Dupla Punição PDF

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v. 6, n. 2 (2022) www.seer.ufrgs.

br/ressevera ISSN 2176-3755

DUPLA PUNIÇÃO DAS MULHERES E O ENCARCERAMENTO


FEMININO EM MASSA NO BRASIL: MULHERES E TRAFICANTES
DOUBLE PUNISHMENT OF WOMEN AND FEMALE MASS INCARCERATION IN BRAZIL:
WOMEN AND DRUG DEALERS

Isabela Regina Hardman Barreto*

RESUMO ABSTRACT
Este artigo visa trazer uma discussão acerca da dupla This paper aims to bring a discussion about the
punição das mulheres inseridas no mundo do tráfico, double punishment of women inserted in the world of
baseando-se em uma análise social, levando em drug trafficking, based on a social analysis, taking
consideração o extremo conservadorismo punitivista into account the extreme punitivist conservatism of
do judiciário brasileiro. A partir dessa análise, busca- the brazilian judiciary. From this analysis, it's
se uma reflexão acerca da seletividade da sought a reflection on the selectivity of victimization,
vitimização, da utilização simbólica do Direito Penal the symbolic use of criminal law and institutional
e do machismo e do patriarcado institucionais como sexism and patriarchy as an expression of a
expressão de uma sociedade contemporânea e sua contemporary society and its reflection on the mass
reflexão no encarceramento em massa de mulheres incarceration of women who work in the drug
que atuam no tráfico. A situação atual do Brasil trafficking. The current situation in Brazil instigates
instiga o debate, haja vista o aumento da população the debate, given the increase in the female prison
carcerária feminina, de modo que se torna population, so that it becomes extremely clear that
extremamente clara uma estigmatização de certa there's a stereotype of a certain portion of society,
parcela da sociedade, na qual se encontra a mulher among which is the poor woman, inserted in the
inserida no universo do tráfico. universe of drug trafficking.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Encarceramento em massa — Machismo — Sistema Mass Incarceration — Chauvinism — Female prison
prisional feminino — Conservadorismo — system — Conservatism — Selectivity —
Seletividade — Vitimização — Tráfico. Victimization — Drug trafficking.

SUMÁRIO
Introdução. 1. Como a seletividade do sistema opera a fim de se garantir uma legalidade simbólica. 2. A mulher
selecionada pelo sistema e a dupla punição feminina. 3. Mulher e traficante. Considerações finais. Referências.

REFERÊNCIA: BARRETO, Isabela Regina Hardman. Dupla punição das mulheres e o encarceramento em
massa feminino no Brasil: Mulheres e traficantes. Res Severa Verum Gaudium, v. 6, n. 2, Porto Alegre, p. 177-
196, mai. 2022

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata de uma discussão acerca da dupla punição das mulheres
inseridas no mundo do tráfico, de forma que resulta em um crescente encarceramento em
massa, através de uma análise social marcada por traços conservadores e punitivistas do
sistema prisional brasileiro. A pesquisa tem como propósito mostrar ao leitor como, de forma
extremamente sutil, há uma seletividade em relação a quais crimes serão apurados e punidos
pelo Estado, e essa seletividade está atrelada ao machismo institucional que ainda se faz

*
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.
177
Recebido em: 16/07/2021
Aceito em: 02/03/2022
178 Isabela Regina Hardman Barreto

presente em nossa sociedade. Consequentemente, a mulher autora de delitos, aqui, no tocante


ao tráfico de drogas, também é vítima de uma violência institucional do próprio sistema penal,
pois este expressa e reproduz a violência estrutural das relações capitalistas e patriarcais, de
maneira a proliferar estereótipos de criminalidade, baseando-se em uma moral sexual
dominante e na forma como os tribunais tomam suas decisões, interferindo de forma negativa
no processo de aprisionamento das mulheres (ANDRADE, 1995).
Alguns conceitos serão de suma importância para que haja a compreensão do artigo,
tais quais encarceramento em massa, grupos vulneráveis, criminalização da pobreza e sistema
prisional brasileiro.
Nesse artigo, ver-se-á que o fato de ser mulher, e, por conseguinte, ter um papel
construído pela sociedade há séculos, faz com que muitas possuam um alvo em suas costas
antes mesmo de realizarem alguma conduta criminosa. Esse machismo institucional é muito
presente no nosso sistema penal devido ao androcentrismo, isto é, o sistema toma a perspectiva
do homem como centro e norte para sua construção, de forma que a mulher é excluída da
elaboração, pois aquele é voltado para os homens e suas necessidades (ANDRADE, 1995).
O sistema penal foi montado de forma que sua legalidade processual nunca pudesse
operar em toda sua extensão (ZAFFARONI, 1991, p. 26-27), de maneira que fica clara a
seletividade na criminalização de certas condutas de determinados estratos sociais, de modo
que deixa de olhar para o crime em si, mas para o autor deste.
Tal qual asseverou Andrade (1995, p. 97), irá surgir uma minoria criminal através da
seletividade do sistema, e esse grupo seleto será formado pelas camadas mais baixas da
população, e que representa, em termos quantitativos, a maioria dos brasileiros.
Esse grupo é composto por pessoas de baixos segmentos da comunidade, quase
sempre os indivíduos estigmatizados pela sociedade conservadora. A mulher já carrega, como
foi brevemente mencionado, um estereótipo por si só, o qual foi construído durante muitos
anos. Então, quando uma mulher entra no mundo do tráfico, este delito passa a ser analisado
sob nova ótica, mesmo se tratando de hipóteses em cuja participação a mulher não teve tanta
relevância. Ao contrário do que se pensa, não é pelo tráfico em si, mas sim pelo fato de que
esta mulher não está cumprindo a função que lhe é devida, pois feminilidade e o mundo do
tráfico são completamente opostos, na visão tradicional.
No entanto, como depois será discutido no desenvolvimento desse artigo, mulheres
traficantes muitas vezes estão na situação de “mula do tráfico”, posição considerada
meramente espiatória no mundo das drogas, e ainda assim, o sistema penal criminaliza essa
conduta da mesma forma com a qual lida com o tráfico cometido pelos chefes das operações.
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Há uma etiquetação do criminoso e essa é visível na simples pergunta: Por que mulheres mulas
do tráfico são presas, enquanto os chefes da operação, quase sempre homens, saem impunes?
É claro a um bom espectador que sim, há uma seletividade no sistema, pois ele foi
estruturado para estereotipar desde o momento de sua criação, de maneira que, como foi dito,
não poderia operacionalizar com toda a sua legalidade, pois, se assim o fizesse, poucos seriam
aqueles indivíduos que nunca teriam cometido algum crime (ZAFFARONI, 1991, p. 26-7).
Adiante, estabeleceremos uma análise acerca do machismo institucional e social, e
de que forma isto acarreta no encarceramento em massa de mulheres inseridas no mundo do
tráfico e como há a etiquetação da mulher criminosa.

1 COMO A SELETIVIDADE DO SISTEMA OPERA A FIM DE SE GARANTIR UMA


LEGALIDADE SIMBÓLICA

O sistema penal mostra-se à sociedade como um poder punitivo altamente


racionalizado, baseando-se nos próprios princípios de um Estado Democrático de Direito, os
quais são a culpabilidade, a legalidade, a equidade, entre outros. A legalidade serve como
ponto de partida para que haja uma delimitação no poder de punição do Estado, observando
os critérios a que este deve seguir para que a pena seja útil e, ao mesmo tempo, proteja os bens
jurídicos gerais (ANDRADE, 1995).
Essa proteção dos bens jurídicos gerais pelo sistema penal irá advir do que se pode
chamar de prevenção geral e especial.1 A tese preventiva geral tem como foco a própria
sociedade, a pena sendo um modo de alertar aos cidadãos acerca das consequências que
qualquer atitude contrária ao disposto na lei acarretará para eles caso cometam qualquer tipo
de delito. Já a preventiva especial possui como objeto o próprio delinquente (BOZZA, 2008).
Segundo Rodrigues (1995 apud BOZZA, 2008, p. 320), para Günther Jakobs, um dos
grandes nomes atrelados à teoria preventiva, o direito penal seria o sistema específico de quem
se espera e busca a estabilização da sociedade, a orientação da ação e institucionalização de
expectativas a partir das próprias normas. No entanto, no caso de Jakobs, este vê a norma
como uma expectativa de comportamento contra fático. Só assim, com essa estabilização de
comportamento, que se conseguiria a estabilização social.

1
Vale ressaltar que a teoria preventiva ou relativa surgiu após a teoria retributiva ou absoluta, que acreditava que
a pena era um mero instrumento de punição para aqueles que haviam infligido a lei. A teoria da prevenção traz
uma ideia de finalidade da pena, e esta seria justamente a pena como forma de prevenir a criminalidade. A teoria
preventiva tem por base a função de inibir ao máximo a realização de novos atos ilícitos. A punição, dessa forma,
é encarada como meio de segurança e defesa da sociedade.
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O delito é visto como uma ameaça à integridade e à estabilidade social, enquanto


expressão simbólica de uma falta de fidelidade ao direito, sendo a pena, por sua
vez, a expressão simbólica oposta àquela representada pelo delito. (KARAM,
1993, p. 174)

Logo, o sistema penal busca trazer segurança para a sociedade através de suas
normas, alertando os indivíduos que, se não as seguirem, sofrerão as consequências devido à
atitude delituosa, e, ao mesmo tempo, volta-se também a aqueles que a descumpriram, pois
serve tanto de sanção, como um segundo alerta de que, no caso de reincidência, esse indivíduo
voltará a ser sancionado.

Fica claro, destarte, que mesmo que alguém vá contra a norma penal e pratique o fato,
esta continua válida, haja vista que sua existência está voltada, de forma primordial, aos
indivíduos que a cumprem. É uma maneira de mostrar que a pena é eficaz e, mesmo que a lei
seja descumprida, ela continua a viger, de forma que seria um meio tão somente de gerar a
estabilidade do sistema. Porém, para que continue a dar estabilidade, a norma precisa gerar a
confiança e fidelidade daqueles que a seguem, o que consequentemente faz com que a sanção
penal seja aplicada para aqueles que a delinquem, a fim de garantir o funcionamento do
sistema (BOZZA, 2008).
Segundo Zaffaroni (1991, p. 26-27), o sistema penal não opera com toda a sua
legalidade. Devido ao excesso de tipos penais, e de todas as facetas sociais, se o sistema penal
operasse com todo seu poder criminalizante, haveria um colapso social, pois poucas seriam as
pessoas que não seriam criminalizadas. Se todos os furtos, se todos os abortos, se todos os
adultérios fossem criminalizados, praticamente não haveria habitante que não houvesse
cometido algum tipo de delito. Logo, torna-se visível que o sistema penal está estruturalmente
montado para que a legalidade processual não opere em toda a sua extensão.
Contudo, como supracitado, não são todas as pessoas que cometem delitos que serão
punidas, haja vista o extenso rol de tipos penais. Dessa maneira, torna-se claro e indiscutível
que irá haver uma seletividade, porém, esta seletividade não se dará somente em relação ao
grau de lesão ao bem jurídico, mas também, e principalmente, a quem cometeu tal delito.

[...] a seletividade do sistema penal deve-se à especificidade da infração e das


conotações sociais dos autores, uma vez que a impunidade e criminalização são
orientados pela seleção desigual de pessoas, de acordo com seu status social e, não,
pela incriminação igualitária de condutas objetiva e subjetivamente consideradas em
relação ao fato-crime, conforme preconiza a Dogmática Penal. (ANDRADE, 1995,
p. 97)

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O sistema penal brasileiro, como o de todo e qualquer outro país, é mero reflexo da
sua sociedade, sociedade esta responsável pelo seu surgimento. O fato importante é que, como
discutido, o sistema penal surgiu para garantir a segurança das pessoas, e evitar a
criminalidade. No entanto, é mister que o crime é inerente a toda comunidade, não importa
quão desenvolvida esta venha a ser.
Dessa forma, partindo da premissa de que a criminalidade sempre irá existir, as
normas jurídicas surgem com o enfoque de diminuir ao máximo possível a prática de delitos.
Contudo, o sistema penal brasileiro é extremamente burocrático, e conta com um interminável
aparato de leis, de forma a criar uma aparente ideia de segurança, haja vista a infinidade de
tipos penais.
Essa legalidade criada pelo sistema busca somente criar uma ideia simbólica de
segurança, pois devido à quantidade elevada de tipos de delitos jamais conseguir-se-ia punir a
todos que realizam o comportamento fático descrito nas normas.
Dessa maneira, é visível que a legalidade processual foi criada justamente para não
agir com sua total efetividade, pois, como dito, se assim o fosse, haveria uma catástrofe social,
e, além disso, os operadores do sistema, tais como policiais, juízes, advogados, não
conseguiriam administrar toda a operacionalidade da lei penal, dada a proporção de sua
abrangência (BARATTA, 1993).
É evidente, assim, que o sistema precisa garantir que a farsa da segurança simbólica
continue, e a sociedade não o questione e nem a sua legalidade. Logo, será necessário que o
sistema penal selecione pessoas específicas para que possa demonstrar a sua efetividade,
quando, na realidade, a administração das infrações não corresponde nem à metade do que
está exposto nas normas jurídicas.

Isto significa, enfim, que impunidade e criminalização ao invés de serem


condicionadas pelas variáveis que formalmente vinculam a tomada de decisões (os
códigos legais e o instrumento dogmático) dos agentes do controle social formal
(polícia, ministério público e juízes) e que deveriam reenviar à conduta praticada são
condicionadas por variáveis latentes e não legalmente reconhecidas, que reenviam à
“pessoa” do autor (e da vítima). (ANDRADE, 1995, p. 97)

Pergunta-se, dessa maneira, como iria ocorrer essa etiquetação e seletividade do


autor, mas, para tanto, basta perguntar-se a quem o sistema penal serve, e chega-se à conclusão
de que este serve às classes socioeconomicamente dominantes, haja vista que foram estas que
estiveram à frente no momento de criação do mesmo. Assim sendo, aqueles selecionados para

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que o sistema penal opere com toda a sua força são as pessoas mais vulneráveis, as quais estão
inseridas em todo um contexto de desigualdade social (BARATTA, 2002).

No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), isto


tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não-conteúdos” da lei penal. O
sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo
moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à
proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as
formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados.
(BARATTA, 2002, p. 176)

Esses indivíduos selecionados possuem um alvo em suas costas antes mesmo de


chegarem a cometer o tipo penal, pois há toda uma expectativa de que venham a realizá-lo,
não só devido a fatores socioeconômicos, mas porque o próprio direito penal precisa que eles
o façam, visando criar uma legalidade simbólica e uma falsa sensação de segurança às pessoas
a quem ele serve.

[...] é salientado que a criminalidade, mais do que um dado preexistente comprovado


objetivamente pelas instâncias oficiais, é uma realidade social de que a ação das
instâncias oficiais é elemento constitutivo. Estas constituem tal realidade social
através de uma percepção seletiva dos fenômenos, que se traduz no recrutamento de
uma circunscrita população criminal, selecionada dentro do mais amplo círculo dos
que cometem as ações previstas na lei penal e que, compreendendo todas as camadas
sociais, representa não a minoria, mas a maioria da população. (BARATTA, 2002 p.
178-179, grifo do autor)

No entanto, vale ressaltar que não são somente as pessoas pertencentes a baixos
extratos sociais que compõe essa minoria criminal, mas sim todo e qualquer indivíduo que não
corresponda à moral aplicada pela sociedade conservadora, que, em si mesma, é machista,
racista e baseada no patriarcalismo, de forma que as “vítimas” da sociedade serão justamente
os autores selecionados para que o sistema atue com todo o seu potencial lesivo.
Pode-se dizer que “[A] variável principal da distribuição da desigualdade do status
de delinquente parece indubitavelmente ser, à luz das investigações recentes, a posição
ocupada pelo autor potencial na escala social” (BARATTA, 1982, p. 43, nota 30). Logo, se
determinada conduta é visível em todo o mundo, existirá uma seletividade, baseada em
estereótipos atribuídos ao autor, que normalmente é das classes mais marginalizadas, haja vista
a impossibilidade de punir a todos.
Também na aplicação da lei, talvez por falta de conhecimento acerca da realidade do
acusado, o juiz vem a ser desfavorável aos indivíduos provenientes dos estratos inferiores da
população, pois muitas vezes esses operadores do direito já possuem um certo preconceito e

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estereótipos assentados em suas mentes, de forma que tendem a reconstruir uma ideia pré-
concebida de criminoso (ANDRADE, 1995).
Segundo ANDRADE (1995, p. 98), a clientela do sistema penal é, em sua grande
maioria, composta por pessoas pobres, as quais se enquadram na minoria criminal, não por ter
maiores chances de delinquir, mas devido ao fato de serem criminalizadas e carregarem o
estereótipo de delinquentes.
Destarte, percebe-se que a regra, em si, não é a criminalização de condutas e a efetiva
operacionalidade do sistema penal, mas sim a impunidade. Uma impunidade altamente
segregacionista, baseando-se na identidade de quem cometeu o crime, ao invés de que crime
foi cometido.

No sistema capitalista de hoje, é fácil perceber que quem vai realmente preso, ou
seja, aquele que sofre com o cárcere é o não-consumidor, o pobre, o negro, o
desempregado, etc., enfim, todos aqueles esquecidos pela sociedade, pois é mais
barato para o Estado prender do que fazer uma política de reintegração social. Estão
rotulados pela comunidade, tanto que nunca foram presos e torturados tantos negros
e pobres como hoje em dia. (BARROSO, 2009, p. 92)

Tal seleção é visível a partir de uma análise das cifras negras, as quais criam uma
espécie de seleção de ocorrências e infratores, determinando quais casos serão punidos, e quais
casos serão arquivados.2

Vimos como isto não quer dizer, de modo algum, que o desvio criminal se concentre,
efetivamente, na classe proletária e nos delitos contra a propriedade. A mesma
criminologia liberal, com as pesquisas sobre a cifra negra, sobre a criminalidade do
colarinho branco e sobre a criminalidade política demonstra, ao contrário, que o
comportamento criminoso se distribui por todos os grupos sociais, que a nocividade
social das formas de criminalidade próprias das classes dominantes e, portanto,
amplamente imunes, é muito mais grave do que a de toda a criminalidade realmente
perseguida. Por outro lado, o sistema das imunidades e da criminalização seletiva
incide em medida correspondente sobre o estado das relações de poder entre as
classes, de modo a oferecer um salvo-conduto mais ou menos amplo para as práticas
ilegais de grupos dominantes, no ataque aos interesses e aos direitos das classes
subalternas, ou de nações mais fracas; além disso incide, em razão inversamente
proporcional à força e ao poder de controle político alcançado pelas classes
subalternas, no interior das relações concretas de hegemonia, com uma mais ou
menos rigorosa restrição de ações políticas dos movimentos de emancipação social.
(BARATTA, 2002, p. 198)

2
Ao referir-se a cifra negra, esta diz respeito à quantidade de crimes ou não solucionados ou não punidos, que
acabam sendo abafados, de maneira que escondem os dados reais da criminalidade. Relacionados a cifra negra
estão os crimes de colarinho branco, delitos estes cometidos por pessoas dentro do padrão socialmente aceito, isto
é, possuem uma elevada posição socioeconômica. Dessa forma, devido à sua influência e poder social, esses
indivíduos conseguem que seus casos sejam arquivados. Consequentemente, não são incluídos nos dados da
criminalidade, estando à margem. A cifra negra, no entanto, traz os dados reais da criminalidade, incluindo os
crimes de colarinho branco.
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De acordo com Andrade (1995, p. 96):

A conclusão de que a cifra negra é considerável e de que a criminalidade real é muito


maior que a oficialmente registrada, permitiu concluir que desde o ponto de vista das
definições legais, a criminalidade manifesta-se como o comportamento da maioria,
antes que de uma minoria perigosa da população e em todos os estratos sociais, mas
a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída.

Partindo do pressuposto da seleção, encontram-se os grupos mais vulneráveis e


estigmatizados, aqueles em quem o sistema penal irá agir com seu maior potencial lesivo, a
fim de, como dito anteriormente, assegurar a sua legalidade processual simbólica. Alguns são
os perfis selecionados, dentre os quais estão os pobres, os negros, os homossexuais, as
mulheres, entre outros.
Uma figura, dentre as citadas acima, se destaca para análise neste artigo: a figura da
mulher.

2 A MULHER SELECIONADA PELO SISTEMA E A DUPLA PUNIÇÃO FEMININA

O sistema penal, como dito anteriormente, é fruto da própria sociedade, e, como ela
tem como características o patriarcalismo e o machismo, consequentemente esses aspectos
estão estruturalmente articulados dentro do sistema penal brasileiro.
Uma das notáveis provas de que a mulher nunca foi tratada igualmente em relação ao
homem é o fato de que só adquiriu o direito de votar com a Constituição Federal de 1934.
Mas, ainda assim, o voto das mulheres possuía restrições, entre as quais se pode citar que
somente era permitido o voto de mulheres solteiras e viúvas que exerciam trabalho
remunerado, e mulheres casadas necessitavam de autorização de seus respectivos esposos para
exercerem esse direito. Além disso, não muito tempo atrás, o antigo Código Penal de 1890,
admitia as figuras jurídicas de “crimes de paixão” ou crimes passionais para justificar certos
comportamentos masculinos que acarretavam na violência contra a mulher e, muitas vezes, na
sua morte.
O fato é que a mulher foi vista por muito tempo como um indivíduo inferior,
submisso, que deveria ficar em casa, cuidar dos filhos e atender às necessidades de seus
maridos.
A figura da mulher era representada pela ideia de mãe e esposa, e era só isso, ao
passo em que houve toda uma atenção especial quanto à construção social dos deveres e

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direitos dos homens. Estes, por sua vez, também tiveram um papel social construído, como
chefes das famílias, seja como pais seja como maridos, e, portanto, deveriam ser os
provedores, de forma que restava à mulher ficar em casa e transmitir para os filhos o próprio
sistema patriarcal. Ela não podia desejar mais, nem querer mais, pois, para o pensamento da
classe dominante, chefiada pelos homens, aquele papel não lhe era devido. E, como o sistema
penal é um mero reflexo das classes dominantes de determinada época, não é surpresa
nenhuma que ele reforçasse a segregação de gênero e instaurasse um machismo institucional,
dificultando de todas as maneiras possíveis a ascensão da mulher e a saída desse papel tão bem
articulado para que ela se encaixasse.
Percebe-se, diante do exposto, que havia uma divisão social do trabalho. Nas palavras
de Kergoat (2003, p. 55):

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das


relações sociais de sexo; essa forma é adaptada historicamente e a cada sociedade.
Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e
das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das
funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.).

Quando é aceita a afirmação de que o espaço da mulher está restrito ao ambiente


doméstico, realizando as tarefas do lar e sendo responsável pela educação dos filhos,
consequentemente está havendo uma naturalização de um resultado histórico em que é
reservado ao homem os espaços públicos.

Mas qual é a razão por trás da unidade ideológica da discriminação biológica hoje?
Por cumprir a mesma função de poder, a discriminação biológica é sacralizada com
a emergência do poder punitivo em sua forma atual, com o conhecimento
manipulado pela investigação para fins de dominação e com a consequente
hierarquização patriarcal, estatal e corporativa da sociedade. Ele muda a pele em seu
avanço, mas o poder é o mesmo e mantém sua substância há pelo menos oitocentos
anos. (ZAFFARONI, 2000, p. 19-20, tradução nossa)3

O pensamento dominante sempre levou o sistema penal a criar sua estrutura


baseando-se no androcentrismo, isto é, sua perspectiva era voltada ao homem, suas
necessidades e direitos, tanto como vítima ou como autor. Dessa maneira, a mulher e seus

3
No original: “Pero, ¿a qué se debe hoy la unidad ideológica de la discriminación biológica? A que cumple una
misma función de poder. La discriminación biológica se sacraliza con el surgimiento del poder punitivo en su
forma actual, con el saber manipulado por indagación a efectos de dominio y con la consiguiente jerarquización
patriarcal, señorial y corporativa de la sociedad. Cambia la piel en su avance, pero el poder es el mismo y
mantiene su sustancia desde hace, por lo menos, ochocientos años” (ZAFFARONI, 2000, p. 19-20).
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direitos e necessidades sempre foram colocados à margem, pois eram consideradas invisíveis
ao sistema, pois ele não foi feito para que servisse a elas.

A lei é identificada com os lados hierarquicamente superiores e "masculinos" dos


dualismos. Embora a 'justiça' seja representada como uma mulher, de acordo com a
ideologia predominante, o direito é masculino e não feminino. O direito deve ser
racional, objetivo, abstrato e universal, como os homens se consideram. Pelo
contrário, a lei não deve ser irracional, subjetiva ou personalizada, assim como os
homens consideram as mulheres. As práticas sociais, políticas e intelectuais que
constituem a lei foram, durante muitos anos, praticadas quase exclusivamente pelos
homens. Dado que as mulheres foram há muito excluídas das práticas legais, não é
de surpreender que os traços associados às mulheres não sejam altamente
valorizados por lei. (OLSEN, 2000, p. 27-28, tradução nossa)4

Então, com o surgimento da Criminologia Feminista, foram trazidos à tona aspectos


outrora esquecidos, como a dominação masculina sobre a mulher, relações de gênero e
patriarcalismo.

As criminólogas feministas irão sustentar, pois, que a gênese da opressão das


mulheres não pode reduzir-se à sociedade capitalista. Pois, se esta oprime a mulher,
sua opressão é anterior e distinta, produto da estrutura patriarcal da sociedade.
(LARRAURI, 1991, p. 194 apud ANDRADE, 1995, p. 100)

A mulher pode ser vista e contextualizada como um Homo Sacer5 (AGAMBEN,


2002). Não literalmente na ideia de deixar morrer, trazida por Agamben, mas como uma vida
descartável, de menor relevância e, por isso, selecionada para sofrer as penalidades de um
Estado que não opera com toda a sua legalidade processual. Como foi discutido anteriormente,
o sistema penal precisa de alvos, pois ele nunca terá como atingir a todos os indivíduos de uma
sociedade, de maneira que seleciona precisamente aqueles em que atuará com força máxima.
A dupla punição da mulher, portanto, deriva-se do fato de que ela, ao delinquir, não
está cumprindo seu papel social, ainda esperado por uma grande parte da sociedade, que é o

4
No original: “Se identifica el derecho con los lados jerárquicamente superiores y “masculinos” de los dualismos.
Aunque la ‘’justicia’’ sea representada como una mujer, según la ideología dominante el derecho es masculino y
no femenino. Se supone que el derecho es racional, objetivo, abstracto y universal, tal como los hombres se
consideran a sí mismos. Por el contrario, se supone que el derecho noes irracional, subjetivo o personalizado, tal
como los hombres consideran que son las mujeres. Las prácticas sociales, políticas e intelectuales que constituyen
el derecho fueron, durante muchos años, llevadas a cabo casi exclusivamente por hombres. Dado que las mujeres
fueron por largo tiempo excluidas de las prácticas jurídicas, no sorprende que los rasgos asociados con las
mujeres no sean muy valorados en el derecho” (OLSEN, 2000, p. 27-28).
5
O Homo Sacer, basicamente e de forma extremamente resumida, é o indivíduo deixado de lado pelo Estado. Uma
vida insignificante, que pode muito bem ser sacrificada. Essas vidas insignificantes são reflexos de uma sociedade
patriarcal e de classes, sendo representadas pelo negro, o pobre, a mulher, o apátrida. São as vidas as quais o poder
soberano fará impor seu poder de fazer viver e deixar morrer. Consequentemente, urge uma segregação e
classificação de que tipo de vidas são importantes e aproveitáveis para o sistema, e as que são descartáveis e inúteis
(AGAMBEN, 1995).
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de ser recatada e permanecer no lar, sendo responsável pelos cuidados da casa e pela educação
dos filhos. Como consequência, o sistema penal a atingirá com toda a sua força, com todo o
seu potencial lesivo, pois não está punindo-a somente pelo crime cometido, mas está punindo-
a por ir contra a moralidade dominante. Logo, a mulher não é punida simplesmente por ter
cometido um delito, mas sim pelo fato de ser uma mulher cometendo um delito, e desta forma
ter desviado de uma conduta esperada e estigmatizada para ela.
No entanto, vale ressaltar que, além do fato de a mulher ser segregada em um contexto
patriarcal, tornando-se um alvo do sistema pelo machismo institucional, é importante lembrar
que, dentro do próprio grupo de mulheres, existem mais segregações, e, logo, mais
seletividade. Não se pode esquecer que, por mais que o patriarcalismo seja uma das estruturas
do sistema penal, também é visível um racismo institucional, de forma que as mulheres negras
também são as grandes selecionadas pelo sistema. Portanto, não é possível, de modo algum,
conceber uma ideia unitária de proteção à mulher, devido às diversas segmentações dentro do
próprio contexto de “ser mulher”.

Dessa forma, um fato que necessita ser avaliado é a segregação dentro do próprio
movimento feminista. A mulher, por si mesma, pode ser considerada como um “gênero”, entre
o qual mulher branca e mulher negra são “espécies”. A luta feminista traz um ideal de
igualdade, mas alguns dos setores dessa luta, principalmente setores classistas, por vezes
focam em uma ideia de meritocracia. A partir do momento em que as mulheres, enquanto
“gênero”, pudessem ter as mesmas condições que os homens, elas seriam capazes de atingir
sua ascensão e visibilidade. Sim, tudo isto é verdadeiro. No entanto, um detalhe está sendo
deixado de lado. Quando se pensa em ofertar às mulheres igualdade de tratamento e de
condições, esquece-se de que, dentro do próprio grupo, existe desigualdade entre as mulheres.
Inúmeras são as “espécies” contidas nesse “gênero”, não só se limitando a “mulheres brancas”
e “mulheres negras”, porque, ainda dentro destas, existem outros fatores que as definem, como
classe social, orientação sexual, entre outros. Esses outros fatores constituem outras
“subespécies”: “mulher branca de classe média alta heterossexual”, “mulher negra pobre
trans”, entre outros.
A meritocracia, para ser analisada como uma forma eficiente de ascensão social,
precisa ser incluída em um contexto no qual as partes estejam em uma relação de igualdade.
Então, como sequer pode-se pensar em aplicar a meritocracia se as próprias mulheres, entre
si, estão em condições desiguais? Basta pensar em uma escada. Por mais que as mulheres, em
relação aos homens, estejam em degraus inferiores, a mulher negra, em comparação à mulher

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branca, está abaixo mais alguns degraus. Para que a meritocracia entre essas mulheres pudesse
vir a ser aplicada, ambas deveriam estar no mesmo degrau, e ter as mesmas condições para
subir. E, assim, se aplicaria o Princípio da Igualdade6, de forma que os iguais serão tratados
conforme a sua igualdade, e os desiguais de acordo com a sua desigualdade, mas não levando
em conta uma perspectiva de igualdade meramente formal, mas sim se baseando na igualdade
material.
No que tange à seleção do autor, sobre quem o sistema penal vai agir, deve-se levar
não só em conta o machismo institucional, como também o elitismo e a criminalização da
pobreza, de maneira que o sistema adiciona mais estigmas à mulher preta e pobre, o que faz
com que esta sofra mais que a mulher branca no que diz respeito à sanção infligida pelo sistema
(ANDRADE,1995).
Todo o disposto acima pode ser comprovado a partir de algumas análises de dados
fornecidas pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen 2017).
Segundo estes dados, houve um grande aumento da população feminina encarcerada. No
período de 2000 a 2017 o aumento foi de 675,5%. Isto expõe um quadro de encarceramento
feminino em massa, demonstrando a necessidade de debate sobre o tema e uma observação
acerca do perfil das mulheres selecionadas pelo sistema.
Ao fazer uma inspeção sobre o encarceramento feminino no Brasil, é possível
perceber, através de dados do Infopen (2017), que 37,67% das detentas no Brasil são presas
em regime provisório, ou seja, presas sem nenhuma condenação. Além disso, 36,21% são
presas sentenciadas em regime fechado e 16,87% presas sentenciadas em regime semiaberto.
Adicionados a esses dados, existem alguns outros de muita importância para este
artigo, entre eles: o percentual somado de mulheres pardas/pretas privada de liberdade é de
63,55% da população carcerária nacional, o de mulheres privadas de liberdade com ensino
fundamental incompleto é de 44,42% e, no que se refere à frequência dos crimes
tentados/consumados entre os registros das mulheres entre 2005-2017, nota-se que o crime de
tráfico de drogas é o principal responsável pela maior parte das prisões, perfazendo um total
de 59,9% dos casos, e a grande maioria das mulheres detidas são mães.7
Logo, com a exposição de todos esses dados, chega-se à conclusão de que a maioria
das mulheres presas são pardas/pretas, têm baixo nível de escolaridade, foram presas por
tráfico de drogas, são mães e, acima de tudo, a maioria delas foi presa preventivamente.
Portanto, fica perceptível o grupo selecionado pelo sistema penal.

6
Art.5° CF/88
7
Esses dados são fruto de pesquisa realizada pela Infopen 2017.
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3 MULHER E TRAFICANTE

Como apresentado no tópico acima, a mulher foi estigmatizada, durante séculos,


como mãe e esposa. Essas definições são advindas do caráter patriarcal e machista da
sociedade, que reverberam em todas as facetas da vida, principalmente na área jurídica e,
consequentemente, no sistema penal.

A mulher é duplamente punida: pelo crime que cometeu e por ter descumprido com o
papel que é esperado dela na sociedade. Você nunca vê um juiz perguntando onde os
filhos estavam quando um homem comete um crime. Ou ouve um juiz comentando
que agora o homem está chateado sem os filhos, mas quando cometeu o crime não
pensava neles. Isso uma mulher encarcerada ouve rotineiramente. (DOLCE, 2019,
online)

Analisando os dados do Infopen 2017, é claro que a maior causa de prisão feminina
está ligada ao tráfico de entorpecentes. Partindo desses dados, é de suma importância que se
perceba que, dessas mulheres, muitas não possuem alto grau de escolaridade e,
consequentemente, não possuem elevada condição socioeconômica, de maneira que estão em
situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, há uma conexão entre essas mulheres
traficantes e a pobreza, a qual é duramente criminalizada pelo sistema.
A mulher inserida no mundo do tráfico, na maioria das vezes, é simplesmente uma
pequena peça, quando considerada toda a operação.
Essas mulheres são detidas pelo tráfico de entorpecentes quando visitam os
estabelecimentos penitenciários e precisam levar drogas como forma de pagamento de dívida
do companheiro ou filho, que está preso. Também são detidas pelo tráfico de entorpecentes
quando armazenam, em suas casas, mochilas ou malas a pedido de seus companheiros ou de
seus filhos ou netos, sem nem saber do que se tratam. Essas mulheres acabam se envolvendo
com o tráfico de drogas, e acabam sendo detidas por tal delito, após prisão de seu
esposo/companheiro/filho, já que não encontram nenhuma outra forma possível de sustentar
os filhos e manter a casa (HOWARD, 2006).
O tráfico de drogas acaba sendo a única saída que muitas dessas mulheres encontram,
principalmente diante de situação de vulnerabilidade social em que passam a ocupar. Vale
ressaltar que tal posição de vulnerabilidade lhes é imposta na maioria das vezes, sendo mínima
a sua contribuição para a configuração de tal status.

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[...] isso significa que as mulheres são “mulas” ou “laranjas”, ou seja, elas transportam
pequenas quantidades, enquanto a quadrilha ou o grupo de homens carrega a maior
parte das drogas por outras rotas. Muitas vezes, as mulheres são denunciadas pelo
próprio grupo para desviar a atenção das autoridades; em outras ocasiões, as mulheres
guardam em suas casas pacotes e malas para seus companheiros, filhos e parentes,
sem saber necessariamente sobre o seu conteúdo, ou ainda sob coerção e ameaça a
seus entes familiares. Além disso, como não fazem parte da cúpula das organizações,
elas não têm conhecimento de informações importantes que levariam à diminuição de
suas penas caso as relatassem para as autoridades. (HOWARD, 2006, p. 27)

Outra função dentro do tráfico é a chamada “boi de piranha”, na qual mulheres


estrangeiras são usadas como isca para policiais, portando uma pequena quantidade de droga,
enquanto o grupo maior consegue passar com as maiores quantidades da substância.
É importante ressaltar que essas mulheres estão em cárcere por questões sociais. Há
uma grande negligência dos direitos fundamentais, que as tornam vulneráveis e as levam a
entrar no mundo do tráfico de drogas. É a falta de acesso aos direitos garantidos pela
Constituição, como educação, saúde e lazer. Vale dizer que, na grande maioria das vezes, o
tráfico é visto como última solução para essas mulheres que, devido à pobreza e à falta de
instrução, nunca conseguem um local no mercado de trabalho, o qual está cada vez mais
seletivo e exigente, devido à alta concorrência e o desemprego em massa.
Logo, fica muito claro que a mulher, nesse contexto, é somente uma pequena peça
considerando todo o jogo no qual está envolvida, sendo vítima do oportunismo dos grandes
traficantes que, notando sua vulnerabilidade financeira e familiar, as convocam para expandir
o seu comércio ilícito. Mas, em contrapartida, o sistema opera sobre elas com toda a sua
legalidade simbólica e toda a sua agressividade, a fim de provar eficiência, sem, na maioria
das vezes, observar o aspecto subjetivo da sua conduta, nem mesmo o seu potencial lesivo,
que muitas vezes é mínimo, pois tudo o que procura é alguém para punir.
Diante do exposto, o sistema penal acaba igualando de forma objetiva a conduta da
mulher, praticada com menor grau de lesividade e importância, àquela exercida pelos
indivíduos que encabeçam os grandes esquemas de tráfico.
Mesmo com o tráfico de entorpecentes sendo crime hediondo segundo a Lei 8.072/90,
e antigamente não ser permitida a progressão de regime, nos dias atuais, levando em conta as
alterações do pacote anticrime, esta é permitida após o cumprimento de 40% da pena se o
condenado não for reincidente e 60% se reincidente (art. 2º, § 2º da Lei 8.072/90 e art. 112,
incisos V e VII da Lei de Execução Penal). No entanto, na prática, essas mulheres são
abandonadas pelo sistema e pelos operadores de direito, ficando no regime fechado, quando
já deveria ter ocorrido a progressão de regime, dificultando todo o seu acesso à justiça e a
direitos humanos básicos, como a liberdade de ir e vir (art. 5°, XV, CF). Dessa forma, as
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mulheres se acumulam dentro de presídios, sem nenhum tipo de contato com seus próprios
filhos, pois há inúmeros empecilhos para tanto.
Essas mulheres inseridas no contexto do tráfico muitas vezes são mães e, com a pena
privativa de liberdade, seu contato com seus filhos se torna extremamente reduzido, se não,
muitas vezes, até nulo.
Para algumas dessas mulheres seria possível a substituição da prisão preventiva por
prisão domiciliar, no caso de serem gestantes ou que forem mães ou responsáveis por crianças
ou pessoas com deficiência, desde que não tenha cometido crime com violência ou grave
ameaça a pessoa e não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.8
Muitas vezes, no entanto, os juízes agem de forma discricionária e simplesmente
ignoram essa disposição legal, baseados em uma construção social que dita o papel da mulher
enquanto mãe e como tráfico de drogas é contrário a esse papel que ela deveria desempenhar,
emitindo um juízo de valor altamente conservador, sem observar as nuances do caso concreto.
Adicionado a isso, o inquérito policial e a instrução processual muitas vezes são
tendenciosamente relapsos no que diz respeito às situações fáticas e as condições de muitas
mulheres, o que gera uma presunção por parte do juiz, a qual a maioria das vezes não favorável
à ré devido a essa construção social conservadora na mentalidade do operador do direito.
Dolce (2019), em artigo que trata de mapeamento feito entre Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, trouxe trechos de
sentenças proferidas que tratavam do tema em análise nesse artigo. Alguns argumentos
utilizados pelos magistrados para fundamentar a determinação de regimes fechados e
endurecimento de penas são:

[...] “o tráfico de drogas vem assombrando a comunidade ordeira, destruindo


famílias”; “a acusada é reincidente na prática do crime de tráfico de drogas, não se
revelando crível que agora passará a cuidar dos filhos”; “voltou a ser presa em
flagrante pela mesma infração, revelando personalidade distorcida e incompatível
com o exercício da maternidade”; e “a ré é condenada por tráfico e associação para
o tráfico, o que comprova que sua filha estava sob os cuidados de alguém enquanto
ela agia […], ela traz consigo um considerável risco à infante, que fica exposta aos
atos espúrios da genitora”. (DOLCE,2019)

Segundo Howard (2006, p. 65-66):

Na ausência de qualquer programa específico para facilitar o contato das crianças com
suas mães, as mulheres no sistema penitenciário relataram depender completamente

8
Lei nº 13.769/18, arts. 1° e 2°.
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dos dias de visita, “festas”, cartas e ligações telefônicas feitas por assistentes sociais
para sustentarem seus relacionamentos.

Muitas mulheres engravidam ou chegam grávidas até a penitenciária. Os bebês ficam


em companhia delas até os 6 meses de vida e depois disso são entregues para algum parente
ou encaminhados à assistência social quando não há nenhum responsável, pois na maioria dos
casos ambos os pais se encontram presos. Não existem creches e as crianças vivem nas
mesmas celas insalubres que suas genitoras até o prazo estipulado pelo presídio para que mães
fiquem com seus filhos.
Teoricamente, as mães encarceradas não perdem a guarda dos filhos, mesmo quando
eles são abrigados por não terem familiares para seus cuidados. Contudo, quando a pena
determinada para as mães é muito alta e as crianças, muito jovens, as varas da família e da
infância costumam determinar a perda da guarda.
Afastadas de seus filhos, muitas mulheres podem vir a sofrer de transtornos de
depressão e ansiedade, geradas pela sensação de abandono e impotência, pois, como dito, essas
mulheres sempre estiveram à frente de suas famílias, gerando o sustento básico para o dia a
dia.
No caso das mulheres grávidas, essa depressão pode tornar-se ainda mais grave, haja
vista as mudanças biopsíquicas advindas da gravidez e os casos de depressão pós-parto, além
de que pouquíssimas são as penitenciárias que ofertam um serviço psicológico eficaz. Vale
lembrar também que essas mulheres acabam sendo excluídas do convívio com qualquer
integrante de seu ciclo familiar, pois, quando os companheiros não estão presos, não vão visitá-
las.
Logo, é perceptível que mesmo dentro das penitenciárias, há uma distinção entre os
tratamentos destinados para os homens e para as mulheres. Essa disparidade advém da própria
assimetria existente na sociedade, o homem é sempre o centro para a projeção de qualquer
espaço, e isso inclui o sistema penitenciário. Dessa forma, a mulher acaba tendo seus direitos
negligenciados e suas necessidades postas de lado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise dos argumentos expostos percebe-se que há um perfil bem definido
das mulheres com vivência do cárcere, reproduzindo-se condições de vulnerabilidade não só
pautadas pela situação de pobreza, mas também de negligência e desrespeito aos direitos
fundamentais. Devido a essa vulnerabilidade, tornam-se alvos fáceis de serem exploradas
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pelos grandes traficantes, principalmente na preparação, no armazenamento e na distribuição


das drogas para os consumidores finais. Na grande maioria das vezes não são as líderes das
facções, ou estão longe de enriquecer com esta atividade, ocupando posições periféricas no
sistema do tráfico de drogas.
Com a clareza de que a sociedade tem traços conservadores e patriarcais, e partindo
da premissa de que o sistema penal é um mero reflexo da sociedade que o construiu, não é de
se estranhar que haja uma institucionalização desses traços conservadores e machistas.
Diante disso, há uma naturalização acerca da impunidade dos grandes traficantes, os
quais em sua maioria são homens e possuem um grande poder econômico, e encontre nas
mulheres um alvo par a perseguir e punir, porque é mais fácil puni-las e é socialmente razoável
que isso aconteça, além de que assegura a legitimidade do seu discurso de segurança.
Logo, é perceptível que a mesma desigualdade entre homens e mulheres fora dos
muros das prisões existe dentro dos muros, pois o presídio foi pensado como um espaço
masculino, e não se adaptou para servir de espaço de detenção para mulheres também, sem
oferecer itens e serviços essenciais para a higiene e dignidade da mulher, tal como absorventes
íntimos, serviço de pré-natal eficaz, creches, entre outros. Além disso, também se nota que
mesmo no que se refere a visitas e visitas íntimas, as mulheres são mais esquecidas do que os
homens, sendo deixadas de lado.
Muitas das mulheres detidas são mães, e o sistema não facilita para que haja uma
comunicação entre elas e seus filhos. Assim, muitas dessas mulheres carregam uma culpa
incessante enquanto estão detidas, pois eram as responsáveis pelo sustento de seu lar e, muitas
vezes, entraram no tráfico justamente para conseguir garantir o mínimo de acesso dos seus
filhos à saúde e educação. Logo, não ter contato com eles e nem saber de sua situação
influencia para que as detentas desenvolvam problemas como depressão, e a falta de um
serviço psicológico eficiente acaba por agravar o problema.
Como dito, o sistema penal não opera com toda a sua legalidade processual, pois é
impossível que possa vir a punir todas as pessoas que cometeram determinado delito, haja
vista o extenso rol de tipos penais na legislação brasileira. Então ao invés de realizar
investigações mais aguçadas e detalhadas, concorda-se que haja uma seletividade quanto
àqueles que irão sofrer com o seu potencial lesivo. Como visto, as mulheres se enquadram
como um dos grupos etiquetados, pois ao cometerem um delito estão indo contra o papel que
foi construído socialmente para que elas fossem mães e donas de casa, uma vez que se
tornaram criminosas, e isto não é compatível com sua “função social”.

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Então, essa seleção da mulher acaba revelando-se como mais uma forma de dupla
punição do que qualquer outra coisa, e, tal qual o discurso de que a detenção tem como
objetivo a ressocialização do indivíduo, a verdade é que não é nada mais do que uma forma
de punir aqueles que desviaram de seus papéis socialmente construídos. Dessa forma, é visível
que as mulheres possuem um alvo em suas costas e, quando o sistema penal decide acertá-lo,
ele jamais erra, atingindo-as em todas as esferas da sua vida e amplificando o grau de
lesividade de suas condutas.
Logo, é de extrema necessidade que haja uma análise mais ampla e menos exegética
do caso concreto por parte do poder judiciário e dos demais operadores do direito, haja vista
que a aplicação da lei penal das drogas aparece como sexista e misógina, pois penaliza
duplamente a mulher que se envolve com o tráfico. Diante disso ao ser presa, esta é colocada
em um sistema que em nada foi feito para adaptar-se a sua realidade e a suas necessidades
básicas, e acaba por deixar os filhos desamparados afetiva e financeiramente, pois a mulher era
a provedora de sua família.
Assim, seria necessário, também, que todos os operadores de direito cooperassem
para uma análise mais justa e completa da situação. Isso vai desde o requerimento de maiores
diligências pelo Ministério Público nos inquéritos policiais, até uma análise mais criteriosa do
Poder Judiciário dos elementos e provas encontrados, tanto para uma correta análise da
culpabilidade bem como na dosimetria da pena.
Portanto, depois de todo o exposto, a visão acerca da “mulher traficante” não deve
ser míope, mas sim ampla, devendo o julgador considerar todos os aspectos subjetivos e
objetivos que a levaram a praticar o delito de tráfico de drogas. A sua condição de
vulnerabilidade deve ser considerada evitando, desta forma, uma amplificação do impacto
social que decorrerá da sua provável condenação e, consequente prisão.

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