As Várias Faces De: Maria Cristina Zago
As Várias Faces De: Maria Cristina Zago
As Várias Faces De: Maria Cristina Zago
(Organizadora)
científica digital
Maria Cristina Zago
(Organizadora)
1ª EDIÇÃO
científica digital
2023 - GUARUJÁ - SP
científica digital
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exclusiva dos autores.
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Internacional (CC BY-NC-ND 4.0).
A798 As várias faces de Eva: o feminino na contemporaneidade: volume 2 / Maria Cristina Zago (Organizadora). – Guarujá-SP:
Científica Digital, 2023
E-BOOK
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Formato: PDF
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Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5360-279-3
DOI 10.37885/978-65-5360-279-3
1. Medicina. 2. Psicologia. 3. Medicina psicossomática. I. Zago, Maria Cristina (Organizadora). II. Título.
2023
CDD 610.19
Índice para catálogo sistemático: I. Medicina : Psicologia : Medicina psicossomática
Elaborado por Janaina Ramos – CRB-8/9166
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Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Esta obra constituiu-se a partir de um processo colaborativo entre professores,
estudantes e pesquisadores que se destacaram e qualificaram as discussões neste
espaço formativo. Resulta, também, de movimentos interinstitucionais e de ações
de incentivo à pesquisa que congregam pesquisadores das mais diversas áreas do
conhecimento e de diferentes Instituições de Educação Superior públicas e privadas de
abrangência nacional e internacional. Tem como objetivo integrar ações interinstitucionais
nacionais e internacionais com redes de pesquisa que tenham a finalidade de fomentar a
formação continuada dos profissionais da educação, por meio da produção e socialização
de conhecimentos das diversas áreas do Saber.
Congratula-se os autores pelo empenho, disponibilidade e dedicação para o
desenvolvimento e conclusão dessa obra. Tenciona-se também que esta obra sirva de
APRESENTAÇÃO
' 10.37885/230312557................................................................................................................................................................................................. 11
Capítulo 02
A mãe, a sua influência na formação da personalidade da filha
Maria Cristina Dionísio da Silva; Leonardo Tondato de Mello
' 10.37885/230212155................................................................................................................................................................................................. 31
Capítulo 03
A Mulher e a Pesca: um estudo que traz à tona as evidências ocultas nas aparências
Indiamara Hummler Oda; Alan Carter Kullack
' 10.37885/220910373................................................................................................................................................................................................. 50
Capítulo 04
Autoimagem da mulher, clínica e contemporaneidade
Natália Narcísio de Carvalho; Leonardo Tondato de Mello
' 10.37885/230212150................................................................................................................................................................................................. 56
Capítulo 05
Autorretratos de Kerry Mansfield: vida íntima e invenções do feminino na doença e na fotografia
contemporânea
Monica Torres
' 10.37885/230212227................................................................................................................................................................................................. 78
Capítulo 06
De Malinche a Llorona: as muitas narrativas da Eva mexicana
Walquíria Rodrigues Pereira
' 10.37885/230212171.................................................................................................................................................................................................. 98
Capítulo 07
Empoderamento feminino a partir da maquiagem
Vanessa Carneiro Leite; Thais Rodrigues Oliveira; Emília Rodrigues Guimarães ; Carla Ramos Jubé Oliveira
Capítulo 09
Iemanjá – a senhora das cabeças: mito, simbologia, alquimia e clínica junguiana
Leonardo Tondato de Mello; Valesca da Costa Medeiros
' 10.37885/230212153................................................................................................................................................................................................. 150
Capítulo 10
Importância e satisfação em relação ao marketing mix: um estudo no varejo de moda feminina
Silvana Saionara Gollo; Angelita Freitas da Silva; Keila Cristina Rosa; Rejane Becker
' 10.37885/230212126................................................................................................................................................................................................. 165
Capítulo 11
Mães contemporâneas e o declínio do mito do amor materno
Luma Fabiane Morais de Souza; Maria Gláucia Pires Calzavara
' 10.37885/230212154................................................................................................................................................................................................. 182
Capítulo 12
Multidão insubordinada: perspectivas psicopolíticas para além de identitarismos
Bruna Amato; Marivete Gesser
' 10.37885/230212178.................................................................................................................................................................................................. 198
Capítulo 13
O continente negro da psicanálise: o que Freud diz sobre o feminino
Karen Eduarda Alves Venâncio; Patrick Aparecido Trento
' 10.37885/230312325................................................................................................................................................................................................. 212
Capítulo 14
O papel da literatura afro-feminina na educação racial de mulheres negras
Priscilla Patrício de Holanda; Anaiara Lourenço da Silva; Zuleide Aparecida Julião Barbosaa; Maria Zenaide Alves
' 10.37885/230212148................................................................................................................................................................................................. 228
Capítulo 15
Psicopatia feminina e os limites discursivos do diagnóstico
Hugo Tanizaka; Carolina Fernandes Orellana; Wendy Eliane De Melo Barreto
' 10.37885/221211354.................................................................................................................................................................................................. 239
Capítulo 16
Maria o exemplo a ser seguido: a imagem feminina nas práticas culturais católicas no Hallel em Maringá-PR
Mariane Rosa Emerenciano da Silva; Vanda Fortuna Serafim; Gabriella Bertrami Vieira; Pablo Vinicius Napoli
' 10.37885/230212067................................................................................................................................................................................................. 258
Francisco Fambrini
'10.37885/230312557
RESUMO
Portanto crenças, valores, atitudes de um grupo não podem ser analisados apenas
segundo uma perspectiva atual. Nesse sentido, a misoginia, ou seja, o ódio as mulhe-
res, se disseminou na cultura ocidental através das figuras mitológicas de Pandora e de
Eva. Na mitologia grega, Pandora é considerada a primeira mulher. Zeus (deus maior) a
enviou a Prometeu e a Epimeteu, a fim de puni-los por terem roubado o fogo do céu para
dar ao homem (BULFINCH, 2013).
Na tradição religiosa cristã, Eva é a culpada pela perda do Paraíso, a Queda do ser
humano, pois sucumbiu a tentação do diabo, pecou (HOMEM; CALLIGARIS, 2019). Dessa
maneira, Eva é tida como transgressora por desobedecer a ordem divina. Entretanto, Adão
é a prefiguração da excelência, reconhece sua condição inferior e obedece as leis, porém
é seduzido pela mulher (ROBLES, 2019). Nesse sentido, Eva se torna culpada também de
incitar ao pecado o mais puro de todos os homens. Ao mesmo tempo, o Relato da Queda,
apresenta a mulher Eva como criatura curiosa que se entrega ao desejo de poder diante a
argumentação da serpente (demônio).
O castigo de Deus atinge a todos, primeiro a serpente, que é amaldiçoada, depois a
mulher, Eva, condenada aos sofrimentos do parto e a ser submetida ao homem, e finalmente
Adão, condenado a ter de tirar com labuta e suor os frutos da terra. Segundo a tradição
1 Atribui a Moisés a autoria ou a compilação do “Gênesis”, o qual “registra as histórias da Criação, a Queda do ser humano, o Dilúvio, o
chamado de Abraão e as primitivas histórias dos ancestrais de Israel” Bíblia de Estudo Arqueológica NVI/Equipe de tradução: Claiton
André Kunz, Eliseu Manoel dos Santos e Marcelo Smargiasse. São Paulo: Editora Vida, 2013, p.2.
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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religiosa cristã, Eva é a mãe de toda a humanidade. O primeiro casal, Adão e Eva, teve a
missão de povoar o mundo. Nesse sentido, a prática da sexualidade, tinha como finalidade
a procriação, cabendo a mulher a tarefa de gerar descendentes. Assim, a representação da
mulher foi impregnada pela figura de Eva por milênios: curiosa, perigosa, pecadora, respon-
sável pela perda do paraíso e, por outro lado, divina por ser a mãe de toda a humanidade.
Por outro lado, ressalta-se a interpretação de uma freira enclausurada em Veneza,
Arcangela Tarabotti, de que Eva foi instigada a comer o fruto proibido não por orgulho, mas
por sede de conhecimento (em seu livro, La tirania paterna, publicado em 1654, dois anos
após sua morte). Arcangela foi colocada no convento pelo pai, pois assim como ele, era coxa.
Havia essa possibilidade, quando os pais desejavam se livrar da obrigação do dote ou por
temor de que a filha não encontrasse um pretendente a casamento (GREENBLATT, 2018).
Apesar de alguns filósofos como Jean-Jacques Rousseau acreditarem que o papel das
mulheres deveria ser restrito à maternidade e a cuidar do marido e filhos, este paradigma
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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preconceituoso e irreal começou a ser quebrado no início do século XVIII, por meio de di-
ferentes visões a respeito do papel da mulher, motivadas principalmente pelo movimento
Iluminista que ascendia na Europa. São dignos de nota diversos casos de atuação de cien-
tistas mulheres na história da Ciência. Sob este espeque, vale destacar o trabalho brilhante
de diversas pesquisadoras que contribuíram de modo significativo para o desenvolvimento
das Ciências Naturais, dentre as quais citam-se:
Trotula de Salerno (1050-1097): Considerada a primeira médica ginecologista do Mundo,
viveu na Idade Média e trouxe grandes contribuições para as técnicas de parto e fórceps,
além de diversos outros tratamentos médicos (WIKI, 2023).
Laura Bassi (1711-1778): cientista italiana nascida em Bolonha, foi a primeira mulher
a se tornar professora universitária, tendo lecionado Anatomia (em 1731) na Universidade
de Bolonha. Estudou também física newtoniana e durante 28 anos ministrou cursos sobre
esta disciplina. Foi muito importante na divulgação da mecânica de Newton na Itália e pu-
blicou experimentos em diversos campos da Física, como mecânica clássica, óptica, calor,
hidráulica e mecânica dos fluidos (PUCRS, 2018).
Marie Curie (1867-1934): química e física nascida na Polônia, descobridora dos ele-
mentos químicos rádio e polônio, fez inúmeras descobertas sobre a radioatividade e foi a
primeira pessoa (e a única mulher) a ganhar o Prêmio Nobel2 duas vezes, em áreas dife-
rentes da Ciência. Foi também a primeira mulher a se tornar professora na Universidade
de Paris, juntamente com seu marido, o físico Pierri Curie. Marie desenvolveu a Teoria da
Radioatividade, diversas técnicas para o isolamento de isótopos radioativos; conduziu os
primeiros estudos para o tratamento de câncer com radiação e desenvolveu equipamentos
de Raios-X móveis e portáteis para uso em hospitais de campanha durante a Primeira Guerra
Mundial (PUCRS, 2018).
Mileva Marić Einstein (1875-1948): matemática sérvia e primeira esposa de Albert
Einstein durante o período de 1903 a 1919; única mulher entre os colegas de Einstein na uni-
versidade durante o curso de graduação (Escola Politécnica de Zurique) e foi a segunda
mulher a terminar um programa completo de estudos no Departamento de Matemática e
Física. Deu contribuições muito significativas para a Teoria da Relatividade e em todos os
trabalhos de Albert Einstein, mas sem o reconhecimento do ex-marido e da comunidade
científica (EINSTEIN, 2018; MILEVA, 2023).
Ada Lovelace (1815-1852): matemática e escritora inglesa, escreveu o primeiro algo-
ritmo a ser processado por uma máquina (máquina analítica de Charles Babbage). Neste
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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projeto, desenvolveu algoritmos para calcular valores de funções matemáticas. É considerada
a primeira programadora da história (ADA, 2023; ANGELOS, 2010).
Rosalind Franklin (1920-1958): química britânica responsável pela descoberta da es-
trutura em dupla hélice do DNA. Além disso, contribuiu para o entendimento da estrutura
molecular do RNA, de diversos tipos de vírus, do carvão e do grafite. Faleceu prematuramente
de câncer de ovário com 37 anos de vida. O Prêmio Nobel pela descoberta da estrutura
molecular do DNA foi concedido aos pesquisadores James Dewey Watson e Francis Crick,
apesar da descoberta decorrer inteiramente do trabalho de Rosalind. Postumamente, Watson
e Crick reconheceram a importância do trabalho da cientista, e deram-lhe uma justa e me-
recida homenagem, através de uma placa comemorativa (Fig. 1), muito embora o Prêmio
não tenha sido dividido com ela e nem com seus herdeiros (CRAMER, 2020).
Ada E. Yonath (1939): Cientista israelense ganhadora do Premio Nobel de Química
(em 2008), desvendou a estrutura atômica dos ribossomos, utilizando uma técnica de di-
fração de Raios-X. Foi a primeira mulher do Oriente Médio a ganhar um Prêmio Nobel
em ciências e a primeira mulher em 45 anos a ganhar um Nobel em Química (KLENKE,
2011; YONATH, 2023).
Margaret Rossiter (1944): Historiadora da Ciência, trabalha até os dias de hoje no
Smithsonian Museum em Washington. Ajudou a escrever a história das mulheres na ciên-
cia como um campo acadêmico. Seu trabalho foi fundamental para ajudar a desenvolver
um pensamento sobre o preconceito sofrido pelas mulheres em instituições acadêmicas
e intelectuais. Batizou de Efeito Matilda o preconceito sofrido pelas mulheres na Ciência;
as premiações e reconhecimento de seus trabalhos couberam a seus colegas homens
(DOMINUS, 2023).
Figura 1. Placa homenageando a Rosalind Franklin (PhD), pela descoberta da estrutura do DNA.
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INDICADORES SOCIAIS DAS MULHERES NO BRASIL
Mulheres na engenharia
Figura 2. Infográfico mostrando os indicadores sociais das mulheres no Brasil, comparativamente aos homens.
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Não existem impeditivos para a atuação feminina nas áreas de tecnologia, apesar
desta carreira ser tida predominantemente como masculina (CABRAL, 2005). Evidencia-se
exemplos de mulheres atuando em engenharia, com carreiras bem-sucedidas (ME, 2023).
Estudos mais recentes aponta um aumento em relação a presença feminina na área da en-
genharia de 4% nos anos 70, para 14% em 2009 (TOZZI, 2010). As mulheres graduadas em
engenharia atuam muito mais em áreas de trabalho dentro dos escritórios, ao passo que os
homens atuam nos canteiros de obras e trabalhos de programação, os quais são considera-
dos mais técnicos e possuem remuneração mais elevada (CARVALHO, 2007). Mendonça,
Nascimento e Silva (2014) apontam as cobranças profissionais com relação ao gênero:
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Figura 3. Distribuição do público feminino entre matriculados em cursos presenciais de graduação.
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Figura 4. Mulheres no Ensino superior.
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Figura 5. Número de concluintes dos cursos de Ciências da Computação no IME-USP, por gênero, entre os anos de 1970
a 2018.
Figura 6. Porcentagem de mulheres em 4 áreas do conhecimento nos Estados Unido, gráfico de National Public Radio (NPR).
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Portanto, faz-se necessário desenvolver estratégias de enfrentamento de possíveis
desigualdades de acesso a educação, formação acadêmica, cargos de gestão baseadas
em identidade de gênero.
MÉTODO
DISCUSSÃO
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pressupondo que se retorne ao começo, em direção ao arquétipo; e, por fim,
revela o ser, revela o deus, apresentando-se como uma história sagrada (BUL-
FINCH, 2013, p.14).
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grandes grupos reflete a grupalidade interna de cada um de seus atores. Entende-se que
o grupo é um organismo vivo matizado pela subjetividade de seus membros em relação.
Dessa forma, os organizadores psíquicos se constituem em configurações inconscientes
de relações entre objetos (KAËS, 1976). As concepções freudianas assinalam que o grupo
é uma forma e um processo da psique do indivíduo. Na esfera intersubjetiva, remete à so-
ciabilidade e a um lugar extra-individual (KAËS, 1997).
Posteriormente, Kaës (2007/2011) retoma suas considerações a respeito dos
grupos internos:
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respeito do processo de desumanização das mulheres em pequenos grupos, como a família,
e em grandes grupos, enquanto fenômeno coletivo, de um grupo como um todo.
Faz-se importante ressaltar que a sobrevivência da espécie Homo sapiens decorreu
principalmente da capacidade de seus exemplares se comunicarem em grupos maiores.
Pequenos grupos, como a família, são atravessados por diversos outros (escola, igreja,
empresa, cidade, estado, país, etc.). Portanto, entende-se que no decorrer dos séculos, em
diferentes períodos, o imaginário coletivo foi impregnado por mitos, e a estruturação dos
vínculos foi colorida por crenças advindas. Atualmente, herda-se um produto desse processo
de “ruminação” do mito de Adão e Eva. A elaboração social e cultural dessa representação
mítica produz modelos de grupalidade decorrentes.
No século XIII, um frade espanhol, inspirado no mito de Adão e Eva, reforçou discursos
anteriores a respeito da periculosidade feminina: “Uma mulher ensinou uma vez” (...) “e o
mundo inteiro foi derrocado” (GREENBLATT, 2018, p.127). Faz-se importante ressaltar que
este frade associa as ideias: “mulheres no ensino” a “ruína do mundo”. Durante o período
da inquisição (entre os séculos XII ao XVIII), dois frades dominicanos, Heinrich Kramer e
Jacob Sprenger publicaram o famoso livro, O Martelo das feiticeiras. Nesta obra, os autores
explicaram o motivo pelo qual mais mulheres do que homens praticavam bruxaria: havia
“uma inclinação natural das mulheres a fazer o mal” (GREENBLATT, 2018, p.132). Além
disso, Kramer e Jacob tiveram parte na divulgação da ideia de que as mulheres “apresentam
defeitos em todas as faculdades da alma e do corpo”; a mulher é inferior, “uma vez que ela
foi formada a partir de uma costela curva, ou seja, de uma costela do peito do homem, que
é torta e, por assim dizer, oposta ao homem” (p.133).
Por sua vez, em meados do século XV, a humanista Isotta Nogarola argumentou que
as imperfeições das mulheres (ignorância e inconstância) compunham a natureza que lhes
fora dada por Deus, e nesse sentido, mitigavam sua malignidade. Assim, Eva era “(...) ‘como
um menino que peca menos que um ancião ou como um campônio que peca menos que
um nobre’” (GREENBLATT, 2018, p.134). Dessa maneira, a defesa cabível a pecadora Eva
seria sua condição inferior.
Em contrapartida, há a perspectiva de que a sede pelo conhecimento teria levado
Eva a transgredir, ou seja, a comer o fruto proibido. Nesse sentido, um “desejo digno” e
não “maligno”, que não caberia censurar. Todavia, pode-se especular que a representação
de Eva esteja mais impregnada pelo pecado, maligno, do que pela curiosidade, virtude, no
que se refere a busca do conhecimento. Faz-se importante ressaltar que teólogos cristãos
importantes como Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, sustentaram que Eva, tal
como o primeiro homem, fora criada à imagem de Deus. Portanto, essa concepção se co-
locava em oposição às severas depreciações de Eva. Outras vão além, como por exemplo:
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a primeira mulher não era simplesmente igual ao primeiro homem, mas superior
a ele. Adão foi feito de simples barro; Eva, de uma substância mais nobre, o
corpo do homem. Adão nasceu fora do Éden; Eva, no próprio Paraíso. Ela foi
o compêndio de todas (GREENBLATT, 2018, p.127).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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02
A mãe, a sua influência na formação da
personalidade da filha
'10.37885/230212155
RESUMO
Este trabalho busca colocar luz sobre a influência da mãe, sua história de vida, os primeiros
cuidados com a filha, e como essa manifestação do materno interfere na constituição da
personalidade. Utilizarei da Psicologia Analítica os conceitos de Grande Mãe, Arquétipo e
Complexo materno, para auxiliar no entendimento dessa relação Mãe-filha na constituição
da personalidade da última e na constituição de seu processo de individuação. Usarei para
esse artigo uma revisão de pesquisa bibliográfica de autores que junto com Jung pesquisa-
ram o tema Mãe e os outros conceitos da psicologia Analítica.
Muito antes de nosso nascimento podemos observar na mãe a interação que existe
entre Mãe e filho, seja pelos enjoos do início da gestação, seja pela mudança no paladar da
mãe, ou pelos movimentos intrauterinos que pode ser observado na barriga da mãe exter-
namente. E essa interação Mãe-filho permanece mesmo após o nascimento do filho e sua
saída do interior físico da mãe. Segundo o autor Neumann (1991, p.16):
Como podemos observar no conceito de Grande Mãe, somos parte dela, desse grande
vaso no qual ficamos imerso durante nosso período de gestação, e recebemos dela além
da nutrição física de alimento, recebemos também a nutrição psíquica para nos constituir
enquanto pessoa, nossa identidade.
E esse arquétipo da Mãe todos nós recebemos do inconsciente coletivo, um dos concei-
tos mais controversos de Jung e talvez o mais característico. Para Jung Inconsciente coletivo:
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Assim vemos que quando estamos dentro de nossa mãe, ela compartilha conosco seu
inconsciente pessoal, sua vivencias e emoções, sentimos isso pelas descargas hormonais
que recebemos dela, por sua voz e enfim tudo que ela sente, nós enquanto parte dela du-
rante os nove meses de gestação recebemos inconscientemente.
Outro conceito importante para compreendermos a influência da mãe na formação
da nossa personalidade é o conceito de arquétipo que constitui um correlato indispensável
para entendermos a ideia do inconsciente coletivo, Jung assim descreveu: “conceito de
arquétipo: minha representação do arquétipo-literalmente uma forma preexistente- não é
exclusivamente um conceito meu, mas também reconhecido em outros campos da ciência.”(
JUNG [ 1961] ,Idem,p.51)
A tese de Jung (1961 [2014], p.52) é de que existe uma diferença entre a natureza
pessoal da psique consciente e um segundo sistema psíquico, agora de caráter coletivo
não pessoal, ao lado do nosso inconsciente, e esse segundo sistema não se desenvolve
individualmente, mas é herdado. E como é herdado já vem com formas preexistentes, os
arquétipos, que só em segundo plano pode tornar-se consciente dando uma forma definida
aos conteúdos da consciência. Ou seja, nosso exemplo aqui é o arquétipo da mãe, que todos
nós recebemos do inconsciente coletivo, mas ao entrar em contato com nosso inconsciente
pessoal e nossas vivencias terá uma forma com nossas características, revestimos o arqué-
tipo com nossa experiencias pessoais.
O autor Neumann também nos explica a manifestação do arquétipo:
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“Como condição a priori, os arquétipos representam a instancia psicológica
especial que os biólogos chamam de ‘padrão de comportamento’, e que con-
fere a cada ser vivo sua natureza específica. Esse componente dinâmico do
inconsciente exerce no indivíduo, que é guiado por ele, uma pressão irresistível
e sempre vem acompanhado por um forte componente emocional. NEUMANN
(1995, p.20)
E Jung continua sua explicação sobre os arquétipos esclarecendo que outros autores
antes dele já haviam descoberto a existência do arquétipo mas com outros nomes:
Para a autora Jacobi (2016, p.66): ...os arquétipos não são ideias herdadas, mas con-
cordando com Jung são possibilidades de representação herdadas.
Então podemos deduzir assim que o arquétipo da mãe é o mesmo para todos, conduto
ao entrar em contato com o inconsciente pessoal da pessoa ele se reveste das experiências
desse. Com isso cada mãe é única para seu filho, mas todos com o arquétipo Mãe recebi-
do do inconsciente coletivo. E o filho recebe da mãe sua energia psíquica e muito de seu
inconsciente pessoal.
Ainda Neumann nos reflete um pouco mais acerca do arquétipo da “Grande Mãe”: que
esse não se refere à existência de uma imagem concreta existindo com tempo e espaço,
mas uma imagem interior em operação na psique humana. NEUMANN(1999, p.19)
Observamos essa manifestação na clínica em pessoas que não são mães fisicamente
e biologicamente, mas possuem atitudes de cuidado e atenção para com animais e pessoas
que apontam para a existência dessa energia da “Grande Mãe”.
Explicando a manifestação do arquétipo da “Grande Mãe”, NEUMANN esclarece que:
“o aparecimento desse arquétipo, assim como seu efeito, pode ser observado
ao longo de toda a história da humanidade, porquanto estão presentes nos
rituais, nos mitos e nos símbolos desde os primórdios do homem, e igualmente
nos sonhos, nas fantasias e nas realizações criativas de indivíduos enfermos
e sadios do nosso tempo”. NEUMANN (1999, p.19)
Assim o arquétipo da “Grande Mãe”, faz parte da constituição psíquica que recebe-
mos do inconsciente coletivo e revestimos esse arquétipo com nossas histórias pessoais,
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a partir das formas pelas quais somos cuidados e assistidos por nossos cuidadores da
primeira infância.
Jung explica ainda que:
Assim o que preenche o arquétipo, que é um elemento vazio em si, uma representação,
são as vivencias pessoais e as histórias de vida de cada pessoa no seu modo de ser atendido
e cuidado enquanto bebê, e assim ele preenche o arquétipo com o que os cuidadores fazem
com ele. Com isso podemos observar também que o arquétipo da mãe sempre aparece
empiricamente, como uma representação, mas precisando de outros fatores da história da
pessoa para se coagular, para se integrar ao filho.
Traremos agora alguns aspetos do arquétipo materno, ou seja, algumas formas pela
qual este pode se apresentar, como destaca Jung:
“a própria mãe e avó; a madrasta e a sogra; uma mulher qualquer com a qual
nos relacionamos, bem como a ama de leite ou ama-seca, a antepassada e a
mulher branca; no sentido de transferência mais elevada, a deusa, especial-
mente a mãe de Deus, a virgem(enquanto mãe rejuvenescida, por exemplo
Deméter e Core), Sofia( enquanto mãe que também é amada- mãe rejuve-
nescida) (...)Todos esses símbolos podem ter um sentido positivo, favorável,
ou negativo e nefasto. (...) Essa enumeração não pretende ser completa. Ela
apenas indica os traços essenciais do arquétipo materno. Seus atributos são
o maternal: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a
elevação espiritual além da razão...” JUNG ([1961], 2014, p.87)
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na mãe pessoal. Segundo os que só aparentemente possuem tais características, uma vez
que se trata de projeções de tipo fantasioso (quer dizer arquetípico) por parte da criança.” Ibid.
Assim Jung esclarece que Freud já reconhecia que a verdadeira etiologia das neuroses
não tinha seu início como ele achava, em efeitos traumáticos, mas que sim, num desenvolvi-
mento próprio da fantasia infantil. E Jung argumenta que a fonte desse tal desenvolvimento
podia ser atribuída às influências perturbadoras da mãe. Assim Jung relata que procurava
antes de mais nada na mãe o fundamento das neuroses infantis. Ele argumenta assim devido
ao fato de saber que é muito mais provável uma criança desenvolver-se de um modo normal
do que neuroticamente e que a maioria dos casos podemos rastrear as causas definitivas
de distúrbios nos pais, principalmente, na mãe.
Vemos em estudos de Neumann que a relação primal da criança com a mãe é mais
do que uma relação primária, pois graças a essa relação, antes mesmo do seu “verdadeiro”
nascimento, que ocorre por volta de um ano de idade, a criança vai sendo moldada pela
cultura humana, uma vez que a mãe vive imersa num coletivo cultural, cujos valores e lingua-
gem influenciam, inconscientemente, mas de modo efetivo, o desenvolvimento da criança.
NEUMANN ([1991],1995,p.10)
Considerando as influencias na criança do inconsciente pessoal da mãe e do incons-
ciente coletivo, Neumann argumenta que:
Assim refletimos que a personalidade da criança se forma com a ajuda dessa relação
primal entre mãe e filho, entre o inconsciente da mãe, enquanto a criança está imersa nela
como num vaso. Neumann nos esclarece que:
“na fase embrionária, o corpo da mãe é o mundo no qual a criança vive, ain-
da não possuindo consciência capaz de percepção e controle, e ainda não
centralizada pelo ego; além disso, a regulação da totalidade do organismo da
criança, que designamos pelo símbolo do Self Corporal, ainda está como que
envolta pelo Self da mãe.” Ibid.
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retida na relação embrionária primal com a mãe. A criança não se tornou ela mesma, ela
só se torna ela mesma ao longo dessa relação primal, cujo processo se completa apenas
após o primeiro ano de vida, nos diz Neumann [1991] 1995, p.12.
Assim a criança permanece nessa relação dual e primal, onde ela ainda não possui um
ego estável nem uma imagem corporal delimitada. Neumann explica que “trata-se de uma
realidade unitária ainda não dividida em dentro e fora, em sujeito e objeto. É todo-abrangente.
Nessa relação primal, a mãe também vive, da mesma forma que a criança, numa realidade
única e arquetípica determinada, mas só uma parte, já a criança encontra-se totalmente
entregue nessa situação, pois não tem outras estâncias de vida como a mãe, para a criança
a mãe é seu tudo, a mãe representa seu mundo, seu Self.
Com isso podemos concluir que a criança só se torna um Self, uma totalidade indi-
vidual, no final do primeiro ano de vida, que representa o fim da fase embrionária intra e
extrauterina, como explica Neumann.
Então durante todos esses meses, no útero e fora do útero até o final de 12 meses
de vida a criança está sob a influência direta da mãe, do seu mundo interno e das relações
que está mãe estabelece com o mundo a sua volta e os modos que nomeia esse mun-
do para a criança.
Para falar dessa relação e dessa influência sobre a formação da personalidade toca-
remos em outro termo usado comumente na sociedade, que é o temo complexo, que foi
estudado por muitos pesquisadores e por Jung.
O termo Complexo é usado na linguagem comum não científica. Ouvimos nas conversas
informais esse termo muitas vezes para designar algo pejorativo, tipo fulano tem um comple-
xo de inferioridade, ou beltrano tem um complexo de superioridade. Contudo o sentido pelo
qual usaremos esse termo é o que buscamos nos escritos de Jung, que usou o termo pela
primeira vez como para designar “complexo emocionalmente acentuado”, atribuindo assim
complexo como o fenômeno de grupos de representações acentuadas por sentimentos no
inconsciente”; mais tarde, passou-se a usar a expressão abreviada “Complexo”.
Jung para chegar à conclusão do termo Complexo, fez experimentos científicos de
associação nos quais pode medir os agrupamentos de elementos psíquicos em torno de
conteúdos emocionais.
O que podemos notar na clínica é uma labilidade emocional ao se conversar sobre um
tema que ativa internamente sentimento em relação ao conteúdo exposto, assim o cliente
chora ou pelo contrário fica sem emoção.
No livro sobre teorias da personalidade, FEIST seus demais autores também explicaram
o termo “complexo”, baseado nos estudos de Jung, eles explicaram assim: “Os conteúdos
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do inconsciente pessoal são denominados de complexos. Um complexo é um conglomerado
de ideias associadas carregadas de emoção.” FEIST( 2015, p.73)
Jung nos explica que:
Assim podemos pensar num complexo como emoções acentuadas que vem do in-
consciente e são ativadas por relações afetivas que temos em nossa história de vida, nas
relações que estabelecemos desde a mais tenra idade.
Jung chamou de “tonalidade afetiva é um estado afetivo acompanhado de inervações
corporais. O eu constitui a expressão psicológica de uma combinação firmemente associada
entre todas as sensações corporais.” Jung ( [1906], 2011, p.50, 83)
Assim podemos verificar que ao longo da vida de uma pessoa quando ela está junto a
mãe, seja na fase intrauterina ou extrauterina ela recebe o impacto dessa sob a formação
de sua personalidade como um todo, uma vez que a criança se encontra com seu corpo
fundido fisicamente e psiquicamente com a mãe nos primeiros anos de vida.
Para esclarecer essas influencias da mãe na formação da personalidade da criança
usaremos os estudos de Jung sobre o complexo materno, que tem como base o arquétipo
materno, tanto na filha como no filho. Como a relação com o arquétipo materno estimula os
comportamentos e afetos dos filhos.
Jung esclarece que:
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Como Jung deixou claro em seus estudos que a pesquisa do complexo materno no
filho ainda estar em estado incipiente, e ele julgou que só com dados estatísticos que po-
deremos fazer as devidas comparações do complexo materno no filho, então nos aprofun-
daremos no estudo do complexo materno na filha e a influência desse na constituição da
personalidade nela.
Já na filha Jung descreve que:
“Só no caso da filha o complexo materno é mais puro e sem complicações. Tra-
ta-se nele, por um lado, de uma intensificação dos instintos femininos provindos
da mãe, e, por outro, de um enfraquecimento e até mesmo de uma extinção
dos mesmos. No primeiro caso, a preponderância do mundo instintivo provoca
uma inconsciência na filha de sua personalidade; no segundo caso desenvol-
ve-se uma projeção dos instintos sobre a mãe.” JUNG ([1936], 2014, p.92)
Observamos nos atendimentos clínicos os efeitos na filha, mais para o lado da extinção
dos instintos femininos, com manifestações do complexo no corpo com doenças psicosso-
máticas, endometriose, dentre outras.
Assim podemos constatar que o complexo materno na filha, ou estimula ou inibe o
instinto materno; já no filho o instinto masculino é lesado por uma sexualidade anormal
para um masculino.
Assim Jung explicou em sua conferência sobre o arquétipo mãe que existem quatro
formas do complexo materno ser assimilado pela filha: a hipertrofia do aspecto maternal;
exacerbação do eros; identificação com a mãe; defesa contra a mãe.
Jung descreveu assim A Hipertrofia Do Aspecto Materno:
Vemos nos atendimentos esse efeito em mulheres que não qualificam o marido para
caminharem juntos na condução dos filhos, o marido é visto como mais um objeto a ser cui-
dado, bem como gatos, parentes pobres, galinhas e outros. E Jung relata ainda mais que:
“a própria personalidade também é de importância secundária; frequentemente ela é mais
ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em
que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles.”Ibid.
Assim podemos constatar que a personalidade dessa filha foi alienada dela mesmo e
ela age no mundo movida a essa influência da exacerbação do feminino recebido da mãe
via complexo materno positivo.
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Jung explica desse modo o impacto na personalidade da filha que esteja sob a influência
desse complexo materno positivo:
“No caso desse arquétipo exarcerbado não são poucas as vezes em que o
símbolo adequado não é Deméter*, mas Baubo*. O intelecto não é cultivado,
mas permanece em geral sob a forma de sua disposição originária, isto é, em
sua forma natural primitiva, incapaz de relacionar-se, violento, mas também
não verdadeiro e às vezes profundo como a própria natureza. JUNG, (1961)
2014, p.94
“pode ocorrer que na filha haja uma extinção completa desse instinto. Em lugar
disso, ela apresenta uma exacerbação do eros que leva quase invariavelmente
a uma relação incestuosa com o pai. O eros exacerbado provoca uma ênfase
anormal sobre a personalidade do outro. O ciúme da mãe e a necessidade
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de sobrepuja-la tornam-se os motivos preponderantes de empreendimentos
futuros, muitas vezes desastrosos.” Ibid.
Vemos nos atendimentos clínicos moças jovens que ainda moram com os pais e vi-
vem à sombra da mãe, como se não tivesse vida própria e não tem, somatizam no corpo
dores da mãe e no comportamento são vazias de atitudes próprias, subjugando a mãe
a seus caprichos.
Outra manifestação do arquétipo materno na filha é a Defesa Contra A Mãe, na qual
podemos observar numa recusa em ser mãe, uma recusa em ser como a mãe. Que vemos
em filhas com uma personalidade inconstante que não vivem suas vidas, mas sim uma
constante atitude de não ser como a mãe, ou seja não ter filhos, se, se casam não assumem
uma vida de casadas ficando ausentes do relacionamento conjugal.
Jung explicou esse tipo de atitude na filha desse modo:
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lado, de um fascínio que, no entanto, nunca se torna uma identificação, e, por
outro, de uma exacerbação do eros que se esgota, porém numa resistência
ciumenta contra a mãe. Ibidem. p. 97
Podemos observar essa resistência nos atendimentos a mulheres que não conseguem
exercer o feminino, uma impaciência e irritação em relação ao materno, que é observado
no corpo por endometriose, horror a gravidez, e também na dificuldade em fazer coisas que
são socialmente do feminino, arrumar casa, lavar louças. Por outro lado, se esforçam para
desenvolver a inteligência que as fazem superiores as mães.
Como podemos observar somos sensibilizados a partir da nossa convivência com
nossa mãe, da nossa ligação intima com ela e isso afeta nossa personalidade e o modo
como nos relacionamos enquanto adultos e na nossa infância. Se conseguimos auxiliar
nossas clientes no entendimento de sua relação com sua mãe, que tipo de complexo foi
estabelecido nessa relação, oportunizamos maneiras de harmonizar essa relação primal
para que as outras relações que essas clientes estabeleçam sejam mais saudáveis e menos
confusas. A autora Kast relata com muita clareza a importância do entendimento do tipo
de relação que foi constelado entre mãe e filha: “ao saber em que ponto fomos marcados
pelos complexos materno, podemos identificar, conscientizar e assim podemos nos desligar
deles a fim de nos tornarmos pessoas mais independentes e mais capazes de estabelecer
vínculos saudáveis.( KAST [1994], 1997, p.11. grifo nosso).
Podemos observar nos vários atendimentos clínicos que a relação entre mãe e filha real
é mediada pelos arquétipos maternos e da Grande mãe, e essa mediação arquetípica produz
esses complexos maternos citados tanto na filha como na mãe, pois uma mãe um dia foi filha
e experienciou o numinoso do arquétipo materno na constituição de sua identidade, e isso
fez com que essa agisse no mundo e nas relações de acordo com essa influência. E ao ter
filha, esta como esteve dentro desse vaso(mãe), recebe todas essas influências sentidas e
absorvidas por sua mãe, provocando assim manifestações psíquicas e físicas que em muitos
casos essa filha não entende e não identifica conscientemente como sendo de sua autoria.
Exemplificando essa argumentação acima a autora Brandão, esclarece que:
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O grande desafio do psicoterapeuta segundo Brandão (2021) “é levar a cliente a
rever sua história e religar fragmentos que ela mesmo desconhece ou foram alienados de
sua história de vida, uma busca, um mergulho no desconhecido e na experiencia da falta”,
buscando um novo enredo que seja coerente para a cliente e assim fazendo-a integrar ele-
mentos necessários a seu processo de individuação.
Para entendermos a formação da personalidade devemos observar também todas
essas influencias que ocorrem na relação de mãe e filha bem como, como essa relação
poderá auxiliar no processo de individuação da filha.
Assim para melhor entendimento abordaremos o conceito de individuação proposto
por C.G. Jung. Pois para esse:
Em seu livro Tipos Psicológicos Jung aborda sobre introversão e extroversão, termos
que não trataremos nesse trabalho, porém Jung explica a psicologia de Freud e de Adler,
sendo a de Freud Ligada aos instintos e a de Adler ligada ao eu. Uma extrovertida, instintos
e a outra introvertida, Eu. Assim Jung reflete que:
“Uma psicologia baseada no instinto deve, por sua própria natureza, desprezar
o eu, uma vez que este só existe por causa do principium individuationis (prin-
cípio de individuação), isto é, da diferenciação individual, cujo caráter isolado
o retira do âmbito dos fenômenos biológicos gerais.” Jung ([ 1960] 2015, p.70)
Observamos que Jung ao explicar a diferença das visões de Freud e Adler nos mos-
tra que essa individuação é uma maneira de ser eu mesmo estando no coletivo. E é o que
tentamos auxiliar as clientes que chegam para os atendimentos psicoterapêuticos.
E ainda sobre essa reflexão Jung conclui:
Assim o que vemos na clinica são muitos casos de clientes que estão nos complexos
familiares coletivos e buscam entender dores e ações que não consideram adequadas, e
com as reflexões e apontamentos nas sessões terapêuticas buscamos junto com a cliente
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auxilia-la no seu processo de individuação, de ser ela mesmo, mas também está e fazer
parte de sua família.
E para Jung citado por Fordhan:
CONCLUSÃO
Esse artigo então conclui que a mediação necessária para a construção da identidade
da filha deve considerar a influência das relações com sua mãe é a busca nas histórias
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vividas por ambas dos pontos em comum, o que une as ações de mãe e filha e assim auxi-
liando a filha a entender sua história como conectada a história de sua mãe e de sua família,
não só nos pontos negativos mas buscando caminhos que fizeram o desenvolvimento da
filha ser possível.
A autora Kast exemplifica muito bem o tipo de relação que se deve estabelecer entre
mãe e filha, num complexo materno positivo:
A autora Brandão nos auxilia nessa reflexão sobre observar a dinâmica da história
familiar na constituição da identidade individual ao escrever que: “Não se constrói uma iden-
tidade individual ou uma identidade de grupo sem riscos e sem conflito. O conflito é inerente
ao humano”. BRANDÃO (2021, p.84)
Assim muitas vezes observamos na clínica que as clientes chegam com conflitos de
identidade que elas mesmas não identificam o que provocou, e o psicoterapeuta na con-
dução das reflexões auxilia mostrando um caminho de ampliação de sua história buscando
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elementos da sua história familiar com sua mãe, da sua mãe com sua avó e assim, montando
junto a cliente uma visão ampliada de sua história de vida. Auxiliando no entendimento de
padrões familiares e na tomada de consciência de que a cliente faz parte de uma família,
mas que ela também é um indivíduo dentro dessa família o que mostra a possibilidade de
modificar comportamentos disfuncionais e repetitivos de seus familiares, mas mesmo assim
continuar a fazer parte da família.
Jung nos auxilia no entendimento desses casos clínicos em que a filha esta confusa
quanto o seu modo de existir e de se relacionar com o outro. Jung nos ajuda assim:
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REFERÊNCIAS
JUNG, C.G. (1906). Psicogênese das doenças mentais. Tradução de Márcia Sá Caval-
canti. 4 ed. Petrópolis: Vozes,2011. Obras Completas. Volume 3.
KAST, Verena (1994). Pais e filhas. Mães e filhos. Caminhos para a auto-identidade
a partir dos complexos materno e paterno. Tradução:Milton Camargo Mota.São Paulo:
Edições Loyola, 1997.
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NEUMANN, Erich. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina
do inconsciente.Tradução: Fernando Pedroza de Mattos e Maria Silvia Mourão Netto.9
ed.São Paulo: Cultrix,1999.
PIERI, Paolo Francesco. Dicionário Junguiano.Tradução: Ivo Stomiolo. São Paulo: Pau-
lus, Vozes.2002
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A Mulher e a Pesca: um estudo que
traz à tona as evidências ocultas nas
aparências
'10.37885/220910373
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo compreender, através de um estudo de gênero, como
a mulher pescadora artesanal percebe-se enquanto parte integrante do circuito de práticas
que integram o sistema produtivo da pesca, em cujo universo socialmente é reconhecido,
em quase sua totalidade, à figura masculina. A hipótese norteadora da pesquisa é que as
mulheres participam ativamente do sistema cultural da pesca artesanal, inclusive como
pescadoras embarcadas, em que pese a centralidade do gênero masculino nos discursos
e representações sociais sobre a pesca. A pesquisa baseia-se em estudos etnográficos
realizados junto à comunidade de pescadores artesanais em Matinhos, Litoral do Paraná,
no âmbito da disciplina Natureza, Cultura e
Territorialidades, cursada no Mestrado Profissional em Rede Nacional para o Ensino
de Ciências Ambientais/PROFCIAMB, complementados com trabalho de campo na ci-
dade de Guaratuba.
Entrevistas foram realizadas entre junho e julho de 2018, transcritas e analisadas. As fa-
las dos pescadores (do gênero masculino) entrevistados, enfatizam de modo recorrente que
“a pesca é um trabalho para homem”, pois não condiz, devido aos esforços necessários para
a realização desse trabalho, à estrutura “da Mulher.” Entretanto, mulheres entrevistadas no
Mercado de Peixes de Matinhos, contradizem essa afirmação, o que despertou o interesse
em aprofundar a temática. A pesquisa buscou assim identificar e perceber, que as falas
são substanciadas por representações, frutos culturais que determinam, através da divisão
social de papeis – masculino e feminino, quais funções são destinadas ao homem, e quais
funções devem ser exercidas pela mulher.
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desde a Antiguidade clássica, e pode ser entendido como um sistema político-cultural de
opressão que se difunde por meio da dominação naturalizada dos detentores do padrão de
poder homens, sobre mulheres. Esse paradigma construiu ao longo da História uma série
de representações sociais, culturais e políticas que passaram a ser internalizadas e exter-
nalizadas no âmbito das instituições políticas e sociais. (Scott, J. 1995)
A repercussão dessa ideologia nas comunidades pesqueiras revela-se através dos
comportamentos. Segundo as análises de Cardoso (2002), essa visão é decorrente da pró-
pria formação de pescadores que privilegia a aprendizagem do saber ligado à pesca apenas
aos homens, cabendo à mulher outras atividades produtivas. E, nesse sentido, o trabalho
das mulheres na pesca não é reconhecido nem pelos seus companheiros (Cardoso,2002).
Entretanto, a visão de que as mulheres são seres absolutamente passivos, dominados
e que não resistem diante da opressão, dificilmente condiz com a realidade. O significado
do que é uma posição feminina envolve a trajetória de mulheres e a apreensão de códigos
de um novo universo que vêm conquistando. A década de 60, por exemplo, simbolizou a
questão política através de movimentos feministas que fluíram no Brasil e no mundo, justifi-
cando o desenvolvimento do individualismo e a questão da natureza – distinção do mundo
público e do mundo privado. (Salem, 1980)
Nisso consiste o fato de que essas representações culturais não devem ser entendi-
das como uma máxima determinante de comportamentos masculinos e femininos. Ou seja,
existem muitas vezes formas diversas de trabalhos coletivos com a participação diferenciada
de homens e mulheres, fazendo com que haja uma complementariedade necessária entre
papeis masculinos e femininos, tanto no mundo público quanto no mundo privado. (Rosaldo,
e Lampere,1979).
Em seus estudos antropológicos sobre mulher e pesca no Brasil, Motta-Maués (1999),
aborda sobre a importância dessa temática, enfatizando, nesse sentido, o quão é relevante
os trabalhos acadêmicos referentes ao estudo em comunidades pesqueiras. Segundo a
autora, dentre os trabalhos que refletem sobre a questão, há um percentual de menos de
vinte por cento que continuaram suas carreiras acadêmicas voltadas para a mesma temática.
Esse índice revela o número reduzido de trabalhos antropológicos acadêmicos publicados
no Brasil que abordam esse tema, desde a década de 1970 até os dias atuais. Assim, a
“Invisibilidade, quase “esquecimento”, marcou também no Brasil a relação tardia entre a
Antropologia e as sociedades pesqueiras.” (Motta-Maués, p.383, 1999).
Há de se considerar, nessa discussão, que a pesca artesanal traz em suas raízes
todo um contexto de tradição, cuja essência arraigada aos seus costumes, reflete a forma
singular de pertencimento à natureza. Dessa forma, a necessidade de que estudos contri-
buam para um melhor entendimento sobre a atuação da mulher na atividade da pesca, não
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somente evidencia a participação da mulher nesse universo, como também traz à tona a
sua interação com a natureza através do diálogo que se estabelece entre essa interação e
a educação ambiental.
CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
DURHAM, Eunice R. Cultura e ideologia. In: Dados. Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro: Campus. V.27,3.1, p.71-79, 1984.
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ROSALDO, Michele Zimbalist & LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
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Autoimagem da mulher, clínica e
contemporaneidade
'10.37885/230212150
RESUMO
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13,1% de todas as cirurgias plásticas realizadas no mundo, no mesmo ano, tendo aumento
de 28% de procedimentos estéticos não cirúrgicos.
Diante de tais dados, considera-se que a beleza e o corpo, que contribuem para a
autoimagem do indivíduo, são fatores ligados diretamente à autoestima. Diante disto, neste
estudo busca-se compreender como é a autoimagem corporal da mulher na modernidade,
com seus possíveis impactos psicológicos.
A hipótese é que exista um padrão arquetípico que rege o padrão social arquetípico
de beleza que afeta diretamente a autoestima das mulheres.
O estudo foi feito através de levantamento bibliográfico em livros e artigos sobre o tema
proposto, utilizando para a pesquisa de artigos na plataforma Scielo e Pepsic as palavras-
-chave: autoestima e autoimagem feminina.
PADRÃO DE BELEZA
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sofrem uma pressão reforçada a todo momento para estarem dentro de padrões estéticos
e isso se reflete em cobranças em relação ao corpo, buscando a todo tempo e a todo custo
atingir a imagem perfeita adaptada aos padrões estéticos (OLIVEIRA & MACHADO, 2021).
Conforme descrito anteriormente, tal padrão está presente em todas as sociedades
e épocas, sendo ele um tema arquetípico, que se renova constantemente na história da
sociedade e se faz presente atualmente. Carl Gustav Jung distingue duas camadas no
inconsciente: o inconsciente pessoal, que contém percepções dos sentidos que não alcan-
çam o limiar da consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para surgirem na
consciência, bem como os complexos e o inconsciente coletivo, a camada mais profunda
do inconsciente, caracterizado por seu caráter universal, seu conteúdo pode ser encontrado
em toda parte. No inconsciente coletivo existem as chamadas imagens primordiais, que são
universais, ou seja, compartilhadas por todos os seres humanos, tais imagens ou motivos
são denominados arquétipos (JUNG, 2014).
Os arquétipos são as formas mais antigas e universais da imaginação humana, a par-
tir deles que são moldadas as maiores ideias da humanidade. Eles surgem de sedimentos
de experiências constantemente revividas pela humanidade. Os arquétipos se comportam
empiricamente como forças ou tendências a repetição das mesmas experiências, eles con-
duzem-se como centros autônomos de energia e exercem um efeito fascinante e como-
vente sobre o consciente, podendo causar grandes alterações na atitude do sujeito (JUNG,
2014). O arquétipo é uma tendência a formar representações de um motivo, sem perder sua
configuração original, é uma tendência instintiva. A origem dos arquétipos é desconhecida
e sua renovação ou repetição pode ser vista em várias épocas e lugares. Eles têm iniciativa
própria e energia específica (JUNG, 2016).
O complexo pode ser entendido como aglutinações de experiências pessoais que con-
tém um núcleo arquetípico. Jung considera os complexos pessoais como compensatórios às
atitudes unilaterais ou censuráveis da consciência (JUNG, 2016). Quando um complexo é
constelado, o indivíduo adota uma atitude de expectativa na qual reagirá de forma definida.
Tal como os arquétipos, os complexos possuem energia específica e própria (JUNG,2014)
Portanto, tais conceitos estão interligados e não experienciamos um arquétipo diretamente,
mas por meio dos complexos.
A energia de um arquétipo fascina, seu efeito é análogo a um feitiço, tal como os
complexos pessoais. Enquanto os complexos pessoais produzem nada mais que singula-
ridade pessoal, os arquétipos criam mitos, religiões e filosofias que influenciam nações e
épocas (JUNG, 2016).
Berry (2014) afirma que os arquétipos surgem de forma normal ou patológica e esse
ponto é importante para a identificação da neurose e seu tratamento. A autora afirma que
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quando reconhecemos um padrão arquetípico também conhecemos a forma de curá-lo, tra-
tando tal padrão com ele mesmo, aprofundando-o e expandindo-o. Porém, quando falamos
de sintomas neuróticos devemos lembrar que além de expressar alguma coisa, também
mantém a certeza de que o objetivo jamais será alcançado.
HISTÓRIA DO CORPO
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conversão, promoção, dias de festas e trabalho e ritos de passagem. No século XVIII o ofício
exercido pelas pessoas, como trabalho agrícola, têxtil, alfaiataria e costura, influenciava na
postura corporal (VIGARELLO, 2008).
Na Europa Ocidental, buscavam disciplinar o corpo e controlar suas funções reprodu-
tivas, era necessário reprimir os impulsos sexuais, que eram considerados desordenados,
por razões espirituais e sociais. O corpo também aparece nesse contexto como agente de
atos sexuais transgressivos, ou seja, um lugar de crimes contra a religião e a sociedade
(VIGARELLO, 2008).
Do século XV ao XVIII a Europa esforçou-se para desenvolver uma nova percepção
sobre o corpo e a sexualidade, compatível com a ordem social, respeito pela religião e cres-
cimento populacional (VIGARELLO, 2008).
No final do século XVII a importância do amor nas relações conjugais começaram
a impor-se e facilitar a expressão das práticas sexuais alternativas e subculturas homos-
sexuais. No século XVIII o amor sentimental nos casamentos passou a existir, porém, na
mesma época a sociedade era dotada de um forte pudor e relegava tanto o corpo quanto a
sexualidade às conveniências (VIGARELLO, 2008).
Durante a Renascença e Antigo Regime eram fixadas culturas sexuais lícitas e ilícitas
às pessoas, segundo critérios que variavam conforme classe social, idade, gênero, normas
médicas e matrimoniais. Por exemplo, entre os séculos XV e XVI era amplamente tolerada
as relações sexuais entre homens jovens, porém, isso não poderia se estender a idade
adulta (VIGARELLO, 2008).
Entre o final da Idade Média e do Antigo Regime, a puberdade e o casamento eram
relativamente longos, uma sexualidade legítima era limitada ao estado conjugal, mas, a
adolescência não era um período de abstinência sexual para homens ou mulheres. Porém,
a sexualidade era oficialmente autorizada somente no casamento, as igrejas católica e
protestante buscavam controlar a consciência cristã através do corpo e de seus instintos
(VIGARELLO, 2008).
As pessoas que transgredissem a “hierarquia do gênero”, ou seja, as funções atribuídas
a cada gênero, eram punidos por grupos de homens. Essas ações coletivas eram explicadas
pela insegurança dos homens perante a relativa independência alcançada pelas mulheres
devido ao seu crescimento no mercado de trabalho (VIGARELLO, 2008).
Era recorrente ocorrer estupros individuais ou coletivos, promovidos por homens jo-
vens, geralmente vitimizando mulheres vulneráveis socialmente ou que se encontravam em
lugares isolados (VIGARELLO, 2008).
Existia a autorização aos homens a experienciar prazeres físicos antes do casamento,
ao mesmo tempo que as mulheres deviam conservar a virgindade até o as núpcias. Ainda
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assim, dentro do casamento existiam regras e limitações, que objetivavam produzir uma prole
numerosa e sadia, enquanto consideravam o leito conjugal preventivo ao pecado da luxúria,
dentro do casamento a sexualidade continuava sendo objeto de preocupação médica e reli-
giosa. Tanto autoridades médicas quanto religiosas indicavam a castidade matrimonial, que
implicava a restrição das relações sexuais entre os casais, indicavam que as relações fossem
moderadas e limitadas ao intuito de procriarem. Os pais também queriam determinar o sexo
da criança e era prefirível o sexo masculino, um “herdeiro”, pois as meninas dependiam de
um dote e deixavam seu lar quando se casavam, enquanto os meninos podiam cuidar dos
pais na velhice (VIGARELLO, 2008).
No final da Idade Média, no final do século XV e XVI, na França e Itália, houve crescente
preocupação com os celibatários, que frequentemente tinham “escapadas” com mulheres
e filhas de cidadãos honrados, então foram criados prostíbulos municipais, com o intuito de
preservarem os celibatários de práticas sexuais infames, como a sodomia, bem como sal-
vaguardar a honra das cidades e resguardar-se da cólera divina. Com isso, foi incentivada a
comercialização do corpo de mulheres, principalmente aquelas que já eram marginalizadas
pela pobreza, viuvez, vítimas de violência sexual e camponesas abandonadas. Apesar da
abolição dos bordéis municipais no curso do século XVI, a prostituição urbana continuou
se desenvolvendo na Europa, principalmente nas regiões periféricas (VIGARELLO, 2008).
No século XVIII houve a medicalização da sexualidade, trazendo a legitimação do pra-
zer erótico como fenômeno natural e a promoção das relações heterossexuais, baseadas
na ideia de que o corpo de ambos os gêneros precisavam trocar fuidos. A ciência também
impunha o que era de caráter “não natural” (VIGARELLO, 2008).
Durante o século seguinte, a sexualidade foi vinculada principalmente às prostitutas, aos
depravados e doentes mentais. Havendo uma polarização entre os sexos, onde as mulheres
tornaram-se mães sentimentais, a cultura falocêntrica triunfou, sendo a heterossexualidade
uma regra. Tal cultura, durante o século XIX, ressaltou que o corpo físico era inimigo da
pessoa moral que o habitava (VIGARELLO, 2008).
Quanto às doenças, tinham interpretações relativas, conforme os meios materiais e
sociais que se viviam. Por exemplo, na Renascença era tolerável que as pessoas da elite
demonstrassem melancolia, enquanto os pobres eram considerados molengas e descon-
tentes caso sofressem do mesmo mal (VIGARELLO, 2008).
A medicina grega utilizava o modelo humoral, que apoiava-se na imagem das subs-
tâncias e aparência, bem como no funcionamento interno do corpo. Ressaltavam a impor-
tância dos fluidos corporais, que incluíam o sangue, a bílis, a fleuma e a melancolia (bílis
escura), e acreditavam que os diferentes humores desempenhavam diferentes funções que
mantinham o corpo com vida, era importante a manutenção do equilíbrio entre tais fluidos.
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Durante a Renascença, o corpo passou a ser considerado o centro do universo, também
sendo ele o centro das simpatias, onde eram utilizados elementos da natureza para expli-
carem sintomas e curar doenças. No início do século XVII, havia a cura de doenças através
da religião, assim como amuletos para proteger o corpo de espíritos malignos, feiticeiras e
bruxarias. Mas, a partir da Renascença houveram tentativas de estabelecer a medicina em
bases mais sólidas, por tanto começaram a partir do século XIV, as práticas mais frequentes
de dissecações, havendo as primeiras demonstrações anatômicas públicas, a finalidade
era a instrução, não propriamente a pesquisa. Em 1543, Versálio incentivou a pesquisa e
observação anatômicas baseadas em observações e a partir disto, mudou-se a forma de
estudar o corpo, pois, passaram a observar, desenhar e descrever as experiências que
obtinham ao dissecar e estudar os corpos, no final do século XVI a anatomia de Versálio
tornou-se referência. No século XVII, o corpo e seu funcionamento passou a ser comparado
a uma máquina e a filosofia mecanicista passou a estimular programas de pesquisas que o
estudassem como tal (VIGARELLO, 2008).
Os corpos diferentes no sentido de deformidades, pessoas que possuíam deficiências
e malformações, eram considerados monstruosidades, sendo um dos pontos de pesquisa
da teratologia. A princípio, tais corpos eram atribuídos a um fracasso da criação, comparan-
do-os com os animais. Tais deformidades corporais também eram atribuídas a pecados, a
cumplicidade com o diabo ou sinal da cólera de Deus. Essas pessoas eram marginalizadas
socialmente, até que no século XVI houve um crescente interesse e fascínio pela monstruo-
sidade, incentivando o estudo dos mesmos. A partir da metade do século XVII e ao longo
do século XVIII, houve a dessacralização do corpo monstruoso, retirando aos poucos as
curiosidades e superstições acerca dos mesmos, conforme a ciência passou a estudá-los
anatômica e fisiologicamente. Tais estudos giravam em torno da origem dos monstros e por
vezes confundiam-se com explicações sobrenaturais (VIGARELLO, 2008).
O CORPO FEMININO
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da criança, porém, aquelas que eram abandonadas ou o noivo morria antes das núpcias,
eram relegadas por sua comunidade (VIGARELLO, 2008).
Enquanto os homens tinham o privilégio de terem aventuras sexuais antes do casamen-
to, as jovens mulheres deviam manter-se virgens até as núpcias, caso houvesse encontros
sexuais que resultasse em gravidez ilegítima, eram submetidas à pobreza e ao risco de
resvalarem na prostituição e suas consequências (VIGARELLO, 2008).
Dentro do contexto do matrimônio, existia a crença de que o leite materno seria como
o sangue menstrual, isso reforçava a problematização das relações sexuais durante o pe-
ríodo menstrual. A medicina da época associava o sangue menstrual com o veneno e isso
reforçava a crença comum da mulher ser inferior e de sua responsabilidade diante do pecado
original (VIGARELLO, 2008).
Atribuiam a posição “incorreta” durante o coito a uma procriação imperfeita, portanto
os homens sempre estavam em cima das mulheres, o que reforçava a hierarquia dos sexos
e a passividade feminina. Existia a crença de que o nascimento de hemafroditas ocorriam
devido a inversão das posições, onde as mulheres estavam em cima (VIGARELLO, 2008).
Do século XVI até o fim do século XVIII, a medicina supunha que o orgasmo feminino
era indispensável para a procriação perfeita, mas, não entendiam o papel do clítoris nesse
processo. O corpo feminino era considerado uma versão menos perfeita do masculino, e
caso seu parceiro ejaculasse antes dela atingir o orgasmo, era perfeitamente comum que
elas se estimulassem para obter o alívio sexual. Durante esse período, o objetivo das rela-
ções sexuais era a procriação. As mulheres também tinham a obrigação de permitir que o
marido acedesse ao seu corpo, porque a recusa podia levá-los a aventuras amorosas e a
culpa seria da esposa. Também não havia muitos recursos que as mulheres podiam usar
contra a gravidez, a não ser que houvesse a concordância de seu esposo de utilizar métodos
contraceptivos (VIGARELLO, 2008).
No final da Idade Média, com a criação dos bordéis municipais, as mulheres eram
incentivadas a comercializarem seus corpos, principalmente aquelas que tinham condições
financeiras inferiores, viúvas, grávidas e abandonadas, era o recurso que encontravam para
conseguir sobreviver. Portanto, o corpo feminino e sua beleza sempre constituiram um capital
fundamental tanto no casamento quanto no sexo comercial. Entre os séculos XVI e XVIII,
existiam anuários e guias de prostitutas (VIGARELLO, 2008).
Beauvoir (1970) ao levantar a questão “O que é ser mulher?” discorre sobre os sexos
serem definidos em dois pólos: positivo e negativo. Aos homens é atribuído o polo positivo
e neutro, pois são designados como “os seres humanos”, tal sexo não tem a necessidade
de se definir. Enquanto às mulheres é atribuído o polo negativo, sendo conferido a elas
limitações em todas as determinações, onde não há reciprocidade. A autora também fala
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sobre o corpo feminino ser tratado pelos homens como tudo que caracteriza um obstáculo
ou prisão, desde os primórdios são tratadas como um homem incompleto - desde a mitologia
de Adão e Eva -, definindo as mulheres como relativas ao homem, não como ser autônomo.
Koltuv (2020) diz que biologicamente as mulheres são diferentes por possuírem um
ciclo lunar. Carregando em si um aspecto transformacional miraculoso, que permite gerar
e nutrir outra vida dentro dela. O ciclo lunar interior caracteriza o tempo e a experiência da
mudança, um processo de transformação cíclica e periódica e através de tal ciclo, quando
uma mulher alcança a “ponta da Lua”, tem acesso a um nível mais profundo do Self. O ciclo
menstrual remete ao ciclo lunar, pois interfere diretamente, em maior ou menor nível, na
energia, ideias e emoções femininas. Ao conscientizar-se da Lua interior ou ciclo menstrual,
as mulheres são capazes de acessar suas “deusas interiores” e iniciar o conhecimento de
si mesmas, permitindo submeter-se às necessidades interiores da vida instintiva.
No decorrer dos séculos houve a redução do espaço e esmagamento da natureza
instintiva feminina, todas as vezes que a ignoramos, tal natureza é relegada às regiões mais
pobres da psique (ESTÉS,2014). Ao longo da história, a mulher foi submetida, subjugada e
relegada, como um ser sem importância e secundário e tal movimento interfere atualmente
na forma de lidar e se posicionar no mundo, bem como em sua relação com o próprio corpo,
autoestima e vida.
Atualmente está ocorrendo uma nova consciência e lucidez feminina, onde as mulheres
estão manifestando forças profundas e urgentes que existem em seu interior. Esse desper-
tar iniciou-se com o feminismo, que fomentou a importância do feminino, sua valorização e
iniciou o movimento de dar voz às mulheres. Posteriormente, houveram outras conquistas
como o controle da natalidade, abertura do mercado de trabalho para as mulheres, conse-
quentemente atribuindo mais independência, bem como certa divisão do poder no que antes
era considerado somente masculino (WOOLGER,2010 ).
Berry (2014) diz que somos multissexuais e que existem muitas formas de expressar
nossa sexualidade, a princípio todos os prazeres existentes são sem gênero e a identificação
do gênero ocorre depois. O gênero é arquetípico, pois é existente no mundo todo e utilizado
pela maioria das culturas em linguagem, estruturas sociais e mitologias. É uma forma de
sentir, pensar e experimentar.
A autora diferencia prazer pré-gênero e prazer do gênero. O primeiro seria primitivo,
narcisista, inferior e baixo, seria considerado como um “mau” prazer. O segundo, mais aceito
socialmente e pela psicologia, é caracterizado pela maturidade, orientado pela realidade e
produção, seria um prazer considerado “bom”. O dogma do gênero começa com aquilo que
concorda com o ego e lhe dá suporte e é utilizado por ele. Para superar tal rigidez destas
visões, Berry (2014) sugere reconectar o gênero ao campo original do prazer pré-gênero,
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experimentando-o como uma outra forma de vários prazeres. Por fim, o gênero é utilizado
para rotulações e organizações conceituais que na prática individual não funcionam, pois
individualmente o gênero é ambíguo e com nossas qualidades “femininas” e “masculinas”
equilibradas, estamos salvos de extremidades psicológicas.
Todos compartilham da atitude coletiva em termos de propensões masculinas e femi-
ninas, e cria-se expectativas em torno delas. À medida em que se explica o comportamento
com base no gênero, atribui-se uma justificativa aos traços de personalidade. Isso pode levar
inclusive às pessoas a verem o mundo através do “óculos” defensivos do gênero, enxergando
as coisas apenas através de seu ponto de vista (BERRY, 2014).
Ilustrando a valorização do corpo feminino e masculino, podemos utilizar o mito de
Eco e Narciso. Narciso era um belo jovem que entorpecia as pessoas com sua beleza e ao
vê-lo, Eco apaixonou-se. Por ter sido amaldiçoada por Hera a repetir as coisas que lhe di-
ziam, ela ao longe acompanhava Narciso, que ao fazer perguntas à ninfa recebia respostas
repetidas. Ao deparar-se com sua imagem na água e se apaixonar, Narciso acreditou ser a
pessoa da imagem dona da voz e mergulhou, afogando-se e morrendo. Eco ao ser rejeitada
por Narciso ficou desgostosa e triste, começou a definhar, passou a ser esquelética e enru-
gada, toda umidade desapareceu em seu corpo, restando-lhe apenas sua voz. A busca de
Narciso é muito mais valorizada que a de Eco, sendo ressaltado na mitologia como alguém
belo, superficial, autocentrado e com identidade, enquanto Eco é pouco lembrada é descrita
como alguém sem identidade, sem corpo e com anseios irrealizáveis (BERRY, 2014).
AS DEUSAS
Os mitos provenientes dos tempos antigos possuem temas que sempre sustentaram a
vida humana, eles possuem ligação com os profundos problemas interiores. O mito possibi-
lita a experiência de estar vivo, pois ele que lhe diz o que a experiência é, eles te ensinam
a olhar para dentro de você mesmo. O mito é definido no dicionário como “A história sobre
deuses”, portanto, é importante ressaltarmos que um Deus é a personificação de um poder
motivador, exprime os poderes do corpo humano e da natureza. Mitos são metáforas da
potencialidade da vida humana e da sociedade (CAMPBELL, 1990)
Segundo Estés (2014), a cura para qualquer dano ou resgate de algum impulso psíquico
está nas histórias. Entretanto, várias camadas culturais desorganizam os esqueletos das
histórias e dessa forma foram perdidos muitos contos femininos contendo instruções sobre
o sexo, o amor, o dinheiro, o casamento, o parto, a morte e a transformação. Muitos contos
de fadas e mitos existentes foram alterados expurgando tudo aquilo que era considerado
feminino, iniciático, pré-cristão, sexual ou que se relacionassem às deusas, que contém a
cura para vários males psicológicos para problemas atuais.
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Uma deusa é a forma que um arquétipo feminino pode assumir nas histórias, são ima-
gens arquetípicas comuns na nossa cultura. Várias deusas podem influenciar os comporta-
mentos e a configuração psicológica de uma mulher (WOOLGER, 2010). As deusas consis-
tem em padrões existentes dentro de cada mulher, que atuam através dela, influenciando
seus relacionamentos e sua vida no geral. A sociedade ao mesmo tempo que reforça alguns
padrões das deusas, refreiam outros, através dos estereótipos culturais (BOLEN,1990).
Considerando o tema do presente artigo, analisaremos mitos de deusas que abordam
o tema do corpo e autoestima, considerando como esses padrões se manifestam nos mitos
e na sociedade atual, impactando diretamente na vida das mulheres modernas que chegam
ao consultório do psicólogo clínico.
LILITH
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Ainda que representada de forma negativa, Lilith simboliza uma potência sexual fe-
minina considerada periculosa, em quase todas as culturas, principalmente com o reforça-
mento do patriarcado , que tenta desqualificar a autoridade feminina. Ela nos ensina que a
mulher já estava preparada para assumir seu erotismo, num mundo onde o divino ditava as
regras (ROBLES, 2006). Embora tratada como um ser perigoso e sedutor para as pessoas
completamente inconscientes, o encontro com Lilith pode ser transformador para aqueles
que já estão trilhando o caminho da consciência, afinal, a caminho da árvore da sabedoria
precisamos passar por Lilith (KOLTUV, 2017).
Há a crença de que Lilith habita a profundeza dos oceanos, mantida por guardiões
superiores por meio de reiteradas censuras, com o objetivo de que não volte a perturbar a
vida dos homens e mulheres. Porém, arquetipicamente ela ressurge de tempos em tempos
quando surgem discussões de direitos, liberdade e igualdade entre gêneros, fazendo as
mulheres redescobrem a criatividade (ROBLES, 2006).
Lilith representa a mulher que está intimamente ligada a seu corpo, com sua sexuali-
dade e feminilidade, tendo capacidade de negar o que não lhe agrada. Desde os primórdios
o feminino empoderado que decide sobre seu próprio corpo é negado e apagado, como
no caso de Lilith e atualmente, mulheres com boa relação com o corpo e com a vida, com
a capacidade de tomar decisões e de dizer não causam estranhamento, pode-se perceber
isso em discursos onde atribuem a exposição do corpo feminino algo negativo, bem como a
culpabilização das mulheres, em duas vias: quando assediadas e violentadas são culpabili-
zadas por expor seus corpos e quando se posicionam, são interpretadas como ignorantes.
É inegável que na atualidade ainda há a repreensão e tentativa de “afundar” as mu-
lheres que se dispõem a ser donas da própria vida.
EVA
Dentro da mitologia judaico cristã, após ter expulsado Lilith do paraíso, Deus teria se
compadecido de Adão, que pedia a ele uma companheira, criando Eva a partir da costela
do primeiro homem. Aos dois habitantes do paraíso, foi dada a ordem de não comerem do
fruto de uma árvore específica, do conhecimento, com a ameaça de morte caso comessem.
Eva, convencida por uma serpente, comeu do fruto e ofereceu a Adão, a partir daí, ambos
se envergonharam por estarem nus e foram castigados por Deus pela desobediência: as
mulheres com as dores do parto e dominação pelo homem, enquanto ao homem, o cansaço
frequente do trabalho com a terra.
Através de Eva, a tradição religiosa reforçou um tríplice preconceito às mulheres:
de haver cedido ao chamado do diabo, de incitar o homem mais inocente de todos ao pe-
cado e pela perda do paraíso. Eva sofre consequências por ter cedido ao seu desejo de
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governar sua própria sexualidade, mas sua desobediência demonstra sua capacidade e
liberdade para tomar suas próprias decisões, assumindo o direito de viver entre o bem e o
mal (ROBLES, 2006).
Existem teólogos que equiparam Eva ao diabo, por sua tendência a rebelar-se por
meio da sensualidade, a associam à cobiça e afirmam que assim como o anjo caído, ela
teria a pretensão de igualar-se a Deus, de que ela adquiriria um corpo divino semelhante ao
do próprio anjo. Santo Agostinho atribui à Eva a vaidade feminina, de forma negativa, bem
como soberba expressa pela responsabilidade pelo mais abominável pecado, segundo os
dogmas modernos (ROBLES, 2006).
A história de Eva representa a vida e o mundo, é uma referência à palavra, semente
de ideologias mais sugestivas e instrumento dual entre a luz e a escuridão. Ela representa
a mulher, a deusa, a mãe e a amante, a abnegada parideira de homens que traz o símbolo
da queda e ao mesmo tempo a consciência eletiva de quem se atreveu a desvelar o misté-
rio mais elevado, o da sabedoria que estava entranhada na árvore proibida, ainda que isso
aniquilasse sua própria divindade (ROBLES, 2006).
Do ponto de vista da história de Eva, a mulher á a menos racional, a mais profana do
casal e a culpada pela culpa da queda da humanidade, herdeira do poderoso caráter das
deusas pagãs, é a portadora do signo perverso da palavra, que conspira através da pala-
vra com a serpente. Sua sexualidade é a preocupação essencial da tradição ocidental, de
onde se desprende o preconceito em relação à feminilidade perversa que estigmatizou as
fraquezas masculinas provocadas pela mulher (ROBLES, 2006).
A mitologia de Eva demonstra a punição do feminino, do exílio e culpabilização da mu-
lher, como detentora do pecado. Representa o corpo derivado do masculino, que não tem uma
criação igualitária. E o desenrolar da história, demonstra que essa subjugação do feminino
permanece até mesmo na aplicação do castigo, que é mais rígido à mulher. Ao mesmo tempo,
representa as mulheres que se permitem fazer escolhas na vida e são julgadas e rebaixadas
por isso, tratadas como soberbas e mesquinhas, vistas muitas vezes como incapazes de
escolherem. Portanto, o mito de Eva reflete atualmente na vida das mulheres modernas.
AFRODITE
Afrodite é a deusa grega da beleza, amor e sensualidade, seu nome significa “nascida
da espuma”. Ela nasceu a partir dos testículos do pai, Urano, que foram cortados e jogados
ao mar por Cronos, a partir disso formou-se uma espuma em volta dos testículos, no qual
nasceu Afrodite. Tal nascimento explicaria a atração de Afrodite por tudo que é fálico, ela traz
consigo a superabundância da energia sexual de seu pai. Afrodite nasce da água, elemento
que representa sentimentos e empatia (WOOLGER, 2010).
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O único dever divino atribuído à Afrodite pelas Parcas era fazer amor. Ela possuía um
cinto mágico, que fazia com que todos se apaixonassem por ela (GRAVES,2018). Essa deusa
também representa a ligação pessoal nos relacionamentos através da sexualidade, porém,
por maior importância que o tema tenha, nunca será um fim por si mesmo (WOOLGER, 2010).
Por ordem de Zeus e contra sua vontade, Afrodite casou-se com Hefesto, o deus fer-
reiro coxo. A deusa tinha um relacionamento extra conjugal com Ares, deus da guerra, com
quem teve quatro filhos: Ares, Fobos, Deimos e Harmonia. Quando Hefesto soube da traição,
produziu uma armadilha para os dois deuses, construiu uma rede dourada para prendê-los
na cama e os expôs na frente de outros deuses, porém, Zeus recusou-se a devolver os pre-
sentes nupciais oferecidos a ele na ocasião do casamento, condição imposta por Hefesto
para libertá-los (GRAVES,2018).
A deusa teve diversos relacionamentos além de Hefesto e Ares, com deuses e mortais.
Ela relacionou-se com Hermes e o fruto dessa relação foi Hemafrodito, uma criatura que
possuía os dois sexos. Também teve dois filhos com Poseidon, Rode e Herófilo. De seu
relacionamento com Dionísio, nasceu Príapo. Relacionou-se com Anquises, o rei dos dár-
danos, bem como Adônis, amante que dividia com Perséfone (GRAVES,2018).
Afrodite era ciumenta e geniosa, ao ouvir a mulher do rei Cíniras dizer que sua filha
Esmirna era mais bela que ela, a deusa vingou-se desse insulto fazendo com que Esmirna
se apaixonasse e deitasse com seu pai e desse relacionamento nasceu Adônis, que virou
amante de Afrodite e com quem teve seu filho Golgos, fundador de Golgi, no Chipre e uma
filha, Beroe, fundadora de Beroea, na Trácia (GRAVES,2018).
Situação semelhante ocorre ao disputar o título da deusa mais bela, que foi decidido
por Paris, por ordem de Zeus. Afrodite disputou o título com Atena e Hera. As três deusas
ofereceram presentes à Paris para persuadi-lo em sua decisão, Afrodite ofereceu a mulher
mais bonita do mundo na época, Helena de Esparta, convencendo Paris a dar a ela a maçã
que atribuía a mesma o título de deusa mais bela (GRAVES,2018).
Afrodite era e é uma presença sensual. Na Grécia, ela abençoava a população com as
artes da escultura, poesia e música, ela destacava a importância do que é belo. Também
regia relações extramaritais para os gregos. Atualmente, a influência de Afrodite aparece na
indústria da moda, através de cosméticos, requinte e glamour (WOOLGER, 2010).
Na sociedade americana a violência é retratada com frequência nas televisões, porém,
a sexualidade é tratada ainda como tabu. Os homens parecem ser totalmente impotentes
para resistir ao fascínio sexual, porém, são sempre retratados como vítimas de seus próprios
sentimentos não admitidos. Isso é expresso por 2 fatores atuantes: o medo dos homens de
perderem o poder e o horror ao corpo (WOOLGER, 2010).
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Culturalmente Afrodite foi considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que representa
uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade. Ela é a deusa do amor, que
inflama paixão, incita desejos eróticos e sentimentos românticos (BOLEN, 1990).
Bolen (1990) descreve que é possível experienciar a alquimia de Afrodite quando somos
atraídos por outra pessoa e nos apaixonamos, dentro deste contexto é possível ser tocado
por criatividade e transformação, apreciando a capacidade que temos de transformar o belo
e apreciado que está embutido no amor. Tal como na alquimia existe o processo físico onde
unem-se substâncias num esforço de transformar o material inferior em ouro, aquilo que não
é usual no dia a dia é material “inferior” que através da influência criativa de Afrodite pode
tornar-se ouro.
Mulheres regidas por Afrodite são aquelas que se sentem plenamente à vontade com
o próprio corpo e tem uma relação saudável com sua sexualidade, ainda que a cultura e
os homens tentam prendê-las em um relacionamento, dispõem de liberdade para fazerem
suas escolhas amorosas e para lidarem com seus corpos e sexualidade da maneira que
sentirem-se melhor.
AMATERASU
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Geralmente as mulheres nos mitos são retratadas como Lua e os homens como o Sol,
o que não ocorre no mito de Amaterasu. Amaterasu ter um atributo geralmente associado
ao masculino é importante, pois demonstra uma mulher em equilíbrio com sua contraparte
presente na psique feminina, o animus (MELLO, 2022).
O sol refere-se ao simbolismo da consciência, a deusa do sol demonstra aspectos do
feminino que precisam ser integrados à consciência. O mito traz um convite a olhar para si
mesmo profundamente e para a reflexão sobre a autoestima e autocuidado (MELLO, 2022).
Amaterasu é uma deusa solar, ela traz consigo o brilho que ilumina e dá vida ao mun-
do. É uma mulher com grande importância dentro dos deuses japonese.
Assim como Amaterasu, muitas mulheres ao isolar-se e no encontro profundo consigo
mesmas retornam ao mundo externo de forma diferente, irreconhecível até mesmo para
ela mesma, mas com auxílio conseguem mostrar esse brilho que vem de dentro ao mundo.
Outras, utilizam essa introspecção como fuga e não conseguem reconhecer em si mesmas
suas próprias qualidades, sua luz.
OXUM
Na cultura iorubá, Oxum é a mãe ancestral suprema, a senhora das águas doces, é
dona do ouro e de todos os metais dourados (como latão e cobre), ela rege a fecundidade,
a fertilidade e as gestações, consequentemente é a mãe de todas as crianças e criaturas
vivas. Oxum também tem uma conexão com a beleza e a graciosidade, é o símbolo da fe-
minilidade, da mulher sexuada e consciente de seu próprio poder de sedução e beleza. Ela
rege os relacionamentos amorosos e a menstruação, por sua causa Oxalá utiliza uma pena
vermelha retirada do ekodidé. A deusa é a mãe que criou as iniciações, no Candomblé, as
cerimônias de “feitura de santo” iniciam-se em cachoeiras ou rios, onde o Ori é lavado com
água doce, ressaltando que todos os seres humanos são filhos de Oxum (PARIZI, 2020).
Seu mito conta que Obatalá irritou-se com os homens que sujaram seu pano branco
e dividiu Orum e Aiyê, o mundo espiritual e o físico, a partir disto a tristeza tomou conta de
ambos os mundos. Então, os Orixás não podiam mais compartilhar as comidas dos homens
e os homens não recebiam o axé dos Orixás. Oxum, com permissão de Olorum, compade-
ceu-se, pegou uma galinha de angola, raspou sua cabeça, a pintou de branco, vermelho
e azul, e a fez dançar. Os homens passaram a repetir tal rito, aconselhados por Oxum, e
tal rito tornou-se fundamental na iniciação onde os Orixás “viram” no Ori dos seres huma-
nos (PARIZI, 2020).
Sua mitologia também conta que Oxum recebia os visitantes de seu esposo, Orunmilá,
quando ele estava ausente, conversava com essas pessoas, avisava da ausência de Babalaô
e prescrevia algo que os auxiliava a aliviar suas necessidades imediatas. Ela foi tão eficiente
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nessa tarefa que Orunmilá ensinou-a 16 Odus, associados ao jogo de búzios, tornando-a
Senhora do Jogo de Búzios. A partir disto, Oxum passou a ensinar com generosidade todas
as pessoas a jogar, então todos os iniciados em Orixá tem a honra de receber seu conjunto
de 16 búzios (PARIZI, 2020).
Outra versão conta que Olorum escondeu toda a sabedoria do Universo em um saquinho
e todos os Orixás saíram à sua procura. Quem encontrou o saquinho e tornou-se Senhora
de toda a Sabedoria foi Oxum, que o escondeu em sua roupa, porém, foi surpreendida por
Orunmilá, que arranhou sua roupa até conseguir apossar-se do saquinho. A briga entre
os dois terminou com Orunmilá ficando com o saquinho e doando a Oxum o merindilo-
gum (PARIZI, 2020).
Oxum representa a mulher que tem uma boa relação com seu corpo e sua vida, é
aquela que demonstra generosidade e feminilidade e vai em encontro daquilo que a inte-
ressa. O mito de Oxum mostra-nos que o poder feminino precede o masculino, porém foi
roubado pelo patriarcado.
CONCLUSÃO
Historicamente a noção de corpo sofreu mudanças e tal concepção foi influenciada pela
época, religião e gênero. A mulher foi colocada na posição de segregação, de sexo e corpo
inferior e isso reflete atualmente em nossa sociedade e na forma com que se relaciona com
o corpo, bem como a imagem que as mulheres tem de si mesmas.
A pesquisa histórica revela tal diminuição da mulher e os mitos demonstram duas ten-
dências opostas: Deusas bem resolvidas consigo mesmas, com seu corpo e sexualidade e
outras que precisam se esconder, não reconhecem seu valor, expulsas dos paraísos que
pertenciam ou consideradas uma extensão do homem.
No contexto da psicologia clínica tais mulheres podem descrever que não estão sa-
tisfeitas com o próprio corpo, que comparam-se constantemente com as outras pessoas,
sentem-se inseguras, têm dificuldade de dizer não, de reconhecer suas próprias qualidades
e assumir as responsabilidades pela própria vida. Muitas podem inclusive apresentar alte-
ração da percepção da autoimagem corporal, progredindo para transtornos alimentares em
decorrência de tal sintomatologia. Diante de tal existência é importante compreender que
além da subjetividade ali presente, vivemos uma época onde a indústria produz formas inal-
cançáveis de viver, de se comportar e de existir como corpo, reforçado pelas mídias sociais.
Tal qual as deusas abordadas neste artigo, por vezes mulheres ao se posicionarem e
assumirem a direção de suas próprias vidas, são consideradas como demônios, ousadas
e maldosas, assim como foi feito com Lilith. Essa exclusão e culpabilização podem reforçar
as atitudes descritas acima. A perda do paraíso de fato traz conflitos, mas também novas
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possibilidades, inclusive de aproximar-se da sabedoria sobre si mesma. Assim como Eva,
as mulheres podem encontrar-se em um lugar de desvalorização e culpabilização ao fazer
escolhas, sendo subjugadas por isto. Mulheres que assumem sua beleza e vivem sua se-
xualidade sem impedimentos, do mesmo modo que Afrodite, ainda são julgadas pelos seus
comportamentos, de forma desigual em relação aos homens, que ao terem as mesmas
atitudes e confiança são valorizados socialmente. Bem como Amaterasu, algumas mulheres
podem duvidar do próprio poder e retirar-se para uma caverna, isolando-se, e ao saírem não
reconhecer seu próprio potencial. Existem também mulheres que se relacionam bem com
o próprio corpo, utilizam sua beleza e graciosidade, estão dispostas a ajudar ao outro, da
mesma forma que Oxum, mas que por vezes são enganadas e roubadas em suas conquis-
tas. Ainda assim, dentro destes mitos existem potencialidades que podem ser exploradas e
desenvolvidas, afinal, todo arquétipo possui lados positivos e negativos.
O padrão social que serve como modelo de corpo e de comportamento é presente
atualmente e se renova constantemente, serve como uma imposição do que é belo e acom-
panha as mulheres durante a vida. Com a tecnologia tal padrão é disseminado e reiterado
continuamente, levando as mulheres a buscarem ser iguais fisicamente, sem considerar a
sua própria natureza corporal, tentando encaixar-se independente do que aconteça e isso
gera sofrimento, que produz sintomas como os citados anteriormente. Essa cobrança social
se internaliza e leva algumas mulheres a sentirem-se incompletas, insuficientes e deslocadas,
gerando esforços para encaixar-se neste modelo.
As cobranças criadas no ambiente externo de seguir um mesmo modo de existir, falar,
vestir e modelar o corpo pode levar a desvalorização do que é subjetivo e a um sentimento
de vazio existencial. O trabalho na psicoterapia vai de encontro a conscientização do po-
tencial dessas pessoas e necessidade de atender às expectativas sociais, considerando o
espírito de nossa época e as nuances envolvidas nesse padrão arquetípico, entendendo
o papel que esses modelos de existir têm na vida dessa pessoa, tendo em vista que em
psicologia analítica o individual não importa perante o genérico e o genérico não importa
diante do individual.
Diante dos resultados adquiridos com essa pesquisa bibliográfica abre-se a possibili-
dade de explorar o tema do padrão de beleza que rege a autoimagem feminina, através de
pesquisas de campo onde é possível buscar como as mulheres se sentem diante dessas
representações que por vezes lhe são impostas socialmente e como lidam com tal demanda.
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REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: Fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1970.
BERRY, Patricia. O corpo sutil de Eco: Contribuições para uma psicologia arquetípica.
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Autorretratos de Kerry Mansfield: vida
íntima e invenções do feminino na
doença e na fotografia contemporânea
Monica Torres
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
'10.37885/230212227
RESUMO
Nos campos das Artes e da Comunicação contemporânea, têm sido frequentes ima-
gens de corpos doentes, mastectomizados e de seios com cicatrizes, sobre o sofrimento e
a dor que surgem a partir do tratamento do câncer. Um dos primeiros autorretratos que nos
chamaram a atenção foram os da série Consequências (2005), de Kerry Mansfield. O ensaio
surgiu quando, aos 31 anos, a fotógrafa recebeu o diagnóstico de câncer de mama. A vi-
vência da quimioterapia e da cirurgia alterariam toda a sua estrutura física: ela sabia que
aquela velha imagem que tinha de si mesma seria radicalmente alterada: “Meu corpo pode
não ser eu, mas, sem ele, eu sou algo completamente diferente”, relata Mansfield.1Foi a
partir daí que começou a documentar o seu tratamento. Após o despertar para o tema, en-
contramos referências que precederam as de Mansfield: de Jo Spence, 1985, as primeiras
de que se tem registro de documentação do próprio corpo durante o tratamento do câncer
e a de Hannah Wilke (1992), Intra-Venus, que mostra a transformação física ocasionada
pelo tratamento do linfoma.
1 A artista apresenta um texto sobre o a série de autorretratos em sua página na internet, em que conta mais detalhes e explica como
surgiu o ensaio. Disponível em: www.kerrymansfield.com. Acesso em 10 de agosto de 2016.
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Figura 02. Jo Spence, A Imagem da Saúde? (1982-1986) e Hannah Wilke, Intra-Vênus (1992-1993).
O presente trabalho surge do interesse no estudo dessas séries fotográficas, que, nos
últimos anos, ampliaram-se. E é parte da pesquisa de doutorado em Comunicação e Cultura,
pela Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Fotografia e Câncer: como a doença torna-se obra de arte? (2020), que estuda estes e
outros autorretratos de mulheres durante o tratamento com câncer (séries fotográficas de
oito artistas). Nosso interesse surge também do contato com imagens do câncer, a partir
de vivência profissional no Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro. Em nos-
sa pesquisa um problema central nos motivou: Como fotografias de mulheres com câncer
– de corpos doentes, medicalizados, mastectomizados e com cicatrizes – tornam-se arte
contemporânea? Esse problema central suscita outras questões: Que estratégias artísticas
e escolhas estéticas as caracterizam como arte contemporânea? Como a artista aborda o
corpo feminino? O que dizem essas imagens e que tensões evocam? Quem as produz e
para quem? Onde circulam? Que julgamentos éticos e estéticos “de si” e “do outro” estão
presentes? São perguntas que buscamos abordar, ainda que de forma breve, neste trabalho.
Particularmente aqui, a proposta é analisar os autorretratos de Mansfield, a partir do
estudo da origem do sentido nos seios na história da arte e das ideias de visibilidade e
intimidade, considerando as possibilidades estéticas abertas pela fotografia. Além disso,
buscaremos apresentar uma breve análise da evolução das imagens médicas e do ideal da
transparência do corpo, em diálogo com o cenário das artes do corpo e da fotografia con-
temporânea, considerando seus sintomas ou características mais evidentes.
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arte e que o nosso olhar para os seios têm uma história. Consideramos, assim, o estudo do
significado dos seios na sociedade, sobretudo no campo das artes e da cultura, um ponto
de partida central para nossa pesquisa.
Vamos propor partirmos da pesquisa de Margaret Miles, em A Complex Deligh (“Um
Prazer Complexo”). A pesquisadora de cultura visual aborda a história da “secularização
do seio”. Para isso, traça um panorama que vai de 1350, quando os seios eram um símbolo
religioso, até 1750, quando passou a erótico e medicalizado. Para Miles, há muitas maneiras
de olhar para o corpo feminino, e a nossa obsessão com seios deve- se em grande parte à
nossa cultura de objetificação e fetichização do corpo.
Miles inicia seu argumento explicando que, quem viveu no Renascimento, olhava para
um Botticelli em O Nascimento de Vênus (1486) e via um retrato profundamente cristão da
beleza. A partir de uma perspectiva humanista, que apresentou “Deus” como o “criador de
toda a beleza”, esta pintura foi central para inspirar os espectadores sobre as habilidades e
as delicadezas do Criador. Em A intercessão de Cristo e da Virgem (pré-1402), por Monaco,
a graça vem ao mundo através do leite de Maria. Seus seios cheios e lactantes são símbolo
de misericórdia de Deus. Miles ressalta o sentido reconfortante dessas imagens em um mo-
mento em que a Europa ocidental começou a sentir os efeitos da peste, da fome e da guerra.
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Figura 04. A intercessão de Cristo e da Virgem (pre-1402), L. Monaco e Bartolome Bermejo - 1498.
As formas de olhar para os seios começaram a mudar no século XVI: os seios nus
são bastante ambíguos quando aparecem em Maria Madalena de Ticiano (c. 1535), nem
totalmente sagrado, nem completamente eróticos. Madalena em si seria uma figura com-
plexa: é mencionada até doze vezes nos evangelhos, e a leitura dos escritores medievais
integram todas essas mulheres em uma. Acredita-se que o pintor teve problemas para de-
cidir como retratar os seios, mas a ambigüidade na sua pintura refletiu uma mudança-geral
na percepção do que seria típico em seu século. Então, no fim da idade média e no início
da idade moderna, o público assistia a pinturas de mulheres em corpos santos e perfeitos
(Virgem Maria ou as santas) e, ao mesmo tempo, perigosos e sensuais (Eva e as bruxas).
Madalena uniu ambas as representações e, na sua figura, o significato sagrado dos seios
passou sutilmente a incorporar o erótico.
No século XVII, a Igreja Católica passou a proibir “nús” de figuras piedosas. A Beata
Ludovica Albertoni (1674) é uma escultura de mármore da beata com as mãos nos seios com-
pletamente cobertos, mas, ainda que buscando representar o êxtase religioso, ela toca muito
eroticamente. Considera-se que o pintor Bernini foi aparentemente incapaz de representar o
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corpo feminino sem erotizá-lo e que, a partir de então, todas as imagens de seios femininos
passariam a ser eróticas ou medicalizadas.
Figura 07. Santa Barbara /Balatasar Vargas de Figuera, 1659 e Romualdo Formosa/Cenas de Martirio / Santa Agatha, 1765.
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No século XVIII, também conhecido como Século das Luzes, ascenderia a ciência
médica como discurso hegemônico na Europa Ocidental, e os desenhos do corpo e da
anatomia seriam, então, centrais. Na Anatomia, os corpos eram entendidos não como sím-
bolos religiosos, mas como objetos de dissecação, estudos e desenho. Então, os médicos
passaram a fazer do corpo feminino um objeto de estudo, mas também de desejo. Assim,
tanto a erotização e a medicalização das mamas surge a partir de um mundo que era pro-
fundamente profano, com justificativa sagrada e religiosa, de um lado, e de ciência moderna
e da medicina, do outro.
Por fim, ainda no mesmo período, a invenção das pinturas impressas criou um mer-
cado popular para as imagens eróticas e pornográficas. A invenção da “pornografia” estava
intimamente ligada a origem da modernidade. A emergência do seio com sentido pornográ-
fico e de anatomia estavam intimamente relacionado às alterações econômicas, sociais e
religiosas das instituições, bem como à ascensão da classe burguesa e urbana. E, sendo
assim, no final do século XVIII, as “novas” associações ao feminino prevaleciam sobre as
anteriormente religiosas no imaginário cultural ocidental.
2 Foucault apresenta o dispositivo do Panóptico a partir do pensamento que traça sobre as sociedades disciplinares. Para Agamben
(2008), embora Foucault nunca tenha elaborado precisamente a definição, a que mais se aproximaria disso é a que apresentou em
uma entrevista em 1977: “Dispositivo é um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui: discursos, instituições,
edifícios, leis, medidas de política, proposições filosóficas. E é a rede que se estabelece entre esses elementos; b) o dispositivo tem
sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder; c) resulta do cruzamento das relações de
poder e de saber” (p.28-29).
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diversos elementos (discursivos ou não) e que operam em uma rede heterogênea em dado
momento histórico. Para eles, é nesse mesmo sentido que toda percepção apresentaria
um profundo caráter histórico. O argumento que defendem é que o modo pelo qual vemos,
ouvimos, sentimos ou prestamos atenção em algo depende em grande parte dos contextos
históricos em que nos localizamos. De acordo com suas análises, filmes e fotografias devem
ser entendidos como partes de um mesmo território abstrato em que unidades de energia
circulam de modo indiferenciado. A partir desse entendimento, os autores apresentam o
conceito de dispositivos de visibilidade quando estudam as mutações do olhar, com base
no cenário da profusão de imagens corporais na contemporaneidade, seja nas ciências, nas
mídias ou nas artes. No artigo, dialogam com a pesquisa de Jose van Dijck, que aborda
o que poderíamos chamar de um sintoma contemporâneo: a presença do corpo humano
nas obras e das temáticas cada vez mais frequentes sobre seu funcionamento ou falibilida-
de. No livro, Corpo Transparente: uma análise cultural das imagens médicas (2005), Dijck
apresenta como as tecnologias de imagens médicas são a incorporação material de desejos
coletivos e fantasias: a mais difundida é o ideal da transparência si. A sua ideia sobre o corpo
transparente apresenta o contexto cultural e o impacto social de tais práticas de imagens
médica como raios X e endoscopia, ultra-sonografia de fetos, a filmagem e transmissão de
operações cirúrgicas, a criação de cadáveres plastinados para exibição como objetos de
arte, e o uso de cadáveres digitalizados em estudo anatômico.
Em sua pesquisa, Dijck parece concordar com Miles quando mostra como a ciência
sempre teve relações íntimas com a arte, sobretudo no estudo do corpo, embora hoje com
tecnologias mais avançadas de observação do seu interior. A pesquisadora relembra como
a descoberta, em 1895, da radiografia desenvolveu-se rapidamente e alterou significante-
mente a forma como os médicos e o público poderiam ter acesso ao corpo humano. A autora
argumenta que o cinema foi inventado no mesmo ano, e permitiu em primeira instância ver
o movimento, encadeando cenas que se tornavam cada vez mais semelhantes às da vida
real. E que o cinema desempenhou também outro papel nessa tendência da dar visuali-
dade ao corpo humano: a arte de produzir imagens que levassem ao público o interior do
corpo. A cultura de massa, respondendo ao seu insaciável apetite por visibilidade, absorveu
rapidamente a temática moderna. E, dessa forma, o interior do corpo tornou-se uma pre-
sença cultural generalizada.
Após essa breve análise da presença dos corpos e das imagens médicas na cena
contemporânea, podemos observar que, em paralelo, existe hoje uma tendência de ex-
pressão dos indivíduos através de fotografias de seus corpos a partir de vivências anterior-
mente considerados privadas e íntimas. Por exemplo, registros de situações de vivência da
dor e de doenças – como a depressão, a violência em homossexuais, a AIDS e o próprio
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câncer - muitas vezes, em autorretratos. Acreditamos que as séries de Mansfield inscre-
vem-se nesse cenário.
Sobre esse outra característica contemporânea, podemos mencionar os estudos de
Schechner, em O que é performance? (2006). O autor analisa o culto à performance da
sociedade contemporânea, considerando o enfoque atual em personalidades alterdirigidas,
o que significa estar “orientada para os outros”. Segundo Schechner, na atualidade, há per-
missão moral para isso, ao contrário do que ocorria no século XIX, onde a demanda moral
era por estabilidade na identidade e na essência. No período romano, não existia a ideia de
vítima, como há hoje. Já na sociedade contemporânea, na cultura da performance, não é
bom ter vergonha, até para poder performar. Sendo assim, podemos observar uma mudança
central para os estudos de nossa série fotográfica: a mudança na cultura das narrativas e
discursos testemunhais. No século XIX, a ênfase na narrativa do indivíduo era a confissão
(privado pastoral, existência da culpa e do discurso introdirigido). Na atualidade, a narrativa
central é a do testemunho, público-midiático, do trauma e da vergonha reflexiva, alterdirigi-
dos. Ainda segundo Schechner (2006) e Sibilia (2008), hoje, mesmo quando o indivíduo é
estigmatizado, pode criar uma narrativa de si, questionando seu direito e afirmando-se como
vítima da sociedade. E pode, então, dar a ver o que considera que não está visível ou de
fato representativo do que vivencia: é o que parece motivar a série de Mansfield.
Sendo assim, se, no século XIX, a intimidade e o sofrimento eram experimentados
como conflito interior, ou choque, entre aspirações e desejos reprimidos e as regras rígidas
das convenções sociais, hoje, o quadro é outro: na cultura das sensações e do espetáculo, a
ideia é performar também a intimidade e sofrimento. Tem-se, portanto, como pré- requisitos
para esse personagem com testemunhos (em fotografias nas artes e na mídia, e mesmo nas
redes sociais), a conexão e a visibilidade, ao contrário da introspecção (do tempo das cartas
e diários). Um exemplo é artista contemporânea Sophie Calle, com obras e fotografias que
surgem a partir de sua vida privada, como Cuide-se bem, 2007, quando expôs o e-mail de
término de relacionamento como peça fundante.
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construídos sobre ela. E identifica o câncer e a tuberculose como “duas doenças tolhidas
pelos ornamentos da metáfora”. Na sua visão, no século XIX, a tuberculose era considerada
intratável, portanto receber esse diagnóstico era quase uma sentença de morte. E, agora, o
câncer teria ocupado essa “vaga” de enfermidade implacável, que entra sem pedir licença
e invade secretamente o corpo do doente.
Um segundo sintoma contemporâneo que podemos destacar é o que alguns autores
chamam de “retorno ao real”. Para Foster (2104), estaríamos vivendo uma “virada para o
real”, mais precisamente, o realismo traumático, referindo-se às imagens de choque, violên-
cia, doenças e sofrimento, no campo das artes e na mídia em geral. Sua análise refere-se
ainda a outra tendência atual, a arte do etnógrafo ou testemunhal, enfatizando que ambas
as tendências desejariam romper com o modelo textualista dos anos 1970 e com o cinismo
convencionalista dos anos 1980. Essas novas tendências marcam a virada para o corporal
e o social, o abjeto e o site specific, com influência das vanguardas artísticas. Na visão do
autor, a partir de um regime convencionalista de que nada é real e o sujeito é superficial,
grande parte da arte contemporânea apresenta a realidade na forma de trauma e, o sujeito,
na profundidade social da sua proporia identidade.
Ainda sobre o que seriam os sintomas ou características mais presentes na fotografia
contemporânea, propomos nos basear na pesquisa realizada por Cotton (2013). A autora
investiga a fotografia como arte contemporânea e define oito categorias ou “motivos condu-
tores”. Cotton estuda e agrupa fotógrafos que têm a mesma base de motivação e método de
trabalho. Ao considerarmos a série de Mansfield, encontramos ressonância particularmente
na segunda categoria apresentada: fotografia documental, autobiográfica ou de “vida íntima”.
Essa categoria concentra ensaios sobre as relações psicológicas e pessoais, como “um tipo
de diário da intimidade humana”. Para a autora, “o que importa é a presença de si ou das
pessoas que amamos, num evento ou momento significativo que nos inspirou” (p.137). Para
Cotton, a fotografia de “vida íntima” geralmente trabalhada com uma dimensão emocional:
tristeza, discórdia e doenças.
Ainda sobre essa categoria, Cotton menciona uma das mais reconhecidas influências
na fotografia da vida íntima: Nan Gondin (n. 1953). A fotógrafa norte- americana registra há
mais de 35 anos momentos de sua família, amigos e amantes e “não só faz a crônica das
narrativas de seu círculo pessoal como também estabelece de diversas maneiras o padrão
por meio do qual a fotografia íntima e seus criados são julgados” (p.139) Dentre seus traba-
lhos mais marcantes, está o registro da vida diária de duas drag queens com quem morava
(1970), o registro de encontros com o círculo boêmio de Manhattan (1978), dentre outros:
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No início dos anos 90, com a publicação do livro I´ll be your Mirror, as fotos de
Goldin centrada nas pessoas que lhe eram próximas contrabalançavam per-
das e comemorações. Seus registro intenso do impacto do HIV e de doenças
relacionadas com a Aids, do vídeo em drogas e da reabilitação de sua vida e
da de seus amigos propunha às plateias de arte um envolvimento profundo
com essas questões sociais, articuladas em termos muito pessoais. (p.141)
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cirurgia estética para inscrever sobre a sua carne fragmentos de pintura clássica. De acordo
com Orlan, a “arte carnal é um autorretrato no sentido clássico, mas com meios tecnológicos
próprios do seu tempo. Oscila entre desfiguração e prefiguração. O corpo torna-se um ready-
-made modificado”. Na análise de Miranda, o trabalho de Orlan estaria distante da metafísica
de Duchamp, que transfigurava os objetos ao rebatê-los num espaço estético. No caso de
Orlan, tudo se basearia na apropriação arbitrária e na vontade de condução da performance.
3 A artista apresenta um texto sobre o a série de autorretratos em sua página na internet, em que conta como surgiu (www.kerrymans�
-
field.com). Acesso em 10 de agosto de 2016.
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tempo, não são imagens clínicas, já que as sutilezas da expressão facial e da dor são reve-
ladas, e que a sua finalidade é a artística e não médico- científica (ela afirma ter produzido
as imagens para si, para outras mulheres e o público em geral).
Com a frequência dos registros, Mansfield marca a temporalidade das imagens e trans-
formações do corpo durante o tratamento. A artista optou por fotografar aproximadamente
a cada duas semanas, depois de cada rodada de quimioterapia (pois não aguentou uma
frequência menor, como imaginava inicialmente). Os primeiros registros foram tirados dois
dias antes da cirurgia (Fig. 08), em que ela aparece com olhar vibrante e com a cabeça de
frente para a câmera e o seu corpo ainda não está alterado. Nesse retrato, aparecem os seios
de Mansfield, naturais e desnudos, na primeira imagem, sem qualquer marca, e, em uma
segunda, já com marcas de caneta cirúrgica, colocando em evidência a preparação. O seus
cabelos estão soltos e longos, como seriam originalmente. E seu semblante, apesar de sério,
sem sorriso, aparenta estar firme e confiante. Essas primeiras imagens registram a disposição
para enfrentar o tratamento e que, de acordo com Mansfield, manteve até a quimioterapia,
que a deixou “doente” e “muito esgotada”.
Esse registro é imediatamente seguido por outro tomado dois dias após a cirurgia, no
qual ela usa óculos, o cabelo preso para trás, segurando um dreno (Fig. 09). O próximo é
uma imagem de costas, com os cabelo no final da sua cintura, porque, algumas fotos mais
tarde, após o início da quimioterapia, ela antecipou-se a perda de cabelo, cortando- o curto.
Nas fotos, o rosto parece torna-se cada vez mais angustiado, o corpo contorcido, como ela
move-se de desconforto pós-mastectomia para quimioterapia. Em várias fotos, sem forças,
ela está sentada no parapeito da banheira, com apenas a sua cabeça visível.
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Figura 09. Consequências, Mansfield (2005).
Em uma das imagens ela começou a usar maquiagem (10) e explica que estava sen-
tindo-se assustadora e pouco feminina. São autorretratos da fase em que perdeu seus cílios
e sobrancelhas e seus olhos parecem tristes. Depois de um sexto ciclo de quimioterapia, ela
fotografou apenas o seu braço, com punho erguido. “Eu costumava ter boa força do corpo,
mas onde estão os meus bíceps?”, expondo a fraqueza que sentia.
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Ao longo dos autorretratos, é evidenciado o relevo que ela quer dar a documentação
dos próprios seios. Até pela doença ter atingido as mamas profundamente, tendo que pas-
sar por cirurgia de mastectomia radical de uma delas – e a posterior de sua reconstrução- é
profunda a transformação que sofre no corpo, com seios ficando bastante diferentes uns
dos outros. Ou seja, a transformação ocasionada pela doença e pelo tratamento mais visível
e ressaltada é de fato nas mamas. Em todas as imagens aparecem os seios e como eles
modificam-se e tornam-se complemente diferentes dos originais. Acreditamos que a artista
busca evidenciar essa transformação e a “perda de referência de si” em seu trabalho, até
pelo título da série Consequências.
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Mansfield também busca dar visibilidade às outras transformações que sofre em seu
corpo, de forma dolorosa, na subjetividade feminina e na noção que tem de si, provocando
sentimentos de ausência e sofrimento: a perda dos cabelos e das sobrancelhas, a fraque-
za, a magreza e até mesmo a sombra de “sentença de morte” que parece permanecer ao
longo do tratamento. A análise das imagens nos dá muitas pistas de como ela se sente, no
entanto, os textos complementares em seu site – e que aqui estamos expondo, em parte
– completam o significado de seus autorretratos e do que estava pretendendo expressar,
a exemplo da solidão que sente durante o tratamento e da sensação de sobrevivente (“por
enquanto”). Nas imagens, é reforçada a ideia de que ela altera radicalmente o que sentia e
entendia sobre si mesma, seu corpo e seu feminino.
No total, são trinta e seis fotos que compõem a série completa. Sempre que exibidas,
obedecem a ordem cronológica organizada por Mansfield. O trabalho teve grande reper-
cussão, a partir de quando ela resolveu enviar para revistas de fotografia contemporânea,
imaginando que apenas os fotógrafos se interessariam. Quando foi aceita para o Photo
District e, em seguida, apareceu no Reddit, ela começou a receber e-mails de agradecimento
do público de todo o país (EUA). Posteriormente, quando a série começou ser premiada
em 2009 e 2010, passou a receber convites para exposições. Na verdade, ela nunca tinha
exibido em espaços tão grandes quanto passou a ocupar. Mansfield conta que parece es-
tranho receber mensagens como: “Você é tão corajosa!” e argumenta: “Isso parece estranho
para mim. Há uma linha fina entre bravura e estupidez. Eu não era valente nem eu era uma
vítima. Eu era teimosa”.
CONCLUSÕES
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dos tempos, particularmente relacionando-os às mudanças tecnológicas, sociais e culturais.
Nesse breve estudo, estivemos particularmente interessados nos autorretratos de Mansfield
e na sua relação com a arte contemporânea, buscando observar seus sintomas e caracte-
rísticas mais frequentes.
Cabe-nos aqui apontar que, ao longo da presente pesquisa, pudemos identificar que
alguns sintomas parecem mais determinantes para que a cena artística autorize e eleja
essas séries. Observamos que a receptividade de Consequências por parte de museus e
espaços expositivos deve-se em grande parte à sua estratégia estética, precisão técnica e à
temática. O fato da série de Mansfield ser autobiográfica, documental e realística, colocando
a própria artista e a sua vida íntima em evidência, potencializa o “artístico”, como vimos nas
referências desses estudo para a fotografia contemporânea. Além disso, as possibilidades
estéticas abertas pela fotografia enfatizam o aspecto do real (o isso-foi e o efeito de real de
Barthes) e da técnica como precisa para autorretratos, o que não ocorria antes da invenção
da fotografia no século XIX.
O que parece destacar ainda o trabalho de Mansfield pode ter origem na sua própria
motivação: a artista queria fazer algo diferente do que estava encontrando ao procurar
imagens de mulheres com câncer. Neste caso, a autenticidade e originalidade parecem ser
centrais. Essas séries podem ser consideradas respostas a outras imagens padronizadas
e glamourizadas a que se refere Mansfield, e, ao mesmo tempo, tornam visíveis questões
da artista e de quem passa pelo tratamento, encontrando ressonância em outras mulheres,
ao colocar em tensão temas como estigma, feminino e solidão.
Consideramos aqui também que conhecer as mudanças nos significados dos seios ao
longo dos séculos enfraquece a impressão de que os corpos são experienciados sempre
da mesma forma. E, ao mesmo tempo, reforça a ideia de que certos sentidos e imagens
repetem-se e reaparecem, e que fotógrafos contemporâneos dialogam com sentidos que já
estavam presentes na arte clássica. Sem dúvidas, o atributo de vitalidade e beleza dos seios
da Virgem permanece na série de Mansfield, especialmente nos primeiros retratos. Da mes-
ma forma, o sentido medicalizado encontra-se fortemente presente. No entanto, podemos
entender que a um dos sentidos que ela “reage” é ao de “erótico” e “pornográfico” para os
seios desnudos, que não aparecem na sua narrativa.
Nossa impressão é a de que, apesar da recusa a uma excessiva estetização, as
imagens do corpo de Mansfield - mesmo quando flexiona o braço revelando sua suposta
fraqueza - revelam um corpo “em forma”, belo, tonificado, magro, musculoso, relacionan-
do-se aos padrões atuais de beleza, inclusive os presentes na mídia e nas artes com tais
atributos. Esse contraste entre a “boa forma” da artista e seu seio “decepado” nos chama
a atenção. Em todo o ensaio e particularmente, na representação do “antes” e “depois”
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do câncer, já existe uma tensão narrativa. Afinal, a valorização do corpo é também um fe-
nômeno contemporâneo e o corpo é um entre tantos fatores que deliberam a história das
mentalidades, das culturas, dos costumes, dos eventos. Assim, as imagens de Mansfield
nos evocam duplos e tensões como: estigma x beleza; imagens repulsivas x politicamente
corretas ou de glamour; sofrimento, vulnerabilidade x força, coragem, bravura; dor, solidão
x amor, conexão. Seus autorretratos não são glamourizadas e nem apresentam uma at-
mosfera intimista com as imagens de Nan Goldin, por exemplo, frequentes em narrativas
autobiográficas e íntimas. São frontais, pousadas e, ao mesmo tempo, ambíguas, porque
não se inserem num diálogo direto com outras imagens de corpos doentes. Sendo assim,
acreditamos que a artista – tanto nas imagens quando nos textos– quer dialogar com o pú-
blico, dar visibilidade e provocar tais tensões.
Como propõe Miles (2018), é importante considerarmos a possibilidade de rever esses
seios simbolicamente como apropriados pela mulher, capaz de funcionar como um símbolo
de subjetividade feminina. Se, na contemporaneidade, os seios femininos aparecem de forma
extremamente objetificada e normatizada (enfrentando, como argumenta Sibillia (2015), uma
pornificação do olhar e a normatização dos corpos como jovens, esteticamente padronizados
e infalíveis), talvez seja mais fácil dizer o que um seio subjetivo não é: não é apenas um
provedor de leite materno, nem unicamente um estímulo erótico, assim como não é somen-
te um objeto de exames médicos, medicamentos e cirurgias. Seguindo as proposições de
Miles, um seio que expressa subjetividade é erótico porque expressa sua sensibilidade, vida,
beleza única, mesmo quando está relacionado ao medo ou consequências de uma doença.
Mansfield expressa o potencial do seu feminino e de seus seios subjetivos artisticamente.
Por fim, a série de fotografias de Mansfield dialoga com outras imagens do corpo femi-
nino da arte contemporânea, que, como investigamos de forma mais aprofundada em nossa
pesquisa de doutorado, a nosso ver, possibilitam uma atuação crítica, de “sujeitos ativos”,
que utilizam o próprio corpo como um enfrentamento do discurso médico e midiático, criando
novas subjetividades e significados para o corpo doente.
REFERÊNCIAS
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2014. FOUCAULT, M. “O Panoptismo”. Vigiar e Punir. Petrópolis:Vozes, 1983.
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______. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. SP: Cia das Letras, 2007.
TORRES, M. Fotografia e Câncer: Como a doença torna-se obra de arte?. 2020. Tese
(Doutorado em Comunicação e Cultura) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Cultura (PPGCOM), Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_in-
terna.php?tease=21.
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De Malinche a Llorona : as muitas
narrativas da Eva mexicana
'10.37885/230212171
RESUMO
O objetivo deste texto é propor uma reflexão acerca da narrativa que envolve a figura de
Malinche, a mulher que atuou como intérprete durante o período da colonização do México.
Devido a sua atuação no México colonial, atualmente questionada se se deu de forma
voluntária ou involuntária, essa mulher indígena foi alcunhada de traidora pela história e
responsável pela dizimação de seu povo. Algumas representações e narrativas surgiram de
sua figura e se estabeleceram no imaginário mexicano - e não somente nele -. Como sím-
bolo materno da nação mexicana, sua história influenciou muitas narrativas dentro e fora do
território mexicano como, por exemplo, a narrativa da Llorona, que relata a história de uma
bela indígena, que após ser iludida e enganada pelo conquistador, assassina os filhos que
tinham juntos num ataque de loucura. Assim como na história de Malinche, na narrativa da
Llorona, pode-se identificar um discurso que contribui para perpetuar a responsabilidade e
a inferiorização feminina ao longo da história. As reflexões foram desenvolvidas em diálogo
com os estudos de Mircea Eliade (1963); Clarissa Pinkola-Estés (1992); Cristina González
Hernández (2002); Marta Robles (2019), entre outros.
Para mim, um dos nomes que mais ecoa na história do México colonial, muitas vezes
mais que os nomes de Montezuma e Cortés, sem dúvidas, é o de Malinche, a mulher indí-
gena que atuou como intérprete no período da invasão do México. A história a relegou ao
papel de traidora que se aliou aos espanhóis - em especial, à Cortés, com quem teve um
filho; entretanto, os novos estudos críticos (GONZÁLEZ, 2002) e literários (ESQUIVEL, 2006)
1 Nome nahuatl de Malinche. Pode-se encontrar outras variações de seu nome também como Malinalli e Doña Marina.
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apontam para um novo caminho: essa figura de fato teria tido escolha ou foi feita refém pelo
processo violento da colonização que lhe foi imposto?
De acordo com a maioria dos cronistas, como Bernal Díaz de Castillo, Malinche foi
uma indígena nascida na região do golfo do México que durante o período da invasão do
México foi usada pelos espanhóis como intérprete. Ela era natural de Painalla e foi entregue
pela própria mãe, que após ficar viúva, e contrair novo matrimônio, a vendeu aos índios de
Xicalango, pois não queria que um novo herdeiro dividisse o cacicado.
Mais tarde, com a chegada dos invasores espanhóis, já na adolescência, foi vendida,
novamente, para a tropa de Hernán Cortés e foi batizada de acordo com o catolicismo sendo
conhecida por Doña Marina. Como possuía grande habilidade linguística e facilidade em
aprender idiomas, atuou ao lado do clérigo espanhol Jerónimo de Aguilar, que era tido como
intérprete e devido a sua convivência com os indígenas falava maia, mas não nahuatl.
Malinche falava em náhuatl com os nativos, traduzia em maia para Aguilar, que re-
passava em castelhano para Cortés. Quando aprendeu o castelhano foi colocada acima
de Aguillar na atuação de intérprete e usada como a principal ferramenta linguística para o
domínio das terras do território conhecido hoje como México. Posteriormente, Malinche deu
à luz a um filho com o invasor: Martín.
A questão da mestiçagem na identidade mexicana é discutida a partir da figura de
Malinche2, pois ela foi a mulher e a língua, que atuava entre os dois mundos: o mundo dos
mesoamericanos e o dos espanhóis. Ela é a expressão do drama cultural, que mesmo ocu-
pando a posição de intérprete, não possuiu o poder de usar suas palavras em favor próprio.
Pode-se concluir que ela foi usada para fins políticos e, mais tarde, sexuais.
A Guerra da Independência do México (1810-1821) trouxe o movimento nacionalista,
que discutia questões de nível social e econômico. Como uma proposta de fuga do passado
violento e colonial, o imaginário mexicano buscou distanciar-se da influência da Espanha,
tida como saqueadora da América. Nas décadas de 1860, no século XIX, os representantes
do liberalismo Ignacio Ramírez, Miguel Hidalgo e Emílio Castelar, motivados pelo sentimento
de nacionalismo, apoiaram essa ideia.
No século seguinte, as discussões sobre o questionamento da identidade mexicana
são retomadas e aprofundadas. A partir desse ponto, a figura de Malinche é resgatada por
meio do vocábulo malinchismo para constituir um discurso de culpa, ao mesmo tempo que
fortalece o movimento nacionalista. Carlos Monsivais (2001) defende que o uso do termo
deve ser considerado político e ideológico.
2 Uma discussão mais profunda sobre a figura de Malinche pode ser encontrada em outro trabalho, minha dissertação defendida em
2021, devidamente referenciada na bibliografia deste trabalho.
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O termo é uma forma pejorativa de se fazer alusão à figura de Malinche, pois possui
a intenção de ofender, uma vez que considera malinchistas os mexicanos que preferem as
influências estrangeiras em lugar da nacional, julgando-as superiores e se abrindo a elas,
como, de acordo com esse discurso, fez Malinche com o invasor europeu de forma cultural
e sexual. Nessa ótica, Malinche e os termos que derivam do seu nome são geralmente as-
sociados à entrega ao estrangeiro.
É interessante pensar como a história e o discurso influenciam a realidade cultural de
um povo. A figura da Malinche, que também influencia fortemente o relato da Llorona, pode
ser enxergada como um discurso mítico em razão de estar dialogando com o estabeleci-
mento da identidade e história de uma nação. Mircea Eliade (1991) sustenta que o mito está
associado à criação e ao estabelecimento de uma realidade cultural pelo imaginário coletivo
para explicar algo. Nesse caso, Malinche é transformada em mito - ainda que seja o da trai-
ção - para explicar a formação da identidade nacional a partir do filho que gerou do invasor.
Em vista disso, a lembrança de um acontecimento histórico ou personagem pode
influenciar a memória popular, ou seja, as estruturas, arquétipos e acontecimentos podem
enfraquecer-se ou fortalecer-se, depende do objetivo da narrativa. O discurso de culpa ao
feminino está relacionado com a legitimação da construção do Estado mexicano em recor-
rer à historiografia e ao estabelecimento de mitos, numa proposta de retórica nacionalista,
para legitimar-se.
É um modo de atribuir culpa e traição à condição feminina como propõe Milagros Palma
(1991). O pensamento considerado colonial e patriarcal objetiva responsabilizar a mulher
pela tragédia histórica, apenas pelo seu gênero. Essa narrativa é fortemente marcada pela
oposição entre os sexos, entre conquista e violação. O homem é geralmente aquele que
pratica a ação, enquanto a mulher é normalmente a que sofre. Nessa ótica, esses tipos de
narrativas mostram o homem como vitorioso e a mulher como derrotada.
Pelas máculas de amante e traidora, sua imagem foi associada geralmente de for-
ma depreciativa a representações contrastivas da maternidade física e espiritual dos me-
xicanos, observadas em outras figuras fundamentais presentes em seu imaginário, que
são La Llorona, La Virgen de Guadalupe e La Chingada. Para esta reflexão, o enfoque se
dará sobre a primeira figura: La Llorona.
O relato da Llorona é um dos mais populares presentes no México e possui diversas
(re)interpretações e adaptações por toda América Latina. Por se tratar de um relato oral,
possui várias versões e releituras, que transpassam as fronteiras das terras do México e
chegaram a diversos países com outros nomes e algumas modificações.
De modo geral, o relato conta a história de uma bela mulher, na maioria das vezes
indígena, mãe de um filho (ou mais, dependendo da versão), considerado bastardo por ser
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fruto da relação com um invasor ou fidalgo, e que, após ser rejeitada por ele, visto que este
regressa à Espanha para casar-se com uma mulher espanhola da nobreza, afoga a criança
em um rio para não permitir que seu filho fosse levado pelo pai, resultando assim, num ato
de loucura e desespero.
Após sua morte, a mulher até é perdoada, porém fica impedida de entrar no paraíso,
a menos que ache o corpo de seu filho para que ele também consiga a paz eterna. Logo,
ela fica incumbida de vagar pelos rios, ruas, encruzilhadas e florestas até encontrá-los,
geralmente vestida de branco e longos cabelos negros, além de chorar e gritar: “¡Ay, mi(s)
hijo(s)!”. Ela, também, pode ser conhecida por atrair homens para locais perigosos, como
rios, com sua beleza, para vingar-se de seu amante pelo abandono sofrido.
De acordo com os relatos oriundos do México, La Llorona pode ser considerada a mãe
assassina no imaginário mexicano, pois é a referência da mãe que abandona, fere e mata
seus filhos. Muitos estudiosos, como Cristina González (2002), revisitam essa figura como
uma releitura de Malinche sob a possível perspectiva do castigo espiritual e eterno, que teria
merecido por sua “traição”.
Esse relato pode ser compreendido como um mito, como evidencia a concepção de
Mircea Eliade (1991), ao associá-lo a uma realidade cultural que narra o começo ou criação
de algo, de mundos, uma vez que a narrativa tem influência desde os tempos pré-hispâni-
cos, coloniais e até atuais, por meio de relatos que são transformados, adaptados, levados
para outras fronteiras, além de serem transpostos para diversos meios como literatura,
música e cinema.
A figura da Llorona pode ser encontrada de forma indireta e direta na cultura popu-
lar em diversos meios como, por exemplo, no romance homônimo de 2008 de Marcela
Serrano, na música La Llorona trilha sonora do filme Viva - A vida é uma festa (2017), no
episódio “Os espíritos zombeteiros” no seriado Chaves (El Chavo del ocho), além de filmes
como La maldición de la Llorona (2019) e os inúmeros vídeos de pegadinhas nacionais e
internacionais que essa temática proporcionou, que podem ser encontrados através de uma
rápida busca no Youtube.
Em conformidade com as ideias de Mircea Eliade, Cristina González (2002) afirma
que o relato da Llorona também pode ser visto como uma reinterpretação cultural da deusa
Cihuateteo do México pré-hispânico. Sua figura estava relacionada ao parto, nascimento,
e também, à guerra e à morte. Como mãe-guerreira, ela era a divindade responsável por
proteger os guerreiros, ainda que, para isso, fosse preciso sacrificar seus filhos, além do
fato de anunciar desgraças vagando por caminhos de morte, característica presente no
relato da Llorona.
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Os mitos das literaturas hispânicas são considerados como parte de uma cosmovisão
diante de um processo de leitura e percepção de mundo. Pela característica discursiva,
o mito influencia o estabelecimento do mundo que conhecemos hoje e os indivíduos nele
presente. Desse modo, a representação da figura dessa mulher é transformada de acordo
com as diferentes versões, pois em cada uma delas sua identidade é transformada.
Em Mulheres que correm com os lobos (1992), Clarissa Pinkola Estés analisa a figura
e a trama da Llorona a partir de um olhar psicanalítico e afirma que apesar das distintas
versões que essa história apresenta o tema central é sempre o mesmo: a destruição do
feminino fecundo. Para a autora, a influência do papel masculino na trama é negativa, ele é
“destrutivo” (ESTÉS, 1992, p. 353), por limitar as atitudes femininas e desmerecer os esfor-
ços da personagem, reforçando a ideia do desmerecimento e do discurso de culpa feminino
pelas desgraças e violências ocorridas.
Como dito anteriormente, o relato da Llorona pode possuir várias versões, entretanto sua
personagem e temática, no geral, são sempre as mesmas: uma mulher/mãe louca e assassi-
na. Ela é uma mulher, que após ser usada, enganada e abandonada pelo invasor ou fidalgo
(semelhantemente a Malinche), se transforma em uma alma penada condenada a vagar
em busca de redenção por seus atos. Ao longo de minhas reflexões sobre a figura Llorona,
foram encontradas algumas versões desse relato presentes em alguns países que possuem
o espanhol como língua oficial. A saber, algumas delas e suas extensões geográficas.
Por exemplo, no Chile, a Llorona recebe o nome de “Pucullén”, que significa lágrimas.
Essa versão apresenta algumas características semelhantes com o relato tradicional: seu
semblante fantasmagórico, as roupas brancas, os longos cabelos escuros e o seu choro ca-
racterístico. Nesta versão, Llorona, só pode ser vista por pessoas perto da morte e animais,
como cachorros, que possuem uma percepção mais aguda com a qual é capaz de sentir a
sua presença, emitindo fortes latidos. Por isso, é considerada um guia para os mortos, pois
indica, com seu peregrinar e choro, o caminho que o defunto deve percorrer até o além.
Os gritos dessa figura chamada “Pucullén” são associados ao choro pelo filho que foi
arrancado de seus braços prematuramente ou para que os familiares dos mortos sejam con-
solados pelo luto e seus espíritos sejam incapazes de assombrar os que aqui ficaram. Os re-
latos afirmam que a figura dessa mulher flutua sobre uma poça cristalina, formada por suas
próprias lágrimas. Acredita-se, de acordo com essa versão, que se alguém ungir seus olhos
com as lágrimas de um cachorro poderá ver essa figura, contudo se o coração da pessoa
não for forte o suficiente, a imagem será pavorosa. Essa versão chilena está mais centrada
nas questões fantasmagóricas e sobrenaturais do que no papel da mãe.
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Diferente de outras versões, na versão da Colômbia, essa mulher é um ser anfíbio, que
vive na maior parte do tempo embaixo da água e é chamada “Madre de Agua”. A aproximação
está no lugar de morada dessa figura: rio, onde vaga por meio de obsidiana e crustáceos.
Sua figura é considerada como uma ninfa aquática angustiada. Nessa versão, ela não exerce
o papel de indígena, mas sim a figura masculina objeto de seu amor.
Ela busca pelo jovem indígena e também pelo filho, fruto dessa relação, ao qual o avô
espanhol lançou em um rio pelo fato de desaprovar a relação da sua filha com o indíge-
na. Madre de Agua também é conhecida pela sua aproximação com a natureza, como se
usasse aves, insetos e moluscos para se comunicar com as crianças. Desse modo, como
uma espécie de sereia, ela atrai para as águas, através do canto, aqueles que conseguem
ver o seu rosto. O interessante dessa versão colombiana é que os papéis são totalmente
invertidos. O indígena não é mais uma mulher, mas um homem. A vilã assassina também
não é mais uma mulher e sim um homem.
No Equador conta-se um relato muito similar ao mexicano. Essa versão conta a história
de uma mulher que, depois de ser abandonada pelo marido, afogou seu filho, um bebê, no
rio. Porém, ela se arrepende. Ao recuperar a sanidade, ela se lança no rio na tentativa de
trazê-lo de volta, porém, sem sucesso. Depois de dias, a mulher encontra o seu filho sem
vida e sem o dedo mindinho. Após a tragédia, ela opta por tirar a própria vida, por isso, con-
ta-se que seu espírito ficou destinado a vagar e a cortar o dedo mindinho de quem cruzar o
seu caminho para vingar seu filho.
Uma outra variante desse relato, ainda no Equador, é que essa figura costuma apare-
cer nas casas de mulheres grávidas para roubar seus bebês na tentativa de substituir seu
filho afogado. Assim, as pessoas costumam deixar sempre doces em casa para que essa
figura se sinta enjoada devido ao melado e vá embora. Ainda, segundo o relato, ela parece
inofensiva a princípio e se torna perigosa depois e, como a Llorona, possui vestes brancas
e aparenta flutuar no ar como um ser fantasmagórico.
A versão de El Salvador da narrativa da Llorona apresenta características aterrorizan-
tes. O relato conta que tarde da noite, enquanto todos pareciam estar dormindo, podia-se
escutar de longe os gritos emitidos por um grupo de pastores que conduziam o gado. Porém,
outro grito, com uma voz de pranto, era ouvido pelos agricultores às margens do rio. A voz
pertencia a uma mulher que muito soluçava e parecia buscar algo perdido.
Essa figura entra em uma igreja local e logo desaparece. Conta-se que ela vaga em
busca de seus filhos e que quem a olhar nos olhos ou a seguir ficará destinado a também
vagar para sempre. Isto é, quem escuta sua voz não pode olhar diretamente em seus olhos,
por isso, sentem calafrios por todo corpo, inclusive nas costas, onde afirma-se que é pos-
sível sentir uma respiração. Os que se atreverem a olhar estarão condenados ao eterno
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desconhecido. Como na versão chilena, a versão salvadorenha não enfatiza tanto a questão
da maternidade, mas o imaginário do medo e do sobrenatural.
“La Sayona” é a figura similar que aparece nos relatos da Venezuela e também apre-
senta o contexto temporal colonial. A narrativa é sobre a figura de Casilda, uma mulher
que se destacava na região que vivia por sua beleza, além de seu longo cabelo negro. Ela
se casou com um homem muito admirado por todos, que era apaixonado por ela. Juntos,
tiveram um lindo filho. No entanto, nem tudo era perfeito, pois conta-se que Casilda era
extremamente ciumenta.
Também, nessa região, vivia outro homem, considerado mentiroso e mulherengo, que
desejava Casilda, mesmo ela sendo casada, e a espiava todos os dias. Um dia, enquanto
nadava nua, ela percebeu o olhar perverso daquele homem. Ao confrontá-lo, ele respondeu
que apenas veio advertir que seu esposo a enganava com a sua própria mãe. Enlouquecida
pela suposta dupla traição, de sua mãe e de seu esposo, ela ateia fogo em sua casa, en-
quanto seu filho e marido estavam dentro, porém, só percebeu quando o fogo já se consumia.
Depois, ela se dirigiu à casa de sua mãe e a esfaqueou três vezes na barriga. Sua mãe,
que era inocente como seu esposo, em seu último suspiro a amaldiçoa jurando inocência
e a condenando por um pecado maior e, por isso, daquele momento em diante seria co-
nhecida como Sayona. Ao dar-se conta da tragédia e do seu erro, Casilda comete suicídio.
Desse modo, como no relato da Llorona, ela fica incumbida de vagar vestida de branco. Ela
também atrai homens adúlteros que a admiram e, após serem presos por sua artimanha,
lhes revela um sorriso com enormes presas e ceifa suas vidas. A versão venezuelana se
aproxima da mexicana ao reforçar o estado de loucura vivido pela mulher e, vai além, ao
qualificá-la, também pejorativamente, como extremamente ciumenta.
Em uma região rural do Panamá conta-se a história de uma jovem mulher, porém desa-
juizada, uma vez que tinha um filho recém-nascido e, por ser ainda muito jovem, queria sair,
festejar e aproveitar a vida sem grandes responsabilidades. Uma noite a cidade festejava
com um grande baile e a jovem, desejosa por ir, não pensou que seria um problema deixar
seu filho sozinho por um período curto de tempo. Ela foi para o baile, deixando seu bebê no
berço iluminado por uma vela acesa.
Minutos depois, a pequena chama se espalhou, consumindo a casa e transformando-se
em um grande incêndio visto de longe. A jovem foi avisada do incêndio e correu para salvar
seu filho, entretanto, era tarde demais e a criança já se encontrava sem vida. Desesperada,
ela chora perante o corpo carbonizado e decide, para aliviar sua culpa, ir para igreja, onde
um padre poderia concedê-la o perdão.
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Ao chegar na igreja, o padre, que já havia tomado conhecimento da tragédia, foi bas-
tante severo e amaldiçoou a jovem com as seguintes palavras: “Te pesa y te pesará”3, por
isso, ela ficou conhecida como “Tepesa”. A partir desse momento, a jovem, que antes era
bela, se converteu em uma criatura horrenda e monstruosa, destinada a vagar em busca do
cadáver de seu filho. Essa versão panamenha usa alguns adjetivos pejorativos em relação
à jovem mãe como irresponsável e descuidada, porém, em nenhum momento faz menção
ao pai dessa criança, onde estava ou sua responsabilidade para com o filho.
O relato da Llorona possui forte presença no universo latino-americano, todavia não
se restringe a ele. Ele também pode ser encontrado em outros continentes. Por exemplo, na
Espanha, podemos encontrar a versão da “Ploranera”, que conta a história de uma mulher
cigana muito bonita que conquistou um homem inglês, amigo do ditador Franco, com quem
teve dois filhos, apesar de ele estar sempre viajando.
Um dia a guarda civil chegou em sua casa para tomar seus filhos, a pedido do inglês,
que se casou com uma mulher da alta sociedade, porém infértil. Com medo de perder os
filhos, a mulher correu com as crianças para uma pequena embarcação e saiu para o mar.
Infelizmente, o vento estava muito forte e fez o barco capotar. A mulher, mesmo buscando
incansavelmente, nunca encontrou os seus filhos. Desnorteada, ao sair da praia de noite
foi atropelada por um carro. Dizem que, em dias de fortes ventos na praia, essa figura pode
ser vista chorando e vagando em busca de seus filhos. Nota-se aqui uma exceção, que os
assassinatos não foram intencionais, mas um acidente numa tentativa de proteger os filhos.
Uma associação do relato da Llorona pode ser feita também a partir do diálogo com a
mitologia grega, que apresenta o mito de Medéia, a mulher que assassinou seus filhos e seu
marido, que a abandonara por outra mulher. Mais uma vez, repete-se o enredo da mulher
que ficou louca e perigosa após ser abandonada e/ou traída. Outra associação aos relatos
está na figura de Lamia, uma princesa que deu à luz a vários filhos com Zeus, os quais Hera
assassinou. Desde então, Lamia ficou vagando e se lamentando por sua perda e buscando
crianças de outras mães para amenizar sua dor.
Nas Filipinas, a versão semelhante a Llorona é sobre o fantasma de uma mulher que
se assemelha a uma sereia e aparece no mar pela noite lamentando o assassinato de seus
filhos por um pescador. Diz-se que quando os seus gritos são ouvidos é porque alguém
está se afogando.
No continente africano, é possível encontrar relatos nas regiões de Dahomey e Togo
que descrevem o vento como uma mulher, que percorre os rios com um forte lamento,
buscando seus filhos que foram afogados pelo oceano, que também é uma mulher, tendo
3 Expressão usada para indicar que alguém sente culpa e remorso e que não deixará jamais de experimentar tais sentimento.
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seus restos espalhados pelo mundo. Assim como em um dos relatos gregos, esse relato é
mais centrado no feminino, pois ambos papéis, de vilão e de vítima, são ocupados por uma
figura feminina.
Como pôde ser visto, em escassas exceções, no geral, a temática da narrativa da
Llorona, como aponta Clarissa Pinkola Estés (2018), permanece intacta: a destruição do
feminino fecundo. A mulher é geralmente descrita como culpada, louca, ciumenta, irrespon-
sável e mãe assassina. A maioria dos relatos reforça o discurso colonial atribuído a Malinche
onde responsabiliza a mulher pelos males da história apenas por seu gênero, no caso da
intérprete a dizimação dos indígenas no México colonial. Uma oposição entre os gêneros
que isenta o homem e culpa a mulher.
De acordo com essa perspectiva, é válido evidenciar a relação entre descolonização
e despatriarcalização. A questão do gênero é muito importante para entender as condições
de exploração às quais as mulheres são submetidas pelo discurso colonial. É interessante
refletir, ainda que brevemente, sobre essa temática em diálogo com as considerações de
Maria Lugones (2020) e Maria Galindo (2013), uma vez que ambas autoras abordam os
impactos do controle colonial sobre a figura do feminino.
Lugones (2020) retoma o conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberle
Crenshaw, ao trazer a perspectiva de como as mulheres são afetadas pela colonialidade,
na medida que as categorias de gênero e raça são separadas, pois elas correm o risco de
serem inviabilizadas. A condição feminina é enxergada também pela intersecção com a sua
raça, ou seja, vai além da visão homogênea em virtude da figura da mulher se desdobrar
em várias vertentes como branca, negra, burguesa, chicana, indígena, etc.
A interseccionalidade destaca que as categorias podem ser homogêneas, visto que
tendem a destacar um grupo dominante, por exemplo, quando se pensa em mulher e destaca-
-se majoritariamente mulheres brancas e burguesas. Assim, evidencia-se uma sobreposição
das identidades sociais consideradas vítimas do sistema de dominação.
Essa perspectiva produz um modo de enxergar uma opressão que atinge desde os
tempos da colonização e persiste na contemporaneidade através da colonialidade, princi-
palmente por via epistemológica, pois evoca a reflexão da indiferença, ou mesmo, da perpe-
tuação masculina da violência sofrida pelas mulheres por estarem acostumados a reproduzir
esse sistema de dominação. Como pode ser exemplificado no relato da Llorona que possui
suas raízes em outra história feminina, Malinche, perpetuando um discurso pejorativo da
figura da mulher.
Galindo (2013) por sua vez destaca a estreita relação entre colonialismo e patriarcado,
que proporciona reflexão sobre aqueles costumes enraizados reproduzidos por alguém do
sexo masculino ao nosso redor. A autora defende como caráter patriarcal a estrutura de
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poder que o colonialismo usou como elementos de construção durante o período de invasão
e colonização. De acordo com essa ótica, esse sistema proporciona vantagens do homem
sobre a mulher. Logo, para ela, descolonizar de fato seria entender e reconhecer esses
privilégios para abrir mão deles.
Galindo defende que o homem colonizado é capaz de reproduzir um sistema de opres-
são sobre a mulher, apoiado pelo colonialismo, o que a autora denomina de “aliança entre
colonizador e colonizado”, que gera uma “cumplicidade machista de longa duração” (p. 122),
pois uma vez que experimenta a dominação, ele a reproduz como se desenvolvesse uma
necessidade de colocar-se acima, como um ser superior.
Essas ponderações proporcionam um debate sobre as ideologias por trás de um relato
com séculos de existência e com um contexto histórico tão violento como foi a colonização
do México. Malinche foi denominada Madre Chingada, por Octavio Paz (1950). Segundo
o ensaísta, foi a Eva mexicana, que, como Eva, pecou e condenou seus sucessores. Sem
honra, ela “se entregou voluntariamente ao conquistador”.
A história da intérprete do México foi resgatada para compor um discurso de traição
e culpa que se transformou na história de uma mulher e mãe louca, ciumenta, descuidada,
perigosa e assassina, que possui várias versões espalhadas pelo mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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www.nvinoticias.com/roja/feminicidios/la-macabra-leyenda-de-la-tepesa/117903. Acesso
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Disponível em: https://books.google.com.br/books/about/Pensamento_feminista_hoje_pers-
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Espanhola Instrumental para Leitura) - Instituto de Letras - Universidade do Estado do Rio
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ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas. Trad. Willian Lagos, Débora Vieira. 3a ed.
São Paulo: Aleph, 2019.
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07
Empoderamento feminino a partir da
maquiagem
'10.37885/230211987
RESUMO
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Na contemporaneidade, a imagem e a aparência são fatores que influenciam o com-
portamento das pessoas e vem sendo incentivado cada vez mais pela mídia. Esse fato pode
ser facilmente relacionado ao crescimento da venda de cosméticos que possuem a função
de embelezamento da mulher (D’ALLAIRD et al, 2016). Segundo a Associação Brasileira da
Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC, 2022), cresceram 10%,
a categoria de maquiagem, que saltou de 20% em 2022 ultrapassando a linha de perfuma-
ria avançada em 16% neste mesmo ano. A procura desses produtos estão ligados a vários
fatores pessoais e sociais, já que, a sociedade impõe padrões que influenciam as mulheres
a seguirem, entretanto, nem todas as classes são supridas das necessidades básicas. Na ca-
rência das demandas indispensáveis as mulheres, como por exemplo, acesso à saúde, ao
lazer, à segurança e a participação ativa na sociedade, ficam mais propensas a ter autoes-
tima afetada decorrente da privação de determinados recursos (DUTRA, PONTES, 2018).
Diariamente, as propagandas, os comerciais, as novelas e tantos outros recursos mi-
diáticos, influenciam as mulheres impondo “regras” de comportamento e de estética, inter-
ferindo na autoestima (FLORIANI, MARCANTE, 2010). Segundo Dutra e Pontes (2018), o
autojulgamento de si mesmo faz parte do ser humano se tornando mais frequente a rejeição
de si, ou partes de si, desencadeando a baixa autoestima. A aprovação ou não dá própria
imagem está relacionada a auto aceitação, tornando mais claro os seus valores e princípios
que perante a si e a sociedade. Ao contrário disso, poderá gerar atritos internos de senti-
mentos de inferioridade, incapacidade, apatia, desânimo, acarretando consequências como:
ansiedade, tristeza, angústia e medo (FLORIANI, MARCANTE,2010).
Entretanto, existem fatores que auxiliam na busca de melhorias para as mulheres,
como: tratamentos psicológicos que atuam como ferramentas para o autoconhecimento, a
diminuição de preconceitos a partir do acesso à informação enfatizando as diversas formas
de beleza; a sociedade proporcionando projetos sociais que estimulem e valorizem a beleza
das mulheres principalmente aquelas que apresentam baixa renda (VASCONCELOS, 2017).
Neste contexto, a maquiagem passa a ser uma forma de ressaltar os traços de uma
pessoa, enaltecendo o “eu”, pois ela atua no natural, escondendo algo que poderia ser con-
siderado “imperfeição”, e estimar o que faz bem, deixando a mulher mais segura (DINIZ,
FERREIRA, 2020). A maquiagem tem o papel de cobrir, disfarçar, modificar, ressaltar, en-
fatizar dentre varias outras funções, e o papel principal é obter através do uso a satisfação
do desejo e gosto da mulher em se sentir bem com si mesma e mais confiante diante da
sociedade, com maior autoconfiança e empoderada (DUTRA, PONTES, 2018).
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PRODUTOS PARA MAQUIAGEM
Atualmente a indústria da beleza cresce cada vez mais, em especial o público femi-
nino, e graças a influência do marketing digital, as mulheres vêm seguindo as tendências
de moda, realizando procedimentos estéticos e consumindo cosméticos para a maquiagem
(FERRAZ, YABRUD, THIVES, 2011).
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e
Cosméticos (ABIHPEC, 2022), a venda de maquiagens dá sinais de retomada em 2022 com a
queda da obrigatoriedade das máscaras durante o período de pandemia da COVID-19. Os nú-
meros mostram aumento de 10,3% nas vendas nos dois primeiros meses de 2022 em com-
paração ao mesmo período do ano 2021. A perspectiva de melhora faz com que empresas
voltem a investir em lançamentos de cosméticos para maquiagem, corpo e face.
O conceito de maquiagem vem sofrendo várias mudanças nos últimos tempos, sendo
a principal delas a introdução de uma estética naturalista exigida pelas novas tecnologias de
alta definição de imagem, a High-Definition (HD). A tecnologia HD está presente em todas
as emissoras de TV brasileiras e também nos equipamentos de cinema, eventos de moda
e sociais e até na internet, por meio das câmeras de celulares inteligentes. Neste sentido,
qualquer um pode acessar uma imagem com perfeita e até exagerada nitidez, e esse é um
dos novos desafios do maquiador (CEZIMBRA, 2019).
Diversos produtos são utilizados para a construção de uma maquiagem e alguns,
como os batons, desempenham papel importante no mercado atual de cosméticos. Nada
menos do que 83% das mulheres usam maquiagem e 49% declaram que o batom é um
dos principais itens entre seus produtos para maquiagem. Desta forma é fundamental que
os formuladores de cosméticos desenvolvam produtos para atender a essa necessidade
e, ao mesmo tempo, conheçam as expectativas e tendências que ocorrem nesse mercado
(DÉARBHALE, CELINE, 2020).
A variedade de fórmulas, tipos e cores é ampla para toda classificação de produto
utilizado no processo de construção da maquiagem, neste aspecto DRAELOS (1999) vem
destacando que essa diversidade pode ser confusa tanto para os profissionais como para
o consumidor final quando o objetivo é fazer a escolha do produto ideal. Um dos principais
produtos para o processo de embelezamento são as bases faciais que são utilizadas para
dar cor, encobrir defeitos e homogeneizar a cor do rosto. As bases faciais tiveram um avanço
quando Max Factor desenvolveu e patenteou a maquiagem compacta em 1936, desde esta
época a variedade das bases expandiram-se no mercado e surgiram produtos de diferentes
texturas, coberturas, tipos, acabamentos, aplicação e durabilidade.
A base facial é um produto que acompanha a moda e é produzida em variedade deste
conceito, no início (na década de 50) utilizavam acabamento opaco e novamente nos anos
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90 essa prática continuou. Um pouco de brilho foi acrescentado para os anos 80 e as bases
com textura um pouco mais úmida faziam sucesso, e nos dias atuais conseguimos perceber
bases mais brilhantes em que chamam efeito “glow” e há as que possuem em sua combi-
nação vários ativos como ácido hialurônico, vitamina C, fotoproteção e é possível rotular os
produtos direcionados para cada tipo e fototipo de pele (DRAELOS, ZOE, 1999).
Considerando que a divisão do mercado de maquiagem mundialmente é dividido em
quatro categorias principais como: lábios, unhas, olhos e face, os produtos utilizados na área
dos olhos também fazem parte da composição e acabamento deste processo de pintura da
face. Os itens incluídos nesta categoria são delineadores, sombras, lápis e máscara para
cílios (GIRÃO, MEL; GARBE, HUGO, 2022).
Desde a origem até os dias atuais, a maquiagem foi adotada pela humanidade por três
motivos diferentes: para a proteção, para o poder e para a beleza. A maquiagem sempre foi
e será uma forma de expressão influenciada pela mídia que tenta induzir as mulheres ao
consumo e determinado padrão de beleza (LOBO, 2015).
O visagismo é um termo que deriva da palavra francesa visage que significa ¨rosto¨,
deve ser tratado como um conceito que envolve várias técnicas reunidas que tem como
objetivo harmonizar a beleza. Hallawell (2010) cita que o cabelereiro e maquiador Fernand
Aubry (1907-1976), o criador do termo visage, foi um dos primeiros a criar uma imagem
personalizada para seus clientes, integrando e harmonizando o corte, o penteado e a ma-
quiagem. A partir deste método foi possível combater a uniformização da imagem e padrões
de beleza preestabelecidos pela sociedade. Desta forma surgem cosméticos diversificados
e é possível a personalização da maquiagem conforme a necessidade do indivíduo.
O cabeleireiro inglês Vidal Sassoon em 1960 foi um dos responsáveis por dissemi-
nar a ideia de trazer à tona a beleza interior de cada indivíduo ao invés de seguir padrões
de intensamente impostos. Um tempo depois, na década de 1990 o francês Jean Claude
Juillard incorporou o conceito criado por Fernand Aubry em seu trabalho e passou a usar o
visagismo como um método diferenciado de comunicação interpessoal que seria a análise
estética com o propósito de enaltecer a beleza intrínseca de cada pessoa. No início do ano
2000 o artista plástico Philip Hallawell realizou grande pesquisa sobre o visagismo e passou
a ser uma grande referência no território nacional (COSTA et al, 2020).
De acordo com Hallawell (2010) o profissional de beleza precisa ter consciência da im-
portância da imagem pessoal e de como ela afeta o senso de identidade das pessoas. A ade-
quação nessa imagem, a partir dos recursos do visagismo, pode fazer com que o indivíduo
finalmente se reconheça no espelho, e quando isso ocorre os benefícios se estenderão a
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todas as áreas de sua vida. Por outro lado, uma alteração feita sem consciência e conheci-
mento, mesmo trazendo resultados estéticos positivos, pode fazer com que a pessoa não
se reconheça mais, perdendo a sua própria identidade física.
No visagismo é preciso pensar em cada pessoa como um indivíduo único, não como
apenas um cliente em que se pode aplicar um estilo qualquer. Suas características pes-
soais, sua personalidade, seu estilo de vida, seus sonhos e seus desafios a distingue de
todos e a faz ser única. Uma mudança na atitude fará com que os profissionais enxerguem
verdadeiramente seus clientes e realize uma interação proveitosa com o objetivo de saber
duas importantes perguntas: “O que você deseja expressar pela sua imagem?” e “Quem é
você?” (HALLAWELL, 2010).
A maquiagem é utilizada como meio artístico e casual adequando traços, linhas, cores
e o visagismo para que tudo fique em harmonia, proporcionando sensações prazerosas as
mulheres. O visagismo é a arte de criar uma imagem pessoal, em sintonia com a perso-
nalidade da individual, com harmonia e estética. Partindo desse conceito de visagismo a
maquiagem entra como método de disfarçar, corrigir, ressaltar os traços e características
de cada um, mostrando que há beleza em cada rosto (HALLAWELL, 2010).
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As feministas acreditam que por muito tempo as mulheres ficaram numa condição de
submissão, sem a escolha de tomada de decisões ou vontades próprias para se empoderar.
Seguindo a linha de que o processo de empoderamento é auto reflexivo, único, mas podendo
ter uma ajuda externa que auxilia influenciando no processo contínuo e constante. Para o
empoderamento as intenções principais seriam: contestar as ideologias patriarcais; modificar
as instituições que reforçam as desigualdades sociais e discriminação de gênero, criando
condições para as mulheres de baixa renda terem acesso e controle às informações e aos
cuidados estéticos (PINTO, 2010).
Segundo Sandenbergue (2006), o empoderamento consiste em algumas dimensões: a
cognitiva diz respeito à compreensão que as mulheres têm de sua subordinação, incluindo
questões relativas a gênero, sexualidade, direitos legais etc.; a política com análise social
com a capacidade de organização feminina e as mudanças estruturais, disseminando ideias
de empoderamento e o desmonte da lógica patriarcal; a dimensão econômica seguindo a
independência financeira das mulheres tendo domínio da própria renda e empreendimentos,
sendo fundamental para a libertação feminina; a dimensão psicológica que se relaciona no
desenvolvimento da consciência e sentimento podendo agir buscando seus direitos na so-
ciedade melhorando a autoconfiança, a autoimagem e pôr fim a autoestima (SÁ, PACHECO,
2019). Neste contexto, o presente estudo procurou identificar sinais de empoderamento a
partir de ações de saúde-estética, especificamente na maquiagem, promovendo a autoes-
tima e o bem estar da mulher.
MÉTODO
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termo de consentimento livre e esclarecido, neste documento constam informações sobre
a pesquisa juntamente com o aceite de autorização para divulgação dos resultados, das
fotos e dos vídeos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Fonte: as autoras.
O homem sempre foi colocado como o mais forte fisicamente e o mais importante na
sociedade, aquele que determina, que tem posse, força, inteligência, gerando uma sociedade
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dependente e historicamente preconceituosa em vários aspectos como: desigualdade de
gênero, prejuízos sociais e profissionais, violência entre outras. Partindo dessa análise, se
tornou um pensamento machista desde a antiguidade até os dias atuais interferindo de ma-
neira negativa aos direitos da classe feminina, com maior número de desemprego entre as
mulheres, dificuldade de assumirem posições de chefia dentro de empresas, discrepância
salarial entre homens e mulheres, preconceito social, submissão no cotidiano em relação à
renda e os gastos da família (HOFFMANN, LEONE, 2004).
Apesar deste cenário, as mulheres vêm participando das decisões de como será gasto
a renda familiar, essa contribuição se deve ao aumento da sua participação no mercado
de trabalho e o efeito de seus rendimentos sobre a desigualdade de renda domiciliar. Fato
também observado nas respostas das mulheres (Gráfico 2):
Fonte: as autoras.
A pobreza é uma situação que vem assolando a humanidade, e suas origens remonta
a época da escravidão, tendo como consequências a desigualdade social, racial, de gênero
e de cor. Para Schwartzman (2004) a origem da pobreza seria a falta da educação à socie-
dade, em que a vontade política é pouca com o real compromisso dos valores da igualdade
e dos direitos humanos em relação às políticas na área da educação, da saúde, do trabalho,
da proteção à infância e do combate à discriminação social.
Segundo o IBGE (2022) entre os anos de 2020 e 2021, época em que o mundo passava
por uma pandemia, o Brasil cresceu em 11,5 milhões o total de pessoas vivendo na pobreza,
com aumento de 22,7%, e em 2021 houve um ápice de 62,525 milhões de brasileiros abaixo
da linha da pobreza equivalente a 29,4% da população vivendo com menos de $16,20 por
dia. Nesta pesquisa, as desigualdades regionais apontaram que na região Centro-Oeste do
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Brasil a população em situação de pobreza é menor comparada as demais regiões, ficando
em último lugar com o resultado de 5,5%.
No Brasil existem medidas que amparam as pessoas, e as políticas públicas compreen-
dem um processo de etapas que o governo usa em função de auxiliar e resolver problemas
sociais tais como: a pobreza, o desemprego, a desigualdade de oportunidades, o racismo
e a desnutrição entre outros. O Programa Bolsa Família é um projeto criado pelo Governo
Federal em 2003 que foi instituído pela Medida Provisória n° 132, com intuito de desenvolver
a autonomização dos beneficiários e o desenvolvimento de capital humano, beneficiando as
famílias de baixa renda ou em extrema pobreza sendo importante a fim de evitar a reatuali-
zação de práticas assistencialistas, um possível combate à fome e as necessidades básicas
(SANTOS, MAGALHÃES, 2011). Entretanto, apesar da existência de tais programas sociais
a maioria das mulheres entrevistadas não são beneficiadas (Gráfico 3):
Fonte: as autoras.
Mulheres com poder aquisitivo maior têm mais acesso aos cuidados estéticos, ao lazer,
à prevenção da saúde e à beleza, divergindo com as que a condição financeira é mais pre-
cária não podendo usufruir de todo esse bem estar. Neste sentido, muitos são os casos de
mães que cuidam da família sem a presença do pai, deixando filhos em creches para buscar
o sustento de casa, trabalhando informalmente para conseguir manter a família (GARCIA,
SANTOS, SANTOS, 2015).
Entretanto, a vida dessas mulheres é mais sofrida, com trabalho mais pesado, noites
mal dormidas, preocupações excessivas, gerando um péssimo estado emocional cujas
pesquisas apontam o maior aumento de depressão e ansiedade. Além do estado emocional
abalado, o organismo responde a estes estímulos, como por exemplo: o envelhecimento
precoce da pele, queda capilar, discromias e acromias cutâneas, interferindo na autoimagem
e na autoestima da mulher (JORGE, 2005).
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As mulheres entrevistadas raramente se dedicam ao autocuidado (Gráfico 4), e por
vários motivos além da situação financeira como a cultura em que foi criada desde criança
quando não foi ensinado a cuidar do cabelo, da pele, das unhas e até mesmo da própria
saúde, uma formação que acreditava no básico voltada para a alimentação e o trabalho.
Outro aspecto importante a ser levantado, seria a religião que influencia no comportamento
da mulher, exigindo determinados padrões conservadores. Neste contexto, o autocuidado e
o bem estar da mulher na perspectiva da estética, vem sendo vista por alguns seguimentos
religiosos, como atitudes de pura vaidade e pecado, dificultando a compreensão de autova-
lorização da mulher (RIGONI, PRODÓCIMO, 2013).
Fonte: as autoras.
O Gráfico 5, aponta que 78% das mulheres que participaram do questionário concor-
dam que a maquiagem pode colaborar para a autovalorização da mulher. Nos resultados
da pesquisa de Dutra e Pontes (2018), demonstrou o poder da maquiagem como papel
significativo na melhora da autoestima e maior aceitação da própria imagem. Neste caso, a
maquiagem melhora a imagem pessoal, possibilitando modificar pensamentos e visões que
alguém tem sobre si mesmo.
Dessa forma, segundo Coopersmith (1967), uma pessoa com boa autoestima, man-
tém uma imagem constante de suas capacidades e de sua distinção como pessoa, possui
possibilidades maiores de assumir papéis ativos em grupos sociais que efetivamente ex-
pressam as suas visões e se preocupa menos com ambivalências e medos, se orientando
mais diretivamente e realisticamente para o êxito de suas metas.
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Gráfico 5. Respostas das mulheres sobre a autovalorização.
Fonte: as autoras.
A história da mulher na sociedade nunca foi fácil, existindo muito preconceito e discri-
minação, não podendo tomar decisões e por muito tempo a falta de autoconfiança esteve
presente na vida de muitas mulheres. Sendo a autoconfiança indispensável para que a voz
do público feminino seja ouvido e refletido em vários aspectos da vida, portanto a confiança
faz com que a mulher se imponha em tomar decisões sobre a sua vida pessoal e profissional
contrapondo a várias fases em que aceitavam situações desagradáveis de submissão ao
homem (AZEVEDO, SOUSA, 2019) .
O empoderamento feminino tem como objetivo proporcionar às mulheres os seus direi-
tos e a liberdade, praticando maior bem-estar e autoestima com alguns cuidados adotados
como: uma boa alimentação, a prática de exercício físico, cuidado diário com a pele, terapia
integrativa, procedimentos estéticos entre outros. A partir de toda a evolução feminista a es-
tética para a mulher, representa saúde e bem-estar, associando tratamentos que cuidam de
disfunções da pele, cabelo e corpo com técnicas especificas para cada protocolo, contudo,
os cuidados estéticos contribuem para a autoestima da mulher (FLORIANI, MARCANTE,
BRAGGIO, 2010).
Ao longo de várias décadas, as mulheres em seu espaço cotidiano receberam o cargo
de mulheres “do lar”, mantenedoras da ordem, da reprodução/procriação, da educação dos
filhos, dos cuidados com o lar e da obediência ao marido (DURAND, 2021). Nesta relação,
observa-se facilmente uma relação de poder desigual, que vem contribuindo com a explo-
ração e a profunda desigualdade social. As condições de inferiorização vivenciadas pelas
mulheres foram transformadas em práticas rotineiras de subordinação que passaram a ser
comuns no meio em que vivem (MATOS, NERY, 2018). Neste sentido, o cuidado com a sua
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aparência, com a saúde e outros aspectos foram deixados em segundo plano, não significan-
do que deixaram de reconhecer a importância da estética para sua vida, como mencionado
nos relatos das entrevistadas a partir da questão “Qual a importância da estética em sua
vida? (R1, R2...Rn, representam relatos):
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Figura 1. Ações de saúde-estética: limpeza de pele, maquiagem, design de sobrancelhas e corte capilar.
Fonte: as autoras.
R1. Feliz
R2. Feliz
R3. Sem vontade
R4. Bem
R5. Muito bem
R6. Nossa, outra mulher com autoestima
R7. Adoro, me faz bem
R8. Depende do procedimento. Muitas das vezes somos impostas aos
padrões de beleza do mercado. Acho importante nós humanos, homens
e mulheres, se conhecer e se cuidar, descobrir o que lhe faz bem, o que
lhe causa conforto e desconforto, seus limites e suas potencialidades.
R9. Me sinto bem
Para Schultheisz (2013) a autoestima se evidencia nas respostas dadas pelos indi-
víduos às diferentes situações ou eventos da vida, corresponde ao que a mulher valora,
sente e pensa, avaliando o seu comportamento como positivo ou negativo. E neste caso,
ao realizar os procedimentos estéticos, os resultados mostraram que a autoestima da mu-
lher foi melhorada, visto que trouxe uma satisfação em relação a um momento dedicado ao
seu bem estar. Para o autor quando a sua manifestação é positiva geralmente o indivíduo
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se sente confiante, competente e possuidor de valor pessoal, além de ser um importante
indicador da saúde mental por interferir nas condições afetivas, sociais e psicológicas dos
indivíduos. Neste aspecto, pode interferir na saúde, no bem estar e na qualidade de vida da
população em geral.
Roteiro de Anamnese
O podcast teve início em 2012 nos EUA, com o lançamento dos primeiros modelos
de negócios por conteúdos sonoros, e aos poucos foi se apresentando e se tornando um
tipo de mídia que utiliza áudio e se conecta, de alguma forma, à internet. Essa forma de
comunicação foi se alastrando por diversos territórios e atualmente compreende um meio
de divulgação e comunicação importante para várias comunidades. Essa ferramenta de
comunicação adquiriu características disruptivas e emancipatórias - sob o ponto de vista
da maior democratização dos processos de produção e de comunicação que envolvem a
distribuição de áudio (CARDOSO, 2022).
Neste contexto, o podcast (Figura 2) foi construído com o objetivo de levar informa-
ções e conhecimentos ao maior número de mulheres possível, através do compartilhamen-
to via WhatsApp, da postagem no site de instituições de ensino, etc. (link: https://youtu.
be/jZOAgCUznWI):
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Figura 2. Podcast construído com o tema “Empoderamento feminino a partir da Maquiagem”.
Fonte: as autoras
R10: A beleza é uma indústria muito severa, a gente tem essa padronização e talvez
esteja vivendo esse momento de pluralidade. Importante pensarmos que muitas
pessoas eram deixadas de lado e hoje existem marcas que se preocupam em inse-
rir essas pessoas no contexto social novamente, de mostrar para elas que existem
produtos para determinadas belezas. Essa universalização do acesso é bacana e
também favorece o profissional.
R11: Sim, a partir do momento que a pessoa gosta do que você proporcionou a ela, a
partir do momento que ela consegue ter suas expectativas alinhadas, a mulher ao
se ver no espelho ela já muda atitude você percebe que ela se sente mais confian-
te, mais poderosa, ela olha e fala UAU!
R11: Muito engraçado que a gente resgata muitas coisas como a autoestima, como
aquele sentimento de que algumas mães perdem depois que tem seus filhos, a gente
recupera aquela sensação de ser dona de si, que algumas mulheres perdem quan-
do elas saem do serviço, terminam algum relacionamento, quando elas encontram
em alguma dificuldade cotidiana.
R12: Eu acho que a primeira coisa que a pessoa tem que pensar nisso tudo é enten-
der quem ela é, o processo de autoconhecimento, processo de auto responsa-
bilização é o processo de você ter consciência de quem você é, gera em você
essa liberdade de escolha, porque a partir do momento que você faz uma maquia-
gem para agradar a si mesma você deixa de se preocupar tanto com o julgamento
alheio, a gente preocupa muito com o que as pessoas vão dizer ao nosso respeito,
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com o que as pessoas vão pensar. Eu acredito que a maquiagem é libertadora a
partir do momento em que você faça algo que te faça sentido, precisa ser uma re-
presentação da imagem que você olha no espelho e você fala sou eu, eu estou bem,
estou feliz e estou contente. A gente precisa entender que essa aceitação ela precisa
começar primeiro em nós, não vai adiantar eu criar expectativas de querer fazer um
rosto contornado que a top model fez sendo que não é a minha característica fisionô-
mica, a anatomia, ossatura do rosto não permite isso, o visagismo é voltado pra isso,
harmonia, equilíbrio, não transformando mas dando harmonia.
R13: O que a gente tenta é mostrar para elas uma beleza que elas mesmas não en-
xergam, só que essa limitação muitas vezes é da própria pessoa com anos escutan-
do que: Ah você não é isso aquilo, você é assim é assado. A gente começa a impor
isso a partir do momento que só determinadas pessoas conseguem ser classificadas
como bonitas e isso é uma situação complicada porque a internet que era uma fer-
ramenta tão positiva muitas vezes até acelerou esse processo para fazer a distinção
do que é certo e do que é errado, do que é belo e do que é feio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imagem da mulher é algo importante para a sua autoestima e para qualquer as-
pecto emocional. E neste sentido, foi possível verificar através dos relatos e das imagens
levantadas no estudo que ações envolvendo limpeza de pele, corte capilar e principalmente
a maquiagem podem ser agentes transformadores da autoestima e do modo que as mu-
lheres se enxergam. No grupo de mulheres participantes, foi notável, na comparação das
imagens, a diferença nos sorrisos, nos olhares e na postura de cada uma delas, além disso,
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tornou-se uma ação gratificante de realizar visto que muitas consideram a maquiagem algo
essencialmente estético e superficial. A maquiagem pode ser libertadora e colaborar para o
empoderamento da mulher, melhorando a sua autoimagem, proporcionando a valorização
e a construção da personalidade que se deseja apresentar diante dessa sociedade tão de-
sigual e preconceituosa.
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08
Feminização do magistério: análise das
produções acadêmicas (2008 -2018)
'10.37885/230212211
RESUMO
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) defendido em 2019, cujo problema de pesquisa foi “o que os estudos aca-
dêmicos têm apontado sobre a temática de feminização do magistério?” Visamos refletir
sobre o processo de feminização do magistério na Educação Infantil e nos Anos Iniciais
do Ensino Fundamental, a partir da análise crítica da produção acadêmica dos Programas
de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no
período de 2008 a 2018. Optamos pela abordagem de pesquisa qualitativa, com foco na
pesquisa bibliográfica. Encontramos 1.761 produções entre dissertações e teses; dessas, 31
estudos demonstraram aproximação com a temática pesquisada. Dentre as 31 produções,
selecionamos três para análise da pesquisa. Os resultados revelaram que todas as autoras
e orientadoras atuam ou têm experiências em sala de aula ou formação de professores,
ressaltando que há a necessidade em se discutir sobre as questões de gênero na escola.
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gênero seja ainda mais acentuada, pois a presença de mulheres na Educação Infantil e nos
AIEF é massiva. E mesmo que homens ocupem posições na docência, eles se concentram
majoritariamente no Ensino Médio e Educação Superior, visto que, a esmagadora maioria
da Educação Infantil e Ensino Fundamental I, são ocupados por mulheres (NACARATO,
VARANI, CARVALHO, 1998).
Dessa forma, estudar a feminização da profissão docente, nos ajuda a problematizar
o arquétipo colocado sobre a mulher e sobre o homem, contribuindo para o debate crítico
daquilo que foi posto e construído socialmente do é “papel de homem” e “papel de mulher”
e que ainda reverbera com grande força nos espaços escolares. No entanto, compreende-
mos que o trabalho se transforma. Trabalhos que antes eram ocupados majoritariamente
por homens, hoje são ocupados por mulheres, ou o inverso, com a docência, por exemplo.
Todavia, é importante e necessário o questionamento: quais são as implicações políticas e
sociais quando pensamos no trabalho exercido por mulheres, diante de um silenciamento
e de uma marginalização histórica a que estas foram submetidas?
Longe de se esgotarem as discussões, buscamos contribuir com os estudos a respeito
da feminização do magistério endossando as reflexões sobre esse assunto no campo da
educação, pois “discutir as relações de gênero é confrontar as relações de poder que existem
entre homens e mulheres e reconhecer os privilégios do sexo masculino e da masculinidade
como sistema cultural (FERREIRA, CARVALHO, 2006, p. 146).
Com base no exposto, neste artigo propusemo-nos a investigar o que as pesquisas
acadêmicas apresentam sobre a temática de feminização no magistério com o objetivo de
conhecer e refletir o processo de feminização do magistério na Educação Infantil e nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, a partir de produções acadêmicas dos Programas de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), no período
de 2008 a 2018.
MÉTODOS
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particulares e que não podem ser quantificadas, pois “[...] ela trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, valores, crenças e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis”.
A abordagem qualitativa foi escolhida, pois dialoga diretamente e faz possível o de-
senvolvimento de uma pesquisa bibliográfica mais reflexiva, já que ambas exigem leituras
e reflexões constantes. Lima e Mioto (2007, p. 38) apontam que a pesquisa bibliográfica
“[...] implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao
objeto de estudo, e que por isso, não pode ser aleatório”. A pesquisa bibliográfica possibilita
flexibilidade nas possibilidades de rever, sempre que necessário, o “[...] objeto de estudo [...]
de modo a defini-lo mais claramente ou reformulá-lo” (LIMA; MIOTO, 2007, p. 40).
Dessa forma, realizamos uma busca direcionada por dissertações e teses publicadas
no Repositório Institucional da UNESP1, referente aos Programas de Pós-Graduação em
Educação. A seleção dos trabalhos se deu por meio do estabelecimento de alguns parâme-
tros temáticos indicados por Lima e Mioto (2007) como: a) parâmetro temático: feminização
do magistério; b) parâmetro linguístico: Língua Portuguesa; c) principais fontes: Repositório
Institucional da UNESP e d) parâmetro cronológico: 2008 a 2018.
Nossa exploração iniciou-se selecionando alguns filtros de busca indicados pelo repo-
sitório da UNESP nos parâmetros previamente estabelecidos, como:
1 O Repositório Institucional UNESP tem por objetivo armazenar, preservar, disseminar e possibilitar o acesso aberto, como bem pú-
blico global, à produção científica, acadêmica, artística, técnica e administrativa da Universidade. Disponível em: https://repositorio.
unesp.br/.
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mações e/ou dados referentes ao tema [...]; b) Leitura exploratória – também
se constitui em uma leitura rápida cujo objetivo é verificar se as informações
e/ou dados selecionados interessam de fato para o estudo [...]; c) Leitura
seletiva – procura determinar o material que de fato interessa, relacionando-o
diretamente aos objetivos da pesquisa. d) Leitura reflexiva ou crítica – estudo
crítico do material orientado por critérios determinados a partir do ponto de
vista do autor da obra, tendo como finalidade ordenar e sumarizar as informa-
ções ali contidas. É realizada nos textos escolhidos como definitivos e busca
responder aos objetivos da pesquisa. e) Leitura interpretativa – é o momento
mais complexo e tem por objetivo relacionar as ideias expressas na obra com o
problema para o qual se busca resposta [...] requer um exercício de associação
de ideias, transferências de situações, comparação de propósitos, liberdade
de pensar e capacidade de criar.
Essas etapas de leituras sucessivas dos materiais selecionados são de extrema rele-
vância para a seleção dos dados e das informações, já que a leitura apresenta-se como a
principal técnica, visto que “é através dela que se pode identificar as informações e os dados
contidos no material selecionado, bem como verificar as relações existentes entre eles de
modo a analisar a sua consistência” (LIMA; MIOTO, 2007, p. 41).
Foram coletadas algumas manchetes de jornal na busca por estabelecer diálogo com
nossa discussão. A busca foi feita pelo Google a partir de uma pesquisa simples referente
a notícias relacionadas a discussões sobre gênero.
Durante toda a trajetória de leitura, confeccionamos as fichas de acompanhamento,
pois como elucida Gil (2008, p.75), “os elementos importantes obtidos a partir do material
devem ser anotados, pois eles constituem a matéria prima do trabalho de pesquisa”. A cons-
trução dessas fichas, que podemos denominá-las também de fichamentos, contribuiu para
redigir o texto final da pesquisa, já que, subsidiados pela pesquisa qualitativa, compreen-
demos que a análise minuciosa dos textos selecionados é um dos pontos chaves e cruciais
do nosso trabalho.
RESULTADOS
Muito tem se debatido sobre a condição feminina ao longo da história, o que significa
que estamos desconstruindo e questionando as relações sociais desiguais construídas
dentro do sistema capitalista patriarcal. A década de 1980 demonstrou uma verdadeira
explosão de temas relacionados à questão da mulher em diversas áreas do conhecimento,
e esses temas só se fizeram emergentes pela pressão constante das mulheres. Explode,
assim, um movimento de negação ao determinismo natural e biológico referente ao sexo,
feminino e masculino, permitindo não só a discussão sobre a mulher, mas também sobre a
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figura masculina, como aponta Rago (2011, p. 7) “[...] cada vez mais, portanto, cresceram
os estudos sobre as relações de gênero, sobre as mulheres, em particular, ao mesmo tem-
po em que se constitui uma nova área de estudos sobre os homens, não mais percebidos
enquanto sujeitos universais”.
Desse modo, no decorrer da pesquisa bibliográfica nos PPGE, nos deparamos com
um total de 150 programas que a UNESP oferece, com 8 destes na área de Educação,
distribuídos em 5 cidades: Marília, com mestrado e doutorado em Educação; Presidente
Prudente, com mestrado e doutorado em Educação e mestrado profissional em Educação
Física; Rio Claro, com mestrado e doutorado em Educação e em Educação Matemática;
Araraquara, com mestrado e doutorado em Educação Escolar e mestrado profissional em
Educação Sexual; e, por fim, Bauru, com mestrado e doutorado em Educação para Ciência2.
No que condiz às grandes áreas do conhecimento, seguimos pela área de Ciências
Humanas, a qual contempla os programas de Pós-Graduação em Educação, Educação
Escolar e Educação Sexual e respeitando nosso objetivo geral, selecionamos somente os
programas que contemplavam a categoria de mestrado e de doutorado como: Marília, Rio
Claro e Presidente Prudente com PPGE e Araraquara, com Pós-Graduação em Educação
Escolar (PPGEE).
Na pesquisa bibliográfica observamos que o Repositório contava com um acervo de
25.744 dissertações de mestrado e 13.632 teses de doutorado publicadas, dentre outras
produções, como artística, técnica, administrativa, reunindo um total de 141.258 produções3.
Atualmente esse percentual de produções já é outro, considerando que a pesquisa biblio-
gráfica foi realizada por volta do mês de setembro de 2019.
No processo de identificação da produção acadêmica, deparamo-nos com um total de
1.761 pesquisas desenvolvidos na área da Educação, na categoria de dissertação e tese
entre 2008 a 2018, discutindo diversas temáticas referentes à Educação. A tabela 1 a seguir,
apresenta o total de trabalhos:
2 Informações retiradas do Portal da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Dis-
ponível em: http://propgdb2.unesp.br/home_page/pesquisar_programa.php. Acesso em: 02 set. 2019.
3 Informações retiradas da página inicial do Repositório Institucional UNESP. Disponível em: http://repositorio.unesp.br. Acesso em: 02
set. 2019.
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Tabela 1. Total de produções acadêmicas (2008-2018).
Dentre os três campi escolhidos, Marília (PPGE criado em 1988) e Araraquara (PPGE
criado em 1997), possuem um tempo maior de PPGE, contando, portanto, com uma quan-
tidade maior de produções científicas. O campus de Marília atua nas linhas de pesquisas:
1. Psicologia da Educação: processos educativos e desenvolvimento humano; 2. Educação
especial; 3. Teoria e práticas pedagógicas; 4. Políticas educacionais, gestão de sistemas e
organizações, trabalho e movimentos social; 5. Filosofia e história da Educação no Brasil. Já o
campus de Araraquara possui as seguintes linhas: 1. Sexualidade, cultura e educação sexual;
2. Formação do professor, trabalho docente e práticas pedagógicas; 3. Teorias Pedagógicas,
Trabalho Educativo e Sociedade; 4. Estudos históricos, filosóficos e antropológicos sobre
escola e cultura; 5. Política e Gestão Educacional.
Observamos nos dados uma ampla produção de pesquisa nas categorias de disserta-
ção e tese na área de Educação, nos mais variados temas diante do recorte temporal que
estabelecemos, confirmando com as informações divulgadas pela Word Universaty Rankings
(CWUR)5 de que a Unesp é a quarta melhor universidade do país e a sétima melhor da
América Latina, desenvolvendo pesquisas, projetos de extensão e ensino de qualidade.
Conforme a tabela 1, de um montante de 1.761 produções encontradas, foram pre-
viamente selecionados 31 trabalhos que apresentaram proximidade com nossa temática
de pesquisa, sendo que das 605 teses publicadas, 9 aproximam-se do tema, e das 1.156
dissertações publicadas, 22 tiveram aproximação com nosso assunto. De antemão, um
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dado relevante foi que, desses 31 trabalhos previamente selecionados, mais de 80% foram
produzidos por mulheres.
Tais trabalhos foram os que mais se aproximaram da temática de feminização do
magistério, voltada à discussão sobre gênero, mulher, magistério, Educação Infantil e Anos
Iniciais do Ensino Fundamental.
O campus de Araraquara demonstrou uma significativa produção acadêmica desenvol-
vida por mulheres, seguido de Rio Claro e Marília, que se encontram juntos, e com menor
número de produções, Presidente Prudente. Isso pode nos demonstrar que o interesse pelas
discussões de gênero tem se dado com maior frequência entre as mulheres, principalmente
no âmbito da educação, formação docente e nas temáticas que circundam o ambiente escolar.
Dos 31 trabalhos selecionados, desenvolvemos uma leitura minuciosa dos resumos e
palavras-chave e após esse processo de análise preliminar, selecionamos 3 dissertações
de mestrado, sendo duas pesquisas do PPGE de Presidente Prudente e uma de Rio Claro.
O quadro 1 abaixo, apresenta a relação das pesquisas selecionadas para a análise final:
Ao observarmos o quadro, com a seleção final das pesquisas, podemos observar que
todos os trabalhos foram desenvolvidos e orientados por mulheres que atuaram como pro-
fessoras em escolas ou universidades. No entanto, essas três pesquisas, não discutiram
diretamente sobre feminização do magistério na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental, mas, apresentaram discussões sólidas para a compreensão e discus-
são sobre gênero no trabalho docente e no espaço escolar.
A dissertação da Elizabeth Angela dos Santos, intitulada “Gênero e profissão docente:
as representações sociais das alunas egressas do curso de Pedagogia da Faculdade de
Ciências e Tecnologia/Unesp, Campus de Presidente Prudente”, defendida em 2008, foi a
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pesquisa que mais se aproximou da questão da feminização do magistério, tendo por objetivo
a identificação de quais foram representações sociais que as alunas egressas do curso de
Pedagogia da FCT/Unesp tiveram com relação à profissão docente e as relações de gênero
na categoria. A autora aprofunda as reflexões sobre a formação de professores e sobre a
concepção de profissão e profissionalidade docente do ponto de vista histórico/sociológico,
analisando as questões relativas à feminização do trabalho docente (SANTOS, 2008).
A pesquisa “Entre tapas e beijos, quais as possibilidades? Tessituras nas relações do
gênero em uma escola do Ensino Fundamental II”, desenvolvido por Maria Teresa Mendes
de Oliveira Lima, teve por objetivo central investigar os significados atribuídos pelos docen-
tes e alunos no que diz respeito à questão de gênero e sexualidade e de que maneira isso
se manifesta no cotidiano da escola. O objetivo foi desvendar as questões de gênero que
circundam o espaço escolar. A autora aborda a crítica de que a escola desenvolve e oferece
um modelo binário de sexualidade - homem e mulher heterossexuais (LIMA, 2011), ocultan-
do outras sexualidades alternativas que se afloram nos espaços e lugares. No entanto, a
autora elucida que, “[...] no decorrer do trabalho fomos, muitas vezes, surpreendidos pelas
colocações feitas, tanto pel@s educador@s6, como pelo grupo de alun@s, que mostraram
em seu discurso lugares menos cristalizados, estanques para o que é feminino e masculino”
(LIMA, 2011, p. 135).
Lima (2011) apontou que as respostas obtidas nas entrevistas com os professores,
mostram que existe a busca em quebrar a hierarquização estabelecida, buscando formas
menos desiguais no trabalho em sala de aula. Já nas discussões dos grupos focais ela-
borados com os alunos, houve um grande interesse na participação por serem discussões
significativas e que permeiam seus cotidianos. A pesquisadora enfatizou que ainda existem
falas e ações que denotam preconceito e discriminação de gênero, porém menos cristaliza-
dos, se comparados a concepções mais antigas (LIMA, 2011).
E por fim, a pesquisa intitulada “A mulher escrita: notas sobre a (in)visibilidade feminina
no material didático do ensino médio de Língua Portuguesa e Literatura do estado de São
Paulo”, desenvolvido por Jéssica Kurak Ponciano, teve por objetivo analisar a utilização das
correntes de pensamento Feministas como ferramenta para o ensino de possibilidades de
leituras que desconstruam estereótipos negativos e questionem a posição social das mulheres
nos textos que compõem os “Cadernos do (s) Aluno (a) de Língua Portuguesa e Literatura”
do Estado de São Paulo. Ponciano (2015) problematizou o quão a escola continua sendo
6 Segundo Lima (2011, p. 7) a utilização do símbolo @ se deu “[...] para indicar tanto o masculino como o feminino, evitando-se a escrita
de termos nos distintos gêneros repetidamente. Esta é uma prática utilizada em alguns estudos e materiais produzidos sobre sexua-
lidade, seu uso é uma opção que marca a busca por uma relação diferente, porém não desigual entre homens e mulheres. Assim, ao
escrevermos professor@s estamos nos referindo às professoras e aos professores; alun@s às alunas e alunos”.
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um espaço que acentua, de maneira discreta e sorrateira, os mecanismos de opressão em
que as mulheres também estão fadadas a viverem, e retoma, no decorrer do estudo, as
diversas formas que o patriarcado se mobiliza para produzir a manutenção das mulheres a
um espaço inferior à dos homens, contribuindo e reforçando a ideia de homem viril e superior
(PONCIANO, 2015).
De modo geral, as pesquisas de Santos (2008) e Lima (2011) buscam uma interação
mais aproximada do tema de pesquisa, trabalhando com entrevistas e questionários, res-
saltando a voz dos sujeitos. Nesse sentido, Lima (2011) aponta que a escolha em trabalhar
com entrevistas semiestruturadas, questionários e grupos focais, deu-se pela interação mais
próxima com sujeitos, permitindo maior interação entre pesquisadora e entrevistadas. Santos
(2008, p. 68) defende que trabalhar a partir de uma perspectiva qualitativa “permite ao inves-
tigador uma maior aproximação do fenômeno estudado, através da interação entre sujeito
pesquisador e sujeito pesquisado” (p. 68). Desse modo, a autora optou por trabalhar com a
metodologia História Oral para fazer viva e científica a voz dos sujeitos pesquisados, usando
a entrevista semiestruturada como um grande instrumento para esse tipo de metodologia.
Já Ponciano (2015) segue uma linha metodológica um pouco distinta dos outros dois
trabalhos, buscando por meio de uma análise crítica, embasando-se em estudos feminis-
tas, problematizar as representações hegemônicas de gênero que reiteram e enfatizam
atitudes de preconceito e desigualdades entre homens e mulheres nos materiais enviados
pela Secretaria do Estado de São Paulo nos “Cadernos de aluno/a de Língua Portuguesa e
Literatura” do Ensino Médio, utilizando predominantemente a metodologia qualitativa e análise
documental para selecionar e catalogar os textos que continham representações femininas.
Ao refletir sobre as três pesquisas selecionadas Santos (2008), Lima (2011) e Ponciano
(2015), compreendemos que elas abordaram em comum, a contradição e a importância da
instituição escolar como instrumento, espaço social e político de combate aos estereótipos
e discriminações de gênero, por meio da problematização dos conteúdos que são colocados
nos currículos que chegam até o chão da escola, e não só, mas também o que os estu-
dantes levam até a escola de assuntos e questões do cotidiano. Além disso, apresentaram
a urgência em se falar sobre gênero na escola e problematizar os estereótipos colocados
sobre mulheres e homens, pois esse é um dos espaços para essas discussões (SANTOS,
2008; LIMA, 2011; PONCIANO, 2015).
Segundo Silveira (1995), vivemos em uma sociedade marcada pela presença de classes
sociais e o ambiente escolar é um espaço privilegiado para essa luta. Ele se apresenta como
um espaço repleto de contradições, pois ao mesmo tempo que é instrumento de dominação
pelo mercado, é também espaço que pode propiciar a transformação social, resistência e
emancipação para a classe trabalhadora. Por mais contraditória que seja, a escola ainda é
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um dos ambientes para a desconstrução dos estereótipos e preconceitos, não só de gênero,
mas racial, religioso e tantas outras discriminações.
Outra questão é ressaltada por Santos (2008), é que, mesmo que homens estejam nas
salas de aula tanto na Educação Infantil quanto nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental,
ainda é cobrado uma cultura feminina, ou seja, cobra-se por comportamentos dados como
femininos como a delicadeza, o dom maternal, a sensibilidade, supondo que um homem não
possua essas características, já que este é atroz, dono da força, do saber...
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dos espaços de desconstrução dos estereótipos que foram sendo colocados sobre homens
e mulheres em relação a quais cores devem ou não usar, ou até mesmo quais profissões
devem ou não seguir pelo fato de serem homens ou mulheres. É, ainda, um espaço para
discutir e mostrar que mulheres podem sim estudar, como também podem optar ou não
pelo matrimônio7.
Nesse viés, Ponciano (2015) afirma que é preciso reformulações nos materiais didáti-
cos, mostrando que há a necessidade de se ter um olhar voltado a questão de gênero, visto
que, como traz ao longo do seu trabalho, muitas imagens, textos, sugestões de atividades,
elaboradas por uma equipe curricular, carregam uma concepção deturpada e estereotipada
da mulher, sujeitando-a a uma posição inferior ao homem. A autora debate que ainda há
discursos que contribuem e “[...] naturalizam situações de inferiorização da mulher, manten-
do-a em sua posição de inferioridade e legitimando as violências promovidas pela cultura
patriarcal” (PONCIANO, 2015, p. 140), dentro da escola e dos materiais utilizados.
Outro aspecto relevante nos estudos analisados refere-se que os problemas de pesquisa
são distintos, buscando investigar e discutir pontos diferentes, mas todos estão interligados
pela discussão de gênero, fundamentadas, predominantemente, em Guacira Lopes Louro
(1997)8, Margareth Rago (2001)9, Heleieth Saffioti (2004)10, Joan Scott (1990)11, Jane Soares
Almeida (1998)12 e Michael W. Apple (1998)13, autores de renome no campo do debate fe-
minista e de gênero.
A partir dos estudos, percebemos que os estereótipos de gênero se dão de maneira
sorrateira e, muitas vezes, imperceptíveis a olhos que não questionam o mundo ao seu
redor. Isso não se distancia das atribuições ditas femininas para a docência. Esses atribu-
tos arcaicos são alimentados pelas mais diversas instâncias sociais, tramando a exclusão,
violência e marginalização das mulheres.
7 Trouxemos está reflexão, pois em uma fala o então Edir Macedo apontou que mulher não pode ter mais estudos que o marido e aqui
gostaríamos de frisar que as mulheres podem tudo o que acharem pertinente e adequado para a vida delas, inclusive ter ou não
um marido. A notícia está disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/09/24/interna-brasil,789307/
bispo-edir-macedo-diz-que-mulher-nao-pode-ter-mais-estudo-que-o-marido.shtml. Acesso em: 25.08.2020.
8 LOURO, G. L. Gênero Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
LOURO, G. L. Gênero e Magistério: identidade, história, representação. In: CATANI, D.B; BUENO, B.; SOUSA, C; e SOUZA, M. C.
Docência, memória e gênero – Estudos sobre formação. São Paulo, Escrituras, 1997, p. 75- 84. LOURO, G. L. Pedagogias da Sexu-
alidade. In: LOURO, G.L., (org.). O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 7-34.
9 RAGO, M. Luce Fabbri, o anarquismo e as mulheres. Textos de História, Brasília, v. 8, n. 1/2, p.219-244, dez. 2001.
10 SAFFIOTI, H. Gênero patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. Coleção Brasil Urgente.
11 SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, nº2 jul/dez, 1990.
12 ALMEIDA, J.S. Imagens de mulher: a imprensa educacional e feminina nas primeiras décadas do século. In: Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, nº 191, p. 31-41 jan./abril 1998b.
13 APPLE, M. Ensino e trabalho feminino: uma análise comparativa da história e da ideologia. Cadernos de Pesquisa,1998, nº 64, p.
14-23, São Paulo.
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CONCLUSÃO
A título de conclusão, ressaltamos que não encontramos dentro do período que estabe-
lecemos, trabalhos com a temática voltada para a discussão exclusivamente da feminização
do magistério, no entanto, acreditamos que as pesquisas selecionadas nos ajudaram a com-
preender melhor a discussão sobre feminização e gênero, pois versaram sobre o trabalho
docente e as relações de gênero que circunscrevem a profissão e a escola, que se faz um
dos espaços de atuação docente.
No processo de leitura e análise das pesquisas selecionadas, pudemos inferir que a
escola se configura em um espaço de contradições, lutas e resistências, sendo uma das
trincheiras de luta contra o patriarcado e, ao mesmo tempo, espaço de produção e reprodu-
ção do mesmo. Percebemos, ainda, que debruçar-se sobre a diversidade em que se apre-
senta e faz viva no espaço escolar e fora dele é preciso, para que a discussão de gênero,
enquanto condição humana, seja de fato efetivada não cabendo somente às mulheres essa
luta. A valorização e promoção de equidade entre os sujeitos sociais deve ser parte da filo-
sofia da existência dos professores que atuam na sala de aula, além de ser abraçada pela
instituição como um todo.
Nas pesquisas selecionadas foi perceptível que as discussões envolviam o debate
sobre gênero na profissão docente no chão da escola e estão intimamente conectadas com
o fenômeno de feminização, já que a docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais e
Anos Iniciais do Ensino Fundamental se constitui predominantemente por mulheres.
Dos 31 trabalhos selecionados, apenas 3 dissertações foram analisadas, pois apresen-
tavam proximidade com nosso objetivo. Encontramos poucas pesquisas, na base de dados
selecionadas para o presente estudo, portanto constata-se a necessidade de aprofundamen-
tos nas discussões sobre gênero e divisão sexual do trabalho, pois são um dos pontos cen-
trais para compreender o fenômeno de feminização e desvalorização da profissão docente.
Falar e discutir a feminização na docência não significa somente debater sobre as
questões quantitativas em relação ao número de mulheres nesse ofício, mas também pro-
vocar a reflexão das implicações políticas e sociais quando pensamos em um trabalho que
majoritariamente é exercido por mulheres.
A nossa luta, a luta das mulheres, por equidade e igualdade é uma questão social, ou
seja, ao longo da vida as relações sociais entre homens e mulheres acontecem, e o debate
feminista deve e precisa permear nossas discussões para que possamos construir uma
sociedade mais justa e menos desigual. Homens nunca saberão o medo diário de que nós,
mulheres, vivemos ao assumir nossas vidas, mas não significa que não devem falar sobre
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a luta feminista. Não problematizar e não levantar questionamentos sobre essa ordem do
“tradicionalmente masculino” ou “tradicionalmente feminino”, contribui para a naturalização
da segregação e da divisão sexual não só do trabalho, mas também de outras instâncias
sociais e políticas que nos cerceiam dia a dia (OLIVEIRA, 2013). Não falar sobre é con-
dizer que esta ordem estabelecida é correta e que o fluxo da humanidade deve segui-la.
Problematizar e colocar em evidência contribui para que desmistifiquemos a ideia de que
cada sexo deve seguir seu “papel” na sociedade: mulheres sendo frágeis e destinadas a
maternidade, e homens sendo fortes, destinado à política e ao comando.
Compreendemos, portanto, que vivemos uma negação da coletividade, herdada e
hegemonicamente liderada por um padrão burguês de organização social. Um momento
feroz de barbárie e autoritarismo que se instaura pelas tessituras sociais, o qual preza e
busca de maneiras mais distintas e cruéis possíveis a manutenção dos estereótipos, das
desigualdades sociais e de gênero, fomentando as misérias de sujeitos escolhidos a dedo
pela cor, lugar onde mora, gênero, sexualidade e qualquer outra característica que o patriar-
cado julgar pertinente para a marginalização nas mais variadas facetas. Desse modo, temos
consciência das limitações e dos avanços da temática de pesquisa em questão e acredita-
mos que o tema deve ser problematizado e que há um longo caminho a ser percorrido no
combate ao poder patriarcal que nos rodeia, pois falar sobre configura-se, também, como
uma das trincheiras de luta e resistência, principalmente quando nos deparamos diante de
um governo de censura, autoritário e ultraliberal.
Esperamos que o movimento de pesquisa se faça contínuo e que as discussões sobre
gênero e feminização do magistério se expandam, problematizando cada vez mais estereó-
tipos, pré-conceitos e questões de falas misóginas referentes as mulheres.
Concluímos, por fim, o presente estudo, com um enxerto de uma grande historiadora
para refletirmos sobre a constituição da história das mulheres:
Agradecimentos
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expressas neste material são de responsabilidade das autoras e não necessariamente re-
fletem a visão da CAPES e declaramos não haver qualquer potencial conflito de interesse
que possa interferir na imparcialidade deste trabalho científico.
REFERÊNCIAS
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as representações das professoras sobre a relação entre ser mulher e ser professora do
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Tessituras nas relações de gênero na escola. Estudo em uma escola de ensino fundamental
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PONCIANO, Jéssica Kurak. A mulher escrita: notas sobre a (in)visibilidade feminina no
material didático do ensino médio de Língua Portuguesa e Literatura do estado de São
Paulo. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Estadual Paulista, Presidente
Prudente, 2015.
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Iemanjá – a senhora das cabeças: mito,
simbologia, alquimia e clínica junguiana
'10.37885/230212153
RESUMO
Objetivo: O presente artigo busca analisar a figura de Iemanjá como uma face arquetípica
da grande mãe, apresentando seus diversos simbolismos, itans e mitologia sob a ótica da
psicologia analítica. Nesse sentido, busca-se avaliar o principal elemento da deidade: a
água, desde seus formatos como rio, mar e oceano, seus diversos atributos, incluindo a al-
quimia, até às implicações analíticas; e, também, observar a característica deste orixá como
ordenadora psíquica pois a mesma pode ser considerada dona das cabeças, senhora da
sanidade mental e da loucura. Para isso foi feita uma revisão bibliográfica através de livros
e artigos pautados na abordagem Junguiana da psicologia. Os resultados demonstram que
a mitologia e mitologema de Iemanjá podem ser ferramentas úteis na clínica como organi-
zadora da saúde mental.
Palavras-chave: Iemanjá, Senhora das Cabeças, Águ, Grande Mãe, Psicologia Analítica.
INTRODUÇÃO
Se a água é a substância fundamental para a vida, talvez não haja símbolo melhor para
representar a mãe da humanidade do que Iemanjá, orixá das águas salgadas, cultuada nas
religiões de matriz africana no Brasil. Considerada Rainha das Águas e a grande mãe de
todos os orixás, Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição iorubá.
DISCUSSÃO
MITOLOGIA DE IEMANJÁ
Iemanjá, filha de Olokum, orixá do mar, pode ser identificada como deidade masculina
ou feminina nas versões iorubanas, é, talvez, a orixá mais cultuada no Brasil. Em uma das
suas histórias mitológicas, Iemanjá casou-se com o rei de Ifé, Olofim, e com ele teve dez
filhos, que correspondem indiretamente aos nomes dos outros orixás. Passado um tempo,
Iemanjá cansou-se de Ifé e decidiu ir em direção ao oeste. Entretanto, seu marido não gostou
dessa ideia e decidiu trazê-la de volta, juntou seus soldados e foi ao encalço da deusa. Ao se
ver perseguida, Iemanjá quebra uma garrafa que ganhou de seu pai-mãe, que deveria ser
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usada somente em caso de perigo iminente. Ao liberar o conteúdo da garrafa, imediatamente
forma-se um rio, que leva Iemanjá de volta ao mar, casa de sua mãe.
Observa-se aqui uma característica própria de Iemanjá em ser mãe, já que neste
contexto ela coloca no mundo seus dez filhos orixás. Percebe-se, também, que a deusa,
provavelmente cansada dessa vida maternal, também deseja uma vida própria e, então,
decide viajar. Porém, devido a sua personalidade forte, não aceita a perseguição do marido,
se refugiando nas águas de sua mãe. Nota-se que ela precisa retornar ao seu inconsciente
para se proteger, representado pelas águas do rio que a leva ao mar, provavelmente como
uma possibilidade de renascimento ou ressurreição que as águas salgadas do mar oferecem.
Em outro mito conta-se que Iemanjá casou-se com Aganju, e deu à luz a Orugã. Este se
apaixona pela própria mãe e começa a persegui-la com intenção de possuí-la. Iemanjá foge
apavorada, mas seu filho consegue alcançá-la e a violenta. Desta união nasceram quinze
deuses. Após o parto, os seios de Iemanjá crescem demasiadamente, jorrando água, onde
se forma o mar, para onde ela fugiu e nunca mais voltou. (ZACHARIAS, 1998).
Nesse conto percebe-se, novamente, a característica maternal de Iemanjá, quando
pare quinze deidades e o que acontece no pós-parto: seus seios incham, indício da sua
forma nutridora, porém jorram águas, ao invés de leite, que forma o mar, seu lugar de força,
oferecendo uma possibilidade de renascimento, e, também, uma fonte de vida e de morte.
Em ambos os mitos se nota a qualidade maternal e fecunda de Iemanjá, já que ela
gesta muitos filhos, povoando o mundo com os orixás. Há outra característica materna: os
seios, fonte de nutrição emocional e física primordial para os filhos. Dona de si mesma, não
se conforma com perseguições e estagnação, e volta ao mar, casa da sua mãe, refletindo
um possível aspecto regenerador ou transformador da água, um retorno à mãe, podendo,
então, iniciar uma nova trajetória ou nascimento.
Segundo Zacharias (1997), Iemanjá seria a mais conhecida e cultuada orixá materna
no meio da cultura religiosa afrodescendente no Brasil. Uma de suas simbologias é o seio
materno, aquele que nutre e sustenta o filho. É mais entendida como mãe a partir da pré-
-adolescência, sendo rigorosa, sensível, possessiva e aquela que tenta manter seus filhos
permanentemente crianças.
Filha das águas ou o próprio mar, Iemanjá é portadora da vida, representando a materni-
dade universal, feminino fecundo, mãe dedicada e nutridora. Dona de uma sexualidade forte,
é vinculada a suntuosidade, sendo também vaidosa, alegre e graciosa. Sua personalidade
se apresenta altiva, irascível, geniosa e enérgica. Afeita a luxos e extremamente vaidosa,
Iemanjá quando manifestada em seus filhos de santo, ri e gargalha, dança rodopiando re-
presentando as ondas do mar. (SEIXAS, 2018).
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Percebe-se nas descrições sobre os vários atributos de Iemanjá que simbolicamente
sua morada nos mares pode ser associada às camadas profundas da psique, o que nos
lembra do sentido de Jung sobre o inconsciente coletivo. O mar simbolicamente é morada do
inconsciente. Força que vive no âmago de todas as pessoas, o arquétipo de Iemanjá pode
ajudar a psique a encontrar caminhos, construir e destruir estruturas que não servem mais.
Sendo assim, a deusa tem o poder da criação e da destruição, é fértil, mãe que cuida e que
alimenta, seu domínio são as águas, representação simbólica das emoções.
Iemanjá é uma palavra que pode ser lida de várias maneiras: Ye + omo + eja = mãe
dos filhos peixes ou Yèyé omo ejá = mãe cujos filhos são peixes. Dessa forma, reafirma-se
sua condição de orixá da água e, portanto, o campo das emoções (PARIZI, 2020).
OUTRAS SIMBOLOGIAS
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SIMBOLOGIA DAS ÁGUAS: MAR COMO SÍMBOLO DO INCONSCIENTE
A água é um elemento que pode ser entendido como três grandes simbologias: fonte da
vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Em diversas cosmogonias apresen-
ta-se como origem da vida, símbolo de fertilidade, pureza, sabedoria, graça, força, limpeza
e virtude, além de elemento de regeneração corporal e espiritual. (CHEVALIER, 2008).
Devido ao fato de ser considerada origem da criação, fonte de todas as coisas e ma-
nifestação do transcendente, a água pode ser interpretada como uma hierofania, ou seja,
uma manifestação reveladora do sagrado. Fonte de vida e de morte, criadora e destruidora,
apresenta-se, então, como um símbolo cosmogônico. Assim, a água tem propriedades cura-
tivas, purificadoras e regenerativas, sendo então considerada sagrada e capaz de conduzir
o ser humano ao eterno.
O mergulho na água tem o poder regenerador, operando um renascimento da psique,
já que ela também é ao mesmo tempo símbolo de vida e morte. Sendo símbolo da regene-
ração, a água batismal, por exemplo, propicia um novo nascimento, é então iniciadora de
uma nova trajetória. (Op. cit., 2008).
Símbolo das energias inconscientes, secretas e desconhecidas, a água pode também
representar os aspectos mais íntimos do ego como medo, descobertas e emoções.
Substância química fundamental para o surgimento e manutenção da vida terrestre,
cobrindo grande parte da superfície e presente em cerca de 70% do corpo humano, a água
é solvente universal, meio químico e simbólico da origem da vida, participando de uma
das principais operações alquímicas: a solutio. Em muitos textos a obra alquímica inteira
é resumida na frase “dissolve e coagula”. A operação solutio pertence ao elemento água,
onde deve-se transformar os sólidos em líquidos, através da dissolução através deste ele-
mento. O significado simbólico da dissolução refere-se ao retorno ao estado indiferenciado
original da matéria. Nesta alquimia psíquica considera-se a água como útero e a operação
solutio como retorno ao útero para fins de renascimento. Tal fato pode ser entendido como
uma descida ao inconsciente, o útero materno, onde nasce o ego humano. (EDINGER, 2006).
Sendo a solutio uma operação alquímica que envolve a água, poderemos ver na clínica
um extravasamento de choro ou alagamentos emocionais quando se usa alguma ferramenta
terapêutica, ou mesmo quando o cliente esbarra em algum gatilho emocional. Este trans-
bordamento é uma forma de lavagem das emoções represadas ou cristalizadas. A solutio
possibilita a dissolução desses aspectos psíquicos sólidos, estruturas endurecidas dentro
da psique que necessitam ser mudadas, dissolvidas na água e ressignificadas ou batizadas,
porém são estruturas de manejo e acesso difíceis. Dissolver aspectos antigos, velhos e inú-
teis remete ao ritual antigo de morte e renascimento que a água proporciona, pois somente
assim o ego pode abrir espaço para receber algo novo. Entretanto, o ego pode se ressentir,
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sofrer, recusar-se à mudança, dentro de uma dinâmica de medo e pânico, batalha inútil pois
as transformações são irrefutáveis. (GAETA, 2022).
A água é cíclica, plástica e mutável, semelhante aos seres humanos, que necessitam
mudar, transmutar, fazer e refazer sua própria existência.
Ao se considerar o fluxo das águas, os rios simbolicamente são interpretados como
fluidez das formas, morte, renovação e mudança constante, sendo o curso das águas a cor-
rente da vida e da morte. É importante destacar que os gregos antigos consideravam os rios
como objetos de culto, quase divinizados. Dessa forma, tipicamente considerados divindades
fertilizantes, os rios tinham o poder de submergir, irrigar ou inundar, e com a propriedade de
conduzir os barcos em sua superfície aquática ou afundá-los, suas sentenças eram quase
sempre misteriosas. (CHEVALIER, 2008).
Os rios podem simbolizar a existência humana e a sua rota como a sucessão dos
desejos, sentimentos, intenções e possibilidade de desvios. Assim, em tempos de cheias e
inundações podem simbolizar ameaças e destruição pela força das suas águas.
As águas salgadas dos mares simbolizam a dinâmica da vida. É o lugar dos nasci-
mentos, transformações e renascimentos, já que tudo sai dele e retorna a ele. Portanto, o
mar pode significar um estado transitório entre possibilidades indiferenciadas, ambivalência,
incerteza, dúvida, indecisão, que pode ter uma conclusão boa ou não. Entretanto, as águas
salgadas dos mares têm a capacidade de dar ou tirar a vida.
Mar e oceano são, graças as suas extensões quase que infinitas, imagens da indis-
tinção primeva, da indeterminação original. O simbolismo do oceano está atrelado ao da
água, entendida como origem da vida. “Quem atravessou o mar com seus tubarões e seus
demônios, com suas vagas aterrorizantes, tão difíceis de transpor… Diz-se que foi até o fim
do mundo e partiu para outro mais além”. Mares e oceanos, com suas águas salgadas são
elementos temidos, provenientes do início dos tempos, são muito antigos, incontroláveis,
amedrontando seres humanos vulneráveis frente a sua imensidão.
Iemanjá, senhora das águas, dona dos mares, com sua grandiosidade sem limites,
mãe universal e aquela que tem uma personalidade forte, emotiva, sensível, representante
do feminino profundo, rigorosa, obstinada, ciumenta e possessiva, podendo representar uma
face do arquétipo da grande mãe.
Segundo Jung, apud Jacobi (2017), os arquétipos são conteúdos que ordenam ele-
mentos psíquicos, formando o que se denomina imagens arquetípicas. Porém, só podem
ser reconhecidas pelos efeitos que produzem.
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Como se pode observar, conceituar a palavra é tarefa difícil, delicada e questionável,
já que é impossível definir exatamente o conceito deste termo. Seria, portanto, uma tarefa
arriscada já que ele representa um “profundo enigma que supera nossa capacidade de
apreensão racional”. (JACOBI, 2017).
Arquétipo, então, pode ser interpretado como um princípio imprescindível da estru-
turação psíquica, determinando o comportamento humano inconsciente. Tais padrões de
comportamento conferem aos seres vivos características próprias, sempre acompanhado
por um farto componente emocional. Outra apresentação fundamental do termo é que ele
agrupa aspectos positivos e negativos ao mesmo tempo, conferindo uma ambivalência pa-
radoxal. Porém, o que o “conteúdo arquetípico expressa é antes de tudo uma metáfora”, já
que o que ele abrange sempre se revela como um enigma, permanecendo desconhecido e
informulável. (NEUMANN, 2006; STEIN, 2006; JACOBI, 2017).
Os arquétipos são comuns a todos os povos e civilizações, ou seja, são universais e
constroem olhares diferentes sobre o mundo. Sendo assim, os orixás são “representações
coletivas de características arquetípicas”, representando a mitologia ioruba, com seus pa-
drões de comportamento e elementos próprios dessa cultura. Conclui-se, então, que o mito
ajuda os praticantes religiosos a se organizarem psiquicamente, já que os instrui através
dos arquétipos dos orixás. A vivência espiritual dos orixás proporciona ao ser que ali está
esclarecimentos sobre sua dinâmica psíquica, já que o conteúdo simbólico estabelecido
fornece chaves para transformações necessárias da alma. Assim, a mitologia iorubana,
compreendida no culto afro-brasileiro aos orixás oferece uma experiência particular e coletiva
de mitos vivos, já que a religiosidade está presente e atuante, representada nos cultos de
umbanda e candomblé no Brasil. (ZAGO, 2022).
Segundo Neumann (2006) o arquétipo da grande mãe reúne aspectos da mãe boa, mãe
terrível e mãe boa-má. Dentre as características da mãe boa podemos notar as seguintes
qualidades: gerar, liberar, aquecer, amparar, dar vida, parir, proteger, desenvolver, nutrir e
frutificar. Os atributos da mãe terrível seriam: rejeitar, privar, reter, fixar, aprisionar, diminuir,
desmembrar e morte. Acrescido a isso tem-se também abandono, isolamento, exílio, ins-
piração, êxtase, loucura, dissolução, inspiração e visão, aspectos inseridos numa face da
transformação espiritual humana.
Nesse contexto, a senhora Iemanjá classificada como” mãe de peixes”, “mãe dos
orixás”, revela seu aspecto maternal e fértil, doadora de vida, entretanto sendo também a
senhora do mar, local de nascimento e morte, dinâmica da vida, apresenta sua face ceifa-
dora e mortal. Além disso, pode-se depreender que a deusa pode ser considerada como um
arquétipo materno, já que em suas múltiplas faces apresenta-se como uma mãe nutridora
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e geradora da vida – a mãe boa, mas também com as características da mãe má quando
revela sua face terrível quando prende, segura, afoga e devora. (NEUMANN, 2006).
Parizi diz: “Iemanjá, dona dos mares e das cabeças. Yemoja - Yémánjá senhora das
águas salgadas, mãe da criação e do mar, mãe de todos os deuses e todos os homens, se-
nhora das cabeças, portanto, senhora da sanidade mental e da loucura”. Como é uma orixá
vinculada à criação primordial, é IAORI, “tudo o que diz respeito à cabeça está sob regência
de Iemanjá”. É quem lidera os rituais de “bori”, onde se “dá de comer” ao ori (cabeça) nos
rituais religiosos do candomblé. (PARIZI, 2020).
No itan “IEMANJÁ CURA OXALÁ E GANHA O PODER SOBRE AS CABEÇAS”, são
observadas referências a diversos postos ou trabalhos que os orixás recebem de Olodumare
quando este faz o mundo. À Exu dá o poder da comunicação e a propriedade das encruzi-
lhadas. Ogum recebe o poder da forja, a chefia das guerras e a soberania dos caminhos.
Oxóssi recebe a posse sobre a caça e a fartura. Obaluaê tem o controle das epidemias.
Oxumarê ganha o arco-íris e comanda as chuvas que permite boas colheitas e repele a fome.
Xangô tem o poder do trovão e a autoridade da lei. Oiá-Iansã ficou com o raio e o reino dos
mortos. Já Euá foi governar os cemitérios. Oxum fica com a feminilidade, riqueza material
e fertilidade das mulheres. Obá ganha o comando sobre a família e Nanã a sabedoria dos
mais velhos e a lama primordial com que Obatalá modela os homens. Oxalá fica com o
privilégio de criar o homem, depois que Odudua cria o mundo. Tudo foi completado com o
poder de Oxaguiã que inventa a arte de fazer utensílios e a cultura material. Iemanjá ganhou
o posto de cuidar de Oxalá, da sua casa, dos filhos, da comida, do marido. Sendo assim,
Iemanjá sente-se sobrecarregada com todas as tarefas domésticas, se incomodando com
esse trabalho muito servil e, então, torna-se uma mulher que reclama de tudo. Ela percebe
que todos os outros orixás tinham um trabalho ou posto, e por isto recebendo homenagens
e sacrifícios, com exceção dela própria. Ensaia, então, questionamentos sobre o seu traba-
lho escravo em casa. Inconformada falou, falou e falou nos ouvidos de Oxalá. Este então
enlouqueceu de tanto falatório de Iemanjá, ou seja, seu ori não suportou tal pressão da parte
da deusa. Percebendo sua falha e o mal que provocou, ela prontamente cuidou de Oxalá
até sua total recuperação, sendo amorosa e dedicada nos cuidados com o doente. Depois
de totalmente restabelecido, Oxalá reconhece o poder de Iemenjá e com o consentimento
de Olodumaré, encarrega Iemanjá de cuidar do ori de todos os mortais. (PRANDI, 2001).
Observa-se do mesmo autor no itan “IEMANJÁ É NOMEADA PROTETORA DAS
CABEÇAS”, que Olodumaré a nomeia como protetora das cabeças quando somente ela o
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presenteia e justamente com uma cabeça de carneiro. Sendo assim, ele declara: “awoyó
orí dorí re” (cabeça trazes, cabeça serás).
A cabeça é um dos símbolos da racionalidade, onde se atribui certas funções de au-
toridade como: instruir, governar e ordenar. Além disso, pode ser tratado como liderança e
comando. Platão compara a cabeça humana com o universo ou microcosmo, pelo formato
esférico. É também considerada símbolo da perfeição, do sol e da divindade. Já a cabeça
de carneiro é associada a Áries (signo zodiacal), este é ligado à impulsividade, obstinação,
o que pode conduzir a uma obsessão. Além de carregar em si o simbolismo de impulso,
virilidade, independência, coragem, potência, força ígnea que pode criar e destruir, cego e
rebelde, generoso e sublime, caótico e prolixo. (CHEVALIER, 2011).
Iemanjá, com sua personalidade forte, autoritária, obstinada, impulsiva e independente,
instrui, governa e ordena as cabeças de seus filhos de santo. Podendo ser considerada um
arquétipo organizador ou desorganizador da saúde mental, já que abrange em seu conteúdo
as faces da mãe boa-má.
Curiosamente, Iemanjá é sincretizada no catolicismo com Nossa Senhora da Cabeça,
onde se observa nas súplicas de sua oração, orientação para que “não permitais que minha
pobre cabeça seja atormentada por males que me perturbem a tranquilidade da vida”, cla-
ramente um desejo de ordenação da saúde psíquica.
ORI
Sendo Iemanjá considerada a “dona das cabeças”, é necessário fazer-se uma reflexão
sobre o significado da palavra orí. Entende-se que tal termo pode ser compreendido como
uma designação iorubana dada à cabeça física. Sendo que, segundo Babatundé Lawal,
apud Beniste (1997):
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Logo, o ori comporta todo o axé de uma pessoa, que, ao nascer, geralmente vem ao
mundo através da cabeça. Assim, abre o caminho para trazer o resto do corpo, sendo a
sede da consciência, das ideias, opiniões, emoções e sofrimentos, e ligado ao destino e à
sorte. (PARIZI, 2020).
A cabeça ou ori, pode, então, significar o eixo ego-self, equilíbrio entre o mundo interior
e o mundo exterior. Ligação do humano com o sagrado, o ori enquanto centelha divina pode
proporcionar uma ligação genuína com o self, através da “mãe das cabeças” – Iemanjá.
Segundo PARIZI, ori é ao mesmo tempo a cabeça física (Ori Odé: denominação da
cabeça biológica, que filosoficamente pode ser considerada como matéria, sendo mortal
em oposição a Orí inú), a cabeça interna (Ori Inu: considerado o ser interior ou espiritual do
homem e é imortal), e por fim, um Orixá. Portanto, Orí inú (cabeça espiritual) controla Orí
odé (cabeça física): é aqui onde a filosofia iorubana tangencia a psicologia, pois afirma que
o sucesso de alguém se subordina a sua personalidade e seu comportamento. Conclui-se,
então, que de nada adianta o axé dos orixás se o orí não o aceitar, e não adianta um bom
ori se o comportamento humano não for adequado. Nos rituais tradicionais iorubanos, orí
é um conceito e, ao mesmo tempo, orixá fundamental e central. Profundamente ligado ao
caráter da pessoa, é, simultaneamente, o âmago de cada pessoa, principal norte, é aquele
que define cada ser antes da sua encarnação terrena e guia permanente durante toda a
vida. (BENISTE, 1997).
Quando as forças divinas determinam a escolha do Ori, esse se torna símbolo do su-
cesso ou fracasso na vida, porém a escolha de um bom Ori (Orí rere) significa tão somente
um potencial para vencer e não garantia de sucesso. É necessário o trabalho pessoal, duro
e consistente para transformar a possibilidade em sucesso real. Aos que possuem um mau
Orí ou Orí buruku, a esperança consiste em trabalho árduo em conjunto as oferendas (consi-
deradas um elemento de reparação dos defeitos pessoais dentro da religiosidade iorubana).
CONCLUSÃO
Sendo Iemanjá a senhora e regente das águas, símbolo da fonte da vida, é considerada
uma personagem mitológica arquetípica da grande mãe, com presença forte, altiva, irascível,
geniosa e enérgica. No Brasil, ganha diversas denominações populares, quase sempre com
referência ao seu lugar de poder: o mar. Nesse sentido, a Iemanjá brasileira é fruto sincrético
indígena, africana e cristã, sendo, então, identificada com diversas santas católicas.
Observa-se em sua mitologia que a Senhora das Águas tem características de mãe
universal, já que ora pare a maior parte dos orixás e ora é considerada mãe dos homens.
Filha de Olokum, seu pai-mãe que mora no mar, a deidade de todas as águas, têm a
maternidade como sua maior característica, colocando no mundo muitos dos orixás que
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compõem o panteão iorubano, com seios fartos e nutridores capazes de alimentar a todos.
Portadora da vida, Iemanjá representa a maternidade universal, feminino fecundo, mãe
dedicada e nutridora.
A palavra iemanjá pode ser interpretada como a “mãe cujos filhos são peixes”, afir-
mando sua origem como orixá das águas, que é seu local de força e, por consequência,
campo das emoções.
O elemento água é a maior simbologia da grande mãe Iemanjá, possuindo diversifi-
cadas representações: fonte da vida, meio de purificação e centro de regenerador. Sendo
considerada origem da criação, fonte de todas as coisas e manifestação do transcendente,
a água é fonte de vida e morte, criadora e destruidora e um símbolo da criação do univer-
so. No batismo é considerada um meio de regeneração, possibilitando renovação e pos-
sibilidade de uma nova trajetória. A principal simbologia da água é o campo das energias
inconscientes, podendo representar muitos aspectos íntimos do ser humano como medo,
emoções, sensibilidade, intuição e fantasia.
Substância primordial para manutenção da vida no planeta terra, a água é o principal
meio para a operação alquímica da solutio. Seu significado simbólico é a dissolução, e atra-
vés do elemento aquoso, das estruturas psíquicas endurecidas ou cristalizadas que podem
então ser eliminadas na água e ressignificadas. Sendo assim, a experiência psíquica da
solutio é a possibilidade de retornar a antigos rituais de morte e renascimento simbólicos
proporcionado pela água, para que, a partir desta oportunidade, seja possível criar espaços
para que o ego receba algo novo e diferenciado para sua evolução.
A partir das considerações apresentadas neste artigo, é possível pensar Iemanjá, a
Senhora do Mar, como uma face do arquétipo da grande mãe, já que ela apresenta os as-
pectos fundamentais tais como a representação coletiva de característica arquetípica dentro
da mitologia ioruba, agrupando facetas de natureza positivas e negativas ao mesmo tempo,
construindo a ambivalência paradoxal que é particular das figuras arquetípicas. Sendo as-
sim, é possível pensar em uma estruturação psíquica tanto aos seus filhos de santo quanto
aqueles que estão dentro da clínica analítica, uma vez que o arquétipo abarca as dimensões
do humano, tanto se manifestando dentro dos lugares de culto, como na clínica e vida.
Em sua face materna, Iemanjá é aquela que coloca no mundo diversos orixás, repre-
sentando o aspecto típico das mães: nutridora, com seus seios grandes e fartos, oferecendo
alimento emocional e psíquico, assim possibilitando cuidar das dependências e carências
emocionais para que o indivíduo se sinta feliz e amado. É acolhedora ao oferecer refúgio,
abrigo, proteção e conforto emocional no seu colo maternal, facilitando o desenvolvimento
psicoemocional. Todo indivíduo necessita, desde o nascimento, suporte adequado para
seu desenvolvimento psíquico, sendo assim, Iemanjá como a face do arquétipo da grande
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mãe, possibilita o desenvolvimento emocional, afetivo, relacional, psíquico e cognitivo, já
que as vivências no terreiro, na vida, na clínica ou nas suas mitologias e contos oferecem
ferramentas de suporte para esse acontecimento.
Nesse contexto, Dona Iemanjá, classificada como” mãe de peixes”, “mãe dos orixás”,
revela seu aspecto maternal e fértil, doadora de vida. Sendo a senhora do mar, local de
nascimento e morte, dinâmica da vida, apresenta também a face terrível, ceifadora e mortal,
o outro lado polarizado característico do arquétipo. Assim, ela pode privar seus filhos, di-
minuindo ou impossibilitando o desenvolvimento psíquico adequado, gerando dependência
emocional, física e psíquica. Outros aspectos da mãe terrível também podem se apresentar:
rejeição, aprisionamento, desmembramento e morte. A expressão “calunga”, termo que
se origina a partir do quimbundo ka’lunga, que significa mar, imensidão ou grandeza, faz
referência a casa de Iemanjá, pode ser considerado um grande cemitério, já que também
é lugar de morte. Em vista disso, depreende-se que através dos contos, itans, vivências
e sonhos, existe a possibilidade de entendimento ou aceitação das expressões negativas
metafóricas da face má do arquétipo de Iemanjá, refletido nos aspectos pessoais daqueles
que estão em psicoterapia.
É também considerada “dona das cabeças” ou do ori, portando senhora da sanida-
de mental e da loucura. Sendo uma deidade relacionada à criação primordial então tudo
o que se fala ou faz sobre o ori, no mundo espiritual do candomblé, está sob o comando
de Iemanjá. É nomeada protetora da cabeça, palavra relacionada simbolicamente à racio-
nalidade, governança, instrução, ordenação, liderança e comando, confirmando o vínculo
da Senhora das Águas com a importância física, mental e espiritual dessa parte do corpo
humano, que também é considerada o local que abriga a personalidade, o destino e que
também facilita a conexão espiritual.
Sendo assim Iemanjá pode ser considerada, de maneira simbólica, como uma or-
denadora psíquica, sendo sua mitologia e mitologema, representada nos vários itans ou
contos, uma ferramenta interessante para que os dramas inconscientes possam ser mais
bem compreendidos.
A maneira de se relacionar com o divino é de suma importância para os seres huma-
nos, já que tal fato pode ser uma poderosa fonte na busca por respostas dos anseios mais
íntimos, a vivência simbólica é vital para o equilíbrio psíquico do indivíduo e da coletividade.
Sendo ordenadora psíquica, a manifestação arquetípica de Iemanjá, na psique e como
forma de amplificação clínica, pode trazer organização na saúde mental como um todo,
já que dentro das suas múltiplas facetas, ajuda a “assentar” desejos, aptidões, ambições,
emoções e ideias, fatores primordiais para que a saúde mental dos indivíduos esteja em or-
dem. Senhora do mundo emocional, das águas psíquicas, guardiã do inconsciente, pois seu
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elemento principal é a água, Iemanjá cuida do ori, das cabeças, que é sede da personalidade,
do destino e facilitador da conexão espiritual, proporcionando qualidade de vida, bem estar
bio-psico-social, podendo, assim, evitar o desencadeamento de doenças psíquicas diversas.
Agradecimentos
REFERÊNCIAS
PARIZI, V. G. O livro dos orixás: África e Brasil. Porto Alegre: Editora Fi, 2020.
PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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ZACHARIAS, J. J. M. Ori Axé, a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor,
1998.
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10
Importância e satisfação em relação ao
marketing mix: um estudo no varejo de
moda feminina
Rejane Becker
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Sul - IFRS
'10.37885/230212126
RESUMO
1 O IBGE, na Pesquisa Mensal do Comércio (PMC), segmenta os dados do varejo brasileiro em dois grandes grupos: Varejo Restrito
e Varejo Ampliado. O varejo ampliado inclui, além de todo o varejo restrito, as concessionárias de veículos e as lojas de material de
construção.
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Neste contexto, o artigo visa analisar a opinião das consumidoras quanto aos níveis
de importância e satisfação em relação às variáveis do marketing mix do varejo de moda
feminina, num município do Alto Uruguai Gaúcho.
Após esta introdução, o artigo está estruturado da seguinte forma: revisão de lite-
ratura, metodologia, apresentação e discussão dos resultados, considerações finais e
pesquisas futuras.
MÉTODOS
Classificação da Pesquisa
Amostragem
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quando se interceptam dão origem a quatro áreas ou quadrantes com as seguintes nomen-
claturas: (1) região de excesso; (2) região aprimorada; (3) região a aprimorar; (4) região
urgência. A região (1) de excesso apresenta atributos com desempenho muito melhores do
que o necessário, pelo fato de que as consumidoras consideram pouco importante e estão
muito satisfeitas. A região (2) é considerada apropriada e está posicionada acima da fronteira
mínima de desempenho. Na região (3) “a aprimorar”, qualquer critério de desempenho que
estiver classificado nesta região é candidato ao aprimoramento, localizado abaixo da frontei-
ra mínima de desempenho. A região urgência (4) apresenta os atributos com desempenho
crítico, devido a alta importância conferida a eles pelas consumidoras e ao baixo nível de
satisfação apresentado (Figura 1).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização da Amostra
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Análise da Importância e Satisfação das variáveis do marketing mix do varejo de moda
feminina
Produto
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Tabela 1. Importância e Satisfação dos Atributos da Variável Produto.
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Preço
Para Kotler e Armstrong (2010), preço é a quantia em dinheiro que se cobra por um
produto ou serviço. Quando os consumidores compram um produto, eles permutam algo de
valor (o preço) por outra coisa de valor (os benefícios de obter ou utilizar o produto). Os dados
da Tab. 2 apontam que 90,9% das consumidoras consideram importante o preço do produto;
92,6 consideram os descontos e em média 83% consideram importantes as condições de
pagamento, etiquetas nos produtos e prazos de pagamento. Os dados da pesquisa indi-
cam que a variável preço do produto apresenta o menor percentual de satisfação dentre as
variáveis do marketing mix analisadas, e em todos os atributos do preço, o percentual de
satisfação é menor que o percentual de importância (Tab. 2).
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Figura 3. Mapa de posicionamento de importância e satisfação dos atributos da variável preço.
Comunicação
A comunicação é a atividade humana que liga duas ou mais pessoas, com a finalida-
de de compartilhar informações e significados (URBAN; URBAN, 2011). Para alcançar os
objetivos de comunicação as empresas devem selecionar seu composto de comunicação,
que envolve: propaganda, promoção de vendas, venda pessoal, marketing direto, relações
públicas (KOTLER; ARMSTRONG, 2010). Nesta pesquisa, a promoção de vendas foi con-
siderada importante por 88,5% dos entrevistados, seguida da propaganda, com 77,2%.
Entretanto, os percentuais de satisfação estão em todos os atributos abaixo dos percentuais
de importância, o que exige um repenssar estratégico por parte das empresas do varejo de
moda feminina sobre a comunicação (Tab. 3).
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mais suas ofertas, considerando a viabilidade e uso alternativo de mídias. O movimento de
migração da comunicação pela internet, com o advento das redes sociais, já notório, irre-
versível e foi acelerado durante a pandemia do Covid-19. Na região a aprimorar estão os
atributos: divulgação em outdoor, divulgação por catálogos, ligações telefônicas, e-mail e
redes sociais. As empresas precisam investir mais em marketing digital, que é uma das gran-
des tendências de transformação no varejo (DOCUSING, 2021). Uma alternativa emergente
em termos de comunicação é investir no marketing verde e sustentável. O desenvolvimento
de programas de marketing interativo nas redes sociais, que visam engajar consumidores
em estilos de vida sustentáveis, pode ser uma prática significativa para fornecer informa-
ções econômicas, sociais e ambientais (CASTRO; CARVALHO; ARAÚJO, 2023; KUMAR,
RAHMAN; KAZMI, 2013).
Na região de urgência ficaram os atributos: divulgação por mala direta e desfiles de
moda. O desfile de moda é o mais crítico, pois indica que as consumidoras consideram muito
importante esse atributo, mas há alto percentual de insatisfação, pois as lojas dificilmente
realizam desfiles de moda (Fig. 4).
Uma das decisões mais importante quanto à distribuição dos produtos é a escolha do
ponto de venda (CHURCHILL; PETER, 2010). Os autores sugerem a ideia que ao localizar
suas lojas os varejistas consideram quantos consumidores potenciais estarão situados
nas proximidades e a presença de concorrentes nas imediações, o que pode representar
uma vantagem para a venda físcia de produtos para os quais os consumidores prefiram
uma ampla escolha. A localização é considerada importante para 90% das entrevistadas.
Também são importantes, a acessibilidade e o estacionamento. Quanto ao ponto de venda
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as consumidoras julgaram importante os atributos: higiene e limpeza, espaço físico, layout
das lojas e conforto interno. Varotto (2018) aponta que no contexto da modernização do
varejo, o ambiente físico ou a atmosfera da loja passam a ser reconhecidos como variáveis
fundamentais para a imagem que o varejista busca criar para o negócio. Para Mattar (2019),
a localização do ponto de venda é uma das decisões mais importantes para o varejo físi-
co. A distribuição online também tem se tornado uma alternativa, abrindo possibilidades de
novos clientes e maiores margens de lucro. Os atributos com maior percentual de satisfa-
ção são a higiene e limpeza, a localização; com menores percentuais de satisfação estão o
estacionamento, a acessibilidade e o conforto. (Tab. 4).
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nos atributos da região urgência e a aprimorar, pois o baixo nível de satisfação pode estar
comprometendo o desempenho das lojas. (Fig. 5).
Neste contexto, abrem-se oportunidade para o e-commerce, com investimentos em
automação, tecnologia e inteligência digital, como forma de ampliar o mercado de vendas,
conquistar e fidelizar novos clientes.
Figura 5. Mapa de posicionamento de importância e satisfação dos atributos da variável Localização e Apresentação do
Ponto de Venda.
Atendimento e Capacitação
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Tabela 5. Importância e satisfação dos atributos da variável atendimento e capacitação.
Figura 6. Mapa de posicionamento de importância e satisfação dos atributos das variáveis atendimento e capacitação.
CONCLUSÃO
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variável produto os atributos que obtiveram maior percentual de importância foram conforto,
qualidade, design e diversidade de produto. Esses atributos tiveram níves de satisfação entre
60% e 55%, e a maioria dos atributos encontram-se nas regiões de aprimoramento ou de
urgência no mapa de posicionamento, como é o caso da inovação e do design. Com relação
ao preço, os atributos que obtiveram de importância foram os descontos e preços efetivos
dos produtos, os quais obtiveram níveis de satisfação em média de 30, estando os mesmos
na região de urgência no estudo do mapa de posicionamento. Na variável comunicação, os
atributos de maior importância são promoção de vendas e divulgação, porém, esses atributos
apresentam níveis de satisfação em torno de 50% e 60%. Respectivamente. Apesar dos
percentuais de importância da variável comunicação se apresentarem menores que os das
demais variáveis, verifica-se que a maior parte dos atributos relacionados à comunicação
encontram-se na região de urgência no mapa de posicionamento. Quanto à variável ponto
de venda, verificou-se que os atributos mais importantes são a higiene e limpeza, vitrines e
conforto (93,8%), sendo a satisfação avaliada entre 70 e 60% para os primeiros atributos,
mas somente 40% em relação ao conforto. Fica evidenciada fica a necessidade de melhoria
nessas variáveis, pois a maior parte dos atributos encontra-se na região de urgência no mapa
de posicionamento. As variáveis atendimento e capacitação, os atributos cortesia, capaci-
tação técnica, agilidade no atendimento, receptividade, apresentação do uniforme e horário
de atendimento foram considerados importantes, mas também verificou-se que o grau de
satisfação está entre 30 e 55%. No mapa de posicionamento, os atributos de atendimento e
capacitação estão na região de urgência, com exceção de apresentação dos funcionários.
Constata-se que as variáveis mais importantes do composto de marketing do varejo
de moda feminina, na região do estudo, são o atendimento e capacitação das pessoas, o
preço, ponto de venda e produtos. A comunicação foi julgada com menores percentuais de
importância, entretanto é uma variável estratégia para a divulgação e venda de produtos.
Constatou-se a partir dos mapas perceptuais que os atributos das variáveis consideradas
mais importantes do marketing mix encontram-se na região de urgência, o que permite
inferir a necessidade de redirecionamento no marketing de varejo de moda feminina na
região de estudo.
A principal limitação deste estudo decorre de a pesquisa ser do tipo exploratória, da
pesquisa decorre do fato de ser uma pesquisa de ser estudo de caso único, cujas análises
não podem ser generalizadas. Entretanto, acredita-se que as contribuições reveladas no
presente trabalho possam servir de base para desenvolvimento de pesquisas futuras, bem
como para o incremento de ações empresariais.
Pesquisa futuras podem aprofundar o estudo dos atributos do marketing mix do varejo
de moda, como produtos sustentáveis e o marketing digital. A indústria da moda é uma das
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mais poluente do mundo, causando grandes impactos ambientais. Com as consumidoras
de moda cada vez mais informadas, o consumo mais sustentável de produtos com menor
pegada ambiental está em crescimento, e estudos que aprofundem esses aspectos são
fundamentais para embasar as estratégias empresariais. Também, as lojas têm combinado
estratégias físicas e digitais para potencializar as vendas e manter o engajamento de seu
público-alvo, como investir em promoções, promover um atendimento online de excelência e
um ambiente (físico e virtual) acolhedor e com acessibilidade. Estudos futuros podem estudar
as estratégias de marketing digital, incluindo o aprofundando do e-commerce, marketplaces,
redes sociais por serem estratégias de relevância para atuação do varejo no mundo digital
da moda feminina.
Considerando-se ainda o crescente interesse para questões ligadas à ESG (Governança
ambiental, social e corporativa), sugere-se que outras pesquisas aplicadas ao varejo de
moda feminina sejam realizadas para identificar variáveis e atributos do marketing mix que
estão sendo implementados pelas empresas com vistas à sustentabilidade. Tais estudos
podem contribuir para divulgar estratégias empresariais sustentáveis e a concretização dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), em especial no que tange à Produção
e Consumo Sustentáveis (ODS12).
Agradecimentos
REFERÊNCIAS
CASTRO, P.; CARVALHO, B.; ARAUJO, C. Marketing Sustentável no Varejo: Uma Revisão
Sistemática da Literatura . Revista Interdisciplinar De Marketing, v.13, n.1, p.1-18, 2023.
https://doi.org/10.4025/rimar.v13i1.65934
CHO, D., & TRINCIA, B. The Future of Retail: From Revenue Generator to R&D Engine.
Rotman School of Management/UOT. Publication Date: Jan 01, 2012. Disponível em: http://
hbr.org/product/the-future-of-retail-from- revenue-generator-to-r-d-engine/an/ROT160-PD-
F-ENG. Acesso em: 14/02/16
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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DELOITTE (2019). Global Powers of Retailing 2019. Disponível em: https://www2.deloitte.
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Mães contemporâneas e o declínio do
mito do amor materno
'10.37885/230212154
RESUMO
O que quer uma mãe? Essa pergunta sempre esteve atrelada ao mito do amor ma-
terno, no qual o amor incondicional se revela como o signo de ser mãe. No entanto, a mãe,
designada como personagem principal para a formação subjetiva da criança, é, também,
uma mulher que se coloca, portanto, em uma posição de desejo. Entre mãe e mulher, des-
tacam-se posições distintas, as quais nos revelam que ser mulher não é expressão direta de
ser mãe. Nossa questão neste artigo se ampara em tal ficção, que percorreu, durante muito
tempo, o imaginário social impondo à mulher a presença de um instinto maternal inerente
ao seu ser como sujeito (BADINTER, 1985) e como tal imposição, na atualidade, traz efeitos
para a subjetividade da mulher-mãe.
As redes virtuais oferecem informação de experiências trocadas por várias mulheres
que vivem o momento da maternidade. Todavia, em sua maioria, o que se transmite, nesses
veículos de comunicação, são modelos universalizantes desse momento, o que embaraça,
sobremaneira, o modo singular de cada mãe encontrar sua saída frente à maternidade.
Observamos, nessas trocas de informações da rede, que, para além de ser uma busca de
um ideal do que seja a maternidade, termina por ser uma exigência de tudo absorver para
seguir esse ideal, o que se revela como uma imposição.
Buscaremos, então, elucidar como as imposições acerca da maternidade apoderam-
-se das mulheres de modo que o desejo pessoal de cada uma em ter ou não um filho fica
em segundo plano, interferindo na maneira como a mulher-mãe vai construir para ela esse
lugar. Para tal intento, iniciaremos tratando sobre o mito do amor materno e como esse mito
atrelou à mulher uma posição materna muitas vezes ambivalente e angustiante.
MÉTODO
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se paute no discurso enquanto analisante. Nessa perspectiva, o pesquisador é concebido
como parte fundamental do acesso à hipótese do inconsciente, participando ativamente das
construções de evidências clínicas a partir do encontro ímpar com o seu objeto de estudo.
RESULTADOS
Na atualidade, fica-nos evidenciado que o mito do amor materno como instintivo a toda
mulher não se sustenta mais. A Psicanálise contribuiu para esse entendimento ao retirar o
peso do universal da maternidade sobre as mulheres e ao revelar a função materna como
uma experiência de cada mulher. A maternidade, como função, distancia a mulher da posição
instintual ligada à mãe. Do mesmo modo, permite evidenciar uma inversão de sentimentos
sobre a maternidade, que se deslocam entre a felicidade e a dificuldade em ser mãe. Esse
deslocamento nos orienta no entendimento de que, para se falar de maternidade, é preciso
ouvir o particular de cada mulher.
Neste percurso realizado entre mãe-mulher, fica-nos como insígnia dessa construção
o que pergunta Soler (2005, p. 93): seria o “amor materno” uma expressão vã? Certamente
que não. Ela responde e continua: trata-se de que, ao falar de amor, “como qualquer amor,
ele é estruturado pela fantasia”. Desse modo, com o mito do amor materno em sua posição
universalizante, é imprescindível fazer um deslocamento ao singular da fantasia materna, a
fim de que cada mulher possa dizer sobre sua maternidade. Mais uma vez, é o que de cada
uma mulher é preciso construir para que ela possa viver sua relação com a maternidade.
Frente às imposições do social à mulher-mãe, é necessário se distanciar do Outro social
para que cada mulher possa construir sua própria posição do que é ser mãe. Consideramos
que esse espaço de circulação da palavra e de escuta por profissionais capacitados possa
ser uma saída para essas mulheres construírem o significante que oriente para elas o que é
ser mãe. A partir do reconhecimento de um significante que diga de cada mulher-mãe, seu
desafio passa a ser lidar com seu filho e com as perspectivas subjetivas de transmissão de
uma posição de sujeito desejante.
DISCUSSÃO
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cuidados da criança como nos dias de hoje. Isso porque o papel da mulher na família se
assemelhava ao da criança, ao passo que a mãe não ocupava a posição de autoridade no
núcleo familiar, diferente do marido, para quem era reservado o papel central de autoridade
e poder (BADINTER, 1985).
Nessa conjuntura, as mães não eram vistas como cuidadoras por excelência e seus
filhos não dependiam de sua tutela, seja ela de ordem biológica – atrelada à higienização
e alimentação – ou subjetiva – voltada à demonstração de afetos, educação, atenção etc.
Uma vez que não havia uma diferença no que concerne ao que era do adulto e da criança,
o que ocorria era assemelhar esta a um pequeno adulto. Com frequência, as famílias que
possuíam menos recursos e um número maior de filhos os retiravam de casa com dez anos
ou menos. Filhos de famílias nobres eram amamentados por amas de leite ou enviados para
orfanatos além de ser comum que essas crianças fossem substituídas por filhos mais novos
(KNIBIEHLER, 2012). Tais costumes e arranjos familiares do Antigo Regime presentes na
Europa contribuíram para a alta mortalidade infantil dado que os pais não exerciam grande
cuidado e controle sobre as atividades das crianças (MOURA; ARAÚJO, 2004).
Somente no século XVIII, foram constatadas mudanças efetivas na dinâmica familiar
(ARIÈS, 1981). Dentre essas mudanças, podemos citar a valorização da infância e do lugar
da criança na família em que esta começa a ser tratada como menino-rei. A partir desse
novo olhar, a escolarização se tornou parte da vida das crianças quando um número maior
delas passou a frequentar a escola. Da mesma forma, a partir desses avanços, adveio uma
mudança fundamental no interior das famílias. Nesse contexto, o amor materno conquistou
um novo espaço no núcleo familiar, tornando-se tão expressivo quanto a autoridade paterna
e contribuindo, também, para uma mudança no exercício dos papéis familiares (BADINTER,
1985; MOURA; ARAÚJO, 2004).
Além do mais, no campo social, os médicos, por meio da autoridade exercida pelos seus
saberes, passaram a influenciar os modos de vida e o relacionamento entre mãe e filho, uma
vez que reforçavam a necessidade de a mãe ser cuidadora por excelência – como se esse
fosse o seu papel natural e um desejo inato, já que todas as mulheres tinham a capacidade
de dar à luz e amamentar. Da mesma maneira, o discurso de autoridade da equipe médica
retirava das mulheres a autonomia sobre as escolhas relativas aos cuidados das crianças.
Sendo assim, a mulher exercia o seu suposto papel de cuidadora dos filhos, mas se sub-
metendo às normas e prescrições médicas. Nota-se, portanto, que a autonomia da mulher,
tanto no seio familiar quanto no campo social, não foi valorizada ao longo desse século.
Nesse momento, afirmam Moura e Araújo (2004), o movimento higienista tomou força
e a disseminação dos seus ideais era feita, principalmente, por médicos em aliança com a
família, visando a um fortalecimento do sistema econômico vigente. Segundo Badinter (1985),
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esse período foi marcado pela exaltação do amor materno fazendo com que este fosse visto
como intrínseco e instintivo a toda mulher. Esse cenário denuncia a sobrecarga que as mu-
lheres enfrentam na maternidade, porque se encontram permeadas por responsabilidades
e cobranças para o exercício dos seus papéis sociais, o que impõe grande desenvoltura e
desempenho para conciliar múltiplos papéis e tarefas. Esses acontecimentos contribuíram,
pois, para a crença no instinto materno como inato à mulher, os quais não se deram sem
consequências para a vida da mulher-mãe.
Observa-se, portanto, que o papel destinado à mulher passou por tais mudanças ao
longo dos séculos e no século XVIII se atrelou à maternidade, dados os avanços na medicina,
que cooperaram para centralizar a mãe no papel de cuidadora, somados às capacidades
biológicas das mulheres de dar à luz e amamentar, concorrendo para a exaltação do mito
do amor materno sob a ótica do cuidado.
No contexto atual, entretanto, esse panorama foi permeado por problematizações
acerca do papel da mulher em nossa cultura. O conhecimento e o domínio sobre o próprio
corpo, os desejos pessoais e intransferíveis bem como os direitos sociais de cada mulher
são pontos a serem levantados para uma discussão contemporânea acerca do que querem
as mulheres, de modo que estas possam falar sobre si mesmas, das suas vivências com
o feminino e do espaço que a maternidade ocupa ou não em suas vidas. Somente a partir
desse olhar e considerando tais atravessamentos na história de cada uma é que podemos
compreender que o tornar-se mãe não é um desejo inato de todas as mulheres.
Diante disso, a Psicanálise vem marcar sua participação ao mostrar a maternidade
como uma função simbólica inscrita no campo da linguagem e que revela um novo modo de
a mulher se posicionar frente ao outro. Esse novo modo de ver o lugar da mulher-mãe como
função se distancia, então, do que se pensava sobre as mulheres no passado. Esse avan-
ço no modo de ver a mãe a retira de uma posição biológica para buscar seu entendimento
subjetivo; ou seja, nascer mulher não é prerrogativa para ser mãe. Com essa afirmação, fica
claro que o mito do amor materno, na atualidade, não se sustenta para definir o que é uma
mãe. É por analisar as experiências da maternidade como singulares que a Psicanálise vem
retirar da mulher o peso do universal do ser mãe em nossa cultura de maneira a possibilitar
uma linha de fuga ao que “toda mãe deve ser”.
Porém, há, por parte das mulheres no contexto atual, uma procura por sites e blogs
que poderiam orientá-las quanto ao momento da maternidade. O que podemos perceber
é que as informações que poderiam auxiliá-las, são as mesmas que podem comprometer
essa construção particular materna. Conforme pontua Zucchi (2017, p. 54): “A singularidade
da construção entre mãe e criança está de saída, não modelada, mas hiperdeterminada.
Escapar disso é fracassar”. Assim, ficar presa às imposições sociais propostas pela mídia
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dificulta para a mulher construir o que é da ordem do materno. Essa é uma construção que
cada mulher precisa se apropriar para se separar de uma posição universalizante e construir,
a partir de então, uma solução particular para a maternidade.
O tornar-se mãe
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É o desejo de cada mulher que singulariza sua experiência de ser mãe. Tal desejo
é anteriormente marcado por atravessamentos acerca do contexto em que a mulher viveu
e vive atualmente, das condições socioeconômicas, do funcionamento de seu organismo,
das queixas e angústias pessoais etc. (PICCININI et al., 2008). Segundo os autores, algu-
mas mulheres podem enxergar a gravidez como uma realização pessoal, enquanto outras
podem considerar o processo mais penoso e angustiante do que aquelas, e, na maior parte
das vezes, ambos os sentimentos estão presentes na gestação. O caso a caso vem marcar
a importância do desejo da mulher na sua experiência idiossincrática com a maternidade,
o que nos leva a pensar na Psicanálise como uma teoria que prioriza, em seus estudos e
pesquisas, o particular de cada sujeito e que não se furta a pesquisar o interesse particular
de cada mulher pelo seu processo de tornar-se mãe, gestar e parir em detrimento dos im-
perativos socioculturais.
Maternidade e psicanálise
Entendemos que o que é do campo da função materna irá nos distanciar desta posição
instintual ligada à mãe ao longo do tempo. Quando nos referimos ao que é da ordem da
função, utilizando o saber da Psicanálise, é preciso destacar, tal como nos dizem Calzavara
e Ferreira (2019, p. 436), que, “em Psicanálise, o que está em jogo não é a mãe real, que
expressa seus sentimentos, cuidados e devoções pelo filho, mas sim a mãe que faz parte de
uma estrutura, que se revela como função e que se apresenta na ordem de uma transmissão”.
A mãe, na medida em que é o primeiro objeto de amor e de cuidados do bebê, irá lhe
direcionar os primeiros significantes desde a gestação “antecipando ao seu bebê uma sub-
jetividade, ainda não presente, mas já suposta” (CALZAVARA; FERREIRA, 2019, p. 436).
Doravante esse processo, a mãe pode criar um espaço adequado para investir libidinalmente
em seu filho e vê-lo separado de si como um sujeito em formação. Desse modo, a criança já
vem sendo inserida no campo simbólico e na linguagem a partir do imaginário materno antes
mesmo de seu nascimento. Após o nascimento, a presença da mãe continuará auxiliando
na formação do bebê como sujeito, na medida em que são fornecidas a ele condições para
a sobrevivência e, também, o investimento afetivo e libidinal iniciado desde a gestação.
Assim, a relação com o Outro vai permitindo a constituição subjetiva da criança como
sujeito. O olhar da mãe como função e a forma como esta conversa com seu filho são funda-
mentais para que ele seja subjetivado, constitua sua imagem corporal e, consequentemente,
possa fazer um laço com o Outro. Em outros termos, Lacan (1969/2003) situa como sendo
de responsabilidade da função materna a transmissão de um desejo ao bebê que não se
configure como anônimo; ou seja, que a mãe enderece um desejo e uma significação pela
existência de seu filho.
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Winnicott (2013), de maneira distinta, também aponta para a necessidade de vinculação
entre a mãe e o bebê, para o melhor desenvolvimento infantil, à medida que a “mãe dedicada
comum” consiga dar suporte às demandas psicológicas e de crescimento do filho. O con-
ceito da “mãe suficientemente boa” trazido por Winnicott, embora tenha sido interpretado
de forma errônea por alguns estudiosos como mãe ineficiente, diz respeito a uma mãe que
é boa o bastante, que é apenas o suficiente, e não a uma mãe que se mostra excessiva e
intrusiva numa tentativa de superar uma insuficiência que é dada como iminente pela cultura.
Como ressaltou o autor, os pais não precisam se engajar na tentativa de criar um ambiente
perfeito justamente porque um “ambiente suficientemente bom” já oferece à criança condi-
ções para o seu bom desenvolvimento e constituição como sujeito. A partir do conceito de
“mãe suficientemente boa”, de Winnicott, podemos pensar no processo de construção da
maternidade em si e no que ocorre com a mulher num âmbito pessoal, familiar e cultural, que
exerce influência no seu desejo em tornar-se mãe e no próprio exercício da maternidade.
Ainda no que concerne à maternidade, é preciso relembrar que Freud (1932/1976), em
seu texto intitulado Feminilidade, reputou o alcance à feminilidade pela mulher por meio da
maternidade. Isto é, a maternidade e o nascimento do filho seriam o destino certeiro para
o encontro da mãe com o feminino. Essa posição, afirmam Calzavara e Ferreira (2019, p.
438), “aponta a mulher como nostálgica do falo, o que incorreria na busca metafórica de um
encontro com o falo ao se ter um filho e tornar-se mãe”. Essa, assevera Freud (1932/1976),
seria uma das saídas para a feminilidade.
No entanto, esse posicionamento foi criticado pela comunidade psicanalítica, o que re-
sultou nas elaborações de Lacan (1969-1970/1992), estabelecendo a importância do desejo
da mãe, um desejo que revela a insígnia de uma falta fundamental que faz dessa mãe uma
mulher. Desse modo, complementam Calzavara e Ferreira (2019, p. 439), “o desejo da mãe
vem nomear o desejo da mulher na mãe, o que permite a essa mãe ser não toda para seu
filho, pois seu olhar se localiza em outra direção que não seja somente ele”.
Para Soler (2005), a mulher lida com a falta, por um lado, pela via do ser mulher e,
por outro, pelo ser mãe, de forma que a maternidade não esgotaria as demandas fálicas
supostamente preenchidas pelo filho como falo materno. Sob essa ótica, ter um filho não
esgotaria completamente o desejo da mulher, o que demonstra a importância de se des-
vincular o feminino do ser mãe, ao passo que o feminino se inscreve por diferentes vias e o
ser mãe é apenas uma delas.
A marca do desejo da mulher na mãe é primordial para a constituição psíquica do filho.
Sendo assim, ser mãe e mulher são posições que dizem de uma estrutura inserida no campo
da linguagem e na relação com o Outro. Não se tem uma mãe pelo fato de ser uma mulher
anatomicamente. Dessa maneira, não se nasce mãe, mas se torna uma mãe. Do mesmo
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modo, o lugar da mulher, também, passa por uma construção. Ser mãe é uma função que a
mulher pode ou não exercer. Assim, nosso ponto a avançar são as questões da maternidade
para a mulher-mãe.
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materno instintual, o que já vinha sendo demonstrado desde o século XVIII. O mito do amor
materno colou, durante muito tempo, na concepção do que seria ser mãe. Refutar esse mito
foi fundamental para o avanço das questões relativas ao que é da mãe e seu filho. Nessa
questão, Suárez (2015, p. 75) nos traz sua contribuição ao dizer:
Tudo leva a crer que o avesso da afirmação do desejo ‘um filho quando eu
quiser, como eu quiser’ vem à luz sob a forma de um imperativo feroz, abrindo,
para as mulheres, a hiância da falta (faute) na qual elas se precipitam. Na falta
de ser a mãe perfeita como deveria, elas sofrem por não serem ‘uma boa mãe’.
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as contradições do desejo de ser mãe recorrem, constantemente, no pensamento dessas
mulheres. Assim, é do lugar das mulheres que constroem suas possibilidades de ser mãe
que iremos nos ater para melhor compreendermos esse processo.
A mulher na mãe
O tornar-se mãe não se limita apenas a ter um filho. É uma construção que, da mesma
maneira, também se coloca para a mulher na conquista do seu lugar como tal. Ser mãe é
uma função que a mulher pode ou não exercer. Isso porque tornar-se mãe não se reduz
a ter um filho. É preciso estabelecer um registro da ordem do psíquico, que permitirá um
enlaçamento tão complexo quanto profundo com o filho (CAMPOS, 2015).
Vidigal (2015, p. 106) nos aponta a importância de se pensar numa “mãe não sem a
mulher”; ou seja, numa mãe que não perde em si a dimensão do feminino, do impossível e
da falta primordial. A mãe, que localiza em si uma falta que não é preenchida pela mater-
nidade, não encarnaria a “verdadeira” mãe enquanto função; isto é, não seria aquela que
obstrui o desejo da mulher que habita em si. Ao contrário, faz-se como dividida em seu
desejo, preservando em sua estrutura psíquica o ser mulher.
A mulher, que perde a dimensão do seu desejo ao se ver como mãe, é localizada como
a mãe ideal no campo da maternidade. Essa “verdadeira” mãe, cultuada pela mídia e pela
sociedade que, ainda, se fazem nostálgicas do mito do amor materno, se doaria incondicio-
nalmente ao seu filho, de modo que o seu desejo enquanto mulher não venha à tona. Assim,
articular a função materna e a mulher poderá nos orientar em direção às questões relativas
às exigências sociais e na interferência do desejo de ser mãe. Por isso, consideramos que
essas dificuldades podem se inscrever na constituição psíquica do filho.
Portanto, a contribuição da Psicanálise avança na perspectiva de se pensar esta re-
lação entre mãe/mulher e o filho, uma relação que não se encontra ancorada somente em
um amor “incondicional”, mas que é, também, ancorada em um ódio necessário. Frente a
essas questões, destacar que há uma ambivalência na relação de amor no vínculo entre
mãe e filho causa estranheza e certa perturbação. Esse é um termo utilizado por Michèle
Benhaim (2003/2007) em seu livro intitulado Amor e Ódio: a ambivalência da mãe, em que
a autora interroga como se articula amor e ódio de um ponto de vista da subjetividade ma-
terna. De certo modo, ela responde dizendo que “a ambivalência materna não é um acidente
da relação da mãe com o filho, mas uma necessidade estruturante, cuja falta induz uma
patologia e que pode evoluir para uma patologia” (BENHAIM, 2003/2007, p. 11). A partir
disso, Benhaim (2003/2007, p. 12) destaca o que seria positivo e negativo nesta relação de
ambivalência entre mãe e filho,
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a ambivalência dita ‘positiva’ diria respeito a uma mãe que não estaria sub-
mersa de angústia pela demanda da criança e que poderia alimentá-la, nem
demais, nem pouco demais. [...] a ambivalência toma aspectos ‘negativos’ se
a criança sofre muitas decepções, quando sua demanda angustia excessiva-
mente a mãe e quando esta angústia invade os dois: o corpo adota então uma
imagem de corpo morto.
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amor leva a criança a ser um sujeito separado, podendo viver sem o perigo da destruição de
um amor incondicional, sem brechas e sem possibilidades. O ódio, portanto, esclarece-nos
Benhaim (2003/2007), tem atributos de ser vital e ser destruidor – destruidor quando não se
inscreve no campo da separação, mas permanece no campo da fusão entre mãe e filho – e
vital é o amor que traz a insígnia da castração.
O encontro com o filho e suas demandas que exigem satisfação implicam para uma
mulher estar em condições de responder de um lugar materno. As respostas da mãe não
são programadas, afirma Suárez (2015, p. 84): “Ela dá, ao sabor das circunstâncias, mais
aquilo que ela não tem, já que a experiência da maternidade a confronte não com o que ela
tem –, mas, sim, com o que lhe falta”.
CONCLUSÃO
Portanto, concluímos que o lugar materno é atravessado pela falta e pelo não-saber
no campo da função. Um lugar de não saber o que fazer com o choro do filho ou com a falta
de sono dele, o que a coloca em condição de exaustão. É um não saber o que fazer com as
inúmeras demandas que exigem respostas a serem significadas para que a criança possa
entrar no campo do humano. Este não-saber da mãe, exigindo uma resposta da criança,
necessita de uma invenção. Uma invenção de um significante que a mãe precisa recorrer a
cada momento em que a maternidade se torna uma questão.
Desse modo, quando falamos de mãe, mulher e filho, falamos de uma relação de pre-
sença e ausência necessária para a localização dos lugares subjetivos de cada um. Uma
mãe, como nos diz Quenehen (2015), pode ser nomeada quando o filho possa vir a ocupar
um lugar que a satisfaz e a preenche estruturalmente. Por outro lado, a mulher é a que per-
manece essencialmente insatisfeita, tenha ela filhos ou não. O filho, como resposta dessas
relações, sofre os efeitos subjetivos da posição entre a mãe e a mulher.
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12
Multidão insubordinada: perspectivas
psicopolíticas para além de
identitarismos
Bruna Amato
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Marivete Gesser
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
'10.37885/230212178
RESUMO
Este capítulo objetiva criar um diálogo entre conceitos da teoria queer e crip que versem sobre
a necessidade de os corpos dissidentes encerrarem elos identitários, cuja função retorna a
um marco estratégico de relações de poder. Para tanto, problematizamos acerca da insu-
bordinação, que emerge da possibilidade de resistir à estrutura social capitalista neoliberal
produtora de hierarquizações e assujeitamentos às vivências desviantes. Consideramos a
insubordinação como uma linha de fuga que se ergue dentro de uma lógica na qual pessoas
inicialmente circunscritas em categorias identitárias fixas podem se transformar em sujeitos
políticos e, em coalizão, apostar na criação de comunidades múltiplas e diversas, resistindo
coletivamente às diversas formas de homogeneização cultural. Assim, discutiremos sobre
o processo no qual corpos que não são passíveis de serem adestrados e que reivindicam
não se encaixar em qualquer lugar se tornam uma ameaça. O risco é de nos encontrarmos
dentro de um processo de nomadismo que reconhece e enaltece a importância da diferença
como primordial para qualificar boas relações, acolhendo estropiadas e invertidas - nenhu-
ma interessante aos moldes capitalistas de produção, seja material ou afetiva. Por fim, este
capítulo visa levantar discussões de campos teóricos da Psicologia Social que sugerem,
como linhas de fuga potencializadoras, ações coletivas e micropolíticas como forma de driblar
estruturas encarcerantes e violentas.
Quando a proposta é criar um diálogo entre a teoria queer e a teoria crip, o objetivo é
sempre discutir sobre a necessidade dos corpos dissidentes de encerrar elos identitários,
já que a função desses elos é criar um ambiente de relações de poder e, sem dúvidas, hie-
rarquizações e subordinações sociais que muito mais endossam um afastamento (entre as
categorias identitárias) do que estímulo para coalizões. É indubitável que identitarismos são
necessários no sistema capitalista neoliberal, uma vez que esse sistema absorve, acomoda
e se apropria de tudo, coisificando tudo enquanto produto - inclusive as diferenças. Dessa
maneira, resta muito pouco se não reivindicações sobre políticas identitárias afirmativas para
que possamos exigir direitos junto ao Estado.
Corpos e sexualidades sempre foram utilizados como dispositivo de controle das so-
ciedades, o que aponta considerá-los no estudo da subjetividade. Isto posto, as questões
a serem levantadas são: o investimento psíquico/desejante dos sujeitos dissidentes deve
estar atrelado às categorias identitárias reivindicadas? Ou precisamos enfraquecer esse
movimento de potencializar subjetivamente os identitarismos, considerando que o adoeci-
mento social não se encerra com eles, já que as identidades hegemônicas permanecem
intactas e as políticas públicas, quase inexistentes, não diminuíram o nível de violência e/
ou insegurança dos grupos dissidentes?
Se é possível investir em outras formas de nos relacionarmos conosco e com o outro,
não seria estratégico fortalecer essa multidão insubordinada, sem subcategorias que
estejam disputando, entre si, miséria e criar articulações possíveis que deem chance de
lutarmos por direitos equânimes que valorizem as diferenças, mas por uma perspectiva de
autogestão? Ou seja, eu não me encerro na categoria que escolhi para me abrigar, ela não é
nada menos do que uma ferramenta de luta. Eu não estou inserida na violência que praticam
contra mim. Ela não me pertence, ela não sou eu. Eu não me mataria, nem me machucaria
porque trocaram meu pronome, ou minha orientação sexual ou meu gênero. Eu não estou
investida no sentido que dão à minha existência.
Fortalecer existências insubordinadas é o que dá condição para lutar. Sensibilizadas,
vulnerabilizadas e divididas não oferecemos muito risco. Até podemos incomodar e fazer
barulho. Mas, de alterar significativamente as estruturas, inclusive as nossas, não estamos
nem perto. Estamos perto da morte, isso é indiscutível…da morte praticada, do deixar morrer
e da morte por ausência de sentido, pela falta de compreensão e acolhimento.
Mas quem é que estamos querendo que nos acolha, afinal?
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Queer e Crip em diálogo
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aspectos geracionais, de raça, classe, sociopolíticos e geográficos nessa resistência à ho-
mogeneização cultural.
O investimento na construção de uma epistemologia centrando o saber-queer, seus
costumes, sua cultura e suas crenças, veio da observação sobre a forma como as categorias
dissidentes se organizaram socialmente durante a pandemia de HIV/AIDS, nos EUA. Na ten-
tativa de forçar o governo do presidente Reagan a criar políticas de saúde públicas acessí-
veis, vários movimentos dissidentes passaram a se relacionar com o termo queer, um termo
pejorativo e violento (queer, em tradução livre, seria algo parecido com bizarro, esquisito,
estranho). Essa reapropriação permitiu rearticular a expressão para que se tornasse um
termo político/positivo (Preciado, 2013). Desse movimento, diversas novas estruturas foram
criadas: os círculos de relações afetivas queer, que descentravam as relações familistas
violentas e excludentes, criando um ambiente de cuidado e afeto entre os dissidentes; os
levantes protagonizados por mulheres transexuais, travestis e butches (sempre excluídas
das reivindicações do movimento feminista e do movimento gay) e as aproximações com
outras dissidentes, sejam as prostitutas, as com deficiências ou as periféricas.
Acontece que nessa mesma época, na década de 1980, enquanto o Queer Nation
(Nação Queer - composto por ativistas da Act Up que passaram a se relacionar com o ter-
mo queer) se articulava para reivindicar que políticas de saúde fossem direcionadas para
a população mais atingida pela epidemia, que eram os homens gays e as mulheres trans e
travestis, que em sua maioria tinham que recorrer à prostituição como forma de subsistência,
aqui no Brasil - e em boa parte da América Latina - estávamos sobrevivendo a uma ditadu-
ra militar. Os sujeitos políticos, sem direitos políticos, viviam escondidos das ofensivas do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que torturava e matava qualquer pessoa
que tentasse se articular em prol da redemocratização do país, e nem sequer os partidos e
movimentos de esquerda consideravam válidas as pautas dos direitos sexuais.
Mas havia resistência, sempre houve. Contudo, não havia coalizão nem dentro do
movimento feminista, nem dentro do movimento gay. Mulheres periféricas, lésbicas, negras,
com deficiência, trans e travestis eram silenciadas em suas reivindicações e cabia, exclusi-
vamente, às mulheres cis brancas de classe média e aos homens cis brancos gays serem
porta-vozes de toda uma população que não se via refletida naquelas pautas. A raça e a
classe social sempre prevaleceram dentro de grupos já subalternizados e dali tantas outras
castas foram criadas.
Quando Crenshaw (1989) cunhou o termo interseccionalidade, a intenção, ao que tudo
indica, era afastar a ideia universalista de opressão e passar a quantificar em opressões (no
plural) as violências que se sobrepõem nas categorias identitárias. Portanto, se você é uma
mulher com deficiência, trans ou travesti, periférica e negra, em uma pirâmide interseccional
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você se encontra na base social - ou nas bordas -; dessa maneira, em condição de extrema
vulnerabilidade. A denúncia acontece quando são apontados os privilégios etnocêntricos das
mulheres brancas, de classe média e ocidentais que compunham o movimento feminista e
que não se furtavam a reproduzir modelos de opressão, quando se recusavam a incluir nas
pautas mulheres com deficiência, lésbicas, negras, sudacas, trans e travestis. Em relação
ao movimento gay, a misoginia, o machismo, os pactos da branquitude (Bento, 2022) e as
relações de poder cisheteropatriarcais sempre foram bastante explícitas.
Quando o conceito da interseccionalidade se transforma numa abordagem dos estudos
feministas que teoriza sobre a diferença, consolida-se - pontuado por Jasbir Puar (2013,
p. 346) -, como uma “heurística feminista sobre a doutrina jurídica da antidiscriminação”.
Contudo, a autora questiona quais sujeitos são criados por meio dessa diferença. A diferença
que oportuniza evidenciar mulheres negras como sujeitos políticos, só se faz destacando a
figura da mulher branca como centralizadora. Branca, heterossexual, classe média, cisgê-
nero e sem dificiência. Esse padrão cristalizado é o que pode produzir, em contraposição,
a mulher negra, a mulher trans, a lésbica, a periférica e a mulher com deficiência…sempre
em oposição ao padrão hegemônico, que só assim se mantém.
Se o capitalismo se alimenta de divisões, ele engole as categorias identitárias e inter-
seccionais e vomita objetos.
O corpo sempre foi um campo de intervenção, e a multidão insubordinada que se
nega terminantemente a ser enquadrada, reconhece que a prática de poder entrecorta os
corpos. E é exatamente por essa linha de entendimento que vai surgir um outro movimento
que dará sentido a uma outra teoria, a teoria crip. A corponormatividade (compulsory able-
-bodiedness), uma ideia hegemônica sobre capacidade corporal, intolerante à qualquer tipo
de heterogeneidade e atipicidade, vai ser problematizada por Robert McRuer (2021) quando
ele aponta que, dos movimentos sociais, agora de pessoas com deficiência, ancorados numa
política identitária, vão surgir questionamentos e deslocamentos das noções naturalizadas de
corpo normal (able body) e como esses corpos foram social e historicamente posicionados
na sociedade, às margens dela.
De aspectos da teoria queer, surge a teoria crip, pela mesma tentativa de deslocar um
termo pejorativo (crip vem de cripple, que significa aleijado) e de romper com os moldes
socioidentitários canônicos.
Preciado, na palestra ‘A morte da clínica’, vai traçar um caminho discursivo que en-
trecruza experiências dessa multidão insubordinada e inclui as vivências de pessoas
com deficiência como pertencentes a essa categoria que é sistematicamente apagada,
violentada e utilizada, também, como dispositivo disciplinar regulador, de modo a perpetuar
a categoria ‘normais’:
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(...) antes de mais nada, a primeira coisa que eu gostaria de dizer, salientar,
sublinhar é (...) que deficiência e incapacidade são também efeitos desse
aparato disciplinar e que, portanto, são noções culturalmente e historicamente
construídas (...) o que caracteriza o corpo patológico é que ele não tem aces-
so nem ao aparato de verificação nem às práticas governamentais. Foi isso
que nos caracterizou historicamente. Fomos definidos como corpos que não
devem, não podem ter acesso ao aparato de representação e produção de
sentido. Isso em benefício da saúde do organismo nacional (Preciado, 2013).
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de práticas necropolíticas, instrumentalizando a vida e legitimando a morte das populações
já vulnerabilizadas e marginalizadas socialmente. O Estado incorpora mecanismos de res-
ponsabilização do indivíduo e sua família na construção de seus próprios meios de acesso e,
quando isso não é possível, atribuem a uma incapacidade moralizante criando, para além de
uma culpabilidade, uma relação direta com ideia de pessoas com deficiência serem incapa-
zes e necessitar de tutela. Esse ambiente psicossocial, que retira inteligibilidade através de
regras universalizantes, gera adoecimento psíquico, apagamento social e relega os sujeitos
a diversas formas de violência e morte. Por fim, a noção de afastamento da dependência
subjetiva, versa sobre a possibilidade de criar mecanismos para que os próprios sujeitos
possam elaborar sobre suas dissidências, tanto quanto elaborar sobre a sociedade na qual
eles foram subjetivados.
Autoras(es) dos estudos da deficiência entendem o capacitismo como uma expressão
da corponormatividade que hierarquiza os sujeitos de acordo com a proximidade do padrão
daquilo que é socializado como normal (Mello, 2016). Desse modo, a política da aparên-
cia já abordada por Garland-Thomson (2002), associada aos processos performáticos de
capacidade compulsória e cisheteronoromatividade vai excluir os sujeitos dissidentes dos
campos sociais, políticos e afetivos.
Campbell (2001, p. 44) descreve o capacitismo como:
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constante de reiteração das categorias hegemônicas: por serem ficcionais, elas são inatin-
gíveis. Por serem inatingíveis, o pânico moral é incentivado para que os indivíduos tenham
pavor da ideia de serem associados a essas categorias empurradas para as margens so-
ciais. É preciso inventar o normal para que exista e não se confunda com o resto, só assim
a inteligibilidade do primeiro estará garantida, na medida em que é retirada do outro. O que
o autor chama de medo de um planeta aleijado pode ser associado ao conceito de he-
teroterrorismo de Berenice Bento (2014, s/p), que nada mais é do que o modo como as
subjetividades são organizadas pela premissa do pavor “de ser reconhecido como aquilo que
retiraria de si qualquer possibilidade de ser amado/a”, valendo para qualquer das dissidências.
Mas quem queremos que nos ame? O Estado? A igreja? As instituições? A sociedade?
Seria, de alguma forma, estratégico que afetos e afecções fossem modulados no processo
de subjetivação? Pois é no momento em que todos os indivíduos se assujeitam às regras e
normas que existem muito antes deles - processo de subjetivação -, que o capitalismo, por
meio do Estado, da igreja e das instituições, modula os desejos e consolida sua narrativa na
proliferação do medo, da insegurança, da desconfiança e do ódio, recorrendo aos códigos
sociais primários de cisheteronormatização, supremacia racial, misoginia e capacitismo que
foram instituídos como princípios da verdade e natureza (biologicista).
As teorias queer e crip ou transviadas e aleijadas vão promover a interrupção desse
processo de reprodução normativa, vão apostar na diferença, na multiplicidade e na cria-
ção de uma prática epistemológica centrada na dissidência que dê condições de conceber
outras humanidades.
Mas essas outras possibilidades de nos movimentarmos no planeta terra precisam
chegar até essas multidões insubordinadas, do contrário seremos sempre peões em um
grande jogo de xadrez, consumindo, reproduzindo e desejando exatamente aquilo que nos
mata. O desafio é romper com as regras de um jogo que desconsidera que seja possível
haver um conjunto de conhecimentos, culturas, modos de viver e se relacionar que não se
ancoram apenas no modelo de sociedade fordista. Os espectros isolados de uma socie-
dade que rechaça qualquer produção de diferença, ainda produzem diferença, e não é por
resistência, senão pelo fato de que quaisquer categorias que se supõem fixas e universais
são ficcionais.
É necessário encontrar aliados nesse processo de intensificação das multiplicidades e
reivindicar a dissidência como produtora de afetos e saberes. A Psicologia social política tem
essa competência e não pode se furtar a ser ferramenta na criação de um diálogo, quase
que reparador, com essas multidões.
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E a Psicologia com isso?
A Psicologia social política tem o papel de oxigenar ações coletivas para identificar as
estruturas sociais que fomentam o capitalismo neoliberal que, por consequência, produz uma
forma de ser, uma forma de desejar - a “subjetividade capitalista” (Deleuze & Guattari, 2014).
O capitalismo faz emergir um novo diagrama, uma nova configuração de forças que
não se restringe aos planos econômico e político, mas incide sobre o corpo e sobre a mente,
em uma constante de atribuição de significado a toda e qualquer existência. Essa atribuição
de significados tem como objetivo traduzir o real - indiscernível, caótico e múltiplo - em no-
ções que sejam reconhecidas, através de uma lógica binária e dicotômica. Tudo aquilo que
escapar ao código será posicionado no âmbito negativo.
Esse código criado pelo capitalismo é o que vai dar dimensão material aos enunciados
do real - um grande conjunto de significantes que traduzem e circunscrevem o que uma
coisa é e o que ela deve ser. Crenças, religiões, mitos, ciências…se os códigos servem para
mediar as relações sociais, o fazem através da captura e apreensão das singularidades para
integrar, categorizar e aglutinar as diferenças. Por exemplo, o sistema sexo-gênero restringe
o corpo a uma ideia biologicista, de modo que o ser humano vai artificialmente moldar um
conjunto de disposições/regras/códigos para colocar em curso dispositivos reguladores como
sendo aqueles que ordenam um pressuposto de ordem natural. O órgão sexual passa, por
essa lógica codificada, a dar origem ao gênero, que vai dar origem à sexualidade. Assim, a
sexualidade é concentrada e canalizada, tendo o real sido reduzido para uma única sexua-
lidade possível, a heteronoromativa.
Tendo em vista essa redução do real que, per se, é ficcional e construída para que
os sentidos e desejos sejam modulados dentro de uma única vertente, Preciado (2013) vai
apresentar como linha de fuga a esse sistema, a revolução somatopolítica. Essa consiste em
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lutar “contra a normalização do corpo como corpo válido, mas por meio de alianças coletivas,
que não poderão ser resolvidas em lógicas de identidade (Preciado, 2013)”.
Talvez seja necessário, politicamente, que corpo e identidade deixem de ser entendi-
dos como unidade para que seja possível uma transformação social fora dos moldes pre-
definidos. Se não abandonarmos a ideia de pertencer ao que foi constituído no real (que é
inventado), jamais deixaremos de servir a regras universalizantes, que dominam e sufocam
diferenças. É preciso criar estratégias micropolíticas e coletivas mas, antes de qualquer coisa,
é preciso atentar para o fato de que o capitalismo fomenta a intensificação do individualismo,
provocando, exatamente, o esgarçamento de laços sociais e coletivos.
Ora, então, talvez uma contribuição da Psicologia Social seja a de apostar nas narra-
tivas construídas pela esquizoanálise, que versa contra os cânones da representação - que
reduzem as experiências a uma cena de teatro familista fixada em signos universalizantes - e
aponta o sistema econômico como sendo o ponto de captura, engessamento e aniquilação
das vivências e experiências desviantes.
Precisamos nos desvencilhar, como aponta Guattari (Deleuze & Guattari, 2014), dos
microfascismos sedimentados em cada uma de nós, no que ele chama de processo de ras-
pagem, ligado à primeira tarefa da esquizoanálise, a destrutiva. À Psicologia cabe promover
um processo que possibilite os sujeitos a raspagem do próprio olhar e sentir para deslocar-se
do primado da consciência, do primado da identidade, que já definiu o mundo. Um movimento
de descentramento (ou destruição) do eu, que vai nos dar a chance de enxergarmos por
outras perspectivas, diferentes daquelas já engessadas, que muitas vezes nos fazem desejar
o mesmo poder de aniquilação e autoabolição daqueles posicionados hierarquicamente e
socialmente acima de nós.
É imperativo problematizar a produção social dos discursos sobre as multidões insu-
bordinadas já que, nesse caminho, pode-se investigar como esses discursos se ancoram,
circulam e regularizam esses modos de vida. Isso é, inevitavelmente, caminhar para uma
clínica-política que produz saber e propõe intervenções nesse molde.
Como já foi defendido nesse texto, ações coletivas são apostas para dar consistência e
dinamismo ao processo de destruição do eu, de modo que estejam ancoradas na relação de
potência e produção de vida. Guattari, Benevides e Preciado apostam em trabalhos grupais
que mirem no desfazimento e na desidentificação como técnicas capazes de romper com
as forças centrípetas que produzem uma territorialização possível de enrijecer e sedimentar
todas as existências, especialmente as dissidentes. Uma prática micropolítica de resistência
que venha a convergir com a ideia de Guattari (1985), no texto ‘Somos todos grupelhos’:
uma multiplicidade de grupelhos que teriam como objetivo substituir, enfraquecer e até,
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quem sabe, acabar com instituições como família, Estado, escola e tantos outros, que são
espaços de antiprodução, de aprisionamento, de aniquilação das forças produtivas.
Benevides (Barros, 2007) nos convoca a pensar na coletividade como forma de incidir
em uma prática clínica que não se diferencia, não se separa de uma prática política. O tra-
balho grupal se afasta da representação e se conecta com a multiplicidade, vai além dos
significantes identitários, não se ancora no fazer a si, senão no plano de produção, mas
também é capaz de acessar o que é produto social e subjetivo. O grupo se acopla e se de-
sacopla, aposta na micropolítica porque ela diz respeito ao que sobra - e o que sobra são
as multidões insubordinadas, grupos de minorias políticas, grupos excluídos do campo
político e da produção de saber -, vai no cerne e relativiza as políticas de subjetivação e de
organização social. A autora vai trazer a noção de que a clínica que trabalha com grupos
não se faz nem para trabalhar o indivíduo, nem para trabalhar o grupo como uma espécie
de microssociedade, visto que o grupo sempre foi entendido numa tensão entre indivíduo vs
sociedade. A autora propõe o grupo dispositivo como um não-lugar, o que na esquizoaná-
lise seria chamado de entre. Esse entre é como uma borda que vai se ampliando em cada
possibilidade de novas conexões, dando chance para elas serem ultrapassadas e para que
alguns impasses trazidos por categorias do negativo se encerrem.
Já Preciado (2011) vai articular a ideia de estratégia micropolítica por meio da noção de
multidão, ligada às minorias sexuais pensadas na coletividade que se articulam em pequenos
grupos heterogêneos e de produção e sustentação da diferença. Esse corpo, enquanto corpo
social, que vai se erguer das relações centradas no queer, no crip e nessas novas formas
de relações inauguradas por uma perspectiva centrada nos saberes dissidentes, cria uma
desterritorialização seja nos espaços hegemônicos, seja no corpo atuando no combate às
estratégias identitárias. Essa ideia de grupo de Preciado se encontra com a ideia de grupo
de Guattari e Benevides em muitos pontos, especialmente quando passa a valorizar a so-
berania daquela multidão, sendo todos sexualmente irredutíveis.
Se o imperativo é romper com uma práxis epistemológica hegemônica - que produz
saberes e verdades acerca dos modos de existência e corporalidades considerados aptos
para produção capitalista e, com isso, incide nas formas como nos relacionamos afetiva-
mente e nos constituímos subjetivamente -, a aposta deve ser na construção micropolítica
de um modo de existir que encontre na dissidência a potência para produzir vida, sem a
necessidade do estreitamento com o que é considerado normal e regulado.
A conexão de um grupo vai muito além da ideia de estar em contato com outras pes-
soas; o grupo conecta múltiplas formas de existir, de se relacionar, de entender, perceber e
comunicar. Dessa construção coletiva, espera-se a eclosão para uma vida ecosófica implicada
em se desfazer dos núcleos destrutivos. Construir um corpo social por essa perspectiva seria
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constituí-lo sem bordas, sem os limites que, em algum momento, vão se fechar e se estra-
tificar em uma interioridade. Mas, ao contrário, esse corpo vai estar sempre se construindo
e desconstruindo, sempre se desterritorializando e territorializando, sempre em movimento,
sempre nômade, implicado em se desvencilhar das amarras sociais produzidas pelo siste-
ma econômico. O grupo pode vir a ter elementos para produzir outras formas de relações e
existências e se intensificar modificando as realidades sociais em outros contextos.
Importante apontar para a construção de uma Psicologia implicada na produção de
máquinas desejantes. É imperativo reestruturar algumas premissas, de modo que seja pos-
sível fazer uma crítica contundente sobre o real motivo de algumas abordagens (clínicas e
teóricas) ainda dialogarem com sistemas estruturantes e universalizantes, que oportunizam
o ressurgimento de neoarcaísmos que coadunam com o sistema econômico, com o adoeci-
mento psíquico, com a culpabilização individualista e com a violência. A potência da trans-
disciplinaridade, por exemplo, que é muito pouco difundida, é de se abrir para outros tantos
agenciamentos apoiados no coletivo e na multiplicidade. Da leitura que Deleuze (2002) faz
de Spinoza, é possível potencializar a vida trazendo de outros campos do saber, como a
arte e a filosofia, tantos outros encontros que seja possível romper com o pensamento hege-
mônico, com a fixidez normativa, padrões de binarismo, capacidade e corponormatividade.
A Psicologia talvez seja o campo mais propício e fértil para criar articulações entre dis-
cursos e ações. Dessa maneira, deve-se batalhar por um comprometimento ético-político em
se posicionar como parte de uma engrenagem que produz desejo e que serve como ponte
para produção de epistemologias transviadas e aleijadas, loucas, estropiadas e disruptivas.
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O continente negro da psicanálise: o
que Freud diz sobre o feminino
'10.37885/230312325
RESUMO
Apesar de o feminino aparecer com certa frequência na obra de Sigmund Freud o autor con-
sidera que a temática ainda representava na época um território pouco explorado. Tendo em
vista tal perspectiva, esta pesquisa teórica-conceitual buscou analisou as concepções sobre
o feminino, o desenvolvimento da mulher e a sexualidade feminina em algumas obras de
Sigmund Freud. A pesquisa mostrou que o feminino aparece na obra Freudiana em segundo
plano, isto é, em oposição e/ou comparação ao masculino, sendo o desenvolvimento e a
sexualidade dos homens retratados como a norma. Foi possível identificar também que Freud
não faz afirmações definitivas sobre o feminino, sendo realizadas constantes ressignifica-
ções sobre o conceito em suas obras e, ainda assim, ele reconhece que as considerações
são imprecisas e obscuras.
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O mundo estava em plena ebulição, e Viena transformava-se em todos os
sentidos; o cenário era de um apocalipse festivo. De um lado vibravam os
vanguardistas – entre eles, Freud e seu conceito de feminino, que surge de
uma posição. Averiguar, portanto, que tempo é esse é algo de extrema impor-
tância, saber em que política o mundo dos homens naufragou na Viena do XIX,
assevera-se, sob essa perspectiva, algo fundamental. (MOLINA, 2011, p.16)
METODOLOGIA
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obra de Freud em que o termo feminino aparece. A seleção dos textos utilizados na pesquisa
ocorreu através do seguinte critério: textos que o termo feminino é amplamente explorado
e não apenas citado. Foram descartados textos em que as considerações sobre o conceito
de feminino eram semelhantes. Os textos que utilizados foram os seguintes:
“Histeria” (1888)
“Interpretações dos Sonhos” (1900)
“Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna” (1908)
“A disposição à neurose obsessiva uma contribuição ao problema da escolha da Neu-
rose” (1913)
“O Interesse Científico da Psicanálise” (1913)
“Os Instintos e as suas Vicissitudes” (1915)
“O Tabu da Virgindade (1918 [1917]) (Contribuição à Psicologia do Amor III)
“A Organização Genital Infantil – Uma Interpolação na Teoria da Sexualidade” (1923)
“A Dissolução do Complexo de Édipo” (1924).
“Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos” (1925)
“Sexualidade Feminina” (1931)
“Feminilidade” (1932)
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em seu livro intitulado Interpretações dos Sonhos (1900), Freud usa o termo feminino
geralmente no sentido de simbologia. Alguns objetos em que visualizamos ou manuseamos
nos sonhos fazem referência ao feminino, como por exemplo, objetos em formato de concha.
Além dos símbolos que podem, com igual frequência, representar os órgãos
genitais masculinos e femininos, existem alguns que designam um dos sexos
predominantemente ou quase exclusivamente, e ainda outros que são co-
nhecidos apenas com um significado masculino ou feminino. (FREUD, 1900)
No texto Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna (1908), Freud fala sobre
o fato de existir uma moral sexual “natural” e outra “civilizada”. Segundo ele, a civilização
impõe que o homem adeque seus impulsos e desejos sexuais às normas da sociedade,
como por exemplo, a relação sexual ser considerada pecaminosa se for uma prática antes do
casamento ou com fins que não sejam para reprodução. Para muitos indivíduos se adequar
as normas sociais e morais é algo bastante difícil, muitas vezes não conseguindo renunciar
seus impulsos, tendo comportamentos considerados “perversos” ou então renunciando-os,
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mas tendo como consequência o desenvolvimento de neuroses. Para Freud (1908), a re-
núncia aos atos sexuais antes do matrimônio levanta a questão se essas relações que se
realizarão apenas no casamento oferecerão uma total compensação para as restrições
impostas antes do casamento. Segundo ele a resposta tende a ser com mais negativa do
que positiva. Descreve então a frustração dos homens nessas situações e também realiza
considerações em relação as mulheres, dizendo que mesmo sublimando seus instintos
amamentando um filho, por exemplo, elas também sofrem com as desilusões sexuais do
casamento, contraindo graves neuroses.
Freud (1908) sugere um conselho para o sexo masculino: que não casem com mulheres
que antes do casamento já sofriam de doenças nervosas, pois a cura das doenças nervosas
decorrentes do casamento estaria na infidelidade conjugal, no entanto se a educação da
mulher tiver sido bastante severa ela temerá realizar algo assim, desenvolvendo neuroses.
No texto A disposição à neurose obsessiva uma contribuição ao problema da escolha
da Neurose Freud (1913) escreve quais seriam os motivos que levariam uma pessoa a ter
um tipo de neurose e não outro. Segundo ele, na histeria existe certa regressão em relação à
sexualidade. A menina tem primeiramente como zona erógena principal o clitóris e ao entrar
na fase genital deve tornar a vagina zona erógena dominante. É comum, segundo o autor,
ver mulheres histéricas que reativam essa sexualidade “masculina” que havia sido reprimida.
Em 1913, no texto O Interesse Científico da Psicanálise, Freud coloca novamente con-
siderações sobre passividade e atividade em relação a feminino e masculino, considerando
que a associação regular de “ativo” e “passivo” refletem a bissexualidade dos indivíduos.
No texto O tabu da virgindade (1917-1918), Freud afirma que a o primeiro ato de re-
lação sexual ativa na mulher ativa impulsos antigos que estão em absoluta oposição a seu
papel feminino. O termo papel utilizado pelo autor sugere que existem atitudes específicas
atribuídas às mulheres.
No decorrer de algumas de suas obras, Freud se ocupa em compreender a sexualida-
de infantil, no entanto parte do menino e não da menina para realizar as análises, isto é, as
explicações em relação ao feminino são feitas a partir das considerações realizados sobre o
masculino. Em seu texto intitulado A organização genital infantil, de 1923, Freud faz algumas
reconsiderações sobre a sexualidade infantil. Segundo Freud (1923), as crianças acreditam
existir apenas um genital, o masculino. Quando o menino descobre que o pênis não é co-
mum à todas as pessoas, ele pode realizar uma espécie de recusa ao que foi visto e assim
elaborar algumas fantasias, como por exemplo, acreditar que a falta de pênis na menina é
porque este não cresceu ainda ou então pensar que somente as mulheres impuras não o
possuem. Ao pensar que ele estava presente, no entanto foi retirado, surge o medo da cas-
tração, que vai ser importante para a dissolução do Complexo de Édipo. Na fase pré-genital
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sadicoanal, Freud (1923) diz que ainda não é correto falar na divisão entre feminino e mas-
culino e sim apenas a oposição entre passivo e ativo. Com o passar do tempo a vagina é
vista como um “abrigo” para o pênis e vai ser uma espécie de herdeira do ventre materno.
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frequência e não a praticar na mesma quantidade que os homens a fazem. Para o autor,
a masturbação do clitóris deve ser abandonada para que as mulheres desenvolvam sua
feminilidade adulta. A menina, segundo o autor, ao descobrir a existência do pênis se sente
humilhada. Percebe que nesse ponto não possui igualdade aos meninos e prefere deixar
de lado a “concorrência” com eles, dessa forma ela se afasta da masturbação do clitóris.
No menino, como Freud já havia dito em outros textos, o complexo de Édipo tem sua
dissolução principalmente pela ameaça da castração. Já para a menina falta um motivo de
extrema relevância para a dissolução, pois a sua castração já é algo concretizado. Devido
à essa diferença, o complexo de Édipo na mulher, de acordo com o autor, é lentamente
abandonado e seus efeitos podem prosseguir bem mais longe na vida psíquica normal da
mulher. O Super-eu feminino vai ser inexorável, impessoal e independente de suas origens
afetivas, a mulher vai possuir um caráter diferente do homem, como, por exemplo, menos
senso de justiça, tomar decisões guiada por sentimentos afetuosos e hostis e menor incli-
nação em submeter-se as grandes exigências da vida.
Em A dissolução do complexo de Édipo, Freud (1924) faz algumas considerações
sobre a diferença do complexo de Édipo em meninos e meninas e as causas que os fazem
abandonarem essa fase. Segundo Freud (1924), o complexo de Édipo é o fenômeno central
do período sexual da primeira infância. Não são muito precisas as causas que fazem com
que ele desapareça, mas segundo o autor, a criança experimenta dolorosas decepções,
como por exemplo, a ausência da satisfação esperada e a impossibilidade de sua realiza-
ção. Freud retoma as considerações que havia feito anteriormente, sobre o fato de para as
crianças existir apenas um órgão genital, o pênis. Os meninos dirigem bastante interesse
por esse órgão genital e com frequência o manuseiam, no entanto recebem reprovações
por parte dos adultos e com isso surge a ameaça de que lhe tirarão aquela parte do corpo.
Essa ameaça de castração ganha mais força quando o menino observa o genital feminino
e percebe que as meninas não possuem pênis. A ameaça da castração acaba se tornando
algo que pode vir a ser concreto.
A criança se vê dividida entre a ameaça de perda do pênis e o investimento libidinal que
dedicou aos pais. O menino não quer perder seu genital pois o estima muito, dessa forma
ele acaba se afastando do complexo de Édipo, dessa forma os investimentos objetais são
abandonados ou substituídos pela identificação e as autoridades dos pais acabam ficando
internalizadas formam o Super-eu.
Nas meninas ocorre o desenvolvimento correspondente ao complexo de Édipo dos
meninos, no entanto apresenta algumas diferenças: “nas meninas é muito mais obscuro e
insuficiente” (FREUD, 1924, p. 105). As meninas também desenvolveriam um Super-eu e
teriam um período de latência, no entanto diferentes do menino “Aqui a exigência feminista
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de igualdade de direito entre os sexos não vai longe, a diferença morfológica tem de mani-
festar-se em diferenças no desenvolvimento psíquico. Anatomia é destino, podemos dizer,
parodiando uma frase de Napoleão.” (FREUD, 1924, p. 106).
A menina, segundo Freud (1924), não compreende sua falta de pênis como uma ca-
racterística sexual. Ela fantasia que já possuiu um membro do mesmo tamanho e depois o
perdeu com a castração. A diferença essencial entre meninos e meninas é que as meninas
encaram a castração como um fato já consumado enquanto o menino teme a possibilidade
de ser castrado. A renúncia ao pênis que as meninas realizam não é tolerada sem ocorrer
uma tentativa de compensação. A menina passa ao longo de uma equação simbólica do
pênis ao bebê e assim deseja receber do pai um filho como presente. Um dos motivos do
abandono do complexo de Édipo da menina é pela frustração desse desejo de gerar um
filho do pai. O desejo de ter um filho e um pênis continua no inconsciente e colaboram para
preparar “o ser feminino para o seu futuro papel sexual” (FREUD, 1924, p. 107).
Ainda no texto A dissolução do complexo de Édipo, Freud (1924) diz que não deseja
afirmar que esse seja o único desenvolvimento possível, pois podem ocorrer variações na
sequência temporal e no encadeamento dos processos. Salienta, novamente, que as con-
siderações sobre o desenvolvimento sexual feminino ainda são bastante incertas “Mas no
conjunto é preciso admitir que nossa compreensão desses processos de desenvolvimento
da menina é insatisfatória, plena de lacunas e pontos obscuros.” (FREUD, 1924, p. 107).
No texto Algumas consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os se-
xos, Freud (1925) reconhece que ao examinar as configurações psíquicas da sexualidade
infantil ele teve como objeto a criança do sexo masculino. É retomada mais a ideia de que
o complexo de Édipo no menino vai assumir características ativas e passivas, ou seja, sua
disposição bissexual. O complexo de Édipo na menina “traz em si um problema a mais que
o do garoto” (FREUD, 1925, p. 146), pois a menina terá que abandonar o seu primeiro objeto
amoroso, que foi a mãe, diferentemente do menino, que o mantém. Segundo Freud (1925),
o desejo de ter um filho do pai é a força motriz da masturbação infantil da menina.
Quando o menino, segundo Freud (1925) vê pela primeira vez o genital feminino,
mostra-se pouco interessado, recusa o que viu, a importância do que foi visto virá apenas
quando surgir a ameaça de castração. A menina tem uma reação diferente ao observar pela
primeira vez o genital masculino, pois ela ao visualizar o pênis, percebe que não o possui,
no entanto gostaria de possuí-lo, como é possível identificar no trecho “Neste momento se
separa o complexo de masculinidade da mulher, que eventualmente reservará grandes difi-
culdades ao desenvolvimento prescrito rumo a feminilidade, caso não esteja logo superado”
(FREUD, 1925, p.147).
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A menina, segundo Freud (1925), pode por muito tempo fantasiar que ainda terá um
pênis no futuro e vai se tornar igual ao homem. Pode ocorrer também o que Freud (1925)
denomina como “recusa”, que seria a não aceitação do fato de sua castração, desse modo a
menina acredita possuir um pênis e se vê compelida a agir como se fosse um homem. A “re-
cusa” não tem consequências tão graves na vida psíquica da criança, no entanto na fase
adulta pode gerar uma psicose.
A masturbação clitoriana, segundo Freud (1925), é uma prática masculina, portanto
para a menina desenvolver a feminilidade ela deve abandoná-la.
A menina abandona o desejo de ter um pênis e o substitui pela vontade de ter uma
criança, um filho de seu pai, tomando assim seu genitor do sexo masculino como objeto
amoroso e sua genitora do sexo feminino como rival e objeto de ciúme. Se essa ligação com
o pai fracassar pode dar espaço para uma identificação com ele, em que a menina pode
retornar ao complexo de masculinidade e eventualmente se fixa nele.
Existe uma importante diferença, segundo Freud (1925) entre homens e mulheres em
relação a castração, pois é para a menina a sua castração já foi realizada e para o menino
é uma ameaça. O medo da castração é importante para dissolução do complexo de Édipo
masculino, já em relação as meninas ele as introduz no complexo de Édipo. Como as meninas
já se compreendem como castradas, pelo reconhecimento da ausência do pênis, falta um
grade motivo para dissolução do complexo de Édipo, por isso, diferente do menino, ele pode
ser lentamente abandonado e os efeitos na vida psíquica da menina podem ser bem mais
duradouros. Devido à essas características diferentes do desenvolvimento sexual feminino
e do complexo de Édipo, o Super-eu das mulheres teria:
Traços de caráter que sempre foram criticados na mulher – que ela mostra
menos senso de justiça que o homem, menos inclinação a submeter-se às
grandes exigências da vida, que é mais frequentemente criada por sentimentos
afetuosos e hostis ao tomar decisões – encontrariam fundamento suficiente
na distinta formação do Super-eu. ( FREUD, 1925, p.151 )
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A fase pré-edipiana nas mulheres possui uma importância que até então não havia
sido reconhecida, pois existem mulheres que permanecem detidas em sua ligação original
com mãe, não conseguindo transferir esse objeto amoroso para o genitor oposto e, portanto,
não alcançam mudança em direção aos homens.
Freud já havia feito considerações em outros textos sobre a bissexualidade psíquica
de todos os seres humanos, no entanto no texto Sexualidade Feminina (1931), ele diz que a
bissexualidade psíquica vem muito mais claramente nas mulheres do que nos homens, pois
o homem possui apenas uma zona sexual principal, que é o pênis, já a mulher possui dois
órgãos sexuais, a vagina, que é o órgão genital propriamente dito e o clitóris, que é análogo
ao órgão masculino. A vagina por muitos anos é algo virtualmente existente e praticamente
não produz sensações até a puberdade. A vida sexual das mulheres seria dividida em duas
fases, uma com caráter masculino, pois possui como principal órgão erótico o clitóris e a
segunda especificamente feminina, centrada na vagina.
As consequências do complexo de castração para Freud (1931) são diferentes nos
homens e nas mulheres, pois elas reconhecem o fato de a castração e assim a superiori-
dade do homem, mas se rebela, quanto a isso. Essa atitude leva a três possibilidades de
desenvolvimento. A primeira possibilidade é a menina crescer assustada com a comparação
com os meninos, sentir-se insatisfeita com o seu clitóris, abandonar sua atividade fálica e
com ela a sexualidade em geral, cessando assim toda sua vida sexual. A segunda possi-
bilidade é até certa idade considerada tardia ter a esperança de conseguir um pênis e isso
torna-se o objetivo de sua vida e a fantasia de ser um homem persiste. Esse “complexo de
masculinidade” pode levar a mulher a escolhas de objeto homossexual. Por fim, a terceira
possibilidade será a atitude feminina normal1 final, em que o pai é tomado como objeto.
Segundo Freud (1931), não é certo, mas possivelmente as meninas se masturbariam
com menor frequência e menor energia que os meninos. A proibição da masturbação aca-
ba servindo de incentivo para a criança abandonar essa prática, no entanto ela se rebela
contra a pessoa que a proibi, ou seja, a mãe ou o substituto materno. A menina torna-se
ressentida por ser impedida de uma atividade sexual livre e isso desempenha forte papel
no seu desligamento da mãe. Segundo Freud, é importante pensar que o menino também é
repreendido pela mãe e isso também vai gerar motivo de rebelião. A persistência da menina
na realização da masturbação parece abrir o caminho à masculinidade.
Os objetivos sexuais da menina em relação a mãe, para Freud (1931), são passivos
e também ativos. Não é apenas no campo sexual, mas em todo o campo de experiência
mental, ao receber um estímulo passivo a criança realiza uma reação ativa, tentando fazer
1 O termo normal é utilizado por Freud (1931) para fazer referência à ideia de norma, algo usual na sociedade.
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ela própria aquilo que foi feito nela. Como por exemplo, após ser examinada por um médico
brincar de ser médica. Para existir, portanto, revolta contra a passividade e uma preferência
pelo papel ativo.
Ainda segundo o texto Sexualidade Feminina (1931), Freud diz que o abandono do
primeiro objeto amoroso, que é a mãe, ocorre também na menina uma redução dos impul-
sos sexuais ativos e aumento dos passivos. Apesar das tendências ativas terem sido mais
afetadas nessa fase, as passivas também foram. A menina, ao se afastar da mãe, também
diminui ou cessa a sua masturbação clitoriana.
Ao longo do mesmo texto, Freud diz que se pensarmos no que foi dito por ele até o
momento sobre a sexualidade feminina, vamos chegar à conclusão de que estão presentes
as mesmas forças libidinais dos meninos e por algum tempo essas forças seguem o mesmo
curso e têm o mesmo desfecho em ambos. Depois, fatores biológicos desviarão as forçar
libidinais da menina, conduzindo as tendências ativas masculinas em femininas.
Ao final do texto, Freud (1931) afirma que teria sido supérfluo ele publicar seu artigo se
a sexualidade feminina não fosse um campo de difícil acesso, por isso é importante qualquer
relato, mesmo que seja de “primeira mão” ou de pontos de vista pessoais. Ele acrescenta que
deixou de mencionar no trabalho casos em que por algum motivo existe um desapontamento
da menina com o pai e ela retorna à ligação com a mãe. Cita, por fim, nomes como Melanie
Klain, Helene Deutsch, Fenichel e Karen Horney, autores que também escreveram sobre a
sexualidade feminina, dizendo que concorda com alguns e discorda de outros.
O texto Feminilidade (1932) é uma conferência que Freud realizou baseando-se prin-
cipalmente em dois artigos: Algumas consequências das diferenças anatômicas entre os
sexos (1925) e Sexualidade Feminina (1931). No texto ele diz que a feminilidade é um
enigma em que as pessoas vêm “quebrando a cabeça” no decorrer da história. Para o au-
tor, ao nos depararmos com um indivíduo, logo fazemos a distinção se ele é um homem
ou uma mulher. Para realizar a distinção, a ciência anatômica nos fornece a informação de
que existe um produto sexual masculino, que é o espermatozoide e o óvulo e o organismo
que o abriga são femininos. Existem órgãos, em ambos os sexos, que se formaram exclu-
sivamente para função sexual. Baseando-se nesses dados é possível tentar realizar uma
distinção do indivíduo entre homem e mulher. No entanto, ao sabermos que, mesmo que
atrofiados, existem partes do aparelho sexual masculino no corpo da mulher e que partes
do aparelho sexual feminino estão presentes no corpo do homem, ficamos confusos e nos
deparamos com indicações de bissexualidade, ou seja, o sujeito não é homem ou mulher,
é ambos, apenas com um pouco mais de um ou um pouco mais de outro. É bastante am-
pla as proporções que os indivíduos têm de masculino e feminino. “Aquilo que constitui a
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masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge ao alcance da
anatomia” (FREUD, 1932, p.115).
O feminino, segundo Freud (1932) não deve ser reduzido à passividade e o masculino
à atividade: “Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como
é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o feminino, com
passividade” (FREUD, 1932, p.116). Ao pensarmos na relação mãe e filho, segundo o autor,
perceberemos que uma mãe é ativa em relação à ele, pois o alimenta com o seio, troca-o
etc. Em diversas outras situações, para o autor, as mulheres podem demostrar atividade,
destacando também que podemos pensar que os indivíduos só conseguem viver em so-
ciedade após desenvolverem adaptabilidade passiva.
Segundo Freud (1932), pode-se considerar como característica psicológica da feminili-
dade dar preferência a fins passivos, mas isso não é o mesmo que passividade, afinal para
se chegar à um fim passivo pode ser necessária grande quantidade de atividade.
É realizada também uma consideração inovadora em sua obra sobre a relação entre
feminino e passividade: a influência de aspectos sociais.
Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influên-
cia dos costumes sociais que, de forma semelhante compelem as mulheres a
uma situação passiva. Tudo isso ainda está longe de uma elucidação. Existe
uma relação particularmente constante entre feminilidade e vida institual, que
não devemos desprezar. A supressão da agressividade das mulheres, que
lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece
o surgimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem, conforme
sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas
para dentro” (FREUD, 1932, p.116).
Ainda no mesmo texto, Freud considera que a célula sexual masculina (espermatozoi-
de), com base nas considerações de Freud (1932) é ativamente móvel, pois é ela que vai
em busca da célula feminina (óvulo), que é imóvel e o espera passivamente. Esse modelo
também é baseado na conduta sexual dos indivíduos durante o coito, pois o macho vai em
busca da fêmea com o propósito de união sexual, a agarra e a penetra. Com essas consi-
derações existe uma redução do masculino ao fator agressividade. Freud (1932) diz que
é preciso refletir sobre algumas classes de animais em que as fêmeas são mais fortes e
agressivas que os machos, como por exemplo, no caso das aranhas. Em algumas espécies
de animais, segundo Freud (1932), ambos os sexos dividem o trabalho de cuidar dos filho-
tes ou então apenas o macho se encarrega disso, o que na sociedade é considerado uma
tarefa exclusivamente feminina.
A Psicanálise, segundo Freud (1932) não pretendia solucionar o enigma da feminilidade,
mas sim compreender seu desenvolvimento. Segundo ele “a psicanálise não tenta descrever
o que é uma mulher – seria esta uma tarefa difícil de cumprir – mas se empenha em indagar
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como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de
disposição bissexual” (FREUD, 1932, p. 117). Freud (1932), diz que várias colegas de análise
começaram a trabalhar a questão do feminino e quando era feita alguma comparação que
parecia desfavorável às mulheres demostravam suspeita de que os analistas homens não
haviam na verdade conseguido superar determinados preconceitos associados ao feminino.
As diferenças de comportamento entre meninas e meninos também ganham destaque
na conferência realizada por Freud. Para o autor: “Uma menininha é, em geral, menos agres-
siva, desafiadora e auto-suficiente, ela parece ter mais necessidade de obter carinho e, por
esse motivo, de ser mais dependente e dócil.” (FREUD, 1932, p.118). Ainda de acordo com
Freud (1932), uma consequência da docilidade feminina seria o fato delas serem ensinadas
mais facilmente e com maior rapidez a controlar suas excreções. Freud (1932), também diz
que fica a impressão de que as meninas são mais inteligentes e mais espertas do que os
meninos da mesma idade, pois elas saem mais ao encontro do mundo externo e também
formam catexias objetais mais intensas. Para Freud (1932), não há dúvida de que é errado
classificar as meninas como intelectualmente atrasadas.
As fases iniciais do desenvolvimento libidinal de meninas e meninos são, para Freud
(1932), bastante parecidas. Para ele quando as crianças entram na fase fálica, as diferenças
entre os sexos são eclipsadas pelas suas semelhanças. Segundo Freud (1932) pode se
dizer então que em relação a isso a menininha é um “homenzinho”, pois na fase fálica os
meninos aprendem a obter sensações prazerosas com seu pênis e selecionam seu estado
de excitação às suas ideias de relação sexual, assim como as meninas fazem com o clitó-
ris. As meninas realizam sua atividade masturbatória nesse equivalente do pênis, portanto
a vagina verdadeiramente feminina ainda não foi descoberta por ambos os sexos.
Ainda no texto Feminilidade Freud (1932) diz que “a distinção anatômica entre os se-
xos deve expressar-se em consequências psíquicas” (FREUD, 1932, p.124). Portanto, para
Freud (1932), a compreensão do órgão genital do sexo oposto gera diferenças no complexo
de castração de meninos e meninas. As meninas, segundo Freud (1932) vão desejar ter um
pênis e sentem inveja do pênis, o que deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e
na formação de seu caráter. De uma forma geral, segundo Freud (1932), o ciúme e a inveja
possuem um papel de maior relevo na vida mental das mulheres do que na dos homens.
Para Freud (1932), um dos efeitos da inveja do pênis é a vaidade física que as mulheres
possuem. Elas valorizam seus encantos como “uma tardia compensação por sua inferiori-
dade sexual original” (FREUD, 1932, p.131). Para o autor, seria possível, portanto, atribuir
à feminilidade maior quantidade de narcisismo, portanto para mulher ser amada é uma ne-
cessidade maior do que amar. Acrescenta também que diz que a vergonha é considerada
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uma característica tipicamente feminina, mas que é possível supor que na verdade tem como
finalidade a ocultação da deficiência genital das mulheres.
Freud (1932) acrescenta questões sobre a influência social no desenvolvimento da fe-
minidade, segundo ele “Os fatores determinantes da escolha objetal da mulher muitos vezes
se tornam irreconhecíveis devido à condições sociais” (FREUD, 1932, p.132). Afirmando
também que nem sempre é fácil distinguir o que se deveria atribuir a influência da função
sexual e o que atribuir à educação social” (Freud, 1932, p.131).
Por fim, Freud (1932) reconhece que as considerações sobre o feminino que ele reali-
zou na conferência que deu origem ao texto Feminilidade (1932) ainda não são completas e
precisas. Diz que é preciso levar em consideração que ele descreveu a mulher considerando
apenas o que em sua natureza é determinado pela sua função sexual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações presentes nos textos utilizados nessa pesquisa é possível
perceber que o feminino não possui um sentido estático na obra de Sigmund Freud. Apesar
de Freud atribuir a passividade à feminilidade, é possível perceber que o feminino não é
reduzido à somente isso no decorrer de sua obra, pois o autor também destaca que a pas-
sividade e atividade estão presentes em homens e mulheres.
As mulheres são compreendidas principalmente a partir de seus corpos físicos, sendo
considerado aqui apenas corpos de mulheres cisgêneros, sendo utilizado por exemplo, a
vagina e o clitóris como centrais em seu desenvolvimento. A função sexual das mulheres
também tem destaque nos textos de Freud que abordam o feminino, aparecendo temáticas
relacionadas a gestação e o ato de criar filhos.
Ressalta-se também que o feminino é compreendido frequentemente em oposição ao
masculino. Para compreender o desenvolvimento sexual das mulheres, Freud utiliza como
ponto de partida o desenvolvimento dos homens, isto é, toma o homem como norma.
Por fim, a pesquisa identificou que as considerações realizadas são imprecisas e, por
vezes, até contraditórias com afirmações feitas anteriormente. O próprio Freud reconhece
que as análises realizadas por ele ainda são um esboço e que novas contribuições seriam
necessárias. É possível perceber que Freud deixou em segundo plano e muitas vezes não
considerou algo que seria fundamental para a compreensão do feminino: a influência que o
social exerce no desenvolvimento sexual e psíquico das mulheres.
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REFERÊNCIAS
FREUD, S. Histeria. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol.1. [original-
mente publicado em 1888].
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996,
Vol.2. [originalmente publicado em 1893-1895].
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996, Vol.4. [originalmente publicado em 1899 – 1900].
FREUD, S. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Trad. Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1996, Vol.9. [originalmente publicado em 1908].
MOLINA, José Artur. O que Freud dizia sobre as mulheres. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2011.
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O papel da literatura afro-feminina na
educação racial de mulheres negras
'10.37885/230212148
RESUMO
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MÉTODOS
Este estudo faz parte de uma pesquisa de mestrado intitulada O potencial educativo
da obra afro-feminina O Tapete Voador de Cristiane Sobral, realizada em 2022, vincula-
da ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Catalão –
UFCAT. O estudo realizado trata-se de uma pesquisa bibliográfica, tendo como principal
objetivo problematizar a representação de personagens femininas na obra O Tapete Voador,
de Cristiane Sobral, trazendo-a como instrumento de reflexão, debate e desconstrução de
estereótipos femininos sobre a mulher negra na sociedade brasileira. O estudo buscou ainda:
discutir a literatura afro-feminina; identificar nos contos analisados os elementos que possibi-
litam a (re)construção da imagem da mulher negra e sua valorização na sociedade brasileira.
A obra O Tapete Voador, publicada em 2016, pela Editora Malê, foi a escolhida por
ser uma publicação de contos contemporâneos, com personagens protagonistas em sua
maioria femininas e com temáticas que abordam a estética negra, o empoderamento negro,
a discriminação racial, e elementos que permitem a reflexão, a discussão e o diálogo sobre
a valorização de diversos aspectos constituintes da cultura negra, em especial, a inserção
da mulher na sociedade brasileira como protagonista da sua própria história.
Nesse capítulo, em especial, iremos refletir sobre as contribuições da literatura afro-fe-
minina no fortalecimento da negritude de mulheres negras, a partir dos seguintes questio-
namentos: O que as obras produzidas por escritoras negras têm em comum? No que elas
se diferem de outras obras de autoria feminina? De que maneira podem contribuir para uma
imagem auto-afirmativa da mulher negra?
RESULTADOS
[…] Aparecem, ainda, em seus textos, figuras femininas negras, ávidas pela
afirmação de si, ou simplesmente pelo desejo de tornar-se, de estarem cientes
de seus dramas, como: o racismo, a solidão e o sexismo, ou tão somente pelo
sonho de permanecerem no mundo (e em seus mundos) como senhoras de
si e de suas vontades (SANTIAGO, 2012, p. 163).
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da memória e da experiência, realocando a linguagem para outro tipo de relação com o
corpo, ligando-os de maneira subjetiva. Nela, ecoam vozes e personagens negras sedutoras
pela sua bravura, coragem e intrepidez na luta pela emancipação feminina e não mais pelo
desejo viril de seus corpos físicos. Os principais temas abordados são a escravidão, a luta
por emancipação e as histórias de vida entrelaçadas às memórias ancestrais.
Por ser uma temática de interesse recente e em torno da qual há muitos debates e
indagações, a literatura afro-feminina tem despertado a atenção de estudiosos e pesquisa-
dores. Uma das estudiosas referências no Brasil sobre pesquisas de estudos afro-femininos
é a pesquisadora Ana Rita Santiago da Silva, autora dos primeiros textos em que se cunhou
o termo literatura afro-feminina. Para a autora, a literatura afro-feminina é uma produção de
autoria de mulheres negras que tem sua escrita pautada em sonhos de emancipação, liber-
dade, alteridade e construção de sua autonomia (SILVA, 2010, p. 176). Dessa forma, essa
escrita literária tem como alvo romper com a supremacia e hegemonia masculina eurocêntrica,
ao mesmo tempo em que promove um enfrentamento às representações estereotipadas das
personagens femininas, reflexo de um passado histórico de escravização, na qual as mulhe-
res aparecem caracterizadas de forma animalesca, sexualizada ou de modo subserviente.
Para isso, a estética da literatura afro-feminina é tecida a partir da criação de tessituras
que interagem com a história de vida, sonhos, desejos e resistência, tanto individuais quanto
coletivas, de autoras negras que buscam, por meio de sua escrita, projetar novas identidades
distanciadas de racismos e preconceitos, cada vez mais próximas da autoafirmação e da
conquista da autonomia (SILVA, 2010).
No entanto, os caminhos percorridos pelas autoras negras para tornarem seus escritos
conhecidos e para ocupar os espaços no campo literário têm sido conflituosos, pois, além
das suas lutas cotidianas, as escritoras negras travam uma batalha contra séculos de silen-
ciamento e apagamento na perpetuação das culturas negras e africano-brasileiras. Assim, as
autoras negras utilizam de sua escrita para também conclamar seu direito à fala, à enuncia-
ção e à manifestação de um eu/nós sufocado pela aculturação eurocêntrica do colonizador.
Ao escrever sobre suas vivências, suas experiências, suas histórias de vida, suas me-
mórias individuais e coletivas, as autoras negras delineiam uma escrita carregada de afetos
e imbricada de sonhos e perspectivas, a escrevivência. O termo escrevivência vem sendo
discutido por críticos e estudiosos da literatura afro-brasileira e afro-feminina geralmente em
referência à obra literária da escritora Conceição Evaristo.
As pesquisadoras e estudiosas Constância Lima Duarte, Cristiane Côrtes e Maria do
Rosário A. Pereira, organizadoras da obra intitulada Escrevivências: identidade, gênero e
violência na obra de Conceição Evaristo (2018), consideram que escrevivência, na poesia
e na prosa de Evaristo, seja um projeto voltado à encenação do “corpo negro feminino, seu
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ser e existir subalternos, suas vozes e atitudes” (DUARTE; CÔRTES; PEREIRA, 2018, p.
11) sendo, portanto, um processo de escrita literária de autoria negra feminina voltado à
apreensão das demandas da mulher negra.
Com isso, muitas autoras negras vêm escrevendo sobre sua condição racial e de gêne-
ro, sobre seu papel social, sobre suas experiências, sobre suas percepções de vida, sobre
seus desejos, numa linguagem que lhes é própria, retratando demandas específicas deste
grupo social, conforme destaca Mott (2010, p.254) que afirma: “a experiência interior de uma
mulher negra, por razões sociais, nenhuma mulher branca ou homem, mesmo negro, tem”.
Assim, ao resgatar sua memória ancestral, sua escrita produz sentidos e essas mu-
lheres negras que também escrevem vão tomando consciência de si mesmas ao mesmo
tempo em que se posicionam frente às demandas dos seus pares. Nela, abordam e debatem
temas como maternidade, infertilidade, aborto, sexualidade, padrões estéticos de beleza,
o corpo, relações de gênero, desigualdade social, fome, escolaridade, acesso à cultura e
aos espaços culturais entre tantos outros inerentes à condição humana como amor, afeto e
suas subjetividades dentro de um contexto social.
Quem são essas mulheres escritoras negras? E qual o legado elas têm deixado na
literatura brasileira? Não podemos falar da literatura das escritoras negras contemporâneas,
que tem contribuído com esse movimento de recontar a história da população negra, em
especial aos assuntos que tocam o universo feminino, sem reconhecer o papel fundamental
das suas antecessoras e a trajetória de resistência que hoje reverberam em nós leitores,
educadores, estudiosos e pesquisadores da literatura afro-feminina.
DISCUSSÃO
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[…] é através da poesia que damos nome àquelas ideias que – antes do poe-
ma – não tem nome nem forma, que estão para nascer, mas já são sentidas.
Essa destilação da experiência da qual brota a verdadeira poesia faz nascer o
pensamento, tal como o sonho faz nascer o conceito, tal como a sensação faz
nascer a ideia, tal como o conhecimento faz nascer (antecede) a compreensão
(LORDE, 2019, p. 45).
A poesia, então, se torna um meio crítico reflexivo de se pensar essa mulher negra,
o sistema social hegemônico e excludente, e uma forma de retratar a dinâmica de atuação
dessas mulheres, que mantém posturas autônomas e diferenciadas, configurando um liris-
mo político-social que pode ser considerado um trabalho poético revolucionário tanto para
a literatura em geral quanto para a afro-feminina, uma vez que insere na arte da escrita um
discurso próprio, que não é aquele da literatura canônica.
A mulher negra escritora ergue o corpo e a voz para propor outras interpretações das
histórias vivenciadas. A textualidade desvela-se como um campo de múltiplas linguagens,
de múltiplos sentimentos, de diversas interpretações de si, do grupo, do Brasil, conforme
evidencia Florentina Souza (2021).
Desse modo, são apresentadas “[…] sujeitas poéticas livres que escolhem seus cami-
nhos para o amor, livres para criticar, livres para recontar histórias e reinventar-se, contes-
tando estereótipos e/ou imagens idealizadas” (SOUZA, 2021, p. 45).
A produção textual das mulheres negras é relevante, pois traz à luz muitos aspec-
tos das suas vivências e condição que não estão presentes nas definições dominantes
da realidade e das pesquisas históricas. Partindo de um outro olhar, debate-se contra as
imposições históricas e amarras ideológicas, propicia-se uma reflexão sobre outra face da
mulher brasileira. Essa condição diferenciada das mulheres negras, que não é demonstrada
na literatura canônica, faz dos textos produzidos por essas autoras negras essenciais, pois
apresentam novos paradigmas ao emergir um mundo oprimido por séculos de repressão
revelados no ato da escrita.
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escritoras do terceiro mundo (1980), defende o fato de não haver separação entre vida e
escrita. Segundo ela, ao contrário,
Para a autora, a apropriação da escrita, por parte das mulheres subalternas, foi fun-
damental no processo de rompimento de um silêncio imposto a estas durante longo tempo
pelo sistema patriarcal. É através dos escritos dessas mulheres transgressoras que perce-
bemos, pouco a pouco, a revelação de vozes que difundiram na literatura afro-feminina um
novo modo de ver e reconhecer a mulher negra na sociedade brasileira, pois, as condições
adversas da mulher negra não são as mesmas da mulher branca.
Daí a necessidade e a importância de uma literatura produzida pelas escritoras ne-
gras comprometidas em desvelar questões antitrracistas e antissexistas, uma vez que as
mulheres negras são atingidas primeiro pela condição étnico-racial, depois pelo gênero, e,
em seguida, dentro do gênero, pois sofrem com as discriminações da mulher branca e de
reivindicações feministas que não atendem às suas demandas.
Muitos nomes de escritoras negras poderiam ser citados, daquelas que tem contribuído
histórico e socialmente na promoção de uma cultura antirracista na sociedade brasileira. É im-
possível mencionarmos todas, embora a relevância de suas produções sejam fundamentais
para o movimento e perpetuação da escrita negra no Brasil. Com base num levantamento
realizado nas principais bases de dados, chamamos neste espaço, atenção para algumas
delas que tem se destacado na produção de literatura afro-feminina.
Entre as precursoras temos: Auta de Souza; Ana Maria Gonçalves; Ruth Guimarães;
Maria Firmina dos Reis; Carolina Maria de Jesus; Geni Guimarães; Conceição Evaristo;
Mirian Alves. Contemporâneas a essas escritoras temos várias outras que tem se destaca-
do e contribuído na consolidação da literatura afro-feminina no Brasil, tais como: Jenyffer
Nascimento; Jarid Arraes; Alzira Rufino; Lia Vieira; Bianca Santana; Cidinha da Silva;
Esmeralda Ribeiro; Mel Duarte; Ana Paula Maia; Reimy Solange Chagas; Kiusam de Oliveira;
Maria Gal Quaresma; Roberta Estrela D’ alva e Cristiane Sobral 5 entre tantas outras.
O legado dessas autoras negras nos permite conhecer outras realidades e também
nos instiga a olhar para dentro de nós. Por meio da leitura literária, podemos nos aprofundar
e conhecer o outro e a nós mesmos. A literatura humaniza e a leitura pode ser um agente
potencializador de transformações sociais. Como nos lembra Candido (1972), a função da
literatura vai muito além do entretenimento, ela tem o poder de nos humanizar, uma vez que
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“a literatura não corrompe nem edifica, mas humaniza em sentido profundo, porque faz viver”
(CANDIDO, 1972, p. 806). Assim, a literatura, a oralidade, a leitura e a escrita proporcionam
algo aparentemente simples, mas de muita potência: do sujeito se conhecer através do outro.
CONCLUSÃO
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e o papel da mulher negra na sociedade brasileira, promovendo assim, a descolonização do
conhecimento. Afinal, já são quase duas décadas desde a promulgação da Lei 10.639/13
e elaboração de estratégias para sua implementação ao longo desse período. Como de-
monstram estudos, não tem sido um caminho fácil, porém, ainda que a passos lentos temos
avançado em direção à construção de uma educação antirracista, e, as literaturas afro-bra-
sileira e afro-feminina tem exercido um papel importante nesse processo de consolidação
de uma pedagogia para a diversidade.
Agradecimentos
Agradecemos à nossa mestra Maria Zenaide Alves, que tem trilhado um árduo, mas
belo caminho em direção Educação para a Diversidade Racial, tanto na Universidade Federal
de Catalão - UFCAT, quanto nos muros para além dela. Obrigada professora, por caminhar
conosco os caminhos do saber!
REFERÊNCIAS
LOBO, L. Crítica sem Juízo. 2a ed. revista. Rio De Janeiro: Garamond, 2007.
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MAGALHÃES, I. A. Diferenças sexuais na escrita: ao contrário de Diotima. In: MINGOCHO,
M. T. D (Org.). Actas do Colóquio “Escrita de Mulheres”. Coimbra: Minerva, 2005. p.
9-23.
SANTIAGO, A. R. Vozes literárias de escritoras negras. Cruz das Almas/BA: UFRB, 2012.
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Psicopatia feminina e os limites
discursivos do diagnóstico
Hugo Tanizaka
Universidade São Paulo - USP
'10.37885/221211354
RESUMO
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(GOMES e ALMEIDA, 2010). Há, no entanto, poucos estudos relacionando o sexo feminino
a este transtorno, levando-se a crer até que, muitas vezes, a psicopatia possa não estar
sendo diagnosticada no sexo feminino (APA, 2002; KAPLAN, SADOCK; GREBB, 2003 apud
GOMES e ALMEIDA, 2010).
A partir desta prerrogativa que este capítulo intenciona propiciar o debate acerca, dos
fatores constitutivos da epistemologia diagnóstica acerca da psicopatia, uma vez, que ao
longo da história as compreensões acerca do psiquismo feminino foram severamente atra-
vessadas por perspectivas sexistas.
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de suas bases epistemológicas (VALDIVIA, 1997). De acordo com Valdivia (1997) a questão
da especificidade do feminino constitui o ponto de partida da psicanálise assim como o ponto
de retorno constante à teoria freudiana. Freud, ao tentar escutar a histérica, percebeu que
essas mulheres tentavam falar algo com seu corpo. E ao dá-las voz, as histéricas falaram
sobre amor, desejo, ódio e culpa (VALDIVIA, 1997). Foi pelas mãos de Freud que a histeria
deixou de ser uma “doença” da mulher e se tornou a possibilidade de uma relação humana
adoecida, onde o sujeito é submetido à um outro indivíduo (VALDIVIA, 1997).
Quando se pensa na mulher em relação à psicanálise, frequentemente uma precon-
cepção do pensamento psicanalítico em relação ao tema, a muito superada, é feita. É fato
que Freud se baseou em ideais de gênero de sua época para conceber a teoria sobre a
feminilidade que limita as possibilidades de constituição de uma narrativa pessoal da mulher
e que influenciam a clínica psicanalítica e a sociedade até hoje (KEHL, 2017).
A psicanálise, desde sua origem, tem como conceito central de sua teoria a sexualidade
(KEHL, 2017). Freud ouviu e deu voz às histórias das mulheres de sua época, sujeitos que
tornaram possível a psicanálise, sendo, portanto, co-fundadoras da mesma, juntamente com
Freud (KEHL, 2017). No entanto, como aponta Kehl, embora Freud tenha ouvido e dado voz
ao recalcado e aos discursos emergentes de seu tempo, sua escuta falha nas queixas das
mulheres a quem ele mesmo deu voz. De acordo com a psicanalista, a ignorância confessa
de Freud é antes um produto de uma negação por parte de si próprio do que algum mistério
não revelado pelas mulheres e pontua que, a cada vez que um psicanalista afirmar a exis-
tência de um ponto de impossível compreensão do querer das mulheres, deve-se responder
ao mesmo como Sócrates: “Indaga-te a ti mesmo”, pois, segundo a autora e o próprio Freud,
o mistério que paira no objeto, tem sua resposta na psique do desejante (KEHL, 2017).
Para Kehl (2017) o sujeito está condenado a inventar os sentidos de sua existência
na falta de um Outro que tome a forma imaginária de um ser de amor para responder ao
desejo / “o que queres?”. De acordo com a autora, o sujeito não irá encontrar prontas nem
uma resposta para os destinos de suas pulsões, nem respostas para o sentido de sua exis-
tência, tendo como alternativa, de acordo com Birman, a possibilidade do sujeito criar uma
“estilística da existência” capaz de dar conta da pressão contínua da força pulsional sobre
o eu (KEHL, 2017).
Essa invenção, no entanto, não pode ignorar os modos de inscrição do sujeito no
discurso do Outro, que seria o discurso da cultura que o sujeito pertence (KEHL, 2017).
Uma das primeiras inscrições que nos são dadas antes mesmo de nascermos, é a marca
da diferenciação sexual. De acordo com Kehl (2017), os significantes “menino” e “menina”
não indicam apenas uma diferença anatômica, mas um pertencimento daquele sujeito a
um desses dois grupos identitários carregados de significações imaginárias. De acordo
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com nossas genitálias somos classificados “homem” ou “mulher” antes mesmo de termos
consciência de nós mesmos enquanto sujeitos desejantes, do tipo de sujeito que somos e
que desejo temos em relação a que objetos.
De acordo com Kehl (2017), há um manual de instruções na trama simbólica que cons-
titui uma cultura, designando lugares, posições, deveres, traços identificatórios, no entanto,
esse manual não é capaz de dar conta dos destinos das pulsões. Tratando-se do sujeito
moderno, o próprio sujeito da psicanálise, não se torna homem ou mulher, mas sim, sujeito
do próprio desejo contrariamente à alienação inicial em relação a um discurso de autoridade
que, durante a análise, deve ser destituído de sua posição de verdade (KEHL, 2017).
Cada sociedade tem sua trama simbólica, onde a “identidade feminina” e a “identidade
masculina” são componentes tidas como distintas e mais ou menos rígidas. Porém, cada
sujeito, em sua subjetividade e inserido em determinada sociedade e em determinado tempo
histórico, acaba por furar essa tapeçaria, dando à mesma, novos contornos a partir de cada
jeito único de ser, alterando-a. O sujeito, assim como a cultura em que vive, são mutáveis
e é necessário para a ética psicanalítica que se compreenda que construções simbólicas
como “homem”, “mulher” e “sujeito” não são conceitos transcendentais e sim datados, con-
tingentes e mutantes (KEHL, 2017).
Kehl (2017) concorda com Lacan (1971) a respeito de não existir A Mulher, universal,
mas vai além, e diz que tão pouco existe O Homem, mas que essa segunda miragem, sus-
tentada pelo significante fálico, encontra ressonância imaginária que o conjunto das mulheres
nunca será capaz de produzir. O homem raramente se viu em questão ao o que o identifica
como pertencente ao universo masculino, diferente das mulheres que, ao não se verem
contempladas em sua posição de negativo do homem, complementando-o e sustentando-o
em sua posição masculina e deslocam-se, buscando novas posições que falem diretamente
com sua subjetividade e seu desejo, em oposto à submissão à subjetividade e desejo do
Outro de sua antiga posição feminina (KEHL, 2017).
A modernidade tornou possível para as mulheres uma posição de sujeito, indiví-
duo de corpo inteiro e atriz política, futura cidadã, alargando seu campo de possibilida-
des (KEHL, 2017).
De acordo com Kehl (2017), Foucault (1977), ao escrever sobre a história da sexuali-
dade, introduzindo uma perspectiva da historicidade do sujeito como ponto de convergência
entre poderes, formações discursivas, dispositivos de produção, controle e agenciamento
libidinal, marca uma ruptura decisiva com os pontos de vista universalizantes sobre a subje-
tividade (KEHL, 2017). Kehl (2017) afirma que, depois de Foucault, já não é possível pensar
o neurótico, sujeito da psicanálise, como fruto de determinações intrapsíquicas universais,
mas como alguém que produz no vínculo com o outro (e com o Outro).
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Tanto na perspectiva da filosofia, quanto na psicanalítica, o gênero está profunda-
mente conectado com o corpo, se dando a partir de uma bio-lógica tão dominadora em
nosso psiquismo, que somos levados a acreditar que a anatomia é o destino (OYERONKE,
2021). O corpo é um símbolo nuclear em nossa sociedade, tendo sido estudado e proble-
matizado por várias áreas do conhecimento através dos séculos, sendo, de acordo com
teóricos como Vigarello (2006 apud SILVA; SILVA E ALMEIDA, 2021), a história do corpo
está ligada à história da civilização. É importante pontuar que essa premissa advém de
uma perspectiva ocidental falo-eurocêntrica que, por várias vezes, desconsidera outras
possibilidades de perspectiva de existência e, constantemente, impõe seus valores sobre
outras culturas, apagando suas subjetividades. Isso fica evidente na obra A Invenção das
Mulheres, onde Oyewumi Oyeronke (2021), a partir de uma abordagem transcultural, pon-
tua que, sendo o gênero, uma construção social, os critérios que compõem as categorias
masculino e feminino variam em diferentes culturas, tempo e espaço. Vendo o gênero não
apenas como uma construção social, mas também como um fenômeno histórico e cultural, a
autora argumenta que não é possível supor que a organização social de uma cultura, inclu-
sive e, principalmente, do Ocidente dominante, seja universal ou que as interpretações das
experiências de uma determinada cultura expliquem outra (OYERONKE, 2021). De acordo
com Oyeronke (2021), as sociedades ocidentais, muitas delas dominadas pela organização
social falo-eurocêntrica através da colonização, as categorias de gênero, como todas as
outras categorias sociais, têm sua lógica cultural das categorias sociais baseada em uma
ideologia do determinismo biológico, ou seja, a ideia de que o corpo fornece a lógica para
a organização do mundo social (OYERONKE, 2021).
Ao olhar mais cautelosamente nossa sociedade ocidental, não é de se estranhar que
Freud tenha afirmado que a anatomia é destino e construído a psicanálise a partir da se-
xualidade dos corpos, tomando o falo como símbolo de poder. Vigarello (2006 apud SILVA;
SILVA E ALMEIDA, 2021) estava correto em pontuar a relação intrínseca entre corpo e
civilização, visto que um influencia diretamente no desenvolvimento do outro, criando deter-
minados costumes e valores orientados a partir das construções discursivas.
MÉTODO
Esta pesquisa consistiu de uma revisão bibliográfica narrativa que, segundo Rother
(2007 apud TANIZAKA et al., 2022) resulta em uma descrição ampla e própria a respeito
de um assunto delimitado, envolvendo seu enfoque contextual ou teórico, sendo composto
de uma análise da literatura publicada em livros e artigos científicos de revistas impres-
sas ou eletrônicas.
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Em vista das seguintes diretrizes, a coleta de dados se deu, principalmente, por meio
de artigos e livros sobre o tema principal da pesquisa, assim como temas que o atraves-
sam, - sendo esse gênero, mulher e psicopatia. - obtidos pelas plataformas BVS, Periódicos
CAPES, Scielo e Google Acadêmico. Foram utilizadas como palavras-chave: Psicopatia,
Mulher, Psicopatia Feminina, Gênero, Sociedade, Violência, Saúde e Psicanálise.
Na elaboração deste artigo foram utilizados 19 materiais bibliográficos, dentre eles 8
livros, sendo 5 relacionados a gênero e mulher, 2 abordando a temática da psicanálise e 1
relativo à psicopatia. Em relação aos artigos, um total de 11 foram utilizados, sendo 3 artigos
referentes a gênero e mulher, 1 artigo sobre mulher e psicanálise e, finalmente, 7 artigos
relacionados à psicopatia, sendo 2 destes artigos voltados à psicopatia na mulher.
Finalizando a fundamentação teórica, foram discutidas as considerações iniciais acerca
da psicopatia e sua relação com o gênero feminino e suas possíveis expressões sintomáti-
cas, assim como suas dificuldades diagnósticas.
PSICOPATIA FEMININA
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estariam ligadas a este ou àquele distúrbio de origem afetiva: constituição perversa (distúr-
bio da bondade) ou a constituição mitomaníaca (distúrbio da sociabilidade) (SHINE, 2010).
O termo psicopatia, foi introduzido pela escola alemã de psiquiatria. I.L. Koch em
1888, apresentou o termo inferioridade psicopática. Um dos principais expoentes da esco-
la alemã foi Emil Kraepelin (1856-1925), que empreendeu um trabalho de classificação e
organização das muitas formas de descrever a doença mental. Foi Kraepelin que cunhou
o termo personalidade psicopática em 1904. Incluindo nesta categoria os casos de inibição
do desenvolvimento a personalidade, tanto na esfera afetiva, quanto na volitiva e, também
alguns casos iniciais, fronteiriços com a psicose. Kurt Schneider (1887-1967), difundiu o
termo personalidade psicopática e o entendia como um distúrbio da personalidade anormal
que não afeta nem a inteligência e nem a estrutura orgânica do indivíduo. Schneider define
as personalidades psicopáticas como: “àquelas personalidades anormais que sofrem por
sua anormalidade ou, por ela, fazem sofrer a sociedade” (1923).
Neste sentido que Eugene Kahn (1887-1973), usa o termo personalidade psicopáti-
ca para a grupar vários problemas e desordens da personalidade não classificados como
doenças mentais e que teriam como condição precípua comum o desajustamento social.
Clinicamente, estas compreensões são consideradas legítimas em uma leitura psicodi-
nâmica da psicopatia. Isto, somado às contribuições de Otto Fenichel (1945), que classifica a
psicopatia como parte das perversões e das neuroses impulsivas. Basicamente, a proposta
do autor é compreender a psicopatia como oposto de uma neurose obsessiva compulsiva
(egodistônica), na psicopatia os impulsos surgem dos instintos (dos mesmos de qualquer
pessoa), entretanto são egosssintônicos.
Em seu livro Sem Consciência, Robert D. Hare (2013) se propõe a apresentar e dis-
cutir o tema da psicopatia que, de acordo com ele, começa a se revelar após séculos de
especulação e pesquisa psicológica empírica. De acordo com o autor, professor emérito de
psicologia na University of British Columbia, deve-se considerar que existem, no mínimo,
2 milhões de psicopatas na América do Norte, sendo 100 mil entre os cidadãos de Nova
York, considerando que tais estimativas são conservadoras. A psicopatia, longe de ser um
problema restrito, isolado, que afeta algumas poucas pessoas, em realidade é um problema
social que atinge todos nós (HARE, 2013).
Apesar da prevalência da psicopatia na sociedade ser quase a mesma da esquizofre-
nia, seu extenso massacre pessoal, social e econômico acaba por se destacar em termos
de devastação quando comparado ao transtorno da esquizofrenia (HARE, 2013). Um ponto
importante destacado por Hare (2013) é que, apesar da expressão mais óbvia da psicopatia
ser a violação criminosa das regras sociais e grande parte dos psicopatas sejam criminosos,
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muitos outros continuam fora da prisão, utilizando-se de seu charme e habilidades cama-
leônicas para semear a devastação na sociedade (HARE, 2013).
O quadro da psicopatia é descrito pelo autor como pessoas autocentradas, frias, sem
remorso, com profunda falta de empatia, incapazes de estabelecer relações emocionais
calorosas com os outros, agindo sem as restrições da consciência que um neurótico co-
mum dispõe, caracterizando a falta de qualidades importantes para se viver em harmonia
social (HARE, 2013).
Os mais dramáticos são aqueles que matam a sangue-frio, sem drama de consciência,
e que, ao mesmo tempo, despertam repugnância e fascínio no público (HARE, 2013). Embora
esses assassinos com frequência sejam julgados imputáveis, seus atos indescritíveis, suas
fantasias sexuais grotescas e sua fascinação pelo poder, tortura e morte realmente colocam
à prova as fronteiras da sanidade (HARE, 2013). No entanto, os psicopatas não são loucos
de acordo com os padrões psiquiátricos e jurídicos aceitáveis (HARE, 2013). Seus atos re-
sultam de uma mente fria e calculista combinada com uma incapacidade de tratar os outros
como seres humanos (HARE, 2013).
É importante ressaltar que existem outros transtornos com características similares às
da psicopatia, tais como o transtorno de personalidade antissocial (TPAS) e a sociopatia.
Apesar de compartilharem a maioria dos sintomas, Hare (2013) afirma que a psicopatia pos-
sui certas características que não estão presentes nos antissociais e sociopatas (GOMES
e ALMEIDA,2010). A APA (2002), no entanto, classifica o transtorno de personalidade an-
tissocial como sendo igual à psicopatia e a sociopatia, compreendendo-os como categorias
sobrepostas e complementares (SHINE,2000 apud GOMES e ALMEIDA, 2010).
Apesar do comportamento psicopata ser perturbador para nossa sociedade, Hare (2013)
ressalta a importância de manter uma certa clareza ao abordamos esse transtorno, para não
tratar a psicopatia como sinônimo de assassino, pois em realidade, a maioria dos psicopatas
realiza seus empreendimentos sem matar ninguém. E ao focar demais nos exemplos mais
brutais, que vão parar nas manchetes, corremos o risco de ignorar os psicopatas que não
matam, mas que afetam nossa vida cotidiana, além de reduzi-los a um status de aberração
que deve ser contida e eliminada ao invés de uma perturbação que merece ser estudada a
fundo e com cuidado, para que sejam encontradas formas de, se não resolver, ao menos
agir para atenuar o problema social em questão (HARE, 2013).
Fritzen e Sehnem (2018) entendem a psicopatia como um transtorno da personalidade,
englobando em si um conjunto de comportamentos e traços específicos relacionados à falta
de empatia, ausência de culpa ou remorso e impulsividade (VASCONCELLOS, et al., 2017).
Por ser considerado uma das mais graves desarmonias na formação da personalidade, é
um objeto de intenso interesse de estudo da área forense e da saúde mental, principalmente
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por ser um constructo complexo revestido por diversas variáveis que dificulta até mesmo
um consenso em sua definição. Há muito ainda a se descobrir sobre tal transtorno e essa
pesquisa visa contribuir para agregar conhecimento em vista de ampliar o conceito de psi-
copatia e suas possibilidades de expressão (VASCONCELLOS et al., 2017 apud FRITZEN
e SEHNEM, 2018).
De acordo com Fritzen e Sehnem (2018) além de haver uma dificuldade diagnóstica
do transtorno devido às suas características clínicas, há também uma discrepância entre
as formas de avaliação e utilização de instrumentos para diagnóstico. Definir a psicopatia é
um desafio complexo que conta com diversas influências tanto em termos de sua evolução
na vertente científica, quanto na sua utilização na linguagem do senso comum, onde este
conceito se tornou sinônimo de “louco” ou “criminoso” (GONÇALVES,1999 apud SOEIRO e
GONÇALVES, 2010). A falta de consenso na caracterização dos indicadores da psicopatia
é uma marca da definição de seu conceito, fazendo-se fundamental o desenvolvimento de
uma definição clara da psicopatia devido às suas implicações na investigação, diagnóstico,
avaliação, intervenção e replicabilidade de resultados na área de estudos voltada às pertur-
bações da personalidade (GONÇALVES,1999 apud SOEIRO e GONÇALVES, 2010).
De acordo com Soeiro e Gonçalves (2010), o trabalho desenvolvido por Hare (1991)
impactou positivamente a área de estudo da psicopatia em termos teóricos e práticos, pos-
sibilitando a realização consertada de investigações nos contextos forense, clínico e clínico-
-forense, assim como em diferentes realidades culturais. Em consequência, esta diversidade
de estudos permitiu analisar quais indicadores melhor definem a psicopatia, possibilitando
o desenvolvimento de uma forte relação entre os aspectos empíricos relacionados com a
avaliação dos indicadores de psicopatia e os aspectos conceptuais, relacionados à definição
do constructo (SOEIRO e GONÇALVES, 2010). Em sua pesquisa, Soeiro e Gonçalves (2010)
concluem que entre abordar a psicopatia por meio de uma abordagem categorial, ou seja,
centrada em um conjunto de critérios que definem a desordem (e.g., DSM-IV TR; APA,2002
apud SOEIRO e GONÇALVES, 2010) e a dimensional, proposta por Hare, que considera os
atributos clínicos específicos da psicopatia, a última abordagem é a mais adequada, visto
que, não faz sentido reduzir a psicopatia a aspectos relativos ao estilo comportamental como
a abordagem categorial o faz (SOEIRO e GONÇALVES, 2010).
Hare pontua que a questão do psicopata ser um doente mental ou simplesmente al-
guém que desrespeita normas, mas tem plena consciência do que está fazendo é há muito
discutida por psicólogos, psiquiatras, filósofos e teólogos (HARE,2013). Para o autor não é
apenas uma questão de semântica, pois a forma que entendemos a psicopatia tem imenso
significado prático no que concerne seu tratamento ou controle, se esse transtorno é de
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responsabilidade direta de profissionais da área da saúde mental ou do sistema correcio-
nal (HARE, 2013).
De acordo com Fritzen e Sehnem (2018) a definição e a compreensão da psicopatia
estiveram aliadas, por muito tempo, a populações de presidiários e pacientes de manicômios
judiciários, contudo, atualmente, reconhece-se que as características da psicopatia não se
limitam somente a populações prisionais ou forenses. A classificação norte-americana de
transtornos mentais (DSM-IV-TR) demonstra que a prevalência geral do transtorno da per-
sonalidade antissocial ou psicopata é de cerca de 3% em homens e 1% em mulheres em
amostras comunitárias (SILVA,2008 apud FRITZEN e SEHNEM, 2018).
Na obra de Cleckley (1988) The mask of sanity, descreve as características que de-
finem de forma detalhada o perfil psicopata, sendo algumas delas: charme superficial, boa
inteligência, ausência de delírios e de outros sinais de pensamento irracional, ausência de
nervosismo, culpa ou remorso, falta de confiabilidade, remorso ou pudor e tentativas de
suicídio (GOMES, 2010). Esses indivíduos também apresentam comportamento antissocial
inadequadamente motivado, incapacidade de aprender com a experiência, egocentrismo
patológico, incapacidade se sentir amor ou afeição, vida sexual impessoal ou pobremente
integrada e incapacidade de seguir algum plano de vida, assim como impulsividade e falta
de inibição de comportamentos de risco, mal-adaptados, mal planejados e que são preco-
cemente executados (SOEIRO e GONÇALVES, 2010).
No entanto, de acordo com Soeiro e Gonçalves (2010), ao considerar a psicopatia em
relação ao gênero, é possível observar certas diferenças na prevalência, incidência, curso,
comportamentos e idade de manifestação entre os sexos. Nota-se que os primeiros sinto-
mas, no sexo feminino, tendem a aparecer durante o período da pré-puberdade, enquanto
no sexo masculino, aparece antes (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 2003 apud SOEIRO e
GONÇALVES, 2010). No que tange a prevalência e a incidência de mulheres psicopatas,
constata-se que são menores que a dos homens, com a quantidade de mulheres com
diagnóstico de psicopatia sendo menos da metade (DOLAN; VOLLM, 2009 apud SOEIRO
e GONÇALVES, 2010). No entanto, Soeiro e Gonçalves (2010) ressaltam que tais dados
podem não corresponder à realidade, visto que existem poucos estudos relacionando o sexo
feminino ao transtorno, o que pode significar que, muitas vezes, a psicopatia pode não estar
sendo diagnosticada no sexo feminino (APA, 2002; KAPLAN, SADOCK; GREBB, 2003 apud
SOEIRO e GONÇALVES, 2010).
Em um estudo feito com 528 mulheres presidiárias, Vitale et al. (2002) aplicaram a
escala HARE PCL-R, correlacionando com a avaliação da ansiedade, depressão, existên-
cia de algum tipo de abuso, dependência de álcool, avaliação do tipo de personalidade do
indivíduo, grau de inteligência entre outros sintomas psiquiátricos. A partir desta testagem,
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verificou-se que a pontuação obtida no PCL-R estava associada com a ansiedade e afeto
negativo em mulheres caucasianas, já a ansiedade e a baixa inteligência estavam asso-
ciadas às mulheres afro-americanas (GOMES e ALMEIDA, 2010). Também se constatou
uma associação entre as pontuações contínuas no PCL-R e a proporção de criminalidade,
inclusive tipos de crimes, número de crimes violentos e número de crimes não violentos
(GOMES e ALMEIDA, 2010).
Para Warren et al. (2003) a diferença em relação ao gênero aparece na forma e na
severidade da violência cometida por homens e mulheres, onde as mesmas apresentam
menores índices de crimes violentos (GOMES e ALMEIDA, 2010). De acordo com Gomes
e Almeida (2010) tal diferença pode estar ligada ao fato de os homens apresentarem maior
insensibilidade emocional em relação às mulheres, já que seus atos violentos aparecem,
antes, associados ao uso de drogas, como álcool e maconha (DEMBO ET AL., 2007; DOLAN;
DOYLE, 2007 apud GOMES E ALMEIDA, 2010). Gomes e Almeida (2010) informam que
esses traumas precoces aparecem como uma influência negativa no desenvolvimento de
habilidades para regular a raiva e o afeto. Os autores também destacam que a escala
PCL-R, quando aplicada em jovens, indicou níveis elevados de negligência, compreendida
como trauma infantil e ao ser aplicada em adultos apontou sadismo e traços antissociais
(KRISCHER; SEVECKE, 2008 apud GOMES e ALMEIDA, 2010). Encontrou-se também uma
forte conexão entre outros tipos de traumas e agressividade, assim como, entre psicopatia
e agressividade.
De acordo com Gomes e Almeida (2010), as mulheres apresentam maior probabilida-
de de apresentar comportamentos agressivos na fase adulta ao sofrerem traumas durante
a infância, e afirmam que, nas mulheres, a negligência emocional é um fator de grande
influência no comportamento antissocial (GOMES e ALMEIDA, 2010). O perfil da mulher
psicopata irá se desenvolver apresentando negligência por parte de seus cuidadores e um
profundo sentimento de isolamento e introversão durante a infância; uma intensificação de
comportamentos antissociais, adição de várias substâncias como, por exemplo, álcool e ou-
tras drogas, podendo também apresentar comportamentos sexuais promíscuos e perversos
(DAS, RUITER e DORELEIJERS 2008 apud GOMES e ALMEIDA, 2010). Ao se tornarem
adultas, são mulheres que não gostam de ser contrariadas, são muito persuasivas, sedutoras
e carismáticas, possuem um contato volúvel com a realidade e apresentam dificuldade em
possuir relacionamentos emocionais intensos (GOMES e ALMEIDA, 2010). De acordo com
Gomes e Almeida (2010), diferente dos homens, a impulsividade não costuma ser um traço
comum, porém ambos compartilham de características comuns, como a insensibilidade, a
violência, as emoções superficiais e a ausência de culpa (DEL-BEN,2005 apud GOMES
e ALMEIDA,2010). Os autores também pontuam que alguns autores consideram que as
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mulheres psicopatas têm uma tendência maior a serem mais paranoicas e histéricas e, em
geral, estão entre aquelas que assumem importantes papéis de cuidado com os outros,
como enfermeiras e parteiras, sendo nessas profissões onde surgiram as grandes psicopatas
femininas, que acabaram se tornando serial killers (MORANA; STONE; FILHO, 2006 apud
GOMES e ALMEIDA, 2010).
Wangby et al. (1999) comprovou que problemas advindos de comportamentos antis-
sociais também são preocupantes em mulheres, a partir de um estudo realizado com uma
amostra de 500 meninas, acompanhadas desde a infância até a vida adulta (GOMES, 2010).
Foi verificado que os comportamentos de externalização, que incluem agressividade, impul-
sividade, desobediência, entre outros, se estabilizaram durante o final da infância e o início
da adolescência (GOMES, 2010). Gomes (2010) ainda ressalta que, apesar de estabilizarem,
tais comportamentos facilitaram a instalação de vários problemas de ajustamento na fase
adulta, como criminalidade, abuso de substâncias e alguns problemas de saúde mental.
Gomes (2010) realizou um estudo em mulheres apenadas, onde verificou, por exemplo,
que em uma amostra de 40 detentas, 30% apresentaram o transtorno e dessas mulheres,
20% eram reincidentes. Embora os outros 70% da amostra não tenham sido diagnosticadas
com psicopatia, as mesmas se enquadram na classificação de transtorno parcial da perso-
nalidade, sendo esta uma forma atenuada da psicopatia (GOMES, 2010). A partir dos dados
obtidos, Gomes (2010) constatou a presença da psicopatia em mulheres, assim como uma
correlação entre psicopatia, reincidência criminal e alguns fatores da agressividade. Gomes
(2010) acredita que as más condições sócio-econômicas estão contribuindo cada vez mais
para a maior ocorrência de atitudes violentas e consequentemente para a instalação de mui-
tas patologias, como a psicopatia. De acordo com Gomes (2010), um dos maiores prejuízos
deste transtorno se encontra no comprometimento do funcionamento social, acarretando
problemas na externalização de comportamentos, que de maneira geral são antissociais, o
que, consequentemente, causa conflitos com o ambiente social.
DISCUSSÃO
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fabricadas socialmente entre homens e mulheres e criando uma superioridade artificial de
um gênero para outro.
A partir disso, focando a atenção especificamente na mulher, observa-se que seu papel
social vem se modificando ao longo dos séculos por sua própria iniciativa de lutar e exigir
um espaço em meio à sociedade (FREITAS e COSTA, 2020). Traçando sua história até a
transição do feudalismo para o capitalismo percebe-se uma mudança no que a sociedade
compreendia sobre o que era “ser mulher”, construindo o papel social feminino como uma
função-trabalho, ocultando a produção da força de trabalho e mascarando-o como destino
biológico (FEDERICI, 2017). Aos homens, então, pertencia à esfera social e do trabalho,
e às mulheres restava o confinamento do lar, servindo ao marido e aos filhos (FREITAS e
COSTA, 2020). Esse conceito de feminilidade se perpetua até a atualidade, adaptados à
época e cultura, mas seguindo sendo o mesmo em sua essência. Os ecos deste regime
podem ser ouvidos na base da sociedade moderna, que segue tendo o princípio mascu-
lino como medida universal, considerando o homem superior à mulher baseando-se na
diferença biológica entre os sexos a fim de justificar a diferença social entre os gêneros
(BOURDIEU,1999 apud ALBUQUERQUE e SILVA, 2019). Tais pontuações se comprovam
ao observarmos os privilégios masculinos, como, por exemplo, as diferenças salariais entre
os gêneros que ocupam o mesmo cargo e a exclusão das produções científicas (HAYASHI,
2007 apud ALBUQUERQUE e SILVA).
É possível observar que a modernidade possibilitou para as mulheres uma posição
de sujeito, indivíduo de corpo inteiro e atriz política, futura cidadã, alargando seu campo de
possibilidades a partir de cada mulher furando sua trama simbólica social, não aceitando
mais essa posição de negativo do homem e deslocando-se, buscando novas posições que
falem diretamente com seu desejo e subjetividade (KEHL,2017). O corpo, no entanto, segue
sendo a base de questões subjetivas e mais complexas, abarcando questões psíquicas e
emocionais. E acaba, então, por se tornar uma prisão para aqueles indivíduos que não se
reconhecem no papel que lhes foi imposto, podendo gerar assim sofrimento e uma série de
conflitos psíquicos.
No que concerne a psicopatia, constata-se um número crescente de mulheres respon-
sáveis por uma variedade de delitos que não se alinha logicamente com a quantidade de
diagnósticos de psicopatia em mulheres não encarceradas, sendo esta muito baixa com-
parada aos números de delitos da população feminina (GOMES e ALMEIDA,2010). Ficou
evidente que há diferenciações de características sintomáticas entre mulheres e homens que
influenciam na forma como as patologias se expressam no comportamento de cada sexo
(GOMES e ALMEIDA,2010). Deu-se, também, que a falta de estudos relacionando o sexo
feminino, à psicopatia e as diferenças de expressão do transtorno, levando-se em conta o
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fator gênero, pode estar contribuindo para que mulheres não sejam apropriadamente diag-
nosticadas (APA, 2002; KAPLAN, SADOCK; GREBB, 2003 apud GOMES e ALMEIDA,2010).
Por fim, compreendeu-se a importância, já pontuada nas pesquisas aqui utilizadas, de dar
mais atenção ao sexo feminino no que se refere à psicopatia, visto que, quando mulheres
apresentam traços antissociais, há sérios riscos de consequências prejudiciais ao longo
do tempo, como: dificuldades de aprendizagem, problemas emocionais, dificuldades no
casamento, relações violentas com homens e pobre experiência materna (DAS; RUITER;
DORELEIJERS, 2008 apud GOMES e ALMEIDA,2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Entendeu-se que a psicopatia consiste em um transtorno de personalidade que se
caracteriza por desvios, principalmente, de caráter que se estruturam desde a infância e
desencadeiam comportamentos antissociais. Esse transtorno apresenta sintomas como
afetividade pouco elaborada, déficit de emoção e empatia, alienação às emoções dos outros
ausência de culpa ou remorso e impulsividade, apesar de tais características nem sempre
serem o suficiente para identificá-los devido ao fato destes indivíduos serem verdadeiros
camaleões e apresentarem um comportamento aparentemente normal.
No que se refere à psicopatia em mulheres, verificou-se que a mesma se diferencia
em prevalência, incidência, curso, comportamentos e idade de manifestação dos sintomas
entre os sexos feminino e masculino, no entanto, não há diferença significativa no grau de
intensidade entre os mesmos. A incidência e prevalência da psicopatia nas mulheres é menor
e seus sintomas tendem a aparecer durante o período da pré-puberdade, tendo como discri-
minantes para o sexo feminino comportamentos de promiscuidade e abuso de substâncias
alcóolicas, com uma apresentação menor de índices de crimes violentos.
A partir dos dados obtidos nas pesquisas compreendeu-se que a identificação da psico-
patia em mulheres parece ser mais difícil devido às diferenças na apresentação clínica dos
comportamentos antissociais, principalmente referente à agressividade, característica mais
visível e presente em homens (GOMES e ALMEIDA,2010). Notou-se uma discrepância na
quantidade baixa de mulheres que apresentam diagnóstico de psicopatia quando compa-
rado ao número crescente de crimes e outros tipos de delitos cometidos por elas, podendo
sugerir pouca investigação ou até mesmo o não diagnóstico dessas mulheres (GOMES e
ALMEIDA,2010). Em vista destes dados, da compreensão de gênero como performance
construída a partir de uma socialização e do controle comportamental socialmente imposto à
mulher, conclui-se que, é possível que tais práticas causem com que os sintomas da psicopa-
tia na mulher encontrem novos caminhos de expressão dentro dos limites comportamentais
do gênero feminino. Assim como a dificuldade de diagnóstico da psicopatia em mulheres
pode estar ligada a uma visão estereotipada do transtorno e a um desconhecimento das
possibilidades de expressão em diferentes contextos. Considerando o que foi enunciado
acima, pôde-se concluir, que a literatura científica de psicanálise e gênero não realiza tais
compreensões críticas e epistemológicas, evidenciada, principalmente, pelos poucos estudos
encontrados sobre o tema.
Há algumas limitações no presente artigo, a primeira sendo o fato do mesmo se tratar
de um trabalho de conclusão de curso de graduação em psicologia, havendo assim, inexpe-
riência científica das graduandas para aprofundar mais em sua análise e discussão sobre os
temas abordados. Há também as limitações referente ao aspecto da pesquisa em relação
as escolhas teóricas, local e tema que permitiram a compreensão do fenômeno estudado a
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partir da perspectiva em que o tema foi abordado, ressalta-se que diferentes perspectivas e
áreas podem trazer outras contribuições ao tema, assim como o fato do artigo consistir em
uma revisão bibliográfica narrativa, atendo-se apenas ao campo teórico.
Em vista de tais considerações, hipotetiza-se a possibilidade dos comportamentos pro-
míscuos e de abuso de substâncias alcoólicas em mulheres psicopatas estarem ligadas às
condições psíquicas que o gênero causa na mulher, impondo-a uma condição de negativo
do homem, e intenciona-se aprofundar e verificar futuramente.
Por fim, pontua-se a necessidade da realização de um estudo de campo para verificar
as inferências feitas no presente artigo, assim como de aumentar o arsenal de pesquisas
na temática da psicopatia feminina para melhor compreensão do fenômeno e elaboração
de medidas interventivas futuras.
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Maria o exemplo a ser seguido: a imagem
feminina nas práticas culturais católicas
no Hallel em Maringá-PR
'10.37885/230212067
RESUMO
1 As datas das edições do Hallel em Maringá de 1995 a 2019 foram as seguintes: 1995, 1° HALLEL: 30 de julho; 1996, 2° HALLEL: 14
de julho; 1997, 3° HALLEL: 20 julho; 1998,
4° HALLEL: 06 de setembro; 1999, 5° HALLEL: 05 de setembro; 2000, 6° HALLEL: 03
setembro; 2001, 7° HALLEL: 02 setembro; 2002, 8° HALLEL: 2003, 9° HALLEL: 06 e 07
de setembro; 2004, 10° HALLEL: 04 e 05 de setembro; 2005, 11° HALLEL: 03 e 04 de
setembro; 2006, 12° HALLEL: 02 e 03 de setembro; 2007, 13° HALLEL: 10 e 11 de
novembro; 2008, 14° HALLEL: 08 e 09 de novembro; 2009, 15° HALLEL: 07 a 08 de
novembro; 2010, 16° HALLEL: 13 e 14 de novembro; 2011, 17° HALLEL: 05 e 06 de
novembro; 2012, 18° HALLEL: 03 e 04 de novembro; 2013, 19° HALLEL: 09 e 10 de
novembro; 2014, 20° HALLEL: 08 e 09 de novembro; 2015, 21º HALLEL: 07 e 08 de
novembro; 2016, 22º HALLEL: 03 e 04 de dezembro; 2017, 23º HALLEL: 04 e 05 de
novembro; 2018, 24º HALLEL: 29 e 30 de setembro; 2019, 25º HALLEL: 05 e 06 de outubro.
2 Durante a pesquisa é possível afirmar que todos os arcebispos que passaram pela Arquidiocese até 2019 apoiaram a realização do
evento: Dom Jaime (1957-1997); Dom Murilo Krieger (1997-2002); Dom Braz de Aviz (2002-2004) e Dom Anuar Battisti (2004- 2019).
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Com um público majoritariamente jovem (entre 16-25 anos) e católico, podemos dizer
que o grande chamariz para essa juventude são as perspectivas de um catolicismo menos
tradicional, no qual, são em grande medida atraídos pelos shows. Enfatizamos ainda, que
por parte da instituição e dos organizadores o Hallel é uma festa de culto eucarístico, ou seja,
do culto ao corpo e sangue de Cristo por meio da Eucaristia, desse modo, percebemos que
no Palco Central as atividades do evento tem início com a missa e encerram com a Benção
do Santíssimo, ambos rituais que celebram o corpo sacramentado de Cristo. Todavia, o que
não nos escapa aos olhos é a presença da imagem de Maria, mãe de Jesus Cristo.
Ali naquele evento, local de diversas formas de orações, de diversos temas, podemos
observar a presença do modelo de feminino. Maria está na música cantada pelos artistas,
nas palestras sobre família, é a intercessora para realizar pedidos. Está nas camisetas de
alguns participantes, nos terços carregados por algumas pessoas em suas mãos, pescoço
ou no cós da calça. Possuí um espaço voltado apenas a ela, o Módulo Maria. Nesse senti-
do, temos como maior enfoque abordar nossas percepções durante a pesquisa de campo
realizada entre os anos de 2014-2019, com intuito de compreender a devoção a Maria nessa
festa em Maringá, não esquecendo que ao se tratar de uma figura exemplar para os católicos
ela inspira concepções de conduta feminina.
Devoções marianas
3 A Catedral começou a ser construída em 1958 e terminou em 1972. Segundo Jonas Jorge da Silva (2011), “O título de Basílica Menor
foi dado em 1982. Basílica Menor é um título honorífico concedido para um templo pelo Papa, seja pelo seu valor histórico, pelo fluxo
e devoção de fiéis em seu interior ou pela beleza artística da obra. No caso da Catedral de Maringá, é bem provável que o último
elemento tenha sido um dos motivos do reconhecimento papal”. (SILVA, 2011, p. 89).
4 “Durante o período que antecedeu a criação da Diocese de Maringá, antes de ser Catedral, a Igreja era a sede da Paróquia Santíssi-
ma Trindade, criada em 18 de abril de 1950. Depois, mais especificamente em 15 de agosto de 1953, passou a se chamar Paróquia
Nossa Senhora da Glória, denominação conferida pelo então bispo de Jacarezinho, dom Geraldo de Proença Sigaud, numa menção
ao dogma católico da Assunção de Maria ao céu, em corpo e alma” (SILVA, 2011, p. 71).
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As devoções marianas chegaram ao Brasil com os portugueses no contexto
da colonização e conseqüente processo de evangelização. Símbolo de uma
religiosidade fortemente ancorada no papel da mãe protetora, que em de-
terminados períodos ‘aparece’ para alertar seus devotos acerca dos perigos
do mundo, esta devoção foi apropriada pela autoridade eclesiástica e sua
necessidade de apresentar uma memória oficial em sintonia com um projeto
de purificação e controle das devoções consideradas impróprias (ANDRADE,
2012, p. 241).
Nesse sentido, a devoção mariana trazida pelos portugueses, possuí duas característi-
cas marcantes segundo Andrade (2012), uma é a “devocional” e a outra “institucional”. O “ca-
tolicismo devocional” é composto por novenas, reza de terços, milagres, os cultos aos santos
e aparições marianas, essas práticas escapam as instituições, elas ocorrem por meio de
uma relação íntima do devoto com o sagrado. Já o “catolicismo institucional” é controlado
pela hierarquia eclesiástica, e concerne nas celebrações de eucarísticas, os sacramentos,
dogmas, aprofundamentos teológicos, no que tange Maria é a figura padroeira das cidades
e dá o nome as várias paroquias, (ANDRADE, 2012, p. 242) tal como mencionamos sobre
a Catedral de Maringá. Tanto o catolicismo “devocional” quanto o “institucional” não são
formas que se encontram separadas. Elas convivem concomitantemente, numa troca, no
qual por parte institucional há uma legitimação dessas devoções, mas que não se atém a
ela, pois diz respeito justamente ao contato lúdico dos devotos.
Destarte, a devoção e a instituição mostram suas faces no em Maringá, além da Catedral,
os movimentos leigos são marcados pela devoção mariana. Com as Congregações Marianas5,
5 “As Congregações Marianas tiveram início em 1563, quando o jesuíta Pe. Jean Leunis começou, entre os alunos do Colégio Romano,
em Roma, um sodalício (grupo) cujos membros se distinguiam por uma vida cristã e mariana fervorosa e pela prática de diversas
formas de apostolado. [...] No Brasil, as Congregações Marianas existiram no período colonial, sobretudo nos Colégios da Compa-
nhia de Jesus e praticamente desapareceram com a expulsão dos jesuítas, em 1759. [...] Em maio de 1988, o Conselho Mundial das
Comunidades de Vida Cristã, mantendo o reconhecimento das Congregações Marianas no Brasil, admitiu também a representação,
naquele Conselho, das primeiras Comunidades de Vida Cristã que, como tais, já começavam a existir no País. Criou-se assim, uma
dupla presença do Brasil naquele Conselho Mundial, através de associações que funcionam completamente independentes uma da
outra. Tal situação levou as Congregações Marianas do Brasil, na sua Assembléia Nacional realizada em novembro de 1991, em
Aparecida, estado de São Paulo, a aprovar um novo Estatuto da Confederação Nacional, no qual há uma referência explícita a uma
Regra de Vida a ser elaborada, a qual, substituindo em âmbito de Brasil, os Princípios Gerais e as Normas Gerais, fizesse das Con-
gregações Marianas do Brasil uma associação religiosa de leigos, autônoma, com a marca característica da devoção mariana, como
sempre foram e continuaram sendo no Brasil. Esta decisão teve aprovação do Assistente Eclesiástico Nacional das Congregações
Marianas, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Dom Eugênio Sales. Os Congregados Marianos do Brasil podem ser reconhecidos
nas reuniões ou celebrações da Igreja pela fita que pende do pescoço da cor azul (cor litúrgica da Virgem Maria), em cuja extremida-
de está uma medalha prateada com a imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo de um lado, de outro a da Mãe Santíssima, a Virgem
Maria”. CNCMB. Quem somos. Disponível em: https://cncmb.org.br/quem-somos. Acesso em: 28/08/2020.
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o Movimento postólico de Schoenstatt6, Equipes de Nossa Senhora7 e regulamentados pela
Arquidiocese8. Além de grupos que possuem um forte aparato devocional em Maria como é
o caso da Renovação Carismática Católica (RCC). Destacamos esse último grupo, principal-
mente quando percebemos os usos históricos de Maria enquanto uma crença de manutenção
do catolicismo e luta contra os infiéis.
São duas questões apresentadas por Andrade (2012) a primeira sobre a luta contra os
infiéis nos leva a considerar a afirmativa de Reginaldo Prandi (1998) ao pontuar que o movi-
mento da RCC que surge como enfrentamento do pentecostalismo protestante na segunda
metade do século XX, tem Maria como identidade religiosa “Muitos [...] identificam-se com
a Renovação Carismática pela possibilidade de se ter, ao mesmo tempo, o Espírito Santo e
Nossa Senhora: pentecostalismo sim, mas com Maria” (PRANDI, 1998, p. 137-138). O autor
ainda reforça, “Para os católicos é a Santa Mãe de Jesus, da Igreja e de todos os cristãos,
6 “O Movimento Apostólico de Schoenstatt pertence à Igreja Católica Apostólica Romana e faz parte da Obra Internacional fundada em
18 de outubro de 1914, pelo Pe. José Kentenich, em Schoenstatt, na Alemanha. Schoenstatt – cuja palavra significa belo lugar – é
o bairro da cidade de Vallendar, às margens do Rio Reno, onde estava localizado o seminário dos padres Palotinos”. O movimento
conta a seguinte história sobre si: “Nos primeiros anos da Fundação, durante a I Guerra Mundial, muitos seminaristas foram convoca-
dos como soldados e, apesar dos desafios, difundiram a espiritualidade de Schoenstatt entre soldados e enfermeiros da guerra. Em
poucos anos a Mãe de Deus atraiu muitas pessoas ao Santuário, realizando milagres de conversão e transformações nas almas. Em
1919, o grande número de leigos vinculados a Schoenstatt, leva à fundação da União Apostólica de Schoenstatt. A década de 1920
foi marcada pela entrada das mulheres: a fundação da União Apostólica Feminina, em 1920, e o Instituto Secular das Irmãs de Maria
de Schoenstatt, em 1926. O sacrifício de vida dos primeiros schoenstattianos fez jorrar abundantes graças e rapidamente surgiram
outros ramos no Movimento. Na década de 1930, surge a Juventude Feminina e a Obra se expande para outros continentes: as
Irmãs de Maria são enviadas como missionárias para a África e a América do Sul. [...] A Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt
surge em 10 de setembro de 1950 e acelera a expansão do Movimento em todo o mundo e aprofunda a sua inserção nas paróquias
e dioceses do Brasil”. SCHOENSTATT. Disponível em: https://schoenstatt.org.br/home/quem_somos/quem/expansao-do-movimen-
to-de- schoenstatt/. Acesso em: 28/08/2020. Schoenstatt
7 Tem origem em Paris no ano de 1938, pelo padre Henri Caffarel que atende um casal como guia espiritual. Movimento de espiritu-
alidade conjugal católico, leigo e constituído por casais que buscam no sacramento do matrimônio um ideal de vivência cristã. Se
reúnem: “em Equipes sob a proteção de Nossa Senhora e através de pontos concretos de esforço procuramos progredir, como casal,
família, no amor de Deus e do próximo. Uma equipe não pode viver isolada. O Movimento das Equipes de Nossa Senhora possui
uma organização destinada a coordenar, animar, apoiar, servir e manter a sua unidade. Essa unidade é constituída e formada pelo
desejo de progredir juntos na fidelidade ao espírito e aos seus métodos”. ENS. Quem somos. Disponível em: https://www.ens.org.br/
novo/o-movimento/organizacao. Acesso. 28/08/2020.
8 Essas foram informações encontradas no site da Arquidiocese Maringá sobre as pastorais e organismos da mesma. Não contempla
os mais diversos grupos de orações e comunidades que derivam desses organismos e/ou de outras pastorais e organismos. Vide:
ARQUIOCESE DE MARINGÁ. Disponível em: http://arquidiocesedemaringa.org.br/pastorais. Acesso em: 27/08/2020.
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digna de todos os louvores; para os protestantes, uma mulher que recebeu uma graça es-
pecial e que deve ser lembrada como um exemplo de conduta, não mais” (PRANDI, 1998, p.
139). “[...] os carismáticos fomentam o culto a Nossa Senhora, colocando-a como premissa
insubstituível na salvação dos homens” (PRANDI, 1998, p. 139).
A segunda questão, sobre a devoção do rosário fora na cidade de Maringá foi obser-
vada por nós proximidade por meio do Projeto Mais Vida, que ao constituir comunidades
formadas por pessoas que participam a cada edição do acampamento se reúnem para a
oração do terço, na casa de membros que pertencem a essas comunidades. Já ao nos
referirmos sobre o Hallel, prioritariamente o Módulo de Maria realiza os terços meditados.
Entretanto, em algumas edições do Hallel como em 2019 e 2018 houve a prática dessa de-
voção no Palco Central (2019) em homenagem a Nossa Senhora de Guadalupe, a pedido
de tia Lolita, a fundadora do Hallel, e em 2018 no Módulo Família. Mesmo para aqueles que
não possuem a prática de orar o terço, podemos dizer que são essas contas que possuem
uma forte representatividade da identificação católica, no evento víamos locais que vendiam
tais objetos, víamos entrelaçados nas mãos de alguns participantes, pendurado no cós da
calça, ou em seus pescoços.
É necessário ressaltar que a existência desses movimentos marianos não significa
a participação deles no Hallel, além disso, por se tratar de um evento amplamente aberto
e divulgado há a possibilidade de a presença de grupos de outras localidades estarem no
evento. Mas o que devemos considerar é as devoções marianas fazem parte do cenário
religioso da cidade, e que o Hallel é um espaço de compartilhamento dessa devoção. São
vários os módulos que em um altar colocam a imagem de Nossa Senhora em suas mais
variáveis formas. A seguir veremos algumas imagens dessa presença mariana no Hallel.
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Imagem 2. Nossa Senhora de Fátima: Módulo Maria.
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Imagem 4. Nossa Senhora Aparecida: Módulo Maria (2017).
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Imagem 6. Nossa Senhora de Pentecostes: Módulo RCC.
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Imagem 8. Nossa Senhora de Guadalupe: Módulo Maria.
Para Andrade (2012, p. 242), “São inúmeras denominações de Maria cujos títulos estão
associados a diferentes características da Mãe de Deus e aos fatos de sua vida”. Entre es-
ses: títulos dogmáticos, como Maternidade Divina, Imaculada Conceição, Assunção; títulos
ligados aos momentos de sua vida como, Anunciação, Desterro, Dores, no caso do Hallel
podemos indicar Nossa Senhora de Pentecostes na Imagem 6, com grande devoção da RCC;
títulos ligados a traços de sua personalidade e dons, como, Auxiliadora, Piedade, Glória,
Imaculado Coração ou das Graças como encontramos na Imagem 1, no Módulo Sim, que no
ano de 2015 foi montado pelas Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria9 ; títulos ligados
a santuários e imagens especiais, como é o caso da padroeira do Brasil Nossa Senhora
Aparecida, nas Imagens 3, 4 e 5 observamos a presença de Aparecida, uma das imagens
mais frequentes no Hallel em Maringá. No ano de 2017 devida a comemoração dos 300
anos de aparição de Nossa Senhora Aparecida a imagem dessa era marcante no evento, ao
passo que como podemos observar na Imagem 5, a Mãe estava em destaque no altar com
o Filho, na Capela do Louvor que é dedicada ao corpo e sangue de Cristo Sacramentado.
Mas esse não foi o único ano que Nossa Senhora ocupava o espaço da Capela, em 2019
na entrada os organizadores montaram um espaço na entrada com a imagem gigante de
Nossa Senhora; o último título descrito por Andrade (2012) estão ligados às aparições, como
exemplo, temos a Imagem 2, 7 e 8 com Nossa Senhora de Fátima e Guadalupe.
9 A Congregação das Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria foi fundada em 25 de março de 1920 pelo Arcebispo Dom Wilhelm
Berning, bispo de Osnabrück, Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial. É uma Congregação Religiosa, a partir de 1997 começa a
ter filiação de leigos missionários. “As Irmãs Missionárias do Santo Nome de Maria herdaram o carisma missionário e a espiritualidade
mariana: são chamadas a ser continuadoras do projeto evangélico iniciado por Dom Berning. Maria, associada à missão de seu Filho,
é modelo [exemplo] para cada Irmã e toda a Congregação [Const. p. 12 e 20]”. PBMM. Histórico. Disponível em: http://pbmm.com.br/
leigos-missionarios Acesso em: 28 jul. 2020.
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São distintas faces de uma mesma mulher, que é reforçada desde suas características
e dons como guias e modelos para os devotos, quanto em relação a suas aparições, ou
ainda os milagres atribuídos a sua imagem.
A tradição da fé, concentrou o feminino em Maria, mãe de Jesus. Ali viu rea-
lizadas todas as possibilidades numinosas e luminosas do feminino a ponto
de ela ser simplesmente a Nossa Senhora: ela é virgem, é mãe, é esposa, é
viúva, é rainha, é a sabedoria, o tabernáculo de Deus etc. (BOFF, 1983, p.15,
grifo do autor).
Essa mesma exaltação do feminino em Maria para Boff (1979) também funciona como,
“[...] mecanismo de compensação face à discriminação existente de forma generalizada na
sociedade. Entretanto, esta polarização do feminino somente em Maria acaba redundando
na re-afirmação daquilo que se quer exatamente superar: a supervalorização dos sexos”.
(BOFF, 1979, p.15-16). Essas marcas de virgem, mãe, esposa, rainha, sabedoria e taber-
náculo de Deus, ainda mantém continuidades e rupturas.
A imagem da Virgem que concebe Jesus pela ação do Espírito Santo por muito se
vinculou a castidade e pureza que deveria ser mantida pela mulher. Não é raro encontrar
entre os grupos de jovens a concepção de “namoro santo”, no qual devem guardar sua
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castidade até o casamento, ou ainda pregações que estão direcionadas a castidade como,
por exemplo, Castidade: Guardiã do Amor Autêntico realizada por Geisy Guerra (2019),
ou É possível viver na castidade nos dias de hoje? por Crislaine Janegitz (2018), ambas
pregações realizadas no Módulo Namoro10. Entretanto, o percebemos é que não é uma
temática voltada apenas as mulheres, e ainda não podemos perder de vista que essas são
perspectivas compartilhadas de forma homogênea pelos católicos que frequentam o evento.
Outro papel que verificamos diz respeito ao de esposa, Maria ainda é percebida como a
protetora do lar, mas os debates tangem uma responsabilidade reciproca entre o casal para a
construção da família, ali falam sobre amor, perdão, segunda união e nulidade, são distintas
visões e temáticas relacionadas aos relacionamentos conjugais. Mas sobre essa construção
familiar o modelo é sobretudo o da Sagrada Família - Jesus, Maria e José, isso significa o
ideal de que uma esposa tenha um filho, no qual podemos conferir nas narrativas a seguir.
Em 2014 pouco depois de sairmos da missa pela manhã estávamos no Módulo Família
naquele momento uma das artistas que pregava e cantava no Hallel um testemunho dava
um testemunho. Dizia ela que, na edição anterior do Hallel sofreu um aborto, mesmo assim
decidiu cantar, porque acreditava que não poderia deixar de louvar e levar a palavra, Deus
acolheria sua dor e ela sabia que deveria continuar sua trajetória. Naquele ano, ela havia
sido abençoada dando à luz. Era uma fala sobre dor, sobre superação, sobre família e prin-
cipalmente sobre confiar nos propósitos divinos, sobre ser mãe e esposa. Outra situação que
vimos foi no ano de 2015, uma mulher subia ao palco do Módulo Pregadores em um momento
de pregação da Irmã Zélia da Copiosa Redenção e pedia para que todos orassem por ela,
que há 10 anos tentava engravidar, o local estava cheio de pessoas que direcionavam suas
mãos até a mulher que esperava o milagre de ser mãe. O ser mãe, o gerar um filho é algo
considerado como essencial, uma parte importante para a formação familiar.
A figura materna de Maria, do seu amor incondicional é fortemente delineada no Hallel,
para esses católicos, eles também são filhos de Maria e na figura dela podem ter o colo,
podem realizar pedidos para que ela interceda a Jesus.
Nossa afirmativa pode ser percebida nos títulos das palestras e pregações que se
relacionam com o nome dela: Módulo de Maria: 2019 - Um ícone para a humanidade, seu
nome é Maria (Diácono Cesar Ribeiro de Castro), Maria: caminho que antecipa nosso mila-
gre (Elisia Aparecida Doles Boiko); 2018- Maria intercessora - D. Maria Vendramel, Maria,
socorre nas suas maiores dificuldades (Elisa Doles Boiko – Grupo de oração Raio de Luz),
Maria, mãe e protetora (Wilson Rocha). Ressaltamos que missas e terços meditados eram
10 Paralelamente as questões relacionadas a castidade, também é possível observar nesse módulo a preocupação em falar sobre
como a carência poderia levar a escolhas erradas, o namoro enquanto um processo de conhecimento para o matrimônio, namoro a
distância, o respeitar o outro, afetividade e sexualidade, entre outros.
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formas de orações recorrentes nesse módulo. Outras apresentações que enfatizam essa mãe
e intercessora foi o Módulo Arte/ Dança/Teatro: 2019- Rainha do meu coração (Dança JAM-
Juventude de Ação Mariana, Sarandi-PR); 2017- Filhos de Maria (Pós Crisma); 2016- No colo
de Maria (Ministério de Dança JAD), Coração de Mãe (Ministério de Dança Servos do
Pai); 2015; Restaurados pela intercessão de Maria (Ministério de Artes e Sentinelas do
Amanhã). O que percebemos é que o que tangencia com maior intensidade é a Mãe que
opera milagres, que se sacrifica, que liberta.
Recordamos que em 2017, antes um pouco do sol se pôr, embora tivesse movimento
entre os módulos, eles estavam em processo de encerramento com as pessoas se encami-
nhando até o Palco Central para os shows principais. Então, o Módulo de Maria nos chamou
atenção, o local tinha muita gente e várias pessoas estavam saindo com rosas brancas
em suas mãos, o que nos levou a ver o que estava acontecendo no módulo. À medida que
as pessoas iam saindo, nós íamos entrando. Naquele ano a imagem de Nossa Senhora
Aparecida estava ao centro, ano de celebração dos 300 anos de sua aparição como pode-
mos observar na Imagem 4. Uma enorme quantidade de rosas brancas enfeita o ambiente,
numa espécie de altar. Eram aquelas rosas que os fiéis estavam retirando, pegando por
si, ou das mãos dos organizadores do módulo. Algumas pessoas saiam com várias rosas,
com doze, quinze rosas, demostrando um apresso por tê-las consigo. Majoritariamente eram
mulheres e mulheres mais velhas, havia sim um público de outras idades como crianças,
jovens, homens, entretanto, eram mulheres que predominavam. Foi quando repousamos
nosso olhar em uma mulher, sua presença saltava aos nossos olhos, se destacava, pois
parecia estar indo em contra ponto ao restante do público que tanto ansiavam pelas rosas e
queriam ir para o show, não, ela não, com um bebê no colo ela tinha um caminhar preciso,
objetivo e não buscava as flores. A mulher parou diante de Nossa Senhora, enquanto uma
das organizadoras do módulo pega a imagem de Maria e tenta aproximar a imagem até a
mulher, enquanto a mãe tenta aproximar a criança que estava em seu colo até a imagem de
Nossa Senhora. Inicialmente, aquilo nos causa ansiedade pois a mãe inclinava e estendia
para cima o bebê até a imagem porque estava em um local elevado, a sensação era de que
a criança ou a imagem poderiam cair a qualquer momento, até que ela consegue tocar o
bebê em Nossa Senhora. A mãe ao virar-se em ângulo que podíamos ver sua face, víamos
que estava muito emocionada, ao baixarmos o nosso olhar até o bebê que era bem novinho
havia um corte na parte superior de sua cabeça, no cabelo raspado. Nesse momento, a cla-
reza sobre essa cena tomou-nos a mente, era uma graça alcançada ou um pedido. A mãe
podia estar cumprindo uma promessa e em gratidão a cirurgia bem-sucedida, ou a situação
que sua criança havia passado levava-a até Nossa Senhora, ela precisava agradecer. A fé,
o caminhar firme e a crença no poder de Maria eram reais para aquela mãe. Não sabemos
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se a organização sabia sobre as intenções da mãe, era visível o esforço desses para que
o ato fosse realizado também. Não se trata apenas de uma imagem, é um momento mági-
co, trata-se de um momento de fé, devoção, de uma crença que marca situações da vida
daquela mãe, que pedia a outra mãe que intercedesse por seu filho (a). Essa cena foi após
a Missa de Com sagração e renovação dos votos à nossa Senhora, celebrada pelo Padre
Rodrigo Guietierrez Stabel. A narrativa que acabamos de descrever nos traz reflexões sobre
como, a imagem mítica de uma mãe universal, sempre pronta a zelar por seus filhinhos [...],
tem raízes profundas na nossa cultura. As querelas em torno do culto mariano vão além
de uma marca de diferenciação. Está em jogo também a abdicação ou não da imagem da
mãe mítica, ao que nos parece, da feminilidade e do feminino como parte integrante da
constituição universal, da possibilidade do ser humano de buscar um fim que não seja tão
esmagadoramente centralizado numa figura masculina, e mais, da possibilidade do humano
como algo esplendoroso (PRANDI, 1998, p. 142).
Desse modo, concluímos que ao considerar que o Hallel é um espaço de práticas ca-
tólicas em Maringá, de experiência religiosa e o reconhecimento do sagrado na festa, Maria
é a Virgem, a Esposa, o modelo, seguidora de Jesus e principalmente a Mãe acolhedora,
paciente, benevolente e intercessora, estabelecendo um fio condutor na imagem de mãe e
de feminino para os católicos.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo, O.F.M. O rosto materno de Deus: Ensaio interdisciplinar sobre o feminino
e suas formas religiosas. Petrópolis: Editora Vozes, 1983.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2010.
EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Hallel de Maringá 2016- 22ª edição, 2ºdia.
Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro. Maringá-PR, 2016. Trabalho de campo.
(História, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR), 04 de dez. de 2016.
EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Observação Hallel de Maringá 2017- 23ª edi-
ção 2ºdia. Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro, Maringá-PR, 2017. Trabalho de
campo. (História, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR), 05 de nov. de 2017.
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EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Observação Hallel de Maringá 2018- 24ª edi-
ção, 2ºdia. Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro, Maringá-PR, 2018. Trabalho de
campo. (História, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR), 30 de set. de 2018.
HALLEL MARINGÁ 2017. Programação do Hallel Fazei tudo o que Ele voz disser. Marin-
gá-PR, 2017, Ano XXIII.
HALLEL MARINGÁ 2018. Programação do Hallel Em Cristo somos todos irmãos. Marin-
gá-PR, 2018, Ano XXIV.
HALLEL MARINGÁ, 2016, Programação do Hallel Sementes de uma nova geração. Ma-
ringá-PR, 2016, Ano XXII.
SERAFIM, Vanda Fortuna. Observação Hallel de Maringá 2017- 23ª edição, 2ºdia. Parque
de Exposição Francisco Feio Ribeiro. Maringá-PR, 2017. Trabalho de campo. (História,
Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR). 05 de nov. de 2017.
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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SOBRE A ORGANIZADORA
As Várias Faces de Eva: o feminino na contemporaneidade - ISBN 978-65-5360-279-3 - Vol. 2 - Ano 2023 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.com.br
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ÍNDICE REMISSIVO
175, 177, 187, 190, 193, 212, 213, 214, 215, 216,
A 217, 218, 219, 220, 221, 223, 224, 225, 226, 232,
233, 240, 241, 242, 243, 245, 246, 250, 253, 254,
Autoestima Feminina: 57 255, 257, 259, 261, 269, 272
Autoimagem: 56, 57, 58, 59, 74, 75, 77, 113, 118,
121, 129, 132 Feminização: 133, 134, 135, 136, 137, 138, 141,
142, 144, 146, 147, 148
Autorretrato: 79, 90
Filha: 14, 31, 32, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47,
C 71, 105, 152, 153, 160
Câncer: 15, 16, 79, 80, 81, 84, 87, 88, 90, 95, 96, Fotografia: 78, 79, 81, 87, 88, 89, 94, 95, 96, 97
97
Freud: 37, 44, 188, 190, 195, 196, 212, 213, 214,
Catolicismo: 101, 159, 259, 260, 261, 262, 263, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224,
273 225, 226, 227, 242, 243, 245
Ciência: 12, 14, 15, 16, 20, 27, 34, 54, 63, 64, 77, G
85, 86, 131, 139, 165, 179, 196, 211, 223, 237, 241,
242, 256, 257 Gênero: 18, 20, 21, 22, 28, 52, 54, 55, 58, 62, 66,
67, 74, 102, 108, 110, 118, 119, 120, 131, 134, 136,
Clínica Junguiana: 150 138, 139, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148,
149, 200, 204, 207, 232, 233, 235, 237, 240, 241,
Corponormatividade: 199, 203, 205, 210 242, 243, 245, 246, 250, 251, 252, 253, 254, 255,
256, 257
Crip: 199, 200, 201, 203, 204, 205, 206, 209, 211
Cultural: 12, 23, 25, 26, 27, 37, 51, 52, 53, 85, 86, H
89, 97, 101, 102, 103, 109, 135, 136, 190, 199, 202,
204, 211, 214, 233, 236, 238, 242, 245, 252 História: 13, 15, 16, 23, 26, 27, 29, 32, 35, 36, 39,
43, 44, 46, 47, 53, 60, 61, 66, 67, 70, 77, 79, 81, 82,
D 96, 99, 100, 102, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 116,
123, 131, 135, 138, 140, 141, 143, 145, 147, 148,
Devoção: 259, 261, 262, 263, 264, 268, 272 149, 163, 185, 187, 188, 195, 196, 223, 230, 231,
232, 233, 235, 236, 242, 244, 245, 246, 253, 256,
Docência: 134, 135, 136, 144, 145, 146
257, 259, 261, 263, 269, 272, 273
E
I
Educação Infantil e Ensino Fundamental: 134,
136 Iemanjá: 150, 151, 152, 153, 154, 156, 157, 158,
159, 160, 161, 162, 163
Educação Racial: 228, 229
Influência: 31, 32, 34, 36, 38, 40, 41, 43, 45, 58,
Estética: 58, 59, 90, 95, 112, 114, 115, 116, 117, 71, 72, 88, 101, 103, 104, 115, 129, 190, 214, 224,
118, 122, 123, 124, 125, 130, 211, 231, 232 226, 241, 251, 260
F L
Feminino: 18, 19, 21, 36, 40, 42, 43, 52, 57, 64, 65, Literatura Afro-Feminina: 228, 229, 230, 231,
66, 67, 68, 69, 70, 73, 74, 76, 77, 78, 81, 82, 84, 85, 232, 233, 235, 236, 238
94, 95, 96, 102, 104, 108, 109, 111, 115, 117, 118,
123, 124, 126, 127, 129, 130, 131, 135, 138, 142, Llorona: 98, 99, 100, 102, 103, 104, 105, 106, 107,
144, 145, 147, 153, 154, 156, 161, 164, 167, 170, 108, 109, 110
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ÍNDICE REMISSIVO
187, 188, 189, 191, 192, 193, 196, 201, 202, 203,
M 214, 215, 217, 219, 221, 222, 224, 225, 226, 227,
Mãe: 14, 27, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 237, 238,
41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 70, 73, 84, 101, 102, 240, 241, 242, 243, 244, 245, 250, 251, 252, 253,
103, 104, 106, 107, 108, 109, 151, 152, 153, 154, 254, 255, 256, 257, 263, 269, 270, 271
156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 183, 184,
185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, Mulheres Negras: 203, 228, 229, 230, 231, 232,
195, 196, 218, 220, 221, 222, 223, 224, 246, 261, 233, 234, 235, 238
262, 263, 268, 269, 270, 271, 272 N
Magistério: 19, 61, 133, 134, 135, 136, 137, 138, Narrativas do México: 99
141, 142, 144, 145, 146, 147, 148
Negritude: 229, 230, 231
Malinche: 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 108,
109, 110 P
Maria: 11, 28, 29, 31, 48, 49, 76, 82, 83, 108, 141, Personalidade: 31, 32, 33, 34, 37, 38, 39, 40, 41,
142, 148, 152, 163, 180, 182, 228, 232, 233, 235, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 58, 67, 76, 117, 129, 153,
237, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 264, 156, 159, 160, 162, 163, 240, 241, 247, 248, 249,
265, 266, 268, 269, 270, 271, 272 250, 252, 255, 268
Marketing de Varejo: 166, 178, 180 Pesca Artesanal: 51, 52, 53
Marketing mix: 165, 166, 167, 168, 170, 172, 176, Política: 23, 53, 85, 96, 118, 120, 131, 140, 147,
178, 179 201, 202, 203, 205, 206, 207, 208, 209, 211, 214,
215, 233, 236, 244, 253
Maternidade: 14, 28, 41, 42, 102, 106, 135, 144,
147, 153, 154, 160, 161, 183, 184, 185, 187, 188, Psicanálise: 12, 22, 183, 184, 185, 187, 188, 189,
189, 190, 191, 192, 193, 195, 196, 215, 233, 268, 193, 196, 197, 212, 213, 214, 216, 217, 224, 227,
269 242, 243, 244, 245, 246, 254, 255
Mito: 12, 13, 14, 22, 23, 24, 25, 27, 67, 68, 70, 72, Psicodiagnóstico: 240
73, 74, 76, 102, 103, 104, 107, 150, 153, 157, 182,
183, 184, 185, 187, 191, 192, 193, 194, 195, 234, Psicologia: 22, 29, 32, 35, 36, 37, 44, 45, 47, 48,
269 57, 66, 74, 75, 76, 77, 130, 132, 140, 151, 160, 163,
196, 199, 206, 207, 208, 210, 216, 247, 255, 257
Mulher: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 22, 25, 26, 36,
40, 41, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 59, 65, 66, 68, Psicologia Analítica: 32, 37, 48, 57, 75, 151, 163
69, 70, 71, 73, 74, 76, 81, 84, 96, 99, 100, 101, 102,
103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 112, 113, Psicologia Clínica: 57, 74
114, 117, 118, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 128,
Psicopatia Feminina: 239, 240, 241, 246, 256
129, 130, 131, 136, 138, 141, 142, 145, 148, 149,
158, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, Psicoterapia de Grupo: 12
192, 193, 194, 195, 196, 202, 203, 213, 215, 217,
218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 229, Q
230, 231, 233, 234, 235, 236, 237, 240, 241, 242,
243, 244, 246, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 264, Queer: 199, 200, 201, 202, 203, 204, 206, 209,
269, 270, 271 210, 211
Mulheres: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 24, S
25, 27, 28, 29, 40, 41, 42, 43, 51, 52, 53, 54, 57, 58,
59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 72, 73, 74, 75, Satisfação: 23, 114, 124, 125, 165, 166, 167, 168,
76, 77, 81, 83, 84, 90, 91, 95, 100, 104, 105, 108, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178,
110, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 195, 219
121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130,
Saúde: 17, 46, 47, 58, 61, 76, 77, 81, 112, 113, 114,
131, 135, 136, 138, 139, 141, 142, 143, 144, 145,
118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 132, 151,
146, 147, 148, 152, 158, 166, 168, 184, 185, 186,
159, 162, 202, 204, 211, 246, 248, 250, 252, 257
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ÍNDICE REMISSIVO
V
Vivência: 51, 80, 81, 86, 157, 162, 254, 259, 263
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