Artigo 04 - Volume 09

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CONFLITOS JUDICIAIS, ESPAÇOS DE JURISDIÇÃO E

ESTRUTURAÇÃO ADMINISTRATIVA DA JUSTIÇA NA


CAPITANIA DO RIO GRANDE (COMARCA DA PARAÍBA/RIO
GRANDE DO NORTE, 1789-1821)28

Antonio Filipe Pereira Caetano29

Artigo recebido em: 04/06/2016.

Artigo aceito em: 26/06/2016.

Resumo:

A malha judicial da colonização portuguesa na América, que se difundiu de maneira


mais enfática a partir da segunda metade do século XVII, sofreu diferentes
intervenções e configurações de acordo com as localidades em que eram instituídas.
Nas “Capitanias do Norte” houve circunstâncias em que determinadas localidades
sem o estatuto de capitania possuíam uma jurisdição de justiça, caso da Comarca das
Alagoas; por outro lado, localidades em condições de capitania poderiam não ter um
desenho comarcã, caso da Capitania do Rio Grande. O presente artigo pretende
discutir os conflitos de jurisdições e os problemas administrativos oriundos dessa
especificidade na Capitania do Rio Grande (do Norte) entre 1789-1821.

28 Este artigo é resultado da pesquisa de pós-doutoramento realizada no Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal Fluminense sob a supervisão da Profa. Dra. Maria Fernanda
Baptista Bicalho.
29 Professor Adjunto do curso de História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). É coordenador

do Grupo de Estudos América Colonial (GEAC).


Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4710919A6

Revista Espacialidades [online]. 2016, v. 9, Jan- Jun, n. 1. ISSN 1984-817X 84


Palavras-chave: Justiça – Conflitos – Capitania do Rio Grande – Poder régio.

Abstract:

Judicial mesh of Portuguese colonization in America, which spread more emphatically


from the second half of the seventeenth century, has undergone various interventions
and settings according to the locations where they were instituted. In "North’s
Captaincies" were circumstances in which certain locations without the Captaincy
status had a justice of jurisdiction if the District of Alagoas; on the other hand,
locations Captaincy conditions could not have a Comarca design if the Captaincy of
Rio Grande. This article discusses the conflicts of jurisdictions and administrative
problems arising from that specific in the Captaincy of Rio Grande (north) between
1789-1821.

Keywords: Justice – Conflicts – Captaincy of Rio Grande – Kingly power.

***

Os índios da Capitania do Rio Grande queriam ser súditos, ou melhor, queriam


ter o direito de poderem usufruir das condições que qualquer homem que
reconhecesse a autoridade régia no ultramar tinha: participar da vida pública e política
dos espaços coloniais em que estavam inseridos. Foi tentando contemplar esse grupo
que em alvará de 7 de junho de 1755, D. José I, através de seu primeiro ministro,
Marquês de Pombal, permitia nas Capitanias do Brasil que os nativos pudessem ser
eleitos para vereadores e juízes ordinários nas câmaras locais. Esse conjunto de
determinações nada mais era do que o Diretório dos Índios, criado para regulamentar
o relacionamento dos súditos luso-americanos com os nativos, bem como evitar a
intervenção de missionários no trato com aquela população.

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Ao mesmo tempo, o novo código de conduta no trato indígena deixava mais
evidente àqueles grupos que passaram por um processo de conversão ao cristianismo
pelas mãos dos missionários e começaram a reivindicar direitos de súditos,
principalmente aqueles que foram “aldeados” promovendo uma mudança de status na
sociedade colonial (ALMEIDA, 2003). Porém, na Capitania do Rio Grande 30, os
nativos, ainda no início do século XIX, enfrentavam resistência dos súditos locais e
dos agentes régios enviados para atuarem naquelas bandas. O capitão-mor do Rio
Grande do Norte, José Francisco de Paiva Cavalcante, era um desses personagens
que, insatisfeitos e/ou inconformados com essa situação escrevia ao Príncipe
Regente, D. João VI, em 3 de Setembro de 1806, solicitando alterações nessas
determinações (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos,
Caixa 9, Documento 608).

Ciente do conjunto de leis, o funcionário régio escrevia:

(...) tenho observado, que não só se não tira o fruto desejado por este meio,
mas encontram-se infinitas irregularidades e indecências a aqueles
empregos, tanto pelo atrasamento [sic] em que estão os índios ditos, por
falta de educação, com por lhes ser próprio o deboche e má fé (...) (Idem,
fl. 1.)31

A principal justificativa encontrada pelo agente do monarca era os problemas


educacionais existentes naquela população, esquecendo o mesmo que a América
portuguesa, ainda no século XIX, tinha sua população pouco afeita às letras e,
praticamente, composta por analfabetos (VILALTA, 1997; ALGRANTI, MEGIANI,

30 A capitania do Rio Grande foi doada em donataria em 1535, tornando-se régia em 1598. Segundo
Carmen Alveal, na documentação sobre a localidade, o termo “do Norte” só passou a se fazer
presente por volta de 1751 quando a mesma deveria ser diferenciada da Capitania do Rio Grande de
São Pedro (do sul). A localidade tornou-se subordinada à capitania de Pernambuco em 1701 se
emancipando, e tornando-se Província do Rio Grande do Norte, em 1815. Cf. ALVEAL, 2016 (no
prelo), pp. 133-158.
31 Para melhor compreensão dos leitores das fontes documentais, as mesmas serão transcritas com

as adaptações de linguagem e escrita do português contemporâneo.

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2009). Além disso, manifestava que esses problemas de formação ocasionavam uma
conduta irônica, sem idoneidade e regada à maledicência. Por isso, continuava:

para tanto julgo-me na necessidade de representar a Vossa Alteza Real que


a benefício dos povos, e decoro a justiça, haja determinar aos
corregedores32 desta comarca, não admitam para lugar de juiz a índio das
vilas deste termo, podendo sim ser contemplado um das sobreditas para
vereadores, havendo com este mesmo escrupulosa escolha (Arquivo
Histórico Ultramarino, Op. Cit., Documento 608, fl. 1)

Tentando encontrar um equilíbrio para não fugir de contemplar às leis régias,


José Francisco de Paula Cavalcante, propunha uma admissão nos quadros da vereança
no âmbito mais administrativo do que judicial. Tal postura, reforçava o possível
(des)conhecimento dos ameríndios de condições de letramento necessários ao ofício
de juízes ordinários, homens eleitos dentre os membros da câmara para o exercício
de um triênio, e que haviam de atuar e corrigir nas instâncias jurídicas. Segundo Graça
Salgado, uma das mais importantes atribuições dadas a esses homens de justiça local
era a de “proceder contra os que cometerem crimes no termo (município) de sua jurisdição”, mas,
ao mesmo tempo, tinham por atribuições executar prisões, tirar devassas, auxiliar na
escolha de juízes de vintena, gerenciar as audiências da câmara e fiscalizar outros
ofícios administrativos (SALGADO, 1985, p. 130).

32 Apesar de na documentação que envolvem os magistrados na América portuguesa aparecerem,


recorrentemente, a expressão “corregedores” de comarca, há de se mencionar que este ofício da
magistratura não fora transferido no aparelhamento da justiça no Atlântico, sendo os “ouvidores de
comarca” o termo apropriado para sua compreensão. Isto se deveu ao fato do governo luso evitar
custos em sua malha judicial e ao invés de nomear corregedores e ouvidores para atuação em
comarcas, como acontecia no reino, optou-se por somente instituir as estruturas comarcãs com seus
ouvidores na América Lusa; estes tinham as mesmas atribuições dos corregedores e ouvidores do
reino. Na prática eram dois ofícios em um só o que fora adaptado nas conquistas americanas.
(MELLO, 2012).

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A preocupação do Capitão-mor do Rio Grande do Norte se tornava ainda mais
delicada tendo em vista que a localidade não possuía, na altura em que escrevia ao
monarca, uma comarca própria, autônoma, estando ainda subordinada à Comarca da
Paraíba, criada em 1688. Esta condição, só vai ser alterada a partir de um alvará de 18
de março de 1818 que instituía a Comarca do Rio Grande do Norte em virtude das
grandes “distâncias” espaciais que os ouvidores de Paraíba deveriam percorrer e
agraciando os povos do Rio Grande do Norte com a aplicação da justiça em
localidades ainda gerenciada por “juízes leigos” (Lei 18 de Março de 1818). Logo, por
aquelas bandas, até 1818, grande parte das decisões judiciais passavam pela mão do
juiz ordinário, seja pela inexistência de um ouvidor e/ou juiz de fora, seja pela pouca
intervenção do ouvidor da Comarca da Paraíba na localidade. Assim, para José
Francisco Cavalvante a nomeação de um índio como vereador era até possível,
mesmo alegando escolha “inescrupulosa”, mas para juiz ordinário, que poderia impor
o poder da vara enquanto prestígio social, era uma situação, no mínimo delicada.

Subindo para as considerações do Conselho Ultramarino, o processo do


Capitão-mor, como de costume foi recomendado vistas do Procurador da Fazenda,
do Procurador da Coroa e do Governador da Capitania de Pernambuco, este último
sugerindo que enviasse pedido de informação do Ouvidor da Capitania, já em 28
fevereiro de 1807, para que se posicionasse também sobre a celeuma. Na lateral do
documento encontram-se dois despachos apenas, dos quatro que, supostamente,
deveriam haver. Acreditamos que o primeiro tenha sido do Procurador da Fazenda
ou do Procurador da Coroa, visto que só recomendava a consulta do Governador de
Pernambuco e do Ouvidor da Comarca. No entanto, o mais substancial dos
posicionamentos, foi feito pelo Governador da Capitania de Pernambuco, Caetano
Pinto de Miranda Montenegro, que dizia:

Já em outras ocasiões tenho dito que o caráter natural dos índios ilude toda
a filosofia; não tem ambição, não estimam a propriedade, que sendo as
mais preciosas do Brasil, a dos escravos; não há lembrança que algum índio
a tenha tido; por estas razões, e por outras, que emito, tem incapacidade

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natural para governo político, e a civilização que se lhe pode propor é um
efeito da necessidade para subsistirem; se parecer notória informação para
consultar a dispensa do alvará, deve mandar-se tornar pelo ouvidor
(Arquivo Histórico Ultramarino, Op. Cit., Documento 608, fl. 1.)

O parecer foi duro, repleto de juízo de valor e confirmando a suposta


incapacidade dos nativos não só de atuarem no âmbito da justiça como no “governo
político”. As linhas revelam um lugar destinado ainda à ingenuidade e a submissão
dos grupos ameríndios locais à população branca que administrava a capitania, mesmo
que já enquadrados nas práticas e nos costumes do Antigo Regime português. Por
outro lado, o pedido do Capitão-mor do Rio Grande de Norte, ainda que inconcluso,
porque o prosseguimento do processo não se encontra nos autos, revela uma
fragilidade do sistema judicial na antiga capitania donatária de João de Barros e Aires
da Cunha, ainda na mão, em grande parte, dos juízes ordinários. Essas histórias
podem apontar para os conflitos de jurisdição e uma configuração espacial própria
decisória de justiça na Capitania do Rio Grande. Este artigo tem o propósito de
discutir essas questões, especialmente entre 1789 e 1821, quando a malha judicial das
“Capitania do Norte” havia se consolidado enquanto nomeação de agentes, mas as
peculiaridades locais podem descortinar falhas e rachaduras nessa estrutura vigente.

Capitania de Pernambuco, Comarca da Paraíba.... Rio Grande do Norte

A grande mudança no aparelho judicial português em relação às suas conquistas


americanas se deu na transição do século XVII para o século XVIII. Segundo Nuno
Camarinhas, a principal motivação para esta situação, no reino, fora o processo de
centralização monárquica; e nas conquistas, a difusão da economia aurífera que trouxe
uma maior necessidade de controle sobre suas possessões do Atlântico
(CAMARINHAS, 2009). Porém, na América portuguesa o caráter de autonomia da

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estrutura judicial foi uma característica importante que a diferenciava de outras
localidades. Entretanto, de acordo com Mafalda Soares da Cunha e António Castro
Nunes, a territorialização da justiça na América foi assolada por um ritmo lento, se
comparado com a estrutura vigente na América espanhola (SOARES; NUNES,
2016).

Assim, primeiro se observou a implementação de ouvidores donatariais, não


letrados, indicados pelos capitães donatários e subordinados às suas decisões,
contribuindo para o estabelecimento e fortalecimento de um direito costumeiro33
(HESPANHA, 2010). Com o fracasso das capitanias hereditárias se iniciou um
processo de criação de comarcas, a partir da instituição de ouvidores letrados,
formados nos quadros da Universidade de direito, em Coimbra, e habilitados na
prática de justiça à serviço de representação régia. Neste interim, para a ampliação da
capacidade decisória das conquistas foram criados os Tribunais da Relação (primeiro
na Bahia – 1652; em seguida no Rio de Janeiro – 1751 ) ao mesmo tempo que as
câmaras municipais de maior importância recebiam os juízes de fora, funcionários
para atuariam mais nas cearas criminais e gerenciando as atividades do fórum político
local.

A capitania de Pernambuco vivera uma condição especial neste


desenvolvimento judicial, visto que sua condição de donataria se perpetuou até 1716,
quando a família Albuquerque, segundo Virgínia Assis, havia desistido do processo
de retomada de controle da capitania pela coroa portuguesa (ASSIS, 2001). Tal
conjuntura levou ao capitão-donatário de Pernambuco, durante um bom tempo ainda
continuar escolhendo seus ouvidores e, mesmo quando a monarquia portuguesa
alterou o eixo de nomeação de seus agentes de justiça, exigindo que fossem letrados,
os monarcas ainda autorizavam os Albuquerques a escolherem seus magistrados,

33 Entende-se como direito costumeiro aquele que fora forjado nas localidades em detrimento das
circunstâncias, a partir das brechas das leis régias. Antonio Manuel Hespanha também a denominou
de “direito das gentes”, fruto das práticas de conquistas e das regras do cotidiano impostas pelos
moradores do lugar.

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desde que fossem letrados e chancelados pelo Tribunal da Relação da Bahia (SILVA,
2010, p. 47). Assim, a Capitania de Pernambuco teve sua comarca instaurada em 1653,
seguida da comarca da Paraíba (1688), das Alagoas (1712), do Ceará (1723), de Goiana
(1789), de Crato (1815), do Rio Grande do Norte (1818) e a Comarca do Rio São
Francisco (1820). Todas essas localidades estavam subordinadas, até 1821, ao
Tribunal da Relação da Bahia enquanto instância de apelação e agravos de sentenças
emitidas pelos juízes ordinários, juízes de fora e ouvidores espalhados pelas vilas e
comarcas das Capitanias do Norte. O Tribunal da Relação de Pernambuco só irá ser
criado em 1821.

No período que estamos propondo para análise nesse artigo (1789-1821)


perceba-se que toda essa tessitura judicial já estava instaurada e plenamente em
funcionamento, proporcionando aos súditos locais a possibilidade de “sensação” de
serem atendidos pelos agentes de justiça no momento em que fossem prejudicados
em negócios e/ou circunstâncias pessoais. Não se pode esquecer que o
aparelhamento judicial não só servia para o abrigo dos interesses régios, como
também da concessão aos súditos da ideia de proteção, do governo para o bem
público e comum (HESPANHA, 1994). Por conta disso, não deve ser visto com
estranhamento o fato de que eram muitas localidades no mundo colonial que
solicitavam a criação e a presença de magistrados régios em seus espaços, não só por
garantir que seus direitos fossem atendidos, mas, sobretudo, para agregar valor e status
às regiões que, quando tinham esses funcionários, eram dotadas de prestígio em
relação às demais.

O grande empecilho na análise da práxis judicial destes agentes ainda esbarra na


questão documental. O acervo do Tribunal da Relação da Bahia, lotados no Arquivo
Público do Estado da Bahia, não preservou os processos judiciais, restando apenas as
sentenças, ainda com lacunas temporais e problemas de conservação, impedindo uma
configuração efetiva do desenvolvimento judicial, dos acordos realizados, dos
funcionários/personagens envolvidos e do léxico do direito utilizado na aquisição das

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necessidades dos súditos. Por ora, o acervo do Arquivo Histórico Ultramarino e suas
correspondências que circulavam pelas conquistas ainda permite rastrear e mapear,
ainda que de maneira pueril, o funcionamento da justiça nas “Capitanias do Norte”.
Nessas comunicações, que vão muito além das questões políticas, podiam ser
direcionadas a vários rumos (instâncias, pessoas ou agentes monárquicos), além de,
também, garantir a possiblidade de quaisquer indivíduos, inclusive os particulares, de
gastarem tintas, papeis e letras para reivindicarem serem contemplados pela justiça
régia. Afinal de contas, apesar da atuação dos magistrados, a aplicação da justiça nas
localidades ultramarinas era uma prerrogativa do monarca (WEHLING &
WEHLING, 2004).

Assim, após uma investigação dos magistrados régios, dos auxiliares de justiça e
dos assuntos concernentes ao direito presentes, entre 1789-1821, nas
correspondências do Arquivo Histórico Ultramarino referente às “Capitanias do
Norte” podemos apontar que da ou para a Capitania de Pernambuco foram
encaminhados 7611 documentos onde apenas 667 (8,73%) referem-se à temática de
justiça; para a Comarca das Alagoas foram 226 documentos sendo 45 (17,17%); para
a Capitania da Paraíba foram 1250 documentos sendo 166 (13,28%); na Capitania do
Ceará foram 671 sendo 71(10,68%) e para a Capitania do Rio Grande encaminhados
216 sendo 16 (6,48%) voltados para os assuntos judiciais.

De todas as localidades a que concentra a maior quantidade de comunicações


jurídicas foi a Comarca das Alagoas. Essa situação pode ser inferida pelo fato da região
não possuir o estatuto de capitania, estando ainda subordinada à Capitania de
Pernambuco. É com a condição de Comarca, em 1712, que um novo contorno
geográfico foi feito no território, deixando mais explícito o que era Pernambuco do
que seria depois Alagoas. Além disso, o ouvidor da Comarca das Alagoas, pela
ausência da figura do Governador de Capitania, poderia receber mais demandas das
instituições régias, dos agentes monárquicos e dos particulares. Não é difícil imaginar,
nesse caso, como os raios de ação dos magistrados direcionados para Alagoas era bem

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alargados, podendo corrigir e atuar para mundos além do direito e da justiça
(CAETANO, 2014).

Enquanto isso, a Capitania do Rio Grande (do Norte) dentre as localidades foi
aquela que apresentou o menor índice de correspondência no corte cronológico
proposto, 16 documentos. Uma justificativa para essa circunstância pode estar
relacionada à sua tardia instalação da estrutura comarcã, em 1818. Enquanto
subordinada à comarca da Paraíba, se poderia inferir que o fluxo de correspondência
ao reino, à Capitania de Pernambuco ou à Comarca da Paraíba eram elevados 34,
quando na verdade não o eram. Se de um lado isso pode apontar para uma “falha” na
estrutura judicial da região, por outro lado não se pode perder de vista, exatamente, a
autonomia da capitania para resolver seus próprios problemas de justiça, pouco
acionando os magistrados subordinados ou vizinhos. Além do mais, também não se
deve esquecer a presença dos juízes ordinários nas câmaras das vilas da Capitania do
Rio Grande, agentes que tinham um papel importante na manutenção da justiça em
casos de inexistência e/ou ausência de magistrados régios (vide a luta do Capitão-mor
que abriu esse artigo visando impedir que indígenas ocupassem tal posto). Ora, isso
descortina, quem sabe, mais a utilização do direito costumeiro do que as leis oriundas
do reino.

Sendo assim, no fluxo de correspondência judicial presentes no Conselho


Ultramarino da Capitania do Rio Grande assim pode ser apresentado:

34 Isto pode ter ocorrido na correspondência anterior a este período (1535-1789), mas como esse
levantamento não foi feito porque foge do corte cronológico proposto para a pesquisa, assim, esta
afirmação ainda se perfilará na condição de suposição.

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Tabela 1 – Correspondência sobre Justiça da Capitania do Rio Grande do
Norte no Arquivo Histórico Ultramarino (1789-1821)

Assuntos dos Nº de
Documentos Documentos

Justiça: Civil 03

Justiça: Administração 04

Justiça: Criminal 03

Ouvidor de Pernambuco 01

Ouvidor da Paraíba 02

Ouvidor do RN 02

Junta da Fazenda RN 01

TOTAL 16

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Documentos 447 a 663.

O conjunto revela uma maior incidência na correspondência envolvendo os


magistrados régios, sejam os da Paraíba (2), Pernambuco (1) ou da própria capitania
do Rio Grande do Norte (2), demonstrando que no período muitas decisões
supostamente passavam esse personagem (veremos essa questão a seguir). Além
disso, os assuntos de justiça administração35, somaram quatro incidências levando a
posicionamento régio, institucional ou de agentes sobre assuntos variados no trâmite
administrativo. A Justiça Criminal e a Justiça Civil36 apresentaram o mesmo número de

35 Estamos denominando de Justiça: Administração os documentos que tratassem sobre conflitos de


jurisdição, nomeação de funcionários, queixas de atuação, solicitação de recursos ou ajudas de custos.
36 Enquanto isso, Justiça: Criminal foram agregados os documentos referentes à prisões, cartas de

seguro, assassinatos, roubos e todos os tipos de violência; já Justiça: civil os conjuntos que revelassem
problemas de reconhecimento de paternidade, distribuição de herança, demarcação de sesmarias e
questões com a escravaria.

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correspondência, três cada uma, descaracterizando um estereótipo da localidade como
violenta, marcada pelo banditismo social e por tumultos populacionais. É curioso
notar que a figura central da tessitura judicial da região, os juízes ordinários não
aparecem em nenhuma correspondência da região, quem sabe por que suas atuações
estariam melhor registradas e com maior intensidade nas atas das câmaras municipais.
Por fim, também se identificou um documento sobre a Junta da Fazenda que,
inclusive, pode ser considerada como uma instância decisória de justiça por deliberar
com base no direito.

Como essa documentação, agentes e súditos se emaranhavam na conjuntura


judicial da Capitania do Rio Grande do Norte que estaremos vislumbrando a partir
deste momento.

Os Magistrados Régios na Capitania do Rio Grande

O sargento-mor e governador interino da Capitania do Rio Grande do Norte,


Caetano da Silva Sanches, não perdeu tempo! Em 3 de junho de 1791 escrevia ao
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, para se
queixar do ouvidor da comarca da Paraíba, Antonio Felipe Soares Brederode37.
Segundo Yamê Paiva, Brederode fora um dos ouvidores mais longevos que atuaram
na Comarca da Paraíba. Envolvido em vários conflitos, dentro e fora da Capitania da
Paraíba, o magistrado, por sua proteção na administração lusitana, sairia ileso de
muitas queixas que os súditos lhe direcionavam (PAIVA, 2012, p. 115). Dentre os

37Antonio Felipe Soares Brederode nasceu em Coimbra e graduou-se em 1781. Passou pelo juizado
de fora do Bairro de Mocambo (1782) e chegou à Comarca da Paraíba em 1786. Reconduzido em
1790, tornou-se Desembargador da Relação do Porto, Juiz Conservador das Matas de Alagoas e
Conselheiro de D. João VI (1818), já com 63 anos. (PAIVA, 2012, p. 111). Sobre a recondução, Cf.
Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D. Maria I, Liv. 25, fl. 331, 30 de
outubro de 1790 – Carta – Lugar de Ouvidor da Paraíba.

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principais questionamentos, o abuso de poder e as práticas mercantis ilegais se faziam
mais presentes.

E, foi sobre esse último item que Caetano Sanches tomou como pauta para
criticar o ouvidor Antonio Brederode, por realizar abusos no momento da
arrematação dos contratos na Capitania do Rio Grande. Segundo ele,

(...) atravessando os sucres e todos os gêneros de negócios e agora vexar


apovoando lhe o preço na carne, ordenando-se cumpre por toda esta
capitania a 320 por arrobas, e pondo um tão mais isento que há de custar
a tirar (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos,
Caixa 8, Documento 485, fl. 1).

Em virtude da grande corrosão do documento não conseguimos identificar o


desfecho do episódio, nem muito menos o despacho do Conselho Ultramarino sobre
a situação. No entanto, fica explícita as insatisfações que os ouvidores da Paraíba
causavam nos espaços em que corrigiam. Cabe mencionar a figura do ouvidor
Cristóvão Soares Reimão, que mesmo estando fora de nosso corte cronológico,
causou um verdadeiro estrago pelos termos em que atuou no final do século XVII.
Patrícia Dias o denominou como um tirano, se envolvendo em inúmeros conflitos
locais com a população (DIAS, 2012). Logo, como as atividades mercantis eram
proibitivas nos regimentos dos magistrados, mesmo que fossem burlados no
cotidiano, os súditos locais não permitiam qualquer tipo de intromissão de
funcionários régios nos comércios, principalmente quando estes ao invés de se
transformarem em aliados se posicionavam como concorrentes. Não é difícil detectar
que alguns magistrados tiveram muitos ganhos financeiros depois que passaram por
comarcas brasílicas, sobretudo levando em consideração os baixos emolumentos que
recebiam para a tarefa perigosa de atravessar o Atlântico.

Quem requisitou os serviços da ouvidoria foi o sargento-mor do Regimento da


Divisão Sul da Capitania do Rio Grande do Norte, Antonio de Barros Passos, mas
não a da Paraíba e sim a de Pernambuco. Em 7 de fevereiro de 1804, o militar pedia

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os autos de serviços de sua atuação no referido regimento à João de Freitas de
Albuquerque38. O seu objetivo era garantir o pagamento dos rendimentos pelos
serviços prestados à coroa lusitana que só seriam pagos após a referida concessão da
papelada (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 9,
Documento 563).

O único ouvidor da Comarca do Rio Grande do Norte que apareceu no


conjunto foi Mariano José de Brito de Lima. Provavelmente fora o primeiro
magistrado daquela ouvidoria, já que em 14 de junho de 1821 ainda estava por aquelas
bandas e escrevia duas cartas ao monarca D. João VI. A primeira congratulava-o pela
permanência como Príncipe Regente no Brasil (Arquivo Histórico Ultramarino,
Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 10, Documento 653), enquanto a segunda,
parabenizando-o por ter chegado em Lisboa (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio
Grande do Norte Avulsos, Caixa 10, Documento 654). Em suas linhas dizia que
suplicava “humildemente a Vossa Majestade a graça de acertar esses votos (...) e que tinha
fidelidade” (Idem, fl. 1)

Mariano José de Brito de Lima restabeleceu a criação da alfândega do Rio


Grande do Norte, em 6 de fevereiro de 1822, que estava suspensa desde do século
XVIII e um ano depois, o mesmo monarca, ordenava que a Junta Provisória
instaurada no Rio Grande do Norte, informasse ao ouvidor que se recolhesse
imediatamente ao seu lugar de que se retirou por sua conta, em 3 de julho de 1822.
Além disso, pedia que o desrespeito e reprovação do ato constasse registrada nas atas
da câmara (Anais da Biblioteca Nacional, 98, 1978, fl. 176).

Críticas e elogios, bajulações e reprovações, o comportamento do primeiro


magistrado local era marcado por oscilações. Também pudera, o contexto não era

38O ouvidor João de Freitas de Albuquerque assumiu a ouvidoria de Pernambuco em 1800. Havia
passado pelo juizado de fora da Vila de Monte Mor Novo (1792). Arquivo Nacional/Torre do
Tombo, Registro Geral de Mercês, D. Maria I, Livro 29, fl. 374, 22 de outubro de 1800 – Carta –
Ouvidor de Pernambuco; Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D.
Maria I, Livro 22, fl. 117v, 05 de dezembro de 1792 – Carta – Juiz de Fora de Monte Mor Novo.

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nada favorável tendo em vista a instituição de Juntas Provisórias pelas capitanias
brasílicas para demarcação da transição de governo, o retorno da família real ao reino
para sufocar a rebelião do Porto (1821), os efeitos positivos e negativos da Insurreição
Pernambucana (1817)39 que culminou, inclusive, no desmembramento de territórios
da Capitania de Pernambuco e gerava uma instabilidade local de tensão. Os
acontecimentos de Pernambuco fizeram emergir capitanias autônomas de
Pernambuco, e pode ter sido a razão para a criação da comarca do Rio Grande do
Norte, de modo que corrigisse os possíveis danos populacionais e insubordinações
dos súditos.

Assim, retirando o papel que o sargento mor necessitou do ouvidor de


Pernambuco, percebe-se que o aparecimento dos magistrados na documentação do
Conselho Ultramarino não demonstrava suas atuações enquanto agentes de justiça.
Se Antonio Brederode era repreendido pela população, Mariano Brito de Lima fazia
a “social” com o magistrado talvez pela felicidade de ter sido recém empossado em
uma comarca nova. A ausência de relatos de suas práxis judicial e/ou intervenções no
uso do direito apontam para uma estabilidade local, uma estruturação sólida que
pouco trazia a necessidade desses agentes. Talvez isso explique a tardia configuração
comarcã do Rio Grande do Norte, visto ser uma localidade menor e fácil de ser
visitada pelos ouvidores da Paraíba ou Ceará nos tempos anteriores.

Por isso, cabe mencionar a inferência feita no conjunto do “juiz da terra” pelo
Capitão-mor da Vila de Porto Alegre, Antonio Ferreira Cavalcante. Em 12 de
novembro de 1803, escrevia ao Príncipe Regente, dizendo que

(...) tem muitas fazendas nos sertões daquele continente, sendo igualmente
incumbido de mandar diligência do Real Serviço por sítios mui desertos e
do perigo dado pelos salteadores que há naquele continente (....) (Arquivo
Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 8,
Documento 558, fl. 1).

39 Para os episódios da Insurreição Pernambucana, Cf. MALERBA, 2006; MELLO, 1997.

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Por isso, pedia autorização para portar armas de fogo, permissão concedida aos
“juízes da terra”. Esse funcionário no qual se referia era, nada mais nada menos que
o ouvidor da Paraíba, que para deferimento do pedido, foi recomendado pelo
Conselho Ultramarino que emitisse seu parecer. João Severiano Maciel da Costa,
ouvidor da Paraíba, afirmava em 16 de novembro de 1806 que:

(...) prova-se a necessidade que o suplicante tem de viajar por estes sertões
em razão das fazendas que tem nelas e não menor o perigo que pode correr
em diligências de seu posto. Unido a isso ao bom caráter do mesmo, a sua
conhecida mansidão, parece justo o seu requerimento. (Idem, fl. 3)

Uma das atribuições dos magistrados era conter a criminalidade que se alastrava
pelos sertões e confins desconhecidos pelos agentes administrativos. A presença de
capitães, sargentos e suas referidas tropas auxiliavam na garantia do controle, da
autoridade e da presença de representantes régios por aquelas paragens (SILVA,
2010b). Os homens de defesa, se trabalhassem em conjunto com os magistrados,
tornaram-se peças importantes para expansão territorial e avanço das fronteiras das
conquistas ultramarinas. Provavelmente foi tendo esses elementos como
pressupostos que João Severiano da Costa autorizava o porte de armas por Antonio
Ferreira Cavalcante. Sua índole, demonstrada nas linhas, era um ponto a favor, mas o
lugar que ocupava na defesa dos interesses régios e dos homens de justiça pode ter
pesado mais na balança das decisões.

Logo, os magistrados que estavam, passavam ou atuavam no final do século


XVIII e início do século XIX na capitania do Rio Grande do Norte tiveram, ao que
tudo indica, pouco trabalho para corrigir a justiça e aplicar o direito. Talvez por isso
que o ouvidor Mariano José de Brito Lima tenha deixado o seu posto e fora
repreendido por D. João VI como uma postura indesejada. Poderia ele se embrenhar,
como muitos magistrados, no cotidiano local, a partir de negócios mercantis, da
aquisição de escravaria e de tomada de propriedade de terras. O único cuidado era
não ferir os ânimos dos súditos que por lá habitavam, nem muito menos tornar-se
concorrente dos homens de negócio das localidades. Sem conseguir queixas, críticas

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e acusações dos vassalos régios as possibilidades de crescimento e ascensão na carreira
da magistratura aumentavam. E mesmo que elas ocorressem, conforme apontou
Nuno Camarinhas, existia uma infinita rede de autoproteção deste grupo evitando
que as reclamações mais graves chegassem aos ouvidos régios, até porque os homens
de justiça fiscalizam uns aos outros (CAMARINHAS, 2010).

Agentes régios, Particulares e a demanda judicial

Dois militares e administradores régios na Capitania do Rio Grande do Norte


concentram a circulação da justiça administrativa nas correspondências Atlânticas do
Conselho Ultramarino: Caetano da Silva Sanches e José Francisco de Paula Cavalcante
e Albuquerque.

Caetano da Silva Sanches, sargento mor e governador interino da Capitania do


Rio Grande do Norte, era um personagem recorrente na documentação ultramarina.
Mas, em 29 de abril de 1791, o representante monárquico fazia cumprir com suas
obrigações e escrevia um ofício a Martinho de Melo e Castro, Secretário do Estado
da Marinha e Ultramar, fazendo uma descrição detalhada do estado em que se
encontrava aquela localidade (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do
Norte Avulsos, Caixa 8, Documento 483).

Segundo ele a capitania, no momento de sua posse, vivia uma epidemia de


bexigas; estava prejudicada pela escassez de carne, farinha e peixe; não possuía um
grupo militar estruturado, nem mesmo armado e fardado; apresentava as dificuldades
do contrato das carnes; e, o que mais nos interessa, queixava-se da falta de autoridade
de justiça e jurisdição de justiça e fazenda. Por isso, uma das suas principais
reinvindicações era ter a chance de poder demarcar terras dos proprietários locais,

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tarefa, normalmente entregue aos magistrados, habilitados nas leis e cientes das
irregularidades possíveis nestas práticas40.

O assunto era tão importante para o funcionário que algum tempo depois, em
28 de abril de 1799, o problema ainda se fazia presente em sua administração, levando-
o a gastar mais papeis para ter sua necessidade atendida. Assim, pedia a Rodrigo de
Souza Coutinho, Secretário de Estado de Marinha e Ultramar, a transferência da
possibilidade de nomear postos militares e ofícios de justiça na região que haviam
passado para o controle dos governadores de Pernambuco, gerando uma infinidade
de problemas. Estes, podem ser assinalados como a escolha de apaziguados dos
agentes em Pernambuco, a demora na indicação de nomes e as poucas visitas à
Capitania do Rio Grande.

Esta ordem foi emitida em 22 de dezembro de 1715, demonstrando que já na


correspondência anterior o problema era intimamente relacionado à subordinação
política-administrativa da localidade à Capitania de Pernambuco. Na tessitura militar
(pequenos escalões) e de justiça (ofícios auxiliares), mas das vezes, passava por uma
indicação do Governador da Capitania para ser chancelada pelo monarca português.
Era uma espécie de transferência de direitos de nomeação tendo em vista as melhores
condições desses funcionários de escolherem peças importantes na manutenção do
poder régio, no controle dos interesses de governança e apaziguando as necessidades
dos grupos locais (HESPANHA, 2009).

Segundo Caetano Sanches a transferência destas escolhas aos governadores de


Pernambuco ocasionou uma evasão de rendimentos para Recife, bem como os
constantes atrasos nas decisões e nas averiguações de circunstâncias de gestão e
práticas de defesa. Explicitamente apontava “prejuízo das partes e deste governo”
(Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 8,

40A título de comparação cabe mencionar que os ouvidores da Comarca das Alagoas, neste mesmo
período, tinham a demarcação de terras como uma das atividades em que mais eram requisitados. Cf.
CAETANO, 2016 (no prelo).

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Documento 504, fl. 1). No despacho, o Conselho Ultramarino recomendava o
posicionamento do ouvidor da Capitania de Pernambuco que, mesmo não havendo
resposta, podemos aviltar a hipótese de que ele daria causa ganha ao seu congênere
local.

Os problemas descortinados pelo sargento-mor da Capitania do Rio Grande do


Norte demonstram as complicadas delimitações de espaços de poder na América
portuguesa, sobretudo em uma localidade em uma condição especial naquele período
(sem comarca, como capitania, mas subordinada politicamente a Pernambuco e
judicialmente à Paraíba). Era um emaranhado de jurisdições que os súditos e os
agentes que por lá passavam tinham que dar conta e buscar acordos para sobreviver
nessa tessitura. Logo, as histórias revelam como a ausência de uma estruturação
judicial gerava contendas delicadas, que podiam, quem sabe, pôr em xeque
determinadas autoridades monárquicas no Ultramar.

Ainda no quesito administrativo, acompanhamos, no início destas páginas como


o capitão-mor do Rio Grande do Norte, José Francisco de Paula Cavalvante tentava
evitar com que os índios locais pudessem fazer parte da câmara municipal,
especialmente nas funções de juízes ordinários. Mas, essa questão das delimitações
judiciais, militares e políticas também se fizeram presentes em sua governança. Desta
feita, em 2 de outubro de 1806, o mesmo escrevia ao reino sobre a ordem do
Governador de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que havia lhe
tirado a jurisdição de passar cartas de sesmarias, cartas patentes e ofícios de justiça
(Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 9,
Documento 617).

Ou seja, a pendenga ainda circulava no troca-troca de correspondências


ultramarinas. Em um dos despachos finais do Conselho Ultramarino, após consulta
ao Procurador da Coroa e Procurador da Fazenda, recomendava que:

As razões que dou o Governador e Capitão general de Pernambuco o


ofício que se juntou por cópia são atender as quando se considere

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conveniente ao Real Serviço ao meter-se a autoridade do Capitão-mor
Governador a organização dos corpos de milícias a ordenanças do distrito,
assim como a permitir-se que ele possa prover os ofícios de justiça, em
conceder sesmarias, o que por ora não consta lhe seja outorgado por
Regimento ou alguma outra determinação Régia por não se julgar próprio
do objeto de sua criação e dos demais capitães mores governadores
convém notar que o dito capitão general não era lícito das partes esperar
a Régia Resolução de Vossa Alteza Real, reconhecendo o feito ao mesmo
augusto senhor este negócio. (Idem, fls. 1v-2)

Ou seja, em nenhuma hipótese o Sargento-mor ou Capitão-mor da Capitania


do Rio Grande do norte podia se intrometer em questões de nomeações judiciais ou
de defesa, essas eram atribuições dos governadores de Capitanias e dos ouvidores de
Comarca. Desta feita, podemos dizer que essa contenda só será resolvida em 1815,
quando a região foi elevada à Província, e, em 1818, quando se institui a comarca
local.

No que se refere às questões civis, destaca-se a carta encaminhada pelos oficiais da


câmara de Natal, em 20 de fevereiro de 1806, acusando o vigário da matriz de Nossa
Senhora da Apresentação de Natal, Feliciano José Dornelas, de cometer desordens e
tumultuar as localidades. De acordo com os camarários, que escreviam ao Príncipe
Regente, D. João VI, o “primeiro de nosso dever é o sossego público, procurando desterro da
sociedade tudo quanto a perturba e arruína” (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande
do Norte Avulsos, Caixa 9, Documento 595, fl. 1). Sobre o religioso o descreviam
como “o maior perturbador que jamais aqui se viu, pois sendo antes dele este povo o mais sossegado,
e menos rixoso destas capitanias” (Idem, fl. 1v). Apontavam, do mesmo modo, suas
intrigas, falsidades e animosidades que sofriam, sem descrever de maneira detalhada
como esse comportamento se processava. Isto porque, já alegavam que Feliciano
Dornelas havia fugido do Recife a partir de um conflito com a irmandade do
Santíssimo Sacramento.

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Em despacho, o Conselho Ultramarino pedia para se fosse informado,
separadamente ao Governador de Pernambuco e Bispo de Pernambuco sobre o
comportamento do religioso. Porém, o conflito foi parar na mão do ouvidor da
Comarca da Paraíba, João Severiano Maciel da Costa, que constatava:

Delas nasce o terror, a ambição de entrar nas graças destes homens


poderosos, segue-se a intriga baixa, própria de terras tão pequenas, onde
tudo se vê, tudo se mede e tudo se sabe, e uma anátema contra os
miseráveis que foram apenas lhe dar com displicência. Esta a origem das
perseguições do vigário. Os povoadores a tudo se prestam, para tudo estão
sempre prontos com a bengala nas mãos, porque do contrário, ficam em
absoluta nulidade, por não terem que governar e nem de que passar
dependência (Idem, fl. 5v).

A estratégia do magistrado foi desqualificar o lugar e a população da Vila de


Natal, demonstrando a região como pouco afeita a problemas, por isso buscava atingir
pessoas que estavam à seu serviço para apenas dar sentido ao seu cotidiano. Sem
desfecho, o conflito alerta como os homens do reino tendiam a se proteger das
acusações dos súditos locais. Na grande parte de vezes, com exceção dos momentos
em que se tornavam entraves para ganhos particulares, governadores, ouvidores,
provedores e religiosos se acobertavam, impondo um lugar social específico de
autoridade e representação régia em contraposição aos grupos locais que lhe deviam
respeitabilidade à coroa portuguesa.

Um bom exemplo da contenda entre os grupos pode ser observado na disputa


pelo escravo pardo Francisco. A propriedade do escravo gerou uma rixa entre o
Capitão da Companhia de Ordenança do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier das
Chagas, e o Capitão-mor do Rio Grande do Norte, Lopo Joaquim de Almeida
Henriques. O primeiro escrevia a D. João VI, em 7 de maio de 1805, alegando
opressão e vexação por parte de Lopo Henriques com Francisco, de sua propriedade
há 25 anos, adquirido através de um trato feito com o tenente coronel Meliciano João
Batista da Costa, morador no Ceará Grande (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio

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Grande do Norte Avulsos, Caixa 9, Documento 582). No entanto, o escravo fora
arrendado por Lopo Henriques que, ao invés de devolvê-lo ao proprietário, o
encarcerou por mau comportamento. Problemas como este eram da alçada dos juízes
ordinários ou ouvidores de comarca que, em nenhum momento, aparecem listados
na documentação. Sendo assim, não se sabe ao certo o desfecho desse processo que,
podia muito bem ter subido para o Tribunal da Relação da Bahia.

O magistrado da Paraíba, também foi requisitado para a instauração de uma


devassa de um bergantim inglês denominado Mariana, pertencente a Thiago
Welotonest, que havia atracado em Caiçara, distrito de Entremoz. Quem fez o pedido
foi o sargento-mor do Rio Grande do Norte, Caetano da Silva Sanches, em 13 de abril
de 1792 (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 8,
Documento 487). A primeira atitude do agente régio foi enviar uma tropa para a
localidade no intuito de evitar que negócios pudessem ser realizados com a tripulação,
bem como identificar a causa desta situação, informada pelo comandante que ocorrera
por conta da quebra do mastro da embarcação. Com dificuldades de ajuste, o sargento
mor concedeu a entrada dos tripulantes na Capitania do Rio Grande e, com receio
que pudesse ser mau interpretado, solicitava a realização de uma devassa para apurar
todos os procedimentos e acontecimentos realizados. Em 27 de junho de 1792, o
Procurador da Coroa despachava declarando que o administrador régio agiu bem em
proteger a embarcação e proporcionar os cuidados necessários, recomendando que
procedesse da mesma forma em situações vindouras.

Os casos civis reforçam que, por conta da ausência de um magistrado local, as


resoluções eram tomadas com acordos e procedimentos desencadeadas,
especialmente pelos sargentos-mores da Capitania do Rio Grande. Com o poder
decisório nas mãos, podiam pedir chancelas ao Conselho Ultramarino, que
recomendariam o posicionamento de demais personagens para colaborar nas
decisões. Entretanto, a ausência do ouvidor da Paraíba é latente nas páginas
documentais que corriam pelos corredores administrativos. Percebe-se que, nos casos

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administrativos, os conflitos de jurisdição naquela localidade e naquele momento, não
ocorreram. A ausência dos ouvidores da Paraíba pode ser a explicação para o fato de
que as complicações judiciais fossem ajustadas intramuros.

No aspecto criminal, apenas um homem canalizou toda a atenção da


correspondência jurídica, o próprio ex-capitão-mor do Rio Grande do Norte, Lopo
Joaquim de Almeida. O mesmo escreveu três cartas ao monarca D. João VI em
momentos distintos, mas em se tratando do mesmo problema: sua prisão. Tudo
iniciara a partir das queixas que o administrador sofreu de várias instâncias da
localidade, proporcionando a instauração de um devassa. Em 25 de outubro de 1805,
pedia para permanecer na Capitania de Pernambuco para poder responder às críticas
que recebera, mas fora recomendado que deixasse as conquistas americanas em oito
dias (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 9,
Documento 590). Mas, pelo que parece, não cumpriu com a determinação, sendo
preso, levando-o a, em 5 de março de 1807, solicitar sua soltura para poder provar a
sua inocência das acusações feitas contra ele na Capitania do Rio Grande do Norte
(Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 10,
Documento 625). Mais uma vez não contemplado, foi despachado para Lisboa,
culminando em seu último pedido, em 11 de março de 1807, para que pudesse
permanecer no navio que o transportou da Capitania de Pernambuco para o reino
para responder as queixas e não fosse encaminhado para a prisão pública. Segundo o
agente régio seus inimigos e desafetos na Capitania do Rio Grande não estavam
satisfeitos com seus procedimentos porque tudo que mais almejava era fazer justiça.
Além disso, fazia questão de mencionar que, em nenhum momento do processo, fora
ouvido, um equívoco no ritual de qualquer devassa. Desta feita, conseguiu
deferimento do pedido (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte
Avulsos, Caixa 10, Documento 626).

Curioso é notar que poucos assuntos criminais apareciam nas cartas do


Conselho Ultramarino e, quando aparecera, envolvera, justamente, um representante

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da coroa portuguesa na Capitania do Rio Grande do Norte. A conjuntura era da pré-
transferência da família real para o Rio de Janeiro, o que provavelmente deve ter
levado ao agente a um bate-volta! Mas, a devassa instaurada contra Lopo Henriques
(o mesmo que aprisionara o escravo de Francisco Xavier), demonstra uma consciência
reinol de que os personagens que não estivessem afinados com a manutenção da
ordem nas regiões que foram destinados poderiam ser sacados das funções e serem
investigados como qualquer um. A justiça régia era para todos, mesmo sabendo que
os resultados podiam ser diferenciados de acordo com o grupo social ao qual o réu
estivesse sendo investigado ou criminalizado. A trajetória posterior de Lopo Henrique
nos foge das mãos, mas serve como exemplo de que em terras “ditas como violentas”
quem mais podiam sofrer eram os próprios representantes régios.

Impressões e Conclusões Preliminares...

Evitar que um ameríndio tomasse o lugar de juiz ordinário era um dentre os


vários conflitos de jurisdição administrativa, política e judicial que a Capitania do Rio
Grande vivenciou na transição do Setecentos para o Oitocentos. Por durante muito
tempo não ter em seus quadros um ouvidor próprio, entregava ao Capitão-mor ou
Sargento-mor grande parte das decisões concernentes à justiça, seja pela distância do
ouvidor da Comarca da Paraíba (a quem estavam subordinados) ou por não confiarem
na possibilidade de um nativo ameríndio se transformar, do dia para a noite, em juiz
ordinário, mesmo que sendo autorizado pelas leis régias. Logo, o direito régio era
corrigido no cotidiano local, fazendo com que o direito costumeiro, das gentes e da
conquista se valesse na tomada de decisões.

A importância política e judicial que os capitães-mores exerceram durante o


período punha em xeque a hegemonia do Governador da Capitania de Pernambuco
na região que, por conta de sua condição de anexa até 1815, podia gerar entreveros

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em disputas por espaços de poder e controles econômicos. Os casos da restrição de
nomeação de funcionários judiciais, emissão de cartas patentes e demarcação de
sesmarias eram exemplos destas limitações impostas pelos governadores da Capitania
de Pernambuco aos agentes que estavam em Natal e demais vilas da Capitania do Rio
Grande.

O baixo fluxo de correspondência, de demandas de justiça, pode explicar a


demora em autorizar a delimitação de uma comarca no Rio Grande do Norte, sendo
melhor atendida com seus magistrados vizinhos, mesmo que a população pudesse
apontar que estes não atuavam como deveriam ou não estavam presentes quando
necessitavam. Os acontecimentos em Pernambuco, em 1817, podem ter acelerado a
criação da Comarca, em 1818, mas, já era tarde para a implementação de uma
submissão à um direito reinol. Quem sabe, na Capitania do Rio Grande do Norte fora
aonde o direito costumeiro se fez mais presente dentre as várias conquistas espalhadas
pelos territórios Américo-lusitanos. Exemplo disso, é o impedimento dos índios
serem cidadãos político da Res Publica local. A ordem imposta pelos conquistadores
se sobrepujava as determinações régias e o cotidiano era ditado por aqueles que
moravam no lugar. Para que um ouvidor então? Sem necessidade! Era alguém que
poderia mais atrapalhar do que ajudar!

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Referências

Fontes:

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Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 8,


Documentos 483, 487, 485 e 504.

Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 9,


Documentos 590, 608, 558, 563, 582 e 595.

Arquivo Histórico Ultramarino, Rio Grande do Norte Avulsos, Caixa 10,


Documento 653 e 654.

ALVARÁ pelo qual Vossa Majestade Há por bem Criar a Nova Comarca do Rio
Grande do Norte, desanexando-a da Comarca da Paraíba, 18 de Março de 1818.
Disponível em <
http://www.mprn.mp.br/memorial/pdf/alvara_regio_de_criacao_da_Coma
rca_de_Natal_1818.pdf> Acessado em 01 jun 2016 às 10:15.

Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D. Maria I, Liv.


25, fl. 331, 30 de outubro de 1790 – Carta – Lugar de Ouvidor da Paraíba.

Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D. Maria I, Livro


29, fl. 374, 22 de outubro de 1800 – Carta – Ouvidor de Pernambuco.

Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D. Maria I, Livro


22, fl. 117v, 05 de dezembro de 1792 – Carta – Juiz de Fora de Monte Mor Novo

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