CAPITULO 2

o HOMEM
COMO
UMA PESSOA CRIADA
,.. .D-
Uma das pressuposicoes basicas da concepcao crista do homem e a fe
em Deus como criador, que conduz a compreensao de que a pessoa humana
nao existe autonoma ou independentemente, mas como uma criatura de Deus.
"No princfpio, criou Deus os ceus e a terra ... Criou Deus, pois, 0 homem"
(Gn 1.1, 27).
Uma deducao 6bvia do fato da criacao e que toda a realidade criada e
completamente dependente de Deus. Werner Foerster expressa isso do se-
guinte modo: "Portanto, em vir a ser, existir e perecer, toda a criacao e inteira-
mente dependente da vontade do Criador". I
As Escrituras dizem claramente que todas as coisas criadas e todos os seres
criados sao totalmente dependentes de Deus. "S6 tu es SENHOR, tu fizeste 0
ceu, 0 ceu dos ceus, e todo 0 seu exercito, a terra e tudo quanto nela ha, os
mares e tudo quanta ha neles; e tu os preservas a todos com vida, e 0 exercito
dos ceus te adora" (Ne 9.6). Na afirmacao de que Deus preserva todas as suas
criaturas, incluindo os seres humanos, esta implfcito que eles sao dependentes
dele para a continuacao da sua existencia, Em seu discurso aos atenienses,
Paulo afirma que Deus "e quem a todos da vida, respiracao e tudo mais" e que
"nele vivemos, nos movemos, e existimos" (At 17.25,28). Paulo esta dizendo
que devemos nossa respiracao a Deus; que existimos somente nele; em cada
movimento que fazemos estamos na dependencia dele. Nao podemos levantar
urn dedo a parte da vontade de Deus.
o homem, contudo, nao e somente uma criatura; tambem e uma pessoa.
I "Kitzli", TDNT, 3:1011.
o HOMEM COMO UMA PESSOACRIADA 17
Ser uma pessoa significa ter alguma forma de independencia - nao absoluta,
mas relativa. Ser uma pessoa significa ser capaz de tomar decisoes, de estabe-
lecer objetivos e ser capaz de perseguir esses objetivos. Significa possuir liber-
dade? - ao menos no sentido de ser capaz de fazer as suas proprias escolhas. 0
ser humane nao e urn robo cuja conduta e totalmente determinada por forcas
exteriores a ele; ele tern 0 poder de autodeterminacao e de autodirecao. Ser
uma pessoa significa, para usar a expressao pitoresca de Leonard Verduin, ser
uma "criatura de opcao".'
Em resumo, 0 ser humane e igualmente uma criatura e uma pessoa; e uma
pessoa criada. Este e, pois, 0 misterio fundamental do homem: como pode 0
ser humane ser igualmente uma criatura e uma pessoa? Ser uma criatura, como
ja vimos, significa dependencia absoluta de Deus; ser uma pessoa significa in-
dependencia relativa. Ser uma criatura significa que nao posso mover urn dedo
ou pronunciar uma palavra a parte de Deus; ser uma pessoa significa que, quan-
do meus dedos sao movidos, eu os movo e que, quando as palavras sao pro-
nunciadas por meus labios, eu as pronuncio. Sennos criaturas significa que Deus
eo oleiro enos, 0 barre (Rm 9.21); sennos pessoas significa que nos mesmos
e que moldamos nossa vida pelas nossas proprias decisoes (016.7-8).
Este e, como eu 0 chamei, 0 misterio fundamental do homem porque, para
nos, e insondavelmente misterioso que 0 homem possa ser igualmente uma cria-
tura e uma pessoa. Dependencia e liberdade sao conceitos aparentemente in-
compativeis para nos. Nao duvidamos que uma crianca seja completamente
dependente de seus pais na infancia, mas observamos que, a medida que essa
crianca cresce, vai adquirindo maior liberdade e maturidade e se toma menos
dependente de seus pais. Compreendemos esse processo. Mas como have-
mos de conceber urn relacionamento em que coexistam dependencia completa
de Deus e liberdade pessoal para tomar nossas proprias decisoes?
Embora nao possamos compreender racionalmente como e possfvel que 0
ser humane seja igualmente uma criatura e uma pessoa, nao podemos pensar
de outro modo. Negar qualquer lade desse paradoxo significa nao fazer justica
a descricao bfblica. A Bfblia ensina a condicao de criatura bern como a indivi-
dualidade pessoal do homem. Algumas vezes, ela se dirige ao ser humane como
uma criatura: por exemplo, quando ela fala de Deus como 0 oleiro e do homem
como 0 barro (Rm 9.21). Mais freqiientemente, contudo, ela se dirige ao ho-

2 No cap. 12 sera dito mais sobre 0 significado do conceito de liberdade quando aplicado aos seres
humanos.
3 Verduin desenvolve extensivamente esse pensamento no capItulo 5 de seu livro Somewhat less than

God (Grand Rapids: Eerdmans, 1970).

18 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS

mem como uma pessoa: "Escolhei, hoje, a quem sirvais" (Js 24.15); "Em nome
de Cristo, pois, vos rogamos que vos reconcilieis com Deus" (2Co 5.20).
N ossa compreensao teol6gica do homem deve, portanto, manter em foco
essas duas verdades de mane ira muito clara. Todas as antropologias seculares
falham em nao considerar 0 ser humano como criatura, apresentando, em fun-
9ao disso, uma visao distorcida do homem. Qualquer concepcao do ser huma-
no incapaz de ve-lo como fundamentalmente relacionado com Deus, totalmente
dependente dele e primariamente responsavel perante ele, carece da verdade.
Por outro lado, todas as antropologias deterministas, que descrevem os seres
human os como se fossem marionetes ou robes, talvez tendo Deus puxando as
cordinhas ou apertando os botoes, deixam de fazer justica a individualidade
pessoal do homem, apresentando, tambem, uma visao distorcida do homem.
Robert D. Brinsmead expos este ponto muito bern:
Ser criatura e ser pessoa sao aspectos do ser hurnano que devern ser rnantidos juntos
e em tensao. Quando a Teologia acentua 0 aspecto criatura e subordina 0 aspecto da
a e
pessoalidade, vern tona urn deterrninisrno inflexfvel e 0 homern desurnanizado ...
Quando 0 ser pessoa e enfatizado a exclusao do ser criatura, 0 hornern e deificado e a
soberania de Deus e comprometida. 0 Senhor e abandonado nos bastidores, como se
o hornern tivesse 0 poder de vetar os pIanos e os prop6sitos de Deus."

o fato de que 0 homem e uma pessoa criada tern implicacoes

para outros
aspectos de nossa Teologia. Primeira, que luz este conceito Janca sobre a
questao da origem do pecado? Embora reconhecendo que a razao pela qual
o homem pecou perrnanecera sempre urn rnisterio insondavel, sera preciso
dizer que 0 homem pode cair em pecado exatamente porque ele era uma
pes soa, capaz de fazer escolhas - ate mesmo escolhas que fossem contrarias
a vontade de Deus. Todavia, sera preciso acrescentar que, mesmo ao pecar,
o ser humano permanece uma criatura, dependente de Deus. Deus, por assim
dizer, teve de proporcionar ao homem a forca com a qual ele pecou; a mag-
nitude do pecado do homem consiste no fato de ele ter usado os poderes
dados por Deus para 0 service de Satanas. Porque nossos primeiros pais
cafram em pecado como pessoas criadas, falamos da "vontade permissiva"
de Deus com respeito ao primeiro pecado do homem; alem disso, afirmamos
que esse primeiro pecado nao veio como uma surpresa para Deus, apesar de
ele ter considerado aqueles que cometeram esse pecado como total mente
responsaveis pe]o mesmo.
Segunda, que luz 0 conceito do ser humano como pessoa criada lanca so-

4 "Man as Creature and Person", Verdict (August, 1978): pp. 21-22.

o HOMEM COMO UMA PESSOACRIADA 19
bre a maneira como Deus redime 0 homem? Apos ter cafdo em pecado (por
sua propria falta) , 0 homem, pelo fato de ser uma criatura, so pode ser redimido
do pecado e resgatado de seu estado caldo mediante a intervencao soberana
de Deus em seu favor. Visto que e uma criatura, 0 homem pode ser salvo so-
mente pela graca - isto e, em absoluta dependencia da misericordia de Deus.
Mas 0 fato de que 0 homem e tambem uma pessoa faz com que ele tenha uma
parte importante a cumprir no processo de sua redencao, 0 homem nao e salvo
como urn robe, cujas atividades foram program adas por algum computador
celestial, mas como uma pessoa. Portanto, os seres human os tern uma respon-
sabilidade no processo de sua salvacao. Eles precisam decidir-se livremente,
na forca do Espfrito Santo, a arrependerem-se de seus pecados e a crerem em
a
Jesus Cristo. Eles nao podem ser salvos parte de tais escolhas pessoais (em-
bora devam ser feitas excecces para casos nos quais os indivfduos envolvidos
nao sejam capazes de tomar decisoes pessoais). Depois que uma pessoa faz tal
escolha, ela deve continuar a viver em comunhao com Deus e na obediencia da
fe. 0 fato de que nos so podemos viver desse modo mediante a forca que Deus
nos da nao exclui nossa responsabilidade de viver dessa forma.
Como uma ilustracao deste topico, consideremos como a regeneracao esta
relacionada a fe, A regeneracao pode ser definida como aquele ato do Espfrito
Santo, que nao deve ser separado da pregacao da Palavra, por meio do qual
ele primeiramente coloca uma pessoa em uniao viva com Cristo e muda seu
coracao de tal forma que quem estava espiritualmente morto torna-se espiri-
tualmente vivo. Uma mudanca tao radical assim nao pode ser obra do homem
mas deve necessariamente ser obra de Deus. Os que sao regenerados sao
descritos como aqueles que "nao nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (Jo 1.13). Alem disso, a parte
da regeneracao, 0 homem esta espiritualmente morto (Ef 2.5), e uma pessoa
morta nao pode vivificar-se a si mesma. Visto que 0 homem por si mesmo caiu
no estado de mortalidade espiritual e que, alern disso, e uma criatura, so pode
receber nova vida por meio de urn ate miraculoso de Deus - tao miraculoso
que Paulo chama uma pessoa regenerada pelo Espirito Santo de uma nova
criatura (2Co 5.17).
Visto que 0 homem e uma criatura, Deus tern de regenera-Io - dar-Ihe uma
nova vida espiritual. Visto, porem, que 0 homem e tambem uma pessoa, ele
e,
tambem precisa crer - isto em resposta ao evangelho, ele deve fazer uma
escolha consciente e pessoal de aceitar a Cristo e de 0 seguir. Regeneracao e fe
devem sempre ser vistas juntas. E significativo que Joao as mantenhajuntas em
seu Evangelho. Apos Jesus ter dito a Nicodemos que ninguem poderia ver 0
20 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS

reino de Deus a nao ser que nascesse de novo (Jo 3.3), tambem the disse que
"Deus amou 0 mundo de tal mane ira que deu 0 seu Filho unigenito, para que
todo 0 que nele ere nao pereca, mas tenha a vida eterna" (v. 16). A regen era-
~ao, que e a obra do Espfrito Santo, e absolutamente necessaria para que
alguem possa ver 0 reino de Deus - mas quando 0 chamamento do evangelho
faz seu apelo ao ouvinte, ele requer fe, a qual envolve uma decisao pessoal. E
preciso que Deus regenere e e preciso que 0 homem creia: as duas coisas
devem ser igualmente afirmadas.
Tambem a tftulo de ilustracao desse tema, verifiquemos 0 processo de san-
tificacao. A santificacao pode ser definida como aquela operacao do Espfrito
Santo, a qual envolve a participacao responsavel do homem, pela qual 0 Espf-
rito Santo renova a natureza do homem e 0 capacita a viver para 0 louvor de
Deus. A santificacao, portanto, e obra de Deus bern como tarefa do homem.
Visto que os seres humanos sao criaturas, e preciso que Deus na pessoa do
Espfrito Santo os santifique; visto que eles sao tambem pessoas, precisam estar
responsavelmente envolvidos em sua santificacao, "aperfeicoando a nossa san-
tidade no ternor de Deus" (2Co 7.1).
Neste contexto, as surpreendentes palavras de Paulo em Filipenses 2.12-
13 merecem destaque: "Desenvolvei a vossa salvacao com tremor e temor;
porque Deus e quem efetua em vos tanto 0 querer como 0 realizar, segundo a
sua boa vontade". A palavra traduzida como "desenvolvei", katergazesthe, e
usada nos papiros dos primeiros seculos do Cristianismo geralmente para
descrever as atividades de urn fazendeiro ao cultivar a sua terra.' Desenvol-
vam a sua salvaciio significa, portanto, cultivem a salvacao que Deus lhes
deu; desenvolvam 0 que Deus tern realizado em voces; apliquem a salvacao
que voces receberam a cada area de suas vidas - trabalho, recrcacao, fami-
lia, vida, cultura, arte, ciencia e coisas que tais. Em outras palavras, Paulo
esta dizendo a seus leitores que participem ativamente no progresso de sua
santificacao. "Porque", continua ele, "Deus e quem efetua em vos tanto 0
querer como 0 realizar." Querer e realizar designam tudo 0 que pensamos ou
fazemos. E Deus, portanto, quem esta efetuando continuadamente em nos
todo 0 processo de santificacao: tanto 0 querer como 0 realizar. Quanto mais
esforcadamente trabalhamos, mais certos podemos estar de que Deus esta
operando em nos. Em nossa santificacao, Deus age conosco tanto como pes-
soas quanta como criaturas.

, J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament Illustrated from the Papyri
(Grand Rapids: Eerdmans, 1957), pp. 335-36.
o HOMEM COMO UMA PESSOA CRJADA 21
o rnesmo princfpio vale para a doutrina da persevcranca dos santos. Visto
que sornos criaturas, e preciso que Deus nos preserve enos guarde leais a ele,
A Bfbliaensinaclararnente isso (ver, porexemplo, Jo lO.27-28; Rrn 8.38-39;
Hb 7.25; lPe 1.3-5; Jd 24). Mas nao devernos perder de vista 0 outro lado do
paradoxo: os crentes devem perseverar na fe (Mt 10.22; lCo 16.13; Hb 3.14;
Ap 3.11). Nao e uma questao de preservacao ou perseveranca. Porque somos
criaturas, e preciso que nos preserve ou certamente pereceremos. Mas porque
somos tambem pessoas, Deus nos preserva capacitando-nos a perseverar.
Ha, todavia, ainda outras implicacoes do conceito criatura-pessoa para nossa
Teologia. A Escritura ensina que Deus salva 0 homem colocando-o em urn
relacionamento de pacto corn ele. Visto que Deus e 0 criador e 0 homem e
criatura, e 6bvio que Deus deve tomar a iniciativa de colocar seu povo nessa
relacao pactual- razao pela qual dizemos que 0 pacto da graca e uni lateral ern
sua origem. Mas visto que 0 hornem e uma pessoa, ele tern responsabilidades
neste pacto, devendo cumprir suas obrigacoes pactuais - dai dizermos que 0
pacto da graca e bilateral ern seu cumprimento.
Alern disso, a compreensao do ser humane como uma pessoa criada aju-
da-nos a responder a questao muito debatida quanto ao pacto da graca ser
condicional ou incondicional. Porque 0 ser humane e uma criatura, 0 pacto e
incondicional em sua origem; Deus estabelece graciosamente seu pacto corn
a
seu povo parte de quaisquer condicoes que eles devam cumprir. Mas visto
que 0 homem e tambern uma pessoa, Deus requer que seu povo cumpra
certas condicoes para que desfrutem das bencaos do pacto. Mas as pessoas
podem cumprir essas condicoes apenas mediante 0 poder capacitador de
Deus. No pacto da graca, portanto, estao igualmente ern foco a graca sobe-
rana de Deus e a grande responsabilidade do homem. POl'essa razao, a Bi-
blia contem tanto promessas pactuais como ameacas pactuais, devendo n6s
fazer plenajustica a ambas.
Outro importante conceito teol6gico e 0 da imagem de Deus. Nos proxi-
mos capitulos, tratarei deste conceito mais detalhadamente. Assim, posso ser
breve agora. POI'causa de sua queda ern pee ado, 0 homern, ern urn sentido
especffico, perdeu a imagem de Deus (alguns teologos chamam este de 0
senti do estrito ou funcional). Ao inves de servir e obedecer a Deus, 0 hornem
esta agora separado de Deus; ele e "homem em revolta". N a obra da reden-
gao Deus restaura graciosamente sua imagem no homem, tornando-o uma
vez mais igual a Deus em seu arnor, fidelidade e disposicao para servir aos
outros. Porque os seres humanos sao criaturas, Deus deve restaura-los a sua
imagem - esta e uma obra da graca soberana. Mas porque sao tambem pessoas,
22 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS

eles tern uma responsabilidade nesta restauracao - por isso Paulo pode dizer
aos Efesios: "Sede, pois, imitadores de Deus" (5.1).
J a foi dito 0 suficiente para mostrar que 0 entendimento do homem como
e
uma pessoa criada tao importante quanta relevante. 'Ieologos como eu, que
se encontram na tradicao reformada ou calvinista, tern geralmente enfatizado,
no homem, 0 aspecto relacionado ao ser criatura (sua total dependencia de
Deus) e, portanto, a total soberania de Deus em cada area da vida, particular-
mente na obra de salvar 0 seu povo dos pecados deles. Teologos arminianos,
por outro lado, geralmente colocam toda a enfase na individualidade pessoal do
homem. Por isso, quando falam do processo da salvacao, eles enfatizam a im-
portancia da decisao voluntaria do homem e da continua fidelidade a Deus.
Manter em mente este paradoxo - 0 fato de que 0 homem e igualmente uma
criatura e uma pessoa-, ajuda-nos a fazer plenajustica tanto a soberania de
Deus como a responsabilidade do homem. Aqueles de nos que se encontram
na tradicao reformada nao devem negligenciar ou negar a responsabilidade do
homem; aqueles se encontram na tradicao arminiana nao deveriam esquecer ou
negar a total soberania de Deus.