uma coincidência. Há uma razão para enfileirar tantos números, e a
razão é a seguinte: a repetição de números ajuda a enfatizar ou reforçar a ideia de uma vida
excessivamente regrada, disciplinada, ordenada, monótona e afetivamente fria – que são
exatamente os atributos que o enunciador quer associar ao mundo real.
Há, ainda, um outro recurso utilizado para caracterizar o mundo real como o lugar da discipli-
na e da monotonia: trata-se da metáfora. O enunciador usa duas metáforas para se referir a
si mesmo. Ao caracterizar seu comportamento antes da reclamação do vizinho, quando ainda
vivia segundo a lógica do mundo imaginado, ele se compara ao oceano. Isso fica claro nas
sentenças em que ele e o oceano são colocados em pé de igualdade (“apenas eu e o Oceano
Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agi-
tamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua”). Por outro lado, depois de prometer
se adaptar às regras do mundo real, ele compara seu comportamento futuro a um “manso lago
azul”. São, portanto, duas imagens metafóricas – oceano e manso lago azul – que marcam bem
o contraste entre o mundo imaginado lírico, rebelde e imprevisível, de um lado, e o mundo real
disciplinado, ordeiro e monótono, de outro.
Vale chamar a atenção, ainda, para outro elemento que marca a oposição entre as duas partes
estruturais do texto: o modo verbal. Note que, no primeiro parágrafo, há uma grande predomi-
nância do modo indicativo (sobretudo, do tempo presente). Isso é coerente com a intenção de
exprimir fatos reais, concretos – afinal, trata-se aqui do mundo real. Por outro lado, o segun-
do e o terceiro parágrafos lançam mão do modo subjuntivo, com formas verbais no pretérito
imperfeito (“batesse”, “respondesse”, “trouxesse”, “ficasse”). Isso não deve causar surpresa, já
que a intenção, nesse momento, é exprimir fatos hipotéticos ou imaginários – afinal de contas,
trata-se, precisamente, do mundo imaginado.
Por fim, é importante atentar para o léxico ou vocabulário associado a cada mundo. Obser-
ve que o vocabulário vinculado ao mundo real evoca as ideias de ordem, disciplina, frieza e
monotonia: “reclamação”, “regulamento”, “Lei”, “Polícia”, “horários civis”, “manso”, “repousar”,
“tolerável”. Por outro lado, o vocabulário vinculado ao mundo imaginado evoca as ideias de
rebeldia, poesia, afeto e alegria: “Oceano Atlântico”, “maré”, “ventos”, “lua”, “música”, “bailar”,
186
Em suma, vimos aqui uma série de recursos linguísticos que ajudam a marcar a forte oposição
entre mundo real e mundo imaginado na crônica: pontuação (uso das reticências, sinalizando
uma separação entre os dois mundos), emprego de conectivo com valor semântico de con-
traste (“Mas”), uso de metáforas contrastantes (“manso lago azul” x “oceano”), oposição entre
modos verbais (indicativo x subjuntivo) e léxico fortemente contrastante.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1972.
TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002.
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