Afranio Silva Jardim
Afranio Silva Jardim
Afranio Silva Jardim
Introdução
A Lei nº 9.099/95, que ficou em vacatio durante dois meses, já está em vigor e,
nesse período, muito se produziu, muito se discutiu, muito se debateu. Várias obras
hoje já estão sendo publicadas, comentando determinados dispositivos cuja inter-
pretação é conflitual e discutível. Achamos que, talvez, não agora, mas proxima-
mente, tenhamos que realizar um exame da Lei numa perspectiva não procedimen-
talista, e, sim, numa visão sistemática, percebendo que ela é especial , mas se insere
dentro de um sistema processual. Parece-nos que muitas das interpretações, até van-
guardistas, de primeira hora, levam a posições insustentáveis dentro do sistema
processual penal.
Sempre que surge uma lei nova há um certo afogadilho, uma certa necessidade
de alguns autores e professores de lançar posições novas, "criar em cima da lei". E
isso é bom, porque sacode aquele nosso espírito do Direito conservador. Mas, às
vezes, a coisa vai ousada demais e perdemos os limites da interpretação, do conheci-
mento jurídico. Temos encontrado isso na interpretação da Lei nº 9.099/95. Obras •
publicadas de imediato, com posições muito pessoais e opinativas, acabam, pela
autoridade e importância de seus autores, seduzindo a comunidade jurídica e, só
com o tempo, demoradamente, é que colocamos as coisas nos trilhos novamente.
Esta Lei tem uma engenharia, vamos dizer assim, importante. Ao invés de optar
pela descriminalização, atendendo ao chamado Princípio da Intervenção Mínima
do Direito Penal, Direito Penal Mínimo, optou pela descriminalização de forma
indireta, através do processo. Seria mais ou menos o seguinte: já que o Direito Penal
não teve a ousadia de descriminalizar, o Direito Processual Penal, por vias indiretas,
para essas infrações de pequena monta, através de determinados institutos, visa à
despenalização. Aquela visão do Direito Penal liberal, que trabalha até com a hipó-
tese da abolição do Direito Penal, numa visão utópica, com uma acentuada descri-
minalização, é uma visão liberal, mas pode ser até o contrário, uma postura persecu-
tória, equivocada. Porque, na medida em que descriminaliza a conduta, esta, não
saindo da esfera do proibido, passa a ser disciplinada por outros ramos do Direito,
basicamente o Direito Administrativo. O Direito Administrativo não se submete ao
controle jurisdicional a que o Direito Penal e o Direito Processual Penal se subme-
tem, os quais, principalmente em face da Constituição, outorgam importantes ga-
rantias. O Princípio nulla poena sine judicio é um princípio ligado ao Direito Pro-
Procedimento sumaríssimo
A aplicação do procedimento sumaríssimo, previsto na Lei nº 9.099/95, antes da
criação, por lei estadual e implantação pelo Tribunal de Justiça dos Juizados Especi-
ais, é outro assunto a abordar.
Não sabemos como isto tem sido colocado nos demais Estados, mas, em São
Paulo e no Rio de Janeiro, a situação estú a mais complicada possível. Há juízes que
já fazem transação penal no Juízo tradicional - conforme a lei diz, Juízo comum-; já
há promotor pensando em fazer denúncia oral. As autoridades policiais, em face das
contravenções, ou estão lavrando termo circunstanciado ou instaurando inquérito
policial. .. Está un1a balbúrdia, uma confusão muito grande.
A vacatio realmente já expirou, a lei está em vigor, não tenho dúvida alguma.
Agora, uma coisa é a norma jurídica estar em vigor, outra coisa é a incidência da
norma jurídica, que pressupõe a ocorrência de seu suporte fático .. A norma jurídica
refere-se a uma situação fática. Ocorrendo o fato, incide sobre este, jurisdicionando-
o. É o fato jurídico e, nesse momento, aplica-se a norma jurídica. Parece-nos que,
enquanto não criados por Lei os Juizados Especiais Criminais, este procedimento
sumaríssimo não pode ser aplicado. A lei estadual tem que criar órgãos jurisdicio-
nais e o Ministério Público tem que criar, tan1bém por lei, os seus órgãos de atuação
junto a esses órgãos jurisdicionais. Não é que a lei não esteja em vigor mas não
ocorreu a situação de fato que ela prevê para d~temúnar a incidência de suas normas
Retroatividade
"Art. 90: As disposições desta lei não se aplicam aos processos pe-
nais cuja instrução já estiver iniciada."
O art. 90 diz que a Lei nº 9.099/95 se aplica, quando de sua entrada em vigor,
aos processos instaurados, salvo se já estiver sido iniciada a instrução processual.
Muito bem, a Lei entrou em vigor. A doutrina maj oritária, podemos dizer assim,
entende que, por exemplo, numa contravenção, ainda que em grau de apelação,
condenado, o réu tenha apelado, o Tribunal de Alçada ou o Tribunal de Justiça
deverá transformar o julgamento em diligência para que haja tentativa de transação
penal ou a proposta da suspensão condicional do processo, sustentando que é uma
lei processual, mas com implicações no direito material, porque leva à extinção da
punibilidade, tendo, portanto, efeito retroativo ... Esse é o entendimento, queremos
crer, majoritário na doutrina e as questões se multiplicam a respeito disso. No Rio de
Janeiro há Câmaras entendendo dessa maneira, mesmo em relação à representação
nos caso de lesão corporal leve ou culposa. Por força da Constituição, que assegura
a retroatividade da lei penal mais benigr.a, então, o art. 90 seria inconstitucional.
Achamos, e nossa posição é minoritária, que não é bem assim. Realmente, a
suspensão condicional do processo tem reflexos no direito material porque, passado
aquele período de prova, extingue-se a punibilidade. Entretanto, as regras que regu-
lam a suspensão condicional do processo e a transação penal são regras, são normas
de Direito Processual e têm aplicação de imediato ou segundo dispuser a lei nova. A
Lei 9.099/95 diz que suas regras se aplicam de imediato, salvo se a instrução crimi-
"Art. 91: Nos casos em que a Lei passe a exigir representação para a
propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante
legal será intimado para oferecê-la, no prazo de trinta dias, sob pena
de decadência."
Entrando em vigor a Lei nº 9 .099/95, se a ação penal já foi exercitada e, à época,
não se exigia a representação do ofendido, parece-nos que não cabe mais intimá-lo
para representar. Posição minoritária.
Agora, em relação aos inquéritos de fatos pretéritos, que estavam tramitando na
Delegacia de Polícia, surgindo a lei nova, o Ministério Público já não pode mais
exercitar a ação penal sem a rep!esentação. Então, nesses casos, é que a autoridade
policial deverá intimar o ofendido ou, se menor, seu representante, para fazer a
representação, colocando aquela condição específica, aquela condição de procedibi-
lidade para que o Ministério Público possa exercitar a ação penal.
Dizem alguns autores que a representação é um instituto também de Direito
Penal, porque a representação não feita leva à decadência e a decadência extingue a
punibilidade. Então, teria que ter aplicação retroativa, até mesmo para os processos
em curso. Como falei anteriormente, existem Câmaras do Tribunal de Justiça do Rio
Competência de Foro
"Art. 63: A competência do Juizado será determinada pelo lugar em
que foi praticada a infração penal. "
O art. 63 quis resolver uma controvérsia jurisprudencial, em face da interpreta-
ção do artigo 70 do Código de Processo Penal. Pelo artigo 70, sendo o crime consu-
mado, o foro competente é o do lugar onde se consumar a infração. E o Código
Penal, no art. 14, diz que se consuma a infração quando realizados todos os elemen-
tos do tipo objetivo. Parte da doutrina entendia que , nos chamados crimes à distân-
cia, poder-se-ia aplicar a Teoria da Ubiqüidade: tanto é o lugar da infração onde se
pratica a ação como aquele onde ocorre o resultado.
A Lei nº 9.099/95 diz que o foro competente é o do lugar onde foi "praticada a
infração penal". O legislador não foi feliz. Deveria ter dito onde foi praticada a
ação , mostrando o que realmente desejava. Mas, quando diz praticada a infração
penal, continua dando margem a dupla interpretação.
O Prof. Damásio E. de Jesus, na Anotação que faz à Lei, continua sustentando
que, mesmo nos Juizados Especiais Criminais, praticada a ação penal é onde a in-
fração foi consumada, porque a Lei não falou em praticar a ação e, sim, em praticar
a infração.
O legislador, pelo menos, tinha o dever de ser mais claro e nos parece que a
melhor interpretação é a que o foro competente é o do lugar onde foi praticada a
ação, ou onde se omitiu a ação devida, nos crimes onússivos.
O Termo Circunstanciado
"Art. 69: A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrên-
cia lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao
Juizado com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisi-
ções dos exames periciais necessários."
No sistema processual em vigor atualmente, nos crimes de ação penal privada,
para o delegado instaurar o inquérito, tem que haver o requerimento do ofendido.
Nulidade
" Art. 65 - § 1º: Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha
havido prejuízo."
Este parágrafo diz que nenhuma nulidade, qualquer nulidade, será declarada, se
não houver prejuízo. Ora, leiam-se, nulidades relativas, porque, se a nulidade for
absoluta, evidentemente, independente de prejuízo, tem que ser reconhecida de ofí-
cio pelo juiz. Essa é a sistemática do nosso Código, que é também adotada na Lei nº
9.099/95 . Então, se amanhã un1 juiz ferir o contraditório, violar a Constituição;
independentemente de prejuízo, violou-se o devido processo legal.
Até dispensamo-nos de trabalhar como a doutrina trabalha: presume-se prejuí-
zo. Não precisa nem presumir prejuízo, porque quando você o presume, está vendo
prejuízo ao interesse das partes. Aqui é o prejuízo para a função jurisdicional do
Estado, para o devido processo legal. Então, se a nulidade for absoluta, independe
do prejuízo, independe da argüição em momento processual, ela não é sanável e
cabe ao Estado anular o processo e refazer os atos. Parece-nos que temos que inter-
pretar dessa maneira: qualquer nulidade, "em termos", qualquer nulidade relativa,
e, não, absoluta.
"Art. 69 - ( omissis).
Parágrafo único: Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for
imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso
de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exi-
girá fiança."
Tan1bém está havendo discussões a respeito deste parágrafo. Estivemos colhen-
do impressões, pesquisando a doutrina e já há várias posições a esse respeito.
"Art. 77 (omissis)
§ 3°: Na ação penal de inciativa do ofendido poderá ser oferecida
queixa oral, cabendo ao juiz verificar se a complexidade e as circuns-
tâncias do caso determinan1 a adoção das providências previstas no
parágrafo único ao art. 66 desta Lei."
Diz a Lei que o ofendido oferecerá a queixa, que pode ser oral, - frustrada a
transação civil, porque esta importa a renúncia ao direito de queixa - e o juiz pode
entender que o fato é complexo e remeter para o Juízo comum. É um tratamento
diferenciado em relação ao Ministério Público, que não denuncia e requer a remessa
ao Juízo comum. Nesse caso, na ação penal privada, o quer<'lante teria que oferecer
a queixa e o juiz é que mandaria para o Juízo comum. Não sei porque houve essa
inversão. De repente, o querelante diz que o fato é complexo, que seria neces~ária
uma perícia ... Suponhamos um crime de dano que dependa cie perícia e não se tem
como oferecer a queixa. Ter-se-iam que oferecer a queixa para que o juiz mandasse
para o Juízo comum.
Número de testemunhas
Quanto ao número de testemunhas, o legislador deixou de dizer quantas seriam
no caso da Lei nº 9.099/95. Há três posições. Uns entendem, como Damásio E. de
Jesus, que o número máximo é de três. Outros entendem ,.SIUe o número máximo
seria de cinco. E outros, ainda, que, se for contravenção, seriam de três, se crime de
menor potencial ofensivo, seriam cinco, obedecendo àquela diferenciação que o
Código de Processo Penal faz.
Achan1os que, a nível de infração de menor potencial ofensivo, não existe mais-
diferença entre crime e contravenção. Seriam três ou cinco testemunhas arroladas.
Como vai mais ao encontro da busca da verdade real, da ampla defesa, etc., nossa
tendência é limitar a cinco e não três testemunhas. Alguns entendem que, se não for
contravenção, seriam três. Entretanto, essa circunstância está derrogada, não se aplica
mais e, por isso, essa distinção não seria pertinente. Entendemos que, seria um má-
ximo de cinco testemunhas, não se computando o ofendido, que não é testemunha e
aquelas que não prestam compromisso, não sendo testemunhas numerárias.
Interrogatório do réu
Há ainda, a questão do interrogatório do réu que, pela nova Lei, será feito depois
da oitiva das testemunhas da denúncia e da defesa.
Na audiência de instrução e julgamento, o advogadô do réu responde à acusação
(denúncia ou queixa), o juiz recebe-a e vai colher a prova, ouvindo as testemunhas
da denúncia, as arroladas pela defesa e depois fará o interrogatório do réu. O inter-
rogatório do réu, na sistemática da lei nº 9.099/95, é feito depois da instrução crimi-
nal. Nesse momento surge uma questão: o réu fica presente à coleta da prova oral e
depois, ao ser interrogado estará sabendo o que as testemunhas disseram, ou seria
retirado da audiência de instrução e julgamento?
No princípio, achávamos que o réu deveria ser retirado da audiência de instrução
<'> Afranio Silva Jardim é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Proces-
sual Penal na UERJ e na Faculdade Cândido Mendes.
<"l Transcrição da palestra proferida, de improviso, na Associação Mineira do Ministério Público, em dezem-
bro de 1995, e reproduzida com autorização do autor.