Teatro Pedagogico Neofacismo

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação

Juliana Fraga

O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de


letramento histórico
para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo

Porto Alegre/RS
2022
Juliana Fraga

O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de


letramento histórico
para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
vinculada à linha de pesquisa Ensino e
Aprendizagem, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Educação, sob
orientação do Prof. Dr. Marcelo Leandro
Eichler.

Porto Alegre/RS
2022
Juliana Fraga

O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de


letramento histórico
para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo

Esta dissertação foi analisada e julgada


adequada para a obtenção do título de mestre
em Educação e aprovada em sua forma final
pelo Orientador e pela Banca Examinadora
designada pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

Aprovado pela Banca Examinadora em, 08 de novembro de 2022.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Marcelo Leandro Eichler (Orientador)


__________________________________________

Prof.ª Dr.ª Conceição Paludo


___________________________________________

Prof.ª Dr. Leonardo Maciel Moreira


___________________________________________

Prof.ª Dr. Marcello Paniz Giacomoni


____________________________________________
Ficha Catalográfica
| Ao meu pai José Carlos de Oliveira Fraga e à minha mãe Tânia Maria Fraga,
pelo exemplo de vida e ética, incentivo permanente, amor incondicional e por jamais deixarem de acreditar no
meu potencial.
| Às minhas irmãs Fernanda Fraga e Carolina Fraga,
sempre em luta e movimento por dias melhores,
mas sem jamais deixar meu coração e se fazerem presentes, duas mulheres que tenho orgulho e amor.
| Aos afilhados Heitor e Maria,
meus filhos emprestados a quem devo muito por trazerem
fofura, alegria e esperança para minha vida.
| Ao meu orientador Marcelo Eichler,
pelo incentivo, cuidado, inspiração e parceria,
devo este mestrado a ele que me fez enxergar minhas potencialidades.
| À memória do meu amigo Baggio, vítima da covid-19,
parceiro de luta e de sonhos (em tua honra Baggio, eles não morrerão).
| Ao Diego Madia
meu companheiro amado de luta, de dia a dia, de sonhos, de arte e delírios,
por reacender o melhor que há em mim, me fazendo (re)acreditar e viver o amor, e também por emprestar seu
talento, aceitando fazer as ilustrações desse texto.
| A todos(as) meus/minhas amigos(as),
por me ouvirem, me acolherem e amarem como eu sou,
em especial Gerso Paz e Cinara Moreira (amigos de longa data que muito amo e admiro),
que estiveram presentes em cada uma das etapas desse processo.
| Aos/às meus/minhas colegas da Lumiar,
parceiros(as) de luta, de criatividade e amor à educação,
em especial Brunna e Mariana B., que tantas e tantas vezes me ouviram e fortaleceram, e, claro, à Maria Soledad,
minha amiga e incentivadora,
pela confiança, e por ser uma inspiração na minha vida e na luta pela educação de qualidade, essa faz a diferença
real na educação!
| A todos(as) meus/minhas estudantes,
que dão sentido à luta pela educação e me fazem sorrir e esperançar,
em especial aos adolescentes, pois me ensinam muito.
| À Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
Faculdade de Educação – FACED, especificamente ao Programa de Pós-Graduação em
Educação – PPGEDU, em especial à Linha de Pesquisa Ensino e Aprendizagem,
pelos professores incríveis, por ser um espaço de ensino, pesquisa e múltiplos aprendizados. Aos colegas de PPPG,
em especial Jaque e Gláucia, parceiras de pesquisa e desabafos.
| E à Kasabian também,
que pacientemente ficava comigo durante os estudos e me alegrava me levando pra passear.

| Obrigada por tudo! Obrigada por trazerem oxigênio à minha vida! |


RESUMO

A era digital, que prenunciava uma democracia do conhecimento, o fim das fronteiras e uma
nova aldeia global de comunicação e de informação, gerou desinformação e ignorância em larga
escala. A Sociedade das Plataformas, caracterizada pela hiperconexão, tem ascendido
discussões no âmbito da educação sobre seus aspectos negativos, dentre eles, a propagação
vertiginosa de discursos negacionistas e conteúdo de cunho neofascista pelos meios
cibernéticos. Um contexto que desafia a educação comprometida com o conhecimento, em
especial o ensino de história, que, com os movimentos revisionistas e negacionistas, têm sido
constantemente desprestigiado, atacado e vigiado. Este é um cenário que exige uma reflexão
profunda sobre alternativas e práticas pedagógicas de enfrentamento da situação, assim como
metodologias capazes de atenuar as consequências maléficas da Sociedade das Plataformas. A
pesquisa “O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de letramento histórico
para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo” pretende responder à pergunta que
move a investigação: como a potência do teatro pode contribuir para o letramento histórico de
adolescentes no contexto da Sociedade das Plataformas, combatendo negacionismos e
neofascismo através de uma contra-educação? Para tanto, propõe-se relacionar ensino de
história, potência teatral e experiência estética, entrelaçando-os para o letramento histórico
coerente com uma contra-educação. A pesquisa dialoga com autores clássicos e
contemporâneos que defendem uma educação libertadora, desafiando a educação neoliberal,
como Paulo Freire, bell hooks e Márcia Tiburi. Também propõe aprofundar o estudo em
metodologias de pesquisa, como o enlace entre pesquisa-ação e a/r/tografia, visando contribuir
com futuros educadores/pesquisadores que acreditam em uma educação estética que desafie a
ignorância de nossos tempos. Além disso, a pesquisa busca nas memórias e nas experiências
pedagógicas da mestranda, nesse encontro entre teatro e história com adolescentes, elementos
para o diálogo com autores, que evidenciem uma contra-educação, como alternativa de
mitigação da ignorância - que seria típica da Sociedade das Plataformas - através de análise da
potencialidade de práticas, como jogos e improvisos, performance e produção de esquetes
(recursos que promovem diálogo, troca e necessidade de busca por referenciais históricos que
contribuam com a construção do conhecimento).

Palavras-chave: Sociedade das Plataformas, negacionismos, neofascismo, adolescentes,


pesquisa-ação, a/r/tografia, letramento histórico, potência pedagógica do teatro, contra-
educação.
ABSTRACT

The digital age, which heralded a democracy of knowledge, the end of borders and a new global
village of communication and information, has generated disinformation and ignorance on a
large scale. The Society of Platforms, characterized by hyperconnection, has raised discussions
in the field of education about its negative aspects, among them, the dizzying propagation of
negationist discourses and neo-fascist content by cybernetic means. A context that challenges
education committed to knowledge, especially the teaching of history, which, with the
revisionist and negationist movements, has been constantly discredited, attacked and watched.
This is a scenario that requires a deep reflection on alternatives and pedagogical practices to
face the situation, as well as methodologies capable of mitigating the harmful consequences of
the Society of Platforms. The research “Theatre with adolescents as a pedagogical possibility
of historical literacy to face denialism and neo-fascism” intends to answer the question that
moves the investigation: how the power of theater can contribute to the historical literacy of
adolescents in the context of the Society of Platforms, fighting denialism and neo-fascism
through counter-education? Therefore, it is proposed to relate the teaching of history, theatrical
power and aesthetic experience, intertwining them for historical literacy coherent with a
counter-education. The research dialogues with classic and contemporary authors who defend
a liberating education, challenging neoliberal education, such as Paulo Freire, bell hooks and
Márcia Tiburi. It also proposes to deepen the study in research methodologies, such as the link
between action research and a/r/tography, aiming to contribute to future educators/researchers
who believe in an aesthetic education that challenges the ignorance of our times. In addition,
the research seeks in the master's student's memories and pedagogical experiences, in this
encounter between theater and history with adolescents, elements for dialogue with authors,
which evidence a counter-education, as an alternative to mitigating ignorance - which would be
typical of the Platforms - through the analysis of the potential of practices, such as games and
improvisations, performance and production of sketches (resources that promote dialogue,
exchange and the need to search for historical references that contribute to the construction of
knowledge).

Keywords: Society of Platforms, denialism, neo-fascism, adolescents, action research,


a/r/tography, historical literacy, pedagogical power of theater, counter-education.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Cena do filme A pele que habito, Pedro Almodóvar (2011)


Figura 2 - Cena do filme A pele que habito, Pedro Almodóvar (2011)
Figura 3 - Homem com vestimenta que lembra a Ku Klux Klan em ato em Porto Alegre
Figura 4 - Ato na Av. Goethe a favor do gov. de Bolsonaro e em defesa do voto impresso
Figura 5 - Charge referência às fake news da campanha eleitoral de 2018 e referência ao grito
de guerra incentivado por Bolsonaro nas comemorações do 7 de setembro de 2022 (véspera
das eleições de 2022)
Figura 6 - Primeira página do diário de aula/vida, de 2019
Figura 7 - Construção coletiva do primeiro trimestre de 2019 do grupo F3
Figura 8 - Primeiras anotações do projeto F3/2019
Figura 9 - Assembleia dos Três Estados
Figura 10 - Grupos sociais que não puderam participar da Assembleia dos Três Estados
Figura 11 - Adolescentes do grupo F3 conversando sobre tabus com pessoas desconhecidas
do parque Redenção
Figura 12 - Documento de orientações do Café Filosófico com familiares
Figura 13 - Relatos dos estudantes na plataforma Lumiar, no dia do improviso da Assembleia
dos Três Estados
Figura 14 - Primeiros rabiscos de planejamento do projeto de teatro do F2
Figura 15 - Sinopse da peça Os fantasmas do museu Júlio de Castilhos
Figura 16 - Organização dos pontos de encontro das histórias do grupo F2
Figura 17 - Organização dos pontos de encontro das histórias do grupo F2
PRÓLOGO | p. 6

| A T O I | p. 16
O pulsar, a necessidade do espetáculo
| Cena 1: inspirações e primeiros rabiscos | p. 18
| Cena 2: a direção | p. 25
| Cena 3: o elenco: atores e atrizes | p. 32
| Cena 4: o cenário: Porto Alegre bizarra | p. 39

| A T O II | p. 46
O roteiro, como um paradoxo
| Cena 5: os bastidores | p. 48
| Cena 6: a coxia | p. 59
| Cena 7: o espaço cênico | p. 66
| Cena 8: os antagonistas | p. 77
| Cena 8.1: os antagonistas e seus subtextos | p. 84

| A T O III | p. 88
O ensaio, que é inesgotável
| Cena 9: a arena | p. 90
| Cena 10: o texto e os repertórios | p. 98
| Cena 11: os protagonistas | p. 108

| A T O IV | p. 114
Os encontros: na experiência que a montagem se cria e recria,
eis o espetáculo!
| Cena 12: cenografia | p. 116
| Cena 13: montagem teatral e o espetáculo | p. 119
| Cena 13.1.1: improvisos que levam à criação | p. 123
| Cena 13.1.2: improvisação teatral na aula de
história, e do caos fez-se o aprender | p. 126
| Cena 13.1.3: desdobramentos do improviso | p. 136
| Cena 13.2.1: uma montagem teatral “mucho loka” | p. 141
| Cena 13.2.2: peça: os fantasmas do museu Júlio de Castilhos | p. 144
| Cena 13.2.3: desdobramentos da montagem teatral | p. 149
| Cena 14: último enlace do roteiro | p. 155

| A T O V | p. 159
As cortinas se fecham e as luzes se apagam,
mas a trupe já pensa no próximo espetáculo
| Cena 15: as marcações de palco | p. 161
| Cena 16: novas montagens sugerem novos ensaios | p. 165
| Cena 16.1: últimas observações | p. 175

GRAND FINALE | p. 178

| Referências | p. 183
6

| PRÓLOGO

Figura 1 - Cena do filme A pele que habito, Pedro Almodóvar (2011).

Em tempos obscurantistas, a arte torna-se o caminho possível, a resistência, a


possibilidade, ela nos humaniza; sentir a arte, expressar, pois sentindo, somos… Vivemos sob
controles, vigilâncias e manipulações, porém a arte subverte, inverte, transcende, nos fazendo
ser e sentir, lembramos que ainda não somos os robôs que incansavelmente tentam nos
transformar. Somos gente! A arte é o caminho, o continuar sendo gente, o não abdicar de ser
gente.
Em 2020, a divulgação, na internet e outras mídias, de imagens do assassinato brutal de
George Floyd, homem negro asfixiado pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis, Estados
Unidos, por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado, fez
eclodir reações em dezenas de países contra a violência policial e a pela luta antirracista. Na
ocasião, George Floyd morreu brutalmente proferindo como últimas palavras as frases “Eles
vão me matar. Eles vão me matar. Não consigo respirar!”, por mais de vinte vezes Floyd clamou
“I can’t breathe” (eu não consigo respirar). Já no dia 25 de maio de 2022, Genivaldo de Jesus
Santos, foi brutalmente assassinado pela Polícia Rodoviária Federal de Sergipe, Brasil. Na
7

Figura 2 - Cena do filme A pele que habito, Pedro Almodóvar (2011).

ocasião, o homem negro foi morto depois de ser preso por dois policiais rodoviários federais
dentro de uma “câmara de gás” improvisada no porta-malas da viatura da polícia. O motivo da
abordagem foi porque Genivaldo estava andando de moto sem utilizar capacete.
Lamento iniciar minha dissertação recordando dois fatos tão brutais, duas mortes
violentas de dois homens negros, homens que não puderam mais respirar. E, sem respirar, por
insuficiência respiratória ou outras complicações provocadas pela Covid-19, pelo menos 669
mil pessoas morreram no Brasil. Abro esse trabalho evocando esses episódios com o intuito de
lembrarmos que precisamos respirar, pois o obscurantismo de nossos tempos tem nos tirado o
ar.
Lembro que ao assistir ao filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar (2011), fiquei
muito sensibilizada com a cena em que o personagem Vicente - já como Vera - aprisionado em
um quarto e em um corpo arbitrariamente mutilado e uma personalidade forjada, desesperado
em seu cativeiro, começa a rabiscar as paredes. Dentre números e desenhos, Vicente rabisca
uma parede inteira com a frase “sei que respiro”, e, aos poucos vai encontrando na arte e na
yoga a forma de suportar, de sobreviver, de não enlouquecer e, então, poder planejar sua fuga,
8

sua contravingança, sua libertação. A arte que cria, recria, expressa, denuncia, é a arte que nos
liberta e nos permite RESPIRAR.
Vivemos tempos de voragem1, no qual somos tragados violentamente, sorvidos,
devorados, consumidos e destruídos com a violência de um redemoinho de água que engole
todas as coisas para o fundo. Vivemos um turbilhão, em que constantemente “somos obrigados
a defender o óbvio”, conforme frase atribuída a Bertolt Brecht, em contexto fascista do século
XX. Onde tudo é hiper2, como já apontava Gilles Lipovetsky (2004), em Sociedades
hipermodernas, no qual dizia que o propósito já não é coletivista, mas individualista, ou seja,
uma busca acelerada e concorrencial, visando satisfazer desejos, em que todos os aspectos da
vida pessoal e social são pautados por um senso de consumo em massa, uma sociedade de
consumo.
Um mundo que Milton Santos definiu como “confuso e confusamente percebido”
(2001, p. 17), no livro que marcou o início dos anos 2000, Por uma outra globalização, no qual
também alertou ser o mundo da “aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a
começar pela própria velocidade” (2001, p. 17). Esse mundo que é o resultado do que Santos
(2001) chamou de “globalização perversa”3, a globalização da fome, do desemprego, do

1
A palavra “voragem” possui significado importante para mim. Nos encontros de nosso grupo de pesquisa em
agnotologia, meu professor orientador Marcelo Eichler constantemente nos provocava perguntando qual palavra
poderia traduzir a sensação causada por nosso tempo - o tempo contemporâneo. Em muitos encontros tentamos
expressar os sentimentos causados por esse contexto histórico de hiperconexão em uma palavra, mas elas pareciam
jamais expressar plenamente os efeitos destes tempos. Até que, com inúmeras tentativas e conversas sobre
significados e etimologias, o olhar de nosso professor se acendeu: “voragem”, disse ele. “Voragem?”,
perguntamos, e seguimos o encontro entusiasmados em compreender melhor o significado, buscar imagens,
relacioná-la com nossos estudos. Essa palavra contribui com minha compreensão sobre o assunto que desejava
pesquisar, os fenômenos dos negacionismos e neofascismo impulsionados pelo digital. Voragem, no dicionário
Aurélio, é “aquilo que sorve ou devora, turbilhão, tudo que subverte ou consome”. Em pesquisa no Google, como
primeira aparição, está a definição da Oxford Languages, como “tudo aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir
com violência, remoinho de água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para o fundo;
sorvedouro, turbilhão”. Após muitas discussões, nosso professor, em um momento “eureka”, conseguiu expressar
o que há tanto procurávamos: vivemos tempos de voragem!
2
Ao me referir aos exageros característicos da atualidade, utilizarei o prefixo hiper - como referência ao termo
“sociedade hipermoderna”, inaugurado por Gilles Lipovetsky (2004) -, para caracterizar os tempos atuais, em que
tudo é elevado a um nível colossal, sem limites, desmesurado, ou seja, uma era de exageros, que só superlativos
são capazes de definir (como hiperindividualismo, hiperconsumo, hiperconectividade, hipercapitalismo,
hipermercados etc.). “A escalada paroxística do ‘sempre mais’ se imiscui em todas as esferas do conjunto coletivo.
Até os comportamentos individuais são pegos na engrenagem do extremo” (LIPOVETSKY, 2004, p. 55). Uma
referência também a Carles Feixa, Ariadna Fernández-Planells e Mónica Figueras-Maz (2016, p. 108) que utilizam
a referência de hiper para caracterizar a sociedade digital já madura, em que o digitalismo é intensificado e se
expande social e geograficamente, podendo ser descrita como hiperdigital, termo “derivado do trabalho de Jean
Baudrillard sobre hiper-realidade no final da era moderna”.
3
Segundo Santos (2001), no livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal,
apresentava a “globalização como fábula”, que prometia ser o único caminho, aquele em que tudo seria facilitado,
uma “aldeia global” onde não haveria mais fronteiras, a comunicação seria facilitada e promoveria a criação de
conhecimentos infinitos. No entanto, a realidade apresentava uma “globalização perversa”, díspar que acentua
desigualdades entre países e classes sociais. Sua proposta era de que os países periféricos apostassem em uma
“outra globalização”, essa outra globalização seria o mundo que poderia ser, isto é, uma globalização mais humana,
9

agravamento das múltiplas desigualdades. Como (re)agir no mundo que é a consequência da


branquitude4 capitalista e sua globalização perversa? Temos alternativas? Há para onde fugir?
“Já não há para onde ir", disse Néstor Garcia Canclini (2016, p. 57), no livro O Mundo
inteiro como um lugar estranho, em que narra a sensação de milhões de exilados que saem, sem
esperança, de suas pátrias com governos autoritários, mas não conseguem sentir-se
estrangeiros, pois, em tempos de hiperconexão digital, não há mais diferença entre público e
privado, fugir para outro lugar não é garantia de mais nada, já que problemas como xenofobia,
preconceitos e violência são uma realidade. Além disso, o mundo digital já não dá escolhas,
impõe a vigilância, o controle, a espionagem e a manipulação para fins comerciais e políticos.
Não há mais para onde fugir, não há onde construir outro lar, não podemos mais ser
estrangeiros. Se não há como fugir, o que temos então?
Certamente não há respostas, mas busquemos na sapiência de Paulo Freire caminhos
possíveis, como sugere o título da obra Pedagogia dos sonhos possíveis (2014/2021),
organizada por Ana Maria Araújo Freire, na qual, em diversos textos, o educador pontua a
necessidade de não cairmos em fatalismos, além de reforçar a importância da esperança 5 e do
sonho. A citação “o meu discurso em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da democracia é
o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto de ser gente, que o
fatalismo deteriora” (FREIRE, 2014/2021, p. 78) pontua que a história não termina em nós, ela
segue adiante. Afinal, por mais problemática que seja a realidade, ela não é dada, não é
determinista. Seguir, resistir, lutar e sonhar, mesmo que em tempos obscuros, é necessário, pois
humanos que somos, precisamos dos sonhos para sermos existência, não só sobrevivência e
resignação. Tal qual Milton Santos, que mesmo ciente do rumo da perversidade, acreditava em
um mundo possível, em uma outra globalização que não fosse fruto da perversidade capitalista.
Muitas vezes, ao estudar, escrever, pesquisar, ir para aula, trabalhar, viver e ver a vida,

em que partiriam das periferias globais as possibilidades de uma nova globalização, com menos desigualdade e
injustiça entre os povos.
4
Conforme Lourenço Cardoso (2010), existem muitas identidades da raça branca, entretanto, usa-se branquitude
como uma definição genérica, um lugar confortável, pois coloca-se como uma não raça enquanto os não brancos
são racializados. Para Cardoso (2010, p. 611), “a branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos,
objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial,
discriminação racial ‘injusta’ e racismo”. Portanto, a branquitude é a construção de uma identidade pautada nos
conceitos coloniais de que brancos são normais - o modelo ideal -, e, então, os demais (os não brancos) podem ser
submetidos.
5
Me refiro à esperança no sentido freiriano do verbo esperançar, não de espera, como bem colocado por Freire no
livro Pedagogia da esperança – um reencontro com a pedagogia do oprimido (1992), no qual ele explica que
“enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso
que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim,
espera vã” (FREIRE, 1992/2022, p. 5).
10

busco a esperança, que nem sempre vem. Desânimos chegam aos golpes6, anos difíceis,
realidade dura, vidas cada vez mais fragmentadas e despedaçadas. Muitas vezes me peguei
questionando: como honrar meu posicionamento progressista em educação com palavras e
ações de esperança, em um contexto histórico de desesperança, de bizarrice e obscurantismo?
Acredito que o próprio ato de pesquisar faz parte do meu esperançar, pois essa pesquisa almeja
promover um pouco de leveza e esperança. Apesar da necessidade de caracterizar o contexto e
a sociedade atual, a qual aponta inúmeros desafios aos educadores e educadoras. Esta não é
uma pesquisa pessimista, mas uma que se propõe a trazer alternativas, ideias e perspectivas que
possibilitem um diálogo mais esperançoso em tempos de desesperança. No entanto,
obviamente, que não se entenda que a proposta é a de encontrar soluções, porque essas precisam
de muito mais que uma pesquisa; precisam do encontro entre eu, você e tantos outros e outras
que não acreditam nos fatalismos e que vivem na constante busca de sua completude, na utopia
enquanto busca, movimento e sonho.
Para me aproximar do pensamento de Freire (2014/2021, p. 51) que diz que “temos que
nos esforçar para criar um contexto em que as pessoas possam questionar as percepções
fatalistas das circunstâncias nas quais se encontram, de modo que todos possamos cumprir
nosso papel de participantes ativos da história”, a presente pesquisa fundamentou-se sob essa
perspectiva: uma pesquisa que valoriza a boniteza do educar, uma pesquisa em história-arte-
educação, uma pesquisa que almeja e é ação, uma pesquisa utópica, uma pesquisa radical7.
O desejo de pesquisar e ser uma professora-pesquisadora sempre existiu, mas não fora
realizado logo, pois, lamentavelmente, a dinâmica de vida e de trabalho nem sempre possibilita
que consigamos realizar nossos objetivos e sonhos. Aliás, justificativa bastante rasa essa minha,
certamente o afastamento da academia por uma professora tão entusiasmada com a educação
não ocorreu meramente por dificuldades cotidianas, mas, sim, pelas estruturas, pelo capitalismo
do patriarcado, que exige de nós mulheres o máximo de produtividade, de expectativas de
outros, de sobrecarga para a sobrevivência a ponto de, muitas vezes, vermos a nós mesmas
apenas como operárias cumpridoras ou cuidadoras, deixando de reivindicar nosso legítimo
espaço de acadêmicas e de pesquisadoras.

6
Utilizo a palavra “golpes” no sentido de pancada, batida, grande impacto, mas pode ser perfeitamente entendida
como Golpes de Estado, que afetam nossas vidas individuais e coletivas, como o golpe jurídico-parlamentar de
2016, que destituiu a presidenta eleita democraticamente Dilma Rousseff, abrindo definitivamente portas para o
projeto da extrema direita.
7
Radical no sentido que Freire (1974/2019, p. 34) dá à palavra, como sujeito que acredita nas mudanças e
transformações; a radicalização criadora, crítica, engajada com a transformação da realidade concreta e objetiva,
e, portanto, libertadora.
11

Apesar dos vinte anos de profissão e intenso trabalho na área da educação, quis o
destino, quis o tempo, quiseram as deusas e os deuses, quem sabe o universo, que o ingresso no
mestrado fosse justamente num momento de explosão de sentimentos, motivado por muita
revolta e indignação para com o período que estamos vivendo. De desconstruções e reações,
nasceu uma pesquisadora, precisou-se de uma consciência de si, da compreensão da
radicalidade que em mim habita, do entendimento de que era necessário agir, do cansaço de
estar cansada unido à sensação de impotência diante da realidade, e do entendimento que as
dores precisavam ser transformadas em ação e em possibilidades.
Podemos definir esses tempos, como tempos distópicos, entretanto, mesmo que tentem
constantemente nos transformar em máquinas e robôs controláveis, ainda somos humanos,
como disse Freire (2014/2021, p. 78), “seres programados para aprender e que necessitam do
amanhã [...] tornam seres ‘roubados’ se lhes nega a condição de partícipes da produção do
amanhã”. E eu cansei de ser roubada em silêncio! A pesquisa, o estudo, a educação e a arte são
as minhas armas, a minha reação e a minha forma de resistir e existir.
Compreender que vivo numa Sociedade da Ignorância8 fez com que eu superasse
empecilhos, justificativas, medos, inseguranças múltiplas e, então, ousasse reagir. Se a vida se
mostra ignorante, confrontarei as minhas próprias ignorâncias; se estamos cercados de
desinformação, buscarei ainda mais a informação; se a vida se mostra trágica, buscarei ao
máximo a boniteza tão citada por Paulo Freire. E, assim, a educadora finalmente tornou-se a
educadora-pesquisadora que sempre almejou ser.
Por Sociedade da Ignorância, entendo o resultado do apogeu do capitalismo através do
impulso digital, o mundo construído pelas mídias e pela hegemonia da racionalidade neoliberal.
Um contexto no qual a ignorância não é mais aquela que impulsionava o saber à la Sócrates,
mas uma ignorância arquitetada, muito bem projetada e propagada pelas mídias digitais para
fins comerciais e políticos. A sociedade em que o mercado é a grande prioridade, sendo Estados,
políticas e relações seus servos subservientes, a necessidade de lucro é colocada acima de vidas
e da humanidade.

8
Entende-se Sociedade da Ignorância como a sociedade resultante das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs) e do advento e popularização da internet. As tecnologias digitais foram glorificadas como as ferramentas
capazes de proporcionar e propagar conhecimento como nunca antes, porém, na sua prática não temos uma
“sociedade do conhecimento”, mas, sim, uma “sociedade da informação” que resultou numa “sociedade da
ignorância”, termo que revela a dicotomia: mais informação, mais desinformação. Ainda em 2009, Antoni Brey
caracterizava esse fenômeno da digitalização como paradoxal, defendendo que quanto mais informação, mais
ignorância teríamos, mais conexão digital, mais desconectados das características que nos fazem humanos e
humanas.
12

A Sociedade da Ignorância (no Brasil, o termo “ignorância” significa ainda mais que
não saber, não conhecer9) é a sociedade da hiperconexão, que ascendeu novas formas de
idiotice, como diz Olga Goriunova (2012); de subjetivação e de fascismos, conforme Márcia
Tiburi (2019); de distraídos virtuais, segundo Rosana Ferreira Alves (2017); ou, ainda, uma
geração superficial, com cérebros sobrecarregados e incapazes de raciocinar sobre problemas,
menos empáticos e menos humanos, como defende Nicholas Carr (2011). A Sociedade da
Ignorância também pode ser caracterizada como a sociedade do “recorta e cola”, das redes
sociais que favorecem novos tipos de estupidez coletiva, como salienta Andrew Keen (2012).
A sociedade das bolhas e da ignorância partilhada e tornada identidade, favorecida pelos
sistemas de algoritmos, que desenvolvem novas formas de intolerância e redes de ódio. Uma
sociedade que nega o conhecimento, transformando suas negações em bandeiras, que não
problematiza a ciência, mas a ataca, aderindo a discursos e práticas racistas, misóginas,
heteropatriarcais, xenófobas, negacionistas e neofascistas.
A contemporaneidade caracteriza-se como uma sociedade de lucro para poucos, um
tempo de intensa globalização neoliberal. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2018, p. 84),
“o contexto é de fascismo social e político difuso”, resultante do mundo criado pelo
neoliberalismo após a queda do muro de Berlim, em 1989, e da quarta Revolução Industrial
(microeletrônica, genética e robotização), que, impulsionada pelas mídias digitais, submeteu
todo planeta ao mesmo modelo de desenvolvimento hegemônico: o capitalismo em sua versão
neoliberal, elevando a democracia liberal (de baixa intensidade) ao único sistema político
legítimo e, mesmo esta, foi desvirtualizada, pois “passou a ser usada para legitimar a
superioridade do princípio de mercado e, no processo, transformar-se ela própria num mercado
(corrupção endêmica, lobbies, financiamento de partidos, etc.)” (SANTOS, 2018, p. 28). Um
desmantelamento e destruição que têm por princípio não mais o Estado como regulador social,
mas um regulador mercantil, que não protege nem garante, minimamente, os direitos
fundamentais, resultando no que Rubens R. R. Casara (2018) chama de uma “pós-democracia”,
ou, como defende Marilena Chauí (2014), uma democracia que no Brasil jamais foi substantiva,
reduzida a um regime político e não a uma sociedade democrática, e, com o avanço neoliberal,
vive hoje seu colapso (CHAUÍ, 2021).

9
O termo “ignorância”, no Brasil, tem embutido em seu significado um aspecto de violência (verbal, física,
cultural etc.) diferente do que ocorre em outros países. Discorro sobre essa singularidade para alertar a importância
de olharmos para nossas peculiaridades na Sociedade da Ignorância.
13

Na Sociedade da Ignorância, as classes são vistas como naturais, os discursos de


meritocracia são aceitos sem muito questionamento, tampouco revoltas, assim como “o valor
da ‘verdade’ é substituído por uma mercadoria chamada de ‘pós-verdade’, fonte privilegiada
para a fabricação de certezas delirantes e fake news” (CASARA, 2018, p. 23). Tempos sombrios
(GAMBETTI, 2019), da necropolítica (MBEMBE, 2020), de crescimento neofascista,
plenamente compatível com a antropologia neoliberal e fruto do seu projeto, que prega a
competitividade baseada no mérito e a destruição dos “fracos” e “fracassados”, de modo que os
assim chamados perdedores se tornam a categoria dos não humanos.
Ainda, Sociedade da Ignorância é uma ótima classificação para definir nossos tempos,
uma vez que seu termo surgiu do paradoxo “sociedade do conhecimento”, ou da informação,
que gerou mais desconhecimento e desinformação (BREY, 2009). No entanto, o que provocou
esse paradoxo? A resposta pode estar na análise das Sociedades das Plataformas 10, sobre as
quais José van Dijck, Thomas Poell e Martijn de Wall (2018) afirmam que a vida
plataformizada em diversos setores promove novos mecanismos sociais com profundas
consequências. Uma relação diferente com o conhecimento é forjada, contrapondo à divulgação
científica, o pensamento reflexivo e o debate profundo. Segundo van Dijck, Poell e de Wall
(2018, p. 65),
[...] a maioria das plataformas tende a incluir sinais de interesse pessoal e global em
sua seleção algorítmica de conteúdo “mais relevante”, “principal” ou “tendência”. Ao
fazer isso, eles privilegiam o conteúdo que gera rapidamente mais engajamento do
usuário. A seleção automatizada de notícias gira em torno dos princípios de
“personalização” e “viralidade” – princípios que são fundamentalmente incorporados
às arquiteturas de plataforma – levando os usuários a compartilhar conteúdo com seus
amigos e seguidores e, portanto, solicitando uma resposta “emocional”.

Segundo Felipe Rocha L. Santos (2017), as plataformas funcionam através de


algoritmos que filtram o conteúdo a que teremos acesso segundo predição e análise,
apresentando o que supostamente nos agrada e nos deixa satisfeitos, exibindo o conteúdo que
tem mais chance de ser curtido e, portanto, atingindo maior alcance. O algoritmo fornece seu
conteúdo conforme análise de perfil, afinal, o intuito das redes sociais é fazer com que seus

10
Vivemos o período de apogeu da sociedade informática, descrita por Adam Schaff (1995), na qual as tecnologias
digitais da informação e da comunicação atingiram larga escala, envolvendo um conjunto diverso de instrumentos
e recursos tecnológicos. Devido à sua expansão em larga escala, vivemos atualmente numa sociedade que utiliza
plataformas digitais em diversos setores (notícias, transporte urbano e saúde, inclusive a plataformização tem
avançado para a educação, gerindo seus processos). Segundo van Dijck e Poell (2018), as mídias sociais não são
apenas ferramentas, mas plataformas, constituídas e impulsionadas por uma interação complexa entre arquiteturas
técnicas, modelos e atividades, visando negócios e usuários em massa; uma arquitetura, que se ampliou em tantos
setores, que inseriu novos mecanismos na vida social. Os autores explicam que o termo “Sociedade das
Plataformas” deixa mais evidente a abrangência das plataformas, isto é, a conectividade afeta instituições,
transações econômicas, práticas sociais e culturais, pressionando que governos e Estados ajustem suas estruturas
legais e democráticas.
14

usuários sintam prazer. As mídias virtuais, segundo Chauí (2021), operam com aparências em
substituição da realidade, para que as pessoas pensem menos e desejem mais, formando uma
subjetividade depressiva, pois cobra-se sempre vencer, fomentada pela ilusão do “empresário
de si”, frustrando-se constantemente; e, também, uma subjetividade narcísica, que supõe que
estar vivo é ser visto, exibindo-se excessivamente e sem interrupção, substituindo o espaço
público pelo privado, ligado a gostos e fantasias, fortalecendo os interesses do capital,
falsificando a si, o mundo e o social.
Nicholas Carr (2011), no livro A geração superficial, analisa os impactos do excesso de
informações, alertando que os algoritmos são como filtros-bolhas, problemáticos por conduzir
o pensamento a uma bolha informacional invisível, advertindo sobre suas consequências
epistêmicas nocivas, especialmente em relação à informação política, pois cria o efeito “câmera
de eco”, isto é, uma informação é replicada em diversos meios de comunicação e fontes,
geralmente corroborando crenças e ideias do usuário. Segundo van Dijck, Poell e de Wall
(2018, p. 68), da mesma maneira que a informação circula de forma muito rápida, a
desinformação tende a fazê-lo muito mais rápida e amplamente que informações verdadeiras.
Em se tratando de ideologias e política, a situação torna-se alarmante. Conforme Santos (2017,
p. 676),
[...] pessoas que não têm uma opinião formada sobre o tema podem aceitar como
verdade a informação passada, sem buscar verificar outras fontes que não fazem parte
da câmara de eco e as pessoas que já possuem a crença podem aumentar ainda mais a
crença nesta informação e em outras similares.

Alves (2017), ao pesquisar a geração Z (pessoas nascidas entre 1996 até 2010),
constatou que, apesar de já nascerem na era digital, não são necessariamente letrados digitais,
mas sim distraídos virtuais, pois usam dos instrumentos tecnológicos para resolver todas as
questões e problemas que puderem, poupando esforços, ou para distrair-se, preferindo
constantemente experiências virtuais às reais. Abordando as inúmeras consequências que o
excesso de exposição digital pode provocar, Alves (2017) destaca a importância de a educação
não focar apenas no desenvolvimento de habilidades do uso das ferramentas em si, mas
promover ações de orientação e supervisão do uso, de forma a evitar danos individuais (de
ordem psicológica e cognitivo-comportamental), além de sociais, que os usos compulsivos
possam desencadear.
Nesses tempos que exigem muito da educação, muito se fala no letramento digital, que
é importante, mas precisa caminhar junto a outros letramentos que possibilitem aos estudantes
usar com mais segurança e propriedade as redes, mas também compreender as estruturas e os
15

interesses econômicos e políticos que a fomentam. Sob esta perspectiva que a presente pesquisa
se realizou, visando enfrentar os desafios que o contexto atual impõe, propondo pensar numa
“contra-educação” (TIBURI, 2013), ética e estética, que contrarie a educação majoritária do
capital que nos sufoca, devora, traga, sorve e violenta. Para tanto, apresento o letramento
histórico como convergente em relação à essa proposta, conectado e/ou atravessado pela
potência criativa das artes, pois compreendo o teatro como linguagem facilitadora e pujante
para o letramento, contribuindo com o enfrentamento da ignorância, combatendo
negacionismos e neofascismo típicos da Sociedade das Plataformas.

.
16

ATO I

O pulsar, a necessidade do espetáculo


17
18

| Cena 1: inspirações e primeiros rabiscos

Estamos sendo tragados pelo digital, vivemos tempos de excessos de toda ordem,
inclusive excesso de ignorância. Como pessoas desses tempos digitais, como educadores
cansados de um 2020 perturbador e de um 2021 insano, esgotados pelos excessos de telas e de
informações, exauridos em lutar contra a desinformação em tempos de pandemia de covid-19
e de democracia canalha11 no Brasil, vivemos, de fato, numa voragem.
Essa pesquisa se propôs a compreender o contexto atual e pensar em possibilidades de
enfrentamentos da ignorância de nossos tempos, através da educação, compreendendo o
letramento histórico como uma necessidade e as artes como uma possibilidade/necessidade -
em especial, a potência do teatro -, na construção de uma contra-educação. Contra12 no sentido
positivo e radical, de não aceitação, de não obediência, de reação ao ensino mercantilizado.
Como já referido, tornei-me mestranda justamente nesses tempos de voragem: minha
seleção foi em 2020, meu primeiro ano como mestranda 2021 e, esse ano de 2022, considero
de muitas aprendizagens e produções, um período que já se tornou muito marcante em minha
vida, pois, nessa sequência de desafios, minha história confunde-se com a de meu país, e minha
força com a de tantas brasileiras e brasileiros, que lutam diariamente por uma outra realidade
que não essa forjada pelo capital. Inicio minha dissertação relatando um pouco do caminho
percorrido até aqui, de como foi o processo de pesquisa, seus objetivos e intenções, assim como
os caminhos que ainda pretendo continuar trilhando.
No prólogo, procurei apresentar a necessidade de respirar, afinal, sem ar não vivemos.
Assim, nos últimos tempos tem sido difícil esse processo tão natural, que por vezes nem
percebemos. Na verdade, só entendemos o respirar justamente quando o ar nos falta - e tem nos
faltado muito ar. Presenciamos milhares de brasileiros e brasileiras morrerem sem ar nos
hospitais no auge da covid-19; vivenciamos o alarmante caso de Manaus, que, em janeiro de
2021, chegou a ficar dois dias sem cilindros de oxigênio, em pleno colapso da rede de saúde,

11
Néstor García Canclini (2015), em entrevista concedida à Carme Ferré-Pavia, Gisella M. Sousa e Esmeralda
Monteiro, na Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, chamou de “democracia canalha” a democracia em
decomposição ou deterioração, a decomposição da própria ideia de democracia, em que o suborno se torna o novo
contrato social, representações sociais se enfraquecem e vão perdendo seu sentido, relacionando-se com forças
corruptivas; assim como o aumento do desemprego, trabalho informal crescente e precarização das leis
trabalhistas; globalização de dados para fins de espionagem, déficits dos sistemas democráticos e desregulação das
regras de mercado de trabalho; instituições públicas abduzidas por poderes empresariais e militares, impunidade
aos que traficam bens e pessoas nas fronteiras; e o silenciamento, provocado pelo medo de população civil em
articular-se diante da perda de seus direitos.
12
Breve acordo de estilo: usarei a palavra “contra”, no sentido positivo, isto é, “contra-majoritária”, em
discordância à hegemonia neoliberal, e contra em itálico para nos referir ao seu sentido negativo, quando hostil a
práticas democráticas ou libertadoras.
19

uma saúde sem ar. A educação também segue sem oxigênio, estrangulada pela falta de
investimentos e políticas de controle e desmantelamento. Como nos livrar dessas mãos grandes
e monstruosas do mercado que impede a educação de respirar? Talvez a resposta esteja no
coletivo da sociedade, mas nos cabe lembrar, apesar da insistência do sistema econômico
capitalista em nos fazer esquecer, que somos sociedade e, se acreditamos ainda na força do
coletivo, lembraremos que há caminhos possíveis, ou “sonhos possíveis” (FREIRE,
2014/2021), afinal, esperar por uma consciência por parte da elite econômica, dos privilegiados,
jamais será uma boa opção.
A partir dessa consciência e necessidade de ação, a pesquisa surgiu como um caminho,
teorizar, entender, melhorar meu trabalho como educadora, contribuir com outras educadoras e
educadores, com a comunidade acadêmica, com a educação; essas foram as motivações para
esta pesquisa. O tempo atual, brevemente apresentado no prólogo, são tempos obscurantistas,
de impedimento do saber, de falta de pensamento crítico, de ocultamento da realidade, e,
principalmente, de emergência de reações. Assim, surgiu o tema “o teatro com adolescentes
como possibilidade pedagógica de letramento histórico para o enfrentamento de
negacionismos e neofascismo”, enlaçando três paixões pessoais: a história, minha formação
inicial e formal na graduação; o teatro, que me encontrou ao trabalhar história; e os
adolescentes, grupos muitas vezes incompreendidos nas escolas e pela sociedade, do qual amo
trabalhar, pois aprendi e continuo aprendendo muito com grupos de ‘adolescentinhos’, como
carinhosamente gosto de falar.
Eu resisti um pouco em assumir a importância da arte em minha vida, pois, apesar de
ela estar presente desde sempre, o capitalismo nos fere, molda, prende, subjetiva, violenta e,
assim, crescemos nos cobrando ser o que ele quer que sejamos. Lembro de algumas frases que
ouvi quando aos 28 anos decidi ir fazer teatro: “pra que, se você não vai ganhar nada com
isso?”, “em vez de focar na sua área vai brincar de teatro, o que quer com isso?”, “vai perder
tempo e dinheiro, hein". Essas frases me deixavam confusa e eu refletia: ganhar o quê?
dinheiro? brincar? minha área? perder tempo? Eu não argumentava muito com as pessoas que
questionavam, apenas dava de ombros, tinha certeza que precisava fazer teatro. Precisava,
queria, necessitava, intuía, eu sentia. E, sentindo, encontrava o impulso para seguir. Não tive
qualquer incentivo para fazer teatro, com exceção dos meus alunos, parceiros do dia a dia, que
viam em sua professora uma artista, uma parceira do sentir; jamais esquecerei do grupo de
adolescentes que me incentivou e fez tanta diferença na minha vida.
Como mencionei anteriormente, a arte sempre esteve presente. Na infância tive pouco
acesso a fontes de cultura, como livrarias, menos ainda a teatro, cinema e outras. Não havia
20

nada disso na cidade de Nova Santa Rita13 nos anos oitenta ou noventa, possivelmente ainda
não exista muito disso atualmente. No entanto, estava ali em mim o interesse e a curiosidade,
lembro que enquanto criança refugiava-me nos desenhos (não importa muito, mas deixo claro
que não sou boa em desenhar): desenhava mulheres em miniatura, criava narrativas, relações
entre elas, personalidades, cada uma tinha nome e uma história. Também guardo com carinho
as lembranças dos presentes de minha tia Susana, que, na época trabalhava na editora da
Unisinos participando das feiras do livro de Porto Alegre, onde descobria livros maravilhosos
e presenteava a mim e minhas duas irmãs. Era uma alegria só, lemos e relemos os livros várias
vezes.
Uma das memórias mais marcantes, no entanto, não foi dos presentes da feira do livro,
mas de uma caixa velha de papelão. Essa tia fez uma limpeza em sua casa e resolveu despachar
para a nossa, seus livros velhos, dizendo que era para ficarmos com o que queríamos e doar o
resto, ou até mesmo queimar. Fiquei com a caixa toda, brincava de pirata que encontrava um
tesouro valiosíssimo - o baú, a caixa de papelão; o navio, a garagem da minha casa; as joias, os
livros; mas a mais valiosa delas: o livro de história da arte. Eu não lembro mais o nome do livro,
mas lembro de suas páginas coloridas, lembro de ler e reler sobre mitologias, sobre pintores
que nem sabia da existência. Aquele livro era meu tesouro mais valioso.
Não tenho lembrança alguma de assistir a peças de teatro, creio que viria a assistir
somente na adolescência, na escola. Mesmo assim, o teatro estava em minha vida: na quarta
série fomos incentivados a criar uma peça, fui diretora, roteirista, atriz, figurinista, maquiadora
e até sonoplasta - e, assim, múltipla fui em todas as propostas escolares que envolviam teatro.
Eu realmente amava esses momentos, meu orgulho como estudante foi a releitura da obra Dom
Casmurro, de Machado de Assis. Essa peça surpreendeu minha turma, minha professora e a
mim mesma, pois fiquei feliz com o resultado e com as aprendizagens proporcionadas pelo
processo de construção teatral.
Já no curso de História, escolha que fiz por uma necessidade de compreender o mundo
e trabalhar em educação, tive como professor José Alberto Baldissera. Esse professor tornou-
se fundamental em minha formação profissional, pois ele via história através da arte e arte
através da história, ou seja, a potência artística estava sempre relacionada com o ensino de
história. Fiz quatro disciplinas com esse professor, assim como ele também foi meu orientador
no trabalho de conclusão com o título “Muralismo Mexicano: Reconstruindo a identidade
nacional mexicana pós revolução de 1910”. Eu amava as trocas com ele, tão espontâneo e

13
Cidade da região metropolitana de Porto Alegre, onde morei até meus vinte anos.
21

sarcástico, era uma delícia nossos encontros nos cafés da Unisinos, enquanto ele lia meus textos
e reclamava com humor ácido, coisa que eu não me importava nem um pouco, já que sentia que
crescia muito a cada encontro, pois fui percebendo que era uma forma peculiar de ele dizer que
se sentia à vontade comigo. Elogio dele só recebi mesmo quando entreguei o trabalho
concluído, e nem preciso dizer o quanto fiquei orgulhosa por ser bem avaliada por um professor
tão exigente e incrível.
Grande parte das referências que usei no meu TCC foi colhida da biblioteca particular
do professor Baldissera, uma vez que não havia tantas opções na biblioteca da universidade que
contemplassem a arte engajada, principalmente os muralistas mexicanos, pois ainda não
estávamos nos tempos de tantas facilidades tecnológicas, portanto os empréstimos do professor
eram fundamentais. Vocês, leitores, não imaginam como era pegar um livro emprestado do
Baldissera: minutos e minutos de advertência, orientações de como cuidar, evitar assaltos,
contava-me sobre a história de cada livro, onde os adquiriu em suas viagens, tudo que você
possa imaginar. Foi aí que descobri que meu professor também via seus livros como joias que
deviam ser cuidadas e compartilhadas com muito afeto.
A vida é tão imprevisível, não é mesmo? Quem imaginaria que, anos depois, esses
mesmos livros estariam comigo, cada um deles. Em 2019, recebi uma ligação de minha irmã
que trabalhava na Unisinos, dizendo “corre aqui se tu quiseres uma lembrança material do teu
professor preferido, a família dele resolveu vender toda a biblioteca pessoal do Baldissera”.
Meu professor havia falecido em 2017. Eu corri mesmo, com uma sensação estranha, pois sentia
que Baldissera odiaria saber que seus livros estavam esparramados de qualquer jeito numa sala
sendo vendidos. Ele ia amaldiçoar, ofender, esbravejar. Tantos anos de estudo esparramados
pelo chão de qualquer jeito, suas joias ali expostas como mercadoria. Passei a tarde buscando
nas pilhas os “nossos” livros e trazê-los para casa me acalmou um pouquinho, pois considerava
a minha herança. Acho que ele ficaria menos furioso em saber que fiquei com os livros que ele
tanto adorava com as belas imagens dos muralismos mexicanos.
Por que estou fazendo esse relato? Creio que não contamos nossa história para os outros,
mas para nós mesmos e, ao relatá-la, ela ganha novos significados, renova-se a importância de
fatos quase que já esquecidos. Na ocasião da qualificação do projeto de mestrado, o professor
Dr. Leonardo Moreira problematizou sobre a potência do teatro e do letramento histórico,
perguntando qual era meu direcionamento com a pesquisa, o que seria a arte: uma ferramenta
nas aulas de história ou uma linguagem a possibilitar e levar organicamente ao conhecimento
histórico? Eu rapidamente respondi que compreendia a arte como linguagem e não apenas uma
ferramenta. Ela é a potência, o fio condutor que leva a outras necessidades e, portanto, ao
22

letramento histórico. Não lembro exatamente como o professor formulou a indagação, mas
perguntou se eu acreditava que a arte provoca outras necessidades, assim, de forma natural,
como através de experiências teatrais. Mas lembro que eu disse que sim, acreditava nisso. Me
senti absolutamente segura diante desses questionamentos. No entanto, foi aí que o professor
tirou todas minhas certezas com mais uma pergunta: “então você é uma artista?”. “Artista?” -
eu respondi com dificuldade - “Como assim artista? Eu não sou artista, sou professora”.
Continuou o professor: “mas o que faz e pretende pesquisar não seria arte?”, a que respondi:
"sim, eu faço arte e educação”. Seguiu o professor Leonardo: “então você é pelo menos três
coisas: artista, professora e pesquisadora”. Eu concordei timidamente, apesar da dúvida que me
acometeu, um sim tímido e tranquilo, mas a mente perturbada pensando: “como assim artista?”.
Essa dúvida só ficou mais tranquila para mim durante o processo de pesquisa, ao
aprofundar os estudos sobre Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA): a a/r/tografia, que
será melhor explicada ao longo da dissertação. No período logo após a defesa do projeto, pensei
muito sobre o assunto e percebi, naquela ocasião, que não sabia mais dizer qual minha área na
educação. Tive experiências variadas, estive em diferentes espaços nas escolas - por último,
como tutora14 na escola Lumiar Porto Alegre, lembro que já me sentia confusa quando alguém
me perguntava: “você é professora do que?”. Na Lumiar eu acompanhava permanentemente
um grupo de adolescentes construindo com eles seus projetos e oficinas e algumas práticas
recorrentes, sendo assim, eu não sou pedagoga, nem artista, assim como já não trabalho
diretamente só com história a algum tempo, o teatro não é algo fixo, então ficava sorrindo me
perguntando o que sou e o que não sou. Não sou? Ou sou tudo isso junto? Será que tem como
ser uma professora híbrida? Entretanto, fui ensinada que somos ou uma coisa ou outra, tudo
fragmentado, definido, especializado. Romper com tudo isso causa certo espanto e continuo
não sabendo bem o que responder quando me perguntam do que sou professora, mas tenho
respondido que sou uma educadora multifacetada, híbrida e múltipla.
O mestrado e seu processo de pesquisa me possibilitaram autoconhecimento,
aprendizagens sobre a sociedade, o contexto e a educação. A experiência como mestranda
rompeu com muitos paradigmas, inclusive preconceitos, pois, por anos resisti em fazer a seleção
do mestrado por achar que não me sentiria bem na academia, que o que entendo por educação
talvez não fosse acolhido, que meus saberes adquiridos com a experiência seriam

14
“O tutor é um profissional licenciado em Educação responsável pelo grupo-ciclo [...] que acompanha todas as
atividades [...] investindo na formação de sua identidade, orientando na criação e escolha das propostas e na
organização de sua convivência para que o aprendizado formal necessário seja contemplado num ambiente de
gestão participativa” (LUMIAR, 2016, p. 66).
23

desqualificados ou não contemplados. Surpreendentemente e felizmente, não foi assim.


Encontrei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS algo muito diferente disso.
Encontrei professores acolhedores, aulas incríveis, valorização e reconhecimento de saberes
múltiplos. Esse processo tão rico tem mudado muito a mim e também mudou os rumos do qual
minha pesquisa inicialmente fora planejada.
No dia 27 de maio de 2022 defendi meu projeto de mestrado com o mesmo título da
dissertação aqui apresentada. Estavam presentes na banca meu orientador prof. Dr. Marcelo
Leandro Eichler, a profª Dr.ª Conceição Paludo, o prof. Dr. Leonardo Moreira e o prof. Dr.
Marcello Giacomoni. Nessa ocasião, além de intervenções, orientações e questionamentos
riquíssimos que ampliaram meus horizontes, fui muito bem avaliada, com o encaminhamento -
para mim surpreendente - de sugestão de transposição do mestrado para o doutorado. Me senti
reconhecida, valorizada em meus saberes e também senti que meu trabalho tinha potência e que
deveria honrá-lo, aperfeiçoando, aprofundando, e entregando para a sociedade o melhor
possível.
Para tanto, é importante pontuar os novos rumos de pesquisa que essa orientação de
transposição para o doutorado possibilitou, visto que trouxe novos desafios. Meu orientador e
eu trocamos muito sobre as sugestões da banca, pois percebemos que o projeto não deu conta
de relatar minha trajetória com arte, história e pesquisa-ação, elementos que poderiam ser
melhor e mais profundamente desenvolvidos. Apesar da proposta de oficina de teatro para
pesquisar os negacionismos e o neofascismo através da pesquisa-ação ser potente, já havia uma
trajetória profissional de enlace entre teatro, história e pesquisa-ação que merecia ser
contemplada, relatada/narrada/analisada. Portanto, entendemos que aprofundar a parte teórica
tornava-se essencial nesse momento de conclusão do mestrado, uma vez que a consistência
teórica e reflexiva contribuirá para persistência do estudo no doutorado e poderá contribuir com
outros educadores-pesquisadores que compreendem a importância do ético e estético na
educação. Sendo assim, essa pesquisa propõe um aprofundamento teórico acerca do tema da
potência teatral como linguagem para o letramento histórico, já visando sua prática através da
pesquisa de campo na continuidade do doutorado.
Alguns ajustes foram necessários, como reavaliar caminhos e alterar alguns objetivos,
mas sem perder a essência e o compromisso principal da pesquisa. A dissertação foi dividida
inspirada pela estrutura básica de um texto teatral, isto é, dividida em atos - porém em cinco
atos e não nos clássicos três atos, por uma questão de organização e para não torná-la maçante
ao leitor.
24

Neste Ato I, descrevo o tema, o problema, os objetivos e o “roteiro” que foi produzido
e percorrido, procurando conectar minha trajetória profissional ao tema, assim como relatar
como fui percebendo o problema de pesquisa e a potencialidade de refletirmos sobre nosso
fazer pedagógico, da arte como formadora do pensamento crítico e de comunidades de
aprendizagem. A fim de esclarecer sobre o fenômeno estudado, os negacionismos e o
neofascismo típicos da Sociedade das Plataformas, aponto a cidade de Porto Alegre (mais
precisamente o bairro Moinhos de Ventos), como exemplo desses fenômenos no dia a dia, pois
a escola Lumiar Porto Alegre localiza-se no bairro Mont’Serrat (vizinho do bairro Moinhos de
Vento), uma vez que foi trabalhando lá que o problema de pesquisa se evidenciou, conclamando
por esse processo de investigação e estudo.
No Ato II, procuro contextualizar nossos tempos, compreender como os fenômenos
atuais emergem e operam, isto é, a ligação entre a racionalidade neoliberal, o conservadorismo,
a Sociedade das Plataformas, a explosão de ignorância e suas consequências na política
brasileira e os crescentes movimentos negacionistas e neofascista. Assim como também
observar as consequências desses fenômenos na educação e, em especial, no ensino de história.
Para análise do contexto usei como referenciais Márcia Tiburi, Jessé Souza, Rubens Casara,
Marilena Chauí, Pierre Dardot, Wendy Brown, José van Dijck, dentre outros.
No Ato III, conclamo uma contra-educação, compreendendo e problematizando seu
conceito na concepção de Gur-Ze’ev e justificando porque opto pela compreensão de Márcia
Tiburi em contra-educação, usando referenciais como Paulo Freire e bell hooks. Nesse mesmo
ato apresento o teatro como linguagem possibilitadora para o letramento histórico,
compreendendo a importância e compreensão do letramento e seu possível enlace com a prática
teatral.
No Ato IV, compartilho, isto é, narro/descrevo/(re)crio/analiso, através da a/r/tografia,
memórias de minha trajetória profissional que evidenciem os processos criativos com
adolescentes envolvendo história e teatro, dialogando com autores da área do teatro, da história
e da educação. Desenvolvo, também, como o fenômeno negacionista e o neofascismo foram se
revelando a mim ao longo do meu percurso como educadora, visto que ao buscar essas
memórias tenho a compreensão de que na época eu não estava focada em pesquisar diretamente
esses fenômenos, mas que já estavam ali presentes, principalmente na minha experiência na
escola Lumiar, pois já percebia a urgência de trabalhar tais temas.
No Ato V, descrevo os caminhos percorridos para dar vida a essa pesquisa, isto é, as
escolhas metodológicas. Também analiso como a pesquisa-ação e a/r/tografia podem caminhar
juntas e se entrelaçar, possibilitando exequíveis caminhos metodológicos para a pesquisa em
25

educação, fazendo uma proposta da qual inspire demais educadores a refletir suas práticas
pedagógicas e contribuir com novas pesquisas em arte, educação e história. Um caminho do
qual eu mesma poderei me inspirar com a possibilidade da continuidade de minha pesquisa no
doutorado.
Por fim, temos o desfecho - ou grand finale - apresentando as conclusões dessa pesquisa
teórica, de revisão e entrecruzamento de autores que acredito contribuírem com uma contra-
educação que desafie a educação subserviente ao capital. Apesar de teórica, esta pesquisa
aponta caminhos possíveis de ações, visto que busca nas memórias de práticas pedagógicas e
no referencial teórico suporte para que mais experiências e estudos em arte-educação possam
avançar contribuindo com a educação libertadora.

| Cena 2: a direção

Como educadora da Educação Básica, dedicada ao ensino de história, sempre enfrentei


desafios para levar a informação, construir conhecimento, formar cidadãos e cidadãs
responsáveis e aptos(as) para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Afinal,
esse é o compromisso postulado da educação15 e, da mesma forma, inúmeros são os documentos
nacionais e internacionais que apontam seus compromissos e desafios contemporâneos 16. Por
diversas razões internas e externas, objetivas e subjetivas, institucionais ou estruturais,
pedagógicas ou materiais, esses desafios são sempre grandes.
O ensino de história17, em especial, tem engajamento direto com os princípios de
educação, visto que contribui para a formação da criticidade, buscando nas vivências humanas

15
Segundo o art. 205 da Constituição Federal do Brasil (1988, texto digital, grifos meus), “a educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
16
A UNESCO é uma instituição internacional ligada às Nações Unidas e patrocina pesquisas e comissões a fim
de divulgar documentos, manuais e diretrizes para a educação, considerando os desafios contemporâneos. Em
2016, publicou Alfabetização midiática e informacional: diretrizes para a formulação de políticas e estratégias,
visto que as TICs ascenderam novos desafios, que, na atualidade, são “desenvolver políticas que permitam o
equilíbrio entre dois objetivos que, de certa forma, são conflitantes: maximizar o potencial das mídias e novas
tecnologias de informação e minimizar os riscos associados. Esse é um desafio para os vários atores: formuladores
de políticas, organizações de mídia, provedores de conteúdo da internet, escolas, comunidade de pesquisa, uma
série de organizações da sociedade civil, além de jovens, seus pais e outros adultos” (GRIZZLE, 2016, p. 8).
17
Mesmo no documento da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que foi produzido após o golpe jurídico-
parlamentar de 2016, e que entre muitas disputas de posições, conforme aponta André Luiz da Silva Coube (2018,
p. 3), prevaleceu o “grupo vencedor, que com propostas neoliberais e conservadoras, conseguiu aprovar junto ao
MEC a versão final da BNCC em dezembro de 2017. Competências, currículo hegemônico, relação com avaliações
padronizadas, pretensão de neutralidade revelam o caráter privatista e conservador da BNCC”. Mesmo nesse
documento muito questionável, destaco um dos compromissos do ensino de história, que é “compreender
acontecimentos históricos, relações de poder e processos e mecanismos de transformação e manutenção das
26

aprendizados que nos impulsionem a avançar, superando catástrofes, injustiças, defeitos e


atrocidades do passado. Administrar desinformação, notícias falsas, fatos deturpados e mesmo
negacionismos18 não é novidade para historiadores19 (LINARD, 2021). No cotidiano escolar
não é diferente, os fenômenos atuais acabam por reverberar em sala de aula, cabendo a
educadores e educadoras de história proporcionar conhecimento e esclarecimento, mesmo
diante de negacionistas.
Afinal, não é contemporânea a disputa entre verdade x mentira. Em 1921, o historiador
Marc Bloch (1921/1998, p. 179) publicou o ensaio intitulado Reflexões de um historiador sobre
as notícias falsas da guerra, no qual questionava se
[...] as falsas notícias, em toda a multiplicidade de suas formas - simples boatos,
imposturas, lendas - preenchem a vida da humanidade. Como nascem? A que
elementos vão buscar a sua substância? Como se propagam, como ganham amplitude
à medida que passam de boca em boca ou de escrita em escrita? Não há questão que,
mais do que esta, mereça apaixonar quem quer que tenha o gosto pela reflexão sobre
história.

Bloch (1921/1998) analisava a presença das notícias falsas em diferentes períodos


históricos, uma vez que elas preencheram a vida da humanidade, sendo compreendidas como
fenômenos históricos. Assim, o autor estabeleceu uma relação direta entre as suas proliferações
e as sociedades que as disseminam, pois, por meio delas, as pessoas expressam seus
preconceitos, ódios, medos e diversas outras emoções. Entretanto, os tempos atuais trouxeram
novos e complexos desafios: a desinformação, as fake news, o colapso da democracia, os
negacionismos, o neofascismo e todo um arcabouço aglutinado, que foram impulsionados ou,
como denomina Tiburi (2020a), “turbinados” pelas tecnologias digitais. Se antes esses
discursos “estavam restritos a publicações em revistas e jornais distribuídos a grupos

estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais ao longo do tempo e em diferentes espaços para analisar,
posicionar-se e intervir no mundo contemporâneo” (BRASIL, 2018, p. 408).
18
Marcos Napolitano (2020), em entrevista concedida à Jacqueline Boechat, quando palestrou na aula inaugural
da Casa de Oswaldo Cruz, com o tema Negacionismos e revisionismos ideológicos: o conhecimento histórico em
xeque, em 20 de março de 2020, definiu negacionismo como “uma negação de bases factuais de processos
históricos com vistas, sobretudo, a encobrir crimes e genocídios praticados pelos Estados. [...] O negacionismo e
o revisionismo não são fenômenos recentes, mas têm aumentado sobretudo pela militância de grupos politicamente
orientados nas redes sociais, que são espaços públicos de grande poder de disseminação social, sem controle e sem
chancela institucional. Momentos de polarização política, refundação societária ou crise institucional favorecem
estes fenômenos”.
19
O termo “negacionismo” é atribuído ao historiador francês Henry Rousso, no período pós Segunda Guerra
Mundial, na qual usou o termo para se referir aos grupos que negavam o extermínio em massa dos judeus durante
o regime nazista. O revisionismo histórico ganhou força a partir dos anos 1980, segundo Carlos Jesus e Edgar
Gandra (2020, p. 2), “o longo dos anos, a prática negacionista espraiou-se para os questionamentos dentro do
próprio campo historiográfico, principalmente, a respeito do processo da escravidão no Brasil, das torturas e o
Golpe Civil-Militar (1964-1985). Já dentre outras áreas do saber, nos deparamos com o atual negacionismo
ambiental (no qual podemos evidenciar negação do aquecimento global e do desflorestamento), negacionismo
biológico (que se contrapõe à eficácia das vacinas,) e o negacionismo geográfico (vide o ‘terraplanismo’, grupo
que coloca em dúvida o formato do planeta terra)”.
27

específicos, agora, são divulgados na internet para todo o mundo e chegam aos mais longínquos
recantos do planeta” (LIMA, 2020, p. 391).
Esse novo século nos apresenta um quadro de crise permanente, uma crise muito além
da econômica, pois também é social, ética, moral, cultural, isto é, tempos de verdadeiro
obscurantismo que geram violência, angústia, medo e desesperança. Esse é um panorama que
requer estratégias, resistência, novas táticas de luta e enfrentamento, assim como práxis
pedagógicas coerentes com as necessidades atuais oriundas da dicotomia
informação/desinformação.
Meu interesse pelo tema dos negacionismos e do neofascismo em contexto educacional
vem de longa data. Iniciei minha trajetória profissional muito jovem, em 2001. No princípio,
trabalhei com turmas do início do Ensino Fundamental: a magia das crianças era encantadora
e, assim, vivi por alguns anos num mundo mágico, quase fantasioso. Tive o privilégio de iniciar
minha carreira em escolas progressistas tanto no ensino público, como concursada da rede
estadual, quanto na rede privada, no La Salle Sapucaia, onde participei de dois projetos de
ensino que tinham Freire como base principal. Duas escolas por ciclos de formação e com
projetos que buscavam, no contato com suas comunidades, seus temas geradores 20. Acredito
que essas experiências foram fundamentais para formar a pessoa e profissional que sou hoje.
Em 2007, concluí minha graduação. Considero o curso de História como um dos fatos
mais marcantes de minha vida, pois estudando tive noção do tanto que eu ignorava, do tanto
que eu sequer tinha ideia que ignorava. Descobri-me como sujeito histórico, inserido em um
período e em um sistema econômico explorador, compreendendo melhor meu lugar no mundo.
Muito empolgada com minha Licenciatura em História e muito triste com os rumos que as
escolas em que eu trabalhava seguiam (ambas sofreram com mudanças políticas), porque, em
nível estadual, os ciclos de formação eram constantemente atacados pela mídia e tanto o público
quanto o privado perderam investimentos e incentivos, levando seus ricos projetos de ensino à
extinção (caso da rede estadual) ou mudando sua configuração (caso da rede privada). Por isso,
aceitei o convite de trabalhar com história em turmas do final do Ensino Fundamental e Médio
em uma outra escola privada.

20
Freire critica a educação tecnicista, os conteúdos apresentados como um fim em si mesmo, sem qualquer relação
com a vida dos estudantes. Portanto, ele propõe uma educação libertadora, na qual a leitura de mundo da
comunidade seja compreendida, ouvida e respeitada. Para tanto, educadores e comunidade buscam seus conteúdos
programáticos e, nesse buscar, “inaugura[-se] o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em
que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas
geradores” (FREIRE, 1974/2019, p. 121). Temas que envolvem situações-limite e uma práxis que propõe
desenvolver conteúdos que venham a contribuir com novos olhares, novas possibilidades.
28

Como professora de história, percebi vários dilemas enfrentados por essa área, como
pouco tempo de aula, tempos fragmentados, burocracias institucionais, livros que limitavam
visões, a redução da história a um ensino tecnicista que tem por princípio formar pessoas para
se “adequarem” ao mundo do trabalho. Enfim, os problemas eram inúmeros. Incomodada, pois
não me via sendo a educadora que sonhei, fui buscando alternativas que contribuíssem com
minha prática pedagógica, e foi assim que o teatro entrou em minha vida. Inicialmente, eu
usava-o como proposta em sala de aula, para melhor compreender um fato histórico, para
fomentar discussões e interpretações. Porém, a prática teatral não se reduziu a mais uma
ferramenta em sala de aula: incentivada por meus estudantes, fiz dois anos de curso livre de
teatro, na Casa do Teatro/Porto Alegre. Assim, com o grupo das adolescentes que tanto me
incentivou, fundamos juntas o primeiro grupo de teatro de nossa escola.
Nosso primeiro grupo iniciou com 14 adolescentes, todas meninas, já no segundo
semestre, no que a escola sugeriu que eu formasse um outro grupo com crianças das séries
iniciais, de modo que até o final do ano já tínhamos dois grupos. No ano seguinte, havia três
grupos: o primeiro grupo do primeiro e segundo ano da Educação Infantil; o segundo grupo do
terceiro ao quinto ano do Ensino Fundamental; e o terceiro grupo do sexto ano do Ensino
Fundamental ao final do Ensino Médio. Sendo assim, as turmas eram multisseriadas e, até o
último ano em que eu orientei o teatro na escola (2014), já havia 66 estudantes nos grupos de
teatro.
Por vezes, a prática teatral, principalmente com os adolescentes, causava-me um
desconforto profissional, pois suscitava contradições e até incômodos. Isso porque ouvi
algumas vezes de estudantes a seguinte frase: “ah profe, porque tu não é tão legal assim lá na
aula de manhã?”. Eu ficava um pouco triste, afinal minha pedagogia com história não atingia
tanto os estudantes como o trabalho nos grupos de teatro. Mesmo sendo compreensível, pois,
obviamente, os estudantes preferem a fluidez de movimentos a períodos de estudos mais
densos, o teatro permitia uma leveza e uma liberdade que a sala de aula não possibilitava,
amarrada que estava às burocracias e cobranças institucionais. No teatro, tínhamos de duas a
três horas para criar, tínhamos espaço disponível, não havia provas, nem avaliações, nem
roteiros pré-estabelecidos, nem interrupções ou infinitos controles. A imprevisibilidade também
os encantava, iniciávamos o ano apenas sabendo que tínhamos o objetivo de nos divertir muito,
ser responsáveis pela montagem de uma peça teatral, mas sem ideia do tema, do roteiro, de
cenário ou de personagens, pois tudo se construía ao longo do ano.
Os tempos das oficinas eram divididos em três etapas. Nos três primeiros meses,
conhecíamos melhor o corpo e suas possibilidades, focados em jogos teatrais e performances.
29

Nos próximos três meses, continuávamos com os jogos, mas focávamos mais em improvisos,
esquetes e performances, assim como na escrita do roteiro. A escrita era coletiva: algumas cenas
eram escritas pelos estudantes e outras por mim e, ainda, outras eu agregava diferentes textos
de autores que conversassem com a temática escolhida. Nos últimos três meses, nos
dedicávamos à construção das personagens, dos figurinos, do cenário e havia muito ensaio até
o grande dia da apresentação da montagem teatral. Como eu não usava peças teatrais prontas,
procurava diagnosticar temas que viviam no grupo através de suas relações, de conversas, de
improvisos, de monólogos e de esquetes, discutindo com o grupo os temas e cenas mais
relevantes e, assim, íamos definindo o fio condutor. Uma vez definido, a cada esquete
significativo, o grupo discutia os pontos fortes e o que poderia melhorar, ou seja, o próprio
grupo escrevia o texto teatral com meu auxílio.
Ao longo do percurso, íamos definindo a sequência e o que poderia “rechear” o roteiro.
A partir desse trabalho, era comum a necessidade de buscarmos textos clássicos, seja da
literatura ou de dramaturgia, bem como de músicas ou de fragmentos de diálogos de filmes. O
conhecimento histórico surgia naturalmente para contextualizar, compreender melhor o assunto
e buscar referências. A necessidade de conhecimento e de compreensão acontecia de forma
orgânica, isso porque era comum eu levar referências históricas e discutirmos sobre elas.
Cito, aqui, três peças realizadas com adolescentes, nas quais usamos muito o
conhecimento histórico a fim de compô-las. Começamos com a peça de 2012, Bicho de sete
cabeças (sobre adolescências); a peça de 2013, Amor: textos e contextos (sobre o amor ao longo
do tempo e diferentes formas e conceitos de amor); e a peça de 2014, Anos de fúria: intrigantes
bafos e desabafos dos anos 20, 30 e 40. Essa última, em especial, marcou-me muito, pois esse
grupo era majoritariamente composto por meninos e, durante nossas práticas surgiram inúmeras
falas e condutas preconceituosas (foi desses aspectos que nasceu o tema para a peça: a fúria),
ao que eu comecei a apresentar a eles referências do passado para problematizar as questões
que surgiam. Era interessante perceber que, ao estudar as referências (textos, filmes, músicas)
e criar os esquetes, o grupo “baixava a guarda”, ficava mais aberto à discussão das temáticas e
à problematização de suas falas. Ainda, elaborávamos muitas rodas de conversa, geralmente no
fim do trabalho e, nessas rodas, a troca era profunda. O diálogo acontecia de forma leve,
respeitosa, com escuta atenta e de forma natural. Cito, aqui, uma das cenas que compunham
nossa montagem teatral de 2014, escrita por esse grupo de meninos, e que causou grande
comoção na comunidade escolar no dia da apresentação:
30

CENA 14 - CAMPO DE CONCENTRAÇÃO


Nazistas: Douglas, o capitão – José e Lucas soldados - Judeus: Luiza, Jeremias,
Fábio e Diego21
(Entram judeus e começam a trabalhar, nazistas observam, capitão senta.)
Soldado 1: Vai trabalhar, faz isso direito!
Capitão: Venha cá, soldado, veja, acho que para início está bom, mande fazer os
acertos, será nossa primeira experiência e quero que todos se orgulhem de nosso
legado.
Soldado 1: Sim, senhor.
(Capitão observa menina judia parada)
Capitão: Ei, menina.
Judia: Meu nome é Rebeca.
Capitão: E desde quando judeu tem nome? Quem é esta aqui, soldado?
Soldado 2: 1349.
Capitão: Limpa isso aí direito, 1349.
Judia: Mas não tem nada.
(Capitão joga folhas no chão)
Capitão: Agora tem, sua estúpida.
(Menina limpa e capitão volta a sentar)
Soldado 1: Senhor, está tudo certo!
Capitão: Chamem as criaturas!
Soldado 1: Em fila! 1349, 448, 1500, 3077, 1348.
Soldado 2: Tirem a roupa!
Judia: Para onde vamos?
Soldado 1: Parem de fazer perguntas.
Soldado 2: Entrem aqui!
Rebeca: O que farão, por favor!
Soldado 1: Só um banho.
(fecha a porta, ficam observando e todos morrem na câmara de gás.)

Com essa experiência de ministrar oficinas de teatro, percebi sua potência e riqueza,
além do fato de que temas nem sempre aprofundados nas aulas formais de história surgiam
naturalmente na oficina de teatro em forma de interesses. Infelizmente, a peça Anos de fúria foi
a minha última nessa escola. No ano de 2014, fiquei extremamente abalada com minhas aulas
de história, pois vi, pela primeira vez, um grupo extremista de adolescentes se constituindo na
escola, de forma muito organizada. Era um grupo do primeiro ano do Ensino Médio, em que
recebemos muitos novos alunos e, um deles, com ótima oratória, conseguiu formar um clã que
o via como um líder político, sendo ele um estudante que se dizia de extrema direita, e que
instigava os colegas a provocar seus professores, a fim de que algum deles dissesse algo
considerado por eles como impróprio ou como manipulação ideológica, com o intuito de gravar
e colocar a filmagem no seu grupo organizado no Facebook.
Obviamente, eu nunca tinha passado por tal situação, pois era uma jovem professora de
história e, dessa forma, não consegui criar muitas alternativas para lidar com as provocações
em aula sem que me abalassem. Procurei a direção para pedir auxílio ou orientação, para que
me ajudassem a pensar em estratégias, mas infelizmente a direção não compreendeu a gravidade

21
O nome dos estudantes são nomes fictícios.
31

do problema conforme eu o percebia - “coisa de adolescentes”, disseram-me. Algumas atitudes


foram tomadas, mas de forma individual. Inexperiente para administrar a situação, comecei a
sentir medo e acabei por me esconder nos métodos de ensino tradicional, como nunca tinha
feito antes: entrava na turma, focava no conteúdo programático que era Idade Antiga, não fazia
relações com o presente e pouco dialogava com essa turma. Fugia das provocações e
questionamentos que surgiam desse grupo e me sentia muito desamparada e frustrada
profissionalmente.
O fato relatado, unido à sobrecarga de trabalho (12 turmas de história e três grupos de
teatro) e, por fim, às eleições presidenciais de 2014, sucedidas pelos questionamentos da vitória
da presidenta Dilma Rousseff por parte da direita, representada na figura de Aécio Neves,
resultaram em um colapso emocional. Eu estava percebendo o prenúncio de anos terríveis para
o país, principalmente para a educação, especialmente para o ensino de história. Eu já percebia
seus impactos na escola, professores evitando temas atuais ou polêmicos, pais ligando para
questionar conteúdos, como ditadura militar. Foi assim que tomei uma decisão radical: pedi
demissão com a intenção de jamais voltar à educação.
O tempo passou, trabalhei em outros ambientes, mas, claro, senti muita falta do
ambiente escolar. Decidi, então, retornar para a educação formal. Em 2018, entrei para a escola
Lumiar Porto Alegre, onde trabalhei até o início de 2022, que é uma escola cujo modelo
pedagógico foi eleito como um dos 12 mais inovadores do mundo22. Nessa escola, trabalhei na
função de tutora23, com turmas multisseriadas do final do Ensino Fundamental. Na Lumiar,
pude vivenciar novas e complexas experiências. Os demais professores não são fixos, sendo
convidados por projetos do trimestre, que são construídos com total envolvimento e
participação dos estudantes, unindo necessidades de aprendizagem a interesses que vivem na
turma.
O trabalho como tutora possibilitou ressignificar minha prática pedagógica e, assim,
novas indagações começaram a surgir. A proposta de ensino dialógica e problematizadora
despertou a necessidade de teorização e de fundamentação. Conhecer estudantes de um outro
contexto muito diferente do meu - estudantes do Mont’Serrat e de bairros próximos de Porto
Alegre, já num contexto brasileiro de muita polarização -, fez surgir em mim novas questões,
novos olhares, novas perguntas, para as quais eu ainda precisava de respostas. Novamente, as
indagações sobre negacionismos e neofascismo voltaram com muita força e, me sentindo mais

22
A Escola Lumiar foi eleita, em 2007, uma das 12 escolas mais inovadoras do mundo, segundo um ranking
elaborado pela Microsoft, UNESCO e Universidade Stanford.
23
Fui tutora de grupos multisseriados F2 (quarto, quinto e sexto ano) e F3 (sétimo, oitavo e nono ano).
32

preparada do que em 2014, dessa vez optei por não fugir, mas, sim, buscar estratégias que me
ajudassem a compreender essas temáticas entre os adolescentes.
Voltei ao Programa de Educação Continuada (PEC) da UFRGS em 2019, ocasião em
que uma das opções de disciplinas oferecidas chamou muito minha atenção. A disciplina em
questão era A Sociedade da Ignorância e o desafio dos letramentos, com o professor Marcelo
Leandro Eichler. Ao ler a proposta da disciplina e os conceitos a serem problematizados - como
democracia canalha, desumanização, dissonância cognitiva, Estado Pós-Democrático ou até
mesmo explosão da ignorância -, deixaram-me inquieta. A proposta da disciplina conversava
perfeitamente com meus anseios e desacomodações. Participar dessas aulas deu-me um novo
impulso, uma vontade imensa de desacomodar e, principalmente, de teorizar minhas
indagações. Foi com esse incentivo que decidi me inscrever para a seleção de mestrado em
Educação e transformar os problemas em problemas de pesquisa.

| Cena 3: o elenco: atores e atrizes

A pesquisa “O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de letramento


histórico para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo” foca numa reflexão a partir
de fontes bibliográficas e memórias de minha prática pedagógica na Lumiar sobre a potência
pedagógica do teatro como possibilidade de dialogar com adolescentes sobre temas delicados,
polêmicos e urgentes, como linguagem facilitadora para o letramento histórico. Assim, a
pergunta que norteou essa pesquisa foi: como a potência do teatro pode contribuir para o
letramento histórico de adolescentes no contexto da Sociedade das Plataformas,
combatendo negacionismos e neofascismo através de uma contra-educação?
Conforme já explicado, o projeto inicial de pesquisa precisou ser adaptado, por motivos
de abreviamento (devido à transposição para o doutorado) e necessidade de aprofundamento
teórico, a partir dos apontamentos da banca, como metodologia e relação de ações com o teatro
já realizadas ao longo de minha trajetória profissional, deixando a intervenção na escola, a partir
de uma pesquisa-ação a/r/tográfica, com análise mais densa para o doutorado. Sendo assim,
retomo os objetivos propostos no projeto inicial, apontando as devidas modificações, pois
visando persistir a trajetória com o doutorado, alguns dos objetivos apontam para além da
dissertação e, por isso, ficam em suspenso, dando espaço para outros que vieram a contribuir
com o aprofundamento teórico e temático.
33

O objetivo geral da pesquisa manteve-se o mesmo: analisar a estratégia pedagógica


do teatro para debate entre adolescentes e o desenvolvimento do letramento histórico,
combatendo negacionismos e neofascismo. Os objetivos específicos, por sua vez, passaram
por algumas modificações dais quais procuro esclarecer a partir da ideia original: “(I) realizar
uma pesquisa-ação visando investigar fenômenos típicos da Sociedade das Plataformas, como
negacionismos e neofascismo, em uma escola de Educação Básica”.
Através das intervenções da banca, durante o momento de apresentação do projeto de
pesquisa, percebi que minha prática pedagógica já se pautava na pesquisa-ação, sendo assim, o
objetivo foi apenas readaptado, buscando rememorar aulas em que emergiram temas ligados
aos negacionismos e neofascismo, e a forma como foram trabalhados. Assim, o objetivo foi
adaptado para: (I) analisar experiências pedagógicas envolvendo teatro e história, em que
emergiram fenômenos dos negacionismos e neofascismo;
Da mesma forma, o segundo objetivo também foi adaptado, a partir da ideia original:
“(II) evidenciar os temas percebidos e apontados como os mais negados pelo grupo de
estudantes adolescentes (entre 12 e 18 anos), percebendo como os negacionismos e o
neofascismo operam e manifestam-se entre o grupo de adolescentes participantes da pesquisa”.
Adaptamos esse objetivo para (re)evidenciar, rememorando momentos dos quais
fenômenos negacionistas e neofascista foram trabalhados através do enlace história e teatro,
propondo como novo objetivo: (II) descrever possibilidades do teatro operando como
linguagem para o letramento histórico, (re)evidenciando e descrevendo, através da
metodologia da a/r/tografia, práticas pedagógicas com grupo de adolescentes de Educação
Básica;
Ainda, o terceiro objetivo também foi adaptado, a partir da ideia original: “(III) propor
um projeto de teatro com o grupo de adolescentes de Educação Básica, como proposta
extracurricular, aprofundando a discussão dos temas negacionistas elencados pelos estudantes”.
Esse objetivo foi adaptado visando defender o teatro (através de memórias de práticas
pedagógicas e referencial teórico) e sua potencialidade lúdica, no enfrentamento da ignorância
de nossos tempos, para tanto o objetivo foi reelaborado: (III) compreender e defender o teatro
em sua potencialidade lúdica, como linguagem possibilitadora de letramento histórico,
para o enfrentamento de temas negacionistas e de cunho neonazista com adolescentes de
Educação Básica.
Os objetivos (IV) e (V) ficaram em suspensão para aplicação em sua continuidade no
doutorado, sendo eles: (IV) realizar jogos teatrais e construir esquetes teatrais com o grupo de
adolescentes, abordando temas relacionados aos efeitos da Sociedade das Plataformas, como
34

negacionismos e neofascismo; e (V) analisar e avaliar a realização dos jogos e dos esquetes
teatrais, visando à elaboração e à formalização de uma proposta de intervenção pedagógica para
o letramento histórico na área escolar das Ciências Humanas.
Em contrapartida, inseri um novo objetivo, que visa contribuir com minha futura
pesquisa de doutorado, como, também, inspirar educadores pesquisadores da área das artes e
da história. Eis então o novo quarto objetivo:
(IV) discutir abordagens metodológicas possíveis para pesquisa e registro da
potência teatral em educação.
A pesquisa “O teatro com adolescentes como possibilidade pedagógica de letramento
histórico para o enfrentamento de negacionismos e neofascismo” é importante, e continuará
sendo, não apenas para contribuir com os estudos já existentes sobre os impactos da Sociedade
das Plataformas no campo da educação, mas principalmente com vistas a agregar possíveis
estratégias e alternativas que, ao menos, minimizem a ignorância provocada por esses tempos
hipertecnológicos, gerando terrenos mais férteis para a produção de conhecimento,
solidariedade e alteridade. Estudos que abordem a questão dos negacionismos e neofascismo
entre adolescentes ainda são escassos24, ao menos nesse contexto de hiperconexão, merecendo
mais atenção, visto que são grupos em formação e superexpostos às mídias virtuais.
Nesse contexto tecnológico, os adolescentes25 (grupo dos 12 aos 18 anos) estão expostos
constantemente às mídias virtuais, hiperconectados e sendo bombardeados de informações e
desinformações. Esses adolescentes, muitas vezes sem orientação ou cuidado, agem de maneira
autodidata e autônoma ao manipular ferramentas digitais e ao interagir em ambientes virtuais,
nos quais podem ser facilmente fascinados por tudo que a internet disponibiliza, para o bem ou
para o mal, como grupos e redes de ódio. A questão é que fazem isso com pouca ou nenhuma

24
Bárbara Zacher Vitória (2019), em sua dissertação de mestrado Sobre memes e mimimi: letramento histórico e
midiático no contexto do conservadorismo e intolerância nas redes sociais, alerta que a internet propaga memes
falaciosos e intolerantes que banalizam violências sociais, afirmando que estudantes interagem com mensagens
“contrárias aos Direitos Humanos, aos valores éticos e à Democracia" (VITÓRIA, 2019, p. 20), destacando
também que o estudo sobre a influência das mídias e sua não neutralidade já é realizado nas aulas de história,
quando abordado sobre a influência dos canais de comunicação, televisão, publicidade, ou cinema, porém “essa
problematização ainda não é feita em relação à internet, pelo menos não com a atenção merecida” (VITÓRIA,
2019, p. 21). A autora destaca ainda que o ensino de história precisa estar atento às atuais demandas, analisando a
forma como os meios digitais de comunicação têm agido no sentido de influenciar subjetividades de seus
receptores, principalmente entre jovens que acessam a internet com frequência, expostos a conteúdos de
intolerância.
25
A adolescência é a transição da infância para a fase adulta, período de profundas mudanças seja em nível físico,
mental ou social. Um período de grande transformação e formação, em que o indivíduo faz rupturas, busca
autonomia, desenvolve seu pensamento crítico e estabelece seu código de ética. A Organização das Nações Unidas
(ONU) define a juventude como a fase entre 15 e 24 anos de idade, mas deixa em aberto para as nações definirem
seu próprio termo. No caso Brasil, a legislação, através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelece
com o art. 2º: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (BRASIL, 1990).
35

supervisão da geração anterior à deles, responsável pela educação desses adolescentes, e que
não domina as ferramentas digitais com a mesma destreza que eles. Diógenes Gewehr (2016),
em sua dissertação de mestrado, Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs)
na escola e em ambientes escolares, destacou essas diferenças geracionais: se, anteriormente,
as gerações definiam-se a cada 25 anos, atualmente, com as rápidas mudanças, uma geração
nasce no máximo a cada dez anos, portanto, nunca houve um período em que as gerações
precisassem se adaptar com tanta rapidez.
Sendo assim, indivíduos que nasceram e cresceram no mundo digital convivem com a
geração anterior que passou a utilizar a internet e ferramentas digitais ao longo da vida,
invertendo pela primeira vez a ordem do conhecimento, que agora é debaixo para cima, da
geração mais nova para a mais velha. Gewehr (2016, p. 37) destaca que “pela primeira vez na
história, há um volume grandioso de informações sendo repassados dos filhos para os pais, dos
netos para os avós, uma inversão de papéis em uma visão não muito distante”, expondo um
outro contexto de desafios para a educação, pois, sendo a geração atual mais ágil que a anterior
quanto ao domínio digital, cabe a geração anterior fazer a leitura desse contexto,
compreendendo as mudanças e as novas demandas. Percebendo que é preciso articular a
capacidade de receber, interpretar e produzir informações, apostando na pesquisa e no
pensamento crítico para superar as práticas e consequências dos conhecidos comandos
CTRL+C e CTRL+V (GEWEHR, 2016).
As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação26 (TDICs) desenvolveram um
novo tipo de ignorância, que Pablo Rubén Mariconda (2019) destaca ao aludir o conceito de
Hermínio Martins27 da ignorância manufaturada28, ou seja, uma ignorância fabricada por

26
Importante destacar que utilizarei o termo “Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs)”, para
diferenciá-lo do termo que estava utilizando, de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), a fim de
demarcar as mudanças que determinaram o uso dos dois termos. TDICs é um termo mais atual, devido à aplicação
dos elementos digitais. Segundo Gewehr (2016, p. 24-25), “o conceito de TIC é utilizado para expressar a
convergência entre a informática e as telecomunicações, agrupando ferramentas computacionais e meios tele
comunicativos como: rádio, televisão, vídeo e Internet, facilitando a difusão das informações (MISKULIN et al.,
2006; CARDOSO, 2011; LEITE, 2014a; 2015). Já as TDICs englobam, ainda, uma tecnologia mais avançada: a
digital. Por meio desta é possível processar qualquer informação, o que provocou mudanças radicais na vida das
pessoas, principalmente no que se refere a comunicação instantânea e busca por informações (KENSKI, 2012)”.
27
MARTINS, Hermínio. Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana. Belo
Horizonte: Fino Traço. 2012.
28
Mariconda esclarece que a ignorância faturada - acepção de H. Martins - fora usada inicialmente na esfera
científica, quando empresas promoviam manipulações de dados a fim de proteger seus lucros - dentre os exemplos
cita campanhas de produção de ignorância produzida por indústrias do tabaco contra resultados de pesquisas
científicas que apontavam os malefícios do hábito de fumar ou casos mais recentes como das indústrias petrolíferas
contra o aquecimento global - mas que no séc. XXI ela se expandiu para além dos interesses de mercado “atingindo
também as ideologias políticas e afetando, com o avanço das tecnologias de informação e comunicação e dos
processos de automação da IA, de modo profundo o próprio cerne da cultura subjetiva, significativamente a política
e as práticas políticas” (MARICONDA, 2019, p. 12). O termo “ignorância manufaturada” também pode ser
36

necessidade do mercado, no qual “tem sido chamada de ‘pós-verdade’29, e que tem sido
ativamente praticada no sentido da violência política. A violência da pós-verdade corresponde
à disseminação indiscriminada de erros, enganos, mentiras, inverdades e produção de ódio, para
atender interesses políticos” (MARICONDA, 2019, p. 13), colocando em risco as liberdades
individuais e a democracia.
Amarildo Luiz Trevisan (2020, p. 14) alerta que a cultura digital possibilitou a formação
de milícias digitais, definindo-os como “grupos que atuam na internet governando um exército
de eleitores, trolls, bots e pessoas comuns ao espalhar dogmas e certezas em meio à
desorientação informacional com a finalidade de produzir ‘efeitos de verdade’, com vistas a
propagar discursos de ódio em relação a tudo o que representa ‘o inimigo’”. Dessa maneira, se
formaria uma cultura política de ódio - que englobaria a apologia ao racismo, o machismo, a
xenofobia, a homofobia, as violências múltiplas ao outro que não se adequa ao padrão branco
e heteronormativo -, sendo propagada pelas redes digitais. Essa avalanche de discursos de ódio
possibilitada pelas tecnologias digitais compõe o que Trevisan (2020) chama de fascismo
social, ou “turbotecnomachonazisfascismo” (TIBURI, 2020a), que é um novo tipo de fascismo,
com a mesma base, porém com uma nova roupagem, produzida pelas condições de mercado e
tecnologias atuais, que possibilitam ações muito mais rápidas e uma propagação de ódio jamais
imaginada no período de Hitler e de Mussolini.
As redes sociais provocam o que Trevisan (2020, p. 9) chama de “efeito multidão”, no
qual os usuários se comportam como rebanho, como se estivessem sob o efeito de uma hipnose
ou de um surto psicótico coletivo, em que não refletem sobre o conteúdo que estão recebendo,
apenas repassam-no adiante, contribuindo com a rede de fake news e de violências. Esse

encontrado em outras referências, como Henry Giroux (2014, p. 18), que ao analisar o neoliberalismo globalizado
em contexto de militarização estadunidense, definiu a violência desse contexto como distópica, e a ignorância
como “um recurso político continuamente mediado por um imaginário e uma sociedade capitalista que floresce
nos índices interrelacionados de consumo, privatização e despolitização”. Uma referência anterior é Robert N.
Proctor (2010), que discorreu sobre os negacionismos de massa, resultantes da promoção e financiamentos
(inclusive de cientistas) por parte de empresas, para através da “estratégia do Tabaco” (1950) gerar dúvidas sobre
resultados de pesquisas científicas com intenção de não afetar seus lucros com a informação. Esta estratégia
financia cientistas de direita, para que seus argumentos negacionistas ganhem destaque e “tom científico”.
29
Em 2016, o Dicionário Oxford (Oxford Dictionaries) escolheu post-truth, "pós-verdade", como palavra do ano,
definida como "relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação
da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal". Esse termo ganhou notoriedade com a matéria de
capa da revista britânica The Economist, intitulada Arte das Mentiras: política pós-verdade na era das mídias
sociais, também em 2016. Ele também foi utilizado na matéria sobre a campanha de Donald Trump, em setembro
de 2016, quando a palavra foi usada para destacar que, na política, a verdade já não era contestada ou usada de
forma cínica, mas simplesmente algo secundário e sem valor (SANTAELLA, 2019, p. 47-48). Cristian Dunker
(2020, p. 40) diz que as fake news causam prejuízos irreparáveis, pois na pós-verdade a verdade é apenas uma
participante de um jogo, em que tem “muitas implicações políticas, morais e institucionais. Ela afeta
cotidianamente nossos laços amorosos e nossas formas de sofrimento [...] Mas é na educação que a suspensão da
verdade prenuncia um conjunto de efeitos ainda incalculáveis”.
37

contexto exige da educação ações que contraponham o status vigente, que não se rendam aos
discursos de ameaças, que ofereçam práticas de letramento digital para reconhecer fake news e
incentivos ao ódio, mas, mais do que isso, ações pedagógicas que desvendem os mecanismos
de cooptação, bem como atividades de leitura e de compreensão do porquê de eles existirem.
Trevisan (2020, p. 10) diz que
[...] é preciso minimamente refletir até que ponto a sua prática e da
escola/universidade estão contaminadas ou não por estereótipos ou preconceitos de
subalternidade de raça, cor, gênero ou classe social. E trabalhar para que a sociedade
possa fazer dessa nova morada (a Internet) um lugar de humanização, de evolução
científica, tecnológica e moral.

Ao navegarmos na internet, estamos expostos tanto à informação quanto à


desinformação e, também, a conteúdos imbuídos de ódio. Segundo dados divulgados pela
SaferNet30, em 2021, as denúncias relacionadas a neonazismo na internet subiram 60,7% mais
do que as registradas no ano anterior. Isto é, foram recebidas e processadas 14.476 denúncias
relacionadas a conteúdo neonazista na internet31. Em entrevista publicada pelo Deutsche Welle,
em 2019, a pesquisadora Adriana Dias, especialista em movimentos neonazistas no Brasil,
alertava para o enorme crescimento desses grupos em nosso território.
Segundo suas pesquisas, a maioria desses movimentos concentrava-se nas regiões Sul
e Sudeste do país (SP com 99 células, SC com 69, PR com 66, RS com 47 e RJ com 22),
totalizando 334 células neonazistas em todo o território nacional. Na entrevista, Adriana Dias
alertava sobre o fato de que "a internet e as redes sociais deram condições favoráveis para que
esses grupos se comunicassem. A internet não é só um espaço de comunicação, é um espaço de
socialização”. Já em 2022, em reportagem do Fantástico32, a antropóloga divulgou seu estudo,
apontando que o crescimento dos grupos neonazistas no Brasil chega a 270,6% (entre janeiro e
maio de 2019), com pelo menos 530 núcleos extremistas.
Para além do crescimento de grupos neofascistas e de seus discursos de ódio nas redes,
a educação - em destaque, o ensino de história - tem outro grande desafio, que é administrar os
negacionismos que ganham força em nossos tempos. Afinal, as redes sociais e outros meios de
comunicação também têm servido para divulgar “discursos e posicionamentos políticos e
ideológicos alicerçados em informações que negam as evidências científicas e se ancoram em
narrativas revisionistas e negacionistas” (DOMICIANO et al., 2021, p. 46).

30
A SaferNet é uma ONG (Organização não-governamental, sem fins lucrativos) que monitora violações de
direitos humanos na internet.
31
Ver mais em: https://new.safernet.org.br/content/denuncias-de-neonazismo-safernet-aumentam-60-em-um-ano
32
Programa com série de reportagens da televisão aberta, na Rede Globo.
38

Elika Takimoto (2021, p. 28) compreende que “negacionista é aquele que nega os fatos,
que rejeita a realidade para escapar de uma verdade que lhe traga desconforto”, ou seja, a partir
deste conceito podemos compreender que todo ser humano pode ser negacionista, entretanto, o
negacionismo atual não é meramente genuíno, assim como a ignorância colossal de nossos
tempos não é a ignorância genuína, etapa significativa para o conhecimento. A ignorância e os
negacionismos vertiginosos contemporâneos são parte fundamental do capitalismo, que, para
sua manutenção, investe em um clima delirante, em que a política e economia apelam para a
ignorância e a mentira vai se tornando “a lógica do mundo” (TIBURI, 2019, p. 48), gerando
movimentos perigosos e deletérios que se expandem. Em democracias frágeis, como no caso
da brasileira, em que o revisionismo e o negacionismo histórico encontram terrenos férteis,
organizam-se enquanto um movimento. Além disso, segundo Derick Domiciano et al. (2021,
p. 46-47),
entre os efeitos desse movimento, que não ocorre ao acaso, mas que é cuidadosamente
orquestrado, é possível identificar a polarização política e o mascaramento das
desigualdades sociais alimentadas por um saudosismo que teima em evocar um
passado no qual, supostamente, reinava a ordem, a moralidade e a governança livre
de corrupção.

O ensino de história depara-se com dificuldades, tais como os negacionismos


construídos e incentivados por grupos extremistas para fins de manipulação política, cujas
consequências são devastadoras, como foi o caso da negação da pandemia da covid-19, que
levou pessoas a não se comprometerem com protocolos de manutenção da saúde coletiva ou a
não vacinarem a si e a seus filhos, provocando a mortandade que vivenciamos. Os algoritmos
das redes sociais contribuem para que ações paranoicas disseminem suspeitas não apenas da
ciência, mas “como também de consensos políticos e evidências históricas” (TAKIMOTO,
2021, p. 92).
Usando o exemplo da negação da pandemia de covid-19 no Brasil, Takimoto (2021, p.
52) destaca que “as instituições estão desacreditadas, a imprensa desmoralizada e a
universidade ridicularizada, as informações transmitidas pelas redes sociais ganham mais
atenção do que as das mídias tradicionais”. Educadores percebem esse fenômeno facilmente,
pois os ecos da desinformação e das negações reverberam em sala de aula, já que estudantes
não são “tabulas rasas”, mas, sim, carregam consigo suas vivências, experiências,
conhecimentos e crenças (DOMICIANO et al., 2021). É comum estudantes informarem-se
pelas redes sociais, através de youtubers, de influencers, de páginas ou de canais preferidos.
Assim, percebe-se que a informação não se dá mais através de meios de comunicação
tradicionais, tampouco de consulta a artigos ou livros. Esse uso não consciente da internet e de
39

suas fontes, possibilita exposição à desinformação promovida por movimentos negacionistas.


Esse é um cenário que apresenta muitos desafios para a educação comprometida com o
conhecimento e a formação do pensamento crítico.

| Cena 4: o cenário: Porto Alegre bizarra

O interesse em estudar a potência teatral como linguagem para o letramento histórico,


combatendo negacionismos e neofascismo, surgiu quando iniciei meus trabalhos como
educadora do colégio Lumiar Porto Alegre. Entrei nessa escola justamente quando uma turma
concluía uma montagem teatral, em setembro de 2018. Inicialmente, o que me surpreendeu
foram as possibilidades que o modelo pedagógico da escola permitia e o total respaldo da
direção da escola para trabalhos críticos, criativos e alternativos. De fato, não era uma escola
de educação tecnicista tradicional como a grande maioria das escolas de Porto Alegre. Outro
aspecto que chamou a atenção foi como as mídias digitais estavam presentes no cotidiano
escolar: o uso da plataforma digital da escola é diário, seja para docentes ou discentes; há um
incentivo para a utilização de celulares e computadores; e, para a pesquisa via internet, todos e
todas podem acessar livremente a web durante as aulas. Há diversos aspectos que chamaram a
minha atenção, entretanto, discorrerei mais sobre o assunto ao longo da dissertação, por
enquanto, o importante é estabelecer como o problema de pesquisa emergiu.
Como moradora da região metropolitana (atualmente em São Leopoldo), não conhecia
além de superficialmente o bairro Mont’Serrat, de Porto Alegre, onde a escola Lumiar está
localizada. Passei a conhecê-lo trabalhando lá, através de minhas caminhadas, leituras e
contatos com os estudantes. A escola Lumiar é uma escola privada e a maioria dos seus
estudantes são brancos de classe média ou de classe trabalhadora. Mesmo com acesso facilitado
ao digital e a fontes de cultura, estudando em uma escola problematizadora, pautada no diálogo,
incentivados à pesquisa, ao letramento digital e com participação dos estudantes na tomada de
decisões, os reflexos de nossos tempos e de nossa história como país estão sempre presentes,
conforme abordarei nos relatos do Ato IV.
Acredito ser importante uma breve explanação sobre Porto Alegre em relação a períodos
políticos diferentes/divergentes - a Porto ‘alegre’ e a Porto ‘triste’ -, assim como do bairro
Mont’Serrat, para melhor contextualizar os relatos que seguirão. Minha visão da capital era
bastante romantizada, talvez por sua história não tão distante. A cidade de Porto Alegre foi o
40

“berço do Orçamento Participativo33” (MACHADO; SCALCO, 2018, p. 56), considerada


referência de mudanças reais no sistema de ensino, através de projetos educacionais conectados
com movimentos e projetos de crítica social. Segundo estudos de Luís Armando Gandin e
Michael W. Apple (2012, p. 622), a cidade vivenciou “mudanças estruturais que foram
implantadas no sistema municipal de Porto Alegre durante os 16 anos de mandato da
Administração Popular (uma coalizão de partidos de esquerda, liderada pelo Partido dos
Trabalhadores que governou a cidade de 1989 a 2004)”. Além de possuir uma política
educacional que ampliou escolas na periferia, através de conquistas do Orçamento
Participativo, e que criou a proposta de Escola Cidadã.
Segundo Gandin e Apple (2012, p. 621), Escola Cidadã “foi o nome usado para a
proposta do novo sistema de ensino urbano utilizado por duas das quatro administrações do
Partido dos Trabalhadores”, caracterizado por um ensino transformador, constituído como uma
alternativa ao projeto de escola baseado no neoliberalismo, em que o conhecimento é uma
mercadoria e pais e alunos consumidores. Para a Escola Cidadã, o objetivo da educação era a
ideia de cidadania “redefinida como a garantia dos direitos das pessoas a terem bens materiais
necessários para sobrevivência, bens simbólicos necessários à sua subjetividade e bens políticos
necessários à sua existência social” (GANDIN; APPLE, 2012, p. 623). Um projeto de ensino
participativo e democrático, que, dentre diversas práticas, incluía políticas salariais de
valorização dos professores, formação continuada, seminários, gestão democrática das escolas
através de conselho escolar atuante, formação para membros do conselho, eleições para
diretores de escola, ciclos de formação e organização curricular a partir de complexos
temáticos.
Porto Alegre, que já foi considerada uma cidade global diferente, conhecida
internacionalmente não por sua importância na economia capitalista, mas por apresentar,
segundo Gandin (2011, p. 235),
[...] concepções diferentes, e muitas vezes opostas, de globalização. A cidade alcançou
o status de player global depois que seu reconhecimento como local de práticas
municipais libertadoras levou à sua escolha como sede tanto do primeiro Fórum Social
Mundial quanto do Fórum Mundial de Educação, os mais importantes eventos de
movimentos sociais e culturais em busca de formas alternativas da globalização
centrada na sustentabilidade ecológica e no bem-estar humano.

33
Orçamento Participativo é uma forma alternativa de governança, na qual cidadãos atuam através de assembleias
comunitárias, discutindo e decidindo sobre orçamentos públicos e investimentos municipais de forma participativa.
Foi implantado em Porto Alegre, em 1989, na primeira gestão da Frente Popular (1989-1992), coligação entre o
Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi reconhecido pela ONU (Istambul,
1995) como uma das 40 melhores experiências de gestão pública urbana no mundo.
41

A cidade reconhecida como politizada, devido a suas práticas municipais libertadoras,


tornou-se uma referência contra-hegemônica ao neoliberalismo (GANDIN, 2011). Entretanto,
se na década de 1990 ficou conhecida por transformar a educação pública municipal a partir de
“princípios da educação crítica, democrática e cidadã” (SANTOS; MOREIRA; GANDIN,
2020, p. 867), atualmente, Porto Alegre vê crescer grupos ultraconservadores, movimentos
negacionistas e neofascista, contrariando seu passado de práticas políticas e educação
democratizante.
Certamente a experiência educacional da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, e
as práticas democráticas da cidade, deixaram importantes aprendizados dos quais não se
extinguiram por completo, apesar dos avanços de políticas de direita que tem crescido no Brasil
e no mundo. Segundo Santos, Moreira e Gandin (2020), as gestões municipais subsequentes ao
PT (após 2005), usaram como estratégia “eliminar as políticas introduzidas pelo Partido dos
Trabalhadores sem entrar em um confronto aberto” (GANDIN; APPLE, 2012, p. 636), isto é,
deixar a prática sucumbir esvaziando os significados da proposta, por falta de planejamento,
formação, incentivos e organização.
Atualmente, o Brasil “tem operado como terreno fértil para nutrir o crescimento de
grupos direitistas e suas políticas” (SANTOS; MOREIRA; GANDIN, 2020, p. 869), dessa
forma, movimentos negacionistas, impulsionados pelas redes virtuais, têm reverberado na vida
prática, ganhando as ruas e ameaçando a democracia. Indiferente da classe social, suas
manifestações são crescentes e assustadoras. Porto Alegre pode ser lida como um exemplo de
como o negacionismo tem se organizado para além das plataformas e, muitas vezes, ameaçado
a educação. Já não é mais uma questão de distorção apenas, mas de deslumbre e afinidade com
discursos extremistas.
Na capital do RS, desde 2013, movimentos negacionistas têm ganhado as ruas,
organizados corriqueiramente em praças e ruas dos bairros de classe média. Segundo Jessé
Souza (2015, p. 5), a classe média brasileira também é explorada pelas ditas elites sem grande
consciência, porém, culpa as classes subalternas por seus fracassos, costumando defender o
discurso liberal de meritocracia. Como consumidora dos bens culturais materiais e simbólicos
do capitalismo, é a classe que mais defende a manutenção dos privilégios, característica sobre
a qual Freire (1974/2019, p. 68) já alertava dizendo que
[...] em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível
atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui
uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o
opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe
média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada classe “superior”.
42

Em Porto Alegre, a classe média compunha a grande maioria dos manifestantes de


extrema direita que, em diversas oportunidades, reuniram-se na Av. Goethe e no Parque
Moinhos de Vento (conhecido como Parcão), muito próximo à escola Lumiar, que localiza-se
na rua Freire Alemão. Nessas constantes manifestações, desde 2013, várias pautas chamaram a
atenção por seu caráter extremista, como a manifestação favorável ao impeachment da
presidenta Dilma Rousseff; em defesa do mandato de Jair Bolsonaro; pelo pedido de
“intervenção militar”; contra ministros do Supremo Tribunal Federal; ou mesmo manifestações
antivacinas.
Em 2021, uma dessas manifestações aturdiu por ter um dos participantes vestido com
indumentária parecida à da Ku Klux Klan, em que esse participante foi chamado pelos
organizadores de “o carrasco”. Na ocasião, ele incentivava os demais manifestantes, que
atendiam a seu pedido, gritando que estavam lá para acabar com o comunismo. Segundo a
reportagem de Ayrton Centeno, do jornal Brasil de Fato, o ato pró-governo Bolsonaro, de 21
de abril de 2021, fazia apologia ao racismo e ao anticomunismo. O vídeo com o participante
fazendo referência à Ku Klux Klan circulou nas redes sociais. “O vídeo é revoltante não só pela
apologia ao racismo, mas por vermos que a pessoa que estava com a roupa caracterizada pela
Ku Klux Klan recebia o respaldo político e ideológico dos demais presentes”, ressaltou o
sociólogo Gilvandro Antunes, do coletivo Vidas Negras Importam/RS. “Além do mais - agrega
- a KKK é conhecida por seu terrorismo racial com prática de linchamentos, torturas e
assassinatos” (CENTENO, 2021, texto digital).

Figura 3 - Homem com vestimenta que lembra a Ku Klux Klan em ato em Porto Alegre.

Fonte: CENTENO (2021). Reprodução de vídeo34.

34
Mais informações e vídeo completo em: https://globoplay.globo.com/v/9458095/
43

Figura 4 - Ato na Av. Goethe a favor do gov. de Bolsonaro e em defesa do voto impresso.

Fonte: SAMUEL, Felipe. Correio do Povo, 2021.

Colégios em Porto Alegre também passaram a ser alvo de disputa de narrativas e


vigilância de pais de direita. Um dos casos marcantes ocorreu em 2019, no colégio Marista
Rosário, em que o movimento Escola Sem Doutrinação, grupo alinhado com o movimento
Escola Sem Partido35, manifestou-se e organizou-se pelas redes e presencialmente, diante da
escola, empunhando cartazes como "Marista, sim! Marxista, não!", "Mais Champagnat! Menos
Frei Betto e Leonardo Boff" e "Por mais Cristianismo nas aulas". Segundo reportagem de
Itamar Melo, para Gaúcha Zero Hora (GZH, 2019), o estopim foi uma briga de alunos durante
um debate na aula de Sociologia, na qual o professor exibiu vídeo de uma entrevista do
sociólogo Sérgio Adorno, em que refletia sobre o papel da polícia e problematizava sua prática
distinta de acordo com a classe social. Após o acontecido, o professor foi demitido.
Apesar da manifestação ocorrer nessa ocasião, sua motivação para o movimento deu-se
anteriormente, após manifestação de alunos no pátio da escola contra Jair Bolsonaro, após o
segundo turno das eleições de 2018. Segundo a reportagem da GZH (2019), “cerca de 100 pais
se mobilizaram, com a finalidade de manter vigilância sobre eventuais manifestações
ideológicas em sala de aula e de apresentar propostas para o ensino. Alguns exigiam mais aulas

35
O Escola Sem Partido (MESP) é um movimento ultraconservador, focado em mudar a legislação que rege a
educação brasileira, visando, através de medidas que censuram professores, conteúdos e material didático, impedir
o pensamento crítico e o processo educativo pleno, criando uma mordaça legal na educação.
44

sobre cristianismo e catolicismo como parte do ensino religioso”, conforme explicou o médico
Paulo Leite, fundador do movimento Escola Sem Doutrinação.
Esta breve explanação sobre a cidade de Porto Alegre se deu para melhor apresentar o
“cenário” em que essa pesquisa teórica - e sobre memórias de uma professora - foi realizada,
isto é, meu olhar sobre o entorno do período em que trabalhei como educadora na cidade.
Apesar do avanço crescente do neofascismo, é importante destacar que Porto Alegre tem uma
história de destaque em projetos contra-hegemônicos, sua experiência educacional da Rede
Municipal de Ensino deixou aprendizagens “sobretudo na conjuntura atual, seja por sua história
que nos parece ainda uma potente iniciativa de educação popular, seja por sua capacidade de
re(existir), criando alternativas, entre perdas e vitória” (SANTOS; MOREIRA; GANDIN,
2020, p. 883). Aprender com a potência democrática do passado, resistir ao tempo presente,
através da capacidade criativa e transformadora da educação, eis o objetivo da pesquisa que
segue.

Ao longo desse Ato I, procurei justificar a minha opção por investigar a potência
pedagógica do teatro com adolescentes no enfrentamento de fenômenos das Sociedades das
Plataformas. Para tanto, optei por buscar em memórias de práticas pedagógicas significativas
pistas/cenas que contribuíssem para compreender como a potência das artes pode contribuir
para mitigar a ignorância característica de nossos tempos. Considerei memórias que
retomassem minha ligação com teatro e história e, ao longo da dissertação, desenvolverei mais
sobre essas recordações, focando, principalmente, nas lembranças do período que trabalhei no
colégio Lumiar Porto Alegre (de 2018 a 2021) e cito alguns motivos: (a) Porto Alegre tem sido
referência em manifestações de movimentos de cunho negacionistas e neofascista; (b) os
adolescentes do colégio Lumiar são hiperconectados ao digital; (c) produzir pesquisa com foco
na classe média e classe trabalhadora branca também se faz necessário, visto que é importante
ampliar investigações também sobre grupos considerados privilegiados no Brasil; (d) coordenei
projetos na Lumiar que são pistas/cenas para compreensão do problema que essa
pesquisa/montagem se propôs a investigar; (e) a Lumiar tem um modelo pedagógico aberto a
metodologias vivas e ativas, como a pesquisa-ação, cujo modelo possibilitou que eu orientasse
trabalhos envolvendo arte e história; e (f) sendo minha última experiência pedagógica, tenho
registros dos processos artísticos desenvolvidos na plataforma Lumiar, em meus arquivos
pessoais e em diários aula/vida.
45

Finalizando esse primeiro Ato, relembro que o intuito dessa dissertação não é propor
soluções, nem tampouco traçar um manual de trabalho com teatro e história. Essa dissertação é
sobre educação, sobre arte, sobre resistência diante de discursos fatalistas, mas é,
especialmente, sobre denúncia e anúncio, sobre sonhos utópicos possíveis.
46

ATO II

O roteiro, em um paradoxo
47
48

| Cena 5: os bastidores

Compreender nossos tempos e o porquê de a tecnologia ter se mostrado uma ferramenta


de propagação de ideias extremistas e produção de ignorância faz-se necessário para uma
reflexão mais profunda acerca do tema desta pesquisa. Edison Teles, no prefácio da edição
brasileira do livro A escolha da Guerra Civil (DARDOT et al., 2021, p. 10), afirma que “desde
o período entreguerras até o final da Guerra Fria36, a Europa testemunhou a emergência de
teoria do pensamento visando evitar a ingovernabilidade de uma democracia de massas”,
encontrando como solução o fortalecimento do Estado, aliado do mercado e de autoritarismos.
Estando a violência no cerne do Estado, este jamais deveria deixar de existir, mas utilizar da
violência para impedir que seus inimigos, “tudo que se assemelhe, de perto ou de longe, a
dirigismo e coletivismo” (DARDOT et al., 2021, p. 135), ofereçam algum risco aos direitos
privados e à ordem do mercado. Essa violência não está inscrita nas leis do Estado de Direito,
mas é promovida pelo próprio Estado, que empenha-se em impedir o sucesso de qualquer
organização social a fim de democratização.
Casara (2018, p. 14) alerta que não vivemos mais em uma democracia, mas, sim, em
uma “pós-democracia”, que substituiu o Estado Democrático de Direito, pois não há mais limite
entre poder político e poder econômico, afinal ambos servem para proteger o mercado e a
ampliação ilimitada do capital financeiro, portanto o Estado Pós-Democrático, “forma jurídica
em que desaparecem os limites rígidos ao exercício do poder econômico” (CASARA, 2018,
151), que tem como base a racionalidade neoliberal. A democracia e o conceito de liberdade
como emancipação entendidas como dimensões da cidadania, proposta inicial do liberalismo
classista, já não existem, deturpada pelo próprio caminho liberal e sua versão mais radical e
violenta, o neoliberalismo. Diferentemente de alguns autores que veem o neoliberalismo como
a versão mais violenta do liberalismo, no pensamento de Dardot et al. (2021), o neoliberalismo
não é mais liberalismo, mas uma ruptura37 deste, podendo ser entendido como um projeto de

36
Segundo Santos (2018), após a queda do Muro de Berlim, em 1989, havia duas agendas que tiveram um impacto
decisivo nas políticas de esquerda. A agenda explícita contava com o fim do socialismo enquanto sistema
socioeconômico e político liderado pelo Estado. Já uma agenda implícita consistia no fim de qualquer sistema
social, econômico e político liderado pelo Estado. O fim do socialismo de tipo soviético desarmou e enfraqueceu
partidos comunistas, mesmo que já tivessem se afastado desse modelo político. A agenda implícita (realizada nas
sombras) foi a que realmente impactou o mundo, pois colocou o pensamento neoliberal como universal,
hegemônico sem grandes oposições.
37
A ruptura com o liberalismo clássico e construção de um novo projeto liberal foi constituído como uma resposta
aos possíveis caminhos democratizantes que a sociedade poderia seguir, como a Primeira Guerra mundial (1914-
1918), a Revolução Russa (1917), Revolução Alemã (1919), a quebra da bolsa de valores de Nova York (1929), o
fortalecimento dos sindicatos e projetos de Estado do bem-estar social, soam como alarme para correntes
ideológicas defensoras do sistema capitalista. Em 1938, aconteceu o Colóquio de Walter Lippmann, em Paris,
reunindo pensadores liberais para discutir o keynesianismo (do qual Lippmann era opositor) como respostas aos
49

Estado, um conjunto de estratégias e valores que visam proteger seus ideais de liberdade
(intelectual e propriedade privada), mercado concorrencial e primazia do direito. Em suma, é
um “sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do
capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.
7). Portanto, não é apenas um projeto de cunho econômico e político, mas um conjunto de
estratégias que visam interferir e formatar a subjetividade humana, pois “a novidade da
racionalidade neoliberal é criar o indivíduo que produz, controla e vigia, endivida e violenta a
si mesmo” (DARDOT et al., 2021, p. 12), um indivíduo egoísta, solitário, que compete e vê os
demais como concorrentes.
Apesar do neoliberalismo não ter uma definição bem estabelecida, conforme elucida
Wendy Brown (2019), há uma vasta produção acadêmica que debate suas características
constitutivas, ele é mais “comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a
propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o
trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para
investidores estrangeiros" (BROWN, 2019, p. 29). Ainda, a autora destaca dois pontos de vista:
o neomarxismo, que vê o neoliberalismo como “um ataque oportunista dos capitalistas e seus
lacaios políticos aos Estados do bem-estar Keynesianos, às sociais-democracias e ao
socialismo, de Estado” (BROWN, 2019, p. 29); e o pensamento de Michel Foucault, que vê
uma “reprogramação do liberalismo”, isto é,
[...] uma nova racionalidade política, cujo alcance e implicações vão muito além da
política econômica e do fortalecimento do capital. Ao contrário, nessa racionalidade
os princípios de mercado se tornam princípios de governo aplicados pelo e no Estado,
mas também que circulam através de instituições e entidades em toda a sociedade -
escolas, locais de trabalho, clínicas, etc. Esses princípios tornam-se princípios de
realidade que saturam e governam cada esfera da existência e reorientam o próprio
homo economicus, transformando-o de um sujeito da troca e satisfação de
necessidades (liberalismo clássico) em um sujeito da competição e do aprimoramento
do capital humano (neoliberalismo) (BROWN, 2019, p. 31).

Mesmo com algumas divergências de definição do neoliberalismo, importa para o


entendimento da crescente ignorância das Sociedades das Plataformas, compreendermos essa
racionalidade e seus efeitos, principalmente no ataque e desmantelamento das democracias.

eventos tidos como ameaçadores. Surgem, então, duas correntes: a neoliberal anglo-saxões, representada por
Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek; e a neoliberal ordoliberais, representada por Wilhelm Röpke e Walter
Eucken. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), novos eventos considerados ameaçadores do capitalismo,
como a expansão dos Estados Socialistas no leste europeu e na China, e o fortalecimento do Estado do bem-estar
social, impulsionaram correntes neoliberais para que voltassem a se reunir, somando outros intelectuais como
Milton Friedman. Assim é formado, em 1947, a Sociedade Mont Pèlerin, que organiza o pensamento neoliberal,
definindo que não é função do Estado se preocupar com o bem-estar social e, então, decretam quem são seus
inimigos e alinham suas estratégias (DARDOT et al., 2021).
50

Portanto, nesse momento, cabe uma pergunta sobre a situação brasileira nesse contexto
neoliberal: estaríamos num Estado Pós-Democrático ou jamais estivemos de fato numa
democracia? Chauí (2014) diverge de Casara (2018) nesse aspecto conceitual, pois não faria a
leitura de uma pós-democracia, pois, como a autora esclarece, nos acostumamos a pensar em
democracia apenas no sentido liberal, visto a hegemonia do capitalismo e sua ideologia, como
se só houvesse um significado e forma - o regime de direito para garantir as liberdades
individuais -, lembrando que no neoliberalismo essas liberdades se reduzem a liberdade de
mercado e competição.
A democracia liberal, segundo Chauí (2014), é reduzida a um regime político baseado
na escolha de representantes, na rotatividade destes, em eleições e formação de partidos, em
uma ideia de representatividade através de soluções técnicas para os problemas econômicos e
sociais. Esta é uma democracia que Chauí (2014) diz que nunca foi substancial no Brasil, pois
é um país estruturalmente autoritário, oligárquico e hierarquicamente excludente, marcado por
múltiplos preconceitos (sociais, raciais, religiosos, de gênero) que servem como justificativa e
naturalização das desigualdades econômicas, sociais e raciais, dividindo a sociedade entre
gentes superiores e inferiores. A democracia que se reduz a um regime político “modelada sobre
o mercado e sobre a desigualdade socioeconômica, é uma farsa bem sucedida, visto que os
mecanismos por ela acionados destinam-se apenas a conservar a impossibilidade efetiva da
democracia” (CHAUÍ, 2014, p. 148).
Um país marcado por políticas violentas, que, com o aprofundamento do liberalismo
em sua versão mais radical - o neoliberalismo -, do qual, para Chauí (2021), é totalitarista e se
ajusta perfeitamente à estrutura autoritária, preconceituosa, violenta e desigual da sociedade
brasileira, acentuando esses problemas históricos, uma vez que seu projeto não visa apenas o
enxugamento racional do Estado, mas a abolição do fundo público destinado aos direitos sociais
e direciona-o para os interesses do capital e seus representantes, privatizando empresas, direitos
sociais, transformando tudo e a todos em mercadorias, destruindo a possibilidade de democracia
como garantia de direitos. Isto é, nesse sentido Chauí (2014/2021) e Casara (2018) se
aproximam, pois ambos percebem o momento atual como um colapso da democracia de baixa
intensidade que estávamos construindo, mas, que com o crescente “totalitarismo” (CHAUÍ,
2021) ou “neofascismo” (CASARA, 2018), a construção de democracia é destruída, mantendo
o país na polarização “entre a carência absoluta das classes populares e os privilégios absolutos
das classes dominantes” (CHAUÍ, 2021).
O conceito de democracia que defendo e que entendo que a educação deve vivenciar e
buscar é de seu sentido mais forte, que seria o sentido defendido por Chauí (2014), garantindo
51

acesso aos bens culturais, forma social e política, baseado na criação e na conservação de
direitos, que considera os conflitos legítimos e necessários, em que a soberania é do povo e não
do governante, isto é, seu sentido pleno. Reforçando que "democracias liberais, burguesas ou
capitalistas nunca foi uma democracia plena, e que quaisquer que sejam suas disposições
democráticas, elas vêm sendo constantemente enfraquecidas nas últimas décadas" (BROWN,
2019, p. 34). Com o avanço neoliberal, o social passa a ser atacado, pois seu objetivo visa
desmantelar o Estado social, gerando uma “cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo
tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima”
(BROWN, 2019, p. 39), destruindo a compreensão de democracia do povo que busca o
igualitário e comunitarismo, tornando a política “um campo de posicionamento extremo e
intransigente, e a liberdade se torna um direito de apropriação, ruptura e até mesmo de
destruição do social” (BROWN, 2019, p. 39).
O neoliberalismo vive uma crise eterna (CASARA, 2017), que acaba funcionando como
forma de manutenção do seu projeto, assim como fomenta guerras civis 38, (DARDOT et al.,
2021), sob a justificativa de defender interesses nacionais, como família, tradição e religião,
usando do poder do Estado para oprimir resistências ou manifestações dos grupos chamados de
minoritários e vistos como perigosos aos interesses do capital. Crises e conflitos civis não
passam e nem podem passar, pois a sobrevivência do sistema depende deles, embora sejam
inerentes e permanentes, funcionais a um sistema em que o lucro é a primazia. Dessa forma,
Casara (2017, p. 12) afirma que a utilização do termo “crise” é um recurso retórico, “elemento
discursivo capaz de esconder as características estruturantes do atual modelo de Estado”. Sob
o argumento de crises, os direitos são desmantelados para “salvar” a economia e ditaduras,
assim, governos autoritários são aceitos como forma de recuperação do sistema capitalista.
No neoliberalismo, Estados não deixam de existir ou se enfraquecem, muito pelo
contrário, eles ficam ainda mais fortes, pois é através deles que a elite branca capitalista garante
a permanência de seus privilégios, já que ela precisa da garantia de um Estado cada vez mais
totalitário que garanta sua proteção e seus interesses. Para que o Estado neoliberal cumpra esse
papel, ele precisa estar “constantemente em pé de guerra, a fim de impedir que a democracia
interfira na economia” (DARDOT et al., 2021, p. 35). As guerras civis incentivadas pelo Estado

38
Dardot et al. (2021) se refere a guerras civis utilizadas enquanto método, no qual seus alvos são grupos sociais,
coletividades e segmentos da população, isto é, guerras em que o inimigo é interno, o Estado contra civis que
ameaçam o ideário neoliberal. Um dos exemplos de guerra civil citado por Dardot et al. (2021) foram os conflitos
no Chile, em 2019, no qual a população organizada protestava contra o aumento das passagens do metrô de
Santiago e a reação do governo de Sebastián Piñera foi declarar guerra aos “inimigos” da “ordem” atuando de
forma violenta contra os manifestantes.
52

têm como objetivo frear movimentos sociais e grupos considerados inimigos do seu projeto,
como “os governos e os partidos socialistas, os sindicatos e os movimentos sociais, que lutam
por reivindicações econômicas, ecológicas, feministas ou culturais” (DARDOT et al., 2021, p.
35). Em suma, guerras contra exigências de igualdade e pela concorrência.
Testemunhamos o fim do Estado de Direito (CASARA, 2018), pois, mesmo a
democracia de baixa intensidade está a ser deteriorada, assim, a possibilidade de a democracia
poder abrir brechas para a organização popular faz com que ela esteja sendo desmantelada. Para
o projeto neoliberal não importa muito se há uma ditadura ou democracia liberal, desde que
ambas sirvam aos interesses econômicos do mercado. Dessa maneira, há uma plasticidade no
projeto, de acordo com a ocasião histórica, isto é, pode ser uma democracia liberal que esteja
atendendo a seus interesses, porém, se os interesses do mercado forem de alguma forma
ameaçados, não há qualquer intimidação para que se apoie governos ditatoriais. A atual
desvirtualização da democracia é usada para legitimar a superioridade do princípio de mercado,
transformando-a em mercado corrompido (CASARA, 2018), essa desvirtualização acontece
quando, segundo Casara (2018, p. 11),
[...] o poder estatal abandona a defesa dos interesses da maioria da população para se
colocar a serviço do mercado, das corporações ou de grupos de interesses econômicos.
Isso explica, por exemplo, as políticas governamentais contrárias aos interesses da
maioria dos cidadãos, com o objetivo de proporcionar benefícios (e mais poder) a uma
parcela específica da população: os super-ricos.

O Brasil, país marcado pelo autoritarismo e pela implementação de uma democracia


frágil, liberal e muito recente, encontra-se mais uma vez ameaçado pelo autoritarismo, essa
frágil democracia propôs-se a assegurar direitos fundamentais que garantissem a participação
popular através do voto e de tomadas de decisões, a “vida digna e de impor limites a todos os
poderes, inclusive e principalmente ao poder econômico” (CASARA, 2018, p. 13). No entanto,
nossa história revela diversos momentos em que as regras democráticas não foram cumpridas
e os direitos fundamentais não foram assegurados. Lilia Schwarcz (2019, p. 224) relembra
alguns períodos de desvirtualização democrática - ou de supressão completa -, lembrando que,
mesmo depois da Constituição de 1988, ela continua sob ameaça e atualmente em colapso:
Foi assim na época da República militar de Deodoro da Fonseca (1889-91) e de
Floriano Peixoto (1891-94), que governaram parte de seu período presidencial sob
estado de sítio. Foi também assim nos anos 1920, quando, sob a presidência de Arthur
Bernardes, decretou-se um estado de sítio que perdurou por quase todo seu governo.
E ainda, na ditadura do Estado Novo, que durou de 1937 a 1945, com a centralização
do poder nas mãos de Getúlio Vargas e a imposição de uma nova Constituição. Não
se pode esquecer, por fim, o golpe civil-militar de 1964, o qual destituiu um governo
legitimamente eleito e implantou a ditadura [...]. E talvez estejamos vivendo mais um
novo capítulo dessa história autoritária, com uma convincente guinada conservadora
e reacionária, que surgiu nas urnas no pleito de 2018.
53

A Constituição de 1988 validava a existência de instituições que garantissem a


democracia liberal, como o voto popular para representatividade no executivo e legislativo,
porém, como afirma Luis Felipe Miguel (2016, p. 29), “o golpe de 2016 marca uma fratura
irremediável no experimento democrático iniciado no Brasil em 1985”, pois a derrubada da
presidenta Dilma Rousseff sinalizou que as instituições “deixaram de operar e, por
consequência, o sistema político em vigor no país não pode mais receber o título de
‘democracia’ – mesmo na compreensão menos exigente da palavra” (MIGUEL, 2016, p. 29).
Esse golpe contra a democracia abriu caminhos para as agendas liberais-conservadoras que
vinham sendo rejeitadas pelo voto popular há mais de quatro eleições, segundo aponta Eduardo
Fagnani (2016, p. 70): “numa única canetada, ao extinguir ministérios, o governo ilegítimo
destruiu mais de trinta anos de luta para construir políticas de direitos humanos e igualdade,
cultura, ciência e tecnologia, educação, reforma e desenvolvimento agrário”, uma destruição
acelerada que culminou com a vitória do candidato de extrema direita nas últimas eleições de
2018.
É importante salientar que existe uma articulação direta entre neoliberalismo e
conservadorismo, pois faz parte da arquitetura original neoliberalista, a respeito da qual seus
pensadores argumentavam que a moralidade tradicional devia ser a base das legislações,
pautadas nos valores da família, propriedade privada, autoridade e patriarcado (BROWN,
2019). Dentre os pensadores do neoliberalismo e defensores do conservadorismo, podemos
destacar Friedrich Hayek e Wilhelm Röpke, que defendiam que o que torna os homens bons é
a tradição39, portanto, a pluralidade de valores e as ditas minorias40 desviantes precisariam ser
excluídas. Para Brown (2019), o conservadorismo foi assumindo uma abordagem agressiva e
demagógica, que está no cerne da formação neofascista, isto é, o neoliberalismo é uma das
origens das atuais políticas fascistas e autoritárias.
Sempre houve a preocupação e a dificuldade em articular a ideia de modernidade e
mercado à tradição, entretanto, uma união foi necessária para garantir a obediência às

39
Dardot et al. (2021, p. 173) esclarece que dois intelectuais (Hayek e Röpke), dentre outros, tiveram grande
influência na arquitetura do neoliberalismo e ambos, apesar das diferenças, valorizavam a tradição. “Por tradição
é preciso entender o conjunto de regras de conduta partilhadas por um grupo permitindo-lhe reprimir os instintos
primitivos ligados a nossa natureza biológica e garantir sua sobrevivência e sua superioridade sobre outros grupos”,
um pensamento de Röpke, que Hayek, que apregoavam que apesar de corroborar, acrescentava que o importante
não era um retorno à origem da tradição das pequenas comunidades, mas que era necessário que o sistema
normativo evoluísse pautado nas tradições.
40
Freire (2014/2021) alertava que o rótulo “minoria” foi criado pelos opressores (donos do capital e meios de
produção - atualmente capital financeiro) para falsificar e ocultar a realidade, visto que a minoria na verdade
constitui a maioria, que é oprimida pela ideologia dominante da real minoria (os opressores).
54

hierarquias e a normalização de autoridades ou autoritarismos. Nos anos 1960 e 197041, houve


uma grande efervescência de grupos sociais na luta por direitos e liberdades, o que abalou os
valores patriarcais e familiares, além dos costumes de vários países ocidentais. O movimento
que emergiu nos anos 1960 foi uma resposta aos valores capitalistas, segundo Patrícia
Marcondes de Barros (2017, p. 99),
[...] seu caráter político ganhou visibilidade nos Estados Unidos através da luta
integrada pelos direitos civis dos negros, homossexuais e mulheres, da inserção do
jovem enquanto importante ator social, do pacifismo, do pensamento ecológico, entre
outras novas proposições que não eram contempladas na chamada política tradicional.

Esse movimento ficou conhecido como contracultura, pois confrontava os valores


conservadores e a cultura consumista, reverberou inclusive no Brasil, mesmo que tardiamente,
no final da década de 1960, se estendendo até a década de 1970, como uma forma de reação ao
cerceamento de liberdades impostos pela ditadura militar. Segundo Barros (2017, p. 102), suas
primeiras expressões se deram “através da revolução estética e comportamental propiciada pelo
Tropicalismo, ganhando vazão durante a década de 70 de forma marginal, com a publicação de
livros, impressos alternativos e manifestações artísticas”. Apesar das propostas contraculturais
emergirem “mais como um anseio romântico do que como efetiva transformação social”
(BARROS, 2017, p. 102), era uma reação ao conservadorismo que fortaleceu as manifestações
e organizações coletivas de movimentos ou partidos de esquerda, alcançando a atualidade, pois
contribuiu com lutas de movimentos sociais pelos direitos civis e liberdade de corpos e
existências.
Como resposta a este movimento de contracultura, a direita e a extrema direita
investiram numa contrarrevolução cultural em escala mundial (contrarrevolução, por opor-se
à revolução cultural proposta pela contracultura), retomando a importância dos seus valores
conservadores, formando, assim, uma aliança neoliberal - ou novo conservadorismo42 - através
de uma coalizão “com figuras centrais do novo conservadorismo estadunidense (especialmente
Irving Kristol e Daniel Bell)” (DARDOT et al., 2021, p. 208). Margaret Thatcher destacou-se
como representante dessa aliança, sendo uma influenciadora mundial, que defendia o tripé do
neoliberalismo em sua forma mais conservadora: “fé-família-liberdade”, ressaltando em sua
política, discursos e ideologia o apelo à ordem, à obediência às autoridades, tradição, família

41
Exemplos como “ampliação dos direitos das mulheres sobre contracepção e o aborto, evolução notável do direito
sobre o divórcio, recuo da criminalização da homossexualidade e transexualidade, reconhecimento de direitos civis
e políticos de minorias étnicas e raciais, afirmação de novos estilos de vida entre os jovens, valorização da estética
da transgressão de toda ordem” (DARDOT et al., 2021, p. 207).
42
Dardot et al. (2021) esclarece que esse é o momento em que surgem coalizões de direitas, citando a designação
de Melinda Cooper (2017), que chama essas coalizões de aliança neoliberal ou novo conservadorismo social, da
qual opera a partir de uma racionalidade que atua no nível social e psíquico (SAFATLE, 2020).
55

patriarcal, hierarquias domésticas, livre mercado e valores cristãos. Brown (2019, p. 29),
destaca que, nesse período dos anos 70, os programas implementados por Margaret Thatcher e
Ronald Reagan foram “novamente focados na desregulamentação do capital, no combate ao
trabalho organizado, na privatização de bens e serviços públicos, na redução da tributação
progressiva e no encolhimento do Estado social”. Diretrizes estas que influenciaram as direitas
por todo mundo (DARDOT et al., 2021), através de uma engenharia social, que colocava no
Estado o papel de despolitizar a sociedade para que o empreendedorismo e a livre-iniciativa
pudessem ascender, combatendo outros conceitos de liberdade que estivessem na contramão
dos interesses econômicos capitalistas (SAFATLE, 2020).
A direita reacionária, que seguiu a linha de Hayek e Röpke, levou a contrarrevolução -
nacionalista, fanática, tradicionalista, racista - aos Estados Unidos e à Europa e, através de sua
influência, a outras regiões do mundo, como os países latino-americanos, sendo o Chile
considerado um laboratório neoliberal durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973- 1990)
(SAFATLE, 2020). Esta contrarrevolução cultural distorceu discursos contra as
discriminações, denunciando “opressões” que a maioria e as identidades tradicionais sofriam
pelas minorias “invasoras” - como muçulmanos, negros, feministas, comunidade LGBTQIA+,
refugiados; enfim, “tudo o que não presta”, frase que dá título ao capítulo 8 do livro Como
conversar com um fascista, de Tiburi (2018), referência ao discurso de Luis Carlos Heinze43 no
qual “em sua fala, que se tornou famosa, ‘quilombolas, índios, gays, lésbicas’ representavam
‘tudo o que não presta’” (TIBURI, 2018, p. 42). “Tudo” representa aqueles e aquelas que não
são considerados úteis ao sistema de produção e consumo, “tudo sobre o fundo de uma narrativa
apocalíptica em que a civilização branca é ameaçada de desaparecimento pela ideologia da
igualdade” (DARDOT et al., 2021, p. 208).
As distorções de discursos e de valores tornam-se comuns como uma estratégia política
do neoliberalismo através de um processo de rebaixamento de discursos, debates e diálogo,
propícios para maledicências e mal-entendidos, do qual Tiburi (2018) chama de “consumismo
da linguagem”, em que meios de comunicação e redes sociais facilitam a livre circulação de
expressões sem responsabilidade ética e legal, circulando como verdade, pois são repetidas à
exaustão. Um bom exemplo é a questão da vítima: “o consumismo da linguagem produz
vítimas, mas produz também o aproveitador da vítima e o aproveitador da suposta vantagem de
ser vítima” (TIBURI, 2018, p. 60), se considerarmos a vítima como aquela que sofre uma
injustiça, uma violência, um abuso, seria fácil agirmos a favor delas. Porém, com as estratégias

43
Atualmente candidato a governador do Estado do Rio Grande do Sul, foi senador brasileiro pelo PP (Partido
Progressista) em 2014 e já foi o deputado federal mais votado pelo RS.
56

de distorções, há uma banalização da condição de vítima, circulando ideias absurdas em que


vítima é aquela que sofre, por exemplo, de “heterofobia” (por não ser homossexual) ou de
“cristofobia” (vítimas dos não cristãos e da arte que “os ataca”), assim como do “racismo
reverso” (que brancos seriam vítimas) ou, ainda, da “ideologia de gênero” (que atacaria os
valores da família tradicional). Uma estratégia que procura banalizar a luta das vítimas
verdadeiras e diminuir a gravidade dos problemas arraigados na sociedade (TIBURI, 2018).
Há, assim, uma distorção de liberdade para essa direita, pois as raivas são consideradas
parte da liberdade individual, de modo que a intolerância contra racismo, homofobia, sexismo
e islamofobia, são apresentadas como opressão à liberdade, tiranias de esquerda. Brown (2019,
p. 141) diz que a privatização econômica que desvirtualiza a democracia tem acontecido por
meio dos valores morais antidemocráticas, relembrando o “dito de Thatcher de que ‘não existe
tal coisa de sociedade’, conclui, afinal de que ‘há apenas indivíduos e suas famílias’”. Dessa
forma, usa-se de uma “campanha familiar” e não mais mercantil para desmantelar as
instituições democráticas, ou seja, a família, estando acima da sociedade, precisa ser cada vez
mais protegida, pontuando simbolicamente sua necessidade de proteção do outro pelos muros,
condomínios e grades, demarcando o “privado do público, o protegido do aberto, o familiar do
estranho, a propriedade do comum” (BROWN, 2019, p. 143). Encolhendo o público e
expandindo o privado, ele “exige cada vez mais proteção estatal por meio da lei, de forças de
segurança públicas e privadas, de patrulhas de fronteira, da polícia e dos militares” (BROWN,
2019, p. 144-145), seja para proteger sua propriedade privada como também suas crenças
morais.
Teorias da conspiração que propagaram a ideia de “ditadura do politicamente correto”
ganharam força e têm influenciado vertiginosamente a sociedade. No Brasil, um dos mais
influentes defensores das teorias da conspiração foi Olavo de Carvalho44, que, segundo
reportagem de Denis R. Burgierman (2020), sustentava e propagava “acusações contra uma
suposta elite, que inclui toda a esquerda mundial, toda a mídia, toda a academia, toda a arte,
toda a cultura, todo o ambientalismo, todo o ativismo, toda a ciência, todas as organizações
transnacionais” e até bilionários capitalistas, que, através da “ditadura do politicamente

44
Olavo Luiz Pimentel de Carvalho foi ensaísta, influenciador digital e ideólogo brasileiro, atuou como jornalista
e astrólogo, apesar de se autoproclamar filósofo. Foi considerado representante do conservadorismo e grande
influenciador do pensamento da extrema-direita brasileira. É conhecido como “guru” do presidente da República
Jair Bolsonaro e da ideologia bolsonarista. Negacionista, rejeitava a existência da pandemia de covid-19 e se
posicionava como um antivacina, porém faleceu em 2022, por insuficiência respiratória aguda, decorrente
provavelmente da covid-19 que o acometeu dias antes (WIKIPÉDIA, 2022c). No dia 5 de setembro de 2022, a
Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou (por 18 votos favoráveis e 9 contrários) o projeto da vereadora
Comandante Nádia (PP) para batizar uma rua da cidade com o nome “Filósofo Olavo de Carvalho”, mesmo ele
não sendo filósofo de formação e sendo conhecido por propagar mentiras e desinformação.
57

correto”, pretendiam dominar o mundo pela cultura e pela linguagem, para, então, implantar o
comunismo no mundo todo.
As distorções, mentiras e teorias da conspiração ganham aliados na política e atingem
as massas. Assim, pautas reacionárias vão ampliando-se, os direitos das mulheres vão sendo
atacados, passam a acontecer reações violentas contra políticas afirmativas, ofensivas contra
aborto e contracepção, inclusive contra o divórcio, principalmente quando a direita
conservadora cristã está no poder. Ao analisar a subversão do conceito de liberdade
popularizada neste século pela direita religiosa, nos Estados Unidos, Brown (2019) aponta
alogias que são incluídas como liberdade individual, que, sem muita dificuldade, podemos
perceber também no Brasil, como
[...] o direito de agências de adoção e de empresas de impressão em camisetas de
discriminar pessoas LGBT, o direito de “centros de crise de gravidez” de mentir sobre
o aborto e a contracepção, o direito de legislaturas de realizar sessões de oração cristãs,
o direito de professores e estudantes cristãos de evangelizar dentro de sala de aula, e
o direito de um professor universitário de referir-se aos estudantes pelos pronomes de
escolha dele, e não del@s (BROWN, 2019, p. 135).

Brown (2019) esclarece que o neoliberalismo leva à insurgência da extrema direita e a


consequências violentas e deletérias, de ataque à ciência, à razão, à laicidade e às instituições
democráticas. Essa ascensão não tem resposta apenas no fluxo natural do neoliberalismo, mas
também na racionalidade neoliberal que formulou e que ainda propaga uma ideia de liberdade
que justifica exclusões e violações, visando a manutenção e a proteção da hegemonia branca,
masculina e cristã, a fim de expandir o capital econômico. Uma concepção de liberdade que
transforma o social em ameaça, que rotula as esquerdas como tirânicas por defenderem justiça
social e alteridade, e que desvirtua o conceito de igualdade, equiparando-a à meritocracia.
Gambetti (2019, p. 46) diz que “o racismo e o capitalismo imperialista são os motivos
que permitiram as atrocidades do totalitarismo” e que “[...] os seres humanos começaram a se
tornar consumíveis, permutáveis e descartáveis” (GAMBETTI, 2019, p. 45), assim como
qualquer outra mercadoria. O capitalismo, em sua versão neoliberal, como já mencionado,
produz guerras, conflitos e crises como estratégia de controle das democracias. Essas guerras
têm um caráter de guerra cultural ou, como Dardot et al. (2021, p. 207) prefere dizer: guerra de
valores45, que
[...] desempenha a função de substituto do enfrentamento social assim como de escape
para a fúria das vítimas do sistema neoliberal. Ao conseguir mobilizar parte da
população e levá-la a apoiar políticas, em especial fiscais, extremamente favoráveis

45
Dardot et al. (2021) explica que a historiografia estadunidense usa o termo “guerra cultural”, no entanto, ele
prefere o termo “valores”, pois a palavra “cultura” tem uma multiplicidade de sentidos. No Brasil, é mais comum
encontrarmos o termo “guerra cultural” na produção acadêmica.
58

às classes mais ricas, essa guerra de valores também teve e continua tendo papel
crucial na perpetuação do neoliberalismo.

O neoliberalismo, em sua versão mais autoritária, tende a investir na propaganda de que


os Estados têm o compromisso de eliminar seus inimigos. Segundo Tiburi (2020a, p. 19) a
extrema direita é acionada nos momentos em que a elite econômica se sente ameaçada,
ascendendo a extrema direita como um exército, assim, “o fascismo é o código que visa
promover violência ao desencadear ações linguísticas e práticas em si mesmas violentas”. Para
fins de poder, o fascismo é usado para evitar as transformações sociais e uma possível
democratização real, logo, a irracionalidade e a violência são convocadas. Para atingir seus
objetivos autoritários de desmantelamento da democracia, segundo Tiburi (2020a, p. 19-20),
[...] os donos do poder econômico investem em empresas de comunicação
especializadas em publicidade com o padrão ódio [...] é preciso produzir ódio, o
combustível do fascismo que deve ser usado contra os insurgentes democráticos,
contra os que ousam desejar outro mundo possível, contra os pobres, pretos, mulheres
e indesejáveis de um modo geral. O fascismo é o lado terrorista do capitalismo, ele
incita o ódio para exorcizar o medo. [...] é preciso transformar o medo em ódio e o
ódio em força de ataque contra inimigos.

Zeynep Gambetti (2019) apresenta como perturbadora a compreensão de que, na


atualidade, estaremos sempre sob a ameaça do totalitarismo. Comparando análises de Hannah
Arendt e Michel Foucault, a autora acredita que o vínculo entre totalitarismo e biopoder está
presente no pensamento de Foucault, em que o poder de “fazer viver” depende do terrível poder
de “deixar morrer”. Já o biopoder relaciona-se com a economia de mercado e com o
totalitarismo, exercido através de “um tipo peculiar de violência” (GAMBETTI, 2019, p. 28)
típico da política econômica capitalista, segundo Foucault, ou da sociedade de consumo,
resumida por Arendt. Gambetti (2019, p. 29) procura, com esse entendimento, “revelar uma
lógica outra que não seja a soberania para fundamentar o nomos moderno”, explicando quem
são os sujeitos intencionais da biopolítica e com quais critérios as decisões sobre a vida e a
morte são realizadas. Com a Revolução Industrial, propiciou-se o totalitarismo e sua ideologia,
ou lógica, de criar carrascos e vítimas, ligada ao desarraigamento e à superfluidade acentuadas
com o imperialismo e as tradições sociais. O totalitarismo é o desenvolvimento das próprias
condições do capitalismo, pois somente a concentração de poder poderia propiciar a
acumulação de capital que ele necessita. A esse respeito, a burguesia, com sua fome infinita de
acumular, substitui o soberano em seu poder de matar, pois ela “produz escravos que não estão
legalmente, mas economicamente condenados” (GAMBETTI, 2019, p. 38).
O Estado que surge de um apelo à segurança instiga o medo, produzindo criminosos,
desaparecendo a diferença entre pobres e criminosos, pois ambos são colocados à margem da
59

sociedade. Sob o disfarce de progresso, o Estado aliou o poder político às leis de economia,
seguindo o movimento burguês de acumulação, buscando poder ilimitado para manter seu
status quo. Os critérios sobre vida e morte estão conectados à transformação dos sujeitos
portadores de direitos em população e em espécie, pois o biopoder opera sobre a população,
alterando as modalidades de subjetivação, sua justificativa para excluir segmentos da vida
biológica está fundamentada na própria espécie, através de classificações, medições, além da
detecção de anomalias e defeitos que criam critérios para decidir quem merece ou não viver.
Nesse sentido, Achille Mbembe (2020) chama as formas contemporâneas de cálculo
sobre a vida e a morte de “necropolítica”, que engloba práticas políticas atuais que objetivam
provocar a destruição máxima de pessoas, criando mundos de morte, nos quais populações
inteiras são submetidas a condições de vida de “mortos-vivos”. Para o autor, o monopólio
exclusivo dos Estados de matar através de operações militares e de um exército formal já não é
a única forma de decidir sobre a vida e a morte, pois “a própria coerção tornou-se produto do
mercado. [...] Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança
privada e exércitos de Estado proclamam todos, o direito de exercer violência ou matar”
(MBEMBE, 2020, p. 53). Assim, a necropolítica também se aplica pela destruição dos corpos
renegados, através da desigualdade e de muitas formas de exclusão e de violência. Não só deixa-
se morrer, como faz-se morrer.
Nesse contexto de ascensão fascista, segundo Tiburi (2020a, p. 22), “o fundamentalismo
religioso, integrado a um verdadeiro fundamentalismo econômico, político e midiático, tem a
qualidade da desinformação”. Verdades são alteradas no fascismo por meio da desinformação,
que produz espaços de ódio e de alienação fomentados pelas mídias virtuais, uma ferramenta
eficaz para que a ideologia do ódio e de produção massiva de ignorância alcance seus objetivos.

| Cena 6: a coxia

Nos anos noventa, Adam Schaff, em Sociedade Informática (1995), fazia a seguinte
pergunta: “que futuro nos aguarda?”. Motivado pela necessidade de compreensão acerca dos
impactos das novas tecnologias do período (informática, biotecnologia e microeletrônica),
realizou uma futurologia sociopolítica, refletindo sobre caminhos otimistas, mas alertando
sobre outros bastante pessimistas. Dentre muitas questões sobre as possíveis consequências
60

negativas das novas tecnologias ligadas à informática, Schaff (1995) atentou para o fato de que
mudanças tecnológicas abrangem e atingem todas as esferas da vida social.
Assim, a tecnologia e as constantes crises do sistema capitalista poderiam acender
fanatismos religiosos, aflorar nacionalismos, conflitos internacionais, propaganda nacionalista
e anticomunista, bem como relegar uma grande massa trabalhadora destinada à margem social,
deixando empresas multinacionais mais fortes do que muito Estados, e interferindo na política
internacional pelo monopólio de informações. Dessa maneira, o apogeu do totalitarismo
funciona como uma autodefesa da classe dominante, visto que o apego da velha classe
capitalista às suas estruturas impediria que a sociedade caminhasse para um coletivismo e
distribuição justa das riquezas.
Passados mais de trinta anos, é possível afirmar que chegamos a esse futuro, mas, o
futuro chegou? Que presente é esse? Seria um presente ou um cavalo de Troia? Ainda teremos
futuro ao olhar para o presente? Adauto Novaes (2013, p. 19), ao refletir sobre o tempo, disse
que, para projetar o futuro, precisamos perguntar como vivemos o hoje e, através dessa
problematização do tempo, disse que
[...] vivemos a era dos fatos, o “presente” eterno, sem passado nem futuro, e isso
obscurece a visão do mundo. Mais: até mesmo a ideia do presente não é mais a mesma:
em um mundo acelerado, sem o tempo lento do pensamento, o presente é substituído
pelo imediato – mais precisamente pelo imediatismo das coisas -, pelo provisório e
pelo fim das grandes narrativas e da ideia de estilo nas artes.

Um presente eterno, um mundo acelerado, um tempo de imediatismo, uma sociedade


plataformizada (VAN DIJCK, 2016), na qual as mídias sociais se tornaram a própria vida
(KEEN, 2012). A cada dia, milhões de pessoas interagem nas mídias sociais46, um “conjunto
de plataformas influencia a interação humana nos níveis individual e comunitário” (VAN
DIJCK, 2016, p. 11). Se nos primeiros anos do milênio a intenção era promover uma
democracia comunitária47, com o rápido crescimento das plataformas de mídia social, empresas
de comunicação perceberam seu potencial de mercadoria incrivelmente lucrativa e, menos

46
Grupo de aplicativos da internet foram projetados sob fundamentos ideológicos e tecnológicos da Web 2.0 para
permitir a criação e o compartilhamento de conteúdo gerado por usuários (VAN DIJCK, 2016). Segundo dados de
pesquisa da TIC Domicílios 2020 (Edição COVID-19 - Metodologia Adaptada), o Brasil tem 152 milhões de
usuários de internet, o que corresponde a 81% da população do país com 10 anos ou mais. Ver mais em:
https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/indicadores/.
47
É importante destacar algumas mudanças ocorridas na face multimídia da internet - a Web -, em que houve
mudanças em três ondas: Web 1.0; Web 2.0; e Web 3.0. A Web 1.0 caracterizava-se por páginas estáticas, com
pouca interação e conteúdo produzido por quem dominava a linguagem. A Web 2.0, por sua vez, também chamada
de Web Participativa, possibilitou criar uma conexão por meio das comunidades de usuários, pois promoveu
interação e compartilhamento. Já a Web 3.0 aprimorou algoritmos para o trabalho com dados, promovendo um
comportamento inteligente. “A Web 3.0 facilita a utilização de sistemas de recomendações de informações e
rastreamento de perfil de usuários a fim de disponibilizar e direcionar informações personalizadas para os usuários”
(OLIVEIRA; MAZIERO; ARAÚJO, 2018, p. 64).
61

interessados em formar comunidades, investiram na engenharia de codificar informações em


algoritmos e coletar dados pessoais (VAN DIJCK, 2016). Em suma, a grande mudança foi
transformar o usuário em produto (KEEN, 2012), mesmo porque nada é de graça na internet.
As plataformas lucram através da melhor aparelhagem de espionagem já criada, coletando
dados pessoais, endereços, localizações, monitorando relações e interesses do usuário.
Se a Web 2.0 prometia uma aldeia global e possibilidade de formação de uma grande
comunidade democrática, a Web 3.0 fora anunciada como a possibilidade de favorecer uma
sociedade tolerante e livre de tabus, afinal, conheceríamos a todos como realmente são através
da exposição nas redes (KEEN, 2012). As empresas do Vale do Silício48 apostaram no social
como uma forma lucrativa que prometia acabar com a solidão através do incentivo à
superexposição e à superconexão, enquanto tudo isso é rastreado para ser transformado em
oferta de produtos, venda de dados e também para fins políticos.
Na Sociedade das Plataformas, todos os aspectos da vida estão em constante
transformação, mesmo mudanças que sequer somos capazes de assimilar e, por vezes, perceber.
A superexposição nas redes deixou a sociedade mais lasciva e voyeurista, sádica, vingativa e
intolerante (KEEN, 2012). A rapidez e o excesso de informações, conforme aponta Nicholas
Carr (2011), contribui para a desconcentração, prejudicando a leitura profunda e a capacidade
de fazer conexões mentais complexas e ricas. O fluxo constante de estímulos ao navegar na
internet, também aumenta a probabilidade de não prestar atenção no que se está vendo, lendo
ou a má interpretação de informações importantes.
A internet não foi construída para otimizar a aprendizagem, ela é um sistema de
interrupção com objetivo de dividir a atenção, de motivar a distração. Uma distração que não é
natural, pois há nela interesses econômicos, já que empresas lucram com a distração, segundo
Carr (2011, p. 168-169),
[...] quanto mais rapidamente surfamos na superfície da web - quantos mais links
clicamos nas páginas que vemos - mais oportunidades a Google tem de coletar
informações sobre nós e de nos suprir com anúncios. Seu sistema de propaganda, além
disso, é explicitamente projetado para descobrir quais mensagens têm a maior
probabilidade de captar a nossa atenção e então colocar essas mensagens no nosso
campo de visão. Cada clique que damos na web assinala uma quebra da nossa
concentração, uma ruptura de baixo para cima da nossa atenção — e é interesse
econômico da Google assegurar-se de que cliquemos o mais frequentemente possível.

Conceitos como amizade também estão mudando, uma vez que, atualmente, ela já é
entendida como uma mercadoria em certos contextos, pois quanto mais ‘amigos’ se tem em

48
Região na Califórnia, Estados Unidos, sede para várias empresas de alta tecnologia, muitas incluídas na Lista
500, da Fortune, além de empresas Startup (WIKIPÉDIA, 2022e).
62

uma rede social, mais influente se é considerado e, por conseguinte, mais valor se tem para o
sistema (KEEN, 2012). Inclusive o termo “amigos”, foi substituído por “seguidores”, van Dijck
(2016, p. 19) esclarece que esse termo “seguidores” possui vários significados “que vão desde
a neutralidade do ‘grupo’ ao fervor de ‘devotos’ e de ‘crentes’, mas no contexto dos meios
sociais passou a significar o número absoluto de pessoas seguindo um fluxo de tweets”. Da
mesma forma, quanto mais uma postagem é ‘curtida’, mais ela é divulgada, não importa seu
caráter qualitativo, mas o quantitativo, o que favorece avaliações instantâneas e
comportamentos de massa baseados na popularidade de uma pessoa ou de uma ideia
amplamente divulgada.
Esse conjunto de características e efeitos do mundo cibernético, favorece as câmaras de
eco e as bolhas filtradas49, personalização promovida pelos algoritmos que, além de filtrar o
que recebemos, observa e registra tudo aquilo em que clicamos (SANTAELLA, 2019),
promovendo prejuízos a nível individual e coletivo. Individual porque desenvolve bolhas de
relacionamentos e ideias, limitando possibilidades de trocas, argumentação e possibilidade de
novos conhecimentos, e coletivo, pois “os filtros são formas de manipulação que colocam o
usuário mal informado sobretudo a serviço de interesses políticos escusos” (SANTAELLA,
2019, p. 15). Obviamente, não é apenas o sistema de algoritmo que interfere na filtragem das
notícias, respostas ou posts recebidos pelos usuários, mas também suas preferências e práticas.
Todavia, o que convém destacar é que esse sistema tem colaborado para a propagação de
notícias falsas, ideologias fascistas e manipulação política (VAN DIJCK; POELL; DE WALL,
2018).
O ecossistema das plataformas permite que notícias falsas possam ser mais visíveis e de
propagação muito mais rápida do que notícias sérias, pois têm sido estrategicamente
disseminadas. Enquanto os meios de comunicação tradicionais e oficiais procuram, através de
uma equipe editorial, filtrar as informações antes de divulgar, notícias falsas com linguagem
simples são propagadas, contando com a filtragem após postagem, realizadas pelas plataformas
ou por denúncias, que obviamente não dão conta da demanda (VAN DIJCK; POELL; DE
WALL, 2018). Essa facilidade favoreceu a formação de verdadeiras milícias digitais para fins
de manipulação, extremamente deletérias para a democracia.

49
Segundo Lúcia Santaella (2019, p. 13), “o nome filter bubbles (bolhas-filtros, bolhas de filtro, que prefiro
chamar de bolhas filtradas) foi cunhado pelo ativista da internet Eli Pariser por volta de 2010 e discutido no seu
livro best seller como esse mesmo nome, em 2011” para se referir ao fato do Google personalizar o que cada
usuário recebe como respostas às suas buscas, como uma espécie de espelho unilateral, devolvendo os próprios
interesses.
63

Tiburi (2019) faz uma comparação entre a Idade Média e os dias atuais: se no passado
“Deus” não podia ser questionado, hoje é o “Capital” que não pode e ele apresenta-se de várias
formas, sendo uma delas de maneira digital. A autora afirma que “o que as elites econômicas
fazem é criar teorias contra as reflexões, para que as populações não tenham acesso ao
pensamento crítico” (TIBURI, 2019, p. 56) e conseguem manipular porque detêm poder
midiático e religioso.
Rosana Pinheiro Machado (2022), em entrevista à Folha de São Paulo50, disse que a
plataformização do trabalho, que está em crescimento (casos como Ubers e motoboys, mas
também uma grande diversidade de trabalhos informais), têm levado esses trabalhadores a se
alinhar com o autoritarismo. Seu projeto de pesquisa busca entender como as plataformas estão
exacerbando esse processo por sua própria estrutura individualista, meritocrática e hiperliberal.
Segundo a antropóloga, a plataformização pode ter um profundo impacto na democracia global,
visto que esses trabalhadores precarizados chegam a ficar 20 horas por dia conectados no
celular, recebendo conteúdo que os ilude a acreditar no mérito como ascensão. Conteúdo esse
propagado pela extrema direita, hegemônica, nas mídias digitais.
Letícia Cesarino (2020), no artigo Como vencer uma eleição sem sair de casa: a
ascensão do populismo digital no Brasil, analisou o populismo digital51 a partir da eficácia do
bolsonarismo nas eleições de 2018. Segundo seus estudos, os mecanismos e táticas políticas
por meio das plataformas digitais fizeram diferença no resultado das eleições ao mobilizar
eleitores que só se informavam através de mídias sociais. No caso brasileiro52, a pesquisadora
destacou, dentre outras plataformas investigadas, o WhatsApp. Analisando conteúdo
compartilhado por essa via durante o processo eleitoral brasileiro de 2018, a pesquisadora
detectou que

50
A antropóloga Rosana Pinheiro Machado foi entrevistada pela Folha de São Paulo na ocasião em que foi
laureada com o financiamento de R$ 11 milhões pelo European Research Council (União Europeia), anunciado
no dia 17/03/2022, para pesquisar a relação entre trabalhadores informais, redes sociais e ascensão de governos
autoritários no Brasil, Filipinas e Índia.
51
Cesarino (2020, p. 95) esclarece que populismo digital é tanto um aparato de mídia digital quanto um mecanismo
discursivo, uma tática política de construção de hegemonia. O termo “populismo”, quando usado para definir
lideranças da extrema direita, não é consenso. Michael Löwy (2019) alerta que esse termo se torna inoperante e
mistificador, pois funciona como um eufemismo, ocultando a realidade de líderes e de regimes antipopulares,
intolerantes, com traços fascistizantes; confunde o público, tratando populismo de esquerda e direita como uma
coisa só, banaliza e generaliza o termo, assim como alinha governos muito distintos entre si.
52
Os casos das eleições de Donald Trump, nos EUA, em 2016, e do Brexit (processo de saída do Reino Unido da
União Europeia), tiveram ampla repercussão devido a descobertas de manipulação midiática digital através da
disseminação de notícias falsas, de microdirecionamento e de análises de perfis. O caso ficou conhecido como
escândalo da Cambridge Analytica, empresa de análise de dados que trabalhou para a campanha de Trump (2016)
e também contratada para promover o Brexit. Segundo noticiado na época, “a Cambridge Analytica teria comprado
acesso a informações pessoais de usuários do Facebook e usado esses dados para criar um sistema que permitiu
predizer e influenciar as escolhas dos eleitores nas urnas, segundo a investigação dos jornais The Guardian e The
New York Times” (BBC, 2018).
64

[...] boa parte desse conteúdo recaía na categoria de fake news, no sentido amplo do
termo (TANDOC et al., 2018): notícias falsas, teorias da conspiração, material
ofensivo e calunioso contra certas pessoas ou grupos, avisos urgentes e alarmistas,
enunciados distorcidos ou retirados de contexto. Ou seja, são mensagens que
dificilmente circulariam com tanta amplitude, velocidade e capilaridade em fóruns
tradicionais da esfera pública como a imprensa profissional, onde há maior
publicidade e controle social e jurídico (CESARINO, 2020, p. 96).

Assim como Rosana P. Machado, Letícia Cesarino também percebeu que as pessoas se
mostram vulneráveis a esses conteúdos, o que emergencia pesquisas que analisem as razões
dessa vulnerabilidade. Para além dessa questão, Cesarino (2020) destacou alguns padrões
discursivos estruturantes do próprio conteúdo que contribuem para a aceitação e replicação por
parte dos usuários, aqueles que não são os "mímicos do delírio”53 (TIBURI, 2019).
No populismo digital, o líder não precisa participar de debates ou estar no meio das
multidões, pois, através da mobilização de significantes vazios (CESARINO, 2020) e do
empobrecimento da linguagem54 (TIBURI, 2019), ele utiliza discursos que envolvem nação,
como ordem, segurança e mudança, bem como distorções entre militarização/segurança de
direitos, seletividade do sistema penal/impunidade. Cesarino (2020, p. 99) afirma que
[...] as ressonâncias desse tipo de discurso político com a linguagem da memética e
outras dinâmicas próprias das redes sociais já foram notadas – por exemplo, a hashtag
como significante vazio que articula “multidões” insatisfeitas online, e o “espírito
transgressor” que faria das mídias digitais avenidas privilegiadas para “representar os
não-representados”.

Cesarino (2020) também identificou o apelo e a prática de criar inimigos, narrativas


conspiratórias, rumores de que o líder corre risco de vida. De acordo com a pesquisadora, o
líder constrói seu povo apelando para o emocional, o estético e moral, tanto para aspectos
positivos, como desejo de ordem, mudanças e justiça, quanto para aspectos negativos, como
ódios, ressentimentos, revanchismo e decepções. Apesar de Trump e Bolsonaro não se
encaixarem no perfil dos populistas históricos, que investiam em suas qualidades e
personalidades individuais, eles são bons exemplos de populistas digitais, no conceito
defendido por Cesarino (2020), pois, além do uso obscuro das redes virtuais, que funciona como
uma segunda campanha, eles enquadram-se no novo tipo de carisma, incentivado pelo

53
Tiburi (2019) denomina como “mímicos do delírio” pessoas que servem por vontade própria a lideranças
autoritárias, propagando conscientemente discursos fascizantes, agindo como uma espécie de robôs. Para ela, “os
mímicos não ganham nada em troca se não uma compensação psíquica, que é tudo que importa a quem está sempre
prestes a perder a própria existência. São escravos especulares que vivem de uma identificação mórbida com
alguém que sequer sabe que eles existem. [...] São sujeitos do delírio coletivo, os performers da tragédia coletiva,
da desgraça da subjetividade colonial, capitalista, televisiva, manipulada na internet” (TIBURI, 2019, p. 36-37).
54
Tiburi (2020a) não usa o termo “populismo digital”, mas fascismo, neofascismo ou mesmo
turbotecnomachonazifascimo para referir-se a regimes ou líderes autoritários de extrema direita no contexto atual
de informatização.
65

neoliberalismo, uma espécie de “mito” (TIBURI, 2019). Um escolhido divino, transmitindo


uma ideia de homens do povo, que falam o que pensam, sem trato da linguagem formal ou
qualquer tipo de comunicação politicamente correta.

Figura 5 - Charge referência às fake news da campanha eleitoral de 2018 e referência ao grito de guerra
incentivado por Bolsonaro nas comemorações do 7 de setembro de 2022 (véspera das eleições de 2022).

Fonte: Diego Madia (2022).

Tiburi (2020b) denomina esse novo perfil de líder da extrema direita como “ridículo
político”, uma espécie de não-político, que apesar de estar na política, incentiva e contribui com
o seu fim. Sua performatividade pessoal apresenta-se como uma cena catártica, na qual a
estupidez, o grotesco e a burrice tornam-se risíveis e servem de texto verbal, ganhando valor de
voto e, portanto, valor capital. Tiburi (2020b, p. 120) diz que
[...] são atores políticos que, como vedetes, hipnotizam as massas colocando a todos
sob o efeito de seus discursos e performances. A hipnose e a produção do êxtase se
66

tornam metodologias políticas. Não é por acaso, que religião, economia e política
estejam cada vez mais próximas, pois se utilizam de métodos similares.

Retomando a questão inicial de Adam Schaff (1995), que, nos anos noventa perguntava
“que futuro nos aguarda?”, talvez já seja possível afirmar que Antoni Brey (2009) estava correto
no início do século ao afirmar que, cedo ou tarde, desapareceria a miragem de que as tecnologias
digitais construiriam uma sociedade do conhecimento e perceberíamos que, na realidade,
erigimos uma Sociedade da Ignorância.

| Cena 7: o espaço cênico

A versão neoliberal conservadora e suas manifestações extremistas têm ascendido


governos, partidos e grupos neofascistas a um nível planetário55, nunca antes visto desde a
década de 1930, afirma Michael Löwy (2019). O Brasil, com uma democracia representativa
jovem e frágil e uma Constituição recente (nascida em 1988), após uma ditadura de mais de
vinte anos (1964-1985), teve seu “gigante novamente acordado”56 com as manifestações
iniciadas em 2013, que, após serem apropriadas pela direita e pela extrema direita, pressionaram
para o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2016). Segundo Miguel (2016), o
impeachment da presidenta Dilma demarcou o quanto as elites brasileiras odeiam a democracia,
mesmo a representativa, considerada pelo autor como “minimalista”:

55
Michel Löwy (2019) destaca que são “alguns dos exemplos mais conhecidos: Trump (USA), Modi (Índia),
Urban (Hungria), Erdogan (Turquia), ISIS (o Estado Islâmico), Duterte (Filipinas), e agora Bolsonaro (Brasil).
Mas em vários outros países temos governos próximos desta tendência, mesmo que sem uma definição tão
explícita: Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão, (Shinzo Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia, etc.”.
56
Em junho de 2013, o Brasil foi tomado por uma série de manifestações (consideradas as maiores marchas da
história do país). No início, as multidões reivindicavam mais democracia, eram contra o neoliberalismo,
questionavam preços abusivos do transporte público, colocavam-se contra abusos corporativos e a violência do
Estado pré-Copa do Mundo de 2014, exigindo melhorias dos bens públicos. No entanto, essas marchas que não
tinham caráter partidário ou eram organizadas por movimentos sociais começaram a ser apropriadas por grupos
nacionalistas antigoverno do Partido dos Trabalhadores (PT), tornando-se uma marcha sem foco, de multidões
festivas e despolitizadas com pautas múltiplas e dicotômicas. As mídias digitais serviam para convocar a população
sob o slogan “o gigante acordou”, as manifestações foram sendo abduzidas pela direita, o recalque da classe média
e da elite brasileira com as políticas governamentais que caminhavam para a distribuição de renda e inclusão
financeira e social viram a oportunidade de se posicionar, estando ancorados em um discurso vazio de
anticorrupção. As marchas foram esvaziando-se, mas, de fato, o “gigante” tinha acordado, marcando o início do
processo de ascensão da extrema direita de forma mais concreta, o que reverberou nos anos seguintes. A vitória
apertada nas eleições de 2014 de Dilma Rousseff contra Aécio Neves fomentou que cada vez mais manifestantes
de direita e de extrema direita se manifestassem contra o governo, acusando-o de corrupção e clamando por
intervenção militar, o que ocasionou uma grave crise política, precedida de uma crise econômica. As crises e a
pressão da elite e de grande parcela da classe média resultou no apoio ao golpe jurídico-parlamentar que promoveu
o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Nos anos seguintes, o país presenciou a prisão arbitrária do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e as eleições de 2018, que deram vitória ao candidato de extrema direita Jair
Messias Bolsonaro (MACHADO, 2019).
67

O impedimento da presidente, contudo, sem crime de responsabilidade claramente


identificado, em afronta aberta às regras estabelecidas, marcou a ruptura do
entendimento de que o voto é o único meio legítimo de alcançar o poder. Foi violado
um dos requisitos básicos que um autor liberal, Robert Dahl, apresentou para a
democracia eleitoral: o princípio da intercambialidade, que, na prática, significa que
nenhum grupo ou indivíduo tem poder de veto sobre a maioria gerada nas urnas. O
que o caso brasileiro ilumina é o fato de que, mesmo limitada e indigna de seus ideais
mais elevados, a democracia incomoda as classes dominantes (MIGUEL, 2016, p. 30).

Além disso, o golpe político-parlamentar contra Dilma, estampou a realidade da


sociedade brasileira machista, misógina, sexista, classista e violenta. Dênis Carneiro Lobo
(2018, p. 84) caracterizou-o como
[...] classista porque tenta bloquear os avanços sociais realizados na última década. O
Golpe é sexista porque não consegue fazer críticas à administração de Dilma sem
recair em ataques de conotação sexual. O Golpe começou misógino, com ataques
constantes à figura de Dilma, desde seu primeiro mandato, durante o qual ela teve de
conviver com as ofensas e xingamentos machistas, as especulações acerca da sua
sexualidade, com a finalidade de não abordar questões referentes a seu desempenho
como chefe de Estado e, em vez disso, tratar de questões referentes à sua vida íntima.

Dilma, que foi a primeira presidente mulher eleita do Brasil, possui uma história de luta
e resistência e foi constantemente atacada e julgada. As críticas relacionadas à sua gestão
diferiram muito das críticas de quando um homem ocupa o cargo presidencial, pois
perpassavam pela imagem, sexualidade, intimidade, aparência e na construção de uma
personalidade midiática que aponta mulheres como histéricas e incapazes de ocupar cargos
importantes. No dia da sessão parlamentar de votação em que a maioria votou pelo
impeachment da presidenta, Bolsonaro (PSC) então deputado federal, usou seu momento de
votação para homenagear “o fascista Comandante do Exército Brilhante Ustra, que estuprou e
torturou Dilma e outras mulheres da esquerda presas pela repressão da ditadura militar” (LOBO,
2018, p. 84) e, na ocasião, nada aconteceu ao deputado; pelo contrário, seu comportamento foi
endossado por uma multidão de ofensas direcionadas à Dilma, sendo as redes sociais um espaço
que permitiu a propagação de ódio e maledicências de forma colossal (LOBO, 2018).
A seguinte disputa eleitoral presidencial, de 2018, foi marcada por um processo difícil,
com uma forte polarização política no país caracterizada pelo uso indiscriminado de
plataformas digitais nas campanhas, disseminação de notícias falsas e desinformação, além da
impossibilidade de candidatura do ex-presidente do país, Luiz Inácio Lula da Silva, preso de
forma arbitrária. Segundo Souza (2019, p. 249-250),
[...] o juiz Sergio Moro condena57, com visível inexistência de provas materiais, em
sentença ridicularizada por especialistas internacionais, o ex-presidente Lula à cadeia.

57
Em razão da condenação promovida pelo ex-juiz Sergio Moro - condenando Lula a 9 anos e 6 meses por crime
de corrupção passiva e lavagem de dinheiro -, o ex-presidente ficou 580 dias preso na Polícia Federal de Curitiba.
Segundo reportagem de Paulo Roberto Netto (15 de mar. de 2022), do jornal Poder 360, a “maioria das acusações
68

Líder isolado nas pesquisas, Lula tinha a preferência de cerca de 40% do eleitorado,
o dobro do segundo colocado, Jair Bolsonaro. As eleições foram, por sua vez,
dominadas por fake news e acusações de financiamento ilegal em favor do candidato
que antes detinha apenas metade das intenções de voto de Lula. Terminando o pleito,
Bolsonaro eleito, Sérgio Moro receberia como prêmio ao seu “trabalho” o cargo de
superministro das atividades repressivas.

A extrema direita, saiu vitoriosa com o candidato Jair Messias Bolsonaro (PSL), que,
apesar de não participar de debates ou apresentar propostas concretas para o país, ganhou força
fazendo campanha principalmente pelas mídias digitais, vencendo as eleições no segundo turno
contra o candidato representante da esquerda Fernando Haddad (PT). O candidato de direita
investiu principalmente na defesa de valores morais conservadores como plataforma de
governo.
A fragilização do sistema de proteção dos direitos individuais e sociais tem acentuado
desigualdades sociais no Brasil (CASARA, 2018), através dos constantes ataques que a
democracia brasileira vem recebendo. Em 2015, no prefácio do livro A tolice da inteligência
brasileira, ou como um país se deixa manipular pela elite, Jessé Souza denunciava essa
desigualdade, alertando que menos de um 1% da população do país constitui a classe dos super
privilegiados que explora o restante de 99%, através de uma “violência simbólica” 58 mantida
com o consentimento dos próprios excluídos dos privilégios. Esses excluídos são manipulados
por estruturas dominadas pelos super privilegiados, que “são os donos dos jornais, das editoras,
das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos” (SOUZA,
2015, p. 4) e, portanto, conseguem monopolizar “recursos naturais que deveriam ser de todos,
e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro,
renda da terra ou aluguel” (SOUZA, 2015, p. 5).
Desigualdade essa que Souza (2015; 2018) denomina como “abissal” e uma
concentração de renda “grotesca”, só possível em um país formalmente democrático através de

contra o ex-presidente foram prescritas, suspensas ou arquivadas por erros do Judiciário”. Em 2021, o STF
(Supremo Tribunal Federal) declarou parcialidade de Sergio Moro, anulando todas as condenações em que o juiz
atuou. Segundo Netto (2022), “dos 11 casos mais conhecidos contra Lula [...], em 8 as acusações prescreveram,
foram suspensas, arquivadas ou encerradas de vez por erros processuais. Alguns deles: falta de provas, uso de
elementos ‘contaminados’ pela suspeição de Moro, mudança de juiz e atuação irregular do Ministério Público”.
No dia 22 de março de 2022, Lula obteve mais uma vitória, no qual, segundo notícia do portal do STJ, a Quarta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, condenou o “ex-procurador da República Deltan Dallagnol ao pagamento
de indenização por danos morais de R$ 75 mil ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em razão de entrevista
coletiva concedida em 2016, na qual utilizou o programa de computador PowerPoint para explicar denúncia
apresentada contra o líder do PT na Operação Lava Jato". Na oportunidade, Lula foi apresentado pelo ex-
coordenador da extinta Lava Jato de Curitiba como culpado, quando não havia provas ou processo formal,
configurando abuso de poder e parcialidade.
58
Conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que se refere a uma violência que não é física, mas que consegue,
pelo convencimento, manter e perpetuar estruturas de dominação e valores culturais (SOUZA, 2015).
69

uma cegueira orquestrada pelas elites, que exploram de forma não declarada, pois evidenciá-la
poderia gerar revoltas. Para tanto, faz-se o uso de mentiras e de manipulações para camuflar a
realidade, assim, a exploração acaba por ser moralizada e se concretiza, conforme Souza (2018,
p. 48), “difundindo-se a ilusão de que o interesse do dominado é levado em conta, e mais
importante, convencendo-o de que a própria dominação é para seu bem”.
A realidade social não é percebida, instrumentos de distorção são alimentados para que
os privilégios sejam legitimados, “aceito[s] mesmo por aqueles que foram excluídos de todos
os privilégios” (SOUZA, 2015, p. 5). Nos nossos tempos, as distinções e as desigualdades são
apresentadas como mérito e, quem delas não goza, é classificado como fracassado, não
merecedor.
Teorias de modernização e até mesmo economicistas influenciaram o pensamento que
o brasileiro tem de si, reduzindo o conceito de classes a níveis de renda, escondendo estruturas
simbólicas subjacentes ao sistema e naturalizando a desigualdade. Souza (2015) atribui a várias
vertentes teóricas a formação do pensamento e a visão que o brasileiro tem de si, como o
culturalismo científico, que criou a ideia de sociedades avançadas (centro, Europa Ocidental e
Estados Unidos) e atrasadas (periféricas, como as latino-americanas) baseada nas categorias
weberianas, uma concepção racista que divide o mundo em gentes superiores e inferiores.
Polímatas, como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, além do historiador Raymundo
Faoro, também contribuíram para a construção de uma visão de mundo liberal-conservadora,
escondendo as verdadeiras razões da desigualdade e injustiças sociais.
Segundo Souza (2015), quando a ciência conservadora internacionalmente dominante
se interessou pelos países periféricos do capitalismo (América Latina, África e Ásia)
“desenvolveu-se, com muito dinheiro financiado pelo Estado norte-americano – na
administração Henry Truman do imediato pós-guerra –, toda uma linha de pesquisa bem-
montada e uma, para a época, nova teoria: a teoria da modernização” (SOUZA, 2015, p. 82).
Uma teoria em que conceitos e noções como “confiança”, se assemelham mais a armas de
opressão do que a instrumentos de explicação. Por fim, vale mencionar as teorias economicistas,
que contribuíram para reduzir o conceito de classes a níveis de renda, ocultando a “estrutura
simbólica e imaterial subjacente ao capitalismo e responsável por sua peculiar ‘violência
simbólica’” (SOUZA, 2015, p. 121). O autor ainda pontua que a manutenção dos privilégios
perpassa outros níveis que vão muito além da renda, através do conceito de “capital cultural”59,

59
De acordo com Souza (2015, p. 192), “capital cultural para Bourdieu é tudo aquilo que logramos ‘aprender’, e
não apenas os títulos escolares. O conhecimento e a ciência já eram fundamentais para Marx, já que a reprodução
70

de Pierre Bourdieu, que explica como acontece a manutenção e a manipulação dos privilégios
disfarçados de mérito.
Nessa perspectiva, o capital cultural é uma herança transmitida e vivenciada já na
família, na qual as classes populares não têm acesso nem referências familiares, o que favorece
o abismo entre as classes. Dessa forma, mesmo que as classes populares tenham acesso à
educação, sua trajetória é repleta de desafios que a classe média não enfrenta, pois recebe pela
família a cultura que é valorizada pelo capitalismo (a cultura da elite ‘branca’). Assim, a cultura
atua como mais um objeto de dominação, pois aqueles que a ela não tem acesso, não possuem
as condições possíveis para a competição que o capitalismo exige. Segundo Souza (2015, p.
72),
[...] a classe média verdadeira se apropria de capital cultural valorizado ao “comprar”
o tempo de estudo dos filhos que podem, ao contrário das classes populares, se dedicar
apenas ao estudo. Esse tempo precioso, por sua vez, é literalmente “roubado” dos
nossos excluídos, que faxinam, fazem a comida e cuidam das casas de classe média,
poupando-lhe tempo precioso que pode ser reinvestido a fim de reproduzir de modo
ainda mais profundo seus privilégios de nascimento.

Despojados de tempo, sem acesso ao capital cultural valorizado pelas classes


privilegiadas, as classes populares - denominadas por Souza (2018) como a classe dos
batalhadores e a ralé - não só entram na escola como fracassadas, já que não possuem esse
arcabouço cultural e habilidades julgadas úteis, como também são condenadas por não
possuírem as ferramentas necessárias para a competição exigidas pelo mercado, além de
disposições invisíveis para o comportamento competitivo (SOUZA, 2015). O apoio da classe
média aos interesses da elite econômica, deve-se justamente pelos meios simbólicos, enquanto
as classes populares são exploradas e reprimidas com violência. A classe média deixa-se seduzir
(com grande influência das mídias) pelo discurso da diferenciação moralista, pois acredita no
seu merecimento de privilégios em relação às classes populares e normaliza as desigualdades
(SOUZA, 2019).
A elite brasileira, detentora do dinheiro e do mercado, quando se sente ameaçada,
“compra” as demais elites e classes subalternas, sob o “bode expiatório da corrupção só na
política” (SOUZA, 2019, p. 250). Já a classe média brasileira adere e reproduz essas crenças,
temendo ser rebaixada, perder seu poder de compra e sofrer diferenciação social, manifestando-
se historicamente contra políticas e governos que valorizam pautas sociais e reproduzindo a
narrativa de corrupção apenas estatal, alinhando-se facilmente a governos autoritários.

do capitalismo depende de conhecimento, seja para ‘qualificar’ sua força de trabalho, seja para auferir ganhos de
produtividade em inovações técnicas aplicadas aos meios de produção”.
71

Atualmente, governos de extrema direita têm atingido também as classes populares.


Vários elementos têm contribuído para esse fenômeno, alguns já abordados nesta dissertação,
como a influência da Sociedade das Plataformas Digitais, através do excesso de conteúdo
manipulador que é disseminado, como também assimilando mecanismos da razão neoliberal de
apelo à tradição, resumido no tripé “fé-família-liberdade” (DARDOT et al., 2021). Mas por que
a sociedade brasileira, em geral, apoiou o golpe de 2016 e absorve discursos e ideologias que
só favorecem a classe dos privilegiados?
No período do governo de Luís Inácio Lula da Silva houve um grande investimento em
políticas de inclusão social, erradicação da pobreza, e proteção aos direitos das classes
populares, dentre diversas medidas sociais e econômicas. Como consequência, houve uma
expansão espetacular da classe C60, “que passou de 65,8 milhões de pessoas para 105,4 milhões.
Essa expansão levou à afirmação de que a classe média brasileira cresceu, ou melhor: de que
teria surgido uma nova classe média no país. Sugerimos aqui, entretanto, que há no Brasil uma
nova classe trabalhadora” (CHAUÍ, 2016, p. 16), pois a autora utiliza outro marcador de divisão
de classes que é a forma da propriedade. Portanto, segundo o modo de produção capitalista,
constitui como classe dominante, a “proprietária privada dos meios sociais de produção (capital
produtivo e capital financeiro); a classe trabalhadora, excluída desses meios de produção e neles
incluída como força produtiva, é ‘proprietária’ da força de trabalho, vendida e comprada sob a
forma de salário” (CHAUÍ, 2016, p. 17). Já a classe que não está em nenhum dos polos, pois
não é detentora dos meios sociais de produção, mas também não é força de trabalho produtiva
de capital, “situava-se nas chamadas profissões liberais, na burocracia estatal (ou nos serviços
públicos) e empresarial (ou na administração e gerência), na pequena propriedade fundiária e
no pequeno comércio” (CHAUÍ, 2016, p. 17).
Retomando Marx, a autora explica que ele chama essa classe intermediária de pequena
burguesia, pois, apesar de não ser detentora dos meios sociais de produção, é proprietária de
bens móveis e imóveis, e, ideologicamente, aproxima-se da burguesia, não dos trabalhadores.
Já numa visão sociológica, influenciada pelos Estados Unidos, Chauí (2016, p. 16) afirma que
se “introduz a noção de classe média para designar esse setor socioeconômico, empregando,
como dissemos acima, os critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo – a pirâmide
das classes A, B, C, D e E”.

60
Conforme explica Chauí (2016, p. 16), “utilizando a classificação dos institutos de pesquisa de mercado e da
sociologia, o Ipea segue o costume de organizar a sociedade numa pirâmide seccionada em classes designadas
como A, B, C, D e E, tomando como critérios a renda, a propriedade de bens imóveis e móveis, a escolaridade e a
ocupação ou profissão exercida”.
72

No entanto, o caso brasileiro é um pouco mais complexo, pois houve mudanças sociais
oriundas das mudanças na forma de produção do capital, conforme elenca Chauí (2016, p. 17):
a) pelo desaparecimento da produção industrial sob a forma fordista e sua substituição
pela fragmentação e dispersão da produção, b) pelo surgimento da tecnociência e a
mudança no modo de inserção social de cientistas e técnicos e c) pela passagem das
antigas profissões liberais autônomas à condição assalariada [...].

Segundo a autora, os diversos projetos e programas de transferência e geração de renda


e emprego, garantias de direitos sociais e econômicos, vivenciados durante os governos petistas,
impulsionaram não uma nova classe média, mas uma nova classe trabalhadora “cuja
composição é complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e agrícolas
tradicionais” (CHAUÍ, 2016, p. 17). Conforme explica Chauí (2016), os critérios até então
usados para definir a classe média já não se aplicam, pois o fim do modelo de produção
industrial fordista deu lugar a terceirização e empresas autônomas, porém o trabalho continua
ligado à produção industrial, assim como a escolaridade, pois é uma exigência imposta pela
tecnologia. Com as ciências e as técnicas fazendo parte das forças produtivas, “cientistas e
técnicos especializados passaram da classe média à classe trabalhadora como produtores de
bens e serviços articulados à relação entre capital e tecnociência” (CHAUÍ, 2016, p. 18).
Profissões liberais estão divididas entre proprietários privados e assalariados; a produção
capitalista, agora fragmentada e terceirizada, transformou muitos pequenos empresários em
força produtiva, como os prestadores individuais de serviços. Portanto, restou à classe média
“as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, a pequena propriedade fundiária, o
pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios transnacionais e os profissionais
liberais ainda não assalariados” (CHAUÍ, 2016, p. 18).
Essa complexidade e a forma como é simplificada e ocultada pelas mídias resulta em
distorções: uma classe trabalhadora que se vê como classe média absorvendo a ideologia da
classe dominante. Lembrando que a classe média não detém poder político e “nem o poder
social da classe trabalhadora organizada. Isso a coloca numa posição que a define não somente
por sua posição econômico política, mas também e sobretudo por seu lugar ideológico – e este
tende a ser contraditório” (CHAUÍ, 2016, p. 19), pois sendo fragmentada não tem uma
consciência de classe que a unifique, mesmo que parte dela seja consciente e se oponha à classe
dominante. Dessa forma, predomina como classe “ideologicamente conservadora e
reacionária”, pois “seu imaginário é povoado por um sonho e por um pesadelo: seu sonho é
tornar-se parte da classe dominante; seu pesadelo, tornar-se proletária” (CHAUÍ, 2016, p. 19).
73

Mesmo também sendo explorada pela elite econômica, a classe média brasileira,
historicamente, defende os valores e interesses dessa elite, Souza (2022) atribui essa posição ao
nosso passado escravocrata, um passado que é mascarado, mas que se perpetua através de
roupagens novas. O autor explica que nosso país profundamente polarizado no passado entre
senhores proprietários e escravos, também produziu uma massa intermediária de homens livres,
brancos ou quase sempre mestiços, ocupando um lugar de agregado, que por razões materiais
e simbólicas se afasta do escravo e se identifica com o proprietário. Uma identificação que se
deve a uma necessidade de distinção social: o agregado não queria ser confundido com o
escravo - camada mais humilhada e despojada de tudo -, seu esforço era se parecer com a elite
e, para tal, passa a defender os interesses dessas, mesmo que esses interesses fossem contra seus
próprios.
Souza (2022, p. 147) defende a ideia que “dinheiro e poder produzem, antes de tudo,
um sentimento de distinção social e superioridade em relação aos outros”. Essa necessidade de
se sentir superior a alguém ou a um estrato social explica a identificação do agregado com a
elite e porque a posterior classe média brasileira continua a defender esses valores, afinal, o
antigo escravo foi revertido nos marginalizados e excluídos, os “novos escravos” ou
“classe/raça Geni” (uma referência do autor à música de Chico Buarque). Geni/classe Geni,
refere-se àquela que pode ser humilhada, apedrejada e cuspida, isto é, a população mais
vulnerável e fragilizada, mais pobre e negra.
Com intuito de diferenciação social, a maioria da classe média alinha-se à ideologia da
elite, colocando-se contra as políticas de inserção social. Dessa forma, Souza (2022, p. 168)
relembra que “a classe média verdadeira não passa de 20% da sociedade” e a “ralé” que
constitui-se de “pobres e negros condenados à miséria moral perfaz cerca de 30% da população
- hoje com Bolsonaro, seguramente próxima dos 40%”. O autor diz que os 40% restantes se
situam entre “a classe média real e os excluídos marginalizados” (SOUZA, 2022, p. 167), que
também apoiaram Bolsonaro nas últimas eleições e compõem grande parte de seus atuais
seguidores/eleitores. Souza (2022, p. 178) chama a atenção a dois grupos que compõem esses
40%: os brancos pobres (no Sul e em São Paulo, principalmente) e os evangélicos de “todas as
cores”.
Para compreender porque esses grupos apoiaram/apoiam um presidente como
Bolsonaro (candidato à reeleição em 2022), que “não dá nada [...] nada material e palpável,
como melhores escolas e melhores empregos” (SOUZA, 2022, p. 175), Souza (2022) retoma o
nosso passado, destacando sua estrutura desigual mantida após a abolição da escravatura
(1988), pois, com as políticas racistas de branqueamento do início da república, o Sul e o
74

Centro-Oeste brasileiro receberam milhares de imigrantes brancos europeus, formando um


grupo que o autor denomina como “lixo branco”. Um grupo não privilegiado, muitas vezes
formado por brancos pobres, mas que usa dessa “branquitude” para diferenciar-se socialmente
do negro e ilusoriamente se aproximar da elite proprietária, mostrando-se extremamente racista.
Souza (2022) explica que parte desses brancos pobres torna-se ainda mais racistas que outras
camadas por necessidade de distinção. Segundo o autor,
[...] o “lixo branco”, em todo lugar, vai tender a canalizar a inveja e o ressentimento
justo que sente contra os irmãos de cor com mais dinheiro e mais educação, mas que
não pode admitir, posto que é isso equivaleria a uma confissão de fracasso, contra
qualquer bode expiatória de ocasião. O bode expiatório em países com passado
escravocrata, como Estados Unidos e o Brasil, é sempre o negro [...] o mais frágil e
mais fácil de ser oprimido (SOUZA, 2022, p. 171).

Bolsonaro “viabilizou o discurso do ‘lixo branco’ brasileiro” (SOUZA, 2022, p. 171)


através de seus discursos carregados de ódio e preconceitos, representando a voz de brancos
pobres frustrados que se comportam como classe média “que se vê como ‘agregado’ da elite,
sem vontade própria, colocando-se no jogo também como massa de manobra da elite do saque”
(SOUZA, 2022, p. 170), jogando a culpa de suas mazelas nas classes mais desfavorecidas.
Dentre as bases de campanha de Bolsonaro está a promessa de armar 61 a sociedade, uma vez
que
[...] todo brasileiro das camadas populares sabe, intuitivamente, que a “arminha de
dedo” de Bolsonaro está apontada para a cabeça de um jovem negro, suposto maior
beneficiário da inclusão “populista” petista, além de convenientemente criminalizado
como bandido. Aqui se juntam o argumento miliciano de Bolsonaro de que o “crime”,
já secularmente associado ao negro jovem, tem que ser combatido com as próprias
mãos e por “esquadrões da morte” milicianos, sem morosidade da Justiça, com a
crítica a ajuda social petista a esses grupos desfavorecidos (SOUZA, 2022, p. 170).

Além da identificação imediata com o “lixo branco”, Bolsonaro também teve votação
expressiva entre evangélicos, inclusive negros e mestiços, segmentos também oprimidos. O
crescimento das religiões neopentecostais, no Brasil, tem sido impressionante, também

61
Segundo reportagem de Victor Farias, do Globo.com G1, de 28 de junho de 2022, “o número de pessoas com
certificado de registro de armas de fogo cresceu 474% durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Os dados são do
Anuário de Segurança Pública, com base em informações do Exército, e levam em consideração registros para
atividades de caçador, atirador desportivo e colecionar (CAC) até 1º de julho de 2022. [...] Em 2018, antes de
Bolsonaro assumir, o número de pessoas com registros CAC era de 117,5 mil. Ou seja, 56 brasileiros a cada 100
mil possuíam licença para armas. Agora há 673,8 mil registros. Isso quer dizer que, a cada cem mil pessoas, 314
têm a autorização”. Estes são apenas alguns números para explicar o aumento do armamento no Brasil. Chocam
também os dados que apontam que há mais armas de fogo sob a posse de particulares do que em estoques dos
órgãos públicos: “Das 1.490.323 armas de fogo com registro ativo em 2021, apenas 384.685 estavam ligadas a
órgãos públicos, segundo o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal”, enquanto que “empresas de
segurança privada (especializadas ou orgânicas) ou outros tipos de pessoas jurídicas (empresas comerciais,
revendedores, importadores, etc.) somaram 275.598 armas” (FARIAS, 2022).
75

contribuindo com a defesa da tradição como base da sociedade. Segundo Marcelo Badaró
Mattos (2020, p. 178-179),
[...] conforme dados do IBGE, os praticantes de religiões protestantes tradicionais ou
das denominações “evangélicas” mais recentemente, que na década de 1940
representavam apenas 2,6% da população, cresceram muito no final do século,
alcançando mais de 15% da população em 2000. O crescimento continuaria na década
seguinte, sendo contabilizados 22,2% de evangélicos em 2010. Seu crescimento
percentual, somente entre 2000 e 2010, foi cinco vezes maior que o da população
brasileira como um todo.

As religiões evangélicas têm se alastrado para a política, chegando a ocupar bancada62


no Congresso Nacional. De acordo com Wander de Lara Proença (2021, p. 14), o
posicionamento evangélico foi determinante para definir a vitória de Jair Bolsonaro, pois o
candidato “trazia como parte de seu slogan de campanha a frase carregada de simbolismo,
‘Deus acima de todos’, prometendo defender a fé, a família, o controle na educação dos filhos,
o combate à chamada ideologia de gênero nas escolas, além de oposição às relações
homoafetivas”. O candidato da extrema direita alinhou seu discurso ao moralismo cristão,
apresentando-se como o enviado divino, “para conquistar apoio e o voto evangélico, Bolsonaro
passou também a divulgar a religiosidade da esposa atual e enfatizou, cada vez mais, seu
posicionamento afinado com as pautas ‘morais’ da maioria dos políticos vinculados às
denominações pentecostais” (MATTOS, 2020, p. 178).
Casara (2018, p. 78) diz que o neopentecostalismo é uma “versão neoliberal do
cristianismo” que trabalha com demônios contemporâneos, transformando fé em mercadoria,
em que pastores da igreja são símbolos de sucesso econômico e a igreja uma forma de empresa
bem-sucedida. Assim, conflitos de interesses e classes são apresentados como “uma luta do
bem contra o mal [...], essa retórica penetrou as instituições estatais, em especial o Poder
Judiciário, que passa a atuar cada vez mais a partir de uma pré-compreensão inquisitorial,
atualizando práticas e instituições típicas das perseguições às bruxas” (CASARA, 2018, p. 79).
Nas eleições de 2018, evangélicos viram na figura de Bolsonaro “a concretização de um anseio
de ter um candidato que pudesse responder às suas pautas mais conservadoras” (PROENÇA,
2021, p. 17), em oposição à esquerda que fora transformada na “encarnação do demônio”
(CASARA, 2018, p. 79), fixando ainda mais no imaginário coletivo uma identificação com

62
Segundo definição da Wikipédia (2022a), “a bancada evangélica é um termo utilizado pela imprensa e por
cientistas políticos para agrupar os membros do Congresso Nacional do Brasil e dos legislativos estaduais e
municipais que se auto-denominam evangélicos e que defendem as mesmas pautas defendidas por lideranças
evangélicas. [...]. Na 56ª Legislatura, a bancada evangélica cresceu de 75 para 84 deputados e de 6 para 7
senadores”.
76

governos autoritários de direita, vistos como “os defensores da pátria, da religião e da família”
(PROENÇA, 2021, p. 22).
Souza (2022, p. 172) diz que o público evangélico não conhece as causas dos seus
infortúnios sociais, um desconhecimento que é “aprofundado e redobrado pela doutrina
religiosa. A ética da prosperidade é meritocrática e percebe o sucesso como fruto da vontade
individual”, assim, ao receber apoio e “solidariedade” de seus “irmãos de fé”, como também ao
buscar distinção e reconhecimento social, percebe-se como “homem de bem”, devendo afastar-
se e atacar o que é seu contrário - o mal, “como o ‘bandido’, construído artificialmente, ou o
homossexual e a ‘prostituta’” (SOUZA, 2022, p. 174) -, absorvendo pautas moralistas e
conservadoras. Apesar de as políticas de Bolsonaro não contribuírem em nada com esse
segmento sofrido da população, Souza (2022, p. 175) afirma que o apoiam porque ele dá tudo
que precisam emocionalmente, como “a sensação de reconhecimento para alguém a quem isso
sempre tinha sido negado [...], a impressão de que são protagonistas de algo, uma sensação de
importância para quem nunca se sentiu importante até então”.
Um outro aspecto relevante a ser destacado é o abandono das classes populares dos
partidos de esquerda que, visto pela perspectiva de Dardot et al. (2021, p. 217), pode ser
entendido como algo inverso, pois “as classes populares só abandonaram a esquerda porque
foram abandonadas por ela”. Após os anos 1980, as esquerdas integram-se aos mitos das
empresas, ao culto à inovação tecnológica, ao consumo e às finanças de mercado, fazendo uma
política econômica e social próxima à da direita. Santos (2001, p. 75), em Por uma outra
globalização, lamentava que,
[...] no caso brasileiro, é lamentável que políticos e partidos ditos de esquerda se
entreguem a uma política de direita, jogando para um lado a busca de soluções
estruturais e limitando-se a propor paliativos, que não são verdadeiramente
transformadores da sociedade, porque serão inócuos, no médio e no longo prazo. As
chamadas políticas públicas, quando existentes, não podem substituir a política social,
considerada um elenco coerente com as demais políticas (econômica, territorial etc.).

A luta histórica da classe trabalhadora por igualdade fora abandonada pelos valores
culturais modernos e progressistas mais em consonância com a classe média. Assim, apesar dos
inúmeros avanços de redução da pobreza e mobilidade social, vivenciados durante os governos
de Lula e Dilma (2003-2015) - visto que 2016 foi o ano do golpe judiciário-parlamentar contra
a presidenta -, não houve um “rompimento com nosso passado autoritário e com as estruturas
que perpetuam a desigualdade” (MACHADO, 2019, p. 184). Segundo Souza (2018, p. 133),
“ainda que tenha desenvolvido políticas sociais fundamentais em um país de desigualdade tão
perversa, o PT o fez sem qualquer discurso articulado acerca do que estava fazendo”, falhando
77

em não debater sobre as estruturas coloniais, as atrocidades da ditadura (MACHADO, 2019),


além de atacar com força máxima a desigualdade abissal entre ricos e pobres.
A elite, através do controle das mídias e apoio histórico da classe média, explorou o
discurso de corrupção apenas do PT, explicando as lutas políticas à população nos seus próprios
termos (SOUZA, 2018). Sendo a direita e extrema direita hábeis em explorar
descontentamentos sociais em seu benefício, apostam nessa narrativa de corrupção do PT,
investindo no antipetismo como plataforma de campanha de 2018 - e novamente neste ano de
2022 - apresentando Jair Bolsonaro como uma espécie de salvador da pátria e defensor dos
verdadeiros e únicos valores morais e econômicos.

| Cena 8: os antagonistas

Machado (2019, p. 80) diz que o “Brasil está em uma posição particularmente retrógrada
no ataque ao pensamento crítico e humanista”. A esse respeito, o projeto Escola Sem Partido63,
que diz combater a "doutrinação" nas escolas, mesmo não sendo aprovado, acaba sendo
colocado em prática através da vigia constante de pais e de estudantes, levando professores, por
medo - seja de perder o emprego, seja de se desgastar diante dos estudantes ou proteger sua
integridade -, a evitar certos conteúdos (MACHADO, 2019). As propostas curriculares do
Escola Sem Partido têm sido amplamente divulgadas através da internet, maquiadas de proteção
da doutrinação política. Sua intenção é banir “a totalidade dos conhecimentos produzidos pela
história, pela geografia humana, pela sociologia, pela psicologia. Nas versões mais
obscurantistas, até ramos da biologia ou da astronomia ficam sob suspeita” (MIGUEL;
OLIVEIRA, 2020, p. 271).
Esse movimento, de linha ultraconservadora, é mais uma das táticas da nova direita para
disputar ideias e pensadores, e faz parte de um projeto mais amplo, que visa a produção e a
disputa de novos regimes de verdade.

63
No artigo Pânico Moral e ódio à diferença: a estratégia discursiva do Escola Sem Partido, Luis Felipe Miguel
e Michel Oliveira analisam discursos de defensores do projeto Escola Sem Partido em audiências públicas. O
Escola Sem Partido é um movimento ultraconservador, focado em mudar a legislação que rege a educação
brasileira, visando, através de medidas que censuram professores, conteúdos e material didático, impedir o
pensamento crítico e o processo educativo pleno, criando uma mordaça legal na educação. O artigo destaca a
importância desse movimento para o crescimento da onda conservadora no Brasil. “Olhando retrospectivamente,
com a pequena distância histórica que já temos, a mobilização em torno do projeto ‘Escola Sem Partido’ pode ser
considerada um prenúncio da onda conservadora que tomou conta do Brasil nas eleições de 2018. Graças à
produção deliberada do pânico moral, que bloqueia qualquer possibilidade de um debate embasado em
argumentos, promove-se a revogação de direitos e a vilanização dos adversários políticos – e gera-se uma
militância mobilizada e agressiva, cujo objetivo é fazer com que esses direitos, ainda que vigentes na letra da lei,
não tenham mais condições sociais de serem exercidos” (MIGUEL; OLIVEIRA, 2020, p. 261).
78

Hoje, há registros da perseguição ao conhecimento crítico e à memória de justiça


histórica por todos os lados. Há o resgate de símbolos nazistas. Há a redução de carga
horária das disciplinas das ciências humanas nos currículos de diversas grades
escolares no mundo todo. Isso tem vínculo direto com um fenômeno muito maior:
uma mudança do que é historicamente autorizado a dizer. Atingindo o coração do
conhecimento humanista, ataca-se o legado da ciência e o cerne dos princípios da
modernidade, os quais, apesar dos problemas, conseguiram criar certo senso de
direitos humanos universais, civilização global e humanidade (MACHADO, 2019, p.
80).

Há, no momento, uma disputa acirrada de verdades, uma guerra cultural64, na qual
pautas morais e culturais são objetos de disputas políticas e o posicionamento sobre um tema
passa a ser um “modo de sinalizar o pertencimento a uma identidade política” (MELO; VAZ,
2021, p. 10). Nessa disputa, a direita não se apresenta formalmente contra o conhecimento e
nem como anticiência, uma vez que sua reivindicação é disputar e ocupar espaços de
conhecimento com o intuito de alcançar a hegemonia política. Nessa batalha pela hegemonia,
através do conhecimento, a direita investe em pensadores que divulgam visões apocalípticas,
como o ataque à civilização (branca e europeia); a “ideologia de gênero”, que estaria ameaçando
a família tradicional; e as feministas e comunidade LGBTQIA+, que ameaçariam a
heteronormatividade. Mesmo os defensores da tese da Terra Plana, que pode ser vista como a
mais bizarra das teorias, ganham espaço porque forjam um cientificismo organizando
seminários, documentários e documentos (MACHADO, 2019).
Os negacionistas, que têm sua origem no pós-guerra, ao tentarem questionar o
holocausto, baseavam-se em informações distorcidas e apresentavam-nas como se estivessem
fazendo uma interpretação crítica do passado, ignorando métodos historiográficos de análise
crítica de documentos, cruzamento de fontes e comprometimento com a objetividade (JESUS;

64
Segundo Cristina Teixeira de Melo e Paulo Vaz (2021, p. 6-7), o conceito de guerra cultural “surgiu com o livro
de James Hunter, Culture Wars: The Strugle To Define America, publicado em 1991”, para explicar a existência
de conflitos morais e disputas na política estadunidense como a questão do “aborto, à posição da mulher na família
e na sociedade, à sexualidade, aos direitos do que hoje chamamos população LGBTQI+, o financiamento público
de projetos culturais e exposições artísticas, à separação entre Igreja e Estado, ao multiculturalismo, às cotas para
minorias nas universidades, ao cânone dos autores ocidentais no ensino universitário, ao politicamente correto e
ao currículo das escolas primárias”. Apesar da multiplicidade de temas em disputa, Melo e Vaz (2021) apontam
para dois pontos comuns no conceito de Hunter: primeiro, a guerra cultural acontece em momentos de mudanças
e aquisição de direitos por parte dos grupos ditos minoritários, desencadeando reações conservadoras; e, segundo
o vínculo do conceito com a história dos Estados Unidos, em que forças políticas e influência religiosa interferem
nas constituições e na definição de nação. É importante salientar, que guerras culturais têm significados diferentes
de acordo com o contexto. Segundo Melo e Vaz (2021, p. 8), o conceito mais próximo do atual foi usado em “1987
no New York Times, num artigo de opinião escrito por Todd Gitlin e Ruth Rosen”, para explicar a disputa entre
modernizadores e tradicionalistas, referente a temas ligados aos direitos civis, feministas, gays, liberdade sexual
ou uso de drogas. Atualmente, a polarização política se acentuou com o advento da internet, e a guerra cultural
tem causa e efeito nessa polarização, constituindo uma guerra que se desdobra de forma simbólica. No Brasil,
Melo e Vaz (2021, p. 18) afirmam que “a campanha de Jair Bolsonaro em 2018 para presidente selou a inserção
do Brasil nas guerras culturais”, pois apostou mais nos temas morais conservadores do que em propostas para o
âmbito da saúde, educação, transporte ou emprego, seguindo essa mesma linha “de sucesso” na campanha eleitoral
de 2022.
79

GANDRA, 2020). O campo da educação, que vinha dando lentos passos rumo a uma gestão
democrática, mostra-se frágil diante dos avanços de negacionismos que sequestram símbolos,
distorcem documentos, fatos e memórias para justificar posições e ações antidemocráticas
(DOMICIANO et al., 2021). Além das políticas atuais de não investimento do dinheiro público
na ciência e na educação, que contribuem com seu enfraquecimento e desmantelamento, os
negacionismos espraiaram-se, não ficando mais restritos à contestação da existência do
holocausto, mas atingindo amplas áreas do saber, tanto da história como outras.
Em 2019, o “Departamento de História e o Programa de História Social da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo organizaram um evento
científico para discutir o fenômeno negacionista recente no campo da História, bem como o
lugar dos revisionismos para o conhecimento histórico”65 (JUNQUEIRA; NAPOLITANO,
2019, p. 1). Segundo a síntese do evento,
[...] o negacionismo não tem como objetivo revisar e ampliar o conhecimento sobre o
passado, mas destruir este conhecimento. As táticas são conhecidas: disseminação de
falsidades e adulteração de fatos e processos históricos. O negacionismo é arma de
determinados grupos políticos sectários. Deve-se, de início, perguntar: a quem serve
o negacionismo? Exemplos contundentes de negacionismo, como a recusa da
veracidade do Holocausto judeu sob o Nazismo ou a recusa da existência de tortura
sistemática como parte do sistema repressivo do regime militar brasileiro não
propõem novas interpretações sobre estes acontecimentos, mas simplesmente negam
evidências e fatos essenciais para sua compreensão (JUNQUEIRA; NAPOLITANO,
2019, p. 2).

Mesmo antes da negação do holocausto, os negacionismos já apareciam, conforme


esclarecem Patrícia Valim, Alexandre de Sá Avelar e Berber Bevernage (2021) ao citar a
negação do massacre armênio, em 1915, pelo governo turco. No entanto, as formas de negação
do extermínio judeus pelos nazistas inaugurou um “modus operandi que seria incorporado tanto
pelos negacionistas posteriores quanto por seus aliados da extrema-direita em diversos países”
(VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 15). Isto é, uma modalidade discursiva, com
intuito de negar crimes e genocídios para manter viva a ideologia nazista, uma espécie de
“máquina” de apagar fatos e o que se entende por fato, através de um “pseudocientificismo”,
que usou argumento de “revisionismo” com técnicas de falseamento, argumentos pautados em
evidências frágeis, descontextualizados e distorcidos. Dos quais, por mais que historiadores
renomados se empenhassem e ainda se empenhem em desconstruir narrativas de apagamento e

65
Com intuito de divulgar as palestras dos participantes das mesas do evento e dos debates decorrentes dele, o
Departamento de História da FFLCH/USP elaborou um resumo do evento científico que discutiu o fenômeno
negacionista recente no campo da História, bem como o lugar dos revisionismos para o conhecimento histórico,
“ao longo das exposições e debates, foram se delineando perspectivas e estratégias para que os historiadores e
professores de História compreendam e enfrentem o negacionismo e suas falas correlatas” (JUNQUEIRA,
NAPOLITANO, 2019, p. 1).
80

distorções, atualmente “tornou-se mais multifacetado” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE,


2021, p. 17), não se limitando à negação do holocausto, mas na “negação de outros genocídios
e também de reconstruções revisionistas de passados mais ou menos sensíveis em diversos
países” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 17).
A globalização, as migrações em massa e a ascensão da mídia internacional são
apontados por Valim, Avelar e Bevernage (2021, p. 17) como razões para o “revigoramento
global do negacionismo". O digital é apresentado como elemento que favoreceu a proliferação
“das mais odiosas e ultrajantes informações, sob um véu relativo de anonimato e impunidade,
como também permitiu que muitas mais pessoas pudessem contribuir com esses negacionismos
de uma maneira fácil” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 17), pois através dos
algoritmos e da formação de suas “câmeras ecos”, prioriza-se a identificação do usuário com o
conteúdo divulgado, em detrimento da preocupação de questionar a autenticidade ou reivindicar
“a autoridade epistêmica” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 18).
Outro ponto relevante apontado pelos autores como uma característica atual dos
negacionismos é o fato desse fenômeno ser “patrocinado pelo Estado. Esta característica não é
nova, é claro [...] mas parece ter alcançado novos níveis com o aumento global de governos
autoritários, ditos populistas” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 19), uma reação
conservadora e perversa na agenda internacional que nos anos 1980 buscava esclarecimento,
verdade histórica e reconhecimento, “simbolizado pelo surgimento generalizado de comissões
da verdade e do princípio jurídico do ‘direito à verdade’” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE,
2021, p. 20). Os negacionismos são meios de incitação de ódio e de perpetuação de crimes
contra a humanidade - obviamente contra os mais vulneráveis: as ditas minorias. Além disso,
contribuem com o desmantelamento de democracias, pois intentam contra fatos, “consensos
básicos sobre a verdade de determinados acontecimentos e representa a própria condição de
possibilidade da vida institucional” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 22).
O Brasil, que já tinha uma história de negação da realidade, através da ocultação dos
“papéis desempenhados por indígenas e negros na formação nacional” (VALIM; AVELAR;
BEVERNAGE, 2021, p. 26) e da exaltação do branco europeu, assim como dos genocídios que
as populações negras e indígenas sofreram durante a colonização do Brasil (e sofrem ainda
hoje), mas fora maquiado pelo mito da “democracia racial”. Como também o período obscuro
da ditadura militar que através de diversos mecanismos buscava esconder seus mortos, destruir
passados de lutas e exaltar seu crescimento econômico. Atualmente, o Brasil vive o ápice desses
movimentos impulsionados pelas mídias digitais e pelo crescente bolsonarismo, segundo
Valim, Avelar e Bevernage (2021, p. 24),
81

[...] a negação do passado autoritário recente foi um dos eixos de constituição do


bolsonarismo como um fenômeno político de extrema-direita, capaz de agregar forças
sociais diversas como comunidades evangélicas, grande empresariado, militares e
agronegócio (Klem; Pereira; Araújo, 2020). Em verdade, é impossível dissociar a
própria persona política de Jair Bolsonaro do negacionismo/revisionismo ideológico da
ditadura brasileira (Nascimento et al., 2018). Ao longo de sua carreira como deputado
do chamado “baixo clero” da Câmara Federal, Bolsonaro mencionou o período militar
em 25% dos seus discursos parlamentares, quase sempre tecendo elogios aos militares
e ao combate à “subversão comunista”.

Há inúmeras variações das narrativas negacionistas em cada uma das áreas do


conhecimento. Jesus e Gandra (2020) dizem ser possível afirmar que os negacionistas são ainda
mais perniciosos que grupos neonazistas, pois eles deixam claras suas posições, diferentemente
dos negacionistas, que forjam estratégias para diluir seus posicionamentos racistas, intolerantes
e proselitistas, disfarçando-os de discurso científico. O negacionismo bolsonarista evidenciou
seu lado mais trágico durante a pandemia de covid-19, pois o negacionismo se apresentou como
uma forma de governo, “apelando a afetos e a emoções já presentes em parcelas significativas
da população” (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 25), assumindo-se como uma
identidade política da extrema-direita e, no caso da covid-19, elevando o país a um dos mais
letais do mundo66, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentados em
maio de 2022.
A crescente onda negacionista também apresenta uma outra dimensão negativa,
conforme aponta Valim, Avelar e Bevernage (2021, p. 26), que é “a tentativa recorrente de
desqualificação, não apenas do conhecimento historiográfico produzido nas universidades
brasileiras, mas também os próprios historiadores, vistos como portadores de interesses ocultos,
‘doutrinadores’ e defensores de ideologias socialistas”, assim como a perseguição e opressão
aos educadores da Educação Básica e a vigilância e tentativas de controle do ensino. Miguel e
Oliveira (2020), através de pesquisa sobre os projetos do Escola Sem Partido, analisaram
conteúdos e discursos de parlamentares nas audiências públicas realizadas pela Comissão
Especial. Aqui, destaco alguns pontos que compreendo exemplificar os desafios atuais do
ensino de história, como a
[...] proibição da “doutrinação política e ideológica” e da transmissão de conteúdos
que entrem em conflito com as convicções religiosas do estudante, o projeto prevê a
fixação de cartazes nas salas em todas as escolas do Brasil com os “deveres do
professor, [...] combater a “ideologia de gênero” e a “doutrinação ideológica, [...] a
família tem prevalência sobre a escola, [...] o educador não possui o arbítrio para

66
Segundo reportagem de Jéssica Gotlib (2022), do Correio Braziliense, o “relatório divulgado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) nesta quinta-feira (5/5) informa que o Brasil está entre os países com maior mortalidade
em excesso durante os anos de pandemia. A metodologia inclui entre os dados pessoas que foram vítimas de uma
espécie de efeito colateral da pandemia. Segundo o documento, o índice do país foi de 160 óbitos excessivos para
cada 100 mil habitantes. Isso é maior que a média mundial, 96, e coloca o país em quinto lugar no ranking dos
locais onde a covid-19 foi mais letal”.
82

abordar certos temas para a classe; o governo brasileiro tenciona instituir no sistema
de ensino a “ideologia de gênero”, uma doutrina “questionável”, “controversa”, que
“não é ponto pacífico” [...] a família conserva o direito de que seus filhos recebam a
educação moral e religiosa que ela determinar [...] (MIGUEL; OLIVEIRA, 2020, p.
263).

Os autores ainda destacam que


[...] o que está no centro deste conjunto de discursos é uma operação de naturalização
– o dispositivo básico do discurso ideológico (Eagleton, 1997), que impede a
inquirição da origem histórica das práticas humanas e dos valores sociais – e de
desqualificação da posição adversária. Naturalização: a verdade é a ausência de
conflito. Português e matemática são as disciplinas escolares fundamentais. O mau
desempenho dos alunos se deve à concorrência de outras matérias na grade escolar.
Desqualificação: conteúdos críticos “idiotizam”. Educação sexual é sexualizar
precocemente as crianças. Professores são doutrinadores (MIGUEL; OLIVEIRA,
2020, p. 265).

O Escola Sem Partido propõe uma educação falsamente neutra e cinicamente fascista,
que culpabiliza Paulo Freire pelo fracasso escolar, estigmatizando sua pedagogia libertadora
como “doutrinadora” e causadora de conflitos, por abordar temas que não são consensos, não
respeitando o que os defensores do movimento veem como conhecimento absoluto (MIGUEL;
OLIVEIRA, 2020, p. 264). Os representantes do Escola Sem Partido defendem “uma
epistemologia primária, que vê verdades absolutas e fixas – e que, ao impossibilitar qualquer
abordagem crítica do mundo, contribui objetivamente para a naturalização e a reprodução das
dominações sociais” (MIGUEL; OLIVEIRA, 2020, p. 264).
Através desta reflexão, procurei evidenciar alguns desafios do ensino de história, que é
comprometido com o pensamento crítico. Tiburi (2013) já dizia que precisamos fazer uma
crítica consistente à educação, que possibilite um avanço por outras vias, afinal, a educação
também pode ser reprodutora (e geralmente é) da racionalidade neoliberal, pois é parte da
indústria cultural, quando substitui o pensamento crítico pelo pensamento pronto. Retomando
o conceito de indústria cultural (1985), a partir de Theodor Adorno e Max Horkheimer, Tiburi
(2013, p. 42), esclarece que
[...] quando digo Indústria Cultural não me refiro às pseudo-obras de arte que atingem
a percepção das massas, excitando-as e comprometendo-as esteticamente, mas ao poder
de destruição do pensamento crítico pela oferta do pensamento pronto que constitui
nossa experiência cotidiana submetida aos meios de comunicação, à publicidade, à
televisão. Refiro-me a eles, mas à qualquer sorte de mistificação, da publicidade à
propaganda, da religião ao mercado.

Compreendo como grande compromisso e desafio romper com o ensino que coloca o
pensamento como mercadoria, fruto da indústria cultural. Apesar dos infindáveis desafios a
enfrentar, acredito na resistência a partir de uma contra-educação, que visa compreender as
estruturas, a desigualdade, suas origens e seus mecanismos, propondo uma “educação
83

pensante”, que valorize as leituras de mundo dos estudantes, mas que também crie espaços
seguros de trocas para que novas leituras e compreensões do mundo emerjam (FREIRE,
2014/2021; HOOKS, 2017), ou seja, uma educação em contraposição ao pensamento pronto,
condizente com o mundo digital acelerado que apresenta sempre o mais fácil.
Segundo Andréa Padilha da Silva e Conceição Paludo (2020, p. 4), o mundo altamente
competitivo impõe sujeitos polivalentes que deem conta das exigências que o avanço digital
produz, isto é, “mais conectados e imbricados nas formas de exploração, apropriação,
objetivação e subjetivação da atualidade do mundo do trabalho”. Por certo, não há como
impedir o avanço digital, eis que é uma realidade da qual tem exigido letramento digital, mas
precisa estar unido à uma educação crítica que proporcione desvendar e compreender a
realidade oculta.
Enfrentar uma pedagogia castradora pressupõe valorizar a livre expressão dos
estudantes e proporcionar espaços de diálogo e de livre criação. Dessa forma, bell hooks (2017)
defende que é possível ensinar de forma que transforme consciências, através de uma educação
verdadeiramente libertadora que é a essência de uma educação em artes, que não tem medo da
livre expressão e de conflitos, pois estes contribuem na construção de novas maneiras de pensar,
valorizando a experiência, o diálogo e o estético. A potência da criação humana estimula
atitudes e provoca reflexões que contrariam as visões fatalistas.
Tiburi (2020a, p. 171) alerta sobre a importância das Ciências Humanas e da Arte nesse
momento histórico em que o autoritarismo cresce, alertando que
[...] precisamos de uma educação para a democracia que contemple a arte e a poesia,
para a ciência e o pensamento crítico. Precisamos de uma educação para além do
capital. Intelectuais e professores não podem fingir que nada está acontecendo
enquanto muitas pessoas na esfera da vida descobrem dolorosas verdades na própria
pele, sob as piores violências. [...] Toda transformação social implica a transformação
de subjetividades na direção de um pensamento lúcido entrelaçado a práticas lúcidas
em tempos obscurantistas.

A atual conjuntura de exacerbamento de ignorância, crescimento neofascista e ataques


de grupos conservadores à educação exige uma crítica ética da atualidade e uma proposição de
outra educação que rompa com o modelo neoliberal de humilhação e de rebaixamento da
educação à mercadoria. Assim sendo, a presente dissertação buscará, a partir do Ato III, refletir
sobre a potencialidade do teatro como linguagem para o letramento histórico, argumentando
que tanto letramento histórico como a prática teatral, num enlace para o enfrentamento à
educação promovida pela racionalidade neoliberal, são coerentes com uma proposta engajada
com a contra-educação, uma educação libertadora.
84

Antes de falar sobre o papel dos protagonistas no Ato III desta pesquisa, creio ser
importante, ainda, esclarecer os subtextos, isto é, explanar o que entendo por neofascismo,
conceito importante na elucidação da temática que essa pesquisa se propôs desenvolver.

| Cena 8.1: os antagonistas e seus subtextos

Ao longo deste texto venho utilizando o termo “neofascismo”, já apontando algumas


discordâncias quanto a seu uso, visto que existe um debate atual e acadêmico sobre o termo.
Mattos (2020) esclarece as divergências quanto a esse debate, procurando definir se
neofascismo seria uma categoria válida para explicar o presente. Um dos pontos principais de
sua análise é que é importante não confundir as manifestações contemporâneas com os
fascismos do passado (período da década de 1930), mas, sim, procurar compreender as
diferenças entre eles, mesmo que haja pontos de contato entre os dois momentos.
Em 1995, em simpósio organizado pela Columbia University, Umberto Eco
pronunciou-se na conferência Fascismo Eterno. Nesse pronunciamento, Eco procurou explicar
porque o termo “fascismo” tornou-se um termo genérico para classificar governos autoritários
de extrema direita. O fascismo italiano, além de ter sido o primeiro regime de ditadura de direita
que dominou a Europa, possui o fato de não ter uma ideologia clara, como aconteceu com o
nazismo. No fascismo cunhado por Benito Mussolini, havia apenas algumas características
típicas, que Umberto Eco denomina “Ur-fascismo” ou “fascismo eterno”, que criaram um
arquétipo seguido por outros movimentos subsequentes, de modo que mesmo que um governo
não possua todos seus aspectos, ainda assim não deixa de ser fascista, por isso seu termo torna-
se genérico.
Em relação a essas características, Eco elenca algumas: (i) e (ii) culto à tradição, recusa
e repulsa pela modernidade, isto é, culto a um passado glorioso (mesmo que seja algo folclórico
e sem consonância com a verdade), e negação da modernidade ligada ao conhecimento
científico (Iluminismo e Cientificismo), que não pode ser confundido com tecnologia, pois
tanto o fascismo italiano quanto o nazismo alemão adoravam a tecnologia, mas recusavam a
ideia de razão propagada pelo Iluminismo. (iii), (iv) e (v) ação pela ação, isto é, “a ação é bela
em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão” (ECO, 2020, p. 47).
Pensar é visto como uma forma de castração, atitudes críticas não são bem-vindas e, portanto,
a cultura passa a ser vigiada por ser suspeita e, para exemplificar, usa a declaração atribuída a
85

Goebbels67: “quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola” (ECO, 2020, p. 49). Portanto,
universidades e a cultura científica são vistas como inimigas, por gerar desacordos e criticar o
sincretismo. Criticismo não é bem-vindo, é traição, pois desacordos estão ligados à diversidade,
e os fascistas prezam pelo consenso. O medo da diferença torna o ur-fascismo “racista por
definição” (ECO, 2020, p. 50).
(vi) apelo às classes médias frustradas, insatisfeitas com alguma crise política ou com
conquistas da classe trabalhadora. (vii) e (viii) apelo ao nacionalismo, levando a uma “obsessão
da conspiração, possivelmente internacional” (ECO, 2020, p. 51) e, como consequência, à
xenofobia. Criam-se inimigos através de um espírito bélico, que podem ser externos, mas
geralmente são internos, havendo contradições constantes em relação à sua força, ora
apresentados como muito fortes e ameaçadores ora como muito fracos e inferiores.
(ix) apelo à guerra permanente, recusando discursos pacifistas, afinal, viver é sinônimo
de estar em guerra. (x) valorização do elitismo como forma de diferenciação dos outros, os
“fracos”, por isso a diferenciação liga-se ao racismo ou à posição política, uma vez que ser
membro do seu partido é visto como ser melhor. No entanto, há uma hierarquização do tipo
militar, afinal, o líder não é igual à população, pois ele acredita que “sua força se baseia na
debilidade das massas, tão fracas que têm a necessidade e merecem um ‘dominador’” (ECO,
2020, p. 53).
(xi) e (xii) “cada um é educado para ser um herói” (ECO, 2020, p. 54). Há um culto
constante à morte, uma vez que “o herói Ur-fascista espera impacientemente pela morte. Note-
se, porém, que sua impaciência provoca com maior frequência a morte do outro” (ECO, 2020,
p. 54). Como heroísmo e guerra são difíceis de colocar em prática, o desejo de poder é
transferido para questões sexuais, daí seu desdém às mulheres e à homossexualidade. Porém,
“como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-fascista joga com as armas, que
são seu Ersatz68 fálico” (ECO, 2020, p. 55), isto é, as armas representam seu símbolo fálico.
Por fim, talvez o elemento mais impressionante, visto que Eco fez essa palestra em
1995, são os aspectos (xiii) e (xiv), que dizem que o fascismo eterno é um tipo de “populismo
qualitativo” que faz um apelo à vontade geral do povo, não se preocupando com direitos, não
enxergando indivíduos, de modo que o povo é visto como uma qualidade, uma entidade

67
Paul Joseph Goebbels (1897-1945), político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933
e 1945, afirma que “um associado e devoto apoiante de Adolf Hitler, ficou conhecido pelas suas capacidades
oratórias em público e pelo seu profundo e fanático anti-semitismo, e sua crença na conspiração internacional
judaica que o levou a apoiar o extermínio dos judeus no Holocausto” (WIKIPÉDIA, 2022b).
68
Ersatz (palavra alemã) fálico pode ser entendido como o substituto do órgão genital masculino. Nesse contexto,
simboliza a virilidade masculina.
86

monolítica e é o líder que interpreta suas vontades comuns. Eco, assim, vislumbra a internet
como ferramenta para justificar a identificação da necessidade do povo “em nosso futuro,
desenha-se um populismo qualitativo de tv ou internet, no qual a resposta emocional de um
grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”” (ECO,
2020, p. 56-57).
O eterno fascismo cria uma “novilíngua”, como a inventada por Orwell, na obra 1984,
uma linguagem pobre e simplificada, eliminando raciocínios complexos e críticos (ECO, 2020,
p. 58). Uma relação impressionante, se a relacionarmos à linguagem digital ou às novas
orientações sobre a produção de livros didáticos69 com linguagens cada vez mais simplificadas,
incentivando pensamentos superficiais. Concluindo a palestra, Eco (2020, p. 61) afirmou que
precisamos estar sempre atentos, pois “o Ur-fascismo pode voltar sob vestes mais inocentes.
Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo a cada uma das suas novas formas - a cada dia,
em cada lugar do mundo”.
Tiburi (2018) especifica diversas características do fascista da atualidade. Algumas
delas são: discurso vazio de reflexão, discursos cheios de ódio e preconceitos, incapacidade de
amar e ter compaixão com o próximo, incapacidade de raciocínios complexos, repetição de
clichês incessantemente, distorção de falas alheias, promoção através de fake news, fomentação
de racismo e machismo, manipulação, se vê como coisa e pensa que os demais também são,
desrespeito aos sentimentos alheios, frieza e ódio, dentre outras. Ainda, segundo a autora, o
fascismo é um padrão de pensamento, uma personalidade que, com o digital, tem sido
estimulada e extrapolada.
Retomando a discussão sobre “neofascismo” ser o melhor termo para caracterizar as
políticas contemporâneas de extrema direita com aspectos do fascismo eterno ou não, como
apontadas por Umberto Eco, volto à análise de Mattos (2020) que, citando Robert Paxton, diz
que precisamos de um termo genérico para caracterizar o fenômeno de ascensão de
extremismos típicos do século XXI. Segundo Mattos (2020), mesmo intelectuais que evitavam
o uso do termo “fascismo” no âmbito contemporâneo, como Douglas R. Holmes, mudaram de
ideia na medida em que perceberam o avanço surpreendente dos extremismos, entendendo que

69
Em janeiro de 2020, em entrevista na portaria do Palácio da Alvorada, o presidente Bolsonaro fez declarações
sobre as mudanças em relação aos livros didáticos aprovados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC),
afirmando que, “a partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a
bandeira do Brasil na capa. [...] Vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de
amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo” . Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/03/livros-didaticos-atuais-sao-lixo-e-governo-vai-suavizar-
linguagem-a-partir-de-2021-diz-bolsonaro.ghtml
87

apesar de as características contemporâneas serem distintas, há uma congruência com o


passado.
Mattos (2020) diz que Michael Löwy (2019) prefere o termo “neofascismo” para
acentuar o que determina o fascismo da atualidade, que não é meramente uma reprodução do
passado; diferentemente de Enzo Traverso (2019), que prefere o termo “pós-fascismo”, por
considerar que neofascismo se refere a grupos que tentam regenerar o velho fascismo; e pós-
fascismo, em contrapartida, seria uma categoria que explicaria melhor a metamorfose do antigo
para o novo, isto é, na atualidade não há um rompimento abrupto com as instituições
democráticas. Mattos (2020), apesar de compreender a profundidade dos argumentos de
Traverso, discorda por considerar que a própria ideia de democracia também passou por
profundas mudanças, não sendo mais necessário esse rompimento total com os regimes
democráticos típicos dos fascismos do século anterior.
Fundamentado em Maurizio Lazzarato (2019), Mattos (2020) defende que o
neofascismo é outra face do neoliberalismo que, apesar de não haver ameaça comunista, tem
investido na violência como um caráter preventivo para proteger o mercado, as empresas e a
iniciativa individual, além de reprimir minorias, estrangeiros e todos aqueles considerados
delinquentes pelo sistema. Além disso, o autor salienta algumas mudanças ou variáveis
significativas “como o antissemitismo ter cedido espaço à fobia ao islamismo e aos imigrantes,
a ênfase na guerra total ter sido substituída por uma guerra contra a população” (MATTOS,
2020, p. 86), assim como o ataque a subjetividades que não são pautadas na dominação
masculina e em torno do modelo de família patriarcal, como é o caso dos gays, das lésbicas e
dos/as transgêneros.
Sendo assim, o termo “neofascismo” me parece o mais adequado e, por isso, será
utilizado nesta pesquisa para demarcar o fascismo atual, que tem relação direta com os
arquétipos do passado, mas também conforma especificidades compatíveis com o seu tempo,
como o neoliberalismo em sua versão mais violenta e o uso das tecnologias digitais como
ferramenta de propagação e disseminação de suas ideias para fins políticos de manipulação.
88

ATO III

O ensaio, que é inesgotável


89
90

| Cena 9: a arena

O crescimento neofascista, o desmantelamento das instituições democráticas, o ódio


como mercadoria, a educação humilhada e ameaçada, os movimentos conservadores
organizados censurando e criminalizando educadores, a vida plataformizada que contribui com
a explosão de ignorância nunca antes imaginada são alguns dos fenômenos possibilitados e
projetados pela razão neoliberal. Freire (2014/2021, p. 101) já alertava que “as ideias
neoliberais dirigidas pelo mercado não querem a colocação de questões que possam intrometer-
se no caminho de sua acumulação”, por isso, tanto esforço político para transformar o professor
em um técnico e não em um formador. Como já abordado, movimentos como Escola Sem
Partido culpabilizam e ‘satanizam’ Paulo Freire, o patrono da educação brasileira. Por todas
essas razões mencionadas, proponho retomar o conceito e a ideia de uma contra-educação que
defenda justamente o inverso da ideologia neoliberal do Escola Sem Partido, pois precisamos
retomar Freire e sua educação crítica, problematizadora, curiosa e dialógica, isto é, uma
educação como prática da liberdade.
Seria possível apenas defender a educação libertadora, no entanto, opto por usar o termo
“contra-educação” por considerar que nossos tempos exigem um marcador ainda mais claro,
evidente e radical, que pontue, sem qualquer dúvida, que precisamos de uma educação contrária
a todo cenário de perversidade, como exposto ao longo do Ato II desta dissertação. O israelita,
filósofo em educação, Ilan Gur-Ze'ev, ficou conhecido por cunhar o termo “contra-pedagogia”,
ou “contra-educação”, porém, pontuo que não uso e não usarei o termo no sentido empregado
pelo autor, mas, sim, no sentido dado por Tiburi (2013).
Ilan Gur-Ze'ev (2002) faz uma análise reflexiva acerca de pedagogias no ciberespaço,
questionando se seria possível aplicar a pedagogia crítica nesse ambiente digital. Através dessa
questão, o autor analisa posicionamentos de intelectuais que dizem pautar suas visões otimistas
na pedagogia crítica, como Michele Knobel ou Colin Lankshear, todavia, considera existir um
“vazio teórico entre a pedagogia crítica em contexto modernista e o ciberespaço como uma
manifestação da condição pós moderna” (GUR-ZE’EV, 2002, p. 72). Dessa forma, o autor
propõe uma educação alternativa que não seja baseada em uma pedagogia crítica e nem em uma
educação normalizadora, da qual o autor define como “modelagem de seres humanos e o
nivelamento de todos as meras coisas. Trata-se de um processo violento, pelo qual se expulsa a
alteridade do sujeito, permitindo que funcione como agente do sistema, como algo e não como
91

alguém” (GUR-ZE’EV, 2002, p. 89). A contra-educação de Ilan Gur-Ze'ev, pode ser assim
sintetizada:
A contra-educação envolve uma abertura em que há espaço para desafiar, senão
superar e transcender, a educação como normalização, como evasão da reflexão e da
transcendência. A transcendência é um imperativo humano - parte do que é ser
verdadeiramente humano. E a possibilidade de transcendência é também uma pré-
condição para um diálogo, dentro do qual se realiza a reflexão (GUR-ZE’EV;
MASSCHELEIN; BLAKE, 2001, p. 96).

Não me estenderei na justificativa do porquê optei pelo conceito tiburiano70, no entanto,


cabe ressaltar alguns pontos que considero relevantes por não optar pelo conceito de Gur-Ze’ev,
assim como de pesquisadores que o usam como referência para análises das pedagogias críticas:
primeiro, referente à ligação do conceito ao ciberespaço, pois não é o foco da minha pesquisa,
visto que investigo como enfrentar pedagogicamente os fenômenos da Sociedade das
Plataformas, reverberados no dia a dia presencial das escolas e nas relações ‘reais’ de
estudantes, educadores e comunidade; segundo, justifica-se pelo autor contrastar a concepção
de educação que defende - da qual também teria muitos pontos a problematizar, que não cabem
nesse momento - com a pedagogia crítica, utilizando argumentos, que transparecem, por vezes,
uma não compreensão das obras de Paulo Freire. Segundo Alexandre Guilherme e W. John
Morgan (2018, p. 792),
Gur-Ze’ev foi influenciado pelo pensamento de Freire e elabora algumas críticas
sérias a sua versão de pedagogia crítica. De acordo com Gur-Ze’ev, a pedagogia
crítica enfrenta dois problemas principais: (i) cria uma visão estreita da realidade ao
conceber a opressão em um sentido muito limitado (Gur-Ze’ev, 2010c) e (ii) ao fazê-
lo, torna-se incapaz de criticar a si mesma, pois acredita que pode explicar os
problemas da realidade simplesmente aplicando seu método, o que é mecânico
(Yaakoby, 2012; Tubbs, 2005; Gur-Ze’ev, 2005). A pedagogia crítica procura mudar
o mundo, começar a revolução da realidade e implementar visões utópicas positivas
em nome de uma sociedade mais justa e mais liberal.

No primeiro elemento apontado por Guilherme e Morgan (2018) parece haver uma certa
limitação sobre a vasta obra de Freire, visto que ao longo de suas produções houve uma
ampliação da compreensão de opressão, da qual ele próprio costumava lembrar que não se
limitava à Pedagogia do Oprimido. Freire (2014/2021, p. 93-94) salienta que
[...] o que ofereço é uma estrutura geral que requer um profundo respeito pelo outro
no decorrer das linhas de raça e gênero. [...] Não sou universalizador. O que eu faço,
de um modo despretensioso, é prover certos parâmetros para trabalhar com questões
de opressão enquanto estas questões dizem respeito ao contexto pedagógico. [...]
quando escrevi a pedagogia do oprimido, tentei entender e analisar o fenômeno da
opressão com respeito às suas tendências sociais, existenciais individuais. Fazendo
assim, não focaliza especialmente a opressão marcada por especificidades tais como
a cor gênero raça e assim por diante. Então, eu estava mais preocupado com os
oprimidos enquanto classe social.

70
Termo cunhado pela própria filósofa no livro Diálogo/Cinema (2017), de Marcia Tiburi e Julio Cabrera.
92

O segundo aspecto levantado por Guilherme e Morgan (2018) parece ainda mais
impróprio, visto que a pedagogia libertadora prevê a reflexão-ação-reflexão constante, pautados
na dialética, não sendo coerente a ideia de um método mecânico de leitura da realidade. Em
inúmeras ocasiões, Freire falou/escreveu sobre a necessidade de reinvenção e/ou recriação de
sua pedagogia a partir das demandas e contextos, pontuando que não havia receitas, ou seja,
cada realidade precisa encontrar seus caminhos e métodos. Freire (2014/2021, p. 96) pontuava
que educadores que se recusassem a reinventá-los estavam “simultaneamente negando a
história como uma possibilidade e procurando pela prova professoral, certeza de aplicações
técnicas”.
Guilherme, Giraffa e Martins (2018), procurando estabelecer aproximações e
divergências entre a proposta de contra-educação de Gur-Ze'ev e a Educação para a Cidadania
Global (ECG), proposta por órgãos internacionais, como a UNESCO, a OECD (Organisation
for Economic Co-operation and Development), a União Europeia e o Banco Mundial, percebem
contradições, visto que, por mais humanista que sejam suas ideias, são pautadas no modelo
capitalista e no atendimento de suas exigências, traçando metas globais a partir do norte
ocidental. Os autores pontuam algumas críticas de Gur-Ze’ev a Paulo Freire, dizendo que “o
projeto de contra-educação nasce de uma crítica à Pedagogia Crítica defendida por Freire,
MacLaren, Giroux” (GUILHERME; GIRAFFA; MARTINS, 2018, p. 50), destacando
novamente que considera limitadora a lógica opressores/oprimidos, dizendo que a pedagogia
crítica promete revelar todos os problemas do mundo a partir de uma utopia positiva que garante
um mundo melhor.
Considero os aspectos destacados pelos autores como uma simplificação e
superficialidade das pedagogias de Freire, pois constantemente suas obras pontuam que não há
caminhos prontos e sua defesa da utopia e do sonho não são promessas ingênuas. Segundo
Freire (2014/2021, p. 40), é “utópica no sentido de que é esta uma prática que vive a unidade
dialética, dinâmica, entre a denúncia e o anúncio, entre a denúncia de uma sociedade injusta e
espoliadora e o anúncio do sonho possível”. Para tanto, esse sonho possível também não é
ingênuo, pois “emerge justamente da reflexão crítica acerca das condições sociais de opressão
cuja percepção não se faz determinista, mas compreender a realidade como mutável a partir da
participação dos sujeitos que a constituem, sendo igualmente por ela constituídos” (FREIRE,
2014/2021, p. 40), isto é, que se oponha a uma visão fatalista de realidade.
Freire (2014/2021, p. 41) não faz promessas, o que ele aponta é o “inédito-viável”, “uma
proposta prática de superação, pelo menos em parte, dos aspectos opressores percebidos na
93

realidade”. Isto é, o autor não aponta uma crença na ideia neoliberal de inviabilidade de um
mundo mais justo e de fato democrático, mas, sim, de entender que ver a história como
possibilidades rompe com o comodismo de que as coisas são como são. Este é um
posicionamento contrário às ideias de Guilherme, Giraffa e Martins (2018, p. 53), ao explicar
a utopia negativa de Gur-Ze'ev, que afirmam que “de uma forma pragmática precisamos, talvez,
aceitar que o sistema é este, que é difícil mudá-lo, e que qualquer mudança leva tempo”, pois,
para Freire (2014/2021, p. 69), a utopia e o sonho devolvem o futuro que “deixa de ser
inexorável e passa a ser o que historicamente é: problemático”.
Considerar a pedagogia de Freire como “mecânica”, lembra-me das constantes vezes
que o pedagogo precisou pontuar que “muitos dos(as) educadores(as) que me utilizam de modo
superficial como um meio para resolver seus problemas técnicos pedagogicamente são, em
certo sentido, turistas freirianos” (FREIRE, 2014/2021, p. 93). O autor também alertava a
muitos(as) pesquisadores(as) e educadores(as) que se limitavam à obra Pedagogia do
Oprimido, escrita nos anos 1970, como se fosse sua única obra, de que “meu pensamento veio
evoluindo e tenho vindo constantemente aprendendo a partir de outros por todo o mundo”
(FREIRE, 2014/2021, p. 96).
Como último ponto discordante que cabe aqui destacar é que, ao diferenciar o papel do
professor em Gur-Ze’ev e Paulo Freire, Guilherme e Morgan (2018) utilizam o termo bem
conhecido de Gur-Ze’ev do “professor improvisador”, mas contrastam com o “professor
político”, termo que Freire não usa em suas obras. Dessa forma, reduzir o educador freiriano
apenas ao termo isolado ‘político’ é quase uma aproximação ao pensamento do Escola Sem
Partido, visto que há quase uma conotação dogmática. Freire falava em “educador
progressista”, “político e artista”, que educar é colocar teoria do conhecimento em prática como
um ato político, mas também um ato estético, afirmando que
Essas três dimensões estão sempre juntas, momento simultâneos de teoria e prática,
de arte e política. [...] A clareza com relação à natureza política e artística da educação
tornará o professor um melhor político e um melhor artistas. Nós fazemos arte e
política quando ajudamos na formação dos estudantes, saibamos disso ou não
(FREIRE, 2014/2021, p. 73).

Não podemos separar essas três dimensões ao pensarmos no educador freiriano, no


entanto, bell hooks (2017) utiliza o termo “educador engajado”, que considero muito pertinente,
pois une a educação progressista com holística, dando ênfase ao bem-estar, pensamento de
Thich Nhat Hanh. hooks é um excelente exemplo de educadora/pesquisadora que reinventou e
revisou Freire, sua pedagogia engajada propõe “criar um clima ideal para o aprendizado se
94

compreendermos o nível de consciência e inteligência emocional dentro de sala de aula”


(HOOKS,2020, p. 47).
Pelas razões resumidamente argumentadas, compreendo a importância de revisar e
reinventar Freire nos espaços em que atuo, ao tempo que pertenço e através de metodologias
condizentes com os atuais desafios, no entanto, sem perder os princípios de uma prática
educativa que vise a libertação. Por essas razões, mantenho o termo “contra-educação”, pois
pela definição de Tiburi (2013), interpreto que Freire sempre foi contra-educação, o que nos
cabe é estudá-lo profundamente e reinventá-lo na Sociedade das Plataformas.
Se, em 2013, Tiburi conclamava uma contra-educação por perceber que a educação
estava “humilhada pelo seu rebaixamento à informação, à aprendizagem de tecnologias que
servem, pôr fim, à ideologia do capital” (2013, p. 39), a contemporaneidade exige um retorno
a essa proposta de reação, uma contra-educação, ou seja, o contrário da humilhação pela
dominação que a usa enquanto a destrói, o contrário do que propõe o Escola Sem Partido. O
“contra”, nesse sentido, se refere à sua forma positiva, de contrariar a educação majoritária que
serve aos interesses do mercado, da qual é possível fazer uma analogia com o movimento de
contracultura (auge na década de 1960), que opunha-se aos valores tradicionais conservadores
e a cultura dominante do consumismo.
Retomando pensadores como Humberto Maturana e István Mészáros, Tiburi (2013) faz
algumas colocações sobre o pensar em educação: se ela está conectada ao projeto de país, qual
seria o nosso projeto? A educação, sendo soberana, pode romper com a condição reprodutora
de interesses econômicos, porém, para que seja soberana, e parte da construção de um país,
precisaria estar livre “de coações e violências” (TIBURI, 2013, p. 38). A autora via a educação
como um campo que estava sendo desprezado, que necessitava de uma crítica e uma autocrítica,
para que pudesse tornar-se “a comunidade real ocupada com a emancipação de todos” (TIBURI,
2013, p. 38).
Segundo Tiburi (2013, p. 38), a “contra-educação não é somente uma política de
contraposição ao poder ou à violência na qual a sociedade e educação podem ter se tornado,
mas a autorreflexão crítica da educação no sentido de uma autorreflexão ética”. Como parte
dessa reflexão, Tiburi (2013) já alertava sobre o poder como cálculo sobre a vida e morte e de
como a violência se apresentava como um projeto de Estado pautado no capital, sendo
importante, portanto, uma reflexão sobre o ódio, pois esse é o “fator subjetivo que se objetiva
na ordem social” (TIBURI, 2013, p. 40). Inclusive, na educação, afirmando que o ódio era: “o
fio antirrelacional na cena educacional brasileira que se esconde atrás do sacrossanto
cordialismo que impregna nossas relações. Traduzido em cinismo e hipocrisia que organizam
95

nossos circuitos de poder público e privado” (TIBURI, 2013, p. 40), prevenindo que deveríamos
estar atentos à sua atuação.
Sendo o artigo publicado em 2013, podemos dizer que hoje já nem precisamos ficar
atentos, pois o ódio está bem visível e operando com força total. Com o avanço digital, o ódio
(afeto criado, estimulado e manipulado culturalmente) como fonte de lucro foi impulsionado,
pois ele promove engajamento gerando dinheiro na monetização de publicidade (TIBURI,
2022). Segundo reportagem de Tatiana Dias (2018), do Intercept Brasil, posts que provocam
reações emocionais são mais compartilhados, gerando maior lucro71 publicitário, pois
[...] o conteúdo com apelo emocional é, normalmente, o que dá certo e retém atenção,
o algoritmo passe a levar nossas preferências ao extremo. Até a radicalização. O
Facebook, que privilegia conteúdos compartilhados por amigos, se tornou um
ambiente fértil para a disseminação de notícias falsas. Geralmente apelando para o
emocional com chamadas duvidosas, elas têm 70% mais chance de se espalharem,
segundo um estudo do MIT. Um estudo do Pew, um instituto de pesquisas, mostrou
que posts polêmicos e que geram indignação recebem em média três vezes mais
comentários e são duas vezes mais compartilhados no Facebook. Nada disso é
aleatório. É o coração de seus modelos de negócio, que geram lucro em cima da nossa
atenção.

O ódio já não precisa ser contido ou escondido, uma vez que ele é valorizado pelo
sistema como mercadoria que pode ser comprada ou vendida (TIBURI, 2022), adquirindo
grande valor quando usado para fins políticos. Através da desvirtualização do direito à liberdade
de expressão, previsto no art. 5º, IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), essa liberdade
precisa ser conciliada com os demais direitos fundamentais, isto é, ela termina se há incitação
a práticas de atos violentos ou fira outros direitos da Constituição. No entanto, como aponta
Lobo (2018, p. 91-92),
[...] o desvirtuamento do conceito parte, justamente, dos representantes do poder
público e da mídia oligárquica. Em outras palavras, são justamente os conglomerados
de mídia e a elite política que mais têm se utilizado do direito à liberdade de expressão
para garantir seus próprios interesses e para garantir a manutenção de sua própria
ordem. Não só a grande mídia – oligárquica – domina as redes de informação em nível
nacional, como também, uma cepa bastante variada de políticos e homens públicos
que viram nesse direito fundamental de liberdade de expressão o bode expiatório ideal

71
A nível de exemplo, segundo reportagem da BBC News Brasil (2021), uma investigação realizada para apurar
a formação e atuação de milícias digitais, especializada na propagação de mentiras, calúnias, ódio e conteúdo
antidemocrático, pela Polícia Federal (PF) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) “apontaram que 12
canais no YouTube de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro receberam cerca de US$ 1,1 milhão em
monetização dos vídeos. O valor, que vai de junho de 2018 a maio de 2020, corresponde a cerca de R$ 4,2 milhões
em valores convertidos com o câmbio médio da época” (MAGENTA; SCHREIBER; 2021). A investigação
apontou o faturamento dos canais, no qual o mais lucrativo, Folha Política, chega a faturar de R$ 50.000,00 à R$
100,00 por mês. Conforme de Luana Patriolino, do Correio Braziliense (2022), as investigações foram arquivadas
a pedido do procurador da República, Augusto Aras, porém novo inquérito foi aberto para investigar milícias
digitais e sua relação com o presidente do Brasil Bolsonaro e aliados, até mesmo no próprio Planalto, formando o
denominado “gabinete do ódio”, estando no momento na terceira prorrogação do inquérito.
96

para enquadrar seus discursos inflamados de ódio e infâmia contra minorias, ideais e
debates, seja lá de qual natureza for o debate.

O afeto negativo do ódio se expressa tanto de formas subjetivas quanto objetivas,


conforme aponta Tiburi (2013, p. 41), através de violência simbólica, física, calúnias, agressões
verbais, ou através da “inviabilização de projetos”, como controle do ensino e tratamento dado
aos professores, como baixos salários e “cobrança de resultados puramente numéricos como se
estudantes e professores fossem operários escravizados em um sistema de produção ou meros
problemas estatísticos a resolver” (TIBURI, 2013, p. 41). Um ódio que também pode ser
institucional e político e, também, reproduzido na educação pela burocracia, nas relações e nas
formas, metodologias e objetivos do ensino.
A educação para além do capital pressupõe uma relação que vivencie o amor, não de
forma romantizada, mas para “institucionalizar o amor na forma de proteção a direitos humanos
e de solidariedade ética e política para com os que sofrem” (TIBURI, 2020a, p. 45). Práticas de
ódio, exclusão e preconceitos “de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser
humano e nega radicalmente a democracia” (FREIRE, 1996/2013, p. 37), portanto, a prática do
amor (institucional, relacional ou interpessoal) que inclui é democrática e instiga a democracia,
ou seja, é uma contra-educação, contrária ao ódio e à redução de tudo à mercadoria.
bell hooks (2017), ao escrever sobre Eros, erotismo e o processo pedagógico, chama a
atenção para aspectos que também se relacionam com o amor, relembrando sobre como o corpo
precisava ser negado, reprimido e/ou apagado para passar despercebido nas instituições
escolares. Penso que fomos educados aprisionados, isto é, escolas continuam domesticando e
aprisionando corpos; e, na era digital, esses corpos ficam ainda mais aprisionados, adoecendo
física e mentalmente. A pedagogia crítica feminista não separa corpo de mente, não nega Eros
e erótico72 no aprendizado (HOOKS, 2017), ou seja, manifestar carinho, ensinar
apaixonadamente e respeitar o outro de forma amorosa e empática são atitudes estranhas ao
princípio competitivo do capitalismo que “condiciona o modo como pensamos sobre o amor e
o carinho, o modo como vivemos em nosso corpo, o modo como tentamos separar a mente do
corpo” (HOOKS, 2017, p. 263). Freire (1996/2013, p. 138) também falava da importância do
querer bem, lembrando que “a afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade”,

72
hooks (2017) atenta que reduzir a palavra “erótico” ao sentido sexual mostra nosso apartamento do resto da
natureza, pois não concebe a força ampla a qual remete, que inclui a força motriz capaz de impulsionar formas de
vida à existência real. Eros é a força que move a auto realização, que dá a energia e revigora a imaginação crítica,
as discussões e as formas de aprendizagem.
97

lembrando que a prática educativa, a clareza política e a formação científica não são contrárias
à alegria, à afetividade e ao amor.
A contra-educação depende de uma reflexão ética, que perpassa a perguntas como “o
que estamos fazendo uns com os outros?” ou "onde queremos chegar?”, questões que sem ética
e educação, educação e ética ou, ainda, educação-ética, não podemos responder de forma a
vislumbrar um futuro que seja outro (TIBURI, 2013). Freire (1996/2013) já apontava que ética
e educação deveriam estar sempre juntas, estando presente em todas as suas dimensões,
inclusive na formação dos professores através de diálogos que, ao tratar da educação ética,
toque em questões como privilégios. Tiburi (2013, p. 47) compreende ética como uma “postura
que leva em conta a existência do outro, seja ele, a natureza, a cultura, o próximo”, uma
educação não ética torna-se “apenas um instrumento nas mãos dos poderes estabelecidos, um
instrumento que é, ele mesmo, meio de manipulação cujo objetivo é apenas sua própria
autoconservação” (TIBURI, 2013, p. 48). Portanto, uma educação ética pauta-se no diálogo e
na ação, evitando falar sobre ética na educação, mas fazendo uma educação ética.
A crítica da educação como mercadoria já era importante há dez anos, então, hoje com
a crescente onda neoliberal/fascista/totalitarista/hipertecnológica fica ainda mais claro que
“uma educação voltada para os interesses do mercado nunca poderá ser ética e nunca escapará
de uma política do ódio como oposição ao outro, nunca poderá realizar o sentido interno da
própria educação como formação do ser humano para a liberdade e a emancipação” (TIBURI,
2013, p. 54). Sendo assim, a contra-educação é uma educação ética, que é definida como
[...] uma espécie de contracultura da educação, a um pensamento crítico de
desmontagem das opiniões, a meu ver urgente em nosso tempo. Refiro-me às
estratégias de emancipação que escapam ao controle das instituições. A uma
educação fora da norma, engajada com as lutas e movimentos sociais. Se me é
permitida uma comparação, penso em uma educação que seja mais arte
contemporânea do que publicidade. Que provoque estranhamento, mais do que
confirmação daquilo que já se sabe. Uma educação contra a barbárie escamoteada
do consumismo capitalista. Uma educação em que a teoria não seja serva do bom
comportamento e do cordialismo, nem da inveja e da avareza. Por “contra-educação”
entendo, pois, o conjunto dos diálogos, debates e práticas que visam justamente
desmontar discursos e práticas pré-estabelecidos como verdadeiros no campo da
educação (TIBURI, 2013, p. 55-56, grifos meus).

Visando romper com o utilitarismo de uma educação para o capital, acredito na


educação contrária, em uma educação antirracista, feminista, crítica, libertadora, pautada na
experiência, no diálogo, no estranhamento para com o que parecia naturalizado, portanto, uma
educação transformadora/transgressora. Por tudo isso, o texto e os repertórios serão
apresentados através do enlace teatro e letramento histórico - uma junção que argumento estar
98

coerente como uma proposta engajada com a contra-educação - que promova uma educação
libertadora.

| Cena 10: o texto e os repertórios

Concordante à proposta em contra-educação, acredito que o teatro possui uma


potencialidade facilitadora para o letramento histórico. Concordo com autores e autoras, como
Freire, hooks e Tiburi, que defendem que ensinar é um ato ético, político e estético.
Compreendo que ler o mundo, buscar desocultar as desigualdades dissimuladas, compreender
os mecanismos atuais de manipulação e de controle, estranhar o que é naturalizado, buscar a
compreensão histórica e tantas outras práticas que produzem conhecimento, são substâncias de
uma pedagogia libertadora/transgressora. Uma pedagogia que diverge de toda “feiura” do
neoliberalismo, mostrando toda a “boniteza”, como bem dizia Freire.
Para tanto, busco pistas/cenas sobre a potencialidade do enlace teatro/letramento
histórico em autores de perspectivas teóricas diversas, linhas epistemológicas diferentes, mas
que convergem no pensar uma educação contra a educação neoliberal. Acredito ser importante
(re)conhecer aspectos relevantes de diferentes linhas de pensamento, desde que estas convirjam
no esclarecimento da questão da pesquisa e não discordem no sentido de contribuir com uma
ideia de contra-educação.
O letramento73 histórico é fundamental para combater o desconhecimento e as
distorções de nosso tempo, que tentam esconder problemas como racismo, múltiplas
desigualdades e estruturas de dominação. Apesar de haver muitos entendimentos sobre o
significado de letramento, é importante salientar que esta pesquisa se fundamenta na definição
de letramento “em seu sentido mais forte e radical” (SILVA; PALUDO, 2020), isto é,

73
Segundo Silva e Paludo (2020), o debate sobre letramento no Brasil acentuou-se a partir dos anos 80, através
de pesquisas, de laboratórios experimentais e de materiais produzidos para a formação de professores, a fim de
contribuir com o enfrentamento do analfabetismo (inclusive a nível funcional) nos países considerados
subdesenvolvidos. Assim, o letramento foi apresentado como um instrumento eficaz e capaz de contribuir com a
problemática de carência de acesso à aprendizagem das classes populares, pois a educação a nível global estava
sendo convocada a inserir a todos no mundo do trabalho, conforme orientação da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e do Banco Mundial. É importante ressaltar que o termo
“letramento” possui diversos campos de entendimento e definições, porém, Silva e Paludo (2020) destacam que
todos estão associados ao conceito de alfabetização e inserção no mundo do trabalho. Inclusive, as autoras
destacam dois conceitos de letramento: o primeiro relacionado “aos processos de aquisição da leitura e da escrita,
em um sentido que compreendemos como forte, o qual adentra, mais profundamente, na relação dos sujeitos com
o conhecimento e com o processo de transformação social. Já o segundo campo de entendimento desse conceito
compreende como, em seu sentido fraco, associa-se à utilização do código escrito, como ferramenta para a
desenvolver a habilidade com a escrita, a leitura e com os demais artefatos culturais” (SILVA; PALUDO, 2020,
p. 5).
99

letramento como leitura de mundo e da palavra, segundo o pensamento freiriano, que acredita
que a “educação consegue dar às pessoas maior clareza para ‘lerem o mundo’, e essa clareza
que lançará um desafio ao fatalismo neoliberal” (FREIRE, 1967/2020, p. 50). Uma concepção
de letramento que abarca a perspectiva crítica, problematizadora e dialética, com um propósito
de transformação das relações sociais, que vai além de meras compreensões das palavras
escritas (SILVA; PALUDO, 2020).
Ler o mundo que vivemos e desnudar o que está oculto é fundamental, pois, segundo
Souza (2018, p. 56), “só a percepção adequada da dimensão cultural e simbólica da vida social
nos permite uma compreensão mais profunda e verdadeira da vida que levamos como
indivíduos". Essa compreensão é fundamental para “desmascarar e denunciar os usos perversos
do desconhecimento [...], usos que promovem interpretações cuja única razão de ser é a
legitimação de privilégios” (SOUZA, 2018, p. 56), assim como promover outras interpretações
mais justas e verdadeiras sobre nossa realidade.
Na perspectiva apresentada por Alexander Vianna e Maurício Ferreira (2017, p. 132), o
letramento histórico pode ser compreendido como
[...] configuração de operações culturais de sentido para a vida que se materializam
em formas expressivas-comunicativas com as quais as pessoas estabelecem
entendimentos sobre vínculos implicativos entre passado, presente e futuro.
Letramento histórico é, portanto, o coeficiente sociocultural em cada ator social que
tenha capacidade ou habilidade de criar ou compreender tropos ou efeitos de
linguagem (escritas, orais, gestuais, visuais e/ou audiovisuais) que operam escalas
figurativas vinculantes de relação de sentido entre passado, presente e futuro quando
se constroem entendimentos a respeito de pessoas, eventos e instituições, reais ou
imaginárias.

O letramento histórico, visto por uma perspectiva crítica-genética, pode ser “entendido
como a formação social de habilidades cognitivo-afetivas que criam, sugerem ou constituem
sentidos para a vida por meio de concepções de vínculos implicativos entre passado e
presente/futuro” (VIANNA; FERREIRA, 2017, p. 128). Visto que o letramento histórico
crítico-genético está fundamentado em diversos princípios, destaco a relevância das artes como
potência facilitadora do letramento histórico. As linguagens das artes são um dos modos de
propiciar “ações expressivas e cognitivo-afetivas de consciência histórica que possibilitem o
combate cultural contra valores e formas de opressão cotidianas e institucionalizadas, tanto
mais relevantes num contexto nacional de viradas conservadoras e fundamentalistas”
(VIANNA; FERREIRA, 2017, p. 132). Práticas artísticas como a performance teatral, por
exemplo, são métodos “expressivo-comunicativos” que confrontam e tornam estranho aquilo
que até então parecia natural e posto, provocando novos olhares e transformações que rompem
com o pensamento de continuidade (VIANNA; FERREIRA, 2017).
100

É importante salientar o entendimento de letramento histórico como possibilidade de


provocar a compreensão de que a história não tem uma função produtiva ou um aprendizado
que se restrinja à aquisição e à acumulação de informações sobre o passado, mas que
compreende a história como aquela em que sua “sina é criar conceitos”, conforme apontam
Nilton Pereira e Gabriel Torelly (2015, p. 91). Os conceitos são sempre “instáveis e flexíveis”
(PEREIRA; TORELLY, 2015, p. 90); instáveis porque a realidade e seus contextos exigem
novas pesquisas historiográficas que criam novos conceitos e porque surgem novos problemas
que também exigem novas explicações conceituais. Os autores ainda destacam que “o caráter
flexível do conjunto de conceitos que chamamos História. Quer dizer que eles conservam
significantes, mas mudam de sentido, incorporam outros acontecimentos, de modo que cada
um possui um espaço-tempo específico, irrepetível e historicamente datado” (PEREIRA;
TORELLY, 2015, p. 91), eis aí o porquê de sua flexibilidade.
Fundamentados em Gilles Deleuze, Michel Foucault e Henri Bergson, Pereira e Torelly
(2015, p. 91) explicam que a aprendizagem conceitual é o âmago de uma aula de história, assim,
o valor do conceito está na possibilidade de “expansão da vida”, entendida como formação
histórica. Sendo assim, na Educação Básica, o propósito do ensino pode ser entendido como a
formação de uma “consciência histórica e um pensar historicamente”, supondo ser tanto um
quanto o outro o desenvolvimento de uma arte de viver que problematiza o presente e olha para
o passado” (PEREIRA; TORELLY, 2015, p. 91). Esse pensar historicamente implica “uma
relação determinada entre o passado e o presente” que não vê o passado como algo rígido, mas
indeterminado, que por um processo exploratório pode “assumir a compreensão de um
conceito” (PEREIRA; TORELLY, 2015, p. 92-93). Ou seja, um passado inesgotável que
precisa de um presente para lhe dar significado e permitir a criação de conceitos. Segundo
Pereira e Torelly (2015, p. 93),
[...] o passado não é um conjunto de histórias contadas, mas uma potência aberta à
interpretação. Logo, o conceito como operador dessa interpretação nasce sempre do
desmedido passado. A manutenção dessa bruma de desmesura pode bem tornar a aula
de História uma aprendizagem dos conceitos, mas uma contínua aprendizagem do
passado, como que uma brincadeira de desenhar e imaginar passados.

Sendo assim, Pereira e Torelly (2015) defendem que o jogo é um meio estratégico para
a construção e compreensão de conceitos, dessa forma, os argumentos desenvolvidos pelos
autores podem ser facilmente associados ao teatro também, visto sua capacidade lúdica e,
portanto, serão ao longo dessa dissertação correlacionados. O jogo, assim como no teatro,
possibilita
[...] um tom de brincadeira com a história, que nos reporta a algo que excede o
presente, pois que o estudante é levado a propor outros presentes, outras configurações
101

imaginárias que resultam do contato com o passado. Trata-se de um ensaio de


hipóteses sobre possibilidades de injunções históricas que não aconteceram na
realidade histórica, mas se apresentam com o que poderia ter sido ou o que a partir do
conhecimento do conceito é uma interpretação possível (PEREIRA; TORELLY,
2015, p. 94).

As aulas de história, o letramento histórico - que é construção e compreensão de


conceitos capazes de dar significados e significantes ao passado e ao presente - e a criação de
futuros não precisam ser desenvolvidos de uma forma dura ou utilitária, mas emergir de práticas
lúdicas, imagéticas ou “fabulatórias”, como prefere Pereira e Torelly (2015). hooks (2020) dava
grande valor à imaginação na educação, afirmando que nossa sociedade gasta seu tempo
assistindo televisão - atualizo como navegando na internet - o que bloqueia a criatividade. A
criança, da qual ainda lhe é permitido imaginar, à medida que cresce “a imaginação passa a ser
vista como perigosa, uma força que possivelmente impediria a aquisição de conhecimento”
(HOOKS, 2020, p. 104), um traço da cultura do dominador, que busca reprimir e moldar
pessoas em um padrão que sirva aos seus interesses. Para tanto, uma contra-educação visa
libertar a imaginação e a criatividade, compreendendo-as como potências que possibilitam a
construção de conceitos e, portanto, o conhecimento, afinal, “o estudante ao aprender história
não pode ser apenas o receptáculo do conceito já definido, mas precisa ter uma experiência com
o passado para recriar o conceito no seu espírito” (PEREIRA; TORELLY, 2015, p. 98).
No artigo Aprender por aprender História: experiência e expansão da vida, de Lucas
Silva, Nilton Pereira e Marcello Giacomoni (2020, p. 259), os autores defendem uma
aprendizagem da experiência que foge do utilitarismo ou presentismo típicos de uma sociedade
capitalista, para tanto, sua importância está em problematizar o presente “como uma provocação
estética que envolve gosto e fruição”. Portanto, ela lida com imaginários que temos acerca do
passado, com representações e narrativas que diferentes sociedades fizeram sobre si e sobre os
outros, criando conceitos e buscando sentidos. Sendo assim, é importante que uma aula de
história fuja da pressa e da produtividade que o capital cobra diariamente, sendo uma aula
provocativa, aberta aos acontecimentos, que permita a vivência de experiências e evite a rapidez
das opiniões (SILVA; PEREIRA; GIACOMONI, 2020).
A ideia do aprender por aprender, desenvolvida por Silva, Pereira, Giacomoni (2020),
não apresenta-se em um sentido de desvalor ao conhecimento, nem tampouco apolítico ou não
ético, pelo contrário; os autores defendem que o aprender por aprender é profundamente
politizado, pois permite que a beleza da aprendizagem histórica surja a partir das experiências,
não oprime o caos da criação e reconhece a beleza do encontro. Na sua versão de aprendizagem,
a resistência está no caminho contrário, o de proporcionar o que o sistema constantemente nos
102

rouba. O conhecimento histórico não é uma coisa menor, pelo contrário, ele torna-se uma
necessidade, pois experiências e trocas geram curiosidades e é a curiosidade que impulsiona a
busca pelo aprender. Freire (1996/2013, p. 84) dizia que a curiosidade era a pedra fundamental
do ser humano, a que faz “perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re-conhecer”.
Segundo Silva et al. (2020, p. 376), “dada a importância política do ensino de história”,
temos como desafio nessa área construir práticas educativas “que promovam além do
pensamento crítico, a criatividade, a ludicidade, a sensibilidade, a crítica, a inovação e a
produção de novas subjetividades”. Para tanto, precisamos buscar “uma aprendizagem da
experiência e uma aprendizagem com valor estético” (SILVA; PEREIRA; GIACOMONI,
2020, p. 259), que rompa com os processos educativos rotineiros, fragmentados, repetitivos,
monótonos e de massificação (SILVA et al., 2020). Gabriel Pinto e Leonardo Moreira (2019,
p. 136), a partir dos seus estudos sobre teatro científico, apontam que o processo da criação
artística, seja de uma peça de teatro ou de um personagem “é extremamente rico e diverso,
provocando uma imersão dos envolvidos em sensações, emoções, pensamentos, que
necessariamente são traduzidos e objetificados em ação, gesto, olhar, texto, fala, sons, cenário
etc.”, tornando a ligação entre arte, ciência e ensino uma potência possível.
O teatro é uma linguagem artística, uma linguagem que pode “transformar-se em
instrumentos didáticos no ensino aprendizagem de conhecimentos históricos, culturais,
científicos e éticos” (ALMEIDA, 2016a, p. 85). O uso do teatro como recurso ou ferramenta
no ensino de história, tem sido discutido em produções acadêmicas e no âmbito da escola,
reconhecendo seus benefícios e suas possibilidades. Maria Helena Almeida (2016a, p. 87)
destaca que “há algum tempo, novas correntes historiográficas, especialmente no campo da
Nova História Cultural, contribuem para que os professores pensem conceitualmente a sua
prática pedagógica [...]” compreendendo outras dimensões sociais além da política e
econômica, mas também a cultural, sendo esse um movimento que reverberou no ensino de
história, que também passou a ampliar concepções e a abrir-se para uma multiplicidade de
métodos (ALMEIDA, 2016a). Assim sendo, o teatro passou a ser utilizado como ferramenta ou
recurso metodológico, uma alternativa que veio a corroborar com o letramento, visto que
[...] o teatro, como recurso metodológico, ensina os alunos a viver e a ampliar seus
horizontes culturais, bem como perder a timidez e se colocar no lugar do outro,
tornando-se, com isso, um artefato eficaz para o desenvolvimento da capacidade
cognitiva, uma vez que, desperta nos alunos o interesse por temas, textos e autores
variados (ALMEIDA, 2016b, p. 60).

Cabe ressaltar que não venho utilizando nesta dissertação o teatro como recurso potente
no ensino de história, uma vez que minha proposta, ao emergir na potência da linguagem teatral,
103

é compreendê-lo para além de um recurso, isto é, focar no enlace possível entre a linguagem
teatral e o letramento histórico, e isto está longe de limitá-lo a um recurso, mesmo que ele
também possua vultoso valor. Em outras palavras, o foco desta pesquisa não é o ensino de
história ou a prática teatral com adolescentes; o foco é na linguagem potente da arte capaz de
fomentar conhecimento e enfrentar os desconhecimentos de nossos tempos. Sendo assim, não
importa se é numa aula de história formal, se é numa oficina livre de teatro da qual o objetivo
nem está ligado ao conhecimento histórico74, o que importa nessa pesquisa é compreender como
a linguagem teatral pode possibilitar o letramento histórico. O teatro possui uma linguagem
própria composta por diversos elementos, segundo Flávio Desgranges (2006, p. 87-88),
[...] enquanto linguagem artística, o teatro pode valer-se de variados elementos de
significação para comunicar algo aos espectadores, utilizando-se de diversos signos
visuais (os gestos do ator, os adereços de cena, os figurinos, o cenário, a iluminação)
e sonoros (o texto, as canções, as músicas, os efeitos sonoros). Há encenações teatrais
que utilizam ainda signos olfativos (aromas de perfumes ou essências, cheiro de
defumador, odor de alimentos conhecidos, etc), ou signos táteis (em que a cena - os
atores ou objetos cenográficos - propõe algum tipo de contato corporal com os
espectadores).

O importante nessa pesquisa é compreender a potência dessa linguagem, que é capaz de


permitir aprendizagens vivas, com valor estético e experiencial. O teatro desenvolve a
performance pessoal e interpessoal, assim como habilidades de comunicação e de expressão,
resgatando a espontaneidade, a criatividade, a liberdade do corpo e do pensamento. A prática
teatral proporciona uma gama de possibilidades de aprendizagens, seja através do lúdico, da
performance, do improviso, do conhecimento de si, do corpo e do contato com outro,
constituindo um mosaico de elementos exequíveis. Dentro do teatro há muitos campos ricos em
produção de conhecimento, como o teatro científico, de improviso ou performático.
Estudos sobre pedagogias da performance, por exemplo, apontam que seu uso
pedagógico vai muito além situações artísticas, conforme afirmam Gilberto Icle e Mônica
Torres Bonatto (2017), pois possibilita problematizar a realidade, relações sociais, identidades,
desigualdades, cotidiano, políticas governamentais, fases da vida, enfim, a expressão artística
preza pela liberdade através da prática da liberdade. A performance é um exemplo de
possibilidade para o letramento histórico, visto que “na performance fazemos alguma coisa que
nos permite refazer‑nos a nós mesmos” (ICLE; BONATTO, 2017, p. 9). Ela parte do real, de
como cada estudante lê o mundo, mas não fica nisso, também possibilita, através da criação,
novas visões, novos jeitos de olhar e compreender o mundo e, para tanto, o conhecimento

74
Relembro do relato que fiz no Ato I, no qual eu ministrava uma oficina de teatro na escola, sem objetivo algum
com o letramento histórico, mas que acontecia naturalmente, como foi o caso da peça Anos de fúria.
104

histórico contribui estando aliado às artes. Icle e Bonatto (2017, p. 9) destacam que os estudos
em performance, oriundo dos anos 1970, já abordavam seu caráter interdisciplinar, pois não se
restringe ao formal e ao ensino de artes, mas também às “performances da vida cotidiana, não
apenas reposicionando as fronteiras entre as diferentes linguagens artísticas, mas entre a arte e
a vida”, rompendo com paradigmas de uma escola que aprisiona corpos e mentes.
De acordo com Icle e Bonatto (2017, p. 10),
[...] as situações de ensino‑aprendizagem podem assumir características observadas
em proposições da Arte da Performance e, também, em alguns rituais, jogando com
as subjetividades dos participantes e com a efemeridade dos processos, convertendo
a sala de aula em um espaço de invenção e de criação; em um espaço liminal.

A performance rompe com o paradigma de educação tecnicista, pois coloca o corpo no


centro dos processos de aprendizagem e de ensino, colocando os estudantes em ação, criação e
ação. Através do que Icle e Bonatto (2017, p. 14) chamam de “atitude performativa”, estudantes
intervêm no cotidiano através de suas ações, buscando a transformação da realidade a partir do
pensamento crítico.
Ao descrever o trabalho pedagógico com performance, Icle e Bonatto (2017) destacam
a importância do debate no processo. Essa constatação, sobre a centralidade do debate no
processo criativo, torna-se um relato importante, pois é possível fazer uma conexão sobre como
a performance pode contribuir com o letramento histórico. Segundo o relato dos autores, ao
abordar temas relevantes, como negritude, que “não apenas a história que está nos livros
didáticos nos auxiliou a aprofundar o debate sobre o tema da negritude, mas também nossa
própria história, agora compartilhada com o grupo” (ICLE; BONATTO, 2017, p. 16), isto é, o
letramento histórico acontece de forma natural, a partir da necessidade, unindo leituras formais
com conhecimento da experiência dos envolvidos. Este é um processo que corrobora com a
defesa e a importância de proporcionarmos “uma aprendizagem da experiência e uma
aprendizagem com valor estético” (SILVA; PEREIRA; GIACOMONI, 2020, p. 259).
A partir de vivências práticas-performativas é possível discutir formas de trabalhar com
estudantes, de desenvolver diálogos com o mundo contemporâneo, com suas demandas e
problemáticas, bem como fazer conexões com aquilo que eles vivenciam no seu dia-a-dia. A
performance possibilita a ligação com o cotidiano e com práticas transdisciplinares de ensino e
de aprendizagem, pois a performance é aberta, orgânica e agrega múltiplos saberes,
possibilitando a vivência de práticas teatrais que valorizem o caráter científico, epistemológico,
sensibilizador e construtor de conhecimentos. Segundo Josette Féral (2008, p. 209),
[...] uma das principais características desse teatro é que ele coloca em jogo o processo
sendo feito, processo esse que tem maior importância do que a produção final. Mesmo
105

que essa seja meticulosamente programada e ritmada, assim como na performance, o


desenrolar da ação e a experiência que ela traz por parte do espectador são bem mais
importantes do que o resultado final obtido.

Segundo Desgranges (2006, p. 87), o teatro e suas possibilidades têm sido explorados
em “diversas instituições educacionais e culturais, preferencialmente, a partir da prática com
jogos75 de improvisação, e isto porque se compreende que na investigação proposta por estes
exercícios o prazer de jogar se aproxima do prazer de aprender a fazer e a ver teatro”, uma vez
que a aprendizagem acontece com liberdade e regozijo, pois sua capacidade de fomentar a
imaginação, reflexão de si e do mundo e inventividade engendra “parâmetros para a sua criação
e a sua atuação, tanto na esfera da arte quanto na da vida” (DESGRANGES, 2006, p. 110).
Apesar de vários pesquisadores desenvolverem sobre a importância do lúdico no ensino escolar,
ainda é recente e pouco explorada a sua potencialidade, produção ou apropriação no ensino de
história, principalmente no final do Ensino Fundamental e Ensino Médio (SILVA et al., 2020).
Conforme pesquisa realizada por Silva et al. (2020, p. 379-380), “na última década,
pesquisadores e professores iniciaram um movimento de aproximação com os jogos. Muito
recentemente, a utilização de jogos no ensino de História tem sido abordada como uma
possibilidade de renovação das atividades didáticas”, destarte houve avanço no campo do
ensino de história sobre jogos, como tabuleiros, cartas, games digitais e RPG, mas ainda
precisam de uma aproximação com o fazer nas escolas, avançar em pesquisas sobre “os
resultados efetivos do uso dos jogos no chão da sala de aula no que diz respeito à relação
professor-aluno e demais interações sociais em sala, sobre a eficácia dos recursos lúdicos na
promoção das aprendizagens” (SILVA et al., 2020, p. 391). Penso, nesse sentido, que jogos
teatrais também podem ser mais estudados e vivenciados nas aulas de história ou em âmbito
geral da educação com adolescentes, assim como divulgados seus resultados de pesquisas nessa
temática.
Conforme pensamento de Nilton M. Pereira e Marcello P. Giacomoni (2018, p. 9), é
importante buscar a arte na aula de história, isto é, “uma espécie de arte do encontro, que se
apresenta como uma cisão onde não há o um (do aluno: identidade, perfil, tipo ou característica)
e o outro (do professor: definido, estabelecido, identificado), mas uma porção de indefinição

75
Segundo Dicionário do Teatro Brasileiro (2009, p. 176), “o termo jogo teatral (theater game) foi originalmente
cunhado por Viola Spolin. Mais tarde, ela registrou o seu método de trabalho como Spolin Games. A autora
americana estabelece uma diferença entre jogo dramático (dramatic play) e jogo de regras (game), diferenciando
assim a sua proposta para um teatro improvisacional de outras abordagens, através da ênfase, no jogo, de regras
e, no aprendizado, da linguagem teatral”. Ao longo dessa dissertação, utilizo “jogo teatral” em seu sentido amplo,
envolvendo tanto o dramático quanto o de regras, a não ser em casos que necessitem diferenciá-los para uma
melhor compreensão do que se deseja comunicar.
106

onde o encontro pode se dar”. Para tanto, os autores destacam uma diferença relevante entre
aprender e conhecer. Se conhecer se trata de reconhecimentos, assimilação de conteúdos e
definição de conceitos; aprender “parece ser algo de outra cepa, uma atitude bem mais elevada”
(PEREIRA; GIACOMONI, 2018, p. 11) que não se descola do ensinar, pois aprender pressupõe
abertura para encontros, e esses encontros precisam de uma suspensão do “eu”, deixando-se
provocar pelo novo. Segundo Pereira e Giacomoni (2018, p. 12), aprender é
[...] um mergulho no puro movimento intensivo da criação, por isto a
despersonalização e o desprendimento; o outro tempo é o da operação, quando o
conceito, uma vez formado, se torna parte do espírito daquele que aprende e ele se
torna um indivíduo capaz de operar com os conceitos, apontando para o futuro e para
a criação de novos modos de vida, bem como novas leituras do mundo. Mas, ao
mesmo tempo, disposto a sempre se voltar ao movimento, numa disposição contínua
a desprender-se de si.

Se aprender exige uma suspensão do “eu” para que possa surgir uma outra subjetividade,
a disponível para o encontro, então a aprendizagem é carregada de amor, pois o desprendimento
do “eu” e das certezas para se abrir a algo novo, imprevisível e incontrolável, e se constituir
numa subjetividade de abertura, pode ser lido como um ato de amor. Se compreendermos aqui
o amor como a versão preconizada por Pereira e Giacomoni (2018), que se referem ao amor
cortês do século XII (Europa Ocidental), um amor de vassalagem virtuosa para com uma
mulher, típico das poesias trovadorescas do sul da França, entendido como o esforço virtuoso
de desgarrar-se dos próprios interesses, da própria identidade para estar apto para receber o
amor da amada; usado como analogia, seria o desprendimento do “eu” e do utilitarismo criado
pelo capital para estar apto para o diálogo, o encontro com o outro e, portanto, a aprendizagem.
E se o conhecimento histórico não visa apenas o conhecer, mas aprender, o jogo tem
importância muito relevante, visto que
[...] jogar na aula de História é um belo exercício amoroso. Uma vez que o jogo
pressupõe uma entrega ao movimento absoluto da brincadeira e que jogar implica um
deslocamento. Um deslocamento do espaço, da ordem, das medidas, dos horários, das
imposições disciplinares, da avaliação, das provas, numa palavra, da obrigação
(PEREIRA; GIACOMONI, 2018, p. 14-15).

O jogo é um bom exemplo desse ato de amor, o ato em si de brincar, de estar presente,
de estar aberto, em movimento, em fluidez, em direção e com o desconhecido, o imprevisível
e, portanto, disponível ao aprender. A prática teatral instiga a dúvida, o estranhamento, o pensar,
a pergunta, a busca, provoca a reflexão, o descobrir ou, ainda, como sugere Constantin
Stanislavski (2001, p. 330): "a Arte confere beleza e dignidade e tudo que é belo e nobre tem o
dom de atrair”. Lembremos que Brecht (1978), ao explicar a importância de os atores
representarem acontecimentos como se fossem acontecimentos históricos, destacava a
107

importância da dúvida, um contraste com nosso momento de disputas de verdades, de verdades


absolutas, muitas vezes proferidas sem qualquer reflexão ou hesitação, que impulsione o
conhecimento. Segundo Brecht (1978, p. 84),
[...] acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para
nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é tomá-los
extraordinários. A técnica da dúvida, dúvida perante os acontecimentos usuais,
óbvios, jamais postos em dúvida.

O ato de jogar também insere-se no social, porque há “um problema a ser solucionado”
(SPOLIN, 2008, p. 5), um objetivo do qual o indivíduo se envolve em atingir, regras e acordos
coletivos para que o jogo aconteça. Segundo Viola Spolin (2008, p. 5), o jogo teatral provoca
crescimento, espontaneidade, liberdade, uma energia liberada capaz de transcender a si mesmo,
pois “a pessoa como um todo é física, intelectual e intuitivamente despertada”, dessa forma, o
todo manifesta-se. O corpo aprisionado e fragmentado, que hooks (2017) alertava que precisava
ser um só, em mente e corpo, para desejar e, portanto, ensinar/aprender, liberta-se e mostra-se
o que ele é: um todo orgânico, surgindo um indivíduo total (SPOLIN, 2008). Os jogos teatrais,
segundo Spolin (2008, p. 4), envolvem
[...] uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal
necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades
pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades
são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se
ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o
exato momento em que ela está verdadeiramente aberta para recebê-las.

O teatro conecta o lúdico, o corpo, a linguagem e o experienciar, além de promover


dúvida, estranhamentos e experiências, o desejo pelo aprender apresenta-se como orgânico,
natural, propiciado por suas práticas, conforme o pensamento exposto de Spolin (2008), que
percebe a abertura que o jogo teatral possibilita, ou seja, essa abertura promove experiências
que levam a múltiplos e imprevisíveis aprendizados. Silva, Pereira e Giacomoni (2020, p. 273)
destacam a beleza da aprendizagem histórica quando relacionadas a experiências significativas:
“pensar a aprendizagem como experiência implica produzir atividades de ensino que permitam
que os aprendizes se deixem afetar pelo acontecimento de cada conhecer e, assim, decidam
aprender por aprender”. Dessa forma, práticas teatrais possibilitam esse desejo por aprender
organicamente, além do desejo por conhecimento em tempos de desinformação, manipulações
e ignorância, confirmando-se como um ato de resistência e contra-educação.
Ao pesquisar os processos de criação teatral coletivos e buscando compreender os
modos de aprendizagem do teatro contemporâneo, Desgranges (2018) fez constatações das
quais podemos fazer analogias com a potência do teatro como linguagem para letramento
108

histórico. Segundo Desgranges (2018, p. 25), a criação teatral envolve pesquisa, pois “ao se
colocar em pesquisa, o artista quer sair do seu lugar em uma busca que se faz tão necessária
quanto vital em direção ao desconhecido, uma trilha movida pelo desejo de aprendizagem”, a
necessidade de conhecimento impulsiona a pesquisa histórica, contextualização territorial
temporal, conhecimento sobre subjetividades, enfim, um leque de aprendizados, uma vez que
fomenta a troca de pontos de vistas.
Desgranges (2018) cita o “estado de improviso”, um procedimento inventivo no qual
cenas ou peças sem roteiro são interpretados a partir da espontaneidade e rápido pensamento,
desses momentos surgem tensões, narrativas, leituras de mundo que emergem e podem ser
trabalhadas didaticamente. Outro elemento destacável, citado pelo mesmo autor, é a
colaboração, uma vez que o processo criativo pode ser colaborativo, inclusive em sua produção
de conhecimentos em que “todos os integrantes do grupo sejam impelidos a se manifestar e a
contribuir para o desenrolar do processo” (DESGRANGES, 2018, p. 33), dessa forma,
compreendemos que o fazer coletivo gera conhecimento coletivo.
Nesta cena, procurei sintetizar a possibilidade de diálogo entre letramento histórico,
teatro e o lúdico. Destacando aspectos do ensino de história que estariam em consonância com
a prática teatral, visto que esta pode impulsionar e experienciar a construção e compreensão de
conceitos caros à história. Por certo, o teatro apresenta uma gama de possibilidades potentes de
aprendizagem, destaquei, dentre eles, a performance e os jogos (que podem ser variados
também, como dramático, de improviso, com regras ou não). Procurei novamente esclarecer
que o foco dessa pesquisa não são aulas de história nem oficinas de teatro, mas a potência da
linguagem teatral possibilitadora de letramentos, em especial, o histórico.

| Cena 11: os protagonistas

Os relatos que serão apresentados no próximo ato se referem a práticas realizadas com
estudantes do quinto ao nono ano do Ensino Fundamental. Apesar dessa pesquisa focar nos
adolescentes (a partir dos 12 anos), esse parâmetro não é rígido, pois é meramente legal, uma
vez que pré-adolescentes já possuem muitas características de adolescentes e a adolescência
também continua com muitos traços de infância. Mas por que, então, preferi focar nos
adolescentes e não nas crianças? Primeiro, porque minhas turmas eram multisseriadas, então,
mesmo quando fui mestre no grupo F2 (4º, 5º e 6º ano), havia estudantes com mais de 12 anos.
Também, porque foram os grupos que mais trabalhei ao longo da vida: os adolescentes.
109

Enquanto professora, sempre me causou incômodo as formações das escolas focarem,


geralmente - quando não apenas - na infância; assim como não recordo de ter coordenadoras
ou supervisoras pedagógicas com experiências com grupos de adolescentes pelas escolas onde
trabalhei. Em uma rápida busca sobre o assunto em plataformas de textos acadêmicos é fácil
encontrar produções relacionadas à saúde dos adolescentes, mas desgarradas da aprendizagem
e ensino, parecendo haver uma lacuna, com poucas produções focadas nessa etapa da vida,
geralmente apresentando crianças e jovens. O que considero generalização demais, pois falar
em adolescência já é uma generalização, visto que existem muitas adolescências.
Sendo assim, procuro a partir desse texto-síntese abordar sobre a adolescência de forma
geral, para nos relatos buscar uma maior especificidade. No Ato I, abordei brevemente alguns
fatores relevantes sobre a geração Z76 (pessoas nascidas entre 1996 até 2010), como sua
hiperconexão, geralmente autônomas e sem orientação de adultos para navegar pela internet,
estando muito expostos aos fenômenos típicos da Sociedade das Plataformas. A maioria dos
estudantes dos quais farei os relatos podem ser classificados como geração Z, afinal, não
passavam dos 16 anos de idade. Wesley Carvalho (2017) afirmou ser muito difícil discutir sobre
adolescência, por ser um grupo permeado por concepções de senso comum, estigmatizados e
muito julgados. Dessa forma, o autor pontua que
[...] é fundamental desnaturalizar supostas verdades sobre quem é o adolescente, bem
como as formas de avaliar, julgar, categorizar e tratar determinados aspectos da sua
realidade. Não há uma realidade intrínseca ao adolescente, sendo necessário recolocar
em cena a historicidade de certos conceitos e abordagens, pois há diferentes modos de
percebê-los: depende do olhar, da escuta, das trocas e reflexões que podemos fazer
com e para eles (CARVALHO, 2017, p. 19).

Ciente desses aspectos, procurarei traçar relações muito gerais conectando com a
Sociedade das Plataformas, mas procurando não os rotular ou apresentar características como
se fossem verdades postas. A adolescência se caracteriza por ser o período entre a infância e a
vida adulta, ou seja, é um momento de transição, de passagem, de hormônios a mil, de
maturação do corpo; um “entre”, entre as brincadeiras de infância e as ilusões de independência
da vida adulta. Esta é uma etapa que “é marcada pelo período de crise e confusão, em que o
sujeito se encontra com um número excessivo de possibilidades, numa dinâmica própria de
construção de identidade” (CARVALHO, 2017, p. 19), período de transformação, de

76
Mariana M. Bezerra et al. (2019, p. 138) esclarece que o conceito de geração não é algo fixo, pois “abarca as
pessoas que, mesmo nascidas em tempos distintos e anteriores aos ‘dos dias de hoje’, são influenciadas pelo
espírito do tempo presente, podendo, por isso, transitar entre períodos”, funcionando como um fluxo transitório
entre a geração passada e a posterior. O mais importante é não generalizar características de uma geração como se
fossem pertencentes a todas as pessoas sem levar em conta contextos (culturais, sociais, regionais e as próprias
individualidades).
110

questionamentos profundos, de busca por respostas, de (re)conhecer-se como um novo corpo,


uma nova mente que pede coisas novas, de desejos conflitantes e de muita confusão emocional
e identitária. Carvalho (2017, p. 20) destaca que
[...] a palavra “adolescência” deriva do latim adolescere, sendo composta pelo prefixo
ad (para) mais olescere (crescer) – crescer para. Um dos sentidos mais usuais
compreende a adolescência como etapa constitutiva do ciclo vital humano,
preparatória à fase adulta. É curioso que a palavra “adolescere” guarde proximidade
com o termo “addolescere” – que significa adoecer.

Uma curiosidade interessante que faz muito sentido se relacionarmos aos nossos tempos
de voragem, Dunker (2020) diz que a vida digital pode ter relação com um novo tipo de
sofrimento escolar, pois, além do tempo na internet, essa geração cria novos modos de estar
com outras pessoas, o que possui aspectos positivos, mas outros perigosos e devastadores. Se
antes havia um certo comedimento em relação a posições “bizarras ou fora do esquadro”, agora
é possível encontrar “‘parceiros’ para tudo na internet, inclusive para o pior. E em grupo a gente
fica valente. Em grupo na internet, então, parece que o Maracanã está nos aplaudindo, quando
na verdade são quatro ou cinco simpatizantes” (DUNKER, 2020, p. 97).
Dunker (2020, p. 101) destaca três processos desencadeados pela digitalização no
Brasil: a “acessibilidade digital”, que encurtou distâncias e estabeleceu novas formas de
relações; o “empreendedorismo”, que conectado à meritocracia prometia ascensão social e
prosperidade; e a “vida em forma de condomínio”, isto é, cada vez mais segregada. Processos
esses que unidos trazem sofrimento e moldam novas identidades que são reafirmadas e
abordadas na forma de fatalismo, como se não houvesse outra forma. O autor ainda destaca que
os excessos e acelerações de nossos tempos têm tornado a depressão uma epidemia mundial:
“a segunda maior causa de afastamento do trabalho em menos de dez anos, a fonte e origem da
epidemia de suicídios no trabalho e entre jovens. A depressão é o sintoma que denuncia uma
espécie de resistência a uma forma de vida baseada na intensificação da produção” (DUNKER,
2020, p. 105).
A obrigação de ser feliz e ter sucesso transmitida pelo virtual aprisiona, frustra e adoece,
assim como a imprevisibilidade e incerteza do futuro, situações que foram agravadas com a
necessidade de isolamento causado pela covid-19. Carles Feixa (2021) já classificava a geração
atual de adolescentes como geração “viral” (em 2014), fazendo relação com a velocidade de
informações via internet, em 2021 o adjetivo ganhou duplo sentido, fazendo referência,
também, a uma geração de adolescentes confinados por causa da covid-19. Feixa (2021, p. 23-
24) destaca que “o objetivo dessa fase da vida é abandonar o isolamento doméstico – fugir do
Pai e da Mãe – e abrir-se ao mundo – ao peer-group, aos outros, ao espaço público. É quebrar
111

a casca da família – a saudade do útero – e arriscar enfrentar o mundo – para o bem ou para o
mal”, mas que a pandemia trouxe o inverso: um afastamento das pessoas e uma aproximação
com outras gerações, como pais e avós, o que também tem aspectos muito positivos, mas efeitos
negativos que ainda não sabemos, como as consequências dos discursos higienistas que muitas
vezes têm “conexões com o discurso moralizante sobre a sexualidade adolescente, pois, em vez
de aceitar e normalizar a metamorfose corporal, a reprime ou oculta” (FEIXA, 2021, p. 26).
A geração Z, segundo Bezerra et al. (2019, p. 138), não é caracterizada apenas pela
facilidade do manuseio das ferramentas digitais, mas também pela hiperconectividade, pois são
inquietos, ávidos por novidades, impacientes com quem não domina ferramentas digitais, “têm
dificuldade em aceitar ‘não’ como resposta e querem conquistar uma excelente carreira sem
grandes esforços” e utilizam o celular (internet) como o principal meio para se comunicar com
amigos. É uma geração altamente digitalizada, que apresenta também uma inquietude, tendendo
a cumprir tarefas através de uma rotatividade, fazendo várias atividades ao mesmo tempo,
passando de uma para outra e com dificuldade de finalização. Segundo Bezerra et al. (2019, p.
142), suas existências parecem ser condicionadas ao estado online, uma “nova maneira de ser
no mundo traz implicações sobre a aprendizagem desses jovens e os estudos sobre isso ainda
são iniciais”, entretanto, já se sabe que essa geração busca aprender através da internet.
Serviços como o Youtube e o Netflix tornaram acessíveis as programações de
diferentes países, possibilitando o contato com outras línguas e culturas sem
intermédio de instituições de ensino [...] acessam conteúdos de qualquer lugar e, a
qualquer momento, contribui para essa prática, fazendo também que entrem em
contato, cada vez mais cedo, com conteúdos que, anteriormente, em geral, só seriam
acessíveis em instituições formais de ensino (BEZERRA et al., 2019, p. 142).

A hiperconexão é tão intensa que Bezerra et al. (2019, p. 143) diz que a frequência
chega a ser “imensurável”, pois é usada para informação, distração, “entretenimento e
socialização”. Excessos esses já apresentados ao longo dessa dissertação, que podem ser
deveras deletérios, seja a nível emocional, cognitivo, social e político; seja pelo próprio tempo
de exposição; ou seja pela avalanche de desinformações e manipulações que o meio digital pode
ocasionar.
Juliana Alves de Andrade (2018) chama a atenção aos perigos de generalizar a geração
Z, visto que, na contemporaneidade, muitos adolescentes-jovens se envolveram em
movimentos sociais críticos, rompendo com a visão limitante de que são seres hiperconectados
e manipulados, atribuindo a esse grupo adjetivos como propositivos, engajados, conectados e
críticos, citando movimentos recentes de grande atuação dos jovens, como
[...] luta em defesa da educação escolar gratuita no Chile (2011), pela permanência
do debate de gênero nos currículos escolares na Argentina (2012), contra a
112

corrupção77 econômica e política no Brasil (jornadas de junho, 2013), em defesa da


promulgação do Estatuto da Juventude no Brasil (2013), pela melhoria do espaço
escolar (ocupações, 2015) e contra a reforma curricular do Ensino Médio no Brasil
(2016) (ANDRADE, 2018, p. 93).

Apesar dos adolescentes recorrerem muito ao digital como forma de aprendizagem,


Andrade (2018, p. 96) alerta que “são poucas as oportunidades que os adolescentes-jovens
possuem nas redes sociais para refletir, memorizar e compreender”, pois o hábito de curtir e
compartilhar são “operações ligadas à classificação e à comparação. Sabemos que o
desenvolvimento do pensamento crítico depende do exercício de competências cognitivas como
memorização e compreensão”. Nesse sentido, hooks (2020, p. 31) vai além, pois vê o
pensamento crítico como um anseio pelo saber, um anseio “por compreender o funcionamento
da vida” e, ainda, destaca que esse anseio é orgânico nas crianças, mas que, “infelizmente, a
paixão das crianças por pensar termina com frequência, quando se deparam com um mundo
que busca educá-las somente para a conformidade e a obediência. A maioria delas é ensinada
desde cedo que pensar é perigoso” (HOOKS, 2020, p. 32).
Andrade (2018, p. 103), no seu estudo sobre adolescentes e o digital, destaca elementos
muito importantes, como
[...] os dados demonstram não só a dificuldade dos estudantes de tecerem
comparações, mas o baixo impacto do conhecimento histórico escolar na construção
dos sentidos sobre o presente. A leitura do passado realizada pelos adolescentes-
jovens revela as marcas do modo de pensar historicamente das mídias e redes sociais
(online). O processo de reflexão das mídias e redes sociais baseado numa perspectiva
presentista cuja característica se materializa na negação dos acontecimentos e fatos
históricos, faz com que os adolescentes-jovens pensem que a falta de capacidade
técnica seja o principal motivo da população negra não ocupar lugar de destaque na
sociedade. Para os adolescentes-jovens, o discurso da reparação é um discurso
vitimista.

Uma geração hiperconectada passa a ser alvo fácil de militâncias neofascistas e


negacionistas, nos colocando diversos desafios quando trabalhamos com adolescentes.
Portanto, acredito em uma contra-educação que não rotule adolescentes e os permita ser e
existir, sem serem limitados a subjetividades forjadas e impostas por uma educação submetida
aos interesses do capital. Para tanto, acredito em práticas pedagógicas ligadas à arte que os
desconectem um pouco do mundo virtual, os conectando com o mundo real, assim como nos
letramentos, para que desenvolvam habilidades e pensamento crítico capazes de questionar o
que parece tão ‘verdadeiro’ e ‘normal’. Na sequência, apresento relatos de algumas práticas

77
Discordo desse exemplo usado pela autora, conforme já argumentado no Ato II, o discurso anticorrupção é
conservador, limitante e manipulador, mas também explanei, através dos argumentos de Machado (2019), que,
antes desse movimento ser abduzido pela extrema direita com esse discurso de anticorrupção, seu início foi mesmo
liderado por jovens, porém suas pautas eram outras, de caráter crítico ao neoliberalismo.
113

pedagógicas que são pistas/cenas para uma educação que preza pelo letramento histórico e
busca ser política, ética e estética.
114

ATO IV

Os encontros: na experiência que a montagem se cria e recria,


eis o espetáculo
115
116

| Cena 12: cenografia

Embasada pelo pensamento de Belidson Dias, Rita L. Irwin e Gilberto Icle, narro
minhas memórias com a arte enlaçada ao letramento histórico como
artista/pesquisadora/professora. Da necessidade de narrar meus processos
artísticos/pedagógicos, emergiu a metodologia de PEBA, mais especificamente a a/r/tografia,
pois dentre a diversidade de metodologias, a “a/r/tografia é uma das que busca integrar os
fazeres artísticos, investigativos e docentes” (PORTO, 2019, p. 39). Este modo de pesquisar
está baseado no entendimento de que o sentido não é encontrado, mas construído, e que o ato
da interpretação é um evento criativo. Segundo Dias (2013, p. 24), a “PEBA oferece ao
pesquisador e educador uma variedade de métodos que permitem auxiliar os processos de
questionamento, de reflexão e fazer”, sendo a a/r/tografia uma forma de PEBA.
Nessa perspectiva, teoria e prática não são dicotômicas, mas dialéticas, já que pesquisar,
aprender/ensinar e fazer arte se entrelaçam em conceitos, atividades e sentimentos (IRWIN,
2013). Por isso, Irwin (2013) define a a/r/tografia como uma metodologia de mestiçagem, pois
faz uma metáfora com as funções de artista/pesquisador/professor, não existindo hierarquias
nessas identidades, nem necessidade de fixá-las, uma vez que são múltiplas e únicas ao mesmo
tempo, mas, ainda, é metáfora para os produtos, atividades e processos de criação. Assim, a
a/r/tografia é uma metodologia múltipla e interdisciplinar. Irwin (2013, p. 128) explica que “é
por isso que o acrônimo a/r/t (Artista-Researcher-Teacher) é tão apropriado”. Segundo Sheila
Maçaneiro (2012, p. 3), é
[...] como se a A/rtista (Artist), a P/esquisadora (Research) e a P/rofessora (Teacher)
se enxergassem num caleidoscópio de identidades. Não por acaso, raízes que
propulsionam a A/r/tografia começaram a se bifurcar em meu pensamento. A
metáfora bifurcação vem de encontro a visão do rizoma que Gilles Deleuze e Felix
Guattari (2004) utilizam para provocar um pensamento de múltiplas conexões, onde
significados e entendimentos são mutáveis, flexíveis, num contínuo estado de relações
e reverberações. Teoria e prática se conectam e promovem uma ação crítica reflexiva,
sendo a A/r/tografia um modo de provocar no artista-pesquisador-professor a
necessidade cuidadosa de olhar para suas próprias práticas, numa tentativa de que se
faça perceber os entre e dentre espaços do fazer arte, pesquisar arte e ensinar arte.
Embricando conhecimento por meio da filosofia, fenomenologia, ética, ação
educacional, estudos de gênero, pedagogia crítica, arte contemporânea e
transdisciplinariedade, a a/r/tografia cresce por entre lugares não lineares, inquirindo-
se a si própria.

A a/r/tografia é um processo entre o ser e se tornar, por isso Irwin (2013) usa o conceito
de rizoma de Deleuze e Guattari, pois representa uma maneira de pensar que não é linear, que
não se tem controle, que espraia-se por caminhos imprevisíveis, fazendo múltiplas conexões,
construindo e interpretando conceitos “flexíveis e instáveis”. Dessa forma, a a/r/tografia se
117

dedica a produzir, interpretar dados e analisar processos criativos, mas sem perder de vista
identidades, pois acredita que o processo artístico é permeado pela história e pelo olhar do
próprio artista/professor.
A investigação/narrativa que apresento neste Ato IV foi inspirada na a/r/tografia, pois,
desde que venho aprofundando sobre essa metodologia, tem ficado cada vez mais clara a
possibilidade de permanente pesquisa e análise da minha prática pedagógica/estética. Através
da a/r/tografia pude apaziguar-me com a minha identidade e percebê-la como híbrida. Se antes
(conforme relatado no Ato I) me sentia confusa, hoje percebo a importância de aceitar e
potencializar essas múltiplas faces, afinal, a a/r/tografia não se preocupa necessariamente com
artistas e não compreende uma definição de artista como um profissional ou um técnico, ou
seja, ela amplia essa visão, ela preocupa-se com pessoas comprometidas com arte e com
educação, pessoas comprometidas com pesquisa e arte e educação.
Relembro que os questionamentos da banca de qualificação do projeto de pesquisa
possibilitaram-me pensar sobre a metodologia que eu havia optado para a proposta de pesquisa
de campo de oficinas de teatro, no caso, a pesquisa-ação. Partindo das reflexões oriundas da
qualificação, compreendi algo que já havia pensado, mas não havia dado a devida atenção: meu
trabalho pedagógico sempre esteve conectado à pesquisa-ação, talvez não em todos seus
aspectos, mas como base fundamental, como metodologia que agrega outros métodos e que
problematiza conceitos, como uma abordagem orientadora que incorpora outras metodologias
e estratégias. Mesmo quando miscigenada a outras propostas metodológicas, vários de seus
princípios estavam presentes, sendo assim, pontuarei relações/conexões entre meu trabalho
docente e a pesquisa-ação, em uma perspectiva híbrida de minhas experiências enquanto
educadora, artista e pesquisadora.
Procuro, através deste Ato IV, narrar duas experiências pedagógicas que considero
pistas/cenas capazes de evidenciar a potência teatral como possibilidade de letramento
histórico, enfrentando negacionismos e neofascismo. Encarei a narrativa de memórias como
uma construção de repertórios que oportunizam saberes a partir da experiência, pois, conforme
bem descreve Lizandra Santos e Luciana Borre (2022, p. 37),
[...] é nesse repertório onde anexamos os aprendizados vindos desde a nossa vivência
mais tenra. Entender o retrato de si é abrir-se para ampliar nossas perspectivas e
olhares junto com o outro, numa espécie de linha cruzada, onde cada fio de história
conta um pouco de si no mundo e vice e versa. De um ponto de vista social e humano,
é reconhecer-se para reconhecer o outro. Entenda-se o outro, aqui, como
possibilidades diversas de relações humanas e de entender visões e percepção
externas, através do transbordamento das nossas narrativas pessoais.
118

Ao optar por uma investigação/narrativa, tive contato com outro impasse ou desafio:
como descrever o processo criativo de minhas aulas? Gilberto Icle (2019) chama o desafio de
descrever processos criativos performáticos de “descrever o indescritível”, o “inapreensível”,
pois a linguagem não dá conta do todo, ela tem suas limitações na tarefa de descrever o que é
efêmero, experiências, os espaços entre, o devir, o vivo e tudo aquilo que não tem como
capturar. Enfrentar esse desafio é novamente desprender-se do pragmatismo, jogar-me no caos
do incontrolável, compreender que “a forma de abordar o processo criativo é múltipla, uma vez
que a noção de processo criativo é diversificada, não há um processo de criação compartilhado
entre todos os pesquisadores de modo unificado” (ICLE, 2019, XLII). É deixar-se viver o
processo e aprender a aprender, como refere-se Irwin (2013).
A fim de interpretar processos artísticos e construir significados, Sheila Maçaneiro
organizou suas ideias, buscando em Irwin e Springgay os conceitos ou modos de leitura da
a/r/tografia seis conceitos que colaboram com o que venho a chamar de investigação/narrativa.
Dessa forma, Maçaneiro (2012, p. 5, grifos meus) destaca:
1- Contiguidade: lugar da ênfase na identidade do artista, pesquisador e professor
existente simultaneamente e em continuidade. Relacionamentos que promovem
entrelugares da arte, pesquisa e ensino, entrelugares da arte e texto, entrelugares da
atividade e produção artística. 2- Questionamento vivo: lugar da ênfase nas práticas
e experiências vivas, ênfase nas relações entre pessoas, coisas. Dados para pesquisa
qualitativa provenientes de entrevistas, crônicas, diários, artefatos de coleções,
escritos de jornais, fotos, documentários, investigações artísticas por meio de pintura,
composição musical, performances e artefatos educacionais assim como diários de
professores, jornais estudantis, narrativas e outros. 3- Metáfora e metonímia: lugar
da ênfase na existência de novos significados e relacionamentos entrelaçados. 4-
Aberturas: ênfase em abrir conversações e relacionamentos, não necessariamente
passivos e sim abertos a tensões, contradições e resistências. 5- Reverberações:
ênfase no movimento dinâmico favorecendo mudanças para novos significados, novas
descobertas. 6- Excesso: ênfase no que está fora do aceitável.

Os conceitos são abertos e mutáveis, o artista/pesquisador/professor aprende ao longo


do processo, cria significados e significantes. Segundo Carl Leggo et al. (2011, p. 241), “a
investigação viva pode ser efetivamente buscada por meio da escrita da vida, explorando
experiências pessoais, políticas e profissionais por meio da memória, autobiografia, reflexão,
narrativa, interpretação e muito mais”. Me lanço nesse processo de escrita repleta de medos.
Nunca foi fácil mostrar, compartilhar ou publicar o que escrevo. Medos e repressões travaram
meus dedos por anos. Dedos que nesse momento deslizam rapidamente pelo teclado, sedentos
por liberdade, mas logo travam, pois a mente os relembra dos tempos pessoais/emocionais de
censura. Tempos que deixaram marcas, rasuras, sinais, imposições para ‘encaixar-se’,
modelagens, subjetividade e, claro, reprimiram uma escrita que poderia ser criativa. Mesmo
119

com essa consciência, penso: “tudo bem”, pois já tinha a certeza da incompletude e do
inacabamento; ao menos agora os dedos deslizam.
Gilberto Icle (2019, XXXVIII) provoca: “o que não é possível descrever quando se
descreve o processo criativo?”. A pergunta é de impossível resposta, como o próprio autor
reconhece, mas assim como ela serviu como “guia”, “elemento instigante para o trabalho”,
“alavanca” para a descrição de processos de pesquisas, também me servirei dessa questão e
seus impulsos e incentivos para descrever minha prática. Procurarei atravessar essa questão
com conceitos fundamentais da a/r/tografia elencados por Maçaneiro (2012), a fim de narrar e
investigar processos performáticos, que enlaçam pesquisa-ação, teatro e letramento.

| Cena 13: montagem teatral e o espetáculo

Procurei esclarecer no Ato I (ao final da Cena 4) as razões para a opção de selecionar e
relatar memórias sobre atividades práticas, das conexões entre teatro e letramento, apenas das
experiências referentes ao período que trabalhei como tutora/mestre no colégio Lumiar.
Entretanto, acredito ser importante contextualizar e esmiuçar alguns elementos, assim como
justificar a seleção das práticas que seguirão. Como já relatado, entrei na Lumiar em setembro
de 2018, quando o grupo F3 (7º, 8º e 9º anos) precisava concluir a montagem da peça Romeu e
Julieta, em que estavam um tanto quanto perdidos com a saída da tutora, da qual fui contratada
para substituí-la. Sendo assim, entrei na escola para contribuir com o fechamento dos ensaios e
a estreia da apresentação. Certamente foi uma experiência intensa, atípica e muito desafiadora.
Não acompanhei o processo, apenas o resultado final, que foi bem lindo e já me fez entrar com
o coração nessa escola.
Com o tempo e muita ajuda de colegas, estudantes e direção fui compreendendo melhor
as dinâmicas da escola e sua metodologia, fui conhecendo as pessoas, me apropriando do espaço
e do meu lugar nessa escola. Nesse mesmo ano participei da primeira construção do trimestre
com meu grupo F3 e pude aprender na prática como se constituía um trimestre com os
estudantes. Cabe destacar que a cada novo ano, às vezes até a cada trimestre, os educadores se
encontram para avaliar e reavaliar suas práticas, podendo levar a outros modos de fazer.
Todo início de ano é diferente na Lumiar, nunca sabemos bem com quem vamos
trabalhar, não temos ideias dos conteúdos que serão desenvolvidos e nem dos temas dos
projetos. Tudo é um processo, e tudo vai se desenrolando na prática. A Lumiar preza por uma
educação aberta para abordar temas contemporâneos e problematizar assuntos polêmicos com
120

os estudantes incentivando a argumentação, assim como promove e incentiva pesquisas e


letramento digital, desenvolvendo uma educação crítico-dialógica, tanto que propõe em seu
currículo práticas como a roda da escola78 e roda de grupo79, incentivando a gestão participativa
na aprendizagem e no desenvolvimento dos processos.
No Ato I também descrevi brevemente alguns elementos que me chamaram a atenção
na escola e acabaram por corroborar para que emergisse o problema de pesquisa e fosse possível
investigá-lo através de memórias das práticas vivenciadas nessa escola. A escola não utiliza
livros didáticos, incentivando o uso de plataformas digitais como fontes de pesquisa e de
atividades escolares, além de utilizar o recurso de plataforma digital como instrumento de
avaliação80. A escola está localizada no bairro de classe média Mont’Serrat, próxima do Parcão
e da Av. Goethe, já citados como locais de manifestações81 de grupos de direita e de extrema
direita, muitas delas com pautas de cunho negacionista e neofascista. Compreendo elementos
como localidade e classe social, assim como as características pedagógicas da escola (incentivar
o uso das plataformas digitais na aprendizagem, mas também promover a gestão participativa),
aspectos importantes para tornar possível atingir os objetivos propostos por essa pesquisa.
O ano de 2019 foi um ano letivo muito intenso, de muitas produções e aprendizagens.
Iniciei o ano como tutora do grupo F3 - na verdade foi uma tutoria partilhada, pois dividi a
função com uma colega pedagoga. Em geral, temos um(a) tutor(a) e um(a) assistente por grupo,
mas, naquele ano, o F3 estava com número máximo de estudantes, o que exigiria muito do(a)
tutor(a) e esse grupo talvez fosse dividido no decorrer do ano. Começamos o ano com uma
programação de formação voltada para os educadores e, através das discussões fomentadas e

78
A roda da escola é uma assembleia semanal, envolvendo todos os agentes do cotidiano escolar na discussão de
pautas elencadas livremente por necessidade ou por interesse. Nesses encontros, há papéis específicos de
organização e todos têm voz, havendo espaço para discutir assuntos pertinentes à escola, avaliar avanços,
recorrências, retrocessos ou fazer revisões, definir metas e acordos, assim como formar comissões para temas ou
eventos específicos. Enfim, esse é um processo de incentivo à vivência participativa-democrática (LUMIAR,
2016).
79
A roda do grupo multietário é uma assembleia semanal de turma para organizar e revisar combinados internos.
Segundo o modelo Lumiar (2016, p. 26), “uma vez que cada grupo tem suas questões de convivência, organização
e de desenvolvimento e aprendizagem, cabe ao conjunto de indivíduos (tutora, crianças e jovens) gerir essa
sociabilidade específica”.
80
O colégio Lumiar POA utiliza como ferramenta cotidiana o Mosaico Digital (MD), que consiste em um sistema
de “gestão do cotidiano escolar do Modelo Lumiar. Ele contém módulos de planejamento, acompanhamento,
registro e avaliação dos processos que se organizam e se mobilizam a partir do currículo não linear do Modelo
Lumiar. A plataforma conta com acessos para gestores, tutores, mestres, estudantes e pais, uma vez que todos estão
implicados no importante esforço de gestão do cotidiano, de acordo com seu papel” (LUMIAR, 2016, p. 276).
81
A última manifestação (até a data do presente texto) ocorreu no dia 20 de março de 2022, em alusão à marcha
da família com Deus pela liberdade. “Vestidos de verde-amarelo, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fizeram
falas a favor da família, da religião e da liberdade e contra o uso obrigatório de máscara, a vacinação de crianças
contra o coronavírus e a exigência de passaporte vacinal. Também se opuseram à atuação dos ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF)” (GZH, 2022).
121

avaliação dos processos de mapeamento dos interesses e necessidades dos grupos, propôs-se
agregar a prática cartográfica, inspirada em Gilles Deleuze, para a construção do trimestre, isto
é, através de uma cartografia de grupo, os projetos seriam definidos e posteriormente
selecionado o que seria estudado ao longo do trimestre.
Durante a formação, já iniciamos o planejamento das duas primeiras semanas com os
estudantes. Esse planejamento inicial visa formação e conhecimento do grupo e uma pesquisa
exploratória, isto é, o mapeamento das necessidades e interesses do grupo. As primeiras duas
semanas de aula são fundamentais para investir na formação de grupo, estabelecer os primeiros
afetos e vínculos, construir os primeiros acordos, mapear os assuntos de maior interesse do
grupo, assim como suas necessidades (essas necessidades podem ser cognitivas, sociais ou
relacionais). Todo esse processo ocorre em muitas etapas: a tutoria consulta o mosaico digital
da escola a fim de detectar o que já foi trabalhado ou não e, então, usam diversas ferramentas
pedagógicas para detectar interesses pulsantes no grupo. Posteriormente, a cartografia é
realizada em duas etapas: uma só com educadores e coordenação, e outra com tutoria e seu
grupo de estudantes. A partir de 2021, essa prática foi invertida, sendo a cartografia realizada
primeiro com o grupo de estudantes, para então apresentar para o grupo de educadores, que
colaboram com ideias e problematizações, para novamente os estudantes discutirem e
desenharem o trimestre com seus projetos, módulos e oficinas.
Essa fase inicial exploratória, na qual tutores(as) fazem o levantamento dos interesses e
necessidades e os estudantes participam ativamente, é muito significativa. Segundo o modelo
Lumiar (2016, p. 27), essa fase
[...] contribui para a aproximação do tutor com os interesses e necessidades reais de
cada um e dos denominadores comuns do grupo, visando tanto um crescente e maior
engajamento e compromisso dos estudantes em seu processo de aprendizagem quanto
a contextualização da aprendizagem para cada um e para o próprio grupo. Assim,
busca-se, resumindo, encaminhar o grupo no sentido de uma construção coletiva e
compartilhada que possa oferecer oportunidades significativas de experiências
relevantes para a apreensão de conteúdos e o desenvolvimento de habilidades
constantes do Currículo Lumiar. É importante deixar claro que o processo de
identificação dos temas que interessam ao grupo não é orientado a realizar aquilo que
os estudantes mais gostam, pura e simplesmente ou para que seus desejos sejam
realizados, ainda que possam vir a ser. O mais importante aspecto é a mobilização do
estudante, a teia de motivação que se pode articular e, portanto, as zonas mais
adequadas para o desenvolvimento e aprendizagem.

Os relatos que seguem referem-se a práticas de 2019, pois considero um ano de intenso
trabalho, em que fui tutora do F3 até setembro e depois do F2. Além de experiência com
adolescentes e pré-adolescentes, também vivi o lugar de tutora e de mestre, construindo
experiências significativas no campo da história e das artes. Definirei as atividades relatadas
122

como práticas performativas, a partir da perspectiva de Icle (2019, XXXVIII-XXXIX), que


argumenta que
[...] o conceito mesmo de práticas performativas é usado para permitir um alargamento
das noções de teatro, dança, espetáculo, tomando de inspiração a etnocenologia. Trata-
se de conceber as práticas como processos (e compreendendo o que se chamaria de
produto como um momento ou uma experiência de compartilhar uma ação com o
outro). [...] Práticas performativas, aqui, envolvem tanto espetáculos reconhecidos
pelo sistema das artes, quanto folguedos populares ou exercícios em sala de aula, por
exemplo. O que torna possível colocar todas as práticas juntas para se visualizar e
analisar um mesmo objeto de pesquisa não é o contexto do qual emergem, tampouco
as temáticas a que fazem referência ou a categoria socialmente aceita de arte, mas o
fato de que todas elas podem ser consideradas no seu processo de feitura; são
coletivas, envolvem grupos de pessoas, colocando seus próprios corpos como local de
prática e, por fim, fazem alguma coisa, dão forma, (per)formam, transformam seus
praticantes, o que nos permite designar como performativas.

A fim de alargar a visão de artes, usarei o termo “prática performativa” para referir-me
às práticas pedagógicas que seguirão. Cabe ressaltar que elas se referem ao ano de 2019, ocasião
em que eu não estava pesquisando diretamente os negacionismos e neofascismo, assim como
os projetos não tinham intenção direta de trabalhar esses temas. Portanto, relembrar, retomar e
relatar faz-se importante, posto que experiências com esse enlace de história e teatro serão
pistas/cenas para que seja possível responder à questão que impulsionou essa pesquisa - “como
a potência do teatro contribui para o letramento histórico de adolescentes no contexto da
Sociedade das Plataformas, combatendo negacionismos e neofascismo através de uma contra-
educação?” - e, assim, atingir os objetivos propostos.
O compromisso com a leitura crítica do mundo (contra negacionismos) e com uma
educação antirracista (contra neofascismo) é um compromisso da educação engajada e do
ensino de história, permeando suas práticas direta ou indiretamente. Pensando em práticas que
evidenciam esse enlace e pudessem compor as cenas para a montagem que anseio, recorri às
minhas memórias afetivas, busquei registros na plataforma Lumiar e em meus diários de aula,
descrições e anotações que me ajudassem a construir pensamentos, conceitos e possíveis
respostas.
Podendo o leitor estar confuso em relação à descrição das Sociedade das Plataformas,
tendo criado algum tipo de expectativa de que essa pesquisa analisaria plataformas ou proporia
atividades pedagógicas relacionadas ao digital, devo esclarecer, como último ponto relevante a
destacar, que este não é o caso. A narrativa que segue não se apega a isso. A contextualização
foi necessária para compreensão de nossos tempos, para entender suas demandas, compreender
melhor o mundo onde vivem os adolescentes com quem trabalhei e como e quais fenômenos
emergem e reverberam na escola. Porém, a caracterização desses tempos como Sociedade das
123

Plataformas não está condicionada a uma pesquisa que se faz no digital, mas é usada para
compreender a sociedade do hoje e pensar em uma educação que desafie toda ignorância
produzida. Portanto, como proposta de enfrentamento desses fenômenos, ressaltarei justamente
o contrário: práticas vivas, experienciais e presenciais, que não necessariamente envolvam o
digital, mas que se conectam com uma proposta de contra-educação, emergencial na Sociedade
das Plataformas. Sendo assim, discorro sobre duas práticas pedagógicas que compõem as cenas
principais dessa montagem teatral.

| Cena 13.1.1: improvisos que levam à criação

Turma: Grupo F3 (7º, 8º e 9º ano - adolescentes)


Meu lugar no grupo: Tutora e mestre de história
Projeto: Francamente, França!
Período: Primeiro trimestre de 2019

Figura 6 - Primeira página do diário de aula/vida, de 2019.

Fonte: Arquivo pessoal.


124

Como relatado, 2019 foi um ano intenso, iniciado com muita empolgação, dividindo a
tutoria com uma colega, sendo uma oportunidade para ampliar trocas, discussões e criatividade.
Nas primeiras semanas nos dedicamos a conhecer o grupo F3, mapear perfil da turma, detectar
os interesses pulsantes no grupo e suas necessidades. Após muitas atividades e registros,
fizemos um encontro de educadores, alguns professores que trabalhavam com a turma,
tutores(as) de outras turmas, assistentes, coordenação e direção, em que fizemos uma
cartografia do grupo e, através de muita discussão, pré-definimos alguns caminhos. Em um
segundo momento, esse movimento foi realizado com os próprios estudantes, em que
apresentamos a eles a cartografia realizada e partimos para uma série de discussões a fim de
definir quais seriam os projetos do trimestre, suas relevâncias e justificativas.
Segundo levantamento de interesses, percebemos que o grupo sentia necessidade de
compreender o mundo atual, em suas contradições e polêmicas, demonstrando interesse em
questões relacionadas à política e à ciência, pautados por uma atitude de questionamento frente
a assuntos não tão fáceis de discutir, os tabus. Ao mesmo tempo em que a turma desejava
debater e discutir assuntos polêmicos, as relações de grupo estavam marcadas por microdisputas
e, claramente, era um grupo polarizado; para além disso, a divisão entre meninos e meninas
também chamava a atenção.
Por um lado, alguns alunos tinham uma postura mais questionadora, muitas vezes o
debate não fluía por uma dificuldade em se descentrar de sua própria opinião para acolher e
dialogar com o ponto de vista alheio. Nesse sentido, a capacidade de argumentação precisava
ser aprimorada, bem como desenvolver uma escuta ativa e empática, valorizando a voz de todos
e não apenas de uma minoria. Foi necessário um trabalho de valorização e estabelecimento de
confiança no grupo; o medo de ser julgado naquele espaço e o desconforto de falar de si foram
manifestados durante as dinâmicas, impedindo um trabalho coletivo de qualidade.
A partir dessa maior necessidade de criar um bom clima de estudos e trabalho, no qual
todos se sentissem à vontade para expor sua opinião e aprimorar sua capacidade argumentativa,
chegamos ao projeto ‘carro-chefe’ do trimestre: "Cortando os tabus”, um desejo da turma de
conseguir dialogar relacionando as próprias dificuldades da sociedade nesse sentido. Sendo
assim, o projeto se propôs buscar no passado da humanidade - pautados nas áreas do
conhecimento - caminhos possíveis para estabelecer um diálogo rico, crítico e capaz de
contestar verdades ou entender sobre construção de verdades, abrindo espaço para o
crescimento na troca de ideias e na aprendizagem de argumentar de maneira objetiva.
125

Figura 7 - Construção coletiva do primeiro trimestre de 2019 do grupo F3.

Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução de Diego Madia (2022).

O projeto “Cortando os tabus”, de filosofia, orientado pelo mestre Volteire82, foi o fio
condutor, uma espécie de ‘projeto guarda-chuva’, pois, agregado a ele, de forma
interdisciplinar, outros projetos, módulos e oficinas fizeram parte. O projeto “Cortando os
tabus” foi resumido pelo mestre da seguinte forma na plataforma Lumiar após seu primeiro
encontro com a turma:
O grupo manifestou um grande interesse por temas atuais, políticos e um tanto
polêmicos, além de apresentar alguns desafios relacionados ao diálogo e escuta ativa
na própria turma. O F3 apresentava muitos subgrupos, se sentindo desconfortável em
discutir, criar e trocar com todos os integrantes da turma. Ao mesmo tempo que
reconheciam que não se sentiam um grupo coeso, percebiam ser fundamental estreitar
a relação para que o diálogo fluísse e a aprendizagem se tornasse significativa. A
filosofia, junto dos fatos históricos da Revolução Francesa, trazia consigo questões
que dialogavam diretamente com esse diagnóstico como, por exemplo, a guilhotina,
a hostilidade com quem tem o pensamento contrário e a mudança epistemológica
vivida na própria Ciência naquele período histórico. A partir de conversas sobre esse
tema, surgiram perguntas como “O que faz com que uma verdade seja verdadeira?” e
“Qual era a verdade que deixamos para trás?” (BLUM, 2019, texto digital).

82 Os nomes dos colegas da Lumiar são fictícios. No caso, Volteire foi uma construção de personagem que o
próprio mestre de filosofia criou para fazer algumas aulas com os estudantes, uma brincadeira com o nome do
filósofo iluminista Voltaire.
126

Buscando atingir os objetivos propostos, a área de história contribuiu através de um


módulo, que posteriormente virou projeto, nomeado pelos estudantes como “Francamente,
França!”83, do qual eu fui a mestre. Junto ao módulo de história, também contamos com o
módulo “Ciência do tempo”, com o mestre de Física, resultante do seguinte questionamento:
“por que devemos confiar na ciência?”. Além da questão que converge muito com nossos
tempos de descrença na ciência, a turma também demonstrou “curiosidade sobre aspectos
relacionados ao espaço e a astronomia” (OSELAME, 2019, texto digital). Esse projeto
trabalhou os seguintes objetivos:
(I) Compreender a função da ciência e do pensamento científico; (II) Propiciar o
diálogo e o questionamento sobre aspectos filosóficos da ciência; (III) Desenvolver
uma compreensão de epistemologia da ciência mais alinhada com o pensamento
contemporâneo; (IV) Construir com os estudantes elementos e conceitos de modelos
astronômicos.

Destaquei esses projetos primeiro porque são essenciais para a compreensão do módulo
“Francamente, França!”, pois dialogavam permanentemente, além de contemplarem temas
considerados negacionistas de nossos tempos, como o terraplanismo, que foi abordado nas aulas
de Física, sendo usado como exercício de argumentação baseado na ciência. Aliás, eu estava
presente nesta aula quando o assunto foi abordado, em que o mestre disponibilizou o documento
oficial de argumentação dos terraplanistas e os estudantes leram e precisavam verificar através
de experiências e pesquisa se havia alguma coerência. A aula e as discussões foram riquíssimas,
pois, a partir das experiências e argumentações, os estudantes demonstravam uma alegria
imensa e passaram a valorizar mais os métodos científicos. Um dos estudantes escreveu na
plataforma Lumiar: “amei a aula, pois eu não sou uma pessoa que acredita muito em ciência,
mas essa aula foi incrível”. Esse simples relato do estudante reflete toda uma desconfiança com
a ciência, típica de nossos tempos, mas também pode revelar uma abertura, afinal, a aula sobre
a Terra Plana e a argumentação sobre sua esfericidade foi adjetivada como “incrível”.

| Cena 13.1.2: Improvisação teatral na aula de


história, e do caos fez-se o aprender

83
Importante destacar que os estudantes, após a primeira aula com mestre, que é voltada para um planejamento
coletivo detectando o que a turma sabe sobre o assunto (sua visão inicial), o que deseja aprender (quais suas
perguntas, curiosidades) e como será o caminho (o que desejam atingir e como), uma vez estabelecido os primeiros
passos e onde se deseja chegar, o grupo batiza o módulo com um nome, neste caso: “Francamente, França!” foi
sugerido por um estudante e acolhido pelo grupo devido à sua ironia dicotômica, uma vez que pode ser lido como
“poxa, França, o que vocês fizeram, hein?”, enquanto crítica, ou “francamente” como sentido de busca pela
verdade, construção e interpretação de conceitos.
127

O módulo “Francamente, França!” conectava-se ao projeto “Cortando os tabus”, pois o


interesse do grupo partia de uma necessidade de compreender porque tantos temas políticos da
atualidade são tabus e por que em sua contemporaneidade há tanta polaridade de ideias. Dessa
forma, a turma se propôs a mergulhar no passado, procurando pistas que os ajudassem a
entender melhor a política atual. “O que é nacionalismo?”, “onde surgiu a polaridade direita e
esquerda?”, “por que a sociedade tem tanta dificuldade em dialogar e pensar em um projeto
comum?” e “por que extremismos estão vivos em nosso contexto?” foram algumas das questões
levantadas pelo grupo. A partir delas, a turma compreendeu ser fundamental aprofundar seus
conhecimentos sobre um dos marcos de início do mundo contemporâneo: o pensamento
iluminista e a Revolução Francesa.
Sendo a responsável por ser mestre desse módulo, fiquei, inicialmente, bastante perdida
e preocupada, pois, apesar de ser um recorte histórico bem focado, há uma infinidade de temas
e vieses dentro desse período. A fase inicial de planejamento com meus colegas foi essencial,
porém nem sempre suficiente. Lembro que, por pura motivação pessoal de nossa parte, fui
passar a tarde na casa do colega Volteire, onde conversamos muito, planejamos e definimos um
pequeno roteiro do qual, obviamente, mudamos várias vezes ao longo do percurso, pois surgiam
novas possibilidades e desafios.
Minha forma de planejar é bastante caótica, pelo menos no início de um novo processo,
em que não consigo estabelecer as ideias de forma organizada, nem usar planilhas e nem fazer
projeções a longo prazo de cara. Preciso de um tempo de caos solitário, em que busco várias
referências, recordo assuntos, assisto filmes, recorro à minha biblioteca pessoal e à da escola,
navego muito pela internet, fico atordoada, pois quase nunca consigo planejar nos horários fixos
que defino. As ideias chegam em momentos imprevisíveis, em lugares inusitados, se
apresentando como insights, às vezes até irritantes, pois nem sempre tenho como anotá-las. Se
tenho onde registrar, faço isso de qualquer jeito, sem preocupação estética ou organizativa, uma
vez que minha intenção é não perder as ideias. Por um tempo isso me preocupava e tentei várias
técnicas de organização, mas fui aceitando que é meu jeito de criar - que não é uma má vontade
ou descompromisso, apenas um jeitinho caótico de dar vida às primeiras ideias. Depois desse
caos eu organizava tudo conforme a escola orientava, isto é, na plataforma Lumiar. O lápis, a
caneta que encontro perdida na bolsa (geralmente sem tampa e de procedência duvidosa) e o
diário que levo comigo são os primeiros passos de um longo processo, conforme mostra a figura
8, em que a primeira coluna se refere à filosofia (com o mestre Volteire) e a segunda à história.
128

Figura 8 - Primeiras anotações do projeto F3/2019.

Fonte: Arquivo pessoal.

Uma vez definido o ponto de partida, fui às aulas práticas. Costumo planejar aulas
dinâmicas que usem variados recursos, que mesclem momentos mais densos e de estudo
dirigido com ações e discussões. Trechos de filmes, interpretação de charges da época,
produção de charge, textos pré-selecionados que esclarecessem sobre as classes sociais do
período, apresentação de grupos, explanações orais, jogos, leituras individuais e em grupos,
podcasts, enfim, cada aula era única e imprevisível. Apesar disso, algo continuava a causar
desconforto. O que havia sido mapeado como visão inicial da turma não parecia passar por um
processo de desacomodação por parte dos estudantes, em que não pareciam formular novas
compreensões e não se abriam para a construção de conceitos. Sentia-os desanimados,
indiferentes e indispostos para as ações. Os diários de aula na plataforma não revelavam muito,
mas chamou a atenção que alguns escreveram que desejavam aulas tradicionais, pois sentiam-
se perdidos e às vezes cansados. Havia uma espécie de apatia unida a um apego ao ensino
tradicional84.
Não lembro bem como ocorreu, mas tive mais um insight. Eles aconteciam geralmente
tarde da noite, quando eu já não queria mais pensar em trabalho e relaxava jogada no sofá

84
Importante destacar que a Lumiar POA foi inaugurada em 2017 e em 2019 tinha apenas 2 anos, dessa forma, os
estudantes já tinham uma longa caminhada no ensino tradicional antes de serem estudantes da Lumiar.
129

pensando na vida. Lembro que já tinha guardado meu material de aula e desligado o computador
quando pensei na potência do teatro, lembrando de minhas oficinas e do caos criativo, anotando
em um post-it algo do tipo: “vivenciar, sentir, não há compreensão sem vivência, precisamos
do teatro”. Essas palavras foram o suficiente para eu lembrar da ideia no dia seguinte, em que
decidi fazer uma grande improvisação em aula, sem aviso prévio, sem estabelecimento de
personagens, nada disso, precisava pegar meus estudantes no susto. Essa turma era
extremamente tímida e pouco flexível para atividades que os tirassem da zona de conforto - não
à toa me pediam por aulas tradicionais ou sentiam-se cansados (risos).
No dia seguinte conversei com a diretora Mafalda, mais conhecida como Sole: “posso
fazer um improviso teatral com a turma amanhã? Desde já alerto que será uma bagunça, creio
que falarão alto, sairão e entrarão em sala de aula, usarão objetos aleatórios da escola, enfim,
nem sei o nível de caos que poderemos chegar”. A diretora me respondeu com o típico brilho
no olho de quando gosta de algo: “claro, mais que defender a interdisciplinaridade eu defendo
a ‘indisciplinaridade’, siga adiante”. Fui para casa animada e planejei a tarde toda. Meu intuito
era que os estudantes vivenciassem a Assembleia dos Três Estados para que compreendessem
melhor as classes sociais daquele período e as desigualdades existentes. Acreditei que a turma
tinha embasamento para o improviso.
Dividi as classes sociais e alguns personagens da época colocando-os em saquinhos para
um sorteio em sala de aula. Ao chegar na escola, esperei dar o sinal de entrada e, sem muita
explicação, perguntei: “vocês podem me ajudar a tirar todas as mesas da sala de aula, deixando
apenas cadeiras?”. Entre curiosidade, indagações e reclamações, o grupo fez o seu
‘aquecimento’ arrumando a sala para a atividade imprevisível.
Desde que cheguei à escola, eu já me sentia em estado performático. Não era a tutora
que ali estava, nem sei se era a professora de história; acho que era a artista, conforme a
percepção de Irwin (2013). Quando tudo foi organizado, pedi que todos se retirassem da sala e
fechei a porta. No pátio, expliquei: “hoje teremos a assembleia francesa dos Três Estados, vocês
lembram o porquê dessa assembleia e a posição de cada grupo social/político? Lembram o que
esse momento impulsionou? Qual seu desfecho?”. Timidamente, os estudantes disseram que
sim, alguns responderam em voz alta. Continuei: “pois bem, hoje essa assembleia será
vivenciada aqui, reproduziremos a nosso modo o que ocorreu em 1789, para isso cada um
assumirá um papel e deverá interpretá-lo da melhor forma possível, quero enxergar um burguês,
um camponês ou um nobre e não mais meus alunos, esses papéis serão sorteados e vocês terão
30 min para se organizarem com aqueles que pertencem ao mesmo grupo social que vocês”.
Minhas instruções levaram a um estado de euforia coletiva: “podemos usar adereços?”,
130

“podemos gritar se for o caso?”, “podemos pensar em argumentos?”, enfim, com essa energia
fui para a porta da sala para fazer o sorteio. Na plataforma Lumiar, há o seguinte registro das
fichas do sorteio:
(I) Você é Maria Antonieta, a nobre rainha, está atônita com a reação do terceiro
estado, fique ao lado do rei e defenda seus privilégios. (1 estudante)
(II) Você é o Rei Luís XVI, você convocou a Assembleia dos três estados, visando
resolver a situação financeira do país, sugerindo que o primeiro e segundo estado
também paguem impostos. Porém, você não admite perder seu posto e privilégios,
nem dividir seu poder, menos ainda com o terceiro estado. Defenda seu poder divino.
Quando a situação tornar-se insustentável a ponto de questionarem o seu poder,
suspenda a assembleia, ordene que todos se retirem e que a guarda garanta isso. (1
estudante)
(III) Você é Necker, ministro das finanças do país e conselheiro, simpatizante da
burguesia, você aconselhou o rei a convocar a assembleia, nela você apresenta a
situação do país e propõe que votem numa solução, porém o terceiro estado reivindica
o voto por cabeça. Prepare sua carta de apresentação sobre a situação do país,
lembrando que você busca uma solução financeira. (1 estudante)
(IV) Você é um guarda real, precisa garantir a segurança da família real e servir as
suas ordens. (1 estudante)
(V) Você é representante do clero, prepare argumentos convincentes, você não
concorda com pagamento de impostos pelo clero, nem com o voto ser por pessoa.
Defenda o voto por estado, respeitando as tradições. (3 estudantes)
(VI) Você é representante da nobreza, prepare argumentos convincentes, você não
concorda com pagamento de impostos pela nobreza, nem com o voto ser por pessoa.
(3 estudantes)
(VII) Você é um trabalhador da cidade, representante do terceiro estado na assembleia,
represente os interesses dos sans culottes, defenda que o voto deve ser por cabeça, não
admita mais pagamento de impostos sobre os seus, você é um dos poucos do seu grupo
social presente na assembleia. (1 estudante)
(VIII) Você é um trabalhador da cidade, o conhecido sans culotte, você não pode
participar da Assembleia, fique na rua e, manifeste-se para defender o interesse do
povo, menos impostos, possibilidade de alimentação, vida digna, assim como a
participação do povo nas decisões do Estado! (3 estudantes)
(IX) Você pertence a “baixa burguesia”, representante do terceiro estado na
assembleia, represente os interesses da pequena burguesia, defenda que o voto deve
ser por cabeça, não admita mais pagamento de impostos sobre os seus. (2 estudantes)
(X) Você é da “alta burguesia”, representante do terceiro estado na assembleia,
represente os interesses burgueses, defenda que o voto deve ser por cabeça, não admita
mais pagamento de impostos sobre os seus. (5 estudantes)
(XI) Você é mulher burguesa, você não pode participar da Assembleia, fique na rua
e, manifeste-se para defender os direitos das mulheres, sua participação política e
cidadania. (2 estudantes)
(XII) Você é uma mulher trabalhadora da cidade, você não pode participar da
Assembleia, fique na rua e, manifeste-se para defender o interesse do povo, como
possibilidade de alimentação e vida digna! (4 estudantes)
(XIII) Você é um camponês que está passando na cidade, procure interagir com todos
que estão ao lado de fora, relate os problemas que a maior parcela da sociedade vive
no campo! (6 estudantes) (FRAGA, 2019, texto digital)

Ao dividir os papéis, os grupos autorizados a participar entraram na sala e os que não


podiam entrar vieram questionar: “ei, como assim não posso entrar?”, “como vou participar e
dizer o que preciso?”, “por que vamos ficar de fora?”, “como vão nos ouvir?”, “o que
faremos?”, e o auge: “isso é injusto!”. Eu não respondi a qualquer pergunta, ficava os olhando
em silêncio, até que uma aluna perguntou: “podemos nos organizar aqui fora e participar da
131

janela, tipo, podemos gritar?”. Respondi a ela que sim, mas ela continuou a indagar: “podemos
fazer cartazes?”. Respondi a ela que sim e, então, veio mais uma indagação, dessa vez de outra
estudante: “podemos então nos revoltar e mostrar isso através de gritos de ordem, pedaços de
pau e bolinhas de papel?”. Eu não respondi, apenas sorri, sendo o bastante para uma onda de
euforia tomar conta daqueles adolescentes. Eu só conseguia ouvir ruídos de muitas vozes
trocando ideias, corpos correndo de um lado para o outro em busca de materiais, de cabos de
vassoura, de qualquer objeto que simbolizasse uma revolta.
Iniciada a assembleia, senti um prazer enorme em ver o improviso de figurinos, tão
criativos, tão coerentes; os estudantes buscaram objetos que faziam sentido, conforme podemos
perceber na figura 9. O início foi tímido, estavam todos um tanto quando nervosos, mas, uma
vez que os personagens representantes do clero e da nobreza começaram a apresentar seus
argumentos para que o aumento de impostos fosse destinado ao Terceiro Estado, a discussão
incendiou. Argumentos por todo lado, gritos de revoltas dos que estavam na janela (conforme
figura 10), ameaças, indignações, o clima de revolta estava no ar e a realeza precisou se retirar
escoltada. Escrevo esse texto sorrindo, pois é uma lembrança que tenho com muito carinho,
jamais vou esquecer daquela energia de caos criativo, daquela grande bagunça de
aprendizagens.

Figura 9 - Assembleia dos Três Estados.

Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução Diego Madia (2022).


132

Figura 10 - Grupos sociais que não puderam participar da Assembleia dos Três Estados.

Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução Diego Madia (2022).

Ao final, ainda conseguimos arrumar a sala e fazer uma roda de diálogo. Naquele
momento parecia que eu tinha outro grupo diante de mim, um grupo questionador, falante e
curioso: “e o que aconteceu depois?”, “a burguesia de hoje é a mesma daquela época, não né?”,
“os camponeses também participaram da revolução?”, “o que mudou com a revolução?”, “e as
mulheres?”. Estavam diante de mim adolescentes vivos, curiosos e cheios de vontade de
aprender. A partir dessa aula, as demais correram com muito mais fluência, com muito mais
qualidade e, ainda, em parceria com minha colega e com o mestre Volteire, consegui usar
práticas performáticas em outras oportunidades dessa união de projetos.
Nesse mesmo dia, durante o recreio, um aluno dessa turma sentou comigo e perguntou:
“Ju, depois dessa aula fiquei pensando em tantas coisas: sempre achei que minha família era
uma pequena burguesia, já que dissemos que somos classe média, mas agora me confundi um
pouco, sendo que meus pais são professores universitários, então não faz sentido serem
133

burgueses. Eles são de que classe ou grupo?”. Depois também perguntou: “e a diretora aqui da
escola, ela é pequena burguesia ou é trabalhadora? Não consigo definir, porque apesar de ela
ser dona dessa escola, tem o dono da ‘marca’ Lumiar, que está bem acima dela e ela tem que
responder a ele, né?”. Essas perguntas sobre classe social renderam uma boa conversa de muitas
perguntas e poucas respostas. Foi uma conversa pontual e individual, mas vi a sua reverberação
em sala de aula, uma vez que esse estudante passou a ser mais ativo nas discussões acerca de
temas próximos. Esse estudante fez suas relações, usou o passado para questionar o seu
presente, construiu e problematizou conceitos.
Em conjunto com o mestre de filosofia, propusemos aos alunos registrarem os tabus que
levantaram e discutiram ao longo do trimestre, escrevendo-os em um panfleto em forma de
perguntas, como um convite à conversa. Como os estudantes amaram a aula que envolvia teatro,
aproveitamos o entusiasmo e ainda propusemos três atividades de encerramento do trimestre.
A primeira era a criação de personagens do período da Revolução Francesa, não precisando ser
apenas da França, mas também de outros lugares do globo. Essa atividade foi bem programada,
em que cada estudante escolheu uma personagem, pesquisou sobre ela e elaborou seu figurino
para um grande encontro dessas figuras no último dia de aula.
Não paramos por aí, ainda escolhemos uma livraria em Porto Alegre que aceitou nos
receber para uma espécie de sarau onde cada estudante se apresentava/discursava e
espontaneamente interagia com personagens que tinham histórias que se cruzavam. Pensamos
também em aproveitar essa caminhada para performar na cidade, já que os estudantes estavam
com seus figurinos: “que tal entregar para pessoas na rua seus panfletos com os tabus e propor
uma rápida conversa?”. E assim fizemos, fomos de ônibus até o parque Redenção e, acredite,
os adolescentes tímidos e indispostos do início do ano aceitaram passar por essa situação. No
parque, aproximavam-se de pessoas desconhecidas, entregavam seus panfletos e, caso
sentissem confortáveis, iniciavam um diálogo, reforçando que não queriam uma disputa de
verdades, apenas uma troca de ideias. Muitos estudantes relataram sobre como foi difícil as
primeiras abordagens, mas que era muito satisfatório quando alguém parava para conversar
com eles. Uma das estudantes chorou ao nos relatar a história compartilhada por um senhor
com ela na oportunidade da conversa. Fomos à livraria, fizemos nosso sarau de encontro das
personagens e voltamos satisfeitos para a escola.
134

Figura 11 - Adolescentes do grupo F3 conversando sobre tabus com pessoas desconhecidas do parque Redenção.

Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução Diego Madia (2022).

Percebemos que muitos dos tabus elencados pelos estudantes eram questões sobre sexo,
sexualidade e drogas, faltava apenas o fechamento final desse projeto, um fechamento que
evidenciasse que tabus podem e devem ser ‘cortados’, conforme o nome do projeto principal.
Foi então que decidimos fazer uma entrega de pareceres85 diferente para as famílias, propondo
um Café Filosófico, objetivando discutir os temas tabus que os panfletos instigavam.
Inicialmente, o grupo não gostou nada da ideia: “ah não, não tenho coragem de conversar essas
coisas com meus pais”, “meus pais não vão ouvir outras opiniões”, “eu tenho vergonha”, no
entanto, outras vozes da turma fizeram o contraponto: “não queríamos cortar tabus? conversar
com os pais é um super exercício”, “não precisamos sentar sempre na mesa de nossos pais,
podemos fazer rodízios conversando com os familiares uns dos outros”. Também houve certa
discordância da minha colega de tutoria, pois se preocupava com o teor das perguntas tabus e
como isso poderia afetar as famílias. A proposta era deveras ousada, mas, depois de muita

85
Todo final de trimestre há uma reunião com os familiares em que fazemos o fechamento do trimestre (avaliando-
o e entregando o parecer individual) e apresentamos o próximo.
135

conversa e troca de percepções, o grupo decidiu que queria realizar o café, fizemos, então,
acordos e definimos os combinados do Café Filosófico em conjunto, conforme figura 12.

Figura 12 - Documento de orientações para o Café Filosófico com os familiares.

Fonte: Print de arquivo pessoal.

A experiência final do café foi incrível, senti muito orgulho da minha turma, da sua
coragem e disposição. De fato, alguns momentos foram um pouco tensos, alguns familiares
tentavam dominar o assunto e tinham muita dificuldade em ouvir outra visão, principalmente
136

temas ligados a gênero. Em contrapartida, os estudantes foram brilhantes, retomavam os


combinados, buscavam alternativas através de objetos de fala para organizar a discussão e
relembravam os familiares do quanto era importante ouvir. A maioria das famílias foi muito
aberta para esse momento e sentimos, no fim, uma sensação de ter feito a diferença, de ter
transformado algo ou, mais humildemente: de fazer parte de tentativas reais de mudança.

| Cena 13.1.3: desdobramentos do improviso

O relato por si evidencia o enlace pesquisa-ação, potência teatral e letramento histórico,


em todo caso, faz-se importante algumas considerações. No tempo em que trabalhei na Lumiar
não tive experiências com estudantes que levantassem bandeiras negacionistas ou ideologia
neonazista, pelo menos não de forma aberta e consciente. Suponho que a comunidade escolar
entende que a proposta da escola é problematizadora, crítica e democrática e, portanto, quem
busca a Lumiar já está razoavelmente aberto para outras abordagens de ensino que não a
tecnicista. Em todo caso, esses adolescentes e pré-adolescentes com quem trabalhei são da
geração Z, altamente digitalizada e expostos a seus fenômenos, que moram nas proximidades
da escola e de quem constantemente ouvi conversas, debates e discordâncias no recreio sobre
as manifestações no Parcão e sobre pautas levantadas pela direita extremista. Adolescentes não
são “tábulas rasas”, logo, os efeitos da Sociedade das Plataformas também reverberam em suas
visões de mundo e subjetividades, mesmo que os negacionismos e ideologias supremacistas
não sejam defendidas como uma crença ou conscientes, estes adolescentes estão sujeitos às
manipulações midiáticas e às ideologias do neoliberalismo.
É possível perceber esse reverberar através das questões levantadas pela turma no início
do trimestre: “por que devemos acreditar na ciência?”, “o que é a ciência?”, “a verdade existe?
O que é a verdade?”, “por que é tão difícil para a sociedade construir um projeto que beneficie
a todos?”, “como argumentar que a Terra não é plana?”. Essas e outras questões trazidas por
esses adolescentes mostram que ninguém passa imune sobre as questões de seus tempos. Além
desses questionamentos genuínos, olhando novamente para essa cena, consigo enxergar os
fenômenos submersos, na dificuldade da turma em dialogar, em aceitar o outro como ele é, na
divisão que existia entre meninos e meninas e na dificuldade em relacionar suas famílias com
a classe trabalhadora, ampliando e confundindo-se com o conceito de classe média. Esses são
alguns dos aspectos que podemos fazer um paralelo com os fenômenos de nossos tempos.
137

Nesse relato, a arte contribuiu para construção de outras leituras de mundo, como o
improviso que provocou tanto frenesi na turma pode contribuir com o letramento histórico,
visto que os estudantes interpretaram e alguns arriscaram conceituar classe social, nobreza,
clero e principalmente burguesia. No entanto, não necessariamente conexões entre o passado e
o presente importam, mas os questionamentos que podem suscitar sobre o presente: como é
aqui? Por que é assim?
Após a prática performática, costumo fazer uma roda de diálogo e nessa conversa os
estudantes relataram o quanto foi importante sentirem “na pele a desigualdade”, fazendo
perguntas sobre temas como classes sociais e desigualdade, sobre como a mulher era rebaixada
à uma “coisa” - assuntos que já vínhamos trabalhando, mas que pareciam não tocá-los. Segundo
Bruno Costa (2022, p. 157), “o negacionismo, no debate sobre a desigualdade social, apresenta
uma peculiaridade curiosa: é pouco frequente a negação da existência do fenômeno. Talvez por
ser a desigualdade tão evidente na experiência imediata do cotidiano [...]”. Dessa forma, não
sendo negada diretamente, a desigualdade é naturalizada, justificada pelos interesses do
mercado e maquiada pela ideologia da meritocracia e do empresário de si. O tema desigualdade
opera como um negacionismo diferente, pois há a negação de suas consequências deletérias
para toda a sociedade, através de uma prática que torna os mais vulneráveis invisíveis ou
culpados por sua condição. Sendo assim, a desigualdade não chega a ser plenamente negada,
mas suas raízes e consequências sim.
Negar os efeitos nefastos das desigualdades sociais é alimentar a indiferença e a
hostilidade, além de avançar em níveis de violência, a negação dos efeitos da desigualdade gera
uma sociedade que combate políticas sociais provocando ainda mais desigualdade, pois
bloqueia possibilidades e disposições para a construção de soluções coletivas para os
problemas. Costa (2022, p. 157-158) afirma que
[...] altos níveis de desigualdade comprometem a própria coesão social, ao minar a
noção de destino compartilhado, de que o esforço comum beneficia a todos, e a própria
capacidade de alteridade, uma ideia mínima de igualdade que permite a alguém
colocar-se no lugar do próximo e reconhecer que poderia ser a própria pessoa a viver
os sucessos ou o sofrimento do outro.

Tive experiências no ensino público e no privado, me fazendo perceber que


negacionismos e reflexos do neofascismo existem em todos lugares, inclusive dentro de mim,
me fazendo constantemente me autoanalisar, autoavaliar e estar em permanente
(des)construção. No entanto, estando no ensino privado, sempre me pergunto: como tocar meus
estudantes para que percebam os efeitos das desigualdades, mesmo quando não passam por
situações limites? Não creio que haja uma resposta para essa pergunta. Enquanto houver
138

desigualdades, buscaremos respostas para elas. Porém, penso que há caminhos pedagógicos que
não se acomodam em apenas reproduzir essa realidade, sendo a arte um caminho possível.
Pereira e Torelly (2015) elencam três elementos do jogo nas aulas de história que constituem
não-lugares onde originam-se os conceitos, elementos que faço uma conexão com a
improvisação que realizamos na aula de história relatada, visto que é considerada a prática
performática referida (um jogo de improviso86). Os elementos são: o estado lúdico do jogo, a
brincadeira com a realidade histórica e a imaginação.
Tais elementos, na aula de história, através do jogo (nesse caso, do relatado jogo de
improvisação), contribuem para a formação da consciência histórica, uma vez que ao despertar
o estado lúdico os estudantes têm uma tendência a estarem no presente. O lúdico gera alegria,
abertura e simpatia com a aula de história, pois “é possível aprender como algo que implica
criação e não apenas um movimento de reconhecimento do conteúdo” (PEREIRA; TORELLY,
2015, p. 97). O jogo em aula gera risos, agitações e estados de euforias focadas. hooks (2020,
p. 124-125) diz ser importante professores se beneficiarem do poder do humor, pois ele opera
“como uma força na sala de aula que engrandece o aprendizado e ajuda a criar e sustentar
conexões na comunidade. Quando rimos juntos, professores e estudantes, trabalhando lado a
lado, nos tornamos mais equânimes”.
A brincadeira com a realidade histórica permite perceber a infinitude do passado, não
se afastando da verdade histórica, mas trabalhando com ela, pois, segundo aponta Pereira e
Torelly (2015, p. 98),
[...] se permite brincar com ela, jogar com outras possibilidades, sempre hipotéticas
de finais, de injunções, de vitórias ou de derrotas. Pois que é nessa brincadeira com a
verdade que o estudante pode aprender a densidade de um conceito, seu potencial
explicativo e sua operacionalidade.

Essa brincadeira com a realidade histórica permite o contato dos estudantes com relatos
do passado e, mais do que isso, a criação do seu próprio relato. Ao falar sobre jogos de
improviso, Desgranges (2018, p. 88) afirma que
[...] possibilita que os participantes exprimam, de diferentes maneiras, os seus pontos
de vista, fomentando a capacidade de manifestarem sensações e posicionamentos,
tanto no que se refere ao microcosmo das suas relações pessoais, quanto no que diz
respeito às questões da sua comunidade, do seu país e do mundo. Além de constituir-
se em uma atividade que propõe o desenvolvimento do olhar crítico, pois, durante o
processo, os integrantes são incentivados a estar atentos aos nós das questões, a lançar
"porquês" às situações apresentadas: por que isto é assim? Poderia ser diferente?

86
Segundo Desgranges (2018, p. 87), “os jogos de improvisação teatral, ou jogos improvisacionais, constituem-
se em exercícios teatrais em que um ou mais jogadores-atores executam uma cena de maneira improvisada, ou
seja, sem ensaio. A cena pode ser improvisada a partir de breve combinação estabelecida pelos jogadores-atores,
ou mesmo sem combinação prévia, partindo-se de uma proposta dada pelo coordenador do processo”.
139

O terceiro elemento apontado por Pereira e Torelly (2015) é a imaginação, que contribui
com a formação da consciência histórica, uma vez que se experiencia o passado se imerge no
tempo, contribuindo para a construção de conceitos. Experienciar tem uma ligação com o
estético, pois, conforme Spolin (2008, p. 3), enseja que “penetrar no ambiente, é envolver-se
total e, organicamente com ele”, envolvendo os níveis “intelectual, físico e intuitivo”, que
possibilitam a reflexão sobre si e a reinvenção, “abrindo-se para diferentes formas de
compreender e retratar o mundo” (DESGRANGES, 2018, p. 88).
A atividade de criar personagens históricas e ousar ir para a rua dialogar com pessoas
desconhecidas sobre temas tabus, como identidade de gênero, descriminalização de drogas,
aborto e sexualidade, favoreceu um descentrar-se de si, abrir-se para o outro. Tiburi (2018) diz
que o diálogo é uma forma de resistência ao neofascismo, pois este pauta-se no autoritarismo,
na destruição do diálogo como terreno fértil para brotar violências e, em contrapartida, o
desenvolvimento do diálogo “é um ato linguístico complexo capaz de promover ações de
transformações em diversos níveis” (TIBURI, 2018, p. 23). O diálogo promove a escuta e a
empatia, uma vez que “o diálogo não é mera conversa entre iguais, tampouco é a fala
complementar, a conversação amistosa, ou a armação de um consenso, mas a prática concreta
da escuta como abertura à alteridade” (TIBURI, 2020a, p. 179) e, para que o fascismo deixe de
ser “eterno”, como diz Eco, precisamos transformar “as condições da qual ele se desenvolve"
(TIBURI, 2020a, p. 179), isto é, promover relações baseadas no diálogo.
A partir das experiências performáticas relatadas, percebi que o desejo pelo aprender
emergiu, fazendo com que as características e desejos do grupo também pudessem ser
evidenciados e o mais importante, o letramento histórico foi possível, visto que novas leituras
sobre classes sociais e desigualdades foram realizadas. O segundo trimestre foi construído a
partir de novos olhares e novas relações de grupo emergiram, tanto que o projeto principal do
segundo trimestre foi a construção de uma cooperativa na turma, pois os estudantes sentiram
necessidade de trabalhar mais em equipe e estreitar seus laços através de ações coletivas.

Figura 13 - Relatos dos estudantes na plataforma Lumiar, no dia do improviso da Assembleia dos Três
Estados87.

87
Anexei o relato dos que preencheram o mosaico, nem todos os presentes na aula preencheram seus diários de
bordo e alguns faltaram no dia. Não realizei qualquer tipo de correção linguística.
140

Fonte: Plataforma Lumiar.


141

| Cena 13.2.1: Uma montagem teatral “mucho loka”

Turma: Grupo F2 (4º, 5º e 6º ano - pré-adolescentes e adolescentes)


Meu lugar no grupo: Mestre de teatro
Projeto Mucho lokos
Período: Segundo trimestre de 2019.

Na experiência que relatarei, eu ocupava um outro lugar no grupo F2, pois, conforme já
dito, eu era tutora do grupo F3, mas todos os educadores fixos participavam da cartografia das
turmas a fim de ampliar olhares e contribuir com diferentes repertórios. No início do segundo
trimestre, eu participei da construção cartográfica dessa turma de forma mais indireta. Lembro
que foi relatado pela tutora e pelo assistente que essa turma precisava melhorar suas formas de
se relacionar, pois mostravam-se indisponíveis para o diálogo, para a construção e respeito de
combinados de convivência, além de serem agitados e resistentes às propostas pedagógicas.
Como interesses pulsantes no grupo, dentre muitas coisas, foi relatado o interesse pelo
fantástico, uma curiosidade por casos sinistros ocorridos na cidade, que misturavam realidades
e fantasia.
Em uma reunião com a coordenadora da escola e a tutora do F2, fui convidada para ser
mestre de teatro nessa turma, pois o grupo havia definido história como projeto principal do
trimestre, com o propósito de estudar os casos sinistros da cidade, em que o mestre seria um
colega da história. No entanto, o grupo desejava muito transformar um desses casos em uma
peça de teatro, daí partiu o convite. Tive dois sentimentos, o primeiro, que hooks (2017) chama
de Eros, pois fiquei extremamente alvoroçada com a ideia de uma montagem teatral, visto que
a última tinha sido em 2014, mas também fiquei com muito medo: apenas um trimestre para
uma montagem teatral? Leitor, pense bem nisso: um trimestre! Ocorrendo tudo bem,
significariam, no máximo, 10 encontros entre o primeiro (de planejamento com o grupo) e o
final (de autoavaliação).
Procurei verbalizar para a coordenadora e a tutora minhas empolgações e medos,
expliquei como era meu processo criativo com estudantes, que achava praticamente impossível
trabalhar as questões de corpo e expressão do teatro, dialogar sobre história, pesquisar, elaborar
roteiro, definir e construir personagens, criar figurinos, ensaiar, enfim, todas as diversas etapas
de uma montagem teatral em apenas um trimestre. Conversamos muito sobre o assunto e a
coordenadora me acalmou em relação ao conteúdo e roteiro, pois esse projeto de teatro estaria
142

conectado totalmente com o projeto de história. Também me acalmou quanto ao resultado final,
sugerindo algumas simplificações, isto é, não preocupar-me com o resultado, afinal todos
entenderiam o tempo que tivemos, a faixa etária do grupo e as suas dificuldades. Ainda,
ressaltou que o mais importante seria o processo e que o teatro contribuísse para qualificar as
relações de grupo, que até então demonstravam dificuldades em trabalhar coletivamente com
qualidade e respeito uns com os outros.
Sinceramente, mesmo com esses argumentos, eu sabia que era uma tarefa praticamente
impossível e não sei bem porque aceitei, acho que Eros falou bem mais alto que o medo. Talvez
por eu adorar turmas agitadas, porque conectei isso a turmas criativas, ou talvez porque eu
estava com saudade da energia do teatro, enfim, não sei bem, só sei que aceitei a missão
(im)possível. Uma vez aceito o convite, fui apropriar-me do que havia sido planejado com o
mestre de história, ficando definido, através de registro na plataforma Lumiar, que
[...] através da pesquisa de lendas, contos e causos (casos reais e ficcionais), os
estudantes irão descobrir os mistérios que constituem os imaginários da cidade de
Porto Alegre. A partir deles, conhecerão parte da história da cidade ao mesmo tempo
em que farão experimentos éticos-criativos ao problematizar o material pesquisado
(SCHIAVONE, 2019).

Para desvendar esses mistérios, o grupo F2, juntamente com seu professor de história,
criou uma agência de detetives para investigar os casos sinistros da cidade. A turma nomeou o
projeto como Problemáticos88. Segundo Schiavone (2019), o projeto de história tinha como
etapas
INTRODUÇÃO (Primeiro Assombro): Sensibilização. Elaboração de um logotipo
para agência de detetives. Definição dos codinomes dos detetives.
IMPLEMENTAÇÃO (Segundo Assombro): Pesquisa virtual de casos e lendas
ocorridas na cidade de Porto Alegre. Marcação dos espaços no mapa da cidade com
os locais das ocorrências. Saída em campo para reconhecimento dos lugares dos
acontecimentos. Retomada dos casos analisados e seleção daqueles que serão
aprofundados. FASE FINAL (Assombro Final): Elaboração de documento
exemplificando, com um caso particular, os caminhos possíveis para um bom
desfecho do caso analisado (experimento ético-criativo). Elaboração de outras formas
de expressão.

Conversando com o professor de história da turma, entendi que ele pretendia, através
desse projeto, dar mais visibilidade à cultura afro-brasileira, que na escola não se fazia presente.
O mestre de história também me contou que a turma seria dividida em pequenos grupos para
investigar os seguintes casos: história de Maria degolada, a maldição das torres das Dores, o

88
Fiquei bem curiosa em relação ao nome do projeto e, não me aguentando de curiosidade, perguntei a razão do
nome no primeiro encontro com essa turma. Por que “Problemáticos”? Ao fazer a pergunta, os estudantes se
olharam e riram bastante, depois disseram que a razão estava ligada aos casos que seriam problematizados na
agência de detetives, mas seus corpos e expressões me diziam outra coisa, que o grupo se enxergava como uma
turma problemática.
143

caso do linguiceiro, a prisioneira do Castelinho da Bronze, o fantasma do museu Júlio de


Castilhos, o príncipe Custódio, o Bará do Mercado Público, a praça dos enforcados, o hospício
São Pedro, a lenda de Obirici e a lenda de Obá.
Combinamos que, no primeiro mês, enquanto eu trabalharia com jogos teatrais para
expressão, a turma faria suas primeiras descobertas com a pesquisa histórica, os grupos
apresentariam e escolheriam um caso para encenar. Também, faríamos um passeio juntos até
esses territórios onde os casos aconteceram.
Parti, então, para meu planejamento e, conforme relatei no Ato I, meu processo de
montagem teatral é longo e lento, no entanto, esse foi bem diferente: rápido e atropelado, mas
incrivelmente surpreendente. Iniciei meu planejamento focada nas experiências teatrais, em
aproximar o grupo através da energia e magia inexplicável do teatro, não estava pensando em
letramento histórico. Meu propósito era fazer arte e educação com aquelas pessoas. Lembrei
muito das aulas que tive com o Zé Adão Barbosa, em como ele, acima de tudo, estava
preocupado que seus alunos experienciassem a energia do teatro, foi com essa lembrança e
intuito que fui planejar o projeto de teatro com o grupo F2.

Figura 14 - Primeiros rabiscos de planejamento do projeto de teatro do F2.

Fonte: Arquivo pessoal.


144

| Cena 13.2.2: peça: os fantasmas do museu Júlio de Castilhos

Comecei diferente com essa turma, sem muito cuidado, já “jogando-os no fogo” - não
se assuste leitor, o que fiz, de fato, foi já iniciá-los na prática sem muitas apresentações iniciais.
No primeiro dia de aula me apresentei, fiz uma rápida chuva-de-ideias do que pretendiam
fazendo teatro ou o que pensavam que era o teatro, fizemos alguns combinados e descemos
para a aula prática no pátio da escola.
Costumo iniciar os encontros com caminhadas, para desenvolver a consciência
sensorial, estabelecer contato com a substância do espaço, sentir liberdade, alegria e
espontaneidade e criar ritmo de grupo (SPOLIN, 2008). As caminhadas com múltiplas
instruções também servem como aquecimento. Depois, brincamos através de jogos que
envolviam pequenas atuações, muito improviso e desafios coletivos. Esses estudantes estavam
em estado de total euforia e eu me sentia exatamente como eles, pensando: Como é bom me
mexer! Como é bom falar alto! Como é bom rir! Como é bom brincar! Como é bom criar com
esses ‘adolescentinhos’! Como é maravilhoso sentir o corpo e a mente presentes!
No final do encontro, fizemos uma roda de diálogo, retomando a chuva-de-ideias, em
que os estudantes falaram um pouco de si, sobre como se sentiram na aula e escolheram o nome
do projeto “Mucho lokos”, justificando a escolha do nome dizendo que a aula tinha sido “mucho
loka”. Conversamos, também, sobre atuação e montagens teatrais, sobre suas intenções com
um projeto de teatro, sobre a razão do projeto e se estavam mesmo todos dispostos a encarar
um desafio tão difícil. Fizemos um grupo virtual para troca de referências e informações sobre
teatro e sobre o tema do roteiro que ainda não sabíamos, aliás, devo admitir que esse grupo
virtual foi essencial, pois, através dele, despachamos muitas coisas, dividimos tarefas,
compartilhamos fotos, referências, textos e até áudios que ajudavam na memorização de falas.
Nos próximos quatro encontros, foquei nos jogos e exercícios, que tinham como
objetivos desenvolver a imaginação, criação, comunicação verbal e não-verbal, imitação e faz-
de-conta, cenas improvisadas, trabalho colaborativo, papéis e funções na estrutura de uma
equipe. Após ser informada que a turma escolheu o caso do fantasma do Museu Júlio de
Castilhos para encenar, reduzi o tempo dos jogos para ganhar um pouco mais de tempo para
planejar coletivamente.
Uma vez escolhido o tema, percebi novos desafios além do tempo: como criar um
roteiro se os estudantes ainda não têm aprofundamento sobre o tema? Como envolver todos
numa peça? Além disso, até então, eu não tinha trabalhado com tema específico, conforme
145

relatei no Ato I, pois, é através dos improvisos que as cenas e o tema iam surgindo, dessa forma,
eu nunca tinha trabalhado com um tema já posto e sem tempo para emanar as cenas ao natural.
Apostei nos acordos com o grupo, na confiança e também na organização. Fizemos então alguns
combinados:
(1) cada um só se disponibilizaria a fazer o que tivesse certeza que daria conta;
(2) precisaríamos confiar muito uns nos outros;
(3) ao partilhar referências, todos deveriam se comprometer com as leituras,
principalmente em decorar suas falas;
(4) evitar ao máximo faltar às aulas;
(5) todo encontro leríamos juntos as cenas que estivessem prontas, as personagens
improvisariam as cenas com os textos e, em grupo, discutiríamos como melhorar
a cena, uma vez acordado, apostaríamos nos ensaios delas;
(6) no final de todo encontro, conversaríamos sobre o desenrolar da história e, a
partir dessa conversa, eu escreveria novas cenas (sempre consultando o
professor de história) e assim seguiríamos até a conclusão do roteiro;
(7) cada um ficaria responsável pela construção do seu figurino;
(8) criaríamos equipes de trabalho responsáveis pelo cenário, organização e ajustes;
(9) nosso super assistente construiria a trilha sonora;
(10) todo tempo que a turma tivesse disponível, usaria para estudo dos textos e
ensaios.
Concluídos os combinados, conversamos sobre como seria o roteiro, a técnica que mais
usei foi perguntar, apostei na pedagogia da pergunta (FREIRE; FAUNDEZ, 1985) e na
abordagem de solução de problemas (SPOLIN, 2008). Em suma, na ideia de que todo
conhecimento nasce da curiosidade e, portanto, cabe ao educador instigá-la através de
perguntas, seja acolhendo as que surgem, seja provocando através de indagações, pois
“estimulá-los a fazer perguntas em torno da sua própria prática e as respostas, então,
envolveriam a ação que provocou a pergunta. Agir, falar, conhecer estariam juntos” (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985, p. 26). Através das perguntas íamos conversando e buscando respostas e, da
mesma forma, utilizei a técnica de solução de problemas que, segundo Spolin (2008, p. 19),
[...] exerce a mesma função que o jogo ao criar unidade orgânica e liberdade de ação,
e gera grande estimulação provocando constantemente o questionamento dos
procedimentos no momento de crise, mantendo assim todos os membros participantes
abertos para a experimentação. Uma vez que não há um modo certo ou errado de
solucionar o problema, e uma vez que a resposta para cada problema está prefigurada
no próprio problema (e deve estar para um problema ser verdadeiro), o trabalho
contínuo e a solução dos problemas abre cada um para sua própria fonte e força. A
maneira como o aluno-ator soluciona o problema é uma questão pessoal.
146

E, para ser sincera, problemas e perguntas não nos faltavam (risos). Na primeira
conversa, precisamos responder a algumas perguntas simples, lembro de algumas: onde se
passaria a história? Teria um fantasma no museu mesmo? Seria um caso a ser investigado ou
não? Como primeiros encaminhamentos, o grupo definiu que teria sim um fantasma no museu,
a agência de detetives da aula de história seria o fio da narrativa e os detetives viveriam nos
anos 1970, pois foi nesse período que foi noticiado que um vigilante pediu demissão porque via
fantasmas. A agência de detetives se chamaria “problemáticos”. Como a turma sabia que
constantemente o museu estava fechado, esse seria o motivo de figuras públicas recorrerem à
agência de detetives. Segundo solução dos estudantes, o museu fechou nos anos 1970 porque
havia um fantasma, mas os detetives precisavam desvendar o caso para o museu voltar ao
funcionamento. Enfim, tivemos um início.
Dois exercícios contribuíram para a construção das personagens: um de definição de
funções e outro de estruturação de personagem. Certo encontro, fiz uma tabela no quadro e pedi
para que cada um escrevesse seu nome em post-its, colocando-os nos lugares que se sentiam
mais confortáveis ou se identificassem, pensando na construção do roteiro e sua vivência
prática. As opções eram:

Muitas Poucas Adoro Adoro Adoro Sinto muita vergonha, Sou muito
falas falas escrever ler figurinos e mas estou disposto/a a organizado/a
fantasias encará-la

Dessa forma, consegui dividir quem ficaria com personagens com falas longas e quem
ficaria com falas mais curtas, assim como constituir alguns grupos de trabalho. Posteriormente,
fizemos uma lista de personagens que seriam fundamentais e, nesse momento, os estudantes
precisaram aprofundar mais do assunto, pois não estava bem claro o período que Júlio de
Castilhos viveu. Depois que estavam mais apropriados, selecionamos os primeiros papéis,
sabendo que poderiam surgir outros ao longo do processo. Como atividade de casa, os
estudantes precisaram construir uma ficha técnica de seus personagens, descrevendo os
seguintes aspectos:
Nome da personagem, altura, idade, cabelo (cor, comprimento e estilo), sotaque
(inclui voz, estilo da fala, gírias, frases ou palavras que são sua marca registrada, roupa
que usa (figurino), ocupação, traços de personalidade (tímido, extrovertido,
autoritário, bajulador, honesto, bondoso, tem senso de humor…), traço mais forte,
traço mais fraco, o que a personagem teme?, do que a personagem se orgulha? do que
a personagem sente vergonha? o que é mais importante a saber sobre essa
personagem? problema atual, qual é o objetivo do personagem na história? que traços
de personalidade irão ajudar ou atrapalhar o personagem a atingir seu objetivo?, o que
147

faz o personagem se diferenciar de personagens similares? por que o público irá se


lembrar vivamente desse personagem? (FRAGA, 2019, texto digital).

A partir da definição das personagens e da entrega das três primeiras cenas, confesso
que minha memória só revela flashes de puro frenesi. Seguimos a rotina combinada: nos
encontrar, ler os roteiros novos (sempre fazíamos modificações de acordo com os apontamentos
dos estudantes), fazer improviso, definir a cena, ensaiar e, no fim do encontro, uma roda de
diálogo para traçar o roteiro das próximas cenas.
A peça, que deveria ser simples e muito sucinta, chegou a 19 cenas, com uma duração
de uma hora de apresentação. As falas, que deveriam ser curtas, algumas vezes foram longas,
pois, a cada roda final de diálogo, os estudantes me enchiam de dúvidas sobre os fatos ocorridos
na época, de forma que íamos encontrando as respostas que acabavam compondo o texto teatral.
Pessoalmente, não gosto de cenas com falas longas e cheias de informações, mas, naquela
situação, com estudantes tão curiosos querendo entender tudo que pudessem, algumas falas
ficaram densas, pois faziam sentido para esclarecer o mistério do roteiro. Fizemos uma grande
mistura de fatos reais e imaginários.

Figura 15 - Sinopse da peça Os fantasmas do museu Júlio de Castilhos.

Fonte: Arquivo pessoal.


148

Construímos vinte e sete personagens, cada número corresponde a um estudante:

Personagens

1 - FANTASMA DE JÚLIO DE CASTILHOS


- VISITANTE DO MUSEU

2 - FRANCISCA - SECRETÁRIA DA AGÊNCIA DE DETETIVES


- MÉDICA

3 - MARIA FRANCELINA - DETETIVE


- HONORINA DE CASTILHOS

4 - JÚLIO DE CASTILHOS

5 - FELIPE – DIRETOR CHEFE DA AGÊNCIA DE DETETIVES

6 - PATY – DETETIVE

7 - JOSÉ – MEDIADOR NO MUSEU JÚLIO DE CASTILHOS


- BABALORIXÁ

8 - VISITANTE DO MUSEU
- PRÍNCIPE CUSTÓDIO

9 - VICK – DETETIVE

10 - GUSTAVO – DIRETOR DO MUSEU JÚLIO DE CASTILHOS

11 - CLÁUDIA – JORNALISTA
- CAROLINA – MÃE DE JÚLIO DE CASTILHOS
- PRINCESA DO REINO DE BENIN

12 - MARTIN - DETETIVE

14 - LEOPOLDO – SECRETÁRIO DE CULTURA DO RIO GRANDE DO SUL


- TRABALHADOR NA AGÊNCIA DE DETETIVES

15 - VIGILANTE DO MUSEU
- MARAGATO

16 - PEVISQUINHO – AUXILIAR DO DIRETOR CHEFE DA AGÊNCIA DE DETETIVES

17 - ANTÔNIA – HISTORIADORA

18 - TRABALHADOR DA AGÊNCIA DE DETETIVES


- JORNALEIRO
- CHIMANGO
- RELIGIOSO

Eu teria tanto mais a contar desse projeto, mas ficaria deveras longo, e creio que o
importa até aqui é que foi simplesmente surpreendente e única a experiência com essa turma.
Todos estavam no palco de maneira igualitária, pois não trabalho com protagonistas em minhas
peças - mesmo a narrativa sendo centrada em Júlio de Castilhos, ele não foi o protagonista.
149

Todas as personagens, com pequenas exceções, foram igualmente relevantes e todos meus
queridos ‘adolescentinhos’ protagonizaram esse espetáculo. Assim, foi, de fato, um espetáculo!
Até hoje não consigo acreditar no que fizemos, vivenciamos e aprendemos em um tempo tão
curto, mesmo que alguns ensaios tenham acontecido já após o fim do trimestre, assim como a
apresentação, já que tivemos menos de quatro meses para construir tudo.
De toda forma, o vínculo foi tão forte com esses estudantes que fiquei com eles até
minha saída da Lumiar. No terceiro trimestre, a tutora da turma precisou pedir demissão e eu
fiquei como tutora do F2. Em 2020, ano caótico da pandemia, eles foram meus maiores
companheiros. Em 2021, a maior parte desse grupo estava avançando para o F3 e eu os
acompanhei voltando a ser tutora do F3. O crescimento que eu vi nessa turma é de orgulhar
qualquer professor, a arte reverberou na vida. Após o espetáculo, a turma era outra, eu também
já não era mais a mesma. Se você, leitor, desejar assistir, a peça está disponível em plataforma
digital89.

| Cena 13.2.3: desdobramentos da montagem teatral

Que pistas o projeto Mucho lokos revela para compreender a pergunta geradora da
pesquisa? O que esse projeto revela que possa ajudar a enfrentar negacionismos e neofascismo?
Para responder a essas questões, preciso, novamente, recorrer a memórias. Mesmo que na época
eu não estivesse pesquisando sobre esses fenômenos, combatê-los faz parte de meu trabalho
como educadora, assim, eu e meus colegas tentávamos estar atentos às suas manifestações. Um
dos aspectos compartilhados entre nós era a dificuldade de trazer a cultura afro-brasileira para
a escola e abordar temas correlacionados, pois tínhamos noção de que os empecilhos estavam
ligados ao racismo estrutural e à branquitude, uma vez que nas cartografias a invisibilidade
negra brasileira tornava-se gritante. Quando trabalhado o tema, era por necessidade e não como
interesse, pelo menos do que tenho lembrança.
O projeto Problemáticos, de história, foi muito importante para dar visibilidade à cultura
afro do Rio Grande do Sul, pois o mestre abordou de forma brilhante questões como resistência,
preconceito, invisibilidade, violência e as religiões de afro-gaúchas, através dos casos
selecionados para serem desvendados em sua aula. Entretanto, um aspecto chamou nossa
atenção: por que, dentre tantos assuntos, o grupo F2 escolheu o tema do museu? Será que o
grupo que apresentou esse tema empolgou? Será que houve algum tipo de rejeição aos outros

89
"Os Fantasmas do Museu Júlio de Castilhos" - Grupo F2 - Escola Lumiar
150

casos, pois a maioria são histórias relacionadas a situação do negro no país, oriundas da
escravidão e da desigualdade que se sucedeu? Não fizemos uma investigação sobre isso, então
seria imprudente fazer qualquer tipo de afirmação, a única que cabe é que, mais uma vez, negros
não estavam em evidência nos assuntos de maior interesse.
Em uma das aulas de história, o mestre fez um mapa com a turma dos “pontos de contato
entre os casos investigados a partir da exploração das possíveis relações que eles guardam entre
si. Para isso foram elaborados seis (6) grandes eixos ou ponto de encontro nos quais os casos
podem ser agrupados” (SCHIAVONE, 2019, texto digital), conforme as duas imagens que
seguem:

Figura 16 - Organização dos pontos de encontro das histórias do grupo F2.

Fonte: Schiavone (2019) Plataforma Lumiar.

Figura 17 - Organização dos pontos de encontro das histórias do grupo F2.

Fonte: Schiavone (2019) Plataforma Lumiar.


151

Esses mapas, que revelam um pouco do trabalho pedagógico do professor de história e


seus detetives, deixam mais evidentes os temas relacionados à negritude, cultura afro-brasileira
e desigualdades raciais. Tenho lembrança que fiquei encantada com esse trabalho e surpresa
quando soube que a escolha da turma era sobre o museu, confesso que não busquei aprofundar
essa questão e, por hora, retorno ao processo criativo.
Após definirmos o tema, a agência de detetives dos anos 70 e os primeiros personagens,
aconteceu algo do tipo “e agora, o que fazemos?”. Relatei que usei dois autores como suporte,
Freire e Spolin, dando ênfase à importância da pergunta e na técnica de solução de problemas,
logo, eu só redigia as cenas seguintes após diálogo e concordância com o grupo, até hoje não
escrevi um roteiro completo sozinha ou pré-definido, eles são feituras de muitas mãos.
Bom, tínhamos vários problemas: quem é o fantasma do museu? Por que teria um
fantasma? Qual a relação existente entre o museu, o Júlio e o fantasma? Dessas perguntas, os
estudantes foram criando hipóteses e novas perguntas. Tentarei reproduzir/imaginar um tipo de
diálogo que às vezes acontecia:
- O fantasma pode ser o próprio Júlio! Claro!
- Mas por que ele seria um fantasma?
- Dizem que fantasmas são almas que ficam presas.
- Minha tia vai no centro espírita e disse que existem espíritos que ficam presos
aqui.
- Ah, uma vez (...seguem muitas histórias).
- Boa, então ele ficou preso porque tinha pendências na Terra.
- Mas que pendências?
- Deve ser das guerras que ele se envolveu.
- Ele se envolveu em guerras?
- Acho que se envolveu sim. Ju, o Júlio se envolveu em guerra, né?
Essa frase de socorro “oh Juuuuu!” era meu momento de intervenção, se tivesse tempo
eu dava poucas informações e estimulava a pesquisa sobre a pergunta, mas quando estávamos
com pouco tempo eu respondia de forma sucinta, compartilhava algumas referências sobre o
assunto no grupo digital e transformava a dúvida em texto teatral. No encontro seguinte,
estudávamos o roteiro, modificávamos o que achávamos relevante e, a partir dos novos
problemas e soluções, novos aprendizados aconteciam.
A fim de resumir, o grupo definiu, nessa busca, que não seria um fantasma, mas dois:
Júlio, por achar que o positivismo resolveria tudo e era o único caminho, seus mandatos de
presidente do RS foram marcados por guerras civis, muita violência e autoritarismo; e
152

Honorina, sua esposa, pois a turma descobriu que ela havia se suicidado na casa que hoje é o
museu. Lembro de alguns diálogos:
- Por que será que ela se suicidou?
- Foi depois da morte dele, né? Deve ser de saudade.
- Mas se matar de saudade?
- Ah, deve ser porque naquela época a mulher vivia só pro homem, aí morre o homem e
o que ela vai fazer, né?
- Ju, a Honorina também era tratada menos que o homem como a maioria naquela época?
A partir dessas perguntas, o roteiro ia nascendo. De suas cenas emergiram conceitos
como positivismo, autoritarismo e guerra civil, como também abordamos desigualdade de
gênero, polaridades políticas e Primeira República. Posteriormente, o desfecho foi resolvido
evocando muitos outros fantasmas: além de Júlio (fantasma por ter sido autoritário e achava
que o positivismo levaria a um mundo melhor, o que não aconteceu) e Honorina (fantasma por
não poder estudar não vendo sentido em sua vida após a morte de Júlio, representando tantas
mulheres de sua época), a peça foi finalizada ressaltando que havia inúmeros fantasmas no
museu representando aspectos que a sociedade brasileira não superou, como fome, racismo,
ódio, exclusão social… e o museu é a representação desses aspectos, pois a maioria dos seus
artefatos são relacionados a poder.
Uma vez resolvida a questão dos fantasmas, precisávamos contar essa história, quem
foi Júlio e por que virou um fantasma. Nesse processo, a turma descobriu que ele teve câncer e
foi pedir ajuda espiritual ao príncipe Custódio. “Quem foi o príncipe Custódio?”, ele estava nas
listas dos casos estudados na aula de história e o grupo que estudou seu caso relembrou o que
sabia. Mas, como seria esse encontro de Júlio com o príncipe Custódio? Essa etapa do processo
foi uma das mais bonitas, pois a turma buscou mais informações sobre o assunto: alguns
recorreram às aulas de história, outros compartilharam vídeos e textos sobre o batuque e passe.
No entanto, o problema persistia em como montar essa cena, pois fugia da vivência da
branquitude, não havendo muitas referências reais cotidianas nesse grupo.
Essa cena, que parecia um problema, nasceu totalmente do improviso. Spolin (2008, p.
20) diz que “problemas para solucionar problemas” geram espontaneidade para resolver
situações de caracterização ou de improvisos e têm reflexos na vida. Através dessa concepção,
[...] o dogmatismo é evitado pelo fato de não se dar palestras sobre como atuar; a
versalização é usada com o propósito de esclarecer o problema. Pode ser considerado
como um sistema de aprendizado não-verbal, já que o aluno reúne suas próprias
informações e dados a partir de uma experiência direta. Esse envolvimento mútuo
com o problema e não com aquilo que é pessoal, juízos de valor, recriminação,
153

bajulações etc., restabelece a confiança e o relacionamento, tornando possível o


desprendimento artístico (SPOLIN, 2008, p. 20).

Em um dos encontros, solicitei que todos levassem o que já tinham construído de seus
figurinos para uma fotografia de divulgação da peça. Aproveitamos para ensaiar com objetos e
figurinos. Meu colega (assistente da turma) estava construindo a trilha sonora da peça e, nesse
dia, resolvemos aproveitar as músicas e os figurinos. Tudo corria bem, até chegar na cena do
encontro entre Júlio e o príncipe Custódio, em que já tínhamos definido as personagens, mas
como representá-los? Havia, ali, mais uma vez um problema. Vamos de improviso, claro!
Entraram em cena dois meninos, que seriam filhos de santo, com seus tambores e, então, entrou
príncipe Custódio e sua esposa e, depois, entraria Júlio. Quando todos estavam em cena, mas
sem saber bem o que fazer, o assistente colocou a música Padê Onã, versão de Kiko Dinucci e
Bando Afromacarrônico. Ao começar a música, os meninos tamboreiros começaram a tocar e
o som foi ecoando pela sala, quando todos alunos começam a bater palmas no ritmo.
Tamboreiros, príncipe Custódio e sua companheira iniciam sua dança livre, uma dança
desprendida. Quando percebo, a cena se compõe em uma atmosfera deslumbrante, o grupo a
dançar, tocar e dançar ainda mais livre e entregue, lindamente e magicamente. Assim, Júlio
entra e, espontaneamente, príncipe Custódio dá o passe. Ao fim da cena, ouço palmas radiantes
da turma toda. Assim nasceu uma cena, assim nos conectamos da forma mais bela com as raízes
afro-brasileiras, sentindo e experienciando.
O racismo estrutural, assim como a desigualdade provocada por ele, é provavelmente o
negacionismo mais perverso e incrustado da sociedade brasileira, sendo o traço mais marcante
do neofascismo em nossa sociedade, afinal, sua base de construção é a supremacia branca. A
negação da desigualdade racial se renova adquirindo novas formas de operar. Segundo Cibele
Barbosa (2022, p. 477),
[...] nos dias atuais, estaríamos presenciando não mais o racismo que afirmava
inferioridade biológica ou intelectual como no início da República, mas um racismo
guiado pelo discurso da “lógica de desempenho”. Nesse caso, a negação do racismo
sistêmico adquire novas táticas e formas de manifestação, desta vez sob o verniz
neoliberal da sociedade de mercado.

Ao classificar e diferenciar a branquitude acrítica (grupos supremacistas) da


branquitude crítica (grupos que desaprovam o racismo publicamente), Cardoso (2010) salienta
que só desaprovar o racismo não é suficiente, pois não atinge os privilégios e suas
desigualdades, ou seja, uma postura passiva também contribui para sua manutenção. Jorge
Hilton Miranda (2020, p. 162) diz que, para formar “brancos denegridos”, ou seja, uma
branquitude crítico-ativa que se autocritica e age em prol da mudança e justiça social,
154

[...] é preciso um processo educativo que forneça aos brancos que ainda não tem a
consciência crítica sobre o assunto, que ainda não despertaram para confrontar a
própria branquitude, referenciais para que os mesmos, através de "uma operação
sangrenta", ou seja, radical, descolonizem-se.

Tornar-se um “branco-denegrido”, segundo Miranda (2020, p. 133), é se reconhecer


“como peça da estrutura a qual o racismo opera”, problematizar e autocriticar a branquitude,
passar por processos que envolvem “culpa, vergonha, indignação, raiva”, enxergar partes
sombrias até renovar-se em ações “torna-se denegrido/a, não por se afirmar negro/a, mas por
incorporar a perspectiva de denúncia da militância negra, que, dentre outras coisas, considera
que os privilégios e a omissão sustentam as desigualdades sociorraciais”. O autor ainda destaca
a potência do rap crítico na formação de “brancos-denegridos”, afirmando que a educação
promovida pela arte é mais significativa que a educação formal, que ainda é espelho e
instrumento da branquitude. Deixar de fazer uma educação perversa é descolonizar-se,
(re)conhecer outras formas de saberes e fazeres.
O relato que fiz sobre o improviso ao som de Padê Onã possibilitou o letramento
histórico, pois a cena foi trabalhada e a motivação para procurar referências era outra, tanto que
o príncipe Custódio, um aluno/ator que estava com muita dificuldade em decorar as falas,
triplicou seus textos e estava impecável na apresentação. Mas, e a transformação? Letramento
leva a transformações? Se leva a outra leitura de mundo e a uma outra relação com ele, então
há transformação?
Posso afirmar que a arte me tocou como pessoa e educadora, pois percebi a pessoa
passiva que estava sendo e quanto minha própria negação e passividade contribuía com a
desigualdade. Eu não questionei a turma sobre a escolha do tema da peça, sequer perguntei a
razão. Hoje, revisitando esse episódio, fico me perguntando: por que fiquei passiva? Seria por
que não tinha tempo? Ou seria por que eu mesma tinha poucas referências sobre a história e
cultura afro-brasileira, sendo mais conveniente a passividade e acomodação?
Naquele momento tive noção do quanto minha prática ainda precisa se descolonizar, o
quanto ainda preciso aprender para fazer melhor, assim, afirmo isso porque foi uma
transformação subjetiva, com ação prática. A atividade performativa despertou algo em mim,
uma vez que passei a buscar mais informações sobre branquitude, sobre educação decolonial e
a conversar mais sobre o assunto com meus colegas, fazendo as leituras de turma com mais
clareza e atenção, mas, principalmente, autocriticar minha branquitude. Agora, percebo o
reverberar dessas transformações - as minhas e da turma - pelos projetos de 2020 e 2021, mais
comprometidos com uma educação antirracista e decolonial.
155

| Cena 14: último enlace do roteiro

Como último enlace proposto no Ato IV, está a pesquisa-ação e prática pedagógica.
Minha trajetória profissional iniciou com muito contato com as obras de Freire e muitas
experiências com a pesquisa-ação. Tive outras vivências, mas os princípios dessa metodologia
continuaram presentes. Segundo Christiê L. Casanova (2017, p. 23-24), “pesquisa-ação é um
termo que se aplica a projetos em que os professores buscam efetuar transformações em suas
próprias práticas”, que compreendem o movimento dialético, de reflexão-ação-reflexão, isto é,
fazer e pensar sobre o fazer (FREIRE, 1996/2013), uma reflexão crítica sobre a prática de forma
cíclica e permanente. A pesquisa-ação no fazer pedagógico parte da ideia que “ensino porque
busco, porque indaguei, porque indago e me indago” (FREIRE, 1996/2013, p. 30-31), dessa
forma, ela permite planejar, implementar, descrever, avaliar mudanças e melhorias do trabalho
pedagógico, por meio de uma investigação de processo permanente (CASANOVA, 2017).
Ao analisar minhas práticas pedagógicas, percebo que a construção dos projetos com os
estudantes, seu processo, aplicabilidade e resultados convergem muito com a pesquisa-ação,
pois os participantes, docentes e discentes, têm participação ativa em todas as etapas,
incentivando ações coletivas que promovam transformações. A pesquisa-ação é uma
metodologia de pesquisa qualitativa, muito apropriada para o trabalho em equipe, pois favorece
discussões e participação coletiva em todo o processo. Segundo Michel Thiollent (2011, p. 21),
ela só é classificada como pesquisa-ação quando de fato há “uma ação por parte das pessoas ou
grupos implicados no problema sob observação”, uma vez que os problemas a serem resolvidos
podem ser variados, dando ênfase a três aspectos: “resolução de problemas, tomada de
consciência ou produção de conhecimento”.
Gisele Lorenzi (2021) esquematiza três momentos de entrelaçamento da dialética e da
interdisciplinaridade, a partir da análise de Gadotti (1996) ao método freiriano, destacando:
investigação temática, tematização e problematização. O processo investigativo envolve
totalmente estudantes e educadores, aliás, todo processo ocorre em conjunto, pois nessa etapa
se investiga a leitura de mundo dos estudantes, buscando um problema a ser resolvido. Na
tematização se codifica e decodifica esses temas buscando “seu significado social, tomando
assim, consciência do mundo vivido” (LORENZI, 2021, p. 63). Por fim, a problematização
busca avançar no pensamento genuíno de consenso, adquirindo um olhar crítico capaz de gerar
“transformações do contexto vivido” (LORENZI, 2021, p. 63).
156

Acredito que o trabalho na Lumiar possibilita a aplicação da pesquisa-ação como prática


metodológica de ensino, mesmo que, por vezes, com algumas contradições, reinvenções ou
adaptações compelidas pelo modelo de ensino Lumiar e/ou pelo contexto que trabalhamos, no
qual situações-limites ainda parecem “distantes”. O projeto institucional, segundo o modelo
Lumiar (2016),
[...] instaura uma dinâmica coletiva e colaborativa, apresenta a possibilidade de
integração de conteúdos de diferentes componentes curriculares e pressupõe um olhar
investigativo do estudante. Tendo o tutor identificado um tema comum do grupo e a
possibilidade deste tema apresentar uma problemática que se configura como um
Projeto, o grupo passa a compartilhar de um objetivo que norteará suas ações e seu
processo de aprendizagem. Inaugurado o cenário de um Projeto, cada estudante a seu
modo, quando se percebe corresponsável por um resultado, aciona habilidades
gestoras simples ou complexas e se depara com o que o Modelo Lumiar considera
prioritário em termos educacionais: o estabelecimento de relações diversas entre fatos,
estratégias, ações e outros elementos que toda prática aciona.

Sendo assim, a Lumiar prevê etapas do projeto que convergem com a pesquisa-ação,
uma vez que é uma metodologia viva, que envolve a todos sem hierarquizações no seu processo.
As contradições ou reinvenções que vejo ao fazer essa relação estão ligadas às situações-
problemas que desencadeiam a necessidade do projeto, pois, na Lumiar, o diagnóstico visa
identificar interesses e necessidades, o que por vezes pode ser entendido como outras
possibilidades metodológicas, permanecendo a ideia de pesquisa-participativa. Dessa forma,
nem sempre agrega-se à concepção de Thiollent (2011, p. 21), que diz que, para se caracterizar
como pesquisa-ação, é preciso que a “ação não seja uma ação trivial, o que quer dizer uma ação
problemática merecendo investigação para ser elaborada”, elencando possíveis ações como
reivindicatórias, de caráter prático e de resolução de problemas, por exemplo. Na Lumiar há
muito cuidado com o diagnóstico de situações que merecem a construção de projetos, uma vez
que há uma abertura para interesses dos estudantes, mas nem sempre o que pulsa no grupo
corresponde com uma expectativa de situação-limite ou problema a ser resolvido. Na maioria
das vezes, sim, mas não se castram projetos que emanam simplesmente do desejo de “aprender
por aprender”.
Concepção, aliás, que também considero transformadora, pois o desejo pelo aprender
também é político e resulta em transformações, visto que sempre nos modificamos com novas
aprendizagens e ao longo do processo muitas novas questões podem ser trabalhadas. Sendo
assim, mesmo que a pesquisa-ação se misture a outras concepções metodológicas, podemos
identificar muitos de seus princípios nos relatos das práticas pedagógicas.
Uma vez que todos os envolvidos participam de todas as etapas do processo, “os
participantes não são reduzidos a cobaias e desempenham papel ativo” (THIOLLENT, 2011, p.
157

28), os estudantes com seus/suas tutores(as) envolvem-se desde a fase exploratória, diagnóstica
do problema ou do tema relevante. Assim, definem juntos a temática, mesmo que educadores
façam suas cartografias em momentos sem os estudantes para analisar e mapear as necessidades
e interesses, os temas não são definidos sem que a participação dos estudantes faça parte. Essas
cartografias são realizadas por muitas mãos e muitas vozes participam da definição das
temáticas, que não são triviais, mas significativas e justificadas, afinal, “um tema que não
interessar à população não poderá ser tratado de modo participativo” (THIOLLENT, 2011, p.
60).
Assim que as temáticas são definidas, os mestres de cada área encontram suas turmas
para traçar as etapas do projeto: o que os impulsiona e qual o problema (interesse/necessidade).
Segundo Thiollent (2011, p. 63), “o problema da transformação colocado como passagem de
uma situação inicial para uma situação final (ou desejada) é definido em função de estratégia
ou de interesse dos atores”. Essa etapa de definição e compreensão do problema tem sido cada
vez mais aplicada com rigor e diálogo com os estudantes. Lembro de muitos momentos entre
estudantes e seus mestres, em que os educadores estimulavam-os com perguntas, como “esse
tema é mesmo relevante?”, “no que vai agregar?” e “que mudança isso provocará no mundo ou
em suas vidas?”. Um desses episódios pode ser bem exemplificado através de uma memória:
na cartografia do F3, em 2021, surgiu a necessidade de o grupo trabalhar em equipe, metendo
a mão na massa, construindo algo concreto juntos, pois há pouco tempo haviam voltado para o
presencial e estavam com dificuldade de se aproximar de pessoas e possuíam o desejo de sair
um pouco do virtual e deixar algum legado.
Decidiram, por fim, que queriam ter marcenaria, lembro da conversa com a mestre de
matemática que, ao planejar, os questionou: “mas vocês querem marcenaria por quê?”. Alguns
diziam que era para fazer objetos para casa, casinhas de cachorro para colocar na rua ou para
alguma ONG. Todas essas respostas deixaram a turma reflexiva, percebendo que seus
argumentos não justificam sua escolha, não parecendo relevante o projeto, apenas uma ação
superficial. Porém, as suas necessidades de construir algo com suas próprias mãos, em equipe,
era evidente, e, por isso, as discussões continuaram. Em outra aula, com a presença do mestre
de marcenaria, a discussão continuou, em que questionei: “qual a relevância dessa ação?”,
“onde vocês pretendem chegar?” e “o que querem transformar?”. Mais diálogo foi necessário
até que chegaram a conclusão que queriam fazer algo que motivasse a convivência entre
estudantes, como um banco ou um balanço. “Mas quem precisa disso?”, alguém perguntou e
uma estudante respondeu: “podemos fazer e doar para uma escola pública”. Mais discussões
seguiram: “fizemos algum estudo para saber se alguma escola deseja ganhar um banco?”, “será
158

que é um banco que a escola pública precisa?”, “o que será que a escola pública realmente
precisa?”, “quem está precisando de espaços para convivência?”, “sabemos o que essa precisa,
conhecemos essa escola?” e “se ela precisasse, seus próprios estudantes não fariam um projeto
para isso?”. A discussão ficou em suspenso, pois era recreio e ninguém chegou a um consenso
com argumentos claros.
No retorno do recreio a discussão tomou outro rumo, pois, durante o intervalo, os
estudantes olharam para sua escola de uma forma diferente, se dando conta de que eram eles
próprios que necessitavam de um espaço de convivência. Como ainda estavam desconfortáveis
com o retorno do isolamento, queriam construir algo juntos para conviverem mais nesse espaço.
Assim surgiu o projeto de marcenaria, em que os estudantes construíram um deck lindíssimo
em volta de uma árvore no pátio, muito utilizado até hoje. Ainda, emergiram questões muito
importantes que puderam também ser trabalhadas.
Este sucinto relato procurou evidenciar como acontece a troca de ideias para a
construção de um projeto, cada vez mais buscando um problema, uma ação relevante, algo que
transforme. As etapas da pesquisa-ação que preveem estudo teórico, seminários de discussões,
plano de ações, avaliação dos processos e constante reflexão-ação-reflexão (THIOLLENT,
2011) também são praticadas com outros nomes, mas com a mesma essência.
Nos dois relatos que fiz no Ato IV procurei evidenciar alguns princípios fundamentais
da pesquisa-ação em minha prática pedagógica, como o planejamento coletivo, as ações
coletivas, o diálogo sempre presente, a reflexão coletiva sobre a prática e tomada de novas ações
e as possíveis transformações que a metodologia de pesquisa-ação é capaz de gerar. Lembrando
que pesquisas vivas abrem possibilidades para mudanças ao longo do processo e o uso de outras
metodologias que vêm a agregar.
159

ATO V

As cortinas se fecham e as luzes se apagam,


mas a trupe já pensa no próximo espetáculo
160
161

| Cena 15: as marcações de palco

Minha dissertação se constituiu, de certa forma, como eu construía montagens teatrais


com meus grupos de adolescentes nas oficinas de teatro. Como narrei no Ato I, eu nunca sabia
como seria o processo, o que aconteceria, qual seria o resultado, que cenas comporiam o roteiro,
quem seriam as personagens, que tramas e dramas estariam envolvidos. Dois sentimentos
estavam presentes ao iniciar uma oficina de teatro: receio e excitação. Posso traduzir o receio
como aquele frio na barriga, ver ‘adolescentinhos’ sedentos por vivências e por provar da
experiência de um palco, sem eu poder dar qualquer garantia de sucesso, sem saber se daria
certo ou não, apenas a certeza que nos entregaríamos à experiência que nos propúnhamos
gerava sempre incertezas assustadoras. Já a excitação vinha justamente das incertezas, do
desconhecido, do desafio e das infinitas possibilidades que eu sequer poderia imaginar.
A mim, que sou ansiosa, não foi tarefa fácil compor todas as cenas para a montagem
desse espetáculo/pesquisa, pois muitas questões amedrontavam: e se faltarem cenas? E se elas
não conversarem entre si e não fizerem sentido algum? E se, ao fecharem as cortinas, eu não
ouvir a plateia? Fazendo essa analogia com as montagens teatrais, lembrei que não havia
segurança alguma diante do desconhecido, mas que, mesmo assim, valia sempre muito a pena,
pois, indiferente do resultado, o processo era sempre de sucesso, sempre único e de
aprendizagens incríveis. Mas, e os resultados? Só passando pelo processo, assim como pelas
montagens, é que fui construindo cenas aleatórias para compor a investigação a que me propus.
O início do mestrado foi um período muito difícil, de medos, incertezas e angústias.
Confesso que estava imediatista e buscava pelo método e metodologia como se precisasse dele
antes de tudo: quero um método! Preciso dele! Onde ele está?
Nesse processo, minha maior parceria e apoio foi meu orientador Marcelo Eichler, que,
por vezes, afligia-me com o construtivismo dele, desejando secretamente que ele fosse mais
tradicional e me dissesse o que fazer de forma imediata. Ria comigo mesma ao pensar sobre
esse desejo secreto. Perceber que eu queria as coisas prontas, dadas e claras, contrariando toda
minha construção como educadora, me trazia uma contradição deveras engraçada. Logo eu,
oposta a pensamentos prontos, que acredito nas perguntas, no processo, que instigava meus
estudantes e adorava seus desconfortos em busca de suas respostas, via-me na posição de
estudante/pesquisadora agindo exatamente como alguns dos meus alunos, estressada porque o
caminho não estava dado facilmente, tendo que pensar, estudar, investigar, vivenciar o processo
e construir meu próprio caminho metodológico.
162

Processo este que é sofrido, pois é contraditório. Na minha ansiedade, percebi que estava
bastante condicionada e contaminada com metodologias de pesquisa tradicionais ao pensar em
pesquisa acadêmica. Adestrada às concepções de pesquisas tradicionais, padecia por não me
entregar ao processo que eu mesma defendo como educadora. Precisei muito das palavras de
incentivo e calma de meu orientador, que dizia que eu encontraria meu caminho, que não
precisava me desgastar procurando por ele, apenas vivenciar o mestrado e seu processo, e tudo
iria se revelando. Demorei para aceitar que a metodologia era parte do processo, que ela me
encontraria de forma orgânica, que o caminho se faria caminhando e que a metodologia se
construiria nesse caminhar. Demorei, inclusive, para relacionar a metodologia da minha prática
pedagógica com a prática de pesquisa. Penso que são resquícios de aprendizagens
fragmentadas. De tanto ouvir teoria e prática, precisei relembrar que “o próprio discurso teórico,
necessário à reflexão crítica, tem quer de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática” (FREIRE, 1996/2013, p. 40).
Quando finalmente o método me encontrou, as metodologias se revelaram, a ansiedade
transformou-se em encantamento e paixão, valendo a pena o caminho árduo trilhado com meu
orientador. Assim como sempre valia a pena aguentar as reclamações dos meus estudantes para,
no fim, contemplar o brilho no olhar de cada um com suas próprias conquistas cognitivas.
Minhas primeiras cenas para compor a peça teatral, ou seja, as primeiras etapas da
pesquisa foram compostas pela perspectiva teórica, pois, através da imersão em obras de autores
que abordavam temas pertinentes à temática, fui conduzida a compreender o problema de forma
profunda, entendendo como ele emerge e opera.
Essa revisão bibliográfica foi fundamental para a análise das narrativas que se
sucederam, pois, com suporte teórico, foi possível revelar a relação entre neoliberalismo e
Sociedade das Plataformas, que resulta nos negacionismos e neofascismo de nossos tempos.
Compreendendo a explosão de ignorância e a gravidade desse fenômeno para toda sociedade,
principalmente para os mais vulneráveis. Também foi possível reconhecer o reflexo dessa
ignorância na educação, em especial no ensino de história. Esse estudo teórico revelou e
reforçou os desafios que, como educadores, temos com nossos estudantes adolescentes,
superexpostos e subjetivados pela Sociedade das Plataformas, uma sociedade de controle,
vigilância e manipulação.
A pesquisa bibliográfica também foi fundamental para a construção e interpretação dos
conceitos que contribuíram para traçar um caminho que levasse à compreensão da necessidade
de uma contra-educação, fundamentada no pensamento de Freire, Tiburi e hooks, que acreditam
em uma educação que liberta. O diálogo com autores da área do ensino de história e do teatro
163

contribuiu para o entendimento do conceito de letramento histórico e, enquanto aliado à


linguagem teatral, podem convergir com uma proposta de contra-educação.
Busquei em pesquisadores e pesquisadoras brasileiros(as) as principais referências para
alcançar essas compreensões e conceitos, assim como pesquisadores(as) da cidade de Porto
Alegre, por entender que o problema envolvido, mesmo que seja uma questão macro em alguns
aspectos, e sua forma de operar é muito singular e local, precisando de olhares muito próximos.
Esse olhar, tão próximo geograficamente e culturalmente, foi atravessado por outros(as)
autores(as) dos quais, em diálogo, contribuíram com ricas conclusões.
Certamente, essa opção por buscar respostas nas produções mais próximas do problema
da pesquisa acabou afastando outros possíveis referenciais, resultando em perdas e ganhos. Se,
por um lado, usar como base fundamental pesquisadores(as) brasileiros(as) agrega porque o
contexto é importante, já que não precisamos sempre buscar “fora” as respostas para nossos
problemas, rompendo um pouco com o pensamento colonizado. Por outro lado, senti falta de
aprofundar leituras sobre as referências das minhas referências, isto é, o velho “beber da fonte”,
ler os clássicos referenciados pelos autores que usei, como Foucault, Adorno, Bourdieu,
Deleuze e Karl Marx, por exemplo, sendo um aprofundamento que penso ser necessário para a
próxima etapa de minhas pesquisas.
Para além do aprofundamento teórico, buscando atingir os objetivos propostos,
necessitei fazer uma investigação narrativa. Para tanto, adotei a PEBA, mais precisamente a
a/r/tográfica, pois é uma metodologia que considera a própria linguagem artística e a identidade
do artista/pesquisador/professor nas análises. Para a qualidade da investigação narrativa, a
perspectiva híbrida da a/r/tografia foi fundamental, pois as experiências pedagógicas enquanto
artista/educadora - uma vez narradas de forma escrita - encontraram a pesquisadora, que
analisou seu próprio processo criativo, fazendo conexões com os conceitos emergidos, como
letramento histórico, linguagem teatral, negacionismos e neofascismo.
A memória se apresentou nesta dissertação como plot twist90, pois, inicialmente, não
tinha pensado em trabalhar com memórias. Quando estas foram requisitadas por serem
pistas/cenas fundamentais, o caminho de minha pesquisa tomou outro rumo e assumiu outra
forma. Percebi que (re)enviar-me ao passado propiciaria construir os significados e
significantes necessários para responder à pergunta geradora da pesquisa.

90
Segundo Wikipédia (2022d), plot twist é uma reviravolta no enredo, “é uma mudança radical na direção esperada
ou prevista do enredo de um romance, filme, série de televisão, quadrinho, jogo eletrônico ou outra obra narrativa.
É uma prática muito usada para manter o interesse do público na obra, para normalmente surpreendê-los com uma
revelação surpresa. Quando acontece perto do fim de uma história, geralmente é conhecido como um final surpresa,
uma conclusão inesperada que faz com que o público pare para reavaliar toda a narrativa e os personagens”.
164

Lembro que quando conheci a a/r/tografia e iniciei textos aleatórios descrevendo minha
pesquisa de forma mais pessoal, inserindo minha vida na própria pesquisa e narrativa, senti
culpa, me achava narcisista, como se estivesse fazendo algo errado. Somente praticando é que
fui entendendo que uma coisa não está separada da outra; que rigor acadêmico não significa
transformar a si e ao estudo em “objetos”. Dessa forma, doeu (re)visitar-me, doeu sair da
subjetividade endurecida para a subjetividade aberta. Maçaneiro (2012, p. 7), ao falar do
potencial da a/r/tografia, diz que é uma metodologia que “enfatiza a inter-relação entre teoria,
prática e criação, apaga fronteiras, propaga outros modos para a pesquisa baseada nas artes,
possibilita escritas verdadeiras, saindo de um estado cientificamente enlatado para um lugar de
permanente processo de negociações”.
Confesso que percebi que não consegui aplicar na escrita a performidade do meu
processo criativo, mas senti mudanças, pois a a/r/tografia inspira mudanças pelo próprio ato
criativo de escrever. Entretanto, apesar de não conseguir aplicar uma escrita criativa, senti mais
liberdade e outras ideias surgiram. Penso, por exemplo, que faz muito sentido escrever a tese,
caso se concretize minha intenção de pesquisa para o doutorado, em forma de texto
dramatúrgico. Na produção escrita dessa dissertação, também observei alguns aspectos
interessantes, como a dureza ou leveza da escrita de cada ato que está intimamente ligada a seu
conteúdo.
Para construir a narrativa dos dois projetos que analisei, busquei não somente em
memórias, mas recorri a registros da Plataforma Lumiar, aos meus diários de aula/vida e
arquivos pessoais em que registrava planejamentos e guardava documentos. Segundo Dias
(2013, p. 23), a a/r/tografia está baseada “no conceito de que o sentido não é encontrado, mas
construído e que o ato da interpretação construtiva é um evento criativo” e, nesse desafio de
narrar práticas performativas, compreendi na própria feitura o trabalho de um(a) a/r/tógrafo(a),
que é “reflexivo, recursivo, refletivo e responsável” (IRWIN, 2013, p. 30). Reflexivo, porque
ao rememorar, repensar e rever, emergiram significados que estavam submersos, chegando a
fazer um estudo sobre mim mesma, como se fosse um espelho (HERNÁNDEZ, 2013).
Recursivo, pois possibilitou compreender o caminho trilhado e as novas ideias possíveis a partir
das vivências (re)vistas. Refletivo, porque não só meu processo criativo pedagógico foi
pesquisado, mas pesquisei-me junto a ele, percebendo, na narração, limitações, preconceitos e
negações que viviam em mim e que a pesquisa possibilitou questionar e transformar. Por fim,
responsável, porque a análise não se desvinculou da ética.
A descrição dos processos criativos, através do conjunto de registros e da narrativa das
memórias, me fez entender melhor a natureza rizomática da a/r/tografia, pois as conexões
165

possíveis levam a outras e a outras, e, assim, fui compreendendo sua incompletude, chegando
a pensar que essa pesquisa pode, de fato, dar origem a tantas outras, uma vez que a pergunta
inicial despertou várias outras questões. Essa compreensão motivou-me a ensaiar uma proposta
metodológica que sirva como inspiração para mim e outros profissionais que desejem pesquisar
a potência das artes conectada a letramentos. Por fim, acredito que o caminho metodológico
construído me conduziu com qualidade ao esclarecimento da pergunta geradora desta pesquisa.

| Cena 16: novas montagens sugerem novos ensaios

Aprofundando mais sobre pesquisas vivas, proponho, na última cena dessa dissertação,
um diálogo entre pesquisa-ação e a/r/tografia, visando, através desse enlace, ensaiar um
caminho metodológico que possa contribuir com futuras pesquisas de
artista/pesquisador/professor que percebam a arte como possibilidade para letramentos.
Também, tenho interesse particular em ensaiar possíveis caminhos metodológicos, pois a
pesquisa atual contribui para meu entendimento de como a potência teatral pode minimamente
enfrentar negacionismos e neofascismo, porém, acredito ser potente e esclarecer uma pesquisa
de campo focada neste tema através de uma oficina de teatro, encontrando parceria entre
adolescentes que estejam dispostos a analisar esses fenômenos comigo e a colaborar com o
campo da educação.
Ao relatar os desafios que surgiram na qualificação de meu projeto, percebi o óbvio
(que não se mostrava tão óbvio): que meu trabalho pedagógico já estava orientado pela
metodologia da pesquisa-ação e, conhecendo melhor a a/r/tografia, penso seguir e aprimorar
sua aplicação no trabalho pedagógico, nas pesquisas e na vida. A a/r/tografia sustenta-se na
pesquisa-ação por ser uma prática viva. Segundo Irwin (2013, p. 28), ela “se liga intimamente
a pesquisa-ação”, pois
[..] tal como acontece na pesquisa-ação a a/r/tografia, muitas vezes, tem um caráter
intervencionista. A/r/tógrafos concentram seus esforços em melhorar a prática,
compreender a prática de uma perspectiva diferente, e/ou usar suas práticas para
influenciar as experiências dos outros.

Se a pesquisa-ação pressupõe uma investigação aberta, que respeita a possibilidade de


novos caminhos, respeitando o imprevisível e apostando no devir e no tornar-se, pois tem como
base o processo dialético de reflexão-ação-reflexão, ela converge com a a/r/tografia em sua
metodologia, pois “pensamento e ação estão inextricavelmente ligados através de um círculo
hermenêutico de interpretação e compreensão” (IRWIN, 2013, p. 130). Círculo esse que nunca
166

se rompe, pois novos conhecimentos afetam os já existentes, que também afetam os recém
adquiridos, em um processo que também é de permanente ação-reflexão-ação.
O método qualitativo da pesquisa-ação se caracteriza como tal se há realmente uma ação
por parte das pessoas ou grupos implicados no problema observado. Nesse caso, o pesquisador
- ou os pesquisadores - “desempenha papel ativo no equacionamento dos problemas
observados, acompanhando, avaliando ações desencadeadas pelos problemas” (THIOLLENT,
2011, p. 21). A a/r/tografia propõe projetos colaborativos e de intervenções artísticas, sugerindo
formas de representar a criatividade dos participantes, do processo e do próprio
artista/pesquisador/professor, entretanto seu desafio, que “é ir além da produção de textos ou
imagens impactantes e chegar a mobilizar a nós mesmos e outros à ação, de maneira que o
efeito da pesquisa - da participação nela - seja melhorar nossas vidas” (HERNÁNDEZ, 2013,
p. 57).
Tanto pesquisa-ação quanto a/r/tografia acreditam que as ações visam transformações.
Hernández (2013) reforça que a participação dos sujeitos do processo torna-se importante, pois,
a partir do seu fazer artístico e das manifestações de suas emoções, transformações são
possíveis. Por transformação, minha compreensão aproxima-se da ideia de Freire (1967/2020,
p. 113), que acredita na transformação como a “transitividade da consciência ingênua para a
consciência crítica”. Uma compreensão da realidade alienada gera ações acríticas e
manipuláveis pela hegemonia estabelecida, adaptando-se à realidade em vez de transformá-la.
Já com o desenvolvimento da consciência crítica, as ações visam à transformação do mundo
em busca da libertação (FREIRE, 1979/2005).
Minha proposta é miscigenar essa íntima relação de metodologias, uma vez que o foco
que sugiro pesquisar é o teatro como possibilitador de letramento histórico para o enfrentamento
de negacionismos e neofascismo, já havendo no próprio tema uma interdisciplinaridade.
Investigar temas ligados às artes e aos letramentos históricos, principalmente a partir de lentes
críticas e conectadas com uma educação engajada, envolve olhares de múltiplas áreas, não só
da potência da arte através da prática teatral, do conhecimento histórico que contribuirá com
ampliação de repertórios, das fontes de entendimentos e de referências para com a compreensão
de fenômenos atuais, como também na forma de divulgação da pesquisa.
Essa é uma proposta que envolve olhares de múltiplas áreas, inclusive das Ciências
Sociais, visto que, além de autores e autoras dessa área - que contribuem com a compreensão
da Sociedade das Plataformas -, está imbricada a metodologia da pesquisa-ação, apropriada
para alcançar os objetivos almejados. A potência teatral precisa do envolvimento e, para tanto,
a pesquisa-ação tem como proposta que as interpretações da realidade observada e as ações
167

propostas sejam objetos deliberativos de reflexão-ação-reflexão-ação (LORENZI, 2021, p. 79)


e que possibilitem compreender complexidades e subjetividades que não poderiam ser
analisadas através de métodos ou ferramentas duras e fechadas. Afinal, uma pesquisa que
propõe práticas teatrais pressupõe entrega, envolvimento e desconstruções que geram novas
construções, de modo que metodologias duras que coloquem o pesquisador apenas como
observador, assim como participantes da pesquisa, como meros objetos passivos, não faz
sentido para o que se pretende pesquisar.
Nesse sentido, a/r/tografia como uma PEBA vem a agregar, pois, apesar de ser uma
metodologia considerada nova, tem crescido proeminentemente nas Ciências Sociais e
Humanas. Segundo Dias (2013, p. 13), publicações são importantes pela “possibilidade de as
artes influenciarem a construção de saberes em vários campos de conhecimento, em particular
nas ciências humanas”. Valorizando e corroborando com pesquisas que empregam a arte em
seus processos de pesquisa em um “amplo espectro dos tipos de pesquisa e investigações
utilizadas pelos pesquisadores, incluindo formas literárias, performance, poesia, artes visuais,
vários tipos de mídia, narrativa, arte popular, artefatos, visualidades e muito mais” (DIAS,
2013, p. 13). Assim como, no caso desta proposta de pesquisa, a linguagem teatral como
possibilidade de letramento histórico.
Se por um lado a pesquisa-ação foca na criticidade, na ação e transformação,
introduzindo “maior flexibilidade na concepção e na aplicação dos meios de investigação
concreta” (THIOLLENT, 2011, p. 30), a a/r/tografia não só comunga destes elementos como
agrega e seu foco no processo artístico amplia a visão por
[...] investigar sobre a criatividade (os conteúdos da investigação) e sua interpretação
(uma explicação dos conteúdos) o participante na investigação se fortalece, a relação
entre investigador acadêmico e o investigador participante se intensifica e se faz mais
igualitária, e os conteúdos culturalmente mais exatos e explícitos, dado que se utilizam
tanto formas de conhecimento emocionais como cognitivas (HERNÁNDEZ, 2013, p.
44).

A a/r/tografia, além de pesquisar a partir do processo criativo, investiga “fenômenos


relacionados a comportamentos humanos, relações sociais ou representações simbólicas”
(HERNÁNDEZ, 2013, p. 42). Por isso é híbrida, podendo somar-se com investigações
etnográficas e bibliográficas, narrativa, performática, autobiografia, dança e movimento,
poesia, música, literatura, leitura teatral, multimídia, hipertexto, práticas criativas, estudos
acadêmicos e “perspectivas que olham o sujeito e a narrativa que dá conta da experiência”
(HERNÁNDEZ, 2013, p. 42). A a/r/tografia também oferece a possibilidade dos a/r/tógrafos
recolherem uma vasta quantidade de dados, como levantamentos, coleta de documentos,
entrevistas, observações, histórias de vida, lembranças e fotografias, sendo um processo que os
168

próprios participantes também podem ser a/r/tógrafos, analisando seus próprios processos. Esse
conjunto de dados possibilita uma complexidade de conexões que podem gerar desvios ao longo
do caminho. Segundo Irwin (2013, p. 30),
[...] permitir a alguém obter mais informações ao longo do caminho ao desviar da rota
original e explorar outros caminhos pode parecer uma viagem sem foco, entretanto,
ironicamente, pode ser considerada até mais focada ao compreender as
particularidades do lugar. Escolher conexões nos proporciona uma compreensão
entendida como rota original. Além disso, embora o ponto B possa ter sido o destino
original, a região do ponto B pode tornar-se o foco. Em vez de mover do ponto A ao
ponto B, exploramos o contexto do entre-lugar e, assim, apreciamos a complexidade
e particularidade desse espaço.

Na a/r/tografia, além da multiplicidade de técnicas, procedimentos, interpretações e


apresentações, há um estímulo à escrita como parte do processo criativo, encorajando “modos
criativos de representação que reflitam a riqueza e a complexidade das amostras e dados de
pesquisa e desse modo promovem múltiplos níveis de envolvimento, que são simultaneamente
cognitivos e emocionais” (DIAS, 2013, p. 24). Essa escrita não convencional pode valer-se de
outros modos, como imagens, dança, performance e, inclusive, ser uma escrita performativa.
A partir da atual pesquisa, concluí que, mesmo que estejamos muito cientes da
gravidade dos negacionismos e neofascismo de nossos tempos, também somos afetados por
eles. Portanto, a a/r/tografia ajuda a compreender as questões que emergem do próprio
pesquisador, uma vez que ele é analisado junto a seu tema de pesquisa. Uma proposta muito
interessante quando o tema envolve questões tão complexas, como os fenômenos da Sociedade
das Plataformas.
Sendo assim, segue uma proposta de roteiro utilizando a pesquisa-ação crítica enlaçada
à a/r/tografia como instrumento pedagógico e científico. Uma pesquisa que visa descrever e
analisar experiências performativas (em que o pesquisador estará diretamente envolvido na
ação dos pesquisados) com a finalidade, obviamente utópica, de uma transformação ou
conscientização através do conhecimento histórico e da criticidade provocada pela prática
teatral. Acredito que através da a/r/tografia seja possível fazer uma imersão nas práxis do grupo
social que estiver envolvido no estudo, a partir da qual será possível extrair as perspectivas
latentes, o oculto, as sombras que sustentam as práticas, sendo as mudanças negociadas e
geridas no coletivo. Nessa direção, acredito que uma pesquisa colaborativa, participativa e
baseada em arte se assume como um caráter de criticidade, criatividade e autocrítica,
fundamentais para compreensão do problema. Sua capacidade de gerar processos dialéticos de
reflexão-ação-reflexão coletiva, em que há uma imprevisibilidade nas estratégias a serem
169

utilizadas, contribui na formação do pensamento crítico. Segundo Maria Amélia Franco (2005,
p. 486),
[...] a pesquisa-ação crítica considera a voz do sujeito, sua perspectiva, seu sentido,
mas não apenas para registro e posterior interpretação do pesquisador: a voz do sujeito
fará parte da tessitura da metodologia da investigação. Nesse caso, a metodologia não
se faz por meio das etapas de um método, mas se organiza pelas situações relevantes
que emergem do processo. Daí a ênfase no caráter formativo dessa modalidade de
pesquisa, pois o sujeito deve tomar consciência das transformações que vão ocorrendo
em si próprio e no processo. É também por isso que tal metodologia assume o caráter
emancipatório, pois mediante a participação consciente, os sujeitos da pesquisa
passam a ter oportunidade de se libertar de mitos e preconceitos que organizam suas
defesas à mudança e reorganizam a sua autoconcepção de sujeitos históricos.

A pesquisa-ação requer, para seu exercício, uma imersão na intersubjetividade da


dialética do coletivo, pois busca conhecer e intervir na realidade que pesquisa, considerando as
relações humanas como hiperconexões por meio de saberes partilhados e optando por um
conceito de racionalidade comunicativa. Na ação comunicativa, os participantes podem chegar
a um saber compartilhado, que vai tecendo uma estrutura interacional de confiança e de
comprometimento, tornando o agir subjetivo possível, através de interações que permitam a
criação de um clima de cumplicidade e de participação.
Para tanto, segue uma organização-roteiro para a aplicação de uma pesquisa que visa
compreender como a potência do teatro possibilita trabalhar conceitos históricos, contribuindo
para o letramento de adolescentes no contexto da Sociedade das Plataformas, combatendo
negacionismos e neofascismo, com o entendimento de que “o planejamento de uma pesquisa-
ação é muito flexível" (THIOLLENT, 2011, p. 55).
(I) Atividade de sensibilização
Apresentar aos estudantes do colégio em que se fará a proposta da pesquisa-ação crítica
unida à a/r/tografia uma proposta de criação de uma oficina de teatro com o objetivo de
letramento histórico para problematizar temas relacionados à Sociedade das Plataformas.
Entregar Termo de Consentimento para os interessados. A ética deve permear toda a
pesquisa.
(II) Fase exploratória
Etapa de investigação e mapeamento do perfil do grupo de adolescentes da Educação
Básica disponível para o trabalho de pesquisa; aplicação de formulários e entrevistas individuais
não totalmente estruturadas. Salienta-se que a pesquisa-ação e a a/r/tografia preveem o uso de
questionários e entrevistas individuais convencionais “utilizados como meio de informação
complementar” (THIOLLENT, 2011, p. 33). Esse inventário inicial busca elencar os temas e
assuntos que são recorrentes como os mais negados pelo grupo de estudantes em estudo,
170

surgindo possíveis temáticas, como diferenças de gênero, racismo, branquitude, diferenças


sociais no Brasil, defesa da Terra Plana, evitamento vacinal, dietas absurdas, fascismo e
neofascismo, ou temas ligados ao revisionismo histórico, como negação do holocausto
promovido pelo nazismo, da ditadura no Brasil, do envolvimento dos Estados Unidos nas
ditaduras da América Latina. Temas ligados a pensamentos neofascistas também poderão ser
identificados como racismo e desigualdade racial.
A partir da análise do levantamento de sensibilização, torna-se possível identificar os
assuntos que os indicadores apontam como mais problemáticos e presentes correlacionados
com os negacionismos e o neofascismo. É importante destacar, porém, que esse levantamento
inicial serve apenas para fins de ponto de partida, pois os elementos ligados à negação e ao
neofascismo podem aparecer ao longo do processo, na observação do cotidiano e dos exercícios
teatrais ou nos diálogos das rodas de conversa.
Para a coleta qualitativa dos dados, sugiro a aplicação de formulário digital de
preenchimento anônimo com as seguintes perguntas: Qual a sua idade? Com qual gênero você
se identifica? Em qual bairro você mora? Como você se autoclassifica socioeconomicamente?
Como você se autodefine étnico-racialmente? Quais são suas fontes de pesquisas? Qual
plataforma digital você mais acessa? Quanto tempo, em média, você gasta por dia na internet?
Quais seus maiores interesses ao navegar na internet?
Em uma segunda etapa, sugiro a realização de uma entrevista individual, não totalmente
estruturada, em que não haja imposição ou ordem rígida de questões, para que o entrevistado
discorra sobre o tema proposto por meio de uma conversa leve e informal. Havendo apenas um
roteiro-guia de conversa, que pode ser flexível quanto à ordem, já que o objetivo é diagnosticar
temas latentes ligados à temática proposta. Importante que as entrevistas sejam gravadas91,
porém não transcritas, apenas servindo para que a pesquisadora consiga analisar as falas
posteriormente, para a coleta de informações. Apenas falas significativas podem ser
apresentadas na apresentação da pesquisa. Sugiro, para tanto, uma tabela sem o nome dos
estudantes, conforme segue.

91
A autorização para a gravação deve estar expressa em termo de consentimento, tanto da família quanto dos
estudantes, porém, dizendo respeito apenas à voz, uma vez que não será necessário gravar a imagem.
171

Visão negacionista ou visão de


Entrevistado Falas
Problematização cunho neofascista
/número significativas
(conceito)

4 xxxxxxx ? yyyyyyy

Durante a entrevista, os registros são fundamentais, podendo ser inscritos em um diário


de campo, anotando o que for presenciado/observado/constatado, aquilo que chama a atenção.
Procurar limitar ao máximo a intervenção no discurso do entrevistado. Para que a conversa flua
e se evitem perguntas previamente roteirizadas, sugiro a seleção de imagens que sirvam de guia
para a conversa. Sugestão de imagens: grupo representativo de pessoas LGBTQIA+;
manifestação de pessoas negras lutando por direitos; homem com vestimenta da Ku Klux Klan
em Porto Alegre; pessoas com corpos gordos; negros em alta posição social e brancos em
situação inferior socialmente; manifestação a favor das cotas raciais; Terra Geoide x Terra
Plana; feminicídio; movimento feminista; violência policial na periferia; crianças se vacinando
contra a covid-19; ditadura no Brasil; imagens de bairros de Porto Alegre que representem
segregação racial; exemplos atuais de gentrificação na cidade de Porto Alegre; imagem do
holocausto provocado pelo nazismo; indígenas na universidade sob a posse de aparelhos
eletrônicos; neonazista em torcida de futebol; indígenas protestando contra medidas que
dificultam a demarcação de terras; manifestação do Movimento dos Sem-Terra; ser humano
chegando na Lua; Floresta Amazônica em chamas; manifestação reivindicando medidas
concretas para combater o aquecimento global e para frear as emissões de CO2 etc.
Algumas questões que podem ser levantadas na conversa com os estudantes:
● Divida as imagens entre aquelas que lhe agradam e as que lhe desagradam. Se
você pudesse acrescentar uma imagem em cada grupo, qual você traria para
compor?
● Você quer justificar suas escolhas?
● Todas as imagens representam cenas reais? Quais não? Por quê? Em caso de
todas serem reais e você ter o poder de eliminar uma do planeta, deixando de ser
real, qual seria? Por quê?
● Qual imagem você mais repudia? Por quê?
● Qual imagem você gostaria que fosse uma realidade concreta? Por quê?
Após as entrevistas individuais, é importante agendar um encontro inicial coletivo.
Nesse primeiro encontro, planejar dinâmicas para os estudantes se conhecerem melhor,
172

apresentar a proposta dos demais encontros, escolher o nome da oficina de teatro, estabelecer
os combinados, assim como propor uma roda de diálogo para conversar sobre as imagens
usadas na entrevista individual. Será possível, também, fazer alguns exercícios e jogos teatrais
usando as imagens como motivação, porém, o objetivo desse encontro ainda deve ser
diagnóstico para a organização da oficina. Para tanto, uma outra possibilidade muito coerente,
dependendo do grupo que fará parte da pesquisa, é substituir a conversa individual com as
imagens pelo trabalho prático teatral, isto é, já propor que em pequenos grupos se crie uma cena
inspirada na imagem ou mesmo as imagens serem usadas como estímulos para improvisos, pois
a própria forma de apresentar já revela a interpretação/posição do grupo/indivíduo diante da
temática. Lembrando que as características do grupo constituído é que revelará o melhor
caminho a seguir.
(III) Fase de tematização
Realização do mapeamento das informações, dos registros e das análises em diário de
campo. As informações coletadas, seja nas gravações ou no diário, serão organizadas em um
arquivo digital, formando um inventário. Uma vez realizado o mapeamento, serão estabelecidos
três temas para o trabalho prático inicial na oficina de teatro.
A partir da definição dos três temas iniciais, os encontros serão planejados tendo como
referências autores do teatro como Viola Spolin, Gilberto Icle, Bertolt Brecht, Augusto Boal e
outros coerentes à proposta de práticas performativas, assim como referenciais de história, que
serão selecionados conforme os temas definidos. É importante destacar que há muitas formas
de definição dos temas previstos na pesquisa-ação a/r/tográfica, sendo uma opção definir temas
que emergem “progressivamente das discussões exploratórias” (THIOLLENT, 2011, p. 60).
Entretanto, a pesquisa é aberta e, a cada encontro, através da roda de diálogo e das práticas
performativas, poderá ser possível seguir caminhos imprevistos, por isso, “deve-se deixar claro
que o tema e as questões práticas a serem tratadas devem ser absolutamente endossadas pelos
participantes, pois não poderiam participar numa pesquisa sobre temas distantes de suas
preocupações” (THIOLLENT, 2011, p. 60).
Outro aspecto relevante nessa fase de tematização será criar um banco digital de
referências teóricas (textos, imagens, filmes etc.) que poderão servir para sensibilizações e
referências nos encontros com os estudantes. Eles também poderão sugerir e alimentar esse
banco de referências a partir de suas próprias pesquisas, que deverão ser orientadas e
acompanhadas, também podendo virar temática de trabalho, caso se perceba que os estudantes
não usam fontes confiáveis. Afinal, segundo Thiollent (2011, p. 69), para que a pesquisa-ação
seja efetiva, “é preciso, em cada instante, procurar informações pertinentes relacionadas ao
173

assunto focalizado”, sendo os estudos coletivos muito importantes para uma aprendizagem
significativa à medida que evitam que discursos sobre teoria e prática se tornem inoperantes.
Como última estratégia da etapa de tematização, sugiro o convite para que os(as)
estudantes também sejam a/r/tógrafos(as), registrando seus processos artísticos, experiências,
aprendizagens, emoções, reações e pensamentos, da forma que optarem, como imagens, vídeos,
diário, entre outras. Hernández (2013, p. 55) diz que “a representação artística opera facilitando
a empatia ou nos permitindo ver através do olhar do pesquisador/artista”, um processo que pode
ser vivenciado também pelos(as) estudantes.
(IV) Fase de programação-ação
Formado o grupo de teatro para adolescentes e estabelecidos os acordos de
funcionamento da oficina, é importante apresentar um cronograma inicial para discussão e
aprovação dos participantes. A oficina pode contemplar oito encontros de trabalho prático, com
três horas de duração, havendo mais dois encontros para ensaio dos esquetes escolhidos como
mais relevantes e para a apresentação aos demais adolescentes da escola, além de mais um
encontro para a avaliação do processo e confraternização, totalizando 11 encontros com 33
horas.
Como sugestão de proposta inicial, a metodologia da oficina pode seguir o seguinte
roteiro:

Tema do encontro

Conteúdo e
habilidades

Exercícios teatrais de aquecimento e de sensibilização para ativação e


1) Aquecimento
percepção do corpo, como as caminhadas de exploração do corpo e do espaço.

Atividades que prevejam jogos teatrais, improvisos e atividades em grupo.


2) Atividades Nessa fase, são inseridos momentos de leitura de referências para serem
discutidas, encenadas ou para disparo de ideias.

Após cada exercício, quando houver plateia (se o trabalho não envolver o
3) Apresentação e grupo todo, mas parte dele, os demais assistem), fazemos uma breve conversa
feedback sobre itens a melhorar, elementos destacáveis e assuntos que precisam ser mais
aprofundados.

4) Roda final de Essa roda visa à troca de ideias e ao desenvolvimento do diálogo e da escuta,
diálogo além de retomar o trabalho do dia, seus aspectos mais relevantes, dificuldades
174

e facilidades. Esse será o momento de diálogo sobre as temáticas trabalhadas,


sendo possível, em algumas rodas, a leitura de textos, de fragmentos da
literatura que contribuam com a conversa e aprofundamento dos assuntos.

Ao longo da oficina, devem ser usados variados recursos e metodologias, como jogos
teatrais, leitura e estudo de textos científicos, literários e dramatúrgicos, assim como improvisos
e criação de textos coletivos. Além disso, através de performances e improvisos, pretende-se
aplicar a pesquisa-ação para, coletivamente, avançar no estudo histórico e científico dos temas
abordados. Concluo essa etapa ressaltando que os processos criativos e as respectivas reflexões
sobre devem ser registradas em um diário de campo, lembrando que os registros podem ser
escritos ou através de outras formas, como imagens, a fim de que sejam feitas posteriores
análises dos registros/relato das experiências, sob o olhar da pesquisadora. Também é
importante lembrar que a roda de diálogo é fundamental para troca de ideias, reforçando que “a
pesquisa-ação não é constituída apenas pela ação ou pela participação. Com ela é necessário
produzir conhecimentos, adquirir experiência, contribuir para a discussão ou fazer avançar o
debate acerca das questões abordadas” (THIOLLENT, 2011, p. 28).
(V) Finalização
Penso que, a partir da análise dos dados, da escrita criativa e crítica, seja possível
avançar fazendo uma proposta de intervenção pedagógica para o letramento histórico na área
escolar das Ciências Humanas, conjuntamente com os(as) estudantes que participaram da
pesquisa. Segundo Santos e Borre (2022, p. 312),
[...] é importante pensar-se enquanto sujeito que participa, produz e aprende, em uma
mesma medida, de modo que o ensino, as práticas pedagógicas e o próprio processo
criativo sejam simultâneos e em uma escala equivalente de relevância. Penso na
pesquisa e no ensino das artes como uma aglutinação, de maneira associativa,
contextualizando-me dentro das narrativas estudadas e ensinadas, jamais dissociando-
me delas.

Levando em consideração os diversos aspectos do processo de aprendizagem, creio ser


possível fazer uma proposta coletiva que contribua com o letramento histórico através da arte.
Essa proposta, uma vez construída com o grupo, pode ser apresentada de forma criativa,
transparecendo o processo artístico realizado na oficina. Certamente é uma proposta de pesquisa
em que os envolvidos entendem a importância da temática, diferentemente de um grupo em que
os negacionismos e tendências neofascista são uma convicção e que os mesmos se colocam
como parte de um movimento. Para esses, acredito que a proposta de pesquisa caminharia por
outra via, buscando na psicanálise a compreensão de por que adolescentes assumem ou
175

identificam-se tão profundamente com posições tão perversas e deletérias para si e para a
sociedade.

| Cena 16.1: últimas observações

Como último aspecto a ser abordado, mas não menos importante, ressalto a questão da
ética na pesquisa. A esse respeito, Thiollent (2011) elenca oito princípios: ato reflexivo,
objetividade e clareza, dinamicidade, teoria e prática, publicidade, ética, prática social e
política, e a não neutralidade. Destaco, nesse momento, a questão ética, pois, como a pesquisa
enfoca adolescentes, precisa ser transparente e bem elucidada. Segundo Thiollent (2011, p. 85),
“nenhum ato ou ação do pesquisado ou do pesquisador pode prejudicar ou gerar danos ao outro,
o que pressupõe o respeito mútuo”, devendo também haver transparência em cada uma das
ações “desde as mais simples, como na autorização de um registro fotográfico ou de áudio, até
as que norteiam coleta, análise e interpretação dos dados e divulgação dos resultados”.
A pesquisa que proponho implica o envolvimento de adolescentes (12 a 18 anos),
visando trabalhar com temas delicados, como negacionismos e neofascismo, temas pertinentes
ao ensino de história, mas que não deixam de ser tópicos sensíveis se levarmos em consideração
o contexto atual descrito no Ato II deste trabalho. Para tanto, respeitar as diretrizes e os
princípios éticos de pesquisa com seres humanos, garantido a integridade física, moral,
intelectual e emocional dos adolescentes é parte fundamental da proposta desta pesquisa.
Segundo Sônia Aparecida Siquelli (2017), toda investigação que envolva seres humanos
precisa respeitar a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que especifica
as exigências a serem seguidas pelos pesquisadores. Tal resolução foi atualizada conforme
Resolução nº 510, promulgada em 2016, logo, os apontamentos que seguem estão coerentes
com essa atualização, pois há ciência da importância da ética como pesquisadora. Portanto,
elenco alguns cuidados indispensáveis para o cumprimento das necessárias exigências da
Resolução nº 510/16, para que a proposta que desenvolvo não se desvincule da ética que uma
pesquisa com seres humanos exige:
(I) a participação na pesquisa deve ser por livre adesão. Portanto, sugiro a realização de
um seminário para apresentar o tema e a proposta de pesquisa-ação a/r/tográfica para as turmas
de adolescentes, convidando-os(as) a participar. Os(as) interessados(as) levarão um termo de
consentimento para seus responsáveis lerem e assinarem, enquanto se registram todos que
levarem o termo a fim de conseguir o retorno no dia seguinte. Ao entregar o termo, o estudante
176

interessado que fará parte da pesquisa também assinará o termo de consentimento, que preverá
a participação na oficina, uso de depoimentos e imagens;
(II) marcar um encontro com o grupo para coleta qualitativa de dados. Nessa coleta
inicial não será necessária a identificação, podendo manter-se anônimo(a). Tal atitude será
tomada com o intuito de respeitar a privacidade e a confiabilidade. Além disso, as questões
serão realizadas por meio de formulário digital e não serão apresentadas perguntas delicadas
que possam causar desconforto, de modo que elas focarão em aspectos gerais do perfil de grupo,
como idade, onde o estudante procura pesquisar seus temas de interesse e de estudo, as
plataformas digitais que mais acessa, seu maior interesse na internet, tempo médio que fica
conectado à internet etc.;
(III) nesse mesmo encontro de entrevista individual não totalmente estruturada,
procuram-se diagnosticar possíveis negacionismos da parte dos estudantes. Nesse encontro, já
se deixa claro que não serão usados os nomes reais de nenhum participante, apenas
pseudônimos dos quais nem eles saberão, assim como na análise serão registradas as vivências
em um diário, focando na observação da experiência. Não se utilizando a metodologia de
análise de discurso, registro de falas só serão usados quando forem extremamente necessários,
de forma totalmente anônima, através de pseudônimos.
Na entrevista, é importante solicitar autorização para gravar a voz, com o intuito de a
pesquisadora participar da conversa sem a necessidade de ficar registrando por escrito. Essa
gravação não deve ser transcrita nem usada em nenhum tipo de veículo, somente falas curtas e
extremamente relevantes podem ser utilizadas na divulgação da pesquisa e de forma anônima.
O objetivo principal da gravação é ter o cuidado para que os dados não se percam, visto que a
entrevista será não totalmente estruturada, sem questionários ou roteiros definidos;
(IV) o processo deve resguardar a integridade dos participantes. Marcia Mocellin
Raymundo (2017, p. 130) diz que os projetos devem prever possíveis benefícios-danos,
“assegurando que os possíveis benefícios resultantes da pesquisa não sejam menores que os
possíveis danos decorrentes da participação”. Para tanto, é importante destacar que, apesar dos
temas do projeto serem atuais, podendo suscitar discordâncias, a proposta da oficina não prevê
debates, nem discussões, muito menos julgamentos, mas, sim, rodas de diálogo sobre os temas
pautados em referenciais, com incentivo ao diálogo e à escuta92.

92
Dunker (2020, p. 38) faz uma interessante distinção entre diálogo e escuta na educação: “o diálogo geralmente
presume regra, códigos e demais dispositivos que antecipam as condições pelas quais a conversa ou a interlocução
pode ocorrer. A escuta, ao contrário, é o espaço de criação ou de determinação dessas regras”. bell hooks (2017,
p. 201) diz que uma das responsabilidades dos professores é criar práticas pedagógicas que promovam a escuta,
ensinar a escutar, ouvir uns aos outros, criar ambientes onde os estudantes, além de aprender a falar, também
177

Raymundo (2017, p. 135) alerta que “projetos envolvendo seres humanos com
frequência é visto como um evento, contudo, se trata de um processo”, sendo assim, será
importante fazer acordos com os estudantes nos primeiros encontros, seja sobre as rodas de
diálogo e de escuta, seja do consentimento ao longo do processo. Isto é, a participação nos
exercícios, improvisos, jogos e nos esquetes teatrais são muito importantes, mas os participantes
terão a liberdade de não participar, caso não se sintam confortáveis (já os benefícios da
participação serão inúmeros conforme a proposta construída).
Ainda, a autora alerta que “participar em um estudo pode trazer enorme satisfação e
sentimento de pertencimento, para outros pode significar desconforto e sentimento de abuso ou
exploração” (RAYMUNDO, 2017, p. 131). Atenta a esse aspecto, além dos acordos sobre os
estudantes não participarem das atividades teatrais que não se sentirem aptos, considero
extremamente importante que, no primeiro encontro da oficina, sejam elaboradas dinâmicas e
exercícios de conhecimento e de formação de grupo, visando a que os/as participantes sintam-
se seguros(as) no espaço de trabalho;
(V) os temas devem ser apresentados sob a forma de conhecimento, procurando
despessoalizar ou individualizar assuntos e questões. Nessa perspectiva, o teatro contribui
muito com isso, pois ao interpretar um tema ou um personagem, não é o “eu” que está ali, mas
a interpretação, levando o tema a um certo distanciamento, o que facilita a troca de ideias e
múltiplos olhares.
Sendo assim, finalizo essa proposta de futuras pesquisas lembrando que é apenas um
possível caminho como ponto de partida, mas que, através de metodologias vivas, não há apego
na proposta. Conforme bem aponta Irene Tourinho (2013, p. 68),
[...] compreender as metodologias como algo processual e relacional me leva a
reforçar a defesa pela multiplicidade de caminhos e ir contra a metodolatria [...] o
apego serviu a um método - uma idolatria do método que ultrapassa as relações que
se pretende estudar e ensinar [...] que vise a própria disseminação para encontrar
lugares que desconhecemos, práticas que não vivenciamos, sentidos que não nos
pertencem - que extrapolam nossos repertórios de vida.

Desta forma, minha proposta leva em consideração o fazer coletivo, democrático,


experiencial e criativo, aberta a mudanças que o processo poderá levar, sendo uma proposta
desapegada a métodos rígidos e duros. No entanto, disponível a encontrar significados na
prática.

aprendam a ouvir de forma respeitosa, e alerta: “isso não significa ouvir acriticamente ou que as aulas devam ser
abertas de tal modo que qualquer coisa que qualquer pessoa diga seja considerada verdadeira, mas significa levar
realmente a sério o que a outra pessoa diz”.
178

| GRAND FINALE

A situação é grave, o crescimento fascista é assustador, a educação está ameaçada.


Nossos(as) adolescentes estão expostos às militâncias negacionistas e neofascista, nossa
sociedade está em colapso, todos nós agonizamos. Essa pesquisa sobre educação procurou
entender e alertar sobre a gravidade de nossos tempos totalitários característicos de uma
Sociedade das Plataformas. No entanto, tempos difíceis exigem reações. Dessa forma, motivada
a contribuir com formas de resistência através da construção de conhecimento, dos letramentos
históricos e da arte teatral, propus um estudo sobre esse enlace que objetivasse não em trazer
respostas, mas ser um disparador de ideias e discussões que contribuíssem para novas pesquisas
e novas práticas pedagógicas em uma contra-educação.
Pode parecer utópico - e na verdade é sim -, pois, como educadora, acredito na dinâmica
entre denúncia e anúncio: denunciar a sociedade injusta e espoliadora exige também o anúncio
do sonho possível (FREIRE, 2014/2021). Assim, continuarei a sonhar com um mundo possível,
por mais que o sistema tente me transformar em uma máquina serviçal e sem sentimentos.
Concluo, com a presente pesquisa, que as aprendizagens proporcionadas pela prática
teatral são incontáveis, que é possível a sua linguagem levar ao letramento histórico,
destacando, ao longo do texto, alguns elementos dos quais denotam possibilidades de
aprendizados condizentes com uma educação libertadora, contra a hegemonia da ideologia
neoliberal e em consonância com a contra-educação. Essa compreensão foi possível porque,
através dos referenciais teóricos e das análises de práticas performativas, pude reconhecer na
arte a força propulsora capaz de enfrentar o obscurantismo de nossos tempos. Brecht é
referência nas artes como dramaturgo que não se rendia a visões de realidade inexoráveis, já
que acreditava que o momento histórico não é determinista e que as mudanças são possíveis.
Segundo Brecht (1978, p. 113),
[...] necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as
idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações
humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite
pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação deste
contexto.

O teatro como potência em uma contra-educação pode possibilitar, através da expressão


artística que produz, instiga, promove, experiência ou provoca, a humanização, o pensamento
crítico, o encontro consigo e com o outro, aquilo que a educação ameaçada de hoje urge, afinal,
“o conhecimento pode também derivar da experiência. E uma forma genuína de experiência é
a artística” (HERNÁNDEZ, 2013, p. 43). Não compreendo o teatro enquanto linguagem para
179

o letramento histórico como uma solução, mas como mais uma possibilidade dentre outras
possíveis no Ensino Básico. Entretanto, a pesquisa sobre essa potência artística/pedagógica do
teatro e seu enlace com o letramento histórico pode servir como suporte ou inspiração para
novos estudos emergentes em educação, contribuindo com o resgate do pensamento crítico, da
argumentação, do diálogo e da construção de uma sociedade mais justa, humanizada,
democrática e altruísta, mesmo em tempos tão difíceis.
Enfrentei muitas dificuldades ao longo desse processo de pesquisa, algumas pessoais,
outras de cunho acadêmico, outras como pesquisadora e muitas como autora. Coloquei como
desafio estudar a a/r/tografia e colocá-la em prática, ao menos em alguns pontos da pesquisa,
dos quais entendo que era a melhor metodologia para atingir os objetivos. A a/r/tografia valoriza
a identidade do(a) pesquisador(a) tanto quanto sua produção artística e, analisando minha
experiência, me lancei ao desafio de também me autoanalisar e autocriticar, o que enriqueceu a
compreensão do tema, pois não vi somente o outro e o trabalho pedagógico, mas minha relação
com ele e com a temática da pesquisa.
Compreendo com muito mais clareza o que significa valorizar e evidenciar a identidade
do pesquisador na própria pesquisa, pois percebi que me autopesquisei, autoinvestiguei e
autoconheci, mas, nesse processo, eu também me autossabotei algumas vezes, no entanto,
aprendizagem com experiências transformam. Essa palavra que tantas vezes fui indagada sobre:
como vemos a transformação? Como sabemos que algo foi transformado? Creio que toda
experiência e aprendizagem estética, política e crítica transforma, pois somos seres mutáveis.
A Juliana que iniciou esse mestrado NÃO É a mesma que termina, assim como, muito menos
continuará sendo a que é hoje. Penso que nem sempre vemos transformações, mas as sentimos.
E me sinto transformada com minha própria pesquisa.
Através da prática de a/r/tografar, outras perguntas surgiram, outras necessidades
emergiram, temas que não dariam conta nesse processo, mas que já vislumbro aprofundamentos
futuros, como a luta dos(as) professores(as) por condições de trabalho, por respeito a seu lugar
e compromisso com a educação. Segundo alertam Brunna S. Stock e Marcus V. de Azevedo
Basso (2022, p. 15), falar em projetos “sem falar de valorização docente é, na verdade, investir
na precarização da educação”, assunto que pode ser aprofundado. Também concluo que fazem-
se necessárias mais pesquisas sobre os negacionismos e neofascismo entre adolescentes, uma
vez que a presente pesquisa focou em evidenciar a potência teatral como facilitadora de
letramento histórico em uma contra-educação, mas o tema não se esgota: penso na necessidade
de pesquisas mais focadas nesse tema e, inclusive, sobre adolescentes que conscientemente
flertam com a ideologia neofascista, buscando suporte na psicanálise.
180

Através da a/r/tografia pude unir as pistas/cenas e construir significados importantes na


compreensão do tema da pesquisa. Apesar dos projetos não terem sido direcionados, na época,
para enfrentar os negacionismos e neofascismo, através das análises, ficou evidente a potência
teatral como possibilidade de letramento histórico e, também, como meios para enfrentar os
fenômenos. Retomando alguns elementos elucidativos que contribuíram para esclarecer a
pergunta “como a potência do teatro contribui para o letramento histórico de adolescentes no
contexto da Sociedade das Plataformas, combatendo negacionismos e neofascismo através de
uma contra-educação?”, seguem algumas conclusões:
● história e teatro conectados favorecem experiências, construção e interpretação de
conceitos que são a base do letramento histórico;
● nossas práticas pedagógicas e nossa subjetividade precisam se descolonizar;
● letramento digital precisa de outros letramentos;
● o/a pesquisador(a) não está desvinculado(a) do seu “objeto” de pesquisa;
● o estímulo à criatividade, imaginação e criação provocam novos saberes, que estranham
os saberes passados, que estranham os saberes adquiridos e que impulsionam um
caminhar permanente;
● transformar o próprio texto da pesquisa em arte não é tarefa fácil quando estamos
deveras condicionados por uma cultura dominante, mas abre possibilidades de
libertação, pois “o propósito da arte é quebrar a consciência convencional e rotineira, as
representações artísticas se tornam o meio para as mensagens que necessitamos escutar
e mostrar aos outros para quebrar as narrativas e visões hegemônicas” (HERNÁNDEZ,
2013, p. 56);
● toda prática pedagógica se ampara na teoria e “a docência é uma prática atrelada à
pesquisa e, ao mesmo tempo, de que a pesquisa é uma prática que fundamenta, organiza
e renova a docência” (TOURINHO, 2013, p. 64);
● fenômenos sociais exigem metodologias vivas, da qual os métodos sejam uma invenção
(muito bem ancorada nas referências), que “nos ajuda a entender sentidos e significados
que os indivíduos dão às suas ações, escolhas, motivações e expectativas”
(TOURINHO, 2013, p. 65);
● pesquisas que almejam transformações devem incluir os(as) pesquisados(as) nesse
processo;
● enfrentar negacionismos e neofascismo exige uma educação contrária a que estimula e
forja subjetividades para o mercado, pois ela é inversa à construção de negacionistas e
racistas, aposta na curiosidade e no diálogo como enfrentamento, cria ambiente
181

democrático para que a democracia real e radical seja possível. Afinal, “o diálogo é
democracia na prática, em que há uma primazia da escuta, e a fala, quando surge, se
torna um desejo de compreender a escuta” (TIBURI, 2020a, p. 179). A prática
pedagógica precisa ser feminista, crítica, antirracista, humanizadora, dialógica,
amorosa, pois “a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a
substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia” (FREIRE,
1996/2013, p. 37). Romper com a cultura do dominador significa reconhecer e valorizar
a diversidade em que “professores e estudantes precisam compreender totalmente as
diferenças e nacionalidade, raça, sexo, classe social e sexualidade, se quisermos criar
formas de saber que reforçam a educação como prática da liberdade” (HOOKS, 2020,
p. 173);
● a arte - no caso desta pesquisa, o teatro -, possibilita o letramento histórico e, com ela,
novas visões de mundo que podem ser profundamente transformadoras. Segundo Icle e
Bonatto (2017, p. 26),
[...] quando as situações de ensino‑aprendizagem assumem características observadas
em proposições performativas e a sala de aula passa a ser compreendida como espaço
performativo, regido por um pacto colaborativo entre professores‑performers e
estudantes‑performers, é constituído um laboratório de criação, aberto a
experimentações que incluem o revezamento de papéis entre quem aprende e quem
ensina; um espaço propício à exploração de diferentes possibilidades de relação de
professores e estudantes entre si e com o conhecimento.

Assim, o experienciar, o contato com o outro, o corpo vivo e ativo, o lúdico, o estudo,
o diálogo, a experimentação e o ambiente que permite ser e criar divergem de toda lógica da
negação e do neofascismo. Dessa forma, acredito ter alcançado os objetivos propostos, pois
consegui ver através da a/r/tografia a potência teatral como possibilidade de construção de
conhecimento.
Espero que minha pesquisa não tenha transmitido a ideia de que só enxergo os
problemas do digital, pois certamente reconheço seus inúmeros benefícios. Todavia, a reflexão
construída e argumentada procurou questionar se precisamos mesmo perder nossa humanidade
por benefícios. Reconhecer benefícios supõe não reconhecer malefícios? Se as tecnologias são
construções sociais, que foquemos em transformar o social, que pessoas desenvolvam e usem
tecnologias para libertar e não para vigiar, controlar e desumanizar.
Espero que minha pesquisa possa contribuir como disparadora de ideias, para que não
deixemos de falar, pensar e compartilhar experiências, arte, pesquisas e vidas. Foi importante
para meu crescimento profissional, pessoal e acadêmico ler autores clássicos e contemporâneos,
dialogando com eles e relembrando das experiências, que são as raízes da pesquisa-ação. Reler
182

Freire me lembrou de como preciso “voltar a Freire”: lendo-o, estudando-o e usando-o como
analogia, percebo que também é importante “voltar a Juliana”, ou seja, ler sobre meus
processos. Freire (2014/2021) também dizia que os professores precisavam reinventar sua
pedagogia, assim, penso que preciso constantemente reinventar-me; sabemos que a educação
também. Ler autores(as) contemporâneos(as) foram muito importantes nessa reinvenção, me
alegra pensar que ela é eterna, gosto da sensação de aprender e lutar até o fim de minha
existência.
Concluo minha pesquisa com mais uma frase de Freire (2014/2021, p. 280), que, pra
mim, tem muito significado: “eu gostaria de morrer deixando uma mensagem de luta. Agora se
você me pergunta: ‘Paulo, você tem alguma sugestão concreta?’ Eu digo: ‘não, não tenho’ O
que eu tenho é a certeza de que não é possível o fatalismo”.
Defendo que a educação precisa ser bonita! Mas, como fazer isso em tempos
obscurantistas? Após esse processo de pesquisa, penso:

Seja do contra! Faça ao contrário!

Encontre pela arte o mais belo caminho do contra! E respire, precisamos respirar!
183

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