Chico Heraclio - Dissertaçao
Chico Heraclio - Dissertaçao
Chico Heraclio - Dissertaçao
Recife
2008
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Márcio Ananias Ferreira Vilela
Recife
2008
Vilela, Márcio Ananias Ferreira
___________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro - Programa de Pós-Graduação em
História – UFPE.
__________________________________________________
Examinador(a) interno (titular): Prof. Dra. Maria do Socorro de Abreu e Lima - Programa
de Pós-Graduação em História – UFPE.
___________________________________________________
Examinador(a) interno (suplente): Prof. Dra. Maria do Socorro Ferraz Barbosa – Programa
de Pós-Graduação em História - UFPE.
___________________________________________________
Examinador(a) externo (titular): Prof. Denis Antônio de Mendonça Bernardes - Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social – UFPE.
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Examinador(a) externo (suplente): Prof. Dr. José Batista Neto – Programa de Pós-
Graduação em Educação – UFPE.
Recife
2008
Resumo
Recife
2008
Abstract
Recife
2008
O escritor é uma pessoa que passa anos tentando descobrir com
paciência um segundo ser dentro de si, e o mundo que o faz ser
quem é: quando falo de escrever, o que primeiro me vem à mente
não é um romance, um poema ou a tradição literária, mas uma
pessoa que fecha a porta, senta-se diante da mesa e, sozinha,
volta-se para dentro; cercada pelas suas sombras, constrói um
mundo novo com as palavras... Escrever é transformar em
palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a
pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma – com
paciência, obstinação e alegria... Mas assim que nos isolamos,
logo descobrimos que não estamos tão sós quanto julgávamos.
Estamos na companhia das palavras dos que vieram antes de nós,
das histórias, dos livros, das palavras de outras pessoas – aquilo
que chamamos de tradição.
Introdução ........................................................................................................................... 13
Passo importante para a escolha da temática ora trabalhada data do ano de 2002
quando de nossa participação em extensa pesquisa coordenada pelo Sr. André Heráclio do
Rêgo, referente a seu doutoramento defendido pela Universidade de Paris X. Tese
recentemente publicada na França sob o título Famile et Pouvoir Régional au Brésil: le
coronelismo dans le Nordeste 1850-20001.
Encerrados aqueles trabalhos nos propomos, agora enquanto integrantes do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, a dar-lhes
continuidade por meio de novas pesquisas. Então, intensificamos o contato com uma série
de documentos que fazem menção a Francisco Heráclio do Rêgo, político outrora residente
no município de Limoeiro/PE. Trata-se de um conjunto de registros históricos presente nas
mais diversas formas de comunicação tal qual jornais, revistas de circulação nacional como
a Manchete e O Cruzeiro, literaturas de cordéis, canções gravadas em compacto, boletins,
processos judiciais e entrevistas.
Esses documentos quase que constantemente identificam ou nomeiam Francisco
Heráclio como poderoso coronel ou chefe político do município de Limoeiro e de
Pernambuco. Nesses registros, passamos a identificar um conjunto de discursos e práticas
que versam sobre sua participação nos embates políticos em nível municipal e estadual,
entre os anos de 1945 a 1955.
A compreensão que emerge destes documentos – muitas vezes complexos e
carregados de dinâmicas diferenciadas – em alguns momentos pode divergir do
entendimento já formulado e aceito até então por parte de uma historiografia que
essencialmente privilegia em suas análises estruturas homogeneizadoras das realidades
econômicas e políticas do Brasil. Tentaremos nos deslocar de uma visão macro-histórica
que enquadra a atuação desses líderes políticos ao longo da República Velha enquanto
1
RÊGO, André Heráclio do. Famille et pouvoir régional au Brésil: le coronelismo dans le Nordeste 1850-
2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006. É importante ressaltar que nesta obra, o autor elabora um longo e
detalhado estudo sobre algumas famílias inseridas nas disputas políticas como a família Heráclio do Rêgo,
presente tanto no estado da Paraíba como em Pernambuco.
13
fenômeno do coronelismo, ou seja, uma espécie de herança maldita que teria suas origens
fincadas na Colônia e no Império: heranças estruturais cuja permanência na segunda
metade do século XX estaria reproduzindo este fenômeno.
Por caminhos bastante variados, a documentação nos possibilitou construir um outro
olhar sobre este personagem político e seu tempo. Francisco Heráclio nos é apresentado de
maneira diversa, múltipla: é ao mesmo tempo urbano e rural, tradicional e moderno, líder
local e estadual. Alguém que não está fora de seu tempo, ou à margem das transformações
– sobretudo políticas – por que passa o Brasil. Político capaz de fazer uso das mais
diversificadas estratégias de comunicação.
Num primeiro instante fomos, quase obrigatoriamente, levados a percorrer parte dos
escritos que trata do universo desses líderes políticos ao longo da história republicana do
Brasil. Nesse sentido, foi de suma importância nosso mergulho pela literatura, história, e
sociologia. De modo geral, podemos afirmar que são obras significativas, permeadas de
informações relevantes que em muito nos ajudaram a compreender diversos aspectos do
cenário político nacional e, de maneira semelhante, a atuação política de Francisco Heráclio
do Rêgo. É o caso da obra Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis, da socióloga
Maria Auxiliadora Lemenhe. Obras como Coronelismo, enxada e voto: o município e o
regime representativo no Brasil, de Victor Nunes Leal, assim como, Os donos do poder, de
Raymundo Faoro, consideradas estudos clássicos sobre o coronelismo. Estas obras também
suscitaram uma série de ponderações, de novos questionamentos e diferenciações
importantes que permeiam nossa escrita. Construções possibilitadas, sobretudo, a partir da
análise minuciosa de diversificado corpo documental.
Em seguida ao que nomeamos “Mecanismos de construção de um líder político”,
nossos esforços recaem sobre um mosaico de documentos cuja análise nos possibilitaram
visualizar um conjunto de discursos que, em sua maioria, faz referências àquele político.
São discursos sobre diversos aspectos como sua origem familiar, infância e juventude. Em
nosso entendimento, tais discursos funcionam a emitir uma série de signos e imagens
capazes de construir Francisco Heráclio do Rêgo como um importante e imprescindível
personagem no cenário político de Pernambuco, representando o Partido Social
Democrático no município de Limoeiro e circunvizinhos, muito embora tenha também
integrado, em algum momento, os quadros partidários da União Democrática Nacional.
14
Num terceiro momento denominado “Práticas políticas e eleitorais”, deslocaremos
nosso olhar na busca de um entendimento sobre algumas ações que permeiam com
constância a documentação apresentada ao longo deste trabalho. Práticas que além de
sugerir a construção de Francisco Heráclio como líder político – aspecto que norteia nossa
escrita – permitem a visualização de certo controle político em áreas onde atuava2. Aí
vamos perceber, por exemplo, a relação de mediador que Francisco Heráclio consegue
manter com o estado, chegando, em certos momentos, a confundir-se com o próprio estado.
Ou seja, Francisco Heráclio e o estado são projetados numa mesma imagem.
Paralelamente, a documentação tem possibilitado analisar um conjunto de práticas as
quais denominamos assistencialistas e de coações, que julgamos como fundamentais à
compreensão do exercício político em questão e controle das eleições. Sobre o processo
eleitoral, estas práticas nos propiciaram visualizar certas particularidades, ou, uma outra
lógica a permear as eleições em sua área de atuação política3.
Por fim, a compreensão que formulamos em relação a tais práticas é de que são
reveladoras de uma maneira particular de fazer política implementada por Francisco
Heráclio e seus partidários4. Um fazer com aspectos únicos presentes neste recorte espacial
e temporal. É diante desta complexidade que envolve a participação e construção de
Francisco Heráclio do Rêgo no cenário político de Pernambuco entre os anos de 1945 a
1955 que objetivamos elaborar determinado entendimento.
Neste sentido, almejamos estar somando contribuições aos saberes já construídos na
historiografia brasileira, acreditando que novos questionamentos ainda se constituirão
derivando, assim, em outras investigações neste e noutros campos do saber. No entanto,
estudos focados nesta ou em outras localidades do Brasil e em temporalidades diversas,
possivelmente virão e apontarão (ou não) semelhanças e aproximações com o trabalho ora
apresentado.
2
Ciente, portanto, da complexidade que abrange a utilização do termo controle político, o seu emprego ao
longo desta escrita, não expressa uma destituição ou passividade política por parte daqueles supostamente
“dominados”.
3
Aliás, a própria realização dos pleitos eleitorais por se só, possivelmente, viabilizaria um outro trabalho
revelador do fazer política no Brasil.
4
Um outro aspecto a ser investigado noutros trabalhos seria tentar entender como alguns segmentos sociais, a
exemplo das camadas populares, fazem uso dessas práticas políticas.
15
Parte 1
Revisitando o coronelismo
16
Capítulo I
As descrições do fenômeno coronelístico
5
Graciliano Ramos é um escritor que compõe juntamente com Jorge Amado, Rachel de Queiroz entre outros,
a segunda fase do Modernismo brasileiro. Nasceu na cidade de Quebrângulo, Alagoas, em 1892 e faleceu no
Rio de Janeiro em 20 de março de 1953. Linhas Tortas (obra póstuma) é um livro de crônicas editado em
1962. No conjunto, compõe uma série de crônicas escritas pelo autor e publicadas inicialmente em jornais.
Ver RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 19ª edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2002.
6
Vale ressaltar que Graciliano Ramos, ao escrever esta crônica em 1915, está se referindo à primeira
Constituição Republicana do Brasil, datada de 1889.
7
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 19ª edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2002, p. 08.
8
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 19ª edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2002, p. 09.
17
advogados e jurados, conselheiros municipais, comissários de polícia e inspetores de
quarteirão”9. Sua fina ironia prossegue à medida que vai descrevendo esses chefes. Assim,
são estes, ao mesmo tempo,
Acrescenta ainda, “são os donos de todos os municípios destes remotos rincões que o
estrangeiro ignora, que as cidades do litoral conhecem vagamente, através dos despachos
da Agência Americana”.
Em 1915, Graciliano Ramos, conforme observamos, já oferecia aos leitores do
Jornal de Alagoas uma crítica irônica à estrutura de poder do Brasil. Assim descreve que
“Em escala descendente, a começar no Catete, onde pontifica o chefe assu, e a terminar no
último lugarejo do sertão, com um caudilho, mirim, isto é um país a regurgitar de mandões
de todos os matizes e feitios”. O autor critica primordialmente a atuação, neste cenário, de
inúmeros chefes políticos apontados por ele como a verdadeira força política no comando
da República, compondo o que nomeia de quarto poder.
Diversos outros autores procuraram compreender as atuações desses líderes
políticos, descritos por Graciliano Ramos, ao longo da República. É importante, pois,
relacionarmos parte desses autores, compreendendo como estudaram e analisaram a
atuação destes determinados líderes. Dentre tais autores podemos destacar Victor Nunes
Leal, Raymundo Faoro, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Maria de Lourdes Janotti, Iberê
Dantas, Marcos Vinicios Vilaça, Maria Auxiliadora Lemenhe e José Murilo de Carvalho.
Serão tecidas aqui algumas considerações acerca das obras de Victor Nunes Leal e
Raymundo Faoro que, em suas análises, elaboraram estudos gerais, amplos, sobre a
realidade brasileira da Colônia à República. São também reconhecidos por seus clássicos
estudos a respeito do “fenômeno do coronelismo” no Brasil durante a República Velha,
9
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 19a edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2002, p. 09.
10
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 19a edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2002, p. 09.
18
muito embora Victor Nunes Leal estenda sua análise, também, a períodos que antecedem a
expansão industrial na década de 1950. De certa maneira, estes estudiosos têm influenciado
outras concepções elaboradas por vários autores sobre a referida problemática. Algumas
dessas concepções têm procurado enfatizar a atuação de tais líderes políticos mais
precisamente durante a República Velha; enquanto outros autores observam esta presença
ao longo da segunda metade do século XX.
O jurista, jornalista e pesquisador Victor Nunes Leal, em sua obra Coronelismo,
enxada e voto11, procura explicar o sistema político do Brasil. Publicada inicialmente 1948
sob o título O municipalismo e o regime representativo no Brasil, é considerada um
clássico estudo sócio-político do Brasil12. Nas décadas seguintes, passou a ser referência em
uma série de produções no campo da história e das ciências humanas. Em sua obra, o autor
analisa de maneira detalhada vários aspectos do Brasil colonial, imperial e republicano.
Talvez influenciado pelos estudos jurídicos13, enfoca em sua obra a organização agrária, as
atribuições municipais, o processo de eletividade da administração municipal, a
organização policial e judiciária, a legislação eleitoral do Brasil e o sistema coronelístico.
Ao tratar do surgimento do fenômeno do coronelismo durante a Primeira República,
a compreensão do autor é de que tal fenômeno é característico daquele período e estaria
firmado numa relação de compromisso entre os proprietários rurais em decadência e o
poder público ora fortalecido. Em outros termos, a necessidade desse compromisso ocorre a
partir da “superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura
econômica e social inadequada”14.
Sob a perspectiva trabalhada pelo autor, o fenômeno do coronelismo não é uma
mera reprodução do poder privado dos grandes senhores de terra do Brasil colonial e
imperial, e teria ocorrido num momento de decadência política e econômica por parte
desses proprietários rurais; ou seja, reflete uma estrutura agrária praticamente semifeudal,
11
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1997.
12
Sobre esta obra é importante ressaltar a extensa resenha apresentada por Bolívar Lamounier, em livro
organizado por MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. 4ª Ed. São Paulo:
editora Senac São Paulo, 2004, pp. 273-292.
13
Victor Nunes Leal diplomou-se em Direito em 1936. Sua obra Coronelismo, enxada e voto é fruto de uma
tese universitária para provimento da cadeira de política da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade
do Brasil em 1948.
14
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1997, p. 40.
19
presente nos entrincheirados municípios do interior ainda conservadores de remanescências
desse poder privado que convive lado a lado com um sistema representativo de base ampla.
Para o autor, com a Proclamação da República e, logo após, a elaboração da
primeira constituição, processaram-se algumas significativas mudanças que, de certo modo,
ajudaram a produzir o fenômeno do coronelismo. Uma delas referente à ampliação do
direito de sufrágio, o que haveria aumentado decisivamente a participação de cidadãos
ativos no processo eleitoral, principalmente de trabalhadores rurais ignorantes e
despreparados que compõem a maior parte dos eleitores da República. Quanto a esse
aspecto, observa o autor:
Observa Victor Nunes Leal ser este o ponto da debilidade do estado levando-o a
depender do apoio dos coronéis, remanescentes do poder privado do Brasil colonial e
imperial, na condução desses eleitores. Outra mudança diz respeito à eletividade nos
estados e municípios: os governos estaduais deixam de ser indicados pelo governo central,
tornando-se inteiramente eletivos, enquanto a eletividade dos municípios era diretamente
dependente das determinações oligárquicas estaduais16, o que contribuiu para a montagem
de poderosa máquina eleitoral nessas antigas províncias em detrimento da autonomia
municipal.
Máquina eleitoral oriunda das relações estabelecidas entre as oligarquias estaduais,
que passaram a ter o controle administrativo e político em ressonância com o governo
central que não interferia nesta autonomia em troca do apoio político a nível federal. E os
municípios, abrigo dos eleitores, estariam agora sob a tutela dos estados. Tamanha
15
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1997, pp. 278-279.
16
Com a Proclamação da República intensifica-se a luta dos Estados por sua autonomia em relação ao
governo central. Além disso, segundo o art. 68 da Constituição de 1891, ficou sendo de responsabilidade de
cada estado legislar sobre seus municípios. Antes, porém, o Decreto n° 511, de 23 de junho de 1890,
nomeado de Regulamento Alvim, subordinava a política municipal ao governo do estadual.
20
engrenagem ficou conhecida como “política dos governadores”17. Segundo Victor Leal, a
essência da relação entre os chefes locais e a oligarquia estadual consiste no apoio por parte
daqueles aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais, e por parte dos
estados “carta branca” aos chefes locais governistas em todos os assuntos relativos ao
município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar provenientes de sua
clientela. Podemos afirmar ser a partir desse cenário que se assentam as bases do
coronelismo, segundo o entender de Victor Nunes Leal.
Sobre as relações estabelecidas entre o coronel e sua clientela, o referido autor
afirma que tais relações eram advindas da liderança e do poder do coronel. Poder e
liderança provenientes de sua condição de grande proprietário rural. Dessa forma, a
população – essencialmente rural e desprovida de meios econômicos e de informações –
recorria ao coronel em momentos de extrema pobreza, visualizando, na figura do patrão,
um benfeitor.
Vitor Leal afirma que a estrutura do coronelismo teria começado a ruir a partir de 1930
com as várias mudanças no campo da economia brasileira que, a tal altura, já não é
considerada estritamente rural tendo em vista a expansão de uma produção industrial
nacional. Essa indústria nascente, concentrada principalmente no estado de São Paulo, de
certo modo passa a dominar o espaço econômico antes pertencente aos produtores agrícolas
no Brasil.
Victor Nunes Leal ainda analisa outras mudanças por que passava o Brasil, capazes de
alterar o sistema coronelista. Na emergência dessas novas mudanças, o autor vislumbra
uma vitoriosa revolução em 193018. Para ele, a Revolução de 30 foi significativa na medida
em que substituiu por um grupo político liberal e progressista – uma vez que o mesmo
observa a constituição de uma ordem burguesa – as atrasadas forças políticas ligadas à
estrutura agrária e conservadora. Posteriormente, a constituição de 1946 atinge a estrutura
do coronelismo quando o Brasil sofre um processo de redemocratização política, onde
podemos constatar, entre outras mudanças, o aparecimento dos partidos políticos.
17
A política dos governadores foi firmada durante o governo de Campos Sales (1898-1902).
18
Entendemos a Revolução de 1930 como uma coalizão de forças políticas que se organizam contra a
candidatura à presidência da República de Júlio Preste. É nesse momento que um representante da Aliança
Liberal, Getúlio Vargas, assume o Governo Provisório.
21
As conclusões do autor sobre a desestruturação do fenômeno do coronelismo
prosseguem ao afirmar que o crescimento industrial do comércio e, conseqüentemente, das
cidades entre 1930 e 1940 favorecem à ampliação de um eleitorado urbano consciente e
envolvido com as questões eleitorais. Acrescenta a isso o processo de expansão dos meios
de comunicação, como jornais escritos, que já possibilitavam a essas populações urbanas o
acesso às mais diversas informações. Aponta, ainda, que a própria população rural nesse
período mantém um maior contato com a sede do município valendo-se do uso já bastante
generalizado do transporte rodoviário.
Para Victor Nunes Leal, todos esses elementos são corroboradores do processo de
desestruturação do sistema coronelístico. Ao mesmo tempo, esclarece que os avanços
ocorridos no Brasil – entre os quais as mudanças do mercado internacional, o crescimento
das cidades, a expansão das indústrias e do comércio, o desenvolvimento dos transportes e
das comunicações – são insuficientes para transpor tal sistema. Sendo, para tanto, preciso
alterar a estrutura agrária vigente que ainda apresenta resquícios de um poder privado do
Brasil colonial e imperial. É também necessário transformar o regime republicano brasileiro
que muito tem se utilizado dessa estrutura para garantir a perpetuação das classes
dominantes no comando do país, permitindo a perpetuação dessa arcaica política
coronelística. Transformações cuja importância Graciliano Ramos, de certa maneira, já
salientava, conforme vimos numa de suas crônica de 1915, publicada no Jornal de Alagoas.
Com semelhante sentimento crítico àquele observado na crônica de Graciliano Ramos,
Victor Nunes Leal, em 1949, afirma que “ou legalizemos o coronelismo, ou procuraremos
criar condições sociais diferentes daquelas que o geram e alimentam”19.
Ora, como pontuamos anteriormente, as obras existentes a cerca do coronelismo
apresentam diferentes visões e análises. Enquanto Victor Nunes Leal o define como
compromisso estabelecido entre o poder dos proprietários rurais em decadência –
reminiscência do poder privado nos tempos do Império – e o poder público agora
fortalecido com a República, o sociólogo e historiador Raymundo Faoro, em sua obra Os
donos do poder20, apresenta uma outra compreensão:
19
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1997, p. 274.
20
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001. Esta obra foi
publicada inicialmente em 1958 e é reconhecida como um clássico estudo sobre o Brasil. O autor traça um
22
O fenômeno do coronelismo não é novo. Nova será sua coloração
estadualista e sua emancipação no agrarismo republicano, mais liberto
das peias e das dependências econômicas do patrimonialismo central do
Império21.
grande panorama sobre a história do Brasil compreendendo aspectos históricos, sociológicos e jurídicos desde
o período colonial passado pela a chamada Revolução de 1930 até 1937.
21
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 699.
23
Faoro observa a existência de outras categorias que ocupam a posição de coronel, “como o
coronel advogado, o coronel comerciante, o coronel médico, o coronel padre”22. O coronel
é, antes de tudo, alguém de influência econômica; não, necessariamente, um grande
proprietário de terra. Nesse sentido, “o coronel não manda porque tem riqueza, mas manda
porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito”23. Pacto em que, em todas
essas categorias, a “investidura coronelesca” será legitimada e partirá, essencialmente, dos
compromissos assumidos com o governo estadual. Logo, esse poder não se traduz numa
espécie de “reminiscência do poder privado” dos proprietários rurais, como pensa Victor
Nunes Leal. Segundo Faoro, é o coronel que recebe ou conquista poderes, seja de origem
central durante o Império ou de origem estadual com a República.
Semelhantemente a Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro apresenta uma série de
transformações por que teria passado o Brasil desde a década de 1920, capazes de
comprometer as relações dos coronéis com os governos estaduais. O autor pontua vários
aspectos que teriam começado a minar as práticas coronelísticas. Dentre outros, o
crescimento das cidades transformando-as, aos poucos, em centros comerciais, e o
surgimento e organização do proletariado com o incremento de alguns setores da indústria
nacional, ainda durante a década de 1920. Este novo cenário acaba por interferir no poder
coronelista tornando-o, pouco a pouco, inviável em relação ao poder estadual e central.
Essa inviabilidade deve-se também ao surgimento de agentes do governo cada vez mais
presentes em locais de atuação desses coronéis, assim como à impessoalidade das ordens
legais e instituições governamentais ora fortalecidas. Em outros termos, o autor defende
que o compromisso firmado entre os coronéis e os estados torna-se, em certo momento,
obsoleto, isso porque a constante presença do Estado garante um maior contato com o
povo, contato antes realizado primordialmente pelo coronel.
Acentuando essas mudanças engendradas já a partir da década de 1920, esclarece
Raymundo Faoro que:
22
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 710.
23
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 700.
24
situações, debatendo-se em longa agonia, com a sobra de relíquias do
passado, depois de 1945: Chico Heráclio, Chico Romão, Veremundo
Soares24.
Diante do cenário acima traçado, o coronel não mais é visto representando o voto do
eleitorado anônimo antes subordinado a sua vontade. Ao mesmo tempo, rompe-se o
mecanismo em que tais coronéis, de alguma maneira, exerciam influência nos governos
estaduais e estes, sobre o chefe federal. Segundo Faoro, destituídos do poder pessoal
delegado pelo estado e necessitando de sua inserção nos partidos de quadros, em geral de
organizações burocráticas, principalmente depois de 1945 com a Redemocratização do
Brasil, coronéis como Francisco Heráclio, Chico Romão e Veremundo Soares, cientes de
suas limitações políticas, tornar-se-iam muito mais dependentes do governo do estado.
Outra obra de relevo tratando desta temática é O mandonismo local na vida política
brasileira, da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. Podemos afirmar que,
essencialmente, estrutura um painel sobre a vida política do período colonial a 1930. Ao
longo deste período observa a existência de um elemento constante na política do Brasil: o
mandonismo local. Permanência proveniente da continuidade de uma estrutura social
baseada na propriedade rural e numa extensa parentela e clientela25.
Esclarece a autora que o mandonismo local foi estruturado durante o período
colonial quando da formação das Câmaras Municipais, fonte principal do poder político e
econômico no Brasil. No Império, mesmo com a presença do poder central instalado no Rio
de Janeiro, e da existência de uma constituição e do poder moderador, as decisões políticas
de fato continuavam sendo projetadas pelos coronéis ou mandões locais. Para a Primeira
República, “o poder central principal a se desvencilhar do coronelismo e a constituir uma
força independente... chega mesmo a um equilíbrio de forças”26.
E sugere que, com os acontecimentos revolucionários de 1930,
24
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 730.
25
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976.
26
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 33.
25
Embora não podendo prescindir ainda do apoio dos coronéis, não é
mais o governo que acaba se acomodando com estes, mas são estes que
muitas vezes, se vêem coagidos a compor com o governo, o qual mostra
ter assim adquirido consistência27.
Com isso, procura expressar que o governo, após 1930, teria adquirido certa
preponderância sobre o mandonismo local dos coronéis. O que não significa seu
desaparecimento da vida política nacional. Para Maria Isaura, o mandonismo continua a se
manter no cenário político do Brasil, mesmo depois do fortalecimento do poder central a
partir da Revolução de 1930.
A autora destaca as lutas políticas engendradas nos municípios, espaço onde a
solidariedade familiar assume importante papel na estruturação do mandonismo local,
“acabando com o mito de que um grupinho de figurões, na Corte ou na Capital Federal,
comandava as pugnas partidárias, puxando de longe os cordõezinhos que moviam os
coronéis do interior”28. Para a autora, seja no período colonial, imperial ou durante a
Primeira República, o desenvolvimento interno do Brasil processou-se por constantes
acomodações com o mandonismo municipal; acomodações que, segundo ela ainda figuram
no país na década de 1970, quando escreveu este livro.
Para Maria Isaura, o coronelismo seria uma forma especifica de poder político da
Primeira República29, mas que, diante da continuidade de algumas características
socioeconômicas e políticas em certas regiões do Brasil, tende a subsistir em outros
momentos da República30; coronelismo cuja origem remonta ao período imperial. Afirma
que, “apesar da passagem do Império à República, a estrutura econômica-política
27
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, pp. 33-34.
28
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 25.
29
Apesar de esclarecer que também entende o coronelismo como um fenômeno político que floresceu durante
a Primeira República, não visualizamos distinção entre o que denomina mandonismo e o que denomina
coronelismo. Deixa transparecer a autora uma total aproximação entre mandonismo e coronelismo. Podemos
afirmar que, ao fazer uso em sua escrita destes termos, os confunde, adquirindo assim o mesmo significado
como se fossem sinônimos.
30
Para a autora, em regiões onde se observa um processo de maior desenvolvimento econômico social e
político, como nas regiões Sul e Centro-Oeste, com destaque para o estado de São Paulo, o coronelismo
estaria fadado a desaparecer. Em regiões como Norte e Nordeste, tais transformações não aconteceram em sua
plenitude, o que de certa maneira possibilitou a permanência do coronelismo.
26
persistia, e com ela persistiam os coronéis”31. Esta permanência estrutural é verificada pela
autora quando da elaboração da Constituição do Brasil em 1891.
Outro aspecto considerado pela autora sobre a estruturação do coronelismo são “os
grupos de parentela”.
31
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 163.
32
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 163.
33
BLONDEL, Jean. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e
outros ensaios. São Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 165.
27
Um grande coronel era também, em geral, o chefe de extensa
parentela, de que ocupava por assim dizer o ápice. Esta era formada por
um conjunto de indivíduos reunidos entre si por laços de parentesco ou
carnal, ou espiritual (compadrio), ou de aliança (uniões matrimonias)34.
Acrescenta a autora que a riqueza dos mandões poderá também ser oriunda da posse
de outros bens de fortuna, “não raro, no Brasil, o poder decorrente de outros bens de
fortuna superou o poder trazido exclusivamente pela posse da terra”36.
A autora também estabelece, assim como outros estudiosos, alguns fatores de
decadência do coronelismo/mandonismo. Fatores que interferiram nas relações com a
parentela e clientela política, como o crescimento urbano e demográfico e a
industrialização. O poder desses mandões tende a passar por profundas alterações a partir
da segunda metade do século XIX e ao longo da Primeira República, sobretudo em regiões
economicamente fortes, enriquecidas pelo surto do café, sobressaindo-se neste processo o
estado de São Paulo. Em “regiões de menor efervescência econômica, a antiga estrutura
coronelista tendia a se preservar”37.
Segundo a autora, tais transformações ocorreram paulatinamente e ainda estariam –
levando em consideração que a publicação de sua obra se dá durante a década de 1970 – se
processando, e são mudanças pautadas no ritmo da riqueza do país. E, nestas regiões, foram
34
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 179.
35
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 191.
36
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 191.
37
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 209.
28
se desenvolvendo importantes centros urbanos associados a um rápido crescimento
demográfico. Assim, para Maria Isaura, impulsionadas por estas alterações, as cidades
pouco a pouco, se tornam estruturas complexas. Antigas instituições são ampliadas, outras
foram criadas para atender às novas demandas, desvinculando-se gradativamente do
mandonismo local. Dessa maneira:
38
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 203.
39
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, pp. 207-208.
40
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 29.
41
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, p. 29.
29
Um outro autor, o historiador Iberê Dantas, também pensou a estruturação
fenomenal do coronelismo por ocasião da Primeira República, estendendo-se até o período
pós-1964. Em sua obra Coronelismo e dominação42 destaca, inicialmente, algumas
mutações que o coronelismo no Brasil teria sofrido ao longo deste período. Num segundo
momento, faz um estudo de caso buscando compreender as disputas políticas ocorridas no
município de Itabaiana, no estado de Sergipe, de 1946 a 1986, chamando a atenção para as
especificidades que permeiam este processo e suas correlações com o coronelismo.
Nossa análise dará ênfase à primeira parte deste estudo em que o autor distingue três
grandes fases do coronelismo no Brasil. A primeira destas fases correspondendo aos anos
de 1900 a 1930, a segunda estendendo-se de 1930 a 1945, e já a terceira abrangendo os
anos de 1945 a 1964. Embora não especifique como uma quarta fase, destaca ainda a
presença do coronelismo após o golpe civil e militar de 1964.
Este historiador afirma que as transformações impostas pela penetração cada vez
mais acentuada do capitalismo no campo, gerando novas formas de produção, tem se
tornado para os estudiosos um desafio, tendo em vista a necessidade de construir outras
explicações diante de uma nova realidade social. Acrescenta que, muitas vezes,
Para o autor, um termo empregado para qualificar uma nova realidade social é o
coronelismo. Este termo tem sido utilizado em situações onde já se observa o predomínio
de relações capitalistas no campo. Nesse sentido, um conjunto de novas práticas sociais são
associadas abruptamente ao coronelismo. A historiografia, segundo Iberê, tem consagrado
42
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987.
43
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 13.
30
o termo coronelismo como capaz de oferecer uma compreensão totalizante diante de novas
e complexas relações moldadas na sociedade em momentos históricos distintos44.
Por coronelismo, entende:
44
O professor da Universidade Federal de Goiás, Francisco Itami Campos, em 1983 publica Coronelismo em
Goiás. Nesta obra, procura abranger todo o período da República Velha no estado de Goiás, analisando a
presença do coronelismo em um estado não desenvolvido. Ao contrário de Iberê Dantas, afirma aquele autor
logo na sua introdução o seguinte argumento: “coronelismo é um brasileirismo, no dizer de Basílio de
Magalhães. Contudo, o fenômeno político que expressa a dominação econômico-político e social de uma
comunidade por um chefe político não é certamente, exclusivo do nosso país. Com denominação diferente, o
fenômeno é encontrado em vários países”. CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goiás. Goiana:
editora da Universidade Federal de Goiás, 1987, p. 13.
45
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 18.
46
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 15.
47
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 15.
31
deslocado dessa historiografia quando aborda, em sua obra, a terceira dimensão que
fundamenta o coronelismo, a dimensão política. Neste aspecto, discorda de autores como
Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre outros, os
quais observam o papel do voto como algo invariável e intrínseco ao coronelismo. A
posição desses autores, para Iberê, tende a “visualizar o coronelismo como um fenômeno
imutável em relação às modificações que se vão operando no Estado e na Sociedade” 48.
Contrário a este posicionamento, Iberê Dantas analisa – e esta é a tese fundamental
que permeia a primeira parte de seu trabalho – “que o voto nem sempre se constituiu na
principal fonte de poder do coronel”49. Defende que durante a Primeira República a fonte
de poder dos coronéis estava assentada no controle da coerção, fazendo uso de suas milícias
particulares até 1930.
48
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 14.
49
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 14.
50
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 23.
32
profundamente o coronelismo, mas em 1932 o mesmo apresentava-se então reestruturado,
adaptando-se às novas imposições estruturais provenientes da Revolução de Trinta51.
51
“Ao nosso ver o que falta à bibliografia que vê o coronelismo fundado no voto é o reconhecimento do que é
permanente e do que é mutável, é distinguir entre seus traços, os invariantes e aqueles que se transformam,
acompanhando as mudanças na composição das que controlam a Sociedade Política”. DANTAS, Iberê.
Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC / Programa Editorial,
1987, p. 29.
52
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, pp. 29-30.
53
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 30.
33
Depois de 1945 o coronelismo entra numa outra fase. E até 1964 sua principal fonte
de poder encontra-se no controle do voto.
54
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 32.
55
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, pp. 32-33.
34
Os governadores, nomeados pelo governo federal, continuavam
valorizando as lideranças detentoras de currais eleitorais, atendendo às
suas demandas. Mas os compromissos são mais frouxos com as
lideranças do interior56.
Essa frouxidão das relações, apontada por Iberê, entre o governo estadual e os
coronéis após o golpe civil e militar de 1964 está associada a dois processos de
transformação. Em outras palavras, a centralização administrativa do regime proporcionou
uma “ampliação dos aparelhos públicos”, como na área da saúde. Ao mesmo tempo, os
estados criaram “mecanismos de acompanhamento das administrações municipais”57;
como exemplo, cita o próprio Tribunal de Contas. Estas duas mudanças engendradas pela
centralização administrativa após 1964 teria contribuído “para diluir a autoridade pessoal
tradicional do coronel numa máquina burocrática”58.
Inseridos nestas transformações e fazendo uso constante dos recursos do estado, tais
coronéis vão se convertendo em modernos chefes políticos, ao passo em que perdem, pouco
a pouco, o “estatuto de coronel”. Já no âmbito econômico-social, observa o autor, a
penetração do capitalismo, cada vez mais intensa no campo, é também um forte fator que
contribui para minar o poder dos coronéis.
Diante do quadro acima Iberê Dantas encerra suas análises sobre esta primeira parte
da obra Coronelismo e dominação afirmando que os coronéis que ainda teimam para
sobreviver
56
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 35.
57
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 35.
58
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 35.
59
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC /
Programa Editorial, 1987, p. 36.
35
Noutra perspectiva, o estudo sociológico publicado em 1963 por Marcos Vinicios
Vilaça e Roberto Cavalcante de Albuquerque apresenta na obra Coronel, coronéis: apogeu
e declínio da coronelismo no Nordeste a atuação de quatro coronéis – como são nomeados
os chefes políticos Francisco Heráclio do Rêgo, de Limoeiro; Chico Romão, de Serrita;
Veremundo Soares, de Salgueiro; e José Abílio, de Bom Conselho60. Nessa obra são
analisadas algumas particularidades e semelhanças da atuação destes, no período
compreendido entre os anos de 1930 e 1960.
No entanto, para explicar a presença desses coronéis nas áreas do agreste e do sertão
de Pernambuco, iniciam fazendo uma contextualização histórica sobre a forma de ocupação
do Nordeste pelo colonizador português. Colonização iniciada no litoral no século XVI e
que se expandiu para o agreste e, posteriormente, para o sertão no final do século XVII e
primeira metade do século XVIII. Penetração impulsionada por vários fatores: entre outros,
expansão da pecuária para abastecer o litoral açucareiro como força motriz; e o caráter
pioneiro, desbravador do colonizador, não raro já mestiçado, para conquistar o
desconhecido em busca de novas riquezas.
Teria, assim, formado no interior, fruto dessa penetração, uma camada de
proprietários de terra, em sua maioria descendente da aristocracia açucareira. Sem ostentar
grandes riquezas, e pouco letrados, esses coronéis dominaram a paisagem interior. Em
torno de sua fazenda formavam-se pequenos núcleos urbanos onde podiam exercer, sem
embaraços, seu poder de mando. Tanto seu poder quanto sua bravura são herdados de seus
ancestrais desbravadores, e reforçados ante a necessidade de sobrevivência numa terra
distante da “civilização”, ou seja, do litoral.
Segundo os autores, como conseqüência de tal ocupação desenvolve-se, nesta
sociedade, o culto à valentia e ao machismo. Nesse sentido, “o coronel, como chefe de um
sistema social assim caracterizado, deve ser homem macho. Seu machismo e valentia
quase sempre fazem fama”61. Assim sendo, a figura do coronel do Nordeste, aliada à de
chefe político, caracteriza-se por sua bravura e destreza. O coronel é, antes de tudo, um
homem temido. Neste período, o exercício de mando dos coronéis interioranos estava
60
Francisco Heráclio e José Abílio tinham suas áreas de influência no Agreste de Pernambuco, enquanto
Chico Ramão e Veremundo Soares atuavam politicamente no Sertão do estado.
61
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, p. 58.
36
assentado e reconhecido pela tradição ou mesmo pela valentia herdada de sua
ancestralidade. E, diante da ausência do estado e de mecanismos de integração dessa
sociedade “matuta” como estradas e meios de comunicação entre outros, possibilitava-lhes
rígido controle social e político em suas áreas de atuação.
Após contextualização histórica apontando as origens dos coronéis, os autores
passam a descrever aqueles quatro chefes políticos relativamente ao que compreende as
décadas de 1930 a 1960. Observam, ao longo deste período, seu apogeu e declínio. Ao
mesmo tempo, analisam que tais coronéis teriam sido uma espécie de sobreviventes e
vítimas de um outro sistema socioeconômico e político62.
62
Afirma Maria Isaura que “Marcos Vinicios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque descrevem as
atividades de quatros velhos coronéis que ainda existiam no interior de Pernambuco; para os dois autores,
eram estes uma espécie de testemunhas de uma ordem anterior, que conseguia ainda se manter politicamente,
embora ameaçada pelo progresso”. Ver QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida
política brasileira e outros ensaios. São Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, pp. 211-212.
63
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, pp. 41-46.
37
Os autores prosseguem a relatar uma série de características emanadas deste
personagem que, “astucioso” como ele só, apropria-se dos vários mecanismos de
comunicação. Assim, constantemente faz uso da imprensa, recorrendo a vários jornais da
capital e do interior, tornando-se conhecido no cenário urbano. Ao mesmo tempo e não
poucas vezes, para alcançar as camadas mais populares e rurais recorria aos versos, feitos
para serem distribuídos e cantados nas feiras pelos poetas populares. Outras publicações
como os boletins, uma espécie de panfleto geralmente contendo sua fotografia e assinatura,
eram intensamente utilizados. Como já pontuamos acima, ao fazer uso desses novos
instrumentos de propagação, defendem os autores, Francisco Heráclio, assim como os
demais coronéis, “trai a sua ordem: é instrumento dialético do próprio acaso”64.
Novas abordagens têm sido formuladas recentemente. Durante a década de 1990, a
cientista social Maria Auxiliadora Lemenhe publica sua tese de doutorado Família tradição
e poder: o(caso) dos coronéis65. A autora analisa a ascensão e declínio político da família
Bezerra de Meneses no estado do Ceará, mais precisamente dos irmãos gêmeos Humberto e
Adauto Bezerra – este último apontado como principal líder da política estadual66 – entre as
décadas 1960 e 1980.
Esclarece no primeiro capítulo que, com diferentes perspectivas, autores como
Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Maria Isaura de Queiroz, entre outros, tratam da
relação de poder ao nível local e/ou municipal no Brasil. E, para estes, “o exercício pessoal
do poder encontra terreno para florescer numa ordem econômica na qual as atividades
produtivas de base agrária são dominantes, e configuradas como não capitalistas”67.
Demonstra que, na perspectiva dos referidos autores, alterações neste cenário como
crescimento urbano e industrial, mudanças impulsionadas, sobretudo a partir de 1930, eram
capazes de minar as bases de sustentação do poder tradicional aos níveis local e estadual.
64
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, pp. 44-45.
65
LEMENHE, Mária Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995.
66
É importante ressaltar que Maria Auxiliadora Lemenhe entende que os irmãos Bezerra, sobretudo, Adauto
Bezerra, são integrantes de uma oligarquia estadual, tendo em vista sua atuação política à frente do executivo
estadual. Ao mesmo tempo, destacam-se como grandes empresários nacionais. Sobre Adauto Bezerra,
esclarece a autora que em 1958 quando é eleito deputado estadual, é reformado com a patente de major pelo
Exército. Porém, Adauto se denomina coronel, e como tal, é reconhecido socialmente.
67
LEMENHE, Mária Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 26.
38
Afirma a autora que, à luz de tais argumentos, a longa sobrevivência no Nordeste e no
Ceará do domínio político fundado nas relações pessoais poderia ser explicada pelo retardo
com que o estado do Ceará teria ingressado economicamente no processo de
desenvolvimento industrial brasileiro, principalmente depois de 1930.
68
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 27.
69
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 30.
39
de outros estados, os programas de incentivos fiscais para expansão da
pecuária e da agroindústria possibilitaram os meios para a compra de
terras por parte dos setores locais que se modernizaram nas atividades
industriais e financeiras. De outra parte, setores agrários tradicionais,
preservando-se como latifundiários se tornam industriais70.
70
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 31.
71
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 36.
72
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, p. 36.
40
longevidade pode ser compreendida como estando fundada na acumulação de diferentes
formas de capital: simbólico, político e econômico”73.
73
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições, 1995, pp. 229-230.
41
Capítulo II
“Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”
74
Ver José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora
da UFMG, 1998. É importante ressaltar que esta obra é composta de vários artigos de autoria de José Murilo
de Carvalho. No entanto, daremos ênfase, nesta discussão, ao artigo intitulado Mandonismo, coronelismo,
clientelismo: uma discussão conceitual, pp. 130-153.
75
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, p. 130.
42
ressonância com o que pensou Leal em 1949, ano da publicação da referida obra, José
Murilo projeta o coronelismo como:
Para José Murilo, o fato político apontado por Victor Nunes Leal que deu origem ao
coronelismo foi o federalismo ocorrido em 1889 em substituição ao centralismo existente
no período imperial. Com a República surgiu um novo personagem político com amplos
poderes, o governador de Estado. Este chefe da política estadual passou a ser eleito pelas
máquinas dos partidos únicos estaduais, e em torno dele gravitavam as oligarquias locais,
destacando-se como seus maiores representantes os coronéis. O poder desses coronéis, na
República, foi consolidado como sistema político nacional no governo de Campos Sales,
em 1898, ao instituir a política dos governadores, uma vez que para Sales a política dos
estados era a que determinava a política a nível nacional77.
Já a conjuntura econômica definida por Victor Nunes Leal em sua obra
Coronelismo, enxada e voto é retomada por José Murilo para explicar uma das causas do
surgimento dos coronéis no Brasil. Com base em Victor Nunes Leal, José Murilo afirma
que a decadência econômica dos grandes proprietários rurais foi fator determinante na
formação do coronelismo como sistema político. Enfraquecidos economicamente em seus
domínios diante de seus dependentes e possíveis rivais, a manutenção do poder de tais
coronéis passou a depender do apoio que recebiam dos estados, ou seja, dos governadores,
76
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, p.131.
77
A política dos governadores articulada durante o governo de Campos Sales na Presidência da República
tinha como objetivo “garantir, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais,
sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o de delegado de polícia até a professora
primária. O coronel hipotecava seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os
governadores dão seu apoio ao presidente da república em troca de reconhecimento por parte deste de seu
domínio”. Ver José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 1998, p. 132.
43
que ampliavam seus poderes na proporção em que diminuía o poder dos proprietários
rurais. Segundo José Murilo,
Ainda no que diz respeito ao tempo histórico do coronelismo, o autor afirma que tal
fenômeno não pode ser visualizado além dos limites temporais da Primeira República. Em
outros termos, afirma haver o coronelismo surgido com a República e sua extinção
ocorrido, simbolicamente, no momento das prisões dos maiores coronéis da Bahia, em
1930. E, definitivamente, estaria o coronelismo enterrado quando da implantação do Estado
Novo, em 1937.
Num segundo momento, o autor afirma ser de extrema importância também
conceituar o mandonismo – termo muitas vezes empregado inadequadamente por certos
autores e aceito como sinônimo de coronelismo. Ao contrário do coronelismo, o
mandonismo não se apresenta como um sistema, e sim como uma dentre outras
características que povoam a política tradicional. Característica que, na visão do autor,
sempre fez parte da história do Brasil, desde o início do período colonial, conseguindo,
inclusive, sobreviver na atualidade em regiões isoladas, ou seja, no interior do Brasil.
Sobrevivência já fadada ao desaparecimento em sua totalidade, tendo em vista a ampliação
dos direitos civis e políticos a todos os cidadãos. Nesse sentido, o mandão, ou o coronel, é
aquele indivíduo que:
78
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, p. 132.
44
tradicional... A história do mandonismo confunde-se com a história da
formação da cidadania, desaparecendo um ao ser expulso pela outra79.
Aqui o autor também não deixa de fazer referências a Victor Nunes Leal. Na visão
deste, o coronelismo enquanto sistema existiu no Brasil num período específico do
mandonismo, ou seja, enquanto o mandonismo é uma característica que se faz presente ao
longo da história do Brasil, o coronelismo seria característico de um determinado período,
momento em que os grandes proprietários rurais ou os mandões começam a perder força
econômica e, conseqüentemente, força política, e passam a depender de seus estados ora
fortalecidos a eles sempre recorrendo. Para José Murilo, ainda em ressonância com a visão
de Leal, o mandonismo, assim como o clientelismo, são características coronelescas.
Antes de conceituar o clientelismo também como característica do coronelismo, o
autor faz a constatação de que grande parte da literatura brasileira, mesmo aquela que se
espelha em Victor Nunes Leal, conceitua coronelismo e mandonismo enquanto sinônimos.
Afirma José Murilo de Carvalho que autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Edgard
Carone, Marcos Vinicios Vilaça, Eul-Soo Pang, tomam estes conceitos como sinônimos80.
Essa aproximação é, para José Murilo, extremamente negativa. Porém, afirma que estes
autores têm oferecido grandes contribuições para esclarecimento do fenômeno do
mandonismo. São contribuições que quebram toda uma visão simplista do coronel
enquanto personagem isolado em sua vasta extensão de terra, senhor soberano de coisas e
gentes. Passa a emergir desses novos estudos um quadro mais complexo onde é possível
serem observados vários tipos de coronéis exercendo outras atividades, sejam de
comerciantes, médicos ou padres. Ao mesmo tempo, tais estudos passaram a rever o
suposto isolamento defendido por alguns autores, a exemplo dessa revisão estão as
pesquisas efetuadas na Chapada Diamantina, em que grande parte daqueles coronéis
atuavam no comércio de exportação e estavam envolvidos na política estadual e federal.
79
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, p. 133.
80
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa Interpretação sociológica. IN FAUTO, B. (Org.).
História geral da civilização brasileira. São Paulo: editora Difel, 1975. Tomo III. V. 1. pp. 155-190;
CARONE, Edgard. Coronelismo. Definição histórica e bibliografia. Revista de Administração de Empresa, v.
11, n. 03, pp. 85-89, 1971; VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel,
coronéis. Rio de Janeiro: editora Tempo Brasileiro, 1965; PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquia, 1889-
1943. A Bahia na Primeira República. Rio de Janeiro: editora Civilização brasileira, 1979.
45
Ao mesmo tempo, outros pesquisadores têm visualizado um coronelismo urbano,
como Fábio Wanderley Reis; ou mesmo um coronelismo sem coronéis, pensado por Geert
Banck81. Em todos estes casos, para José Murilo, tais incoerências produzem uma
amplitude e uma frouxidão dos conceitos capaz de eliminar seu valor heurístico.
Em relação ao clientelismo, relata José Murilo de Carvalho, seu conceito tem sido
operacionalizado constantemente por autores estrangeiros que se dedicam ao Brasil, sendo,
inúmeras vezes, confundido com o de coronelismo. Esclarece que, costumeiramente, é
empregado de modo frouxo ou inconsistente por vários autores. Nesse sentido, uma das
perspectivas de que a literatura estrangeira tem se valido para conceituar o clientelismo, é
que o mesmo seria:
José Murilo de Carvalho chama a atenção para alguns aspectos que diferenciam o
coronelismo do clientelismo. Inicialmente afirma não existirem dúvidas de que o
coronelismo – tratado aqui como algo sistêmico – mantém relações de contatos e de trocas
de natureza clientelística. Mas que isso não significa ser possível aproximar
conceitualmente coronelismo e clientelismo. Para este, o clientelismo é distinto do
coronelismo justamente por ser um fenômeno de proporções muito mais amplas que o
coronelismo. Em termos de amplitude de uso, o clientelismo assemelha-se ao mandonismo.
Na visão de Leal, descrita anteriormente e da qual comunga José Murilo, o clientelismo,
assim como o mandonismo, é uma característica do coronelismo. Coronelismo que se
processou no Brasil durante a Primeira República.
81
REIS, Fábio Wanderley. Participación, movilización e influencia política: “neo-coronelismo” em Brasil.
Revista Latinoamericana de Ciência Política, v. 2, n. 1, pp. 03-32, 1971; BANCK, Geert A. The dynamics of
the local political system in the State of Espírito Santo, Brasil. Boletín de Estúdios Latinoamericanos y Del
caribe, n. 17, pp. 69-77, 1974.
82
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, p. 134.
46
O autor vai um pouco mais além em suas preocupações e faz um alerta aos
estudiosos que se propõem a pesquisar e estudar a política local e o coronelismo de um
modo geral. Alerta principalmente àqueles que encontram o fenômeno do coronelismo em
fase recente da história do Brasil e em regiões urbanas. Para ele, tais estudiosos estão
falando apenas de clientelismo, pois:
83
José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: editora da
UFMG, 1998, pp. 134-135.
47
Capítulo III
Diálogo entre a historiografia e a documentação: a problemática do
objeto
48
dos dados do problema; focalização da análise sobre os elementos
suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento das relações que permitem
essa solução. E, portanto, indiferença para com a obrigação de tudo dizer,
mesmo para satisfazer o júri dos especialistas convocados84.
84
FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. (Ditos e escritos, vol. IV). Rio de Janeiro: editora Forense
Universitária, 2003, p. 326.
49
Parte 2
Mecanismos de construção de um líder político
50
Capítulo I
Francisco Heráclio do Rêgo e sua inserção política
85
É no Jornal Folha da Manhã de propriedade de Pessoa de Queiroz - imprensa vinculada aos interesses
políticos do PSD - que Francisco Heráclio do Rêgo é apresentado com maior intensidade, não é por acaso que
este periódico é de longe o mais trabalhado em nossa escrita. É importante ressaltar que sua inserção em
inúmeros outros jornais, de apoio politicamente ou não, é bastante significativa.
86
Ver Chico Heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém. Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18
de julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE. Ver Política Pernambucana.
Revista Manchete, N° 108. Rio de Janeiro, 15 de maio de 1954, p. 17. Biblioteca da Pós-Graduação em
História da UFPE. Ver também Começou a decadência do coronelismo sertanejo: o crepúsculo dos
semideuses. Revista Manchete, N° 355. Rio de Janeiro, 07 de fevereiro de 1959. Biblioteca da Pós-Graduação
em História da UFPE. É importante ressaltar que a revista Manchete é de circulação nacional, e estava
presente, sobretudo, no espaço urbano onde se situava a maior parte do seu público leitor.
87
O Partido Social Democrático foi criado em nível nacional, em 1945, por políticos ligados ao presidente da
República, Getúlio Vargas. Contando com os interventores estaduais, o que facilitou sua estruturação e
expansão, tornou-se um dos maiores partidos após a redemocratização do Brasil. Neste mesmo ano observa-
se, na maioria das cidades do Brasil, assim como em Limoeiro, a presença do Diretório Municipal do PSD.
Ver HIPPOLITO, Lucia. De raposas e reformista: o PSD e a experiência democrática brasileira, 1945-64.
Rio de Janeiro: editora Paz e Terra, 1985.
51
PSD ocorridas ao longo de 1953. Estas disputas, como veremos, contribuem enormemente
para que inúmeras lideranças políticas em Pernambuco – a exemplo de Francisco Heráclio
do Rêgo, em Limoeiro – se desvinculassem do bloco majoritário do PSD e passassem a
compor um subgrupo dentro do PSD conhecido como dos pessedistas históricos.
A organização desses novos partidos a níveis estadual e nacional, como o PSD, PTB
e a UDN, se dá a partir de 1945 com o processo de transformação política conhecido como
a Redemocratização do Brasil. Em Pernambuco, estava à frente do Partido Social
Democrático Agamenon Magalhães, político que, durante o Estado Novo, atuou como
interventor no estado e como ministro da justiça de Vargas, em 1945. Com a nomeação de
Agamenon para o cargo de ministro da justiça, assume como interventor do Estado Etelvino
Lins, um dos responsáveis pela estruturação e condução do PSD em Pernambuco até
meados da década de 195088.
De significativas mudanças políticas a níveis estadual e nacional, é o período
compreendido entre os anos de 1945 a 1955 sobre o qual desenvolvemos estas análises
acerca de Francisco Heráclio. Algumas obras de memorialistas89 afirmam ter ele nascido de
família de grandes proprietários de terra, aos 05 dias do mês de outubro de 1885, sendo o
quinto dos nove filhos de dona Josefa Erundina e do coronel João Heráclio do Rêgo. Assim
como todos os seus irmãos, Francisco Heráclio nasceu e passou sua infância e parte da
juventude na fazenda do seu pai chamada Vertentes, naquele momento pertencente ao
município de Bom Jardim, mas hoje é um lugarejo que compõem o município de Surubim.
O filho de Francisco Heráclio, o escritor e político Reginaldo Heráclio em seu livro
Chico Heráclio - o último grande coronel, também Marcos Vinicios Vilaça em seu livro
Coronel, coronéis90 informam que Francisco Heráclio freqüentou a escola o suficiente para
efetuar, com certa desenvoltura, as quatro operações básicas da matemática. Segundo estes
autores, o contato de Francisco Heráclio com a escrita e a leitura teria sido desastroso,
sendo descrito como analfabeto. Haveria, pois, abandonado as séries iniciais quando
88
LAVAREDA, Antônio & SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto: luta política em Pernambuco. Recife:
editora Massangana, 1986. Ver também LINS, Etelvino. Um depoimento político, episódios e observações.
Rio de Janeiro: editora José Olympio, 1977.
89
Existem algumas obras literárias e memorialistas que tratam especificamente da atuação política deste
personagem, como O último grande coronel, escrita pelo político Reginaldo Heráclio, neto de Francisco
Heráclio.
90
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003.
52
enviado com seus irmãos a continuar os estudos em Recife, preferindo voltar ao convívio
familiar em Vertentes, onde passa a auxiliar seu pai na administração de várias fazendas e
se dedicar à agricultura e à pecuária, fazendo daí alguma fortuna. Em 1903, casa-se com
sua primeira esposa Maria Miguel, nesse período muda-se para uma fazenda próxima à
cidade de Limoeiro, mais precisamente às margens do rio Capibaribe, que corta a cidade,
onde irá residir até sua morte em 197491.
Francisco Heráclio é filho de João Heráclio do Rêgo, comumente nomeado de
coronel, pertencia aos quadros da Guarda Nacional como capitão92 e que, mesmo possuindo
extensas relações sociais, políticas e econômicas nos estados de Pernambuco e Paraíba, era
descrito como alguém que não militava ativamente na política, conforme era comum entre
os grandes proprietários de terra. Já Francisco Heráclio, passou a integrar o Partido Social
Democrático a partir de 1945. No entanto, sua inserção na política ocorre ainda durante a
década de 1920, como correligionário do Dr. Severino Pinheiro. Foi com o apoio deste líder
político que Francisco Heráclio é eleito prefeito naquele município, em 192293. Com a
morte do Dr. Severino Pinheiro, Francisco Heráclio é projetado como seu legítimo
sucessor.
A respeito da participação de Francisco Heráclio nas disputas políticas em
Pernambuco entre 1945 e 1955, é significativa a presença de inúmeros registros que versam
sobre esta atuação. Em seu conjunto, a documentação pesquisada revela diversos aspectos
das práticas políticas e possibilitam compreender como uma série de elementos presentes
nesta documentação é capaz de permitir a reconstrução do dizer e do fazer da política no
período. Para tanto, o caminho a percorrer não é outro senão elaborar minuciosa análise de
uma ampla documentação levantada ao longo da pesquisa. Sobre estes registros históricos
destacamos, inicialmente, alguns discursos que circulavam nos boletins94.
91
Arquivo Pessoal. Ver em anexo uma fotografia parcial, de agosto de 2005, da residência de Francisco
Heráclio. p. 175.
92
Ver RÊGO, André Heráclio do. Famille et pouvoir regional au Brésil: le coronelismo dans le Nordeste
1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006. Tivemos acesso a sua Carta Patente de Capitão do 4°
Esquadrão do 12° Corpo de Cavalaria de Quadros Nacionais da Comarca de Bom Jardim. Obtida no Palácio
do Governo do Estado de Pernambuco em 29 de maio de 1891. Carta Patente localizada no APEJE sob a ref.
R. Pat. 4 – Patentes Provinciais, Estaduais e Federais da Guarda Nacional. (R. B. – 2.2/29). R. Pat. 4/29 –
1890 – 1891.
93
Ver a Série Monografias Municipais, Limoeiro. Fundação de Informações para o Desenvolvimento de
Pernambuco/FIDEPE & Fundação de Desenvolvimento Municipal do Interior de Pernambuco/FIAM. P. 22.
94
Os boletins eram publicações em forma de panfletos distribuídos de modo avulso e/ou publicados nos
jornais do estado de Pernambuco.
53
Capítulo II
A produção dos boletins: uma estratégica política
95
HERÁCLIO, Reginaldo. Chico Heráclio – o último Coronel. Recife, 1979.
96
Encontramos parte desses boletins, ou panfletos como também são nomeados, publicados em alguns jornais
do estado de Pernambuco, como a Folha da Manhã, Diário da Noite, Jornal do Comércio, Diário de
Pernambuco entre outros. A utilização do termo boletim parece ter sido sugerida inicialmente pelo próprio
Francisco Heráclio, como atestam várias destas produções. No entanto, a imprensa de Pernambuco se apropria
do termo durante as décadas de 1940 a 1960.
97
NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Os panfletos políticos e esboço de uma esfera pública de Poder no
Brasil IN ABREU, Márcia & SCAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil: objetivos e práticas.
Campinas, SP: Mercado de Letra, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo, SP: Fapesp, 2005. pp. 399-411.
54
voz alta e participando de conversas e de discussões sobre os
acontecimentos políticos nas lojas e mesmo na praça pública98.
Homem que não hierarquiza em quase nada seus aliados... Trata aos
inimigos semelhantemente. Por isso, simples e modestos cabos eleitorais
adversários são atingidos dura e longamente nos seus boletins. Limoeiro
é terra onde se usa abundantemente dessas divulgações101.
98
NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Os panfletos políticos e esboço de uma esfera pública de Poder no
Brasil IN ABREU, Márcia & SCAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil: objetivos e práticas.
Campinas, SP: Mercado de Letra, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo, SP: Fapesp, 2005.P. 405.
99
NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Os panfletos políticos e esboço de uma esfera pública de Poder no
Brasil IN ABREU, Márcia & SCAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil: objetivos e práticas.
Campinas, SP: Mercado de Letra, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo, SP: Fapesp, 2005. P. 411.
100
Este lugar de quase um “assessor político” fazia Antônio Vilaça ser, algumas vezes, chamado pela
imprensa de primeiro ministro de Francisco Heráclio. VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE,
Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro:
editora Bertrand Brasil, 2003.
101
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, pp. 150-151.
55
O autor destaca ainda o fato de serem estes boletins frutos da imaginação de uma
liderança política analfabeta. Sua produção por alguém que não sabia ler nem escrever é,
por si, reveladora, pois demonstra a compreensão que aquele líder político tinha do papel
estratégico exercido pela imprensa. Em outros termos, podemos afirmar que o fato de não
saber escrever nem mesmo ler não significa que Francisco Heráclio não compreendesse a
importância fundamental da propaganda e da imprensa para a política. Pelo contrário, ele
compreende que a divulgação desses boletins nos mais diversos jornais de Pernambuco
atingia um considerável público leitor das mais diferentes regiões do estado. Ao mesmo
tempo, uma parcela significativa de analfabetos também se tornava conhecedora do
conteúdo dos boletins uma vez que amplamente distribuídos e lidos nas feiras,
semelhantemente ao que acontecia com a prática dos cordéis. Acerca da distribuição desses
boletins recorda João Cordeiro, em um trecho de seu depoimento, que Francisco Heráclio
“mandava distribuir em toda a cidade estes boletins”102.
A utilização dessas publicações era intensificada em períodos que antecediam os
pleitos eleitorais ou logo após eles, muito embora também fossem produzidos e distribuídos
em períodos não eleitorais. Nesses casos eram registros de fatos e acontecimentos
considerados muito importantes.
De modo geral podemos afirmar que os boletins, distribuídos de forma avulsa ou
publicados pela imprensa, eram datados e continham seu nome – Francisco Heráclio do
Rego – seguido, quase sempre, da expressão “firma reconhecida”. A utilização deste termo
sugere, de acordo com algumas entrevistas, que Francisco Heráclio não permitia duvidas
quanto à autenticidade do que era por ele afirmado nos boletins. É ainda recorrente nesses
boletins o fato de serem endereçados a pessoas específicas. Ou seja, além de distribuídos de
maneira avulsa, poderiam ser enviados às residências de inúmeros eleitores pelos cabos
eleitorais ou por alguém de sua confiança, como têm sugerido as entrevistas. Também o
tratamento “Aos limoeirenses, principalmente aos meus amigos e correligionários” é
encontrado em grande número desses boletins. Fazia constar, ainda, sua fotografia na parte
superior de cada um deles.
102
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
p. 04.
56
Essa prática de produção de boletins não se constituía em exclusividade de
Francisco Heráclio. Nos âmbitos estadual e nacional inúmeros outros líderes políticos,
durante as décadas de 1940 a 1960, mantinham esse tipo de produção, como podemos
atestar analisando os jornais deste período103.
Outro aspecto a ser pontuado diz respeito à intensidade com que estes boletins
foram utilizados. Isso poderá ser observado levando-se em conta seu poder de circulação,
seja quanto aos divulgados na grande imprensa, seja quanto aos distribuídos em forma de
panfletos. Ainda sobre a assiduidade com que eram produzidos, é significativa a razão
vislumbrada pelo próprio Francisco Heráclio como expressa em um de seus boletins: “a
falta de um jornal na cidade, vejo-me obrigado a publicar todos os sábados, até as
eleições, um boletim para orientar meus amigos e correligionários e para responder as
acusações que me fazem...”104.
Ora, num primeiro momento poderíamos nos referir a essas publicações como a
uma mera propaganda eleitoral naquele período, comumente produzida por alguns grupos
políticos, como afirma Vilaça. Porém, em conjunto, tais boletins nos revelam muito das
disputas políticas entre Francisco Heráclio e seus adversários: “esta patentemente
reconhecida a perseguição e a vingança dos meus adversários com o que provam aos meus
amigos e correligionários que a UDN se tivesse vencido quem governava era a peia”105.
Ou ainda...
103
Sobre a utilização desses boletins no Brasil, ver NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Os panfletos políticos e
esboço de uma esfera pública de Poder no Brasil IN ABREU, Márcia & SCAPOCHNIK, Nelson (Org.).
Cultura letrada no Brasil: objetivos e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letra, Associação de Leitura do
Brasil; São Paulo, SP: Fapesp, 2005.
104
Aos meus amigos e correligionários. Boletim. Jornal Folha da Manhã. Recife, 17 de novembro de 1946, p.
03. APEJE.
105
Aos limoeirenses, principalmente aos meus amigos e correligionários. Boletim. Jornal Folha da Manhã.
Recife, 17 de dezembro de 1946, p. 03. APEJE.
106
Aos meus amigos, eleitores e ao povo pernambucano, em geral. Boletim. Jornal Folha da Manhã. Recife,
26 de setembro de 1950, p. 03. APEJE.
57
Estes boletins, ora citados, fazem referências a dois processos eleitorais distintos: ao
pleito para o governo do estado de Pernambuco em 1947, quando da eleição de Barbosa
Lima Sobrinho pelo PSD, e às eleições de 1950, momento em que Agamenon Magalhães
retoma a administração do estado de Pernambuco, também pelo PSD, após ter exercido a
interventoria durante o Estado Novo. Para Antônio Lavareda e Dulce Chaves Pandolfi, a
escolha de um candidato nos quadros do PSD para concorrer ao executivo estadual em
1947 provocou alguns embates internos, o que ocasionou a saída ou a expulsão de alguns
de seus membros. Entre os expulsos, e que foram compor os quadros da UDN, está o ex-
prefeito do Recife, Novais Filho, administrador desta cidade durante a interventoria de
Agamenon. Com a redemocratização e a realização do pleito eleitoral em 1945, Novais
Filho é eleito senador pelo PSD sendo o mais votado em Pernambuco, seguido de Etelvino.
Este, após a transferência de Agamenon do cargo de interventor para o de ministro da
justiça de Vargas, em 1945, assume a administração de Pernambuco como interventor
federal em 05 de março de 1945 até ser substituído, pouco depois da saída de Vargas em 07
de setembro deste mesmo ano, pelo desembargador José Neves Filho107. Outro político que
se desliga do PSD e passa a integrar os quadros da UDN é Neto Campelo. Este se lança
candidato ao governo do estado em 1947, em oposição a Barbosa Lima Sobrinho, pela
“Coligação Pernambucana” composta pela UDN, PDC e PL.
Neste momento, em Limoeiro, à frente do PSD encontra-se Francisco Heráclio,
líder político que articula e conduz os vários pleitos eleitorais naquele município e noutros
circunvizinhos108. Ao analisarmos os boletins, podemos compreender sua sintonia com
importantes questões do partido, como as disputas internas em torno dos nomes de Novais
Filho e de Barbosa Lima Sobrinho. Os textos presentes nos boletins têm como objetivo
alertar os eleitores do PSD acerca dos candidatos da União Democrática Nacional,
apresentados como inimigos do povo; não se tratando, pois, de qualquer, adversário.
107
A atuação de Etelvino Lins como Interventor de Pernambuco, assim como vários outros momentos da sua
vida pública, encontram-se registrados em uma autobiografia. Ver, LINS, Etelvino. Um depoimento político,
episódios e observações. Rio de janeiro: editora Bagaço, 1977.
108
Vale ressaltar que para o período compreendido em nossa pesquisa, 1945 a 1955, a documentação
localizada nos vários órgãos de imprensa esclarece que nas campanhas eleitorais ao governo estadual de 1947,
1950 e 1952, Francisco Heráclio apóia integralmente os candidatos do PSD. Como veremos no transcorrer
deste capítulo, a partir de 1953, diante de uma série de conflitos e de disputas travadas com o governador
Etelvino Lins, que neste momento estava à frente da direção do partido, o candidato da UDN, João Cleofas, é
apoiado por Francisco Heráclio no pleito de 1954.
58
Esclarece o boletim que: “a UDN se tivesse vencido quem governava era a peia”. Afirma
Francisco Heráclio que seus adversários políticos da UDN são capazes de fazer uso da
violência para com o povo; projetando, assim, para os candidatos ou membros da UDN, o
lugar da violência. Ao mesmo tempo em que podemos perceber a preocupação em lembrar
seu compromisso e/ou dos candidatos do PSD para com os correligionários e amigos,
principalmente os pobres e necessitados. Diferentemente dos candidatos da UDN, onde
impera a violência, os do PSD são apresentados como pessoas amigas dos eleitores e dos
pobres. São iluminados como candidatos “que não defendem o eleitor a troco de dinheiro e
que conhecem os pobres em tempo de eleição ou não”. Daí, sua palavra de ordem ser
exatamente “para que o eleitor pobre e desamparado vote na chapa completa do PSD”.
Um outro boletim que destacamos está datado de novembro de 1945. Este
documento nos informa acerca da representação da imagem paterna. Dito de outra maneira,
vamos encontrar nele a apropriação109 da imagem de João Heráclio do Rêgo, pai de
Francisco Heráclio, por este seu filho.
Em certo sentido, o pensamento traçado por Roger Chartier poderá nos ajudar a
pensar a utilização da imagem paterna neste boletim. O autor nos chama a atenção para as
racionalidades que envolvem as diversas estratégias presentes nos grupos sociais e
utilizadas pelos indivíduos. Esta maneira de perceber a complexidade social e cultural
possibilita ao historiador percorrer os processos dinâmicos de negociação, transações e
conflitos nas relações humanas110. Colocado desta maneira, surge de imediato uma
pergunta: que critérios de racionalidade levaram aquele personagem político a fazer
referências, nesse boletim, ao nome do pai, falecido em 1934?
109
Tomando por base Roger Chartier, entendemos apropriação como a incorporação de objetos, textos,
fragmentos jornalísticos entre outros, para resignificá-los. Neste sentido, apropriação e representação estão em
permanente relação; não há representação sem apropriação. Ver, CHARTIER, Roger. A história cultural entre
práticas e representações. Lisboa: editora Difel, 1990.
110
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: editora
Universidade/UFRGS, 2002, pp. 84, 92.
59
Capítulo III
Em nome do pai: a legitimação de uma dominação
111
Arquivo Pessoal. Ver este boletim em seu formato original no anexo, p. 176. Este e outros boletins poderão
facilmente ser encontrados nas residências de alguns moradores da cidade de Limoeiro, alguns dos quais estão
conservados em molduras, sendo utilizados como quadros. Pudemos constatar em nossa pesquisa, e
consideramos significativo, a existência de um número expressivo de boletins guardados como uma espécie
de relíquia.
60
Durante a campanha eleitoral de 1945 para Presidente da República, senador e
deputado federal, circulou no município de Limoeiro o boletim, acima descrito, em que
Francisco Heráclio declara seu apoio aos candidatos da coligação PSD-PTB112. Ao
analisarmos o documento citado, logo percebemos alguns enunciados que, entre outras
coisas, sugerem, principalmente se considerarmos o ano de sua produção, que o “candidato
em quem o povo poderá confiar” provavelmente é uma referência à candidatura do general
Eurico Gaspar Dutra à presidência da República pela coligação PSD e PTB.
No que diz respeito ao envio de cartas a seus possíveis eleitores contendo, em
anexo, esse boletim e a chapa a ser usada em 02 de dezembro de 1945, assim como a
preocupação em alertá-los sobre como proceder durante a votação e quanto ao cuidado
necessário para não terem suas chapas trocadas pelas de outros candidatos: serão objetos de
análise num outro momento quando trataremos de algumas práticas do controle do voto.
Ademais, revela-se constante a referência à imagem de seu pai – João Heráclio do Rêgo –
que, confirme outrora afirmado, havia falecido em 1934, portanto, onze anos antes.
Nesta publicação não temos a imagem de Francisco Heráclio como comum em
outros boletins, mas a do seu pai, João Heráclio, como num proceder de atualização da
memória paterna valendo-se, para tanto, do uso de uma fotografia. E, sendo a fotografia
uma representação que se quer congelar sobre algo113, podemos pensar que sua utilização
procura associar uma idéia de continuidade, uma permanência de virtudes, bondade e
caráter de pai para filho. Esta apropriação da figura paterna não fica, entretanto, restrita a
uma imagem fotográfica, mas continua sendo operacionalizada ao longo de todo o boletim,
o que pode ser observado logo em suas primeiras linhas.
Um aspecto a se considerar neste documento é que o discurso político de Francisco
Heráclio não é dirigido a toda sociedade, mas àqueles que são amigos, parentes, compadres
e afilhados de seu pai. Essa forma de fazer política parece funcionar legitimando uma
espécie de cobrança, como que a tirar do esquecimento um débito político que deverá ser
112
Sobre as eleições de 1945 e o processo de Redemocratização do Brasil em 1945 ver SKIDMORE, Thomas
E. Brasil: de Getulio a Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de janeiro: editora Paz e Terra, 1982. Ver também,
FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs). O tempo da experiência democrática: da
democratização de 1945 ao golpe civil-militar. editora Civilização Brasileira, 2003.
113
A fotografia como representação, ver SILVA, Fabiana de Fátima Bruce da. Caminhando numa cidade de
luz e de sombras: a fotografia moderna no Recife na década de 1950. Tese de doutorado defendida pelo
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, 2005. Ver também BORGES, Maria Elisa Linhares.
História e fotografia. Belo Horizonte: editora Autêntica, 2003.
61
quitado com a dedicação do voto aos candidatos por Francisco Heráclio previamente
indicados.
Para Raymundo Faoro em sua análise sobre o sistema coronelista durante a
Primeira República, a utilização dos termos amigos, parentes, compadres e afilhados por
parte do coronel tende a suavizar, ou mesmo aproximar as distâncias sociais e econômicas
entre os diversos grupos. Neste sentido, “o compadre recebe e transmite homenagens, de
igual para igual, comprometido a velar pelos afilhados, obrigados estes a acatar e
respeitar os padrinhos”114.
Apresenta-se aos amigos, parentes, compadres e afilhados de seu pai afirmando
nunca ter havido, entre ambos (pai e filho), desacordo; e que agora, na ausência do pai,
falecido em 1934, deveriam apoiar e seguir os caminhos traçados por seu filho. Esta
sintonia parece funcionar como uma espécie de mecanismo ou de simbolismo onde ocorre
perfeita integração entre pai e filho. Para Bourdieu, “os símbolos são os instrumentos por
excelência de integração... eles tornam possível o consensus acerca do sentido do
mundo”115. Sendo assim, podemos pensar que ao se apresentar em sintonia com seu pai,
projeta a idéia de que este consenso, no âmbito político, deverá também ser estendido para
além da relação pai e filho, ou seja, deverá ser disseminado e confirmado por outros grupos
sociais.
Esta concordância apresentada pela documentação entre filho e pai nos leva a pensar
também que Francisco Heráclio toma para si a imagem paterna como se ele e o pai fossem
uma única pessoa. Isso é possível ser notado na medida em que temos a construção de um
conjunto de imagens que poderão se relacionar entre si, e cujo automovimento é capaz de
dar vida a um determinado personagem. É nesse sentido que observamos o que Deleuze,
em vários momentos, denomina de ‘duplicidade de imagens’, onde o pai e o filho projetam
uma mesma imagem. Imagem que também é completamente distinta116.
As lembranças que João Cordeiro, antigo morador da cidade de Limoeiro, projeta
sobre o pai de Francisco Heráclio, também nos fazem pensar na força que permeia os
114
RAYMUNDO, Faoro. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. São
Paulo: editora Globo, 2001, p. 714.
115
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3ª edição. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2000, p. 10.
116
No que se refere à duplicidade de imagens ver DELEUZE, Gilles. Conversações, 1978-1990. São Paulo:
editora 34, 1992. Ver também, DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª edição. Rio de Janeiro: editora
Forense Universitária, 2006.
62
discursos acerca da figura paterna. Esta percepção revela como a imagem do pai pode ser
utilizada, entre outras coisas, para legitimar socialmente supostas qualidades e boas ações
praticadas pelo filho. Para ele,
Mesmo sem haver conhecido o pai de Francisco Heráclio em pessoa, João Cordeiro
atualiza certa memória coletiva que permite-nos localizar em série elementos capazes de
compor um quadro sobre João Heráclio. Essa memória, que muito se aproxima da imagem
descrita no boletim, é uma produção também apreendida em conversas com outras pessoas,
muitas das quais também não haviam conhecido João Heráclio. Podemos, assim, constatar
a formação de uma memória compartilhada entre uma parcela de idosos da cidade de
Limoeiro acerca de Francisco Heráclio.
A imagem do pai, além de tornar aceitas e legitimar as ações de Francisco Heráclio
– como por exemplo, seu apoio ao Partido Social Democrático – procura demonstrar sua
superioridade em relação a outros candidatos ou líderes políticos da oposição. Neste
momento, a mais organizada força de oposição ao PSD é realizada pela União Democrática
Nacional (UDN). Ao se colocar como alguém que está com a realidade, ou seja, que está
ciente das necessidades dos eleitores, procura afastar-se daqueles que são capazes de iludir
com falsas promessas o “povo”. Esse discurso sobre a realidade funciona autorizando-o a
falar em nome de uma verdade inquestionável e em nome da razão que sempre lhe tem
acompanhado em detrimento do vazio gerado pelo que denomina enganadoras promessas
realizadas por seus inimigos políticos118. Estes argumentos de autoridade do boletim são
117
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
p. 05.
118
Sobre a utilização do termo razão é significativo observar também a seguinte matéria: Pássaro na muda
não canta, mas eu falo. Jornal Diário da Noite. Recife, 13 de outubro de 1952. APEJE.
63
apresentados socialmente fazendo transparecer a idéia de que apenas os que detêm o
conhecimento de causa são capazes de dispor da prerrogativa da razão e da verdade. Ao
mesmo tempo, apropria-se de um discurso de progresso muito freqüente na imprensa
nacional, isso porque, a partir do processo de redemocratização do Brasil, a concepção de
progresso tornou-se uma das principais bandeiras de partidos como o PSD e a UDN. Ao ser
apresentado como alguém amigo do “povo” e da terra como seu pai, afirma que tem
autoridade e responsabilidade para trabalhar pelo desenvolvimento e progresso do
município de Limoeiro e do estado de Pernambuco119.
Também podemos associar essa preocupação de Francisco Heráclio com a família
ao discurso da Igreja Católica em favor da família e da moral cristã, que propaga a imagem
do Pai como um símbolo sagrado120. A própria expressão “em nome do pai” assemelha-se
simbolicamente ao primeiro componente da Santíssima Trindade, que também é
representado pela figura paterna. Assim, faz uso de um discurso que, de certo modo, é
compartilhado nesse período por vários grupos sociais, tendo em vista ser o Brasil um país
de maioria católica.
A utilização dessa memória é disseminada na cultura como algo sagrado e parece
funcionar como uma espécie de proteção ao lugar social e político agora ocupado pelo
filho121. Além disso, ao falar em nome do pai reafirma e fortalece de maneira quase natural
sua posição de líder político, ou seja, esse discurso pretende não só respaldar suas decisões
perante alguns setores sociais, mas também lhe possibilitar ser construído, neste momento,
enquanto inquestionável autoridade política de Pernambuco122.
O deslocamento de poder de pai para filho é construído como natural e
inquestionável, principalmente por se tratar do filho daquele que sempre foi um amigo dos
moradores que viviam e trabalhavam em seus domínios. É como se a bondade do pai,
conforme expressa o documento, fosse incorporada e continuada pelo filho. A
119
Pássaro na muda não canta, mas eu falo. Jornal Diário da Noite. Recife, 13 de outubro de 1952. APEJE.
120
Alguns autores têm demonstrado em suas obras como o simbolismo religioso serve a determinados grupos
sociais no sentido de legitimar sua dominação. Uma grande contribuição nesse aspecto é dada por
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6ª edição. São Paulo: editora Perspectiva, 2005.
121
Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6ª edição. São Paulo: editora Perspectiva,
2005.
122
Entendemos por autoridade um conjunto de imagens, discursos e práticas que têm como objetivo legitimar
um governo, uma nação, um líder político ou um grupo religioso. Sobre a construção de uma autoridade ver
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: editora Companhia das
Letras, 1990.
64
continuidade/permanência de uma série de elementos positivos se apresenta enquanto
preocupação com a constituição de uma linhagem familiar.
Ao afirmar:
Não faço só em meu nome, mas em nome do meu pai e não acredito
que nenhum eleitor dessa redondeza se negue a um pedido feito em nome
do Coronel João Heráclio que tudo fez pelos seus parentes, compadres e
afilhados...123.
123
Este boletim intitulado Prezado amigo e correligionário, de novembro de 1945, está transcrito no início
deste capítulo. Também poderá ser visualizado em seu formato original no anexo, p. 169.
124
No que se refere aos cordéis como documentos históricos capazes de revelar uma determinada realidade,
será nosso objeto de análise noutro momento da escrita.
65
Que ajuda o nosso partido.
125
Estes versos foram reproduzidos nas obras de VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto
Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora
Bertrand Brasil, 2003, p. 140. RÊGO, André Heráclio do. Famille et pouvoir regional au Brésil: le
coronelismo dans le Nordeste 1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006, p. 243.
126
Sobre a relação entre tradição e autoridade ver SCARLETT, Marton. Nietzsche: uma filosofia a
marteladas. 5ª edição. São Paulo: editora Brasiliense (coleção tudo é história), 1991, p. 44.
127
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Os nomes do pai: a edipianização dos sujeitos e a
produção histórica da masculinidade IN Margareth Rago, Luiz B. Lacerda Orlandi, Alfredo Veiga (orgs.).
Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. 2ª edição. Rio de Janeiro: editora DP&A, 2005.
pp. 111-121.
128
Sobre identidade ver PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Trad. Maurício Santana Dias. 3ª
edição. São Paulo: editora Cosac Naify, 2001, p. 217.
66
Capítulo IV
“A vida secreta de Francisco Heráclio do Rêgo”: o questionamento de
uma autoridade e a produção de um universo simbólico
129
Em relação ao nascimento e infância de Francisco Heráclio do Rêgo presente na referida Vida Secreta,
ver também VILELA, Márcio A. Ferreira; PORFÍRIO, Pablo F. de A. A infância de um chefe político e a
invenção de uma autoridade: Francisco Heráclio do Rêgo IN MIRANDA, Humberto; VASCONCELOS,
Maria Emília (Org.). História da infância em Pernambuco. Recife: Editora da Universidade Federal de
Pernambuco, 2007.
130
Vale ressaltar que toda a documentação utilizada neste texto foi transcrita da edição matutina do Jornal
Folha da Manhã.
67
da força e da liderança política exercida por Francisco Heráclio em Pernambuco131. O
prestígio político que o envolve foi tratado também em uma reportagem publicada na
revista Manchete, em julho de 1953. Na referida reportagem encontra-se a seguinte
afirmação:
Esta reportagem trata também da atuação política que Francisco Heráclio mantém
em outros municípios. Ernesto Cândido, poeta popular e vereador do município de Glória
do Goitá133, num de sues cordéis, possibilita pensar acerca do prestígio e da capacidade de
que dispunha este político em interferir nos mais diversos municípios do estado e, assim,
garantir aos quadros de qualquer partido a elegibilidade de diversos vereadores, prefeitos,
deputados estaduais e federais por ele indicados. No que diz respeito ao pleito a ser
realizado em 1954, afirma o poeta em alguns versos de um determinado cordel que:
131
O P.S.D. em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 17 de agosto de 1945, p. 06. APEJE. Ver também
Grande vitória do P.S.D., em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 04 de janeiro de 1945, p. 05. APEJE.
Ver Dramática explicação do “Coronel” Chico Heráclio: estou com medo. Jornal Diário da Noite, Recife, 23
de janeiro de 1950. APEJE. Ver O coronel Chico disposto a enfrentar Etelvino. Jornal Diário da Noite,
Recife, 15 de janeiro de 1957. APEJE.
132
Chico Heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém! Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de
julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE.
133
Essas informações sobre o poeta Ernesto Cândido ver VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE,
Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro:
editora Bertrand Brasil, 2003, p. 137.
68
E, os seus correligionários
Chegando tudo de eito.
A Glória do Goitá
Já está em suas mãos
Carpina, Pau d’Alho, São Lourenço,
Vitória de Santo Antão,
Paulista, vai mais ou menos,
Gravatá, Bezerros, Moreno,
Escada e Jaboatão.
69
Também uns 20 prefeitos,
E uns 12 deputados,
Sendo 2 Federais
Dez estaduais,
Será o resultado134.
134
Arquivo pessoal. Ver este cordel em seu formato original no anexo, pp. 178-186. Estes versos também se
encontram publicados na obra de VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de.
Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil,
2003, pp. 137-139.
135
Agamenon Magalhães tinha sido eleito governador do estado de Pernambuco em 1950 para um mandato
de quatro anos, com sua morte e diante da inexistência nesse período do cargo de vice-governador, é realizado
um novo pleito onde é eleito um dos maiores representantes em Pernambuco do PSD, Etelvino Lins. O
mesmo tinha sido, durante a vigência do Estado Novo em Pernambuco, secretário de Segurança Publica.
Além disso, foi um dos responsáveis pela consolidação do PSD em Pernambuco sendo eleito senador da
República nas eleições de 1945, durante a Redemocratização do Brasil.
136
Em sua autobiografia intitulada Um depoimento político, episódio e observações, Etelvino Lins decorre
sobre a morte do governador Agamenon Magalhães ocorrida em 24 de agosto de 1952, e narra sua
experiência durante as eleições ao governo do estado em 1952, bem como os dois anos em que foi chefe do
70
insere Francisco Heráclio – passaram a divergir da política trilhada pelo governador que,
àquela altura, mantinha pretensões de concorrer às eleições presidenciais em substituição a
Getúlio Vargas137. Para tanto Etelvino Lins – que durante a vigência do Estado Novo
participara do executivo estadual e permanecera fiel às determinações políticas tanto do
presidente Getúlio Vargas quanto do interventor em Pernambuco Agamenon Magalhães –
passa a adotar, durante seu governo, algumas posturas políticas que desagradam a fortes
segmentos do PSD a níveis estadual e nacional.
Eleito em 23 de outubro de 1952 e tendo tomado posse em 12 de dezembro deste
mesmo ano, Etelvino Lins cumpre um mandato de dois anos. Segundo Dulce Chaves
Pandolfi, “a escolha do seu secretariado passa pela coligação partidária que o elegeu.
Evidentemente que ao PSD cabia uma maior representação, mas a UDN, o PDC e o PSP
também receberam o seu quinhão”138. Mas, como parte de seu plano para chegar ao Catete,
em 1953 o governador passou a permitir que diversos cargos, principalmente das
autoridades policiais, fossem ocupados por integrantes de outros partidos considerados
adversários do PSD139. Apesar de os vários partidos que compõem a coligação com o PSD
participarem da administração do estado, existia uma espécie de acordo tácito com o
executivo estadual de que os cargos de autoridades policiais eram nomeações restritas aos
antigos líderes políticos pessedistas140, como ocorria em Limoeiro141. Essa mudança de
executivo estadual. Ver, LINS, Etelvino. Um depoimento político, episódios e observações. Rio de janeiro:
editora Bagaço, 1977.
137
Ver PANDOLFI, Dulce Chaves. As eleições em Pernambuco de 1950 a 1954 IN LAVAREDA, Antônio;
SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto: luta política em Pernambuco. Recife: editora Massangana, 1986, pp. 91-
112.
138
Ver PANDOLFI, Dulce Chaves. As eleições em Pernambuco de 1950 a 1954 IN LAVAREDA, Antônio;
SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto: luta política em Pernambuco. Recife: editora Massangana, 1986, pp.
101.
139
Em outros momentos da história política de Pernambuco foi utilizada também a prática da destituição das
autoridades estaduais, principalmente nas cidades do interior do estado. Isso poderá ser observado durante a
atuação do interventor federal no estado, Demerval Peixoto, cuja finalidade era interferir nos resultados do
pleito de 19 de janeiro de 1947 para o executivo e legislativo estadual.
140
O ato de nomear delegados ou quaisquer outras autoridades era prerrogativa que acompanhava o prestígio
de alguns políticos nos estados desde a Primeira República. Com as mudanças processadas pelo executivo de
Pernambuco em 1953, esta prerrogativa passa a ser da Secretaria de Segurança do Estado. Sobre a
prerrogativa de alguns políticos nomearem as autoridades policiais e judiciárias, ver RAYMUNDO, Faoro. Os
donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. São Paulo: Globo, 2001, p. 713.
141
Sobre a substituição do delegado de polícia de Limoeiro que de alguma forma era ligado ao PSD local por
uma autoridade policial inserida em outro grupo político Ver VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE,
Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro:
editora Bertrand Brasil, 2003, pp. 141-142. No que se refere à concessão aos cargos de polícia ver
71
orientação política do governador é melhor percebida ao acompanharmos atentamente as
notícias publicadas pela imprensa:
PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães; consolidação e crise de uma elite
política. Recife: editora Massangana, 1984, pp. 152-154.
142
Afastou-se da política o Sr. Francisco Heráclio do Rêgo. Folha da Manhã. Recife, 03 de junho de 1953,
pp. 01 e 12. APEJE.
143
Outros municípios sobre a direção de outros chefes políticos ligados ao PSD como é o caso de Serrita,
onde Chico Romão, nomeado pela imprensa de coronel, também reage ao direcionamento tomado por setores
do PSD, principalmente aqueles ligados ao governador de Pernambuco. Ver PANDOLFI, Dulce Chaves. As
eleições em Pernambuco de 1950 a 1954 IN LAVAREDA, Antônio; SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto:
luta política em Pernambuco. Recife: editora Massangana, 1986, pp. 91-112.
144
Coronel Francisco Heráclio continua fiel ao PSD. Folha da Manhã. Recife, 06 de junho de 1953, pp. 01 e
10. APEJE.
72
Durante uma longa entrevista concedida à revista Manchete em julho daquele ano,
afirma ainda,
145
Chico Heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém!. Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de
julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE.
146
Pelo interior, há muita gente sofrendo de meu mal. Jornal Diário da Noite. Recife, 05 de junho de 1953.
APEJE.
147
É importante ressaltarmos que apesar de ter seu pedido de afastamento do PSD aceito por Etelvino Lins,
Francisco Heráclio apenas se afasta do círculo majoritário de decisão dentro do partido. Mesmo apoiando em
1954 ao governo do estado João Clefofas, candidato pela UDN, Francisco Heráclio continua filiado ao PSD.
148
Notas políticas. Folha da Manhã. Recife, 04 de julho de 1953, p. 03. APEJE.
73
A publicação desta carta na imprensa deixa transparecer o gradual afastamento de
Francisco Heráclio do quadro majoritário do PSD. Sobre esta carta em particular e diante
de sua repercussão no cenário nacional o jornal Folha da Manhã passa a reproduzir várias
reportagens que circulavam na imprensa, principalmente do Rio de Janeiro. Noticia aquele
jornal que a referida correspondência fora lida na Câmara Federal e, por meio de um
requerimento elaborado por deputados do próprio PSD, transcrita nos Anais do
Congresso149. Nesse mesmo momento um de seus filhos, Heráclio do Rêgo, que era
deputado federal, em discurso pronunciado na tribuna da Câmara Federal e publicado no
jornal Folha da Manhã de 26 de junho de 1953, rompe com o governo estadual. Também
contrários às posições adotadas pelo governador, inúmeros deputados estaduais da bancada
do PSD de Pernambuco reagiram recorrendo à Tribuna da Assembléia Legislativa de
Pernambuco e declarando-se indignados diante daquela posição adotada pelo executivo150.
Alguns parlamentares estaduais, seguindo a decisão de Heráclio do Rêgo, chegaram mesmo
a retirar seus apoios ao governo, principalmente os que dependiam diretamente do apoio
político de Francisco Heráclio; outros, por serem fiéis às suas orientações e terem outros
laços além do político, como é o caso do sobrinho Veneziano Vital do Rêgo e seu filho
Francisco de Morais Heráclio151. Todos os políticos descontentes com a postura adotada
pelo governador Etelvino Lins, que neste momento detinha o apoio de boa parte dos
membros do Partido Social Democrata, passaram a compor um segmento dentro do partido
conhecido como pessedistas históricos, do qual faz parte Francisco Heráclio.
É, portanto, a partir de meados de 1953 que a interferência do estado no município
de Limoeiro - interferência essa contrária aos interesses de Francisco Heráclio - é
intensificada e passa a ser divulgada por parte da imprensa que apoiava a nova orientação
política do executivo estadual. Não por acaso esta imprensa passa a comentar tais ações do
governo como uma campanha de libertação de Pernambuco e de Limoeiro.
149
A carta do governador Etelvino Lins será inserta nos Anais do Congresso. Folha da manhã. Recife, 09 de
junho de 1953, pp. 01 e 12. APEJE. Ver também o discurso pronunciado na Câmera Federal pelo deputado
federal Heráclio do Rêgo sobre os novos acontecimentos ocorridos em Pernambuco. Folha da Manhã. Recife,
26 de junho de 1953, p. 07. APEJE.
150
Discurso do deputado Heráclio do Rêgo. Folha da Manhã. Recife, 26 de junho de 1953, p. 07.
151
Dirigem-se ao governador os deputados heraclistas. Folha da Manhã. Recife, 06 de junho de 1953, pp. 01
e 10. APEJE.
74
Para Limoeiro, o mês de junho descortinou como um símbolo de
esperança, quando uma nova era começou em nossa terra com a queda do
feudalismo municipal, graças a ação do ‘libertador’ dos limoeirenses, o
Dr. Etelvino Lins... Felizmente, para todos nós a ‘República de Limoeiro’
ruiu, seu povo agora está emancipado 152.
É chegada a ocasião
De libertar Limoeiro
Extirpando de antemão
O jugo do cativeiro.
152
Primeiro de junho uma data histórica para Limoeiro. O Libertador. Limoeiro, 29 de agosto de 1953, p. 04
e 06. APEJE.
153
Ver também as seguintes reportagens, Paz e concórdia em Limoeiro! O Libertador. Limoeiro, 29 de agosto
de 1953, p. 05. APEJE. Neste mesmo jornal é interessante analisar também a seguinte matéria: Nós e a hidra
de lerna. p. 03.
154
Além do jornal O Libertador, localizamos no Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (APEJE)
alguns números de periódicos que circulavam entre os anos de 1945 a 1955 naquele município e em outros
circunvizinhos, que de certo modo também versam sobre o cenário político de Limoeiro e daquela região.
Ver, Tribuna de Camocim. 1 (1/7) jan/ago. 1954. Dir.: José Helton Coelho; Tribuna do Bonito . 1 (2/3)
jan/fev. 1954. Dir.: Paulo Viana Queiroz.
75
Entre as correntes locais
Dando esforços iguais.
Em prol do soerguimento
Pois é chegado o momento
De mãe, filhos e pais
Desabafar seu lamento155.
155
Estes versos foram reproduzidos na obra de VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto
Cavalcante de. Op. Cit. pp. 142-143. Estão também publicados por RÊGO, André Heráclio do. Famille et
pouvoir regional au Brésil: le coronelismo dans le Nordeste 1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006, p.
246. Vale ressaltar que neste folheto não consta o nome do poeta.
156
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições UFC, 1995, p. 81.
76
Podemos perceber, na série jornalística “A Vida Secreta de Francisco Heráclio do
Rêgo”, uma excessiva preocupação com o passado de forma a construir e associar um
conjunto de imagens e símbolos positivos em torno de Francisco Heráclio. Esse capital
simbólico, como pensa Pierre Bourdieu, é o:
157
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3ª edição. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2000, p. 14.
158
Sobre esse caráter natural do poder referente a estes chefes políticos, é importante analisar a discussão
delineada por GUIMARÃES, Neto Beatriz. Cidades da mineração: memórias e práticas culturais: Mato
Grosso na primeira metade do Século XX. Cuiabá, MT: Ed. UFMT, 2006, pp. 135-179.
77
O velho Miguelinho encontrou com seu Heráclio no canto da cerca
que dava acesso ao bebedouro suando este se dirigia por uma roça de
macacheira.
- Como é home, hoje não é feriado na sua casa, não? – interrogou seu
Miguelinho acrescentando depôs – que virá bicho de tanto trabaiá? Qual é
o nome do meninu? Já escoieram?
- Desde ontem – respondeu.
- Desde ontem – respondeu seu João Heráclio – que a gente já sabia o
nome do menino. É Francisco Heráclio do Rêgo pr’a servir compadre159.
O que Miguelinho nos revela é que seu compadre Heráclio, um dia após o
nascimento de seu filho Francisco, já se encontrava no roçado, daí sua interrogação “que
virá bicho de tanto trabaia?” Isso porque quebrava uma tradição muito comum em
algumas regiões do Brasil, que é a de tomar o cachimbo e de serem os primeiros cinco dias
após o nascimento de uma criança reservados às comemorações pelo acontecido160. No
entanto, o trabalho é aqui utilizado pelo autor como algo positivo e inerente a determinados
homens. É enfatizado em diversas passagens da matéria como uma herança imaterial
transmitida de pai para filho161. Em outras palavras, o trabalho é operacionalizado
constantemente pelo autor para justificar ou reforçar o lugar do líder político que exerce
Francisco Heráclio pelos seus esforços em prol do município de Limoeiro e em outros
locais onde exercia influência política162.
Esse discurso acerca da disposição para o trabalho parece ser legitimado já na
escolha do nome daquela criança, como pode ser observado no diálogo entre os dois
compadres. É ainda muito presente em inúmeras famílias o costume de nomear seus filhos
de acordo com o calendário religioso, como gratidão pela graça alcançada e respeito ao
159
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 25 de novembro de 1953,
pp. 01 e 14. APEJE.
160
É costume ainda muito presente em algumas áreas do Nordeste e do Brasil, beber-se o cachimbo após
algum nascimento. Ou seja, após o nascimento de uma criança, reúnem-se na casa dos pais aqueles mais
achegados à família para festejar o acontecimento, momento em que é oferecida uma bebida composta de
cachaça, água e mel. Essa bebida é preparada previamente e apreciada apenas após o nascimento.
161
Sobre herança ou tradição passada de pai para filho ver ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Os
nomes do pai: a edipianização dos sujeitos e a produção histórica da masculinidade IN Margareth Rago,
Luiz B. Lacerda Orlandi, Alfredo Veiga (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas.
2ª edição. Rio de Janeiro: editora DP&A, 2005. pp. 111-121.
162
No que diz respeito à influência política em outros municípios ver a seguinte matéria: Farei dois
deputados dentro do Recife! Jornal Diário da Noite. Recife, 24 de janeiro de 1950. APEJE.
78
santo. Aos cinco de outubro de 1885, dia em que ocorrem as festividades a São Francisco
de Assis, nascia o quinto filho de João Heráclio do Rêgo que, a propósito, teria sua graça
em homenagem ao santo.
Dentre os inúmeros santos, São Francisco de Assis possui notoriedade entre os fiéis
católicos justamente por ser visto como alguém que renegou sua riqueza e dedicou-se a
servir aos humildes. Pelo que pode ser observado, não se trata simplesmente de colocar o
nome da criança de acordo com o santo do dia, mas ao afirmar “é Francisco Heráclio do
Rego pr’a servir compadre”, o texto da “Vida Secreta” publicado nos jornais procura
produzir uma imagem de alguém que veio ao mundo marcado pelo pai para servir ao
próximo em quaisquer circunstâncias. Ainda em entrevista ao Jornal Diário da Noite é
possível encontrar Francisco Heráclio ratificando qual seria a sua verdadeira missão
enquanto político.
163
Farei dois deputados dentro do Recife! Jornal Diário da Noite. Recife, 24 de janeiro de 1950. APEJE.
79
ninguém antes do parto senão tudo perdia o efeito. Os meninos que
choravam no ventre geralmente vinham ao mundo dotado de inúmeras
virtudes sobrenaturais e de muita sorte.
- Choro, siá Guile?
- Vomicê acredita nisso, seu Miguelinho?
Hum! Não sei, não. Mas, porém, vejo dize qui meninu que chora na
barriga nasce aduvinhão. Aduvinha até o dia que vai chovê. E nasce p’ra
manda nus outru mesmo que seja pretu. Não vê esse tal de Patrocini qui
ta mandandu acabar c’a inscravidão? É pretu que nem anú e manda mais
que o comendadô. Chorou nu ventre da mãe três dias antes de nascê164.
164
A vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal folha da Manhã, Recife, 26 de novembro de 1953,
pp. 03 e 10. APEJE.
165
Trata-se de um pássaro de coloração preta, facilmente encontrado em toda a extensão da região Nordeste.
80
caracterizam como bravo e destemido diante de qualquer perigo. Dentre os inúmeros
relatos publicados de sua suposta vida secreta, destacamos o seguinte trecho:
Como fica evidenciado, essa não foi uma luta entre garotos de forças equivalentes. O
filho de Zé Praxedes é apresentado como um garoto mais velho, experimentado em
conflitos com outros garotos e na arte de amansar animais. Tal desigualdade, no entanto,
não se fez suficiente para amedrontar o menino Chico que, embora contasse com apenas dez
anos, ao partir para o confronto torna-se o vencedor. Essa imagem projeta Francisco
Heráclio como alguém que, embora de pouca estatura, é capaz de vencer o opositor, ainda
que alto e forte. E a partir de então passa a ser reconhecido pelos outros garotos como o
mais destemido das redondezas.
Vale ressaltar a sutil preocupação em nomear Chico como um menino de baixa
estatura, o que faz de sua vitória um notório espetáculo frente ao corpulento e alto filho de
Zé Praxedes. Esse desigual confronto travado entre o gigante e o pequeno Chico em muito
se assemelha a uma das passagens da Bíblia que narra a luta entre o menino Davi e o
gigante Golias. Essas representações de figuras mitológicas ou religiosas, de acordo com
Bourdieu, executam uma função política e social na medida em que são mecanismos
capazes de estabelecer ou impor uma legitimação de um determinado grupo social167.
166
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 27 de novembro de 1953,
pp. 03 e 12. APEJE.
167
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3a edição. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2000, pp. 07-
16.
81
Ainda sobre o relato acima, o filho de Zé Praxedes queixa-se de que Chico haveria
“mexido” com suas irmãs, sendo este um dos principais motivos do confronto. A utilização
do termo “mexido”, feito pelo autor, faz projetar em Francisco Heráclio – de apenas dez
anos de idade – um garoto avançado entre os demais do lugar. Podemos assim pensar que
seu interesse precoce por meninas é utilizado para comprovar e não permitir quaisquer
duvidas quanto a sua masculinidade. Mas a coragem de um garoto ainda tão pequeno
parece não se limitar aos enfrentamentos com outros garotos. Noutro momento, o autor
descreve o que poderia ser considerado um grande confronto do menino Chico, desta vez
com um lobisomem que amedrontava todos os moradores da região.
168
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 28 de novembro de 1953,
pp.01 e 10. APEJE.
82
de desfazer qualquer tipo de suspeita quanto a sua relação com os mais pobres e negros. Ou
seja, ao tornar-se um homem rico, em grande parte por herança do pai, é apresentado como
alguém a quem a riqueza parece não ter impedido a aproximação com os mais pobres, onde
a cor em nenhum momento é tida como empecilho para uma convivência sem barreiras.
Este aspecto, portanto, já é algo determinado logo ao nascer, pois segundo João Heráclio,
aquela criança havia nascido para servir: daí o nome “Francisco”.
A bravura e a coragem são representações também reafirmadas com freqüência.
Um dos atos de bravura realizados pelo jovem Francisco Heráclio teria sido durante um
encontro com “Pilão Deitado”, um temido cangaceiro da região que, naquele momento,
compunha o grupo de Antônio Silvino169. O perigo do encontro do jovem Chico com o
temido Pilão Deitado é acentuado diante das descrições feitas pelo autor sobre Antônio
Silvino. A presença de Pilão Deitado significava que Antônio Silvino provavelmente
estaria nas redondezas e este era considerado pela imprensa como um dos maiores
cangaceiros atuantes no Nordeste, representando para todos da região enorme ameaça. Em
outra passagem da sua história é narrada a aventura de Chico ao se deparar com uma onça,
situação que lhe exigia enorme esperteza e coragem, pois provavelmente tratava-se de um
dos animais mais perigosos que habitavam, no início do século XX, algumas regiões do
Nordeste170. Quando desses dois confrontos Francisco Heráclio era, segundo descrições de
Clodomir Moraes, só um rapazola grosso, baixo e amarelo, contando com apenas 15 anos
de idade.
A bravura que permeia o suposto conflito com o cangaceiro assim como a luta
travada com uma onça, animal temido pela esperteza e velocidade com que ataca suas
presas, são histórias que, de modo geral, circulam na tradição oral compondo o imaginário
coletivo. Essa imagem de alguém capaz de lidar com tais situações possibilita-nos pensar
sobre a produção de um lugar estratégico onde Francisco Heráclio é apresentado como um
indivíduo que, mesmo jovem, é investido de uma coragem invejável. Nesse sentido, a
construção da imagem de alguém destemido é reforçada mais uma vez pelo agora jovem
169
Sobre Antônio Silvino podemos afirmar que popularmente é tido como um dos mais perigosos gancaceiros
que agiu no estado de Pernambuco.
170
Ver também A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo Jornal Folha da Manhã, Recife, 02 de
dezembro de 1953, p. 05. APEJE.
83
capitão171, respeitado por todos do lugar, e inclusive requisitado constantemente para
resolver diversos conflitos no município de Limoeiro e em inúmeros municípios
circunvizinhos.
Não é revelada a idade com que adquire sua carta patente de capitão da Guarda
Nacional como anuncia o autor. Porém, não mais encontramos aquele garoto a lutar com
outro garoto, com um cangaceiro ou com uma indomável onça. Temos agora uma
autoridade reconhecida oficialmente pelo estado, ou como afirma Pierre Bourdieu “por
uma instância oficial, universal”173, e tal reconhecimento o legitima a defender o município
de Limoeiro contra possíveis invasões, seja da Coluna Prestes ou dos comunistas. Essa
imagem é reforçada por Clodomir Moraes ao apresentar outros elementos que o
caracterizam enquanto autoridade, pois “ninguém fazia uma coisa sem consultá-lo”. E, ao
mesmo tempo, este jovem capitão é representado como “um homem democrata”. Esses
aspectos estão relacionados e são entendidos pelo autor como positivos uma vez que
denunciam um incipiente espírito de um líder forte e democrático.
A capacidade de proteger e policiar aquele município é publicada em seu último
capítulo, onde vamos encontrar Francisco Heráclio do Rêgo de rifle na mão, liderando uma
guarnição de voluntários, com o intuito de defender Limoeiro dos comunistas durante as
171
Em um outro trecho da “Vida Secreta” é narrado que seu pai lhe tinha presenteado com uma patente de
capitão da Guarda Nacional.
172
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 03 de dezembro de 1953,
pp. 03 e 14. APEJE.
173
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3ª edição. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2000, p. 148.
84
inquietações políticas ocorridas na década de trinta174. Um desses episódios teria ocorrido
quando efetuada, por engano, como é afirmado, a prisão do comendador Lundgren.
174
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 10 de dezembro de 1953,
p. 07. APEJE.
175
A Vida Secreta de Francisco Heráclio do Rêgo. Jornal Folha da Manhã, Recife, 10 de dezembro de 1953,
p. 07. APEJE.
176
Em Recife, um dos envolvidos com o movimento comunista de 1935 foi o comunista Gregório Bezerra.
Segundo o jornalista Ronildo Maia Leite, “articulada pela Aliança Nacional Libertadora, em nome de uma
revolução popular, a revolta de 1935 foi um movimento armado que se notabilizou como Intentona
Comunista, designação considerada pejorativa por alguns historiadores... A ação dos revoltosos demorou
somente quatro dias...”. Ver LEITE, Ronildo Maia. As fornalhas de março: história das eleições no Recife.
Recife: editora Edições Bagaço, 2002. Vol. I, pp. 115-118. Sobre a Insurreição de 1935 ver, também,
Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu... [et al.]. Ed. rev. e
atual. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. Vol. I, pp. 1199-1200.
85
turbulência política em local conhecido como Rio Tinto no estado da Paraíba177, é levado a
realizar inesperada fuga para a cidade de Limoeiro, onde os conflitos são narrados como
sendo de menor monta. No entanto, ao tentar adentrar à cidade, é preso por usar um lenço
vermelho, cor que momentaneamente o leva a ser identificado como possível comunista. A
prisão de um comendador, mesmo que por engano, sugere, entre outras coisas, uma
demonstração de poder e controle exercidos por Francisco Heráclio naquela região.
Controle e poder que faltavam ao comendador Lundgren, daí sua chegada repentina àquela
protegida cidade do agreste de Pernambuco. Logo, como vimos em depoimento do seu
Miguelinho, criança que chora no ventre da mãe, mesmo que seja de cor negra, manda mais
que comendador.
Ora, toda esta documentação produzida pela imprensa de Pernambuco tem
procurado, incessantemente, apresentar aquele político, dentre outras construções, como um
líder inconteste, pois mesmo antes de nascer já era incumbido da responsabilidade de – e/ou
predestinado a – conduzir politicamente o município de Limoeiro e outros próximos como
Paudalho, Carpina, Gloria do Goitá, Lajedo.
177
O Rio Tinto é uma área situada no estado da Paraíba. Ali, provavelmente a família Lundgren dispunha de
importantes propriedades. A proximidade do Rio Tinto com o município de Limoeiro poderá ter contribuído
para - diante da possível ameaça comunista no Rio Tinto - a visita do “comendador Lundgren” a cidade de
Limoeiro.
86
Capítulo V
Literatura de cordel: a representação da imagem de um líder político
178
Alguns autores especialistas em cultura popular utilizam em seus estudos o termo literatura de cordel para
designar a produção de poesias populares que foram impressas; outros preferem os termos literatura de
folheto, folheto de cordel ou simplesmente cordel. Em nossa escrita faremos uso destes termos
indistintamente.
87
direitos sociais e políticos dos trabalhadores rurais; personagens políticos das esferas
nacional e estadual.
De modo particular, um dos elementos que mais encantava na performance daqueles
repentistas – e que permeia fortemente a produção cordelista da atualidade – está associado
a sua musicalidade: uma constante cadência a embalar todos os versos. Observam diversos
estudiosos dos cordéis certa oralidade e musicalidade presentes nessa expressão cultural
que consiste de textos elaborados para serem, sobretudo, transmitidos oralmente em recitais
públicos, facilitando assim a apreensão de seu conteúdo pelos ouvintes179. Isso poderá ser
mais bem compreendido se pensarmos a produção dessa poesia destinada, em grande parte,
a um segmento social predominantemente analfabeto. No entanto, sobre a oralidade
presente na literatura de cordel, é significativo o entendimento que Paul Zumthor
desenvolve180. Ao estudar a voz entre os séculos X e XII, na Europa Medieval, observa a
presença de jograis, menestréis e recitadores num momento em que era prática recorrente a
leitura em público. Daí preferir a utilização do termo vocalidade, na medida em que
abrange uma série de aspectos que perpassam o movimento da fala, como as expressões
corporais, entonação e um conjunto de gestos que compõem o ato de narrar em púbico181.
Ora, se pensarmos que oralidade e musicalidade são aspectos também comuns na estrutura
textual da literatura de folheto aqui no Brasil do século XX e XXI, principalmente em
partes do Nordeste onde esta forma de escrita tem maior notoriedade, torna-se visível toda
uma gestualística operacionalizada pela figura do narrador durante a declamação.
Essa forma essencialmente oral presente nos folhetos tem se revelado elemento
extremamente importante no que diz respeito a seu consumo. Ou seja, alguns temas
alcançam considerável receptividade entre o público leitor/ouvinte, principalmente nas
camadas denominadas populares; e entre as possíveis razões apontadas para tal, estariam
estes aspectos orais e musicais, capazes de facilitar sua apreensão182. Gilmar de Carvalho
179
GALVÂO, Ana Maria de Oliveira. Leitura de cordéis em meados do século XX: oralidade, memória e a
mediação do “outro” IN ABREU, Márcia & SCAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil:
objetivos e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letra, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo, SP:
Fapesp, 2005. pp. 369-397. Sobre a oralidade e musicalidade presente na literatura de cordel ver também
CAVIGNAC, Julie. A literatura de cordel no Nordeste do Brasil. Trad. Nelson Patriota. Natal, RN: editora
EDUFRN da UFRN, 2006.
180
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: editora Cia das Letras, 2001.
181
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: editora Cia das Letras, 2001, p.74.
182
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1999, pp. 91-108.
88
afirma na apresentação do livro Família tradição e poder, de Maria Auxiliadora Lemenhe,
que “o recurso ao cordel... Tem largo alcance no universo sertanejo”183.
É pensando nesta recepção e alcance por consideráveis segmentos sociais que
procuraremos analisar alguns cordéis em circulação durante a década de 1950, em
Pernambuco. Um desses folhetos foi localizado ao longo de nossas incursões pela cidade de
Limoeiro enquanto angariávamos depoimentos orais de antigos moradores sobre a atuação
política de Francisco Heráclio do Rêgo. Num desses testemunhos Manuel Coutinho184 narra
que durante as décadas de 1950 e 1960 fora eleito vereador em Limoeiro com o apoio
daquele saudoso amigo e chefe político. Revela guardar com muito zelo algumas matérias
de propaganda política circulantes no período; e entre elas um cordel intitulado “História
política do coronel Francisco Heráclio do Rêgo”185, impresso durante o ano de 1954, ano
em que acorreria campanha eleitoral para estaduais e municipais, do poeta Ernesto Cândido
que, segundo Manuel Coutinho, também havia exercido cargo de vereador186.
De modo geral, a produção de cordéis exigia do poeta a utilização de recursos
próprios, como também poderia ocorrer – e ocorria com determinada freqüência – a
composição de folhetos por encomenda, prática comum principalmente entre os políticos.
Aliás, os cordéis eram usados, e de certa maneira ainda o são, como propaganda e imprensa
política. O cordel, ao circular principalmente nas feiras, revela elaborada estratégia
narrativa no sentido de levar aos segmentos rurais e urbanos uma série de
qualidades/vritudes que, naquele momento, são coladas a Francisco Heráclio.
No cordel “História Política do Coronel Francisco Heráclio do Rêgo”, este é
representado como um político honrado, heróico e justiceiro. Em face desses positivos
183
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições UFC, 1995, p. 13.
184
Depoimento de Manoel Coutinho de Araújo Pereira, realizado na cidade de Limoeiro em 14 de agosto de
2005.
185
Arquivo Pessoal. Ver este cordel em seu formato original no anexo, pp. 178-186. Trechos deste folheto
foram publicados em 1969 já na primeira edição do livro de VILAÇA, Marcos Vinicios & ALBUQUERQUE,
Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo no Nordeste. Rio de Janeiro:
editora Bertrand Brasil, 2003, p. 137-139. Ver também publicação em RÊGO, André Heráclio do. Famille et
pouvoir regional au Brésil: le coronelismo dans le Nordeste 1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006, p.
244.
186
São significativos a preocupação e o cuidado com que diversos moradores preservam materiais referentes
a políticos de Pernambuco, e mais especificamente referentes a Francisco Heráclio. Nesse sentido, passado
meio século de sua publicação, é revelador o fato de o senhor Manuel guardar aquele cordel. A produção
desse tipo de literatura não se dava de forma aleatória; tinha uma funcionalidade, uma estratégia, cumpria um
determinado papel.
89
atributos simbólicos, o poeta apresenta a oposição e todos aqueles que não são eleitores de
Francisco Heráclio como loucos e idiotas. Nesse cordel, a energia elétrica e a água
encanada que servem à cidade de Limoeiro são apresentadas como resultantes de sua ação
política, e por tal razão toda população lhe deve o voto; e ainda outras obras poderá
realizar, pois tem a sua volta inúmeros correligionários prontos a lhe apoiar nas decisões,
correligionários estes espalhados por mais de 30 municípios do interior à capital. Ainda
nesse cordel é possível localizar um discurso em que o poeta afirma que todo o povo de
Limoeiro sente enorme orgulho daquele líder político.
Outro aspecto a ser considerado no folheto de cordel é a presença de um discurso
que permeia o fabuloso, possibilitando que as vidas de seus personagens sejam recheadas
de heroísmos, façanhas, providência e graça187.Todas estas construções elaboradas pelo
poeta, diante das potencialidades oferecidas pela literatura de folheto anteriormente
comentada, onde o fabuloso encontra-se extremamente visível, parecem contribuir
significativamente para construir e/ou legitimar um lugar de autoridade188.
Diante da habilidade com que o poeta oferece significados às palavras, com que
conta aquelas histórias, ou ainda como nomeia as pessoas e as coisas, é que a construção de
Francisco Heráclio como líder político vai adquirindo, no corpo social, forma e
inteligibilidade. Como podemos analisar nas primeiras estrofes do folheto.
187
Essa literatura consumida anonimamente em muito se aproxima da análise realizada por Michel Foucault
sobre as fábulas FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. (Ditos e escritos). Rio de Janeiro: editora
Forense Universitária, 2003. Vol. IV, p. 220.
188
Na discussão que pretendemos elaborar a seguir privilegiaremos apenas alguns desses elementos presentes
neste ou em outros cordéis.
90
Desmancha toda questão
Venha de onde vier.
Vive bem preparado
Com dinheiro e advogado
Pra defender seus fieis.
Vale ressaltar que no pleito eleitoral realizado em 1954, ao qual se refere o cordel
analisado, parcela significativa de membros do PSD, conhecidos pela imprensa como
pessedistas históricos, não apóia a candidatura extrapartidária de Osvaldo Cordeiro de
Farias ao executivo estadual formada pelos PSD, PL, PRT, PSP e dissidentes udenistas189.
Este candidato é fortemente apoiado pelo então governador de Pernambuco, Etelvino Lins,
que liderava um grupo majoritário do PSD. Depois de longo processo de negociações um
grupo de dissidentes do PSD, entre eles Francisco Heráclio, em entendimento com a UDN,
passa a apoiar a candidatura ao governo do estado do então ministro da agricultura de
Getúlio Vargas, João Cleofas, que estava à frente do diretório estadual da UDN em
Pernambuco. Em torno de João Cleofas, além da UDN, aglutinam-se o PST, PTN, PTB,
PSB e os dissidentes do PSD, os pessedistas históricos190.
É, portanto, neste ambiente de disputa política que está inserida a produção deste
cordel. O folheto inicia-se de modo cordial com o poeta pedindo aos leitores licença para
narrar a história de seu personagem. Passado este primeiro momento de afetuosidade entre
o poeta e o leitor, apresenta-nos um conjunto de representações que atribuem àquele
político virtuosas qualificações. Trata-se, segundo o poeta, de alguém que carrega consigo
as marcas de um homem extremamente honrado. Esse discurso aí produzido procura
estabelecer uma espécie de diferenciação ou distanciamento entre este líder político e os
demais. Tal aspecto é reforçado quando apresentado como alguém por quem o povo nutre
grande admiração.
Valendo-se de rimas e metáforas, o poeta não se limita a apresentar Francisco
Heráclio apenas como alguém honrado e a quem o povo tanto adora. Outros discursos
189
Sobre a candidatura de Cordeiro de Faria e a divisão do PSD no pleito de 1954 é significativo analisar
também a seguinte matéria: Política pernambucana. Revista Manchete, N° 108. Rio de Janeiro, 15 de maio de
1954. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE.
190
Sobre este aspecto da política de Pernambuco ver PANDOLFI, Dulce Chaves. As eleições em Pernambuco
de 1950 a 1954 IN LAVAREDA, Antônio; SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto: luta política em
Pernambuco. Recife: editora Massangana, 1986, pp. 103-112.
91
passam a ser tecidos na medida em que vai sendo descrito possibilitando o investimento de
outras representações simbólicas191. Esta incorporação vai ocorrer quando o poeta procura
colar naquele líder a imagem – ou símbolo – de um grande herói; ele é descrito, portanto,
como “O herói de Limoeiro, Que não me sai da memória”. É importante ressaltarmos que,
também associadas à figura do herói, estão agenciadas nestes mesmos versos outras
construções imagéticas. Neste sentido o herói apresentado ao “povo” de Limoeiro não é só
alguém honrado e forte, é também um justiceiro192.
A produção deste discurso em que alguém é nomeado “justiceiro” durante a década
de 1950 necessita ser mais bem explicitada. O uso do termo, segundo pudemos analisar,
tem naquele momento significado totalmente diverso do empregado atualmente a respeito
deste significante. A figura do justiceiro naquele momento, portanto, é a de alguém que não
se vale da autoridade que lhe é legitimada para vingar-se de seus supostos inimigos, assim
como dos inimigos de seus correligionários, afilhados e amigos. Neste caso, o justiceiro
não é visto socialmente como aquele que está às margens da lei, que age por vingança ou é
pago para resolver questões; é, isto sim, uma pessoa costumeiramente requisitada para
resolver os mais diversos tipos de questões, seja entre seus amigos ou não, e desta maneira
promover a paz e a harmonia a todos que o procuram, vindos de onde vierem. De natureza
distinta em relação aos cordéis, a análise sociológica apresentada por Marcos Vinicios
Vilaça acerca de Francisco Heráclio, estabelece uma aproximação com a imagem do
justiceiro apresentada pelo cordel. Para este autor, nos domínios do coronel:
191
O termo “simbólico”, em nossa escrita, é usado como sinônimo de poder simbólico, como define Pierre
Bourdieu. Para este autor, “o poder simbólico é o poder de construir o dado pela enunciação, de fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo... O que faz o poder das
palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das
palavras e daquele que as pronuncia”. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3ª edição. Rio de Janeiro:
editora Bertrand Brasil, 2000, pp. 14-15.
192
Ver na nova versão eletrônica do Dicionário Aurélio o verbete sobre o justiceiro: “Indivíduo que, por sua
própria iniciativa ou por solicitação de outrem, e independentemente da lei ou dos poderes constituídos,
supostamente repara um mal, esp. por meio de vingança”.
92
ou encaminha às autoridades os pleitos que lhe aparecem, quando, o que
é raro, ele mesmo não decide tudo193.
193
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003. p. 125.
93
renda que, em Pernambuco, compumham a maior parte da sociedade neste período. Esta
literatura nos é apresentada como uma das possíveis estratégias utilizadas por grupos
políticos nas décadas de 1940 e 1950. Sua oralidade e musicalidade permitem que os mais
diferentes temas sejam facilmente assimilados e lembrados pelos leitores e ouvintes. Neste
sentido, a literatura de folheto era, então, um mecanismo de informação e formação
extremamente aceito e consumido pelo povo, onde os poetas procuravam se aproximar ao
máximo do universo, das angústias e das crenças religiosas doe seus leitores.
Sobre o discurso a respeito do sagrado é significativo pensarmos como o próprio
Ernesto Cândido que, assim como outros poetas cordelistas, apropria-se da simbologia
religiosa. Em umas das estrofes elaboradas pelo referido poeta encontramos o leitor sendo
alertado sobre um outro tipo de justiça, a justiça divina:
Num país como o Brasil, a quase totalidade dos segmentos sociais mantém algum
tipo de vínculo religioso. Principalmente sobre aqueles ligados à Igreja Católica, que
professa uma fé assentada nos dogmas do Cristianismo, o discurso acerca do sagrado tem
demonstrado enorme eficácia para delinear comportamentos humanos e políticos194.
Segundo Bourdieu, os símbolos religiosos tendem a cumprir uma função social e política
na medida em que a religião permite estabelecer uma percepção de mundo por meio de um
conjunto de práticas e representações simbólicas195.
Nesta perspectiva, as representações operacionalizadas pelo poeta procuram afirmar,
fazendo uso de uma bem elaborada métrica, certa aproximação entre aquele político e a
194
Neste verso, a imagem acerca do sagrado é utilizada como importante elemento para justificar ou reforçar
um discurso político. Sobre a intricada relação que envolve o sagrado e político, ver LENHARO, Alcir.
Sacralização da política. 2ª edição. São Paulo: editora Papirus, 1986.
195
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6ª edição. São Paulo: editora Perspectiva, 2005,
pp. 33-34.
94
imagem sagrada de Deus. Aproximação, portanto, que o legitima a falar em nome de Deus,
de uma ordem divina das coisas, em que é possível determinar o verdadeiro caminho a ser
seguido por todos. E é seguindo este caminho, ou os desígnios dos céus, que estes fiéis
cristãos alcançarão a bênção, a recompensa e o perdão. A fim de conseguir tamanha graça,
não necessitam pagar qualquer tipo de promessa ou fazer caridades, basta-lhes atender a
uma única orientação: votar naquele líder político.
Pensando nas disputas eleitorais referentes ao executivo municipal em 1955, um
outro poeta popular cujo nome não é revelado também cerca-se de imagens religiosas em
sua poesia. Desta feita, os versos não se valem diretamente do nome de Deus, mas narram
os pedidos do padre Cícero Romão quando recomenda aos seus fiéis votarem nos
candidatos de Francisco Heráclio:
95
Como também a salvação196.
196
Trechos deste cordel foram publicados por VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto
Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora
Bertrand Brasil, 2003. pp. 153-154. Ver também, RÊGO, André Heráclio do. Famille et pouvoir regional au
Brésil: le coronelismo dans le Nordeste 1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006, pp. 240-241.
197
Ver LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 2ª edição. São Paulo: editora Papirus, 1986.
198
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, p. 154.
199
Entrevista de José Vital Duarte de Melo, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006.
96
divergia das determinações políticas de seu pai e da maior parte da família, e estava
especialmente em desacordo com seu tio, Francisco Heráclio200. Diante desta disputa
familiar, Octaviano não escapa de ser apresentado pelo poeta popular como “Filho que é
contra Pai Como também a irmão Esta amaldiçoado Por padre Cícero Romão”.
Já nas estrofes seguintes a preocupação do poeta é justamente de apresentar todos
aqueles que fazem oposição a Francisco Heráclio do Rêgo como incapazes de oferecer
qualquer tipo de proteção a seus eleitores. Para fazer esta projeção à oposição, o poeta
utiliza uma seqüência de palavras que procuram minar as supostas qualidades dos inimigos
políticos.
Voltando às disputas travadas no pleito de 1954 em Limoeiro, é significativo
pontuarmos a capacidade do poeta Ernesto Cândido em desqualificar os opositores a
Francisco Heráclio. Neste sentido, afirma em seu cordel intitulado “História política do
coronel Francisco Heráclio do Rêgo” que:
Em Limoeiro habita
Um pouco de idiotas
Que para diminuí-lo
Inventa todas marmotas.
Coitados vão terminar
Doidos na rua a gritar
Batendo de porta em porta.
A eleição vem aí
Para tirar a certeza
É quando eu quero mostrar
Do Coronel, a grandeza.
Depois das urnas apuradas
A oposição derrotada
Fica tudo na raleza.
200
Sobre esta disputa política é importante ver, também, a seguinte matéria: Divididos os Heráclios de
Limoeiro. Jornal Diário da Noite, Recife, 25 de agosto de 1955. APEJE.
97
Os versos do poeta, ao fazerem referência à oposição, procuram desqualificá-la, ou
torná-la ilegítima, e para tanto começam por afirmar que no município de Limoeiro existem
alguns poucos idiotas. É importante atentar para a preocupação do poeta em enfatizar que
tais idiotas representam apenas um reduzido grupo de pessoas. Esta oposição, além de
construída como um pequeno grupo de idiotas, sugere ao leitor tratar-se de políticos
infames ou indignos e, portanto, não merecedores do apoio dos eleitores, pondo em jogo a
capacidade ou a força política deste grupo.
Neste sentido, as ações realizadas pela oposição são de pronto taxadas de marmotas.
A utilização deste lugar parece cumprir com muita competência a intenção de pôr em
questionamento as práticas agenciadas pela oposição tendo em vista que, usualmente, o
significado desta expressão estava associado às ações de fantasmas ou espantalhos. Muitas
vezes o termo também era utilizado para desqualificar e reprimir algumas práticas
religiosas afro-brasileiras.
Em outro verso podemos observar que será acrescentada a relação de palavras
destinadas a identificar a oposição em Limoeiro. O discurso produzido procura, agora,
aproximar aquele grupo político do mundo construído para os loucos. Ora, no momento em
que se busca enquadrar alguém como louco, uma série de questões são aí perpassadas. O
mundo dos loucos é um lugar pouco conhecido pelos considerados normais; ao mesmo
tempo sua fala e ações são sucestíveis a emitir signos de desconfiança. Este descrédito, para
o poeta, será efetivado quando da abertura das urnas, momento em que se verificará a
grandeza e o valor do coronel; enquanto a oposição, desencadeada em Limoeiro por setores
do PSD em alianças com outros partidos, será derrotada ficando na “raleza”.
Ao fazer referência às fábulas, Michel Foucault entende que esses relatos
conseguem, ao sair do comum, do possível aos homens, cumprir uma função estratégica na
medida em que é capaz de fascinar ou persuadir201. Tomando por base este entendimento
podemos afirmar que parte da documentação analisada para esta dissertação tem
apresentado várias características, marcas, ações e atitudes acerca de Francisco Heráclio,
como algo extraordinário e impossível de ser alcançado pela maioria das pessoas. Sendo
201
FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. (Ditos e escritos, vol. IV). Rio de Janeiro: editora Forense
Universitária, 2003, p. 220.
98
este, portanto, um lugar apenas para os escolhidos, pois são os únicos capazes de serem
investidos de tamanho poder202.
Reafirmamos, portanto, que o objetivo maior da presente dissertação tem sido o de
oferecer outra inteligibilidade ao conjunto da documentação a que tivemos acesso no
transcorrer da pesquisa, tanto em relação aos chamados boletins, às matérias publicadas no
jornal Folha da Manhã intituladas “A Vida Secreta do Coronel Francisco Heráclio do
Rêgo”, como à literatura de cordel. É significativo destacar que a análise destes documentos
ao longo do capítulo têm como intenção primeira refletir de que modo alguns discursos são
capazes de arquitetar, para certos personagens ou grupos familiares, um lugar político e
social privilegiado, ao mesmo tempo em que poderá ser utilizado para a desqualificação de
algumas outras pessoas também envolvidas no processo político. Noutros termos, tais
questões contribuem para o entendimento de como é posta em circulação uma série de
representações cujo intuito é materializar, reforçar lugares de poder de determinados
indivíduos ou segmentos sociais, ou ainda garantir este poder em momentos quando sua
legitimidade é questionada203. Também colabora para este entendimento a análise feita por
Maria Auxiliadora Lemenhe ao afirmar que o importante é pensarmos as estratégias
simbólicas operacionalizadas por certos grupos a fim de garantir a reprodução do poder204.
Estratégias como a que faz uso de imagens religiosas – aspecto que permeia vários
momentos deste trabalho. Para Alcir Lenharo, a secularização de imagens religiosas, ou seu
intercâmbio, funciona “como instrumento ideológico nas disputas de interesse político”205.
202
BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível. Trad. Cristina Lacerda e Teresa Dias Carneiro da Cunha. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 2002.
203
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: editora Companhia das
Letras, 1990.
204
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o(caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições UFC, 1995, pp. 85-93.
205
LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 2ª edição. São Paulo: editora Papirus, 1986, p. 173.
99
Parte 3
Práticas políticas e eleitorais
100
Capítulo I
A redemocratização e a política em Pernambuco e em Limoeiro
206
Um importante autor que trabalha o processo de redemocratização do Brasil e as disputas políticas travadas
naquele momento é FERREIRA, Jorge. A democratização de 1945 e o movimento queremista IN FERREIRA,
Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da experiência democrática: da democratização de
1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: editora Civilização Brasileira, 2003, pp. 13-46.
207
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de janeiro: editora Paz e
Terra, 1982.
208
Sobre os partidos nacionais organizados no Brasil durante a crise do Estado Novo, é importante ver
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia IN FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da
101
compõem as transformações que estavam acontecendo no Brasil como a ampliação do
número de eleitores a partir das diretrizes traçadas pelo decreto-lei n° 7.586 de 28 de maio
de 1945, decreto denominado de Lei Agamenon, nome do então Ministro da Justiça do
governo de Getúlio Vargas em 1945209. Esta lei objetivava maior controle em relação a
possíveis fraudes eleitorais, e previa em seu artigo 123 algumas disposições penais a todos
aqueles que habilitados a efetuar o alistamento e a votar, como versam os artigos 02, 03 e
04 da referida Lei, não cumprissem com tais obrigações. Um exemplo dessas infrações
recaía sobre homens e mulheres maiores de 18 anos que exercessem alguma atividade
lucrativa e não se alistassem ou deixassem de votar. Nestes casos, o artigo 123 determinava
multas que variavam entre 100 e 1.000 Cruzeiros caso não fosse provado como justo aquele
impedimento210.
As disposições presentes no artigo 123 do referido decreto-lei são entendidas como
elementos importantes na ampliação do eleitorado, uma vez que homens e mulheres
maiores de 18 anos eram obrigados a efetuar o alistamento e comparecer às urnas211. O
descumprimento a essa lei poderia acarretar outras sanções como as restrições para
ocupação de cargos públicos212. Posteriormente, a quase totalidade das determinações
presentes no citado decreto-lei são incorporadas à Constituição de 1946. É neste período
que, entre outras importantes alterações, o voto secreto e o pluripartidarismo – restringidos
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: editora
Civilização Brasileira, 2003, pp. 125-154.
209
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia IN FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: editora
Civilização Brasileira, 2003, pp. 125-154.
210
Decreto-Lei n° 7.586 de 28 de maio de 1945. No artigo 123 é versado sobre as penalidades impostas
àqueles que habilitados a votarem não compareciam às urnas. Sobre estas disposições da referida Lei ver
também NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores,
2002, p. 44. Sobre a criação dessa lei e as transformações que ela traz para o cenário das disputas políticas ver
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia IN FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: editora
Civilização Brasileira, 2003, pp. 125-154. Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello. Estado e partidos
políticos no Brasil (1930-1964). 3° edição. São Paulo: editora Alfa Ômega, 1990.
211
De acordo com o próprio Jairo Nicolau, “o alistamento feito em 1945 foi muito mais eficiente do que o
realizado 12 anos antes (1933). Foram registrados 6, 168 milhões de eleitores, um crescimento de 329%
enquanto a população cresceu apenas 25% no mesmo período”. p. 43.
212
NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002,
pp. 37-55.
102
pelo decreto-lei nº 37, de 02 de dezembro de 1937, pensado pelo Estado Novo – farão parte
do sistema representativo do Brasil.
Esta ampliação eleitoral – como mostra Iberê Dantas – que ocorre em âmbito
nacional com a redemocratização, acarreta perceptíveis mudanças no cenário político em
213
Sobre a composição social do PSD e da UDN em Pernambuco é significativo analisar PANDOLFI, Dulce
Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães; consolidação e crise de uma elite política. Recife: editora
Massangana, 1984, pp. 85-114. Quanto ao PSD, afirma a autora ser este partido formado principalmente por
membros da burocracia estatal, coronéis do Agreste e do Sertão, sobretudo o setor vinculado à oligarquia
algodoeira e pecuarista, alguns industriais e parcela da classe média. A UDN também apresenta, segundo a
autora, uma composição social heterogênea, formada por industriais, usineiros, intelectuais, coronéis do
Agreste e do Sertão, mesmo que em menor número, entre outras importantes categorias sociais.
214
Sobre a participação de Francisco Heráclio nas disputas eleitorais nos foram importantes as informações
oferecidas por RÊGO, André Heráclio do. Famille et pouvoir regional au Brésil: le coronelismo dans le
Nordeste 1850-2000. Paris: editora L’ Harmattan, 2006.
215
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC
/ Programa Editorial, 1987, p. 32.
103
Pernambuco e, particularmente, no município de Limoeiro. Compreendemos ser a partir
deste momento que Francisco Heráclio se constitui importante personagem da política
estadual. Esta liderança política é apresentada insistentemente pela documentação
analisada. Nesse sentido, destaca-se uma crônica que circulou no jornal Folha da Manhã de
21 de maio de 1950:
216
Folha nos municípios, Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 21 de maio de 1950, pp. 12 e 14. APEJE.
104
jornal, ou mesmo na cidade de Goiana onde reside um dos cronistas mostrando, dessa
maneira, a inserção daquele político em inúmeras outras cidades.
105
caminhos – para Francisco Heráclio um lugar que pode ser identificado como o de um
mediador, uma vez que mantém complexas relações com o estado e a cidade. Ao mesmo
tempo, trabalhar pela cidade conduz a imaginação a um conjunto de obras estruturais sendo
efetuadas com recursos provenientes dos cofres estaduais e, provavelmente, atribuídas
àquele líder político como fruto de suas relações e prestígio com o governo estadual.
Relações imbricadas em que Francisco Heráclio e o estado muitas vezes se aproximam e se
confundem, projetando-os como uma única imagem. Além disso, sua aproximação com os
“pobres que o procuram”, votantes em potencial, remete a significativa prática
assistencialista capaz de projetá-lo como alguém a se sentir responsável pelos pobres e
necessitados. Aquele com quem os pobres poderiam sempre contar para os mais diversos
aspectos de sua existência.
217
É importante ressaltar que a utilização do termo “controle político’ ocorrerá com certa insistência neste
capítulo. Entendemos por controle político um conjunto de práticas eleitorais ou não que visam garantir a
inserção e a permanência de um determinado personagem no campo da política. Portanto, essas práticas que
sugerem um “controle político”, não atuam anulando ou destituindo a capacidade política dos vários
segmentos sociais. Não há por parte de uma elite política controle eficiente que possa ser capaz de manipular
de forma absoluta as vontades e anseios dos mais diversos grupos sociais. Ciente desta complexidade, tais
práticas são visualizadas procurando abarcar ou atingir, como sugere a documentação, os mais variados
segmentos sociais, embora em inúmeros momentos tenhamos privilegiado em nossa escrita uma análise que
leva em consideração a relação dessas práticas com as camadas populares, principalmente quando do trato
acerca das práticas que nomeamos de assistencialistas.
106
Capítulo II
Entre os anos de 1945 e 1955 são recorrentes na imprensa inúmeras matérias sobre a
importância política, social e econômica do município de Limoeiro; além do poder político
de Francisco Heráclio do Rêgo no estado de Pernambuco e, particularmente, naquele
município218.
218
Ver a série de reportagens intitulada Folha nos municípios, publicada Jornal Folha da Manhã. APEJE.
219
Em relação à cotonicultura como incentivo ao dinamismo econômico no Estado de Pernambuco entre o
final do século XVIII e final do século XIX ver TEXEIRA, Flávio Wainstein. O movimento e alinha:
presença do teatro do Estudante e d’O Gráfico Amador no Recife (1946 – 1964). Recife: editora Universitária
da UFPE, 2007, pp. 33-34.
220
Neste momento Limoeiro destaca-se, sobretudo na produção de leite e carne destinada a abastecer a capital
do Estado. Com a valorização comercial do algodão torna-se também um dos maiores produtores dessa
cultura. Ver Limoeiro o maior empório algodoeiro de Pernambuco. Jornal Folha da Manhã, Recife, 08 de
maio de 1949, pp. 08 e 09. APEJE.
221
Entendemos esse trabalho de re-elaboração da memória como uma construção sócio-cultural individual e
coletiva de um determinado grupo. Em outras palavras, é uma construção individual uma vez que percebemos
o mundo a nossa volta de forma ativa e com impressões próprias. Mas é também, ao mesmo tempo, coletiva,
pois todo indivíduo compõe uma determinada rede social onde compartilha idéias, sentimentos, angústias,
decepções. Sobre esta dimensão individual e coletiva da memória é importante ver HALBWACHS, Maurice.
A memória coletiva. São Paulo: editora Centauro, 2004.
107
Eu achava uma das cidades mais adiantadas assim do interior. Digo
isso porque o comércio era muito bom, tinha fábrica de Otaviano
Heráclio Duarte e de José Barbosa do Rêgo. Depois Zé Araújo botou a
Durabem em Limoeiro, uma fábrica de roupas jeans.
Tinha dois colégios muito bons. Um feminino que era o Regina Celi que
era dirigido por alemães e tinha o colégio do Padre Nicolau. Masculino.
Aí teve muita gente famosa que saíram desses colégios: Marcos Vilaça,
Dr. Mauro Arruda, Dr. Maurílio, Dr. Alcides Bezerra e mais outros. Uma
cidade onde que as pessoas... Onde convergiam, várias... Quer dizer...
Era um centro dessa região. Era um centro dessa região, hoje
infelizmente acabou tudo. Mas antigamente era uma cidade de um centro
comercial muito grande. Tudo que a pessoa procurava tinha222.
222
Entrevista de Vírginha Heráclio, realizada na cidade de Limoeiro em 22 de outubro de 2006, pp. 01-02.
223
É importante ressaltar que as fábricas do industrial Otaviano Heráclio, sobrinho de Francisco Heráclio, a
que se refere a senhora Vírginha, estavam associadas à cultura do algodão, que nesse período alcançava uma
posição comercial relevante.
224
Série Monografias Municipais, Limoeiro. Fundação de informações para o desenvolvimento de
Pernambuco/FIDEPE, Fundação de desenvolvimento municipal do interior de Pernambuco/FIAM, 1981.
108
Caruaru, onde votaram cerca de 16 mil eleitores, e de Garanhuns onde foram às urnas
quase dez mil votantes, apareceu Limoeiro com 8.366 votantes”225.
O editorial do jornal Folha da Manhã de 14 de março de 1952, intitulado “Folha nos
Municípios”, revela a estimativa de eleitores para as eleições de 1954 em relação ao
contingente populacional226.
225
Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 10 de outubro de 1950, p. 08. APEJE.
226
É importante ressaltar que, com a morte de Agamenon Magalhães, em agosto de 1952, foi realizado em 23
de outubro de 1952 novas eleições para o Executivo Estadual.
227
Folha nos Município/Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 14 de março de 1952, p. 07. APEJE.
109
Adentrando um pouco nesta relação estabelecida entre o líder político e o estado,
Maria Auxiliadora Ferraz faz o seguinte comentário, em sua obra “Dos velhos aos novos
coronéis; um estudo das redefinições do coronelismo”228.
Raymundo Faoro, que projeta vários traços gerais sobre o que seria o fenômeno do
coronelismo, característico da Primeira República, também observa que “a situação
política do coronel se manifesta nos seus serviços de intermediação”230. Para Faoro, “o
coronelismo se manifesta num compromisso, uma troca de proveitos entre o chefe político
e governo estadual, com o atendimento, por parte daquele, dos interesses e reivindicações
do eleitorado rural”231.
Esse processo de intermediação ou de compromisso firmado entre o político local e
o governo estadual, apresentado pelos autores, tem se revelado na documentação analisada
uma dimensão tensa e complexa. Trata-se de uma relação que requer maior detalhamento,
não só quanto ao município de Limoeiro como também em relação a outros municípios.
Esta posição de prestígio, de mediador, é uma relação de poder que poderá se apresentar de
maneira conflituosa, instável, conquistada e negociada cotidianamente232.
228
Maria Auxiliadora Ferraz elabora um quadro sobre os conflitos políticos existentes entre duas famílias no
sertão de Pernambuco durante a década de 1970.
229
SÁ, Maria Auxiliadora Ferraz de. Dos velhos aos novos coronéis; um estudo das redefinições do
coronelismo. Recife: PIMES, 1974, p. 94.
230
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 712.
231
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 711.
232
GUIMARAES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração: memória e práticas culturais: Mato Grosso
na primeira metade do Século XX. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2006, pp. 151-157. É importante ressaltar que, em
Pernambuco, esta relação conflituosa entre um determinado chefe político e o poder Executivo poderá ser
observada nos anos de 1952 a 1954, quando Francisco Heráclio e vários outros políticos formaram uma
dissidência no PSD. Este aspecto da política de Pernambuco já foi devidamente analisado no capítulo que a
este antecede.
110
O poder que Francisco Heráclio estabelece com o estado, sobretudo a partir de
1945, não é proveniente de sua “intensa agonia” política em relação ao poder que esses
líderes políticos poderiam ter exercido durante a Primeira República, como critica
Raymundo Faoro233. Nem um “poder delegado” concedido pelo estado ao espaço privado,
como define o próprio Raymundo Faoro234; nem também uma espécie de “reminiscência do
poder privado” proveniente do Brasil imperial, segundo aponta Victor Nunes Leal235. Ou
ainda, como afirma Maria Isaura Pereira de Queiroz, ser a principal fonte de poder desses
chefes políticos ou mandões emanada, primordialmente, do mandonismo local devido à
permanência de uma estrutura social baseada no latifúndio e na riqueza proveniente de
outros bens de fortuna, ainda presente no Brasil ao tempo em que a autora escreve236.
É preciso analisar uma série de nuanças, mutações presentes nestes espaços de
disputas que cercam cada momento histórico, seja em ambiente urbano ou rural237.
Entender o poder exercido por Francisco Heráclio como uma relação em permanente
construção, um ir e vir por caminhos diversos, uma luta incessante de posições em que as
táticas políticas se revelam bastante diversas.
As questões suscitadas das relações mantidas entre este líder político e o estado
requerem análises mais profundas. Aí podemos perceber uma apropriação ou confluência
de imagens onde ambos fazem uso da imagem do outro. Este entendimento construído
sobre as relações estabelecidas entre Francisco Heráclio e o estado se opõe, em grande
medida, à perspectiva presente em autores como Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal.
Para estes autores, a política dos governadores formulada na gestão do presidente Campos
Sales teria, definitivamente, estabelecido as regras do jogo político entre o coronelismo, os
estados e o poder central, estabelecendo suas funções e hierarquias no cenário político. Ou
233
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 730.
234
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3ª edição. São Paulo-SP: editora Globo, 2001, p. 710.
235
LEAL Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio
de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1997.
236
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976. É importante ressaltar que a autora reconhece também a permanência do
mandonismo para além da Primeira República, mesmo diante das transformações sócio-econômica e política
que vivencia o Brasil desde a Revolução de 1930. O mandonismo, dessa maneira, poderá ser localizado ao
longo das décadas de 1950, 1960 e 1970 quando sua obra é publicada.
237
É preciso ressaltar que autores como Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro elaboraram painéis gerais
sobre o fenômeno do coronelismo no Brasil, sobretudo, durante a Primeira República. Assim como vale
ressaltar que Leal também contextualiza seu estudo sobre as décadas de 1930 e 1940. Porém, muitas dessas
generalizações definidas por estes autores são tomadas, ou simplesmente transpostas, por vários estudiosos
para explicar a presença desses chefes políticos em outros momentos históricos.
111
seja, os coronéis, em sua grande maioria, representavam importantes chefes políticos
municipais ou locais que iriam garantir a elegibilidade da oligarquia estadual que, por sua
vez, passava a apoiar, sem grandes restrições, o governo federal. Paralelamente, os coronéis
seriam os intermediários entre as massas, sobretudo rurais, e esta oligarquia. Existiria,
portanto, segundo estes autores, uma nítida distinção entre coronelismo e oligarquia
estadual.
Estudiosos como Iberê Dantas, ao definir o coronelismo e ao explicar sua formação
durante o início da República – coronelismo cuja presença se estenderia, segundo Iberê, até
a década de 1960 – aproxima-se daqueles demais autores, conforme a seguinte análise:
238
DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracajú, Universidade federal de Sergipe, PROEX / CECAC
/ Programa Editorial, 1987, p. 20.
239
É importante lembrar que Iberê Dantas analisa o coronelismo em três momentos distintos ao longo da
República: durante a República Velha; da revolução de 1930 à redemocratização em 1945, de 1945 ao golpe
militar em 1964. Iberê aponta para cada um desses períodos algumas transformações ou mutações por que
teria passado o coronelismo. No entanto, essa posição que projeta o coronelismo como um poder estritamente
local, voltado para garantir a viabilidade da oligarquia estadual, parece não ter passado por variações ao
analisar tais períodos. Em outras palavras, não só durante a primeira República, mas ao longo de diversos
momentos da história da República do Brasil, onde o mesmo observa a presença do coronelismo, deixa
transparecer que coronelismo e oligarquia estadual são grupos políticos distintos.
112
Conforme registrado acima, sugerem, portanto, que coronelismo e oligarquia
estadual representam grupos políticos estanques. Este posicionamento diverge do
encaminhamento trilhado nesta dissertação. Isso porque não constatamos na documentação
a existência de uma separação nítida entre a oligarquia estadual e Francisco Heráclio240. Ao
mesmo tempo em que se apresenta enquanto líder político local, constitui-se também como
membro da oligarquia estadual, integrando, assim, o próprio poder estadual. Ao se fazer
intermediário entre o estado e determinados municípios não entendemos se caracterizar
nenhuma rígida distinção entre poder local e estadual. Ao contrário, manifesta-se aí uma
relação fluida em que Francisco Heráclio e o estado – ou a oligarquia estadual – se cruzam,
se confundem em vários instantes. Também, este processo de intermediação não se
restringiu à população rural, como têm afirmado Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal. Tal
configuração está fortemente presente na sede do município de Limoeiro.
Tamanha complexidade passa a ser mais bem compreendida à medida que se
explora a documentação do período. Nessa perspectiva, aos 17 de agosto de 1945, o jornal
Folha da Manhã publica uma reportagem fazendo referências ao PSD de Limoeiro. Afirma
ter aquele município uma posição eleitoral de destaque na zona norte do estado, pois o
movimento pró-candidatura de Eurico Gaspar Dutra, candidato pelo PSD, também apoiado
pelo PTB, recebera a quase totalidade dos votos241. Ao transcorrer da matéria, o repórter
continua a oferecer elementos que reforçam o lugar de prestígio e poder político daquele
município. Este lugar, portanto, não é reconhecido por acaso, mas atribuído à presença e
atuação de Francisco Heráclio que, naquele momento, é um dos responsáveis pela
organização do PSD em Pernambuco.
240
É importante ressaltar nesta discussão que em alguns momentos de conflitos e disputas políticas, Francisco
Heráclio mantém certo distanciamento com o estado e com parte significativa da oligarquia estadual, no
entanto, isso não nos induz a pensar que o mesmo deixa de ser visto como membro desta oligarquia.
241
Sobre os números referentes à eleição de 02 de dezembro de 1945 para o cargo de presidente da República,
após 15 anos tendo estado no cargo Getúlio Vargas, autores como Dulce Pandolfi e Antônio Lavareda não
fazem menção sobre os resultados da eleição nos municípios de Pernambuco. Passamos então a acompanhar a
divulgação da apuração a partir dos jornais. Em 04 de janeiro de 1946 a imprensa publica o resultado final da
apuração no município de Limoeiro: 4.063 para o General Eurico Gaspar Dutra e 666 para o Major Brigadeiro
Eduardo Gomes. Ver Grande vitória do PSD, em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 04 de janeiro de
1946, p. 05. APEJE. Ver os seguintes boletins, Aos limoeirenses amigos e correligionários. Boletim. Jornal
Folha da Manhã, Recife, 08 de dezembro de 1946, p. 05. APEJE. Aos limoeirenses em particular e aos
pernambucanos em geral. Boletim. Jornal Folha da Manhã, Recife, 05 de novembro de 1947, p. 03. APEJE.
113
Dono de um prestígio incontestável, repetidamente comprovado em
todos os pleitos eleitorais, o coronel Francisco Heráclio lidera as forças
que apóiam o Partido da maioria da nação e somente sua presença na
chefia do movimento pró-candidatura Dutra nos dá a certeza da que
Limoeiro irá às urnas sufragando, numa quase totalidade, o programa e
os candidatos do PSD242.
242
O PSD em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 17 de agosto de 1945, p. 06. APEJE.
243
Aos 28 de fevereiro de 1945, Getúlio Vargas, através da Lei Constitucional n° 9 ou Ato Adicional fixou
para 02 de dezembro daquele ano as eleições para o cargo de Presidente da República, Senado e Câmara
Federal. Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello. Estado e partidos políticos no Brasil (1930-1964). 3ª
edição. São Paulo: editora Alfa Ômega, 1990, pp. 105-135.
244
Etelvino ou Agamenon – diz Chico Heráclio. Jornal Diário da Noite, Recife, 21 de abril de 1950. APEJE.
245
Entrevista de Armando Monteiro Filho realizada no Recife, aos 31 de março de 2005. Esta estrevista
compõe o I volume de depoimentos do Projeto Memória Viva da Assembléia Legislativa do Estado de
Pernambuco, organizado em 2007 pelas pesquisadoras do CPDOC da FGV Célia Costa e Dulce Pandolfi. pp.
94-95.
114
Muito contribuiu para garantir o êxito desta liderança política sua relação pessoal
mantida com os governadores246. Para Maria Auxiliadora de Sá Ferraz “os chefes políticos
locais têm que saber fazer uso de suas ligações políticas e pessoais”247.
Este papel de mediador extrapola, pouco a pouco, os limites partidários; embora não
seja possível distanciar esta prática da rede partidária em que estava inserido. Tal posição
de prestígio fortemente solidificada no Partido Social Democrático passa a assumir outra
dimensão, o que pode ser verificado quando sua posição frente ao governo do estado é
identificada como capaz de garantir ao município a realização de um conjunto de obras
públicas como o serviço de abastecimento de água, por exemplo; obra que será executada
em nome de Francisco Heráclio. Nessa perspectiva, Francisco Heráclio e o estado se
confundem, refletem numa mesma imagem.
É significativo que na imprensa, a realização de obras como esta seja motivo para
consolidar a imagem do político interessado apenas em servir a população. Assim, a 04 de
janeiro de 1946, um dos jornais do estado afirma que “não foi visando a nenhum interesse
pessoal que o ilustre chefe político tomou essa atitude e sim aos sadios interesses do
município, pelo quais sempre se bateu numa permanente dedicação à sua terra”248.
Ao fazer referência às vitórias alcançadas pelo PSD em virtude das eleições de 02
de dezembro de 1945, procura lembrar que as eleições estaduais de 19 de janeiro de 1947
se aproximam, e sugere que a vitória do pleito passado seja mais uma vez reproduzida. É
possível vislumbrar importantes elementos trabalhando no sentido de fixar, reproduzir este
lugar de mediador. Ainda seguindo o que nos informa a matéria jornalística, sua posição de
liderança política apresenta-se completamente destituída de qualquer interesse particular. O
trabalho e dedicação do “ilustre” líder são voltados, exclusivamente, para os interesses do
município e de sua população.
Esses supostos interesses para com “sua terra” são entendidos sempre como de
fundamental importância para o desenvolvimento de Limoeiro. Podemos perceber como,
246
Em 1953 consolida-se uma divisão dentro do PSD que já era sentida após a vitória de Etelvino Lins em
1952. Ao romper com o governador, Francisco Heráclio deixa de exercer uma posição de prestigio, uma vez
que passa a compor um grupo minoritário dentro do PSD, conhecido como pessedistas históricos. Sua posição
de mediador perde seu significado, ou seja, deixa de existir.
247
SÁ, Maria Auxiliadora Ferraz de. Dos velhos aos novos coronéis; um estudo das redefinições do
coronelismo. Recife: editora PIMES, 1974, p. 94.
248
Grande vitória do PSD, em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 04 de janeiro de 1946, p. 05.
APEJE.
115
em 1949, antes, porém, das disputas eleitorais estaduais que ocorreriam em 03 de outubro
de 1950, alguns jornais articulavam e projetavam Francisco Heráclio enquanto homem
voltado para as questões essenciais do município. O jornalista especial do jornal Folha da
Manhã, José Lucas Meira, em visita à cidade de Limoeiro, escreve longa matéria sobre o
desenvolvimento pelo qual passava aquele município. Vários são os aspectos desse
dinamismo tratados pelo jornalista. Ao se referir à atuação daquele político, afirma: “o
coronel Francisco Heráclio, prestigioso líder pessedista do nosso sertão e a quem
Limoeiro deve muito pelo grande serviço que prestou e continua a prestar aquela
gente”249.
Um desses serviços prestados “àquela gente”, e constantemente lembrado pela
imprensa, é a efetivação do abastecimento de água encanada para a cidade. De acordo com
a documentação, durante o pleito eleitoral de 19 de janeiro de 1947, Barbosa Lima
Sobrinho, candidato pelo PSD, afirmara que, caso eleito, Limoeiro poderia contar com
aquele serviço. Vitorioso, estes trabalhos foram iniciados em 1949 e concluídos em 1951,
ano em que Agamenon Magalhães ainda era governador250.
O início das obras destinadas a abastecer a cidade de Limoeiro com a água
proveniente de Sirigí é largamente coberto pela imprensa251. Selecionamos alguns
fragmentos que perecem significativos para que se pense a imagem do político trabalhador
e dedicado, construída e atualizada de maneira insistente.
249
Limoeiro o maior empório algodoeiro de Pernambuco. Jornal Folha da Manhã, Recife, 08 de maio de
1949, pp. 08-09. APEJE.
250
Ao analisarmos os Anais da Assembléia Legislativa de Pernambuco de 1951, ano da inauguração do
sistema de abastecimento de água naquela cidade, constatamos que inúmeros foram os discursos produzidos
pelos deputados da base aliada ao governo de Agamenon Magalhães sobre a inauguração desta obra. Gerência
de Arquivo e Preservação do Patrimônio Histórico do Legislativo (GAPPHL).
251
Segundo consta em algumas entrevistas, o local ainda hoje conhecido por Sirigí era uma das fazendas de
Francisco Heráclio. Diante do grande volume de água ali existente, Francisco Heráclio teria doado aquelas
terras à Prefeitura de Limoeiro antes mesmo do inicio das obras de abastecimento. Atualmente, nas
proximidades desta propriedade, podemos constatar que existe um distrito de mesmo nome pertencente ao
município de São Vicente Férrer. Mas a Prefeitura de Limoeiro ainda preserva a propriedade doada por
Francisco Heráclio.
116
Rêgo... O serviço que ora começa é uma vitória sua tanto quanto do
governo do Estado. A ação conjugada, exercida pelo bem coletivo, não
pode deixar de trazer resultados tão benéficos252.
252
Água para Limoeiro. Jornal folha da Manhã, Recife, 16 de julho de 1949, p. 02. APEJE.
253
É importante ressaltar que em 1947 havia sido eleito prefeito do município de Limoeiro, pelo PSD,
Francisco de Moraes Heráclio, filho de Francisco Heráclio, porém, o mesmo não aparece com assiduidade na
imprensa. Sobre o período em que esteve no cargo e o número de votos alcançados, ver Série Monografias
Municipais, Limoeiro. Fundação de informações para o desenvolvimento de Pernambuco/FIDEPE, Fundação
de desenvolvimento municipal do interior de Pernambuco/FIAM, 1981, p. 22. Ver também Os resultados do
pleito do interior. Jornal Folha da Manhã, Recife, 07 de novembro de 1947, p. 05. APEJE.
254
Limoeiro terá a melhor luz do interior de Pernambuco. Jornal Folha da Manhã, Recife, 23 de julho de
1953. APEJE.
255
A entrevista do ex-governador de Pernambuco, Cordeiro de Farias, compõe o arquivo do CPDOC da
Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, realizada pela pesquisadora Aspásia Camargo. Esta entrevista
117
Nessa mesma perspectiva é significativa a contribuição da pesquisadora Maria
Auxiliadora Lemenhe ao estudar a participação da família Bezerra nas questões políticas do
Ceará durante a segunda metade do século XX. A autora observa como esses chefes
políticos “não deixam de exibir, desde a primeira hora, seu poder sobre o prefeito
eleito”256. Analisada a afirmação da autora encontramos, na documentação, elementos que
permitem afirmar que a família Heráclio, mais precisamente Francisco Heráclio, conseguia
deter considerável controle político e social e exercer constantes negociações com o
executivo estadual sem que, para isso, necessitasse da interferência do governo municipal.
A documentação analisada possibilita compreender que o governo estadual
estabelece alianças com Francisco Heráclio, este, diante do número de eleitores que
controla, também mantém ligações com o estado de onde obtém vários benefícios. São
recursos e obras para o município que serão realizadas em seu nome. Trata-se de complexas
relações em que Francisco Heráclio é apresentado como sendo a própria imagem do estado,
e vice-versa. Nesse sentido, ao ser apontado pela imprensa como agente do progresso,
mediador de benfeitorias, alguém capaz de conseguir para a cidade melhorias materiais
significativas, vai sendo construído como parte importante do poder estadual.
também está publicada, ver CAMARGO, Aspásia e GÓIS, Walder. Diálogo com Cordeiro de Farias: meio
século de combate. Rio de Janeiro: biblioteca do Exército Editora, 2001, pp. 407-408.
256
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família tradição e poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo:
ANNABLUME/Edições UFC, 1995, p. 112.
118
Capítulo III
Práticas cotidianas: o assistencialismo e as camadas populares
257
Não visualizamos na documentação uma distinção entre as práticas políticas agenciadas por Francisco
Heráclio entre 1945 e 1955 para as comunidades ou clientelas pobres das áreas rurais e as localizadas na sede
do município de Limoeiro. No entanto, um estudo mais especifico poderá mapear diferenças a partir da
segunda metade da década de 1950, em relação às práticas políticas utilizadas naquele município por
Francisco Heráclio em relação a clientela rural - uma vez que sua atuação política se prolonga até a década de
1970. É possível também que novas práticas políticas sejam viabilizadas para o cenário urbano tendo em vista
as mudanças no cenário político, econômico e social por que passa o Brasil a partir das décadas de 1960 e
1970, com o regime militar.
258
O autor analisa a atuação de quatro “coronéis” entre os anos de 1930 a 1960, aproximadamente,
envolvidos por uma série de mudanças, como o crescimento urbano, expansão do capitalismo, rádio. O autor
deixa-nos transparecer a existência de elementos populistas nos quatro casos.
259
VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis: apogeu e
declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003, p. 125.
119
Pesquisando alguns municípios do sertão de Pernambuco, Maria Auxiliadora de Sá
Ferraz fundamenta uma rígida dominação agrária, estruturada pelos proprietários de terra,
capaz de manter os trabalhadores numa posição de dependência e passividade diante das
vontades dos “coronéis”. Esta estrutura, portanto, não poderia ser entendida fora de uma
relação patrão-cliente. Observa ainda a autora que a aproximação dos proprietários com os
trabalhadores rurais ocorre, principalmente, em períodos de eleição. Neste momento, é
possível identificar “um jogo político com características populistas, para a obtenção das
vantagens eleitorais”260. Apesar de distintas, coexistiriam num mesmo espaço
características coronelísticas, próprias das áreas rurais, e populistas, comumente associadas
aos centros urbanos, cujas similitudes estariam presentes nas relações pessoais
paternalistas261.
Maria de Lourdes Janotti, que apresenta um quadro geral sobre o sistema coronelista
durante a Primeira República, faz referências às relações firmadas entre os coronéis e a
população circunvizinha como uma espécie de fórmula capaz de abranger toda a
complexidade da política local. Identifica esta população como uma “extensa clientela
política, numerosa parentela e dependentes de ordem diversas”262. Firma-se, portanto, uma
política de compromisso com esta clientela que envolve proteção, trabalho, lealdade e
dependência, advindo dessa equação o controle sobre a população local e,
conseqüentemente, sobre esse diversificado conjunto de eleitores que, para a autora, é
destituída de vontade política.
De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os coronéis tinham o controle de
uma extensa clientela política e também eram os chefes de uma extensa parentela.
Associado a estas características, acrescenta que os coronéis, diante de sua privilegiada
condição econômica, promoviam uma considerável gama de favores a todos que o
cercavam e dele dependiam. Em outras palavras, o estreitamento das relações “com a sua
260
SÁ, Maria Auxiliadora Ferraz de. Dos velhos aos novos coronéis; um estudo das redefinições do
coronelismo. Recife: PIMES, 1974, pp. 113-114.
261
Maria Auxiliadora afirma que a presença de características populistas em áreas predominantemente de
características coronelísticas é uma contradição. Isso porque a autora se baseia na definição de populismo
elaborada por Francisco Weffort, em que o populismo estaria ligado a locais de estrutura social urbana e
capitalista, atendendo aos interesses dos trabalhadores. Esse populismo identificado pela autora não atenderia
aos interesses dos trabalhadores rurais e sim dos proprietários.
262
JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo: uma política de compromisso. São Paulo: editora
Brasiliense, 1981, p. 49.
120
gente”, assim como o próprio mando, em grande medida, dependiam da harmonia e da
confluência destes fatores263.
Feitas estas considerações em que tais autores definem e nomeiam a partir de
diferentes perspectivas as relações que estes líderes políticos mantinham com vários grupos
sociais em suas áreas de influência política, essencialmente, interessa-nos descrever como
Francisco Heráclio articulava e realizava suas ações. Neste sentido, a documentação
estudada ao longo desta pesquisa tem possibilitado reconstituir algumas dessas práticas. O
foco de nossa atenção recai sobre uma série de ações que parecem permitir certo controle
eleitoral no município de Limoeiro entre 1945 e 1955, mas com prováveis possibiliddes de
serem localizadas também em outros tempos e espaços ao longo da história do Brasil.
Dito isto, salientamos que um significativo registro produzido pelo jornal Folha da
Manhã de 10 de abril de 1948 apresenta alguns elementos que ajudam a construir uma
compreensão acerca do que é nomeado de assistencialismo.
263
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São
Paulo: editora Alfa-Omega, 1976, pp. 163-200.
264
Pequeno esboço sobre os “coronéis” do sertão. Jornal Folha da Manhã, Recife, 10 de abril de 1948, p. 02.
APEJE.
121
Um dado a ser mencionado é que este discurso tem sido percebido em inúmeros
documentos que fazem referência a Francisco Heráclio. Em 1950, ano em que ocorreriam
as disputas eleitorais para o executivo e legislativo estadual265, parte da imprensa se utiliza
do discurso assistencialista. Uma dessas reportagens foi apresentada pelo jornal Diário da
Noite, em janeiro de 1950.
Este fragmento, entre outros aspectos, versa sobre uma série de acontecimentos
ocorridos durante as eleições estaduais de 19 de janeiro de 1947. Denuncia Francisco
Heráclio os horrores cometidos pelo interventor federal em Pernambuco, Demerval
Peixoto, contra sua pessoa, seus familiares e o povo de Limoeiro267.
Neste discurso podemos observar a preocupação daquele político em nomear parte
significativa dos eleitores de fracos, perseguidos e desprotegidos. Diante do enquadramento
por que passam esses segmentos sociais economicamente menos favorecidos, é projetado
como alguém cujo interesse maior está em proteger e jamais em abandonar aquele
considerável contingente eleitoral em relação à maior e mais organizada oposição ao PSD
que, neste momento, encontra-se na UDN.
265
Estas eleições foram realizadas em 03 de outubro de 1950.
266
Dramática explicação do “Coronel” Chico Heráclio: Estou com medo. Jornal Diário da Noite, Recife,
segunda-feira 23 de janeiro de 1950. APEJE.
267
Após a redemocratização, em 1945, temos a realização de eleições para o Executivo estadual, em 19 de
janeiro de 1947. Mas a posse de Barbosa Lima Sobrinho como governador eleito só ocorreria em 1948, por
questões judiciais implementadas pelo candidato da UDN Neto Campelo. Neste período vários interventores
federais foram nomeados para Pernambuco. O último deles foi Demerval Peixoto que era membro do PSD e
tinha sido indicado pelo presidente Eurico Dutra. Por uma série de questões envolvendo o ex-interventor
Agamenon Magalhães e Dutra, Demerval Peixoto passa a apoiar, durante as eleições, o governo do estado
Neto Campelo, candidato da UDN. Neste momento, Francisco Heráclio apóia integralmente o candidato do
PSD, Barbosa Lima Sobrinho. Ao mesmo tempo, Demerval Peixoto, passa a utilizar todo o aparato do Estado
para dificultar a campanha eleitoral e a possível vitória do PSD, ou seja, de Barbosa Lima Sobrinho. Assim
como se queixava Francisco Heráclio em Limoeiro, vários líderes políticos dos municípios do interior
denunciavam, com freqüência, na imprensa, a utilização, por parte do interventor, da força policial para
vencer as eleições. Sobre Demerval Peixoto, ver também o Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-
1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu... [et al.]. Ed. rev. e atual. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV;
CPDOC, 2001. Vol. IV, p. 4499.
122
Um aspecto a ponderar-se, com base ainda neste fragmento, está relacionado ao
papel de servir aos supostos necessitados. O ato de servir encontra-se associado à proteção
oferecida aos possíveis eleitores. Seguindo este mesmo entendimento, o sossego a que se
refere estaria também ligado ao fato de esses eleitores servirem ao líder político com seus
votos. É, portanto, uma via de mão dupla, onde quem serve é também servido. A prática do
servir e do ser servido não poderão ser entendidas isoladamente, pois se encontram
extremamente imbricadas.
Esta prática do servir poderá ser percebida analisando-se vários outros discursos da
imprensa.
O meu eleitor sabe que eu estou sempre com ele, no dia da eleição
ou depois da eleição. Por isso ele não me despreza, sendo essa a razão do
meu grande contingente eleitoral. Não permito que os meus amigos
sejam perseguidos268.
Observa-se que nos dois fragmentos acima, apresentados pelos jornais Diário da
Noite e Folha da Manhã, a prática da proteção e do servir aos eleitores amigos e pobres
encontram-se presentes. É afirmado, logo na primeira matéria, que o controle eleitoral
verificado nas eleições anteriores deve-se a esta sua aproximação em ajudar e proteger os
mais necessitados, não permitindo que seus amigos sejam perseguidos. O fato de servir ou
proteger seus eleitores e amigos pobres o legitima a cobrar certo comprometimento dessas
pessoas nas urnas. Essa prática do controle é também visualizada quando lança sua palavra
268
O “coronel” Chico acusa! Jornal Diário da Noite, Recife, sexta-feira 17 de março de 1950. APEJE.
269
Aos meus amigos, eleitores e ao povo de Pernambuco em geral. Boletim. Jornal Folha da Manhã, Recife,
26 de setembro de 1950, p. 03. APEJE.
123
de ordem para que os eleitores sufraguem apenas os candidatos do PSD por ele indicados.
Candidatos que, assim como Francisco Heráclio, não defendem os eleitores desamparados
por dinheiro ou apenas nos períodos eleitorais quando necessitam de votos, mas em todas e
quaisquer situações.
Outros registros também nos têm possibilitado perceber importantes aspectos sobre
a atuação daquele político em relação a seus eleitores. Durante as disputas eleitorais de
1954270 para o legislativo e o executivo estadual, é produzido pela recém inaugurada fábrica
de discos Rosenblit LTDA271 um compacto duplo intitulado “Francisco Heráclio uma
lembrança aos meus amigos e correligionários”272.
Este compacto é formado por cinco significativas faixas musicais das quais
selecionamos duas. A primeira se intitula “Coronel nunca diz não”273:
270
O pleito de 1954 é bastante emblemático para Francisco Heráclio, este se encontra afastado do grupo
majoritário do PSD, compondo uma minoria identificada como pessedistas históricos, e passa a apóiar o
candidato da UDN João Cleofas para o executivo estadual.
271
Sobre a fábrica de discos Rosenblit LTDA instalada no Recife, ver a dissertação de mestrado do professor
Antônio Alves Sobrinho, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, em 1993,
intitulada Desenvolvimento em 78 rotações: a indústria fonográfica Rosenblit (1953 – 1964).
272
Arquivo pessoal. Ver este disco compacto em seu formato original no anexo, p. 187-188. É importante
ressaltar que um destes compactos foi localizado na residência do senhor Jerônimo de Castro Heráclio, no
momento em que prestava seu depoimento, e que nos permitiu a sua reprodução.
273
Vale ressaltar que não objetivamos elaborar uma análise sobre os parâmetros poéticos e musicais, ou
questões referentes à recepção, como trabalham diversos autores que pensam a música como possibilidade
documental para a história. Entendemos a produção desta canção enquanto estratégia política eleitoral. É a
partir desta perspectiva que pretendemos analisar estas canções, sem qualquer preocupação com os possíveis
aspectos estético-musicais ali presentes.
124
Uma das indagações suscitadas diz respeito à preocupação presente na letra da
canção em construir uma imagem de Francisco Heráclio enquanto político que sempre
atende aos amigos. Ora, a letra começa, justamente, procurando aproximar Francisco
Heráclio dos vários segmentos sociais, sem fazer qualquer distinção entre ambos, pois “o
coronel é da gente”; alguém que sempre poderá ajudar e oferecer proteção, para usufruir
disto basta ser seu amigo. Apenas na segunda estrofe e, posteriormente, nas outras letras, é
que os demais candidatos do partido são, enfim, apresentados ao público, mas respaldados
pela imagem que gravita em torno daquele líder político. Francisco Heráclio é visto como
capaz de vencer qualquer eleição. Essa demonstração de poder é reforçada aos ouvintes no
momento em que afirma ser apoiado tanto no Recife como no sertão de Pernambuco, o que
basta para eleger os vários candidatos de sua indicação.
Em relação aos candidatos constantemente apresentados por Francisco Heráclio
como “escravos do povo”, é significativo que seja analisada a segunda letra da face B do
disco, que se intitula “Votarei com Francisquinho”. Esta poderá nos proporcionar maior
compreensão sobre a força e a circularidade que envolve tais práticas.
125
O título da música refere-se à candidatura de Francisco Moraes Heráclio, o filho de
Francisco Heráclio, que popularmente era conhecido como Francisquinho274. Este é
apresentado, portanto, como alguém enviado por Deus para ajudar e servir a todos, não
fazendo distinção de pessoas, sejam brancas ou de cor, ricas ou pobres275. Em qualquer dia
ou hora, no inverno ou verão, encontra-se disposto a servir, pois é escravo de seu povo. E
na condição de escravo deverá está sempre disponível, pronto para fazer aquilo que lhe foi
determinado pela força divina: servir aos eleitores. A letra nos leva a pensar que a prática
de servir, proteger, construída em torno de Francisco Heráclio, parece ter sido transmitida
por meio de uma rotinização do carisma para os outros candidatos e, principalmente, para
seu filho Francisquinho276.
Sobre a produção deste e de outros discos, afirma João Cordeiro:
Em seu relato este antigo morador da cidade de Limoeiro, que conheceu Francisco
Heráclio, afirma ser esta prática recorrente nos períodos eleitorais; e muito embora se
recorde apenas de algumas poucas frases dessas letras, não deixa dúvidas de que faziam
alusão à vida do “coronel” e dos candidatos por ele apoiados, como pudemos perceber nos
dois casos comentados anteriormente. Essas músicas eram tocadas em algumas emissoras
274
Nas eleições de 1954 dois de seus filhos são candidatos à reeleição; Heráclio Morais do Rêgo passa a
pleitear uma cadeira na Câmara Federal, e Francisco de Morais Heráclio (Francisquinho) a Assembléia
Legislativa de Pernambuco. Já nas eleições federais de 1950, Heráclio Morais do Rêgo tinha atingido a marca
dos 25000 mil votos, sendo considerado o deputado federal mais votados em Pernambuco. Ver Chico
Heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém! Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de julho de
1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE. Ver também HERÁCLIO, Reginaldo &
HERÁCLIO, Ricardo. Chico heráclio, a herança política. Recife: editora Universitária da UFPE, 1997.
275
É notado na letra da música um apelo a uma imagem sagrada cujo objetivo é justificar perante os eleitores
a candidatura de Francisquinho. Sobre este aspecto ver LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 2ª edição.
São Paulo: editora Papirus, 1986, pp. 169-197.
276
Esta expressão “rotinização do carisma”, é usada por Ângela de Castro Gomes ao afirmar que Getúlio
Vargas, ao indicar João Goulart para assumir o Ministério do Trabalho em 1953, escolhia também o seu
herdeiro político. GOMES, Ângela de Castro. Memórias em disputa: Jango, ministro do trabalho ou dos
trabalhadores? IN FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio
de Janeiro: editora FGV, 2006.
277
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizado na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
pp. 06-07.
126
como a Rádio Difusora de Limoeiro ou em carros de propaganda sonora: segundo sugere o
próprio entrevistado, permitia que inúmeras pessoas analfabetas tivessem acesso a algo que
lembrasse constantemente Francisco Heráclio e aos candidatos que apoiava, acesso
facilitado pela rápida memorização e ritualização das músicas que compõem o disco.
Um outro aspecto que a documentação tem possibilitado estudar é o cotidiano das
práticas políticas. Localizou-se uma série de referências sobre o dia a dia desse fazer
política. Trata-se de práticas assistencialistas implementadas por Francisco Heráclio e seus
aliados políticos e que eram mantidas nas relações com os segmentos populares. Neste
sentido, o jornal Diário da Noite, em abril de 1950, publica uma vasta matéria em que o
repórter descreve o que, provavelmente, haveria se passado na visitas à fazenda Varjada,
residência daquele político.
278
Etelvino ou Agamenon – diz Chico heráclio. Jornal Diário da Noite, Recife, sexta-feira 21 de abril de 1950.
APEJE.
127
certas circunstâncias, poderia ser-lhes já o bastante279. Além disso, o jornalista também
deixa transparecer que todos eram recebidos pelo “coronel” que lhes ouvia as incontáveis
queixas e pedidos, como é o caso da senhora que desejava a separação conjugal. Este gesto
de receber e ouvir as pessoas em sua própria residência, possivelmente, era visto pelos
populares como uma espécie de deferência daquele político.
Noutras reportagens, como a publicada em julho de 1953 na Manchete, o repórter
Darwin Brandão, em visita à cidade de Limoeiro e à residência de Francisco Heráclio,
descreve seu cotidiano. Uma das práticas detalhadas pelo repórter trata-se do permanente
contato mantido entre este político e aqueles que o procuravam em sua residência. Afirma
que:
279
Estes dados nos levam a indagar mais uma vez sobre a popularidade e inserção de Francisco Heráclio não
apenas no município de Limoeiro como também em inúmeros outros de Pernambuco. Ou seja, a reportagem
esclarece que as pessoas que o procuravam eram dos mais diversos lugares de Pernambuco.
280
Chico heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém! Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de
julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE.
128
reportagem não trata sobre a capacidade do “coronel” em solucionar ou não os anseios e
dificuldades dessas pessoas.
As lembranças narradas por João Cordeiro, categoricamente, apresentam Francisco
Heráclio como o pai da pobreza.
Era muita gente, ele tinha uma mesa na sala de estar muito grande,
e essa mesa todos os dias era repleta de pessoas fazendo refeições lá.
Quem chegava lá na casa dele na hora da refeição. Não saía ninguém, era
exigência dele. Se era hora do café da manhã... ‘Vocês não vão pra casa,
vão tomar café primeiro’. E essa mesa era refeita duas, três vezes com
cada refeição. Na casa do Coronel não faltavam pessoas, quando não ia
alguém pra resolver negócios, iam pessoas amigas palestrar com ele281.
Nesta entrevista, sua memória faz aflorar práticas que parecem buscar atingir as
camadas populares, como oferecer refeições a todos quantos estivessem a sua volta; eram
essas pessoas quase que convocadas seja para o café, almoço ou jantar. Para João Cordeiro,
não se tratava apenas de participar das refeições e terem suas necessidades imediatas
atendidas. Era muito mais que isso. O fato de estar à mesa com alguém de posses, de
prestígio social e político, provavelmente, era internalizado por tais pessoas como
extremamente significativo e simbólico282.
Jurandir de Barros – antigo morador da cidade de Limoeiro que, no final dos anos
50, exerceu o cargo de vereador, e durante a década de 1960, foi, candidato a prefeito desta
cidade – afirma que desenvolveu acirrada oposição política ao grupo partidário
representado por Francisco Heráclio. Diz ainda, em sua entrevista, que conheceu de perto
uma série de práticas daquele grupo político desde o final da década de 40, quando ainda
era jovem. Em um dos trechos de seu depoimento afirma que Francisco Heráclio
“amparava essa gente, ele tinha vacas leiteiras e o leite não era só pra ele não, era pro
povo que descia lá da serra e vinha buscar o litrinho de leite na casa do coronel... Ele
281
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
p. 11.
282
A utilização do termo simbólico poderá ser entendida como sinônimo de poder simbólico na forma que
define Pierre Bourdieu, “os símbolos são os instrumentos por excelência de integração social... função política
de instrumentos de imposição e de dominação”. Ver BOURDIEU, Pierre, O poder simbólico. 3ª edição. Rio
de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2000, pp. 07-16.
129
manipulava mesmo, né”283.
Jurandir de Barros oferece-nos outra compreensão sobre este assistencialismo
praticado por Francisco Heráclio. Para ele, esta prática revela uma eficiente maneira de
controlar os segmentos sociais economicamente desfavorecidos que representavam
considerável contingente de eleitores neste momento em Limoeiro. Aliás, nesta mesma
entrevista, Jurandir nos chama a atenção ao narrar um conjunto de outras práticas que
compreendemos indicar as estratégias de controle político e eleitoral exercido por Francisco
Heráclio e seus partidários. Ações que em muito contribuíam para projetá-lo enquanto
importante liderança partidária no cenário político de Pernambuco. Práticas que, não raro,
têm permeado as memórias coletiva e individual de antigos moradores, assim como parte
da imprensa estadual e nacional.
283
Entrevista de Jurandir Cassimiro de Barros, realizada na cidade de Limoeiro em 03 de maio de 2006, pp.
09-10.
130
Capítulo IV
“Como se faz uma eleição?”
284
Chico heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém! Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de
julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE.
131
que os dados obtidos pelos candidatos nas urnas municipais de Limoeiro são reveladores da
atuação política de Francisco Heráclio e seus partidários. Para Dulce Pandolfi, nas disputas
ao cargo de governador em 03 de outubro de 1950, o candidato da UDN, João Cleofas,
consegue, naquele município, a soma de 802 sufrágios, enquanto Agamenon Magalhães
obtém 7.329. Para o pleito de 1952, Osório Borba lança-se candidato ao governo do estado
pelo PSB e Etelvino Lins, candidato por uma coligação que unia pela primeira vez PSD,
UDN, PDC e PL, recebe a maioria absoluta dos sufrágios naquele município, que totalizava
6.061 votos285. É importante ressaltar que, no jornal Folha da Manhã de 01 de julho de
1953, é possível perceber certa divergência em relação aos números apresentados por Dulce
Pandolfi para este pleito. De acordo com o jornal, Etelvino Lins dispõe no município de
Limoeiro de 6.062 votos, o correspondente a 99% do total, enquanto Osório Borba apenas
48 votos, aproximadamente 1%286.
Feitas estas considerações, atente-se para alguns aspectos presentes nos pleitos
eleitorais no município de Limoeiro e circunvizinhos. É possível identificar-se, na própria
resposta de Francisco Heráclio à revista Manchete, uma série de práticas políticas que
descrevem sua maneira de fazer, ou conduzir o processo eleitoral no município de
Limoeiro, embora sejam ações possíveis de ser verificadas também em outros municípios
do Brasil naquele período.
Era, portanto, utilizada durante o processo eleitoral considerável soma de dinheiro,
500 contos de réis287. Recurso utilizado em transporte, alimentação, cachaça ou, quem sabe,
para ajudar a dirimir quaisquer tipos de dúvidas que, por ventura, ainda restassem aos
eleitores no dia da eleição. Além disso, a vitória nas urnas era garantida, também, com a
proibição da presença de fiscais de outros partidos não coligados ao daquele político.
Geralmente os fiscais eram pessoas da inteira confiança de Francisco Heráclio, escolhidas
para fiscalizar, manter a ordem e o controle em cada seção. Podemos assim compreender
285
Sobre a candidatura de Osório Borba e Etelvino Lins ver PANDOLFI, Dulce Chaves. As eleições em
Pernambuco de 1950 a 1954 IN LAVAREDA, Antônio; SÁ, Constança (Orgs). Poder e voto: luta política em
Pernambuco. Recife: editora Massangana, 1986, pp. 93-112. Ver também, TEXEIRA, Flávio Wainstein. O
movimento e alinha: presença do teatro do Estudante e d’O Gráfico Amador no Recife (1946 – 1964). Recife:
editora Universitária da UFPE, 2007, p. 47.
286
Folha nos municípios/Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 01 de julho de 1953, p. 07. APEJE.
287
É importante ressaltar a ausência de um parâmetro comparativo de valores entre a moeda presente na
década de 1950 e a moeda nacional atual. Mas quando indagados sobre estes valores, vários entrevistados são
unânimes em afirmar que se tratava de uma considerável soma de dinheiro. Afirmam ainda que poucos,
naquele período, poderiam dispor de tamanha quantia.
132
ser bastante reduzido o poder de fiscalização e contestação de que dispunha a oposição para
exigir da Justiça Eleitoral o cumprimento do decreto-lei n° 7.586 de 1945 que
regulamentava o processo eleitoral288.
Outras documentações versam sobre a participação de Francisco Heráclio no
cenário político e apresentam elementos – alguns semelhantes aos apresentados pela
reportagem da revista Manchete – que descrevem sobre essa maneira de fazer política. São
práticas que compõem uma espécie de cartilha a ser seguida, sobretudo em períodos
eleitorais e/ou pré-eleitorais, e que podem ser observadas em vários boletins circulantes nas
áreas de sua influência política. Estas ações poderão também ser compreendidas como
suficientes para representá-lo frente aos diferentes segmentos sociais como importante e
decisiva liderança política. Uma dessas práticas, portanto, pode ser observada num boletim
produzido em novembro de 1945 intitulado “Presado amigo e correligionário”289.
288
Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello. Estado e partidos políticos no Brasil (1930-1964). 3ª edição. São
Paulo: editora Alfa Ômega, 1990, pp. 105-135.
289
Este boletim já foi em parte trabalhado no capítulo anterior, num tópico intitulado Em nome do pai: a
legitimação de uma dominação.
290
Arquivo pessoal, ver anexo, p. 176.
291
Segundo o artigo 76 do decreto-lei 7.586 de 28 de maio de 1945, é restringida a distribuição de cédulas ao
eleitorado no local de votação e nas suas imediações, respeitando-se um raio de 100 metros.
133
cédula eleitoral, sendo possível seu preenchimento antecipado, pelo eleitor ou por um
suposto cabo eleitoral a serviço de um líder político. Neste momento, segundo o autor, era
oficial apenas o envelope em que o eleitor deveria colocar seu voto e depositar na urna. A
presente medida, em vigor desde a introdução do Código de 1932, objetivava o
aperfeiçoamento do sigilo do voto292. Segundo Jairo Nicolau, a cédula oficial foi utilizada
inicialmente em 1955, durante a eleição para a presidência da República, quando da
aprovação de uma lei federal determinando que a Justiça Eleitoral confeccionasse e
distribuísse as referidas cédulas apenas para as seções eleitorais, obrigando ao eleitor o
preenchimento da cédula na própria seção293.
É possível também perceber na documentação um caráter extremamente
pedagógico, ou seja, existia intensa preocupação por parte daquela liderança política, e
provavelmente de seus partidários, em ensinar às pessoas como se portar no momento da
votação. Os eleitores passavam então a receber instruções, os vários passos que deveriam
ser executados para sufragarem sem incorrer no risco de terem seus votos anulados. Essas
informações passavam a ser tema de vários boletins, o que denuncia a possível existência
de um grande número de eleitores que, naquele momento, deveria aprender a votar. Além
do boletim anteriormente citado, durante a campanha eleitoral para o legislativo e o
executivo municipal, realizada em outubro de 1947, um outro boletim intitulado “Aos meus
grandes amigos e correligionários” instruía os eleitores sobre como agir no dia da eleição.
292
Sobre o Código Eleitoral de 1932 ver NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de
Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002, pp. 37-55.
293
NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002,
pp. 37-55.
134
N. B. – Peço ter todo cuidado para não juntar com as chapas a carta
e a envelope 294.
294
Arquivo pessoal, ver anexo, p. 177. Ver também Aos meus amigos e correligionários limoeirenses.
Boletim. Jornal Folha da Manhã, Recife, 05 de janeiro de 1947, p. 05. APEJE.
295
A prática de trocar as cédulas eleitorais era algo recorrente em dias de eleição, pelo menos entre 1945 e
1955, período em que encontra-se inserida esta pesquisa. Tal prática poderia ser realizada tanto por partidários
do PSD como da UDN e por outros partidos políticos. Sobre estes aspectos ver Dia de eleição em Limoeiro.
Jornal Diário da Manhã, Recife, 12 de outubro de 1950, p. 01. APEJE. Ver também Cabe ao TSE resolver o
caso de Limoeiro. Jornal Diário da Manhã, Recife 22 de fevereiro de 1947, p. 01. APEJE.
135
quem era residente dos campos e vilas distantes das sedes municipais, a possibilidade de ter
acesso a este tipo de benefício poderia ser muito reduzida. Pode ser afirmado, a partir de
informações de antigos moradores das áreas rurais, que as populações financeiramente
carentes, moradoras dos grotões e boqueirões, dificilmente recebiam cartas ou utilizavam
este mecanismo de comunicação.
Por si mesmo, o fato de alguém receber uma correspondência não é um dado assim
relevante, no entanto, não se trata aqui de qualquer correspondência. A visita de um
portador trazendo uma carta de Francisco Heráclio poderia ocasionar sentimentos de
gratidão, ou mesmo ser entendido como uma deferência por eleitores de diferentes camadas
sociais. Esse gesto, possivelmente visto como ato de respeito e consideração realizado por
alguém de prestígio no cenário político de Pernambuco, além de permitir a distribuição das
cédulas eleitorais e de alguns boletins, poderia muito influir nos resultados das urnas como
conseqüente forma de reconhecimento para com aquele líder político.
Ao mesmo tempo, a prática de enviar cartas aos moradores daquela região sugere
outras possibilidades de olhar, além da que indica a deferência que poderia permear o
sentimento de vários moradores. Assim, pode-se pensar, também, que o envio destas cartas
por Francisco Heráclio fosse entendido por significativa parte de seus recebedores como
algo já esperado; como se tal ação representasse, para alguns moradores, uma espécie de
postura que deveria ser assumida por seu líder político.
Algumas outras práticas têm sido apresentadas sugerindo ainda maior
direcionamento na condução política. São registros que fazem referência à emissão de
documentos pessoais, principalmente ao título de eleitor, conforme observado no fragmento
do boletim nomeado “Aos meus amigos e correligionários”, publicado no jornal Folha da
Manhã, em novembro de 1946.
136
Quem se alistou agora, aguarde-se. Quando o título estiver pronto
eu avisarei296.
296
Aos meus amigos e correligionários. Boletim. Jornal Folha da Manhã, Recife, 24 de novembro de 1946, p.
03. APEJE.
297
Aos meus amigos limoeirenses e aos correligionários. Jornal Folha da Manhã, Recife, 01 de dezembro de
1946, p. 03. APEJE.
298
A Esquerda Democrática de Pernambuco representa um segmento político dissidente da UDN. Esse
afastamento ocorre em setembro de 1945, momento em que fica conhecido como ED. Só em junho de 1947
passa a ser denominada de Partido Socialista Brasileiro, PSB. Ver PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco
de Agamenon Magalhães; consolidação e crise de uma elite política. Recife: editora Massangana, 1984, pp.
85-114. Sobre a candidatura do engenheiro Pelópidas da Silveira para o executivo estadual em 1947 e
municipal em 1955, ver TEXEIRA, Flávio Wainstein. O movimento e alinha: presença do teatro do
Estudante e d’O Gráfico Amador no Recife (1946 – 1964). Recife: editora Universitária da UFPE, 2007, p.
46.
299
PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães; consolidação e crise de uma elite
política. Recife: editora Massangana, 1984, pp. 115-145. É importante ressaltar que este é um momento de
reorganização de forças política em Pernambuco e no Brasil, movimento que se intensifica a partir de 1945
com o processo de democratização política, tendo em vista que, desde a instalação do Estado Novo em 1937,
as eleições para o executivo estadual se encontravam suspensas.
300
A Coligação Pernambucana recorre ao Tribunal Regional Eleitoral na tentativa de impugnar seu resultado,
o que gera longa disputa judicial adiando, assim, a diplomação de Barbosa Lima Sobrinho, que é confirmada
em 14 de janeiro de 1948 pelo Tribunal Superior Eleitoral. Ver PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de
Agamenon Magalhães; consolidação e crise de uma elite política. Recife: editora Massangana, 1984, pp. 115-
145.
137
A imprensa acompanhou intensamente o desfecho das eleições no município de
Limoeiro, tendo em vista registros de diversas situações acaloradas entre partidários de um
e outro candidato ao governo301. Podemos constatar, também a partir da imprensa, que em
Limoeiro Barbosa Lima Sobrinho detém a maioria quase absoluta de votos aceitos pela
Justiça Eleitoral. Reportagem publicada no jornal Folha da Manhã de 25 de fevereiro
destaca a expressiva situação deste candidato: “merece um registro especial a votação que
o sr. Barbosa Lima Sobrinho alcançou em Limoeiro”302. Essa especial votação obtida ali
por Barbosa Lima é lembrada por Francisco Heráclio em reportagem a este mesmo jornal,
um ano após as eleições de 19 de janeiro de 1947. Ao fazer referências a acirradas disputas
ali travadas durante aquele pleito, afirma que “a coligação teve apenas 781 votos. A
maioria de Dr. Barbosa foi de 3428 votos”303.
Especial atenção também deve ser dada a outras informações presentes nestes
boletins, tal qual a emissão dos títulos eleitorais. Como informa a documentação, esta
prática constitui um conjunto de ações utilizadas por Francisco Heráclio na arena política,
sobretudo para o período abordado, que é o correspondente aos anos de 1945 a 1955.
Neste sentido, ter livre acesso sobre, ou controlar os cartórios eleitorais permitia,
entre outras coisas, conhecer importantes informações acerca dos moradores como idade,
filiação, residência e, principalmente, as atualizações junto à Justiça Eleitoral. Era ao
cartório eleitoral que o eleitor deveria se dirigir para obter seu título. Estes cartórios
funcionavam como um arquivo de informações sobre a população votante dos municípios.
No caso de Limoeiro, o cartório de Ernestino Cavalcanti funcionava como uma extensão
dos serviços políticos prestados por Francisco Heráclio aos seus amigos eleitores e
correligionários.
301
Ver Desmentido formal à nota da interventoria sobre a situação em Limoeiro. Jornal Folha da Manhã,
Recife, 15 de fevereiro de 1947, p. 01. APEJE. Ver também Cretinice. Jornal Diário da Manhã, Recife, 20 de
fevereiro de 1947, pp. 01 e 06. APEJE. Ou ainda, Cabe ao TSE resolver o caso de Limoeiro. Jornal Diário da
Manhã, Recife, 22 de fevereiro de 1947, p. 01. APEJE.
302
A resistência de Limoeiro. Jornal Folha da Manhã, Recife, 25 de janeiro de 1947, p. 03. APEJE.
303
O regime de terror vivido por Limoeiro no governo Demerval Peixoto. Jornal Folha da Manhã, Recife, 22
de fevereiro de 1948, p. 06. APEJE. É importante ressaltar que, em novembro de 1947, foram realizadas as
eleições para o executivo e o legislativo municipal em Limoeiro. Francisco de Morais Heráclio
(Francisquinho), filho de Francisco Heráclio, candidato pelo PSD, obteve 3119 votos; o candidato da
oposição pela UDN, Júlio de Andrade Lima, 452 votos. Ver Os resultados do pleito do interior. Folha da
Manhã, Recife, 07 de novembro de 1947. APEJE.
138
A redemocratização política, a partir de 1945, e o crescente aumento de pessoas que
deveriam ser qualificadas para votar parecem ter transformado os cartórios eleitorais em
lugar estratégico para muitos políticos. Isso ocasionava que tais lideranças políticas
dificultassem a emissão de títulos eleitorais em situações que fossem beneficiar à oposição,
ou seja, era possível negar ou protelar o acesso ao título eleitoral a votantes ligados à
oposição; paralelamente, poderia facilitar sua emissão àqueles que de interesse e, em troca,
firmava-se então algum compromisso, como o empenho do voto para as próximas eleições.
Não por acaso, em vários momentos, Francisco Heráclio solicita a todos quantos se
alistaram procurarem o cartório de Ernestino Cavalcanti para retirada de seus títulos tendo
em vista a proximidade do pleito a ser realizado em 19 de janeiro de 1947304.
Em alguns fragmentos desses boletins que versam sobre a emissão e distribuição
de títulos eleitorais pelo cartório naquele município, podemos constatar um outro
movimento sendo executado: o cartório eleitoral não apenas emitindo títulos eleitorais
como também, em alguns momentos, retendo-os ou confiscando-os. Conforme consta
“antes quero avisar aos meus eleitores que já podem procurar os títulos que foram
colocados dentro da urna nas eleições de 02 de dezembro. Estes títulos estão no cartório
de Ernestino Cavalcanti”305.
Ou ainda:
Adianto mais que todos aqueles que tiveram seus títulos postos nas
sobrecartas pelo presidente da mesa onde votaram e colocados dentro da
urna, que tais títulos já estão sendo entregues aos seus possuidores no
cartório de Ernestino306.
É suposto que a retenção destes títulos eleitorais não seria possível caso Francisco
Heráclio não detivesse considerável controle do processo eleitoral. Não se deu por acaso
sua afirmação “não admito fiscal de nenhum partido. Eleição em Limoeiro tem que ser feita
304
É importante ressaltar que o decreto-lei 7.586 de 28 de maio de 1945 e a própria Constituição de 1946 não
permitiam o alistamento para menores de 18 anos e analfabetos. Só a partir de 1985 é permitido, por meio da
emenda constitucional n° 25, o alistamento de pessoas analfabetas no Brasil.
305
Aos meus amigos e correligionários. Boletim. Jornal Folha da Manhã, Recife, 24 de novembro de 1946, p.
03. APEJE.
306
Aos meus amigos limoeirenses e aos correligionários. Jornal Folha da Manhã, Recife, 01 de dezembro de
1946, p. 03. APEJE.
139
por mim. Sempre fiz e nunca me dei mal”, em 1953, à revista Manchete307. Assim, nos
locais de votação, os responsáveis pelas seções eleitorais provavelmente atuavam exigindo
que determinadas pessoas depositassem no envelope oficial, ou na sobrecarta, não apenas o
voto como também o título de eleitor308.
Ao ter o título depositado na urna, ocorria uma precisa e imediata identificação do
eleitor no momento de abertura da urna e verificação do voto. Jurandir de Barros, ao narrar
suas lembranças sobre as disputas políticas em Limoeiro, denuncia a prática em que os
títulos eram retidos. Para ele, a presença de um juiz solidário àquele chefe político –
fazendo referências a Francisco Heráclio – em muito facilitava a realização desta ação309.
Ainda de acordo com o entrevistado, a prática de retenção de títulos eleitorais por
proprietários de cartórios, que geralmente mantinham ligações com as maiores lideranças
políticas – em Limoeiro, o cartório de Ernestino Cavalcanti parecia manter fortes laços
políticos com Francisco Heráclio – ocorria de diferentes maneiras.
Esse relato descreve a exigência feita a algumas famílias, a fim de conseguirem uma
certidão de óbito, para depositar no referido cartório o título de eleitor da pessoa falecida. E
assim, segundo a entrevista, acumulam-se mil títulos de eleitores já falecidos que
continuavam a ser utilizados em dias de eleição no município de Limoeiro.
307
Chico Heráclio nos seus domínios: nunca matei ninguém! Revista Manchete, N° 65. Rio de Janeiro, 18 de
julho de 1953, pp. 52-53. Biblioteca da Pós-Graduação em História da UFPE.
308
De acordo com o decreto-lei 7.586, no artigo 143, que afirmava que “reter título eleitoral contra a vontade
do eleitor: Pena – detenção, de seis meses a dois anos”. Neste mesmo artigo podemos encontrar outras
disposições sobre a inviolabilidade do voto, ou seja, “violar ou tentar violar o sigilo do voto: Pena – detenção
de seis meses a um ano”.
309
Entrevista de Jurandir Cassimiro de Barros, realizada na cidade de Limoeiro em 03 de maio de 2006, pp.
01-06.
310
Entrevista de Jurandir Cassimiro de Barros, realizada na cidade de Limoeiro em 03 de maio de 2006, pp.
01-06.
140
Para Jurandir de Barros, a utilização desses títulos nos pleitos eleitorais contava com
a participação de presidentes e mesários das seções eleitorais que, possivelmente, eram
coniventes e facilitavam que outras pessoas pudessem sufragar em lugar dos mortos. A
própria Justiça Eleitoral, indiretamente, também fomentava o uso destes títulos ao permitir,
neste momento, que pessoas de outros domicílios eleitorais pudessem votar em trânsito.
Essa prática que possibilitava o voto dos mortos parece ter sido um dos motivos
para a realização, em 1956, de um recadastramento dos eleitores brasileiros seguindo novas
regras como uso de fotografia nos títulos eleitorais e cédula única. Era uma tentativa de
eliminar, ou reduzir as fraudes eleitorais denunciadas nacionalmente por alguns políticos
como o escritor e deputado federal Mário Palmério312. Segundo Jairo Nicolau,
Nessa mesma direção aponta Joseph A. Page, para quem o governo federal, ao
realizar uma revisão das listas eleitorais, proporcionou considerável redução do número de
311
Entrevista de Jurandir Cassimiro de Barros, realizada na cidade de Limoeiro em 03 de maio de 2006, pp.
01-06.
312
Parte do discurso produzido por Mário Palmério que trata das fraudes eleitorais foi publicado por
NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002, p.
53.
313
NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002,
pp. 37-55.
141
pessoas supostamente capacitadas para votar. Em Pernambuco, segundo o autor, houve uma
diminuição da ordem de 200.000 (duzentos mil) eleitores. Em sua grande maioria nomes de
pessoas falecidas utilizados por vários políticos para garantir resultados favoráveis nos
pleitos eleitorais314.
314
PAGE, Joseph A. A Revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Trad. Ariano Suassuna.
Rio de Janeiro: editora Record, 1972, p. 75.
142
Capítulo V
O uso da coação contra eleitores e a oposição partidária
A violência nos pleitos eleitorais, ao longo da história do Brasil, tem sido objeto de
apreciação pela historiografia política nacional. Durante este percurso, observam-se que as
práticas de violência direcionadas contras eleitores e a oposição partidária assumiram
feições as mais diversas. Estas, na maioria das vezes, tinham como função permitir que
determinados políticos passassem a controlar, em algumas áreas, o processo eleitoral, assim
como impor a vitória nas urnas aos candidatos previamente escolhidos.
Para o município de Limoeiro e circunvizinhos, a documentação tem apontado uma
série de práticas de coação que passaram a ser utilizadas por Francisco Heráclio e
partidários. Neste sentido, é significativo o fragmento da reportagem publicada pelo jornal
Diário da Noite, de abril de 1952:
143
Um parente do “coronel” esclarece:
- É; amarrava-se o sujeito no pé de uma mesa e se lhe dava do
melhor. Às 6 horas da noite, quando não se podia mais votar, a gente os
soltava e mandava ir embora. O tratamento era o melhor possível; nada
de violência...315.
A reportagem afirma que aquele político não se intimida diante dos jornalistas. A
imprensa se constitui num veículo importante por meio do qual Francisco Heráclio projeta
sua atuação política. Assim sendo, entende-se o uso da imprensa, entre os anos de 1945 e
1955, como uma eficiente prática política utilizada por Francisco Heráclio316.
Na reportagem apresentada pelo jornal Diário da Noite, a violência era aplicada às
pessoas denominadas traidoras. Para Francisco Heráclio, traidores eram os eleitores que
não cumpriam um possível acordo previamente firmado de votar em determinados
candidatos por ele indicados. O reconhecimento destes eleitores era possível, ou facilitado,
a partir de uma série de mecanismos previstos pelo decreto-lei de 28 de maio de 1945,
anteriormente comentado317. Isso permitia ao eleitor dirigir-se à seção de votação levando
consigo a própria cédula eleitoral pronta para ser depositada na urna. Neste caso, não era
necessário o seu preenchimento prévio ou mesmo no local da votação.
Para aqueles identificados como traidores o tratamento parece um tanto variado:
“um “tapa” ou mesmo um cascudo, não deixava que eles votassem”, ou ainda, de acordo
com contribuição oferecida por um parente daquele político, “amarrava-se o sujeito no pé
de uma mesa e se lhe dava do melhor... Nada de violência”. Muito embora o decreto-lei
7.586 de 28 de maio de 1945 assegurasse uma série de garantias ao eleitorado. Em uma das
disposições do artigo 108 é afirmado que “ninguém poderá impedir ou embarcar o
exercício do sufrágio”318.
315
“Não tenho nada contra o coronel Chico Romão”. Jornal Diário da Noite, Recife, 22 de abril de 1952.
APEJE.
316
Essa perspectiva, por exemplo, contrapõe-se à apresentada por Marcos Vinicios Vilaça, de que, a partir de
1945, para subsistir politicamente numa estrutura que não corresponde à força da velha ordem semipatriarcal
e semifeudal, esses “coronéis” procuram fazer uso de mecanismos que fugiam a seus controles, como a
imprensa. Ver VILAÇA, Marcos Vinicios, ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis:
apogeu e declínio do coronelismo do Nordeste. Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 2003. pp. 40-68.
317
NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar Editores, 2002,
pp. 43-55.
318
Sobre as garantias eleitorais presentes no decreto-lei n° 7.586, de 28 de maio de 1945.
144
Em outros momentos podemos localizar, em alguns jornais de oposição, séries de
denúncias também referentes a práticas de coação exercidas sobre eleitores residentes no
município de Limoeiro e circunvizinhos, ou que apenas iam votar naqueles domicílios
eleitorais. O jornal Diário da Manhã, de outubro de 1950, traz longa matéria sobre a
violência que teria acontecido durante o pleito para o executivo e legislativo federal e
estadual de 03 de outubro daquele ano, na cidade de Limoeiro319.
319
Entre outras informações, a matéria versa sobre as eleições que elegem Agamenon Magalhães governador
de Pernambuco, quando obtém, no município de Limoeiro, 7329 votos contra 802 do candidato da UDN, João
Cleofas.
320
Terror em Limoeiro: houve coação eleitoral naquela cidade – um dia terá fim o reino da xicolandia.
Jornal Diário da Manhã, Recife, 12 de outubro de 1950, pp. 01 e 03. APEJE.
145
Raspava a cabeça do cabra da oposição. Aquilo ali era um sinal, mas num
batia no cara, nem fazia nenhum outro mal. A não ser pelar o cabelo... Eu
321
ainda me lembro que era José Baracho [nome do barbeiro] .
Já a entrevista de João Cordeiro, que afirma ter sido amigo de Chico, procura
insistentemente justificar a prática desse tipo de coação contra aquelas pessoas que
provavelmente faziam-lhe oposição política. Tal oposição é por ele desqualificada quando
da nomeação de “cabras, trapos, metidos, atravessados e enxeridos”. Paralelamente, para
Jurandir Barros, trata-se de uma prática de violência capaz de emitir signos reconhecidos
socialmente naquele momento; um primeiro aspecto presente em suas lembranças é que ter
a cabeça raspada funcionava como uma espécie de identificação, ou seja, aquela pessoa era
facilmente reconhecida como opositora política. Podemos, assim, supor que um conjunto de
insinuações, constrangimentos e repúdios acompanhavam o detentor desta marca, o que
321
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
p. 03.
322
Entrevista de Jurandir Cassimiro de Barros, realizada na cidade de Limoeiro em 03 de maio de 2006. Fita
2, p. 02.
146
poderia acarretar em sua temporária saída da cidade. Na percepção de Jurandir, há um outro
dado a ser considerado: a cabeça raspada parece servir de punição. A explicação oferecida
em seu depoimento é de que existia uma associação entre aquelas pessoas que tinham suas
cabeças raspadas por José Baracho e os presos das penitenciárias, uma vez que, ao entrar ou
sair das cadeias, também se tinham sempre as cabeças raspadas.
Muitas vezes os discursos acerca da prática de coação realizada contra eleitores ou
elementos ligados a outros grupos políticos permeavam os vários jornais do estado. Foi
assim em 1950, quando disputavam à Presidência da República, em eleições a se realizarem
aos 03 de outubro daquele ano, Getúlio Vargas, candidato pela coligação PSD-PTB e o
brigadeiro Eduardo Gomes, pela UDN. Momento em que o jornal de oposição a Agamenon
Magalhães, o Diário da Manhã, aos 30 de setembro de 1950, publica telegrama enviado
pelo Presidente da UDN no estado, o engenheiro João Cleofas, à imprensa do estado do Rio
de Janeiro. A despeito da extensão, segue apenas um fragmento que em muito contribui
para o pensar sobre o ambiente das disputas políticas em Pernambuco.
323
Implantou-se o terror em Pernambuco. Corre sangue de udenista – o secretário de segurança a serviço do
PSD e o governador cruza os braços. Jornal Diário da Manhã, Recife, 30 de setembro de 1950, pp. 03 e 05.
APEJE.
147
Bom Jardim, vizinhos a Limoeiro324. Afirma o mesmo que “essa história de coação, de
nossa parte, alegado pelo dr. Osvaldo Lima Filho não passa de fantasia, é que ele está
sentindo o amargo da derrota na boca”325.
Aos 18 de julho, Francisco Heráclio volta à imprensa ainda para combater as
acusações feitas pelo deputado estadual Osvaldo Cavalcanti da Costa Lima de que havia
ocorrido, naqueles municípios de João Alfredo e Bom Jardim, práticas de coação. Para
aquele político, Osvaldo Cavalcanti estaria “procurando desculpas para sua incontestável
derrota, alegam os delegados do PSP ter havido coação no pleito de 1° de julho”326.
É importante ressaltar que acusações de violência política como esta apresentada
por Osvaldo Lima e veementemente combatidas por Francisco Heráclio poderiam tornar-se
casos de polícia; e, algumas vezes, a parte supostamente atingida recorria ao Tribunal
Regional Eleitoral e/ou ao Tribunal de Justiça do Estado. Assim, as práticas de violência
ocorridas em João Alfredo durante a campanha eleitoral municipal de 1951 foram
apresentadas oficialmente à justiça estadual. Num primeiro momento, foi o Tribunal
Regional Eleitoral de Pernambuco que acolheu a denúncia de crime eleitoral327.
Paralelamente, o Ministério Público Estadual também foi informado da referida queixa-
crime ora tramitada naquele Tribunal. Assim, aos 27 de abril de 1951 registra-se a entrada
da queixa-crime formulada pelo deputado estadual Osvaldo Cavalcanti Lima, delegado do
Partido Social Progressista, contra o então governador de Pernambuco, na Secretária do
Tribunal Regional Eleitoral328. Esta queixa-crime denuncia violências supostamente
praticadas por Francisco Heráclio contra a oposição e alguns eleitores do município de João
324
Entre os anos de 1945 e 1955 exercia uma forte atuação política nos municípios de João Alfredo e Bom
Jardim Osvaldo Cavalcanti da Costa Lima. Aliado político e compadre de Francisco Heráclio entre 1950 e
1951 quando ocorrem vários conflitos e disputas políticas, tornam-se declaradamente inimigos. Osvaldo Lima
desliga-se do PSD e passa a compor outros partidos políticos, como o PSP. Sobre as eleições no município de
João Alfredo, desde as disputas municipais de 1947 até o pleito de 1986, ver SANTOS, Dimas Prazeres dos.
João Alfredo, sua terra e sua gente. Recife: Centro de Estudos de História Municipal/FIAM, 1987, pp. 158-
189.
325
O cel. Heráclio pede a palavra: é muito forte o Santo do PSD. O matuto de João Alfredo votou sorrindo.
Jornal Folha da Manhã, Recife, 15 de julho de 1951, pp. 01 e 08. APEJE.
326
O cel. Heráclio conta como derrotou o Osvaldismo. “SUEI QUE SÓ QUEM TIRA CATIMBÓ!...”. Jornal
Folha da Manhã, Recife, 18 de julho de 1951, pp. 01 e 12. APEJE.
327
Sobre as disposições referentes aos partidos políticos, o artigo 112 do decreto-lei 7.586 de 28 de maio de
1945 garantia aos representantes ou delegados dos partidos “fazer alegações e protestos, recorrer, produzir
provas e apresentar denúncia contra infratores da lei eleitoral”.
328
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951.
148
Alfredo, a mando do governador Agamenon Magalhães329.
Na segunda folha do referido processo, um dos itens trata que:
329
Ao longo da nossa pesquisa, que abrange os anos de 1945 a 1955, pudemos constatar inúmeras ações de
violência política praticadas por Francisco Heráclio no município de Limoeiro e circunvizinhos. Estas ações
eram divulgadas principalmente pela imprensa que, neste momento, fazia oposição ao PSD e a Francisco
Heráclio do Rêgo. Porém, não observamos a existência de outros processos judiciais denunciando práticas de
coações políticas que envolvessem Francisco Heráclio. Uma explicação possível seria a dificuldade que temos
enquanto pesquisador: muitos desses processos presentes no arquivo do Tribunal de Justiça e do Tribunal
Regional Eleitoral ainda não foram liberados para pesquisas.
330
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 02.
331
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 02.
149
pretendesse”. Mas que vencesse de qualquer modo332.
A incompetência de foro.
O art. 70 da Constituição do Estado diz que o Governador será
processado e julgado, nos crimes comuns pelo Tribunal de Justiça e, nos
de responsabilidade pela Assembléia, na forma estabelecida em seu
Regimento334.
Por este parecer é julgada improcedente a ação por conter erros de técnica judiciária,
uma vez ser a referida queixa-crime de caráter privado, não autorizado na lei eleitoral. Ou
seja, a presente situação foge à competência do Tribunal Regional Eleitoral, pois o Código
332
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 03.
333
Tribunal de justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, pp. 07-08.
334
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 09.
150
Eleitoral não estabelece crimes eleitorais e sim infrações. Por sua vez, estas infrações
teriam de ser formuladas e apresentadas pelo próprio Ministério Público, não ao Tribunal
Eleitoral, mas ao Tribunal de Justiça do Estado ou à Assembléia Legislativa.
Aos 22 de maio daquele ano a referida queixa-crime vai a julgamento no Tribunal
Regional Eleitoral e, por maioria absoluta de votos, o TRE reafirma o parecer do
procurador geral Dirceu Borges, julgando não ser aquele Tribunal competente para
deliberar sobre tal ação.
De acordo com o parecer do desembargador presidente do TRE, Paulo André Dias
da Silva, “o exmo. Sr. Dr. Procurador Regional emitiu o parecer de fls. 7, no qual sustenta
não ser este Tribunal competente para conhecer da queixa. E tem razão o ilustre chefe do
Ministério Público”335.
Esclarece ainda,
335
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 14.
336
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 15.
151
processo à apreciação pela Assembléia Legislativa do Estado.
Ora, diante da decisão tomada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco de enviar
aquelas acusações para que fossem apreciadas pelo poder legislativo do estado, o delegado
do Partido Social Progressista, Osvaldo Cavalcanti da Costa Lima, autor da queixa-crime,
comunica ao Tribunal de Justiça, por meio de oficio, no dia 07 de agosto, sua desistência
em acusar o governador e, conseqüentemente, Francisco Heráclio do Rêgo. Requer também
deste Tribunal que o processo seja devolvido ao TRE para arquivamento.
Mais uma vez o procurador geral do estado, Dirceu Borges, por meio de um parecer
em 25 de agosto de 1951, esclarece que:
337
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 20.
338
Tribunal de Justiça de Pernambuco/Arquivo da Justiça. Queixa-crime, processo n° 039202 de 27 de abril
de 1951, p. 22.
152
indicativas de que o mesmo tenha, de fato, sido remetido à Assembléia Legislativa. O
processo crime também não esclarece a contento a posição do Tribunal de Justiça de
Pernambuco quanto ao pedido formulado pelo delegado do Partido Social Progressista, o
deputado Osvaldo Cavalcanti, requerendo o retorno do processo ao Tribunal Regional
Eleitoral para arquivamento. Assim como não há no corpo processual posicionamento sobre
o parecer do procurador geral do estado, Dirceu Borges, que também sugere ao Tribunal de
Justiça encaminhamento do processo para a Assembléia Legislativa do Estado de
Pernambuco.
Em relação à Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, a observação de
seus Anais sugere a presença de certo clima de tensão entre os deputados que faziam
oposição e os governistas. Nos Anais das sessões parlamentares de 1951, inúmeros são os
discursos sobre as disputas políticas e as práticas de violência acionadas durante a
campanha eleitoral para o executivo e legislativo municipal deste ano, em vários
municípios do estado de Pernambuco339. Dentre esses discursos destacamos aqueles que
versam sobre os municípios de João Alfredo, Bom Jardim e Limoeiro, pronunciados na
sessão de 04 de maio de 1951, pelo deputado Osvaldo Cavalcanti.
153
praticada por Francisco Heráclio. Trata-se da prisão de um morador do município de João
Alfredo e correligionário do Partido Social Progressista, Orlando Bernardo. Este teria sido
preso quando de passagem pela cidade de Limoeiro, “sob a ridícula e infantil alegação,
sob o pretexto mais ridículo ainda de que estava falando do coronel Chico Heráclio e do
Governo”341.
Um pouco antes das eleições, em 11 de junho, o deputado Luiz França também faz
um extenso discurso, seguido de vários apartes, denunciando ações de violência efetuadas
por Francisco Heráclio com o aval do governador342.
Para além dos conflitos travados no judiciário do estado, ou nas sessões da
Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, essas ameaças de expulsão e
espancamentos para com alguns eleitores permeiam a memória de antigos moradores,
muitas vezes aliados e/ou eleitores daquele líder político. Espancar ou expulsar pessoas
nomeadas traidoras apresentava-se como uma das possíveis punições praticadas em
Limoeiro por Francisco Heráclio. João Cordeiro, que afirma ter mantido certa amizade com
aquele líder, ao narrar suas lembranças, faz referências a algumas dessas práticas.
341
Discurso pronunciado pelo deputado Osvaldo Cavalcanti, na sessão de 04 de maio de 1951, pp. 04. Anais
da Assembléia Legislativa de Pernambuco. Gerência de Arquivo e Preservação do Patrimônio Histórico do
Legislativo (GAPPHL).
342
Anais da Assembléia Legislativa de Pernambuco de 1951. Gerência de Arquivo e Preservação do
Patrimônio Histórico do Legislativo (GAPPHL).
154
ele fazia esse medo, não é. E a turma desaparecia. Desapareceram muitos
daqui343.
343
Entrevista de João Cordeiro de Albuquerque, realizada na cidade de Limoeiro em 20 de outubro de 2006,
pp. 02-03.
344
GOMES, Ângela Maria de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar,
2002, p. 35. Também comunga desta mesma perspectiva o historiador FERREIRA, Jorge. O imaginário
trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de janeiro: editora Civilização
Brasileira, 2005.
155
que permeiam a racionalidade e os sentimentos de outras camadas sociais.
Todas estas práticas operacionalizadas pelo segmento dominante na política de
Pernambuco e, em particular, do município de Limoeiro, são reveladoras da enorme
desigualdade das relações de força entre dominantes e dominados. No entanto, esta
disparidade não se torna “capaz de controlar e anular o dominado, tornando-o uma
expressão ou reflexo de si mesmo... Não há controles absolutos e coisificação de
pessoas”345. Por fim, suscitada tamanha problemática, mesmo que de forma superficial,
acreditamos estar provocando novas perguntas. Ou seja, diante da complexidade que
envolve o tema, que outras análises no campo da história política, de viés culturalista,
possam vir a ser elaboradas.
345
GOMES, Ângela Maria de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões
IN SOITHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Culturas políticas:
ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: editora Mauad, 2005, p. 24.
156
Parte 4
Conclusões
157
Considerações finais
346
Podemos afirmar que todos os autores ora mencionados produziram significativas obras sobre a
complexidade que envolve o cenário político ao longo da República no Brasil. No entanto, algumas destas
obras, em muitos aspectos, divergiram do entendimento que construímos sobre a atuação política de Francisco
Heráclio do Rêgo.
347
Este artigo encontra-se publicado na Revista Comunicante. Campinas, v. 18, n° 24, pp. 103-118, 2001.
158
sujeita ao império da fraude eleitoral, violência e impunidade. Estas seriam para a autora as
causas da presença do neo-coronelismo no Nordeste do Brasil348.
Avessos a tais determinismos, ou engessamentos, procuramos elaborar uma outra
compreensão sobre a presença e atuação desses atores sociais no cenário da política
brasileira. Nossa perspectiva consta, essencialmente, em demonstrar como Francisco
Heráclio do Rêgo, no período compreendido entre 1945 e 1955, é capaz de transitar
politicamente no município de Limoeiro e circunvizinhos, assim como no estado de
Pernambuco. Ou seja, buscamos analisar um conjunto de discursos e práticas agenciadas
estrategicamente por este líder e seus partidários dentro de uma rede complexa de favores,
alianças e compromissos políticos. Discursos e práticas as quais entendemos como
fundamentais para sua construção de líder político. Em nossa escrita houve constante
esforço, talvez nem sempre bem sucedido, em não inserir as ações de Francisco Heráclio no
que conhecemos como coronelismo, ou em qualquer semelhante definição349.
Por fim, nosso propósito deteve-se em analisar alguns aspectos históricos presentes
na documentação, dentre as diversas possibilidades suscitadas ao longo da pesquisa. Não
tivemos, nesta dissertação, a pretensão de abranger a totalidade dos eventos que envolvem
Francisco Heráclio do Rêgo, mas, inversamente, procuramos nos deter em elementos que
julgamos, neste momento, significativos para a compreensão da complexidade que permeia
o cotidiano da política naquele município e em Pernambuco. Complexidade que poderá
apresentar pontos comuns em relação a outros personagens políticos no cenário nacional
entre os anos de 1945 e 1955.
348
Revista Comunicante. Campinas, v. 18, n° 24, p. 103, 2001. O total desconhecimento em relação a o
espaço e o tempo a ser analisado proposto no artigo, associado à ausência de documentos, parece ser uma das
várias dificuldades enfrentadas pela autora. Entendemos que o importante é pensarmos em como
determinados líderes políticos se apropriaram ou se apropriam estrategicamente dos meios de comunicação. A
simples utilização do termo coronelismo e/ou neo-coronelismo não é capaz de projetar a complexidade dos
discursos e práticas agenciadas por estes personagens, mecanismos estes capazes de proporcionar-lhes
notoriedade no cenário político.
349
Este enquadramento teórico, em nosso entendimento, não contribuiria para elucidar como Francisco
Heráclio se constituiu politicamente.
159
Parte 5
Bibliografia
160
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Relação dos materiais primários
1- Fontes escritas
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• Processo/Queixa-crime n° 039202 de 1951. Tribunal de Justiça de
Pernambuco/Arquivo da Justiça.
2- Fontes Orais/entrevistas
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no Recife. Entrevista realizada por Célia Costa e Dulce Pandolfi do CPDOC, para o
Projeto Memória Viva da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco.
172
Parte 6
Anexos
173
Imagens
174
Vista parcial da residência de Francisco Heráclio do Rêgo, localizada na Av.
Capibaribe, em Limoeiro. Fotografia de agosto de 2005. Arquivo pessoal.
175
Este boletim circulou em Limoeiro em novembro de 1945, durante a primeira
campanha eleitoral após o processo de redemocratização do Brasil. Arquivo pessoal.
176
177
Literatura de cordel escrita pelo poeta e político Ernesto Cândido em janeiro de 1954.
Arquivo pessoal.
178
179
180
181
182
183
184
185
186
Disco compacto produzido pela indústria fonográfica Rosemblit LTDA, referente às
disputas eleitorais para o legislativo estadual e federal em 1954. Arquivo pessoal.
187
188
Livros Grátis
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