Compaixao
Compaixao
Compaixao
AssiM COMO A C ORAGEM toma posição pelo outro em situações de perigo, a com
paixão toma posição com o outro em horas de infortúnio. É uma disposição ativa
para a amizade e a participação, é a vontade de estar ao lado do outro, trazendo
consolo e apoio na tristeza e na aflição.
As sementes da compaixão estão plantadas na própria natureza dos seres
humanos. "Existe alguma benevolência, ainda que pequena, incutida em nosso
peito, uma centelha de amizade pela espécie humana, uma partícula da pomba
branca convivendo em nossa estrutura com os elementos do lobo e da serpente",
disse David Hume. Seu contemporâneo Jean-Jacques Rousseau concorda: "com
paixão é um sentimento natural que, por moderar a violência do amor a si mesmo
no indivíduo, contribui para a preservação de toda a espécie. É a compaixão que
nos impele, sem refletir, a levar alívio aos que sofrem".
Como se pode cultivar a compaixão natural da criança? H istórias e provér
bios úteis são inúmeros. O passo principal é impedir que a animosidade e o pre
conceito prej udiquem o crescimento natural da virtude. Os "ismos" sectários são
os maiores obstáculos: racismo, sexismo e outros.
88 O LIVRO DAS V I RT U D ES
Estava muito frio, a neve caía e j á estava começando a escurecer. Era a noite do
último dia do ano. Uma menina descalça e sem agasalho andava pelas ruas, no
frio e no escuro. Quando atravessou_ correndo para fugir dos carros, a menina
perdeu os chinelos que tinham sido da mãe e eram grandes demais. Um ela não
achou mais e um garoto levou o outro, dizendo que ia usar como berço quando
tivesse um filho.
A menina já estava com os pés roxos de frio. Tinha um pacotinho de fós
foros na mão e outro no bolso do avental velho. Naquele dia não tinha conse
guido vender nada e estava sem um tostão. Com frio e com fome, ela andava
pelas ruas morrendo de medo. A neve caía no cabelo cacheado, mas ela não
podia pensar nem no cabelo nem no frio. As casas estavam iluminadas e havia
por toda parte um cheirinho gostoso de assado de Ano Novo. Era nisso que ela
pensava.
Num cantinho entre duas casas, ela se encolheu toda, mas continuava sentin
do muito frio. Voltar para casa, nem pensar: sem dinheiro, sem ter vendido nada,
era certo o castigo do pai. Além do mais, a casa deles também era muito fria, sem
forro e com o telhado cheio de furos e emendas, por onde o vento entrava asso
biando.
Com as mãos geladas, pensou em acender um fósforo. Conseguiu. A chama
pequenininha parecia uma vela na concha da mão. A menina se imaginou diante
de uma lareira enorme, com o fogo esquentando tudo e ela também. Mas logo
a chama apagou e a lareira sumiu. Ela só ficou com um fósforo queimado na
mão.
Acendeu outro que, brilhando, fez a parede ficar transparente. Ela viu a casa
por dentro: a mesa posta, a toalha branca, a louça linda. O assado, o recheio, as
frutas. Não é que o assado, com garfo e faca espetados, pulou do prato e veio até
onde ela estava? Mas o fósforo apagou e ela só viu a parede grossa e úmida.
Acendeu mais um fósforo e se viu j unto de uma belíssima árvore de Natal.
Maior do que uma que tinha visto antes. Velinhas e figuras coloridas enchiam os
galhos verdes. A menina esticou o braço e . . . o fósforo apagou. Mas as velinhas
C O M P A I XÃ O
começaram a subir, a subir e ela viu que eram estrelas. Uma virou estrela cadente
e riscou o céu.
- Alguém deve ter morrido.
A avó - única pessoa que tinha gostado dela de verdade e que j á tinha
morrido - sempre dizia: "quando uma estrela cai, é sinal de que uma alma subiu
para o céu".
A menina riscou mais um fósforo e, no meio do clarão, viu a avó tão boa e
tão carinhosa, contente como nunca.
- Vovó, me leva embora! Sei que você não vai mais estar aqui quando o
fósforo apagar. Você vai desaparecer como a lareira, o assado e a árvore de Natal.
E foi acendendo os outros fósforos para que a avó não sumisse. Foi tanta luz
que parecia dia. E a avó ali, tão bonita, tão bonita. Pegou a menina no colo e voou
com ela para onde não fazia frio e não havia fome nem dor. Foram para j unto de
Deus.
De manhãzinha, as pessoas viram no canto entre duas casas uma menina
corada e sorrindo. Estava morta. Tinha morrido de frio na última noite do ano.
Nas mãos, uma caixa inteira de fósforos queimados.
- Ela tentou se esquentar, coitadinha.
Ninguém podia adivinhar tudo o que ela tinha visto, o brilho, a avó, as
alegrias de um novo ano.
(LRM)