Anamaria Nunes Geração Trianon
Anamaria Nunes Geração Trianon
Anamaria Nunes Geração Trianon
EMPRESÁRIO — 102, 103, 104, 105, 106! ESSE MENINO — A crítica do Meto-lhe o
106 pessoas! Que prejuízo, meu Deus! pau.
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DOUTOR — Ousa chamar-me de
TODOS — Bem? mentiroso?
DOUTOR — Está decidido: tiramos a peça PONTO — Não. Digo que se engana,
de cartaz! doutor. O que disse foi: isto dá-se...
DOUTOR — Mas eu sou mau! (Grita) PONTO — Jamais faria isso. Sei o meu
Almeidinha! (Entra o ponto) lugar.
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DOUTOR — Vê? É a poesia do teatro,
EMPRESÁRIO — Então, doutor, como Staffa. "E é assim mesmo. E ora adeus.
ficamos? Assim é que é bom."
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ENSAIADOR — Dos dois.
DOUTOR — Então o quê? Estou indo
ESSE MENINO — Do doutor. embora!
EMPRESÁRIO — "Pois saiba que tenho um DOUTOR — Como? Ah, senhorita! (Beija-
artista muito melhor que o doutor!" lhe a mão) Mas vão todas de uma vez?
Assim o teatro fica feio!
(Silêncio)
1ª ATRIZ — O carro de aluguel espera-me à
DOUTOR — Então diga lá. Quem é essa porta...
sumidade!
DOUTOR — A senhorita está com uma
EMPRESÁRIO — "Mora na Avenida encadernação belíssima!
Central, tem um público certo e se chama
Trianon!" 1ª ATRIZ — E o senhor é um escangalhador
de corações!
DOUTOR — Qual, Staffa! O público certo do
Trianon, ainda hoje à noite, fazia a receita DOUTOR — Hoje à noite janto com o
do teatro Recreio, do teatro Fênix, do Carlos Almeidinha, mas jantamos amanhã, está
Gomes, por que aqui não veio! bem?
DOUTOR — Ousa fazer pouco caso do meu DOUTOR — O que acaba mal, Staffa?
prestígio de ator? Seu teatro tem púbico
certo? Pois então alegre-se. Ele é todo seu. EMPRESÁRIO — Tudo, tudo, O doutor há
Estou indo embora. de compreender que a companhia, ainda
que artística, precisa de viver.
(Entra a 2ª. atriz)
2ª ATRIZ — Boa noite, doutor. DOUTOR — Está bem, Staffa, escolhamos
o repertório!
DOUTOR — Como? Ah! Senhorita! (Beija-
lhe a mão) Adoro quando a senhorita EMPRESÁRIO — Ufa.
besunta-me de beijos em cena aberta! Isto
compensa o mau humor do Staffa... ENSAIADOR — Aleluia.
2ª ATRIZ — Meu coração está à larga! ESSE MENINO — Até que enfim!
EMPRESÁRIO — Que tal o Felisberto do
DOUTOR — Malvada! Café?
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DOUTOR — Não, não e não. Estão muito Aimée, a picante? Ora, não vêem que sem
vistas. elas não temos o mesmo sucesso de
ontem?
EMPRESÁRIO — Não Me Conte Esse
Pedaço. EMPRESÁRIO — Mas temos dona Emilia!
EMPRESÁRIO — Onde Canta o Sabiá. PONTO — Por que não um texto novo?
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PONTO — Posso sugerir?
PONTO — "Um teatro vazio dá-me a
DOUTOR — Por favor, Almeidinha. impressão de que a vida foi ontem".
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AUTOR — É pouco se considerarmos o
tamanho do teatro. MOCINHA — Na companhia.
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MOTA — Sim, professor. Vamos de novo, OSVALDO — Infame és tu, que vives a cair
seu Osvaldo? de bêbado pelas vielas, sempre na
companhia de peralvilhos do teu quilate.
OSVALDO — Claro.
MOTA — Tu não passas de um patife a
ENSAIADOR — Vamos. quem hei de mandar azorragar pelo primeiro
vagabundo que encontrar.
MOTA — Sim.
OSVALDO — Experimenta!
OSVALDO — Não.
MOTA — (Puxa a pistola e atira) Morra!
MOTA — Morra, traidor! (Atira)
OSVALDO — Covarde! (Cai morto)
ENSAIADOR — Excelente!
MOCINHA — Dá licença?
MOCINHA — Dá licença?
ENSAIADOR — Muito bem, muito bem.
TONICO — Queimou! Desce a gambiarra, Assim vamos bem. Logo, logo terminados. A
Vavá! cortina n° 5. Por favor.
ENSAIADOR — Seu Osvaldo, não fale tão ENSAIADOR — Desgraça digo eu, seu
arrastado. Mota! Eu disse para o senhor entrar pela
direita baixa e vir para 2.
OSVALDO — Meu personagem é bêbado.
MOTA — Não foi o que eu fiz?
ENSAIADOR — Mas não precisa falar tão
arrastado... ENSAIADOR — O senhor veio pela
esquerda.
OSVALDO — Ah, vida miserável, que
fizeste de mim? Sem o meu único amor não MOTA — E olha que não sou canhoto! Com
quero mais viver! Mato-me de desespero e licença. (Sai)
de dor! (Aponta a pistola para o peito)
Adeus, vida ingrata! (Atira) OSVALDO — Pior que um canastrão, dona
Julinha, só mesmo outro canastrão!
JULINHA — (Entra) Que tiro foi esse? Ó,
meu Deus! Meu Deus! JULINHA — Que o Mota não nos ouça, seu
Osvaldinho, mas ele e mesmo um horror!
ENSAIADOR — Muito bom! Obrigado. Seu Gosta do meu batom?
Mota, por favor, a cortina número 4.
ENSAIADOR — Silêncio, por favor!
MOTA — "Miserável! Infame! Não sei onde
estou que não te esbofeteio!" MOTA — Ó Desgraça!
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ENSAIADOR — Mas o que foi agora, seu
Mota! MOTA — Perfeitamente.
MOTA — Perdoa-me, professor. Mas não ESSE MENINO — Seu peito vai ficar cheio
posso começar logo na 2? de sangue! Que bonito, professor!
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ENSAIADOR — Calma, dona Julinha,
JULINHA— Que horror! calma. Vamos repetir.
OSVALDO — Eu a desejo com toda JULINHA — Não, não está. E depois, sinto-
minh’alma. me insegura com tanta violência, sem meu
batom...
JULINHA— Não quero ser sua. Não o amo.
ENSAIADOR — (à parte) E essa agora?
OSVALDO — Se não for minha não será de
mais ninguém! (A pistola) ESSE MENINO — Seu Abadie...
ENSAIADOR — Mas o que há, seu Mota? ESSE MENINO — Gosto de estar bem
— Não ouvi a deixa. informado.
JULINHA — Eu caio morta, seu Mota, não é AUTOR — (à parte) Esta só pelo diabo!
suficiente? Eu caio morta e não vou cair nem
mais uma vez, ora. Que espiga! ESSE MENINO — Se o senhor quiser fazer
Francamente, professor, assim não é parte da companhia do doutor, tem que ser
possível! E depois quero deixar bem claro mais ligeiro, como o Gastão, por exemplo...
que sou do elenco nobre da companhia! Eu
não sou atriz de entreato! AUTOR — Gastão?
ESSE MENINO — O Tojeiro, naturalmente.
OSVALDO — Muito menos eu, professor! Escreve com as mãos nas costas. É nosso
autor favorito. Deu-nos grande sucesso.
ENSAIADOR — Compreendo
perfeitamente, dona Julinha! AUTOR — E por que não o chamaram?
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OSVALDO — Se não for minha não será de APRIGIO — Muito obrigado, dona Julinha,
mais ninguém! (Pistola) mas preciso entrar em cena. É a minha
primeira vez.. vem toda a minha família!
JULINHA — Louco!
JULINHA — Semana que vem, seu Aprígio,
OSVALDO — Adeus, meu amor! (Atira) confia em mim!
JULINHA— Não pode ser. Meu pobre TONICO — Por isso mesmo, toupeira.
filhinho. O doutor por certo há de se ter
enganado... ESSE MENINO — Os borderô, seu Staffa.
ENSAIADOR — Está visto que não. O EMPRESÁRIO — Tem muito tiro! Cebolas,
senhor não sabe as falas. isso ainda acaba mal, olá se acaba! E onde
anda o doutor que até esta hora não
APRIGIO — Mas temos o ponto. apareceu? Acaba não havendo estréia!
(Seu Aprígio aparece como que por milagre)
ENSAIADOR — O ponto pontua, não
interpreta, seu Aprígio. APRIGIO — Não faça isso!
JULINHA — Que espiga, seu Aprígio! Mas EMPRESÁRIO — Mas quem é o senhor?
na semana que vem o senhor consegue. Eu APRIGIO — Sou ator da companhia.
o ajudo.
ESSE MENINO — Sou o avisador.
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EMPRESÁRIO — Eu sou o empresário. (À ISOLDA — Eu queria ser uma ave...
parte) Ator da companhia! A que ponto nós
chegamos! PIANISTA — A afinação, dona Isolda.
APRIGIO — O ensaiador não quer me ISOLDA — Eu queria ser uma ave Para
aproveitar... voar, voar. Eu queria ser uma ave Para
ruflar, ruflar.
EMPRESÁRIO — Boas razões terá...
ESSE MENINO — Que beleza, seu Staffa! ENSAIADOR — Mas ele é um horror!
AUTOR — Seu Staffa, cadê o doutor? ENSAIADOR — Não acho que arte se faça
assim.
EMPRESÁRIO — Está chegando, está
chegando. E o texto? EMPRESÁRIO — Arte faz-se com dinheiro.
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AUTOR — Só a última cortina trágica. E a
última cena da peça cena que o doutor quer APRIGIO — Uma o quê?
escrever comigo. Quer dar uns toques.
ENSAIADOR — Pois então termine, ao ENSAIADOR — Uma ponta, seu Aprígio.
menos, o entreato.
APRIGIO — Tenho alguma fala?
AUTOR — Estou tentando. Mas inspiração
não é cousa que se ache a toda hora! ENSAIADOR — O seu jornal, doutor.
APRIGIO — Só isso?
ENSAIADOR — Ah, seu Abadie. Inclua um
personagem que diz: o seu jornal, doutor! ENSAIADOR — E dê-se por satisfeito. E
trate de ensaiar para não esquecer a fala. O
AUTOR — Incluo onde? senhor entra pela direita alta e entrega o
jornal ao doutor. E sai.
ENSAIADOR — Onde o senhor quiser, mas
inclua. APRIGIO — Direita alta, o seu jornal, doutor!
ESSE MENINO — Então, professor? TONICO — Mas foi você que trouxe
sozinho.
ENSAIADOR — Então o quê?
VAVÁ — Trazer é uma cousa, levar é outra.
ESSE MENINO — Os tiros.
TONICO — (grita) Valdir, ajuda o Vavá! Isso
ENSAIADOR — Brilhantes. Não falhou um é pra hoje, gente!
sequer.
APRIGIO — Eu consegui, dona Julinha,
ESSE MENINO — Nem vai falhar. Descobri consegui. Eu entro.
um método novo, infalível.
JULINHA — Meus parabéns. Seu Aprígio.
ENSAIADOR — Tomara, tomara! Então,
dona Julinha, tem alguma cena que queira APRIGIO — Muito obrigado, dona Julinha.
passar?
JULINHA — Então o senhor conseguiu? Vai
JULINHA— Falta-me o último entreato. estar em cena.
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MOCINHA — O doutor vai demorar muito? VAVÁ — Tudo eu, tudo eu.
ENSAIADOR — Pois então avisei. (Sai) ESSE MENINO — Muito bem, muito bem.
Só que não é mendigo.
MOTA — Sim, senhor. (Senta-se)
APRIGIO — Não?
TONICO — Traz o tangão mais pra
esquerda, Vavá. ESSE MENINO — É mendigo.
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APRIGIO — Mendigo? De forma alguma.
MOCINHA — Nossa! Deve ser bom ser
ESSE MENINO — Tenho certeza. É assim assim.., assim tão indispensável! Posso ir
que o doutor fala. com o senhor?
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EMPRESÁRIO — Então, dona Isaurinha,
ESSE MENINO — Dona Isaurinha, a mais satisfeita agora?
primeira atriz.
ISAURINHA — Um pouco. Então temos um
MOCINHA — Ai, que emoção. sucesso?
ISAURINHA — Obrigada, seu Abadie. MOCINHA — Sua água, seu Staffa! (Para
Isaurinha, disfarçando) A senhora é a 1ª
atriz!
AUTOR — Foi uma honra, madame.
Transcrevo-a imediatamente.
ISAURINHA — Sim, e você, mocinha?
ENSAIADOR — Rápido, seu Abadie.
MOCINHA — Sou candidata a atriz.
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EMPRESÁRIO — Minha filha, já lhe disse PONTO — Mas por quê? Eu mereço? Dou 3
que é proibida a permanência de estranhos sessões diárias. Acabo o dia coberto de
aqui. poeira. Toda a poeira que me chutam os
atores, que a saia das atrizes me sacodem
MOCINHA — (rindo do Staffa) É que o na cara. Isto de segunda a segunda. Fico
senhor não sabe ainda: o avisador exausto. E o calor? Os senhores já
aprovoume. Só falta falar ao doutor. Eu vou pensaram no calor que sinto dentro da
ser a 1ª Atriz da companhia. caixa? Não? Sou um profissional. Será isso
motivo de deboche? Eu mereço? Talvez
EMPRESÁRIO — Vai mesmo? (À parte) algum dia quando alguém quiser saber um
Que petulante! Mocinha, quer fazer o favor pouco sobre o que seja "amor ao teatro",
de se retirar? alguém se lembre do ponto. Eu amo o
ISAURINHA — (rindo) Deixe! Ela fica teatro. A glória é de vocês. Deus, é como se
comigo. Bonitinha! eu visse a mulher que amo (Olha para
Isaurinha) sempre distante de mim. Nunca
MOCINHA — Ai, eu estou adorando isto estou do lado dela. Sempre abaixo! Nunca
aqui! (O ponto chega) tenho os aplausos. Não recebo flores. Eu
sofro. "Outro dia quis cuspir e o cuspe não
me saia, tão ressecado ficou de poeira."
PONTO — Boas tardes!
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AUTOR — E vai dar tudo certo?
PONTO — Eles montavam um dramalhão
PONTO — Sempre dá. tremebundo, lá no Recreio, e o Chaves
esfolava-se por dizer o papel...
EMPRESÁRIO — É melhor o senhor acabar
de escrever. Em teatro é assim, só se tem OSVALDO — Olhos pregados no ponto, ora
sucesso quando cada um faz a sua parte da gaguejando, ora dizendo as falas dos
melhor maneira possível. outros... Bom ator, igual ao Mota!
ESSE MENINO — (entra com uma corbeille) ENSAIADOR — Paciência, dona Isaurinha.
Seu Staffa, seu Staffa!
ISAURINHA — Paciência, digo eu. Não vê
EMPRESÁRIO — O que é agora? que não posso entrar em cena sem o texto
final?
ESSE MENINO — A baleira não velo.
ENSAIADOR — Eu sei, mas o autor é novo
EMPRESÁRIO — O que você quer dizer no oficio.
com "não veio?"
ESSE MENINO — Ela faltou, fez "forfait". ISAURINHA — Que tente outro ofício então.
Não entro em cena.
EMPRESÁRIO — Fez "forfait"... (à parte) E
essa agora? ENSAIADOR — Não entra?
ESSE MENINO — Dona Isaurinha, veja que ISAURINHA — Não entro e está acabado.
"copélia" linda que mandaram para a
senhora"... JULINHA — Se dona Isaurinha não entra,
também não entro eu!
ISAURINHA — Não me manda-ram uma
"giselle", Esse Menino? OSVALDO — Nem eu.
MOTA — Também eu não entro.
ESSE MENINO — Não, só mandaram a
copélia! APRIGIO — (à parte) Eu entro!
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ENSAIADOR — (para o Mota) O senhor é
um favor! (Para os outros) O que é isso, um DOUTOR — Calma, calma. Foi lamentável
motim? o meu atraso, mas toda essa canícula
obrigou-me a parar na Confeitaria Colombo
EMPRESÁRIO — Isso acaba mal, olá se para tomar um gelado. Aceitam? Ótimo.
acaba. Hom’essa! Cebolas! Cadê a Atrasei-me um pouco... Está delicioso! Mas
cafiaspirina? Isto vai à vela, vai devagar! creio que há tempo para fazer os acertos!
Meu Deus, quebrem este piano! Dane-se o Então, dona Isaurinha, não entra em cena?
prejuízo! Chega! Esse Menino, liga para o
doutor! Estou farto! Que ele venha logo, ISAURINHA — Sem a última cena, recuso-
senão quem sai... Sou eu! Cebolas! (Saída me.
falsa do Esse Menino)
AUTOR — Falta a cena que o doutor
ESSE MENINO — O doutor chegou! prometeu escrever...
(Aplausos)
DOUTOR — E se eu lhe garantir que a
ENSAIADOR — Finalmente! última cena não tem mistérios? Será uma
cena curta, muito curta, quando finalmente,
PONTO — Começava a preocupar-me. está tomando nota, seu Abadie?
ESSE MENINO — A baleira não veio. DOUTOR — A senhorita está muito bem...
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MOCINHA — Ela é o quê?
TONICO — Faltam 10 minutos!
ESSE MENINO — A criada.
EMPRESÁRIO — Se der tudo certo, mudo
MOCINHA — Vou falar ao doutor! (Ela tenta, de ramo.
mas não consegue)
DOUTOR — Se der tudo certo, você fica no
DOUTOR — Então? ramo.
JULINHA— Se dona Isaurinha entra em ESSE MENINO — Para sempre, seu Staffa.
cena, também entro eu!
EMPRESÁRIO — Cebolas!
DOUTOR — Muito bem.
EMPRESÁRIO — (à parte) Que sacripanta! TONICO — Desce os painéis!
DOUTOR — Posso saber por que, seu ESSE MENINO — Quem fica no lugar da
Osvaldinho? baleira?
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APRIGIO — O seu jornal, doutor! (Esse (Aos poucos a platéia do teatro vai
menino tropeça. Todos riem um riso transformando-se no Teatro Trianon. São
histérico) colocados os camarotes e a ribalta. Entra
vestido a caráter Esse Menino de apontador
MOCINHA — O que eu faço, meu Deus? Ai, de lugares, funcionando também como cabo
estou adorando isto aqui! Doutor! da claque, convocados sutilmente alguns
espectadores a fazerem parte desta. A
MOTA — Ó Desgraça! Não, é... Desgraça! seguir a Mocinha substituindo a baleira,
vendendo balas e bombons em beneficio da
APRIGIO — O seu jornal, doutor! Casa dos Artistas que o doutor pretende
construir. O empresário Staffa. saudando a
ISOLDA — Mimimimimimi. presença de todos os presentes. Em
determinado momento surge do centro do
palco uma figura que vem abrir o espetáculo
APRIGIO — Perdão, mas não sou mendigo!
da noite. Ao final de suas palavras a cortina
se abre e temos então o início do 2º. ato)
MOTA — Morre, consciência!
Simpático Jeremias:
JULINHA — Minha maquiagem está boa,
Posso penetrar? Perdão por importunar-vos,
seu Osvaldinho?
senhores. Se bem que esmolar seja uma
das contingências humanas, não estou aqui
OSVALDO — Está linda. E o meu repartido? para implorar a vossa caridade. Estou aqui
apenas para narrar-lhes a minha breve
JULINHA — Está torto. Dá-me o pente. história. A saga de um humilde servo do
saber. E necessário, pois, que eu me
OSVALDO — Estou nervoso. apresente: meu nome é Jeremias Taludo.
Jeremias é por parte de mãe, o Taludo é que
ISOLDA — Mimimimimimi. é por parte de pai. Mas todos me chamam
pela alcunha: O Simpático Jeremias,
MOTA — Morre, consciência! Ó Desgraça! personagem da peça homônima de Gastão
Tojeiro, grande sucesso do Teatro Trianon.
APRIGIO — Não sou mendigo! Como ia dizendo, vim narra-lhes a breve
história que empreendi na materialidade da
EMPRESÁRIO — Montem o cenário! vida em companhia do venerável,
ilustríssimo, do meu excelso mestre Sirênio
(Descem painéis, reguladores, tapadeiras. Calado. Como? Como? Quem foi Sirênio
Sobem as gambiarras. Os atores andam de Calado?
um lado para o outro. Uma loucura) Sirênio Calado foi um grande e imperecível
filósofo. Viveu e morreu na obscuridade
EMPRESÁRIO — Isto acaba mal, olá se sublime dos espíritos superiores. Durante
acaba! seis longos anos, estive eu em sua
companhia, ouvindo-lhe, dia a dia, suas
MOCINHA — O que é que eu faço, meu palavras sempre repassadas de grandes
Deus? Sou candidata a atriz! Vou falar ao ensinamentos, transbordantes de elevados
doutor. É pra já! (Decidida) Doutor! preceitos e imutáveis verdades sobre a vida
humana. Quanto te agradeço, ó excelso
mestre a tu que pairas nesse mundo
ENSAIADOR — Tudo pronto?
invisível para onde emigrou a tua alma
privilegiada de filósofo, a sabedoria da vida
TODOS — Tudo! que me legaste.
Continuando... Bem, primeiramente sentar-
Fim do 1º. Ato me-ei, pois como dizia o mestre: “Nunca
fiqueis de pé quando há um banquinho ao
vosso lado." Agora sim: entrei como criado
INTERVALO ao serviço do mestre. Ao fim do primeiro
mês, não tendo ele dinheiro para pagar-me
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o ordenado, propôs ensinar-me a sua Simpático Jeremias" da peça homônima de
filosofia, tornando-me, assim, seu amado Gastão Tojeiro)
discípulo, pois descobriu em mim a bossa
filosofal. Daí em diante, todos os dias depois (Entrou de caixeiro e saiu de sócio)
de eu fazer a limpeza da sórdida baiúca em (1/2 ato cômico de Abadie Faria Rosa)
que habitávamos, punha-me a ouvir suas
lições só as interrompendo para despachar
os credores que nunca lhe deixavam a Cena 1
porta. Por absoluta falta de numerário para
satisfazer o aluguel da baiúca, fomos pelo ANTONICO — Cuidado, hem! Não virá
seu proprietário impiedosamente postos na ninguém?
rua. Tivemos que nos abrigar sob um
telheiro cuja existência era uma hipótese,
ROSINHA — Não há perigo. O patrão está
pois não impedia a passagem dos raios
se vestindo. D. Eulambia só se levanta mais
solares nem do líquido chuvoso. Contudo,
tarde.
contentamo-nos, pois "Tudo é bom desde
que abstraiamos da imaginação o que possa
ANTONICO — Mas é que deixei o armazém
existir de melhor" disse Sirênio Calado.
só com o menino.
A negra miséria purificadora das almas,
forçou o meu excelso mestre a admitir uma
ROSINHA — Então vai.
nova aluna, a preta Deolinda, que todos os
dias nos trazia restos de comida da casa em
que trabalhava como cozinheira. E nós, ANTONICO — Não! Quero primeiro o que
famintos, aceitávamos, pois como dizia o me prometeste. Subi só por isso.
mestre: "Nunca recuses o que uma mulher
te oferecer mesmo que dela não sejas o ROSINHA — Beijos comigo só depois do
gigolô." E assim, passara-se os dias, os casamento. Eu não vou nisso.
meses, os anos, até que meu excelso
mestre não podendo entregar a alma aos ANTONICO — Eu caso mesmo, já te disse.
credores, entregou-a ao criador. Ele, que ROSINHA — É. Mas pelo sim, pelo não... Eu
nunca me pagou um real ordenado, deixou- cá sei. O seguro morreu de velho,
me como herança: sua roupa, esta bengala,
este monóculo, seus livros e a sua ANTONICO — (ar zangado) Então pra que
incomparável filosofia. me prometeste?
Sentindo-me órfão, fui parar na Pensão das
Magnólias, onde me empreguei como criado ROSINHA — (dengosa) Para te ver. Para te
para fazer juz às parcas soldas para a dar bom dia. Eu gosto de ti. Tu sabes. Não
subsistência material do invólucro do posso gostar?
espírito.
Mas isso é apenas uma história, escrita por ANTONICO — Gostas... Mas nem uma
Gastão Tojeiro, e eu apenas uma carícia... Um abraço, um beijo...
personagem, um tipo criado pelo fabuloso
ator Leopoldo Fróes. E, no entanto, existem ROSINHA— Para quê? O melhor da festa é
inúmeras outras histórias, inúmeras outras esperar por ela.
personagens, pois estamos, senhores, no
templo do teatro, neste baluarte da cultura ANTONICO — Esperar? Sabe Deus lá
nacional que é o Teatro Trianon. Senhoras quanto tempo!
e senhores, eu, como um digno
representante desta época convido-os a ROSINHA — Pois casa logo.
assistir o 1/2 ato cômico de Abadie Faria
Rosa, "Entrou de caixeiro e saiu de sócio."
ANTONICO — Casar? Dizer não custa. Lá é
possível casar ganhando $15000 por mês?
(Este texto foi arranjado pelo ator Isio Não sabes o que dizes. (Sobe)
Ghelman a partir das falas do personagem
"O
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ROSINHA — Então espera. Esperemos os (Os mesmos, mais Eulambia e Marcondes)
dois.
MARCONDES — Ela!
ANTONICO — Mas é que nem posso mais.
Tu não me sais da cabeça, já nem trabalho EULAMBIA — Ele!
direito, passo as noites sonhando contigo.
Mesmo acordado vejo teu rosto diante dos ANTONICO — O patrão!
meus olhos. Ah, meu amor, minha Rosinha.
Deixa ao menos abraçar-te para ver se ROSINHA — A patroa!
arrefece esse calor que queima por dentro.
EULAMBIA — (para Rosinha) Que estás
ROSINHA — (fugindo-lhe) Nada disso, fazendo aqui?
Cena II
25
MARCONDES — E você como trata essa
pequena... (Caindo em si) Quero dizer, essa EULAMBIA — O que o senhor quer?
rapariga, a Rosinha!
MARCONDES — Nada, Vim a procura do
EULAMBIA — É da sua conta? Rosinha, por jornal.
circunstâncias adversas da vida, má sorte EULAMBIA — Que jornal, seu palerma?
no berço, acabou como minha criada,
MARCONDES — O de hoje. Não sei onde o
MARCONDES — E ele é meu empregado. Antonico o botou.
EULAMBIA — Mas é que não quero que o
trates assim. (Entra Aprígio, muito timidamente,
cumprimenta os familiares na platéia. Lê a
MARCONDES — Não queres? cola da fala no chapéu e...)
(Oferece uma flor para dona Isaurinha) ANTONICO — Mas... Não e... Trata-se...
ANTONICO — Cuidado, dona Eulambia! MOTA — Morra, traidor! (Atira, mas o tiro
falha)
EULAMBIA — Não me chame de dona. Só
Eulambia. Eulambinha, Minha Eulambinha! OSVALDO — Não!
EULAMBIA — Faze essa vontade à tua MOTA — É uma bota da Sapataria Mota!
Eulambinha, meu amor! Canalha!
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Desamparadas. Estava no exercício de MARCONDES — (à parte) Meu amor?
minhas funções.
EULAMBIA — Para me trazer sabão...
ROSINHA — Ele é desamparado? É
donzela? MARCONDES — Sabão? Pois se pegaste
ontem...
EULAMBIA — Consultou-me sobre um
namoro. EULAMBIA — Já se acabou.
ANTONICO — Foi.
MARCONDES — Aqui há cousa!
EULAMBIA — Duvidas assim, meu Deus,
de uma senhora como eu? ANTONICO — (saindo) Já trago o sabão,
dona Eulambia.
ANTONICO — (à parte) Tive uma idéia!
(Para Rosinha) Fiz de propósito. ROSINHA — Quer que ensaboe a roupa
agora?
ROSINHA — Não caio nessa. EULAMBIA — Eu mesma ensaboo. Arruma
a sala, é mais leve.
EULAMBIA — É Marcondes? Estou
perdida. ROSINHA — Sim, senhora.
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MARCONDES — Chama-me de meu amor.
MARCONDES — Nunca saberá Tu vais Está mansa. Não há perigo. Deixa-te de luxo
contar? Eu vou contar? Está visto que não. e senta-te. É só um minuto, tetéia. Dou-te
um beijinho e está tudo combinado,
ROSINHA — Não é isso. O que 44 o senhor
vai fazer dela? ROSINHA — Não. (Ouve passos fora) Então
vá lá. (Senta-se)
MARCONDES — Fica por aí, como um
traste imprestável. É um estafermo. MARCONDES — Vem gente! (Entra
Antonico)
ROSINHA — Dona Eulambia não vai se
conformar. Ela ainda está conservada.
Cena IX
MARCONDES — Conservada? Já tem até
gogó como galinha velha! (Atirando-se) Tu, (Os mesmos e Antonico)
sim, tetéia, minha candonga, tu é que és da
gente arregalar o olho! ANTONICO — Que vejo, meu Deus!
ROSINHA — Quero tudo que o senhor me ANTONICO — Ah? Boa idéia. (Alto) Vou
promete, mas casando. contar tudo a dona Eulambia.
ROSINHA — Contento-me com a Pretoria. ROSINHA — Não. Seu Antonico não dirá
nada se o senhor souber ser grato.
MARCONDES — Ainda assim é difícil. Não
complica as cousas. Aceita a casinha e o ANTONICO — O sabão! (Alto) Dona
meu amor... Anda cá, senta-te aqui, ao meu Eulambia! (Sai)
colo, vamos conversar!
31
ROSINHA — Salvo o senhor se prometer ANTONICO — Peço-lhe a mão dela, dona
amparar o Antonico. Eulambia.
ROSINHA — Olha que digo que o senhor ANTONICO — Foi a senhora quem a criou...
me desencaminhou na vida!
ROSINHA — Olha que conto o que vi!
MARCONDES — Eu?
EULAMBIA — Pois sim. Aí a tem.
ROSINHA — Meta-se e verá.
ROSINHA — Antonico!
MARCONDES — E essa agora.
ANTONICO — Rosinha!
ROSINHA — Juro se for preciso.
ROSINHA — Agora pode me abraçar!
MARCONDES — Escândalo, não. Sou
negociante conhecido na praça e faço parte MARCONDES — Isto é que é... Entrou de
da União dos Varejistas. caixeiro...
EMPRESÁRIO — 1104, 1105, 1106! 1106 DOUTOR — (abraça Esse Menino) Não sei
pagantes! É um sucesso! se já lhe disse isso, Esse Menino, mas sem
você a companhia não anda!
TODOS — Sucesso?
EMPRESÁRIO — Que sucesso, doutor, que
(Entra Aprígio, guarda-chuva num braço, sucesso! 1106 pagantes!
malinha na mão. Todos ficam em silêncio.
Ele passa lentamente de uma coxia para a ISAURINHA — Podemos então pensar em
outra. Vê o revólver em cima de um móvel. uma peça de época, seu Staffa...
Pára. Apanha a arma. Olha fixamente para
ela, olha para todos. Leva o revólver até a EMPRESÁRIO — (à parte) Isso acaba mal,
testa e atira. O tiro não sai. Ele sacode os olá se acaba!
ombros e sai)
JULINHA— E eu, doutor? O que o senhor
EMPRESÁRIO — É um sucesso! tem para me dizer?
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JULINHA — Aleluia! (Os dois saem. A luz vai caindo. Fica só um
piano na Mocinha vestida com a roupa de
ENSAIADOR — Mas quem fará as Julinha Dias no entreato)
cortinas... Cômicas, doutor?
MOCINHA — (num pulo de alegria) Estou
EMPRESÁRIO — Isso acaba mal, olá se adorando isso aqui!
acaba!
JULINHA — O que é?
ISAURINHA — Bonito.
ISAURINHA — Quem?
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