6 - Personalidade - Estrutura e Conteúdo

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PERSONALIDADE: ESTRUTURA E CONTEÚDO

Vamos examinar agora como pode ser entendida a personalidade. Há


várias interpretações sobre isso. Uma é a visão da psicanálise que se baseia no
ego, superego e id. Talvez essa seja mais conhecida. Contudo, podemos
entender a personalidade de outra maneira, aquela vista sob o ângulo do eu atual
e do eu ideal. Essa parece mais adequada para se entender o funcionamento dos
mecanismos psíquicos, sua estrutura e seus conteúdos, e como esses
influenciam nossas decisões. Tal concepção que vamos descrever faz parte da
teoria da autotranscedência desenvolvida por Luigi Rulla, um pesquisador sério
e profundo conhecedor da alma humana. Ele, ao propor uma visão da
personalidade, apresenta dois aspectos que a compõem: um estrutural, outro de
conteúdo. A estrutura da personalidade rulliana se baseia nos seguintes
conceitos.

Estruturas da personalidade
O EU (ou pessoa): princípio unificador de todos os processos e funções
da personalidade; é o agente central que a unifica e a mantém em sua
integridade. Sou "eu" que faço isso e me responsabilizo. Esse eu se compõe de
duas estruturas básicas: um eu que podemos chamar de:

a) EU IDEAL: representa o que a pessoa deseja ser ou tornar-se. É o


mundo dos valores, das aspirações, dos desejos, do projetos e, às vezes, dos
sonhos e das ilusões. Ele tem duas subestruturas:
 Ideal pessoal: refere-se aos valores e projetos que a pessoa escolhe por
si mesma. É o que ela gostaria de ser ou fazer.
 Ideal institucional: é o ideal proposto por uma instituição
(expectativas, exigências...), mas visto sobretudo a partir da maneira
como é percebido e interpretado pela pessoa.

b) EU ATUAL: representa o que a pessoa é – saiba-o ou não –, com suas


necessidades e com seu modo de agir habitual (atitudes). Abrange três
componentes:
 Eu manifesto: é o conhecimento que a pessoa tem de si e de seus atos;
o que acha ou faz habitualmente. E o conceito de si: aquilo que a pessoa
acredita ser. É o nível consciente da pessoa.
 Eu latente: é o conjunto de características que a pessoa possui, mas não
conhece (emoções, motivações, atitudes emotivas, energias psíquicas,
potencialidades positivas capazes de despertar a criatividade, a
espontaneidade...). Fazem parte dela e influenciam sua conduta,
embora não o perceba. É o nível desconhecido da pessoa.
 Eu social: é aquilo que a pessoa “pensa ser aos olhos dos outros”.
Revela-se pelo relacionamento pessoal e grupal,

É importante alcançar um justo equilíbrio entre o eu ideal e o atual. A


pessoa deve empenhar-se na valorização dos dois, integrando-os. Isso facilita
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o seu crescimento global, consequente autoestima e valorização positiva de si,
base de toda uma caminhada vocacional autêntica.

Conteúdos da personalidade
Quanto aos conteúdos da personalidade, eles envolvem três tipos: são os
valores que a pessoa possui ou deseja; as necessidades que derivam dos três
níveis da vida psíquica, isto é, do nível fisiológico (comer, beber etc.), do nível
social (todas aquelas que acontecem nas relações interpessoais — como a
dependência afetiva, inferioridade, agressividade etc.) e do nível racional
espiritual (necessidade de saber, entender etc.); e as atitudes que se
desenvolvem em relação aos valores e necessidades.
1. Valores (dizem respeito ao eu ideal). São os ideais abstratos e
duradouros de uma pessoa. São tendências gerais para a ação. São
impulsos que indicam o caminho a seguir, a conduta a ser assumida, os
objetivos a serem alcançados pela pessoa. Por exemplo: para a vida
cristã, os valores são a Imitação de Cristo e a união com Deus. Para
alcançá-los são Utilizados outros valores (instrumentos): a Palavra de
Deus, Os sacramentos, a oração etc. Os valores são frutos de uma
Opção livre e responsável da pessoa.

2. Necessidades (dizem respeito ao eu atual). São tendências inatas à


ação, isto é, contêm energia psíquica necessária para que se possa
exercitar qualquer atividade. São fontes energéticas, impulsos
emotivos inerentes à pessoa e presentes em medidas diversas em cada
um. São tendências emotivas do indivíduo, predisposições a agir de
certa maneira, com base numa exigência emotiva. Na pessoa humana,
mais ou menos 30. Por exemplo: a necessidade de autonomia, de
aceitação social, de aquisição, de autoestima, de deferência, de
submissão...

Embora sejam tendências à ação, não levam necessariamente a ela.


Dependem da decisão da pessoa e se exprimem por meio de atitudes. Por
exemplo, se temos necessidade de autonomia, assumimos uma atitude
independente e livre; se necessitamos de autoestima, a nossa atitude mostrará
a nossa identidade como estável e positiva.
Se as necessidades forem conscientes, podem ser articuladas e assumidas.
Se forem inconscientes, a ação delas não é percebida pela pessoa e podem ter
grande influência em todo o seu agir.

3. Atitudes (dizem respeito aos valores e às necessidades). São uma


predisposição a ter comportamento concreto, mas existem antes da
própria ação. Por exemplo: a atitude racial é certa predisposição a favor
ou contra determinado grupo e antecede o modo de agir. São
disposições habituais, adquiridas através da experiência e resistentes à
mudança. Podem exprimir tanto um valor como uma necessidade. Por
elas, a pessoa escolhe os seus valores e necessidades.

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a) Incluem três componentes: 1)Cognitivo — é ter uma opinião a respeito
de uma realidade; é o que se pensa de um objeto. Por exemplo: uma
atitude racista considerará os que não são de sua raça como uma raça
inferior. 2)Afetivo - indica o sentimento de atração ou de repulsa
diante do objeto, a atitude. No caso: repulsa pelos que não são de sua
raça. 3)Conativo (de impulso à ação) — indica a tendência ao
comportamento com relação ao objeto. No caso, agir contra os que não
são de sua raça.
A atitude não se identifica necessariamente com a ação exterior.
Precisa-se indagar o porquê de tal atitude. Por exemplo, uma pessoa
altruísta pergunta-se: “Por que me comporto assim?”. Se for
contestadora: “Por que defendo sempre minha ideia? Por quê?”.
Isso é importante para descobrir as diferentes funções que a atitude
pode exercer e direcionar-se mais facilmente à sua fonte: nasce das
necessidades ou dos valores? As atitudes podem desempenhar funções
diferentes? Ao menos quatro tipos. Vejamos:

b) Expressam funções: 1) Função utilitária – quando o sujeito tende,


consciente ou inconscientemente, a obter gratificações ou evitar frustrações a
si próprio. 2) Função defensiva – está presente quando o indivíduo, consciente
ou inconscientemente, se defende de aspectos que o ameaçam. Em geral a
defesa é contra inseguranças internas ligadas a um sentimento de culpa, de
inferioridade, de tendências agressivas. Ambos os tipos não ajudam no
crescimento para a maturidade. 3) Expressão de valores – é a busca de certos
valores humanos ou sobrenaturais. 4) Função de conhecimento – serve para dar
à pessoa uma compreensão organizada de si mesma e de seu mundo. Fornece
critérios de ação.

Fontes motivadoras
Os valores e as necessidades são as duas grandes fontes motivadoras do
agir humano. Os valores deveriam constituir a fonte principal. Na realidade,
são as necessidades e os medos pessoa que mais influenciam e predispõem para
uma decisão pessoal. Isso se deve ao fato de que as necessidades, muitas delas,
particularmente aquelas causadoras de sofrimento psíquico, atuam no nível
inconsciente e estão a serviço dos interesses, medos, frustrações e satisfações
do indivíduo.
Vamos examinar um grupo de necessidades que tem mais influência
inconsciente na elaboração das motivações para uma vocação cristã e/ou
sacerdotal ou religiosa.

a) Necessidades dissonantes: são aquelas que – por si só – se opõem aos


valores evangélicos e vocacionais. Estão voltadas mais para o bem da pessoa e
sua segurança. São estas:
 Sentimento de inferioridade (humilhação — desconfiança de si):
tendência a subvalorizar-se, ceder, resignar-se; submeter-se

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passivamente a uma força externa; diminuir-se e rebaixar-se; ter medo
de fazer aquilo que se é capaz; a repreender, diminuir, mutilar o eu;
procurar a dor, a doença, o infortúnio e ter prazer nisso.
 Agressividade: tendência a vingar-se das desfeitas recebidas, atacar,
investir, prejudicar; ser do contra e ficar na oposição; lesar, diminuir
ou ridicularizar; caluniar, ironizar; espírito contraditório.
 Gratificação erótica: instrumentalizar o outro para o próprio prazer;
conquistar para prender e depois abandonar.
 Autodefesa: tendência a não agir por medo do insucesso; conformidade
passiva; afastar toda situação que possa causar críticas, escárnio; não
admitir jamais os próprios erros; autojustificar-se até o fim diante de
um malfeito, um insucesso, uma humilhação.
 Evitar o perigo: tendência a afastar o insucesso, a dor, a dificuldade; a
preferir ambientes já conhecidos e organizados; acautelar-se com falsa
prudência; não se expor; tomar medidas de precaução; evitar o risco.
 Exibicionismo: tendência a mostrar-se; ser o centro de atenção;
admirar-se, fascinar, conquistar, impressionar, seduzir' provocar a
curiosidade.
 Dependência afetiva: tendência a satisfazer as necessidades graças à
ajuda afetuosa de um aliado; ser cuidado, apoiado, sustentado,
envolvido, protegido, amado, consolado, guiado, favorecido,
perdoado; ter sempre necessidade de apoio para poder continuar a
caminhar; permanecer ao lado de um protetor devotado.

b) Necessidades neutras: são as tendências que ora se inclinam e


colaboram com os valores, ora com as necessidades dissonantes. Estão voltadas
mais para o serviço dos outros. Por exemplo:
 Realização (sucesso — consecução): tendência a reagir em qualquer
situação difícil; atuar potencialidades latentes; desenvolver-se; agir
quanto antes e do melhor modo possível, empenhando adequadamente
os próprios talentos; aumentar a autoestima.
 Dominação: tendência a influenciar os outros por meio de sugestões,
persuasões, ordens; dissuadir, proibir, convencer, propor, mostrar,
informar, explicar, interpretar, ensinar, organizar.
 Contrarreação: tendência a superar com tenacidade as dificuldades,
experiências frustrantes, humilhações ou situações embaraçosas,
opondo-se à tendência de evitar ou de retirar-se diante de um
compromisso ou situação que possa ter tais resultados; vencer o
fracasso pelo esforço, superar a fraqueza, reagir superando-se para
manter a autoestima.
 Afiliação: tendência inata para o outro, a fim de estabelecer
relacionamentos de amizade e coleguismo; trabalhar ao lado um aliado;
colaborar, mudar pontos de vista; ligar-se a amigo e permanecer-lhe
fiel.
 Altruísmo (ajudar os outros): tendência a dar o próprio afeto sem
reservas e satisfazer às necessidades de outrem, como pessoa
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desorientada, inexperiente, doente, humilhada, só, recusada, confusa;
assistir uma pessoa em perigo, sustentar, consolar, proteger, guardar;
executar comportamentos úteis aos outros.
 Ordem (necessidade de significado): tendência a dar-se um sentido;
colher a natureza das coisas no mundo; pesar a carga dos próprios atos;
colocar em seu lugar as coisas, dar-lhe sentido; organização, equilíbrio,
arrumação, comportamentos adequado.
 Conhecimento: tendência a satisfazer a curiosidade, explorar, fazer
perguntas; obter informações das mais elementares mais abstratas e
complexas; explicar a própria posição sobre a realidade.

Quando as necessidades dissonantes predominam na motivação e na


escolha, criam-se na pessoa certas resistências (inconsistências) que impedem
a internalização dos valores evangélicos e vocacionais. Estes podem ser
aceitos intelectualmente, mas a pessoa é incapaz de acolhê-los afetivamente e
viver de acordo com eles (é a não internalização dos valores). As
inconsistências são forças contrárias aos valores (cf. Rm 7,15-19).

Como proceder para discernir sobre sua força motivacional?


E necessário verificar se as motivações procedem dos valores ou das
necessidades (e que tipo de necessidades estão presentes: dissonantes ou
neutras), para certificar-se se a escolha feita é:

a) Consistente: isso se dá quando o indivíduo, no agir ou no


escolher/decidir, é motivado, em nível consciente ou inconsciente,
pelos valores ou por necessidades neutras que estão de acordo com os
valores vocacionais. Por exemplo: a necessidade de ajudar os outros
pode concordar com o ideal da caridade; a busca do sucesso é
compatível com o bem e o amor aos outros, mas tem papel contrário
em nível inconsciente.

b) Inconsistente: isso acontece quando a pessoa, no agir e na escolha, é


motivada por necessidades dissonantes. Por exemplo: busca de
dependência afetiva, de ajuda, de segurança, com as relativas atitudes
utilitaristas ou defensivas. Neste caso, a presença das
“inconsistências” diminui a capacidade de aceitar e realizar os ideais
vocacionais, como também torna mais ambígua a própria caminhada
vocacional, diminuindo a capacidade efetiva de ser livre. Convém
então verificar se as atividades provêm prevalentemente dos valores
desejados ou das necessidades dissonantes.

Se as atitudes forem de natureza utilitarista ou defensiva – prestar atenção


aos sinais verbais e não verbais que podem indicar isso –, então se pode supor
que a motivação central da vocação provém das necessidades dissonantes. Isso
leva a pensar que existam certas inconsistências vocacionais, apesar de um
comportamento e vivência cristã (oração, apostolado etc.).
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Sem dúvida, trata-se de uma área difícil a ser detectadas vezes, é preciso
ter o preparo adequado para perceber esses dinamismos intrapsíquicos. A
pessoa dificilmente os detecta por ela mesma.

Referência:
BALDISSERA, Deolino Pedro. CAPÍTULO VIII – Personalidade: estrutura e conteúdo. In:
Conhecer-se: Um Desafio: Aspectos do Desenvolvimento Humano. São Paulo: Paulinas,
2015.

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