Universidade de São Paulo
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
São Paulo
2008
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São Paulo
2008
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
FOLHA DE APROVAÇÃO
Dissertação apresentada
à Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo
para a obtenção do título de Mestre.
Linha de pesquisa: Linguagem e Educação
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof.ª Dr.ª__________________________________________________________
Instituição:________________________Assinatura:________________________
Prof. Dr.___________________________________________________________
Instituição:________________________Assinatura:________________________
Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço à Prof.ª Dr.ª Neide Luzia de Rezende por sua
orientação generosa, atenta e confiante. Agradeço pelos estímulos e incentivos,
fundamentais para a pesquisa, e pelos ensinamentos, essenciais para a vida.
Agradeço a todos os meus alunos e alunas com os quais aprendi e aprendo
diariamente. Sem eles este estudo não existiria.
Meus agradecimentos aos autores de literatura marginal-periférica e a todos os
envolvidos com a cultura de periferia, em especial àqueles que colaboraram direta ou
indiretamente com esse trabalho: Allan Santos da Rosa, Érica Peçanha do Nascimento,
Rodrigo Ciríaco, Sérgio Vaz, Sacolinha, Ferréz e Alessandro Buzo.
À Prof.ª Dr.ª Andrea Saad Hossne e ao Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto pelas
importantes considerações e intervenções feitas durante o exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Amaury César Moraes e aos colegas do Grupo de Estudos pelas
discussões teóricas e comentários realizados ao longo de nossos encontros. Agradeço ao
Richard pela solícita e cuidadosa tradução, à Gabriela pela prestimosa ajuda em
diversos momentos da pesquisa e ao Marcello pelas leituras atenciosas.
Ao diretor e amigo Thiago Reis Vasconcelos pela disponibilidade e inabalável
crença no processo colaborativo. A todos da Cia. Antropofágica, da Oficina do Ator
Antropofágico e do Projeto Y (PY) pelas devorações e reflexões.
Aos amigos camaradas João Gazeta e Antônio Macário, pelas opiniões e
debates, sempre tão calorosos.
Aos amigos da E. E. Almirante Marquês de Tamandaré pela convivência, pelas
trocas de experiências e solidariedade.
Às amigas Estér, Priscila C., Marta S., Priscilla N. e Adriana C. pela força.
Aos professores Fábio Supérbi, Caetano Martins, Laura Barbosa, Elizete Gomes
e aos companheiros do Senac pelas conversas, indicações de leitura e ensinamentos.
Aos meus irmãos Pai Lu e Mei Ling, tão amigos, tão necessários.
À D. Regina e ao Sr. Dorival, pelo carinho e apoio constante. Agradeço a todos
da família Del Nero, família Leite, família Soares, família Takeshita.
Às minhas queridas filhas Lai An e Li Na pelo amor incondicional e
compreensão durante os momentos em que estive um pouco ausente.
Ao meu querido companheiro Fabricio, tão amoroso e parceiro, por compartilhar
sonhos e ajudar a realizá-los.
8
9
Resumo
Abstract
SOARES, Mei Hua. Marginal literature and the school. 2008. Dissertation (Master in
Education) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
The subject of this dissertation is the reading of marginal literary pieces, texts produced
by a group of writers from the outskirts of São Paulo city, known as Periferia. Taking in
consideration the teaching experiences in middle and high school classes in a public
school of São Paulo state and understanding that marginal literature is one of the major
influences within the literary field as well as the relation of this group with the
publishing market, this study discusses the pertinency of the inclusion of this literature
in educational sphere. It was based on the notion of field of Pierre Bourdieu and
supplemented by the polysemy of Itamar Even-Zohar. The reading process was seen
through the reception theory (Hans Robert Jauss and Vicent Jouve). In order to analyze
the elements that help in the process of reader identification, the corpus was Capão
Pecado by Ferréz, Graduado em Marginalidade by Sacolinha, Vão by Allan da Rosa
and Te Pego Lá Fora by Rodrigo Ciríaco. The conclusion is the value of this kind of
literature seems to be related to the social representation and the writing appropriation
by historically deprived groups, because of that, the public school readers, raised in the
outskirts of a metropolis identify themselves with the texts. Besides the identification,
observed during the reading process, it also discusses a need for aloofness, studied in
comparison with acting theories.
Keys words: marginal literature, school reading, identification and aloofness, teaching.
14
15
Sumário
Introdução 17
Capítulo 1
O ensino de literatura 25
O aluno e a leitura literária 30
A literatura nos documentos oficiais e os livros didáticos 36
A leitura e a escrita em situação de heterogeneidade cultural 44
A escola e a formação 51
A cultura híbrida do jovem na escola 54
Capítulo 2
A prática na sala de aula 65
Experiências I 68
Experiências II – Antropofagia em cena 76
Experiências III – Projeto “Literatura (é) Possível” 79
Capítulo 3
Sobre a literatura marginal-periférica 85
Os autores e as obras da literatura marginal-periférica 94
A cultura periférica, cultura de massa e as lutas no interior do campo
cultural 101
A literatura marginal-periférica e a reportagem: verdade e realidade 111
A identificação do jovem (elementos literários que propiciam o fenômeno) 114
A figura do anti-herói (o malandro e o marginal) 129
Prática de leitura e prática teatral: identificação, catarse e distanciamento 134
Conclusão 143
Introdução
1
“A maior contribuição dos conceitos apreendidos em teorias e teóricos literários de diferentes
orientações acadêmicas e linhas de pensamento político foi perceber como os paradigmas propostos
foram construídos em perfeição lógica, mas raramente postos em prática em situações de sala de aula,
oferecendo um exemplo claro de dicotomia entre pesquisa e docência, entre academia e escola”.
(LEAHY-DIOS, 2004, p.37)
20
2
O “real” apresentado em grande parte das obras marginal-periféricas está relacionado a uma realidade
violenta e injusta que parece encontrar ressonância entre os jovens leitores.
21
estudados sob a ótica das teorias da recepção (Hans Robert Jauss, Vincent Jouve) e de
teorias teatrais (Constantin Stanislavski e Bertolt Brecht) e encerram esse capítulo.
As principais perguntas que motivaram este estudo são:
• Qual o valor da literatura marginal-periférica no contexto escolar? Em que
medida a literatura marginal-periférica seria pertinente na escola?
• Essa modalidade literária cumpriria a função de “formar” um bom leitor, ou seja,
atenderia às exigências, ainda que teóricas, de ensino de leitura na escola?
• Quais elementos literários e extra-literários contribuiriam para o processo de
identificação do leitor com a obra?
• Somente uma leitura fundamentada na identificação seria suficiente no contexto
escolar?
• Seria possível desdobrar o processo de leitura, para além da catarse e do
processo identificatório, através de um distanciamento crítico do leitor?
As questões acima, que surgiram ao longo do trabalho, não pretendem ser
respondidas em “caráter decisivo” ou absoluto, já que, ao fazê-lo, a pesquisa incorreria
no erro de tentar formular uma solução idealizada para os muitos problemas que a
leitura literária na escola envolve. O que se espera com esse estudo é partilhar
experiências relacionadas à leitura escolar e vislumbrar caminhos possíveis de serem
trilhados durante o trabalho com literatura em sala de aula.
22
23
Capítulo 1
O ensino de literatura
A arte literária, pelo seu poder de envolvimento, tanto para o sujeito receptor
(leitor) quanto para o emissor (autor) surge como uma possibilidade de suprir a
“necessidade de ficção”3 do indivíduo. Há, no entanto, alguns aspectos que
problematizam a literatura como arte de maior abrangência: a fruição literária que
permeia o processo de leitura exige aptidões específicas e só por isso já extingue boa
parte dos indivíduos (não-alfabetizados ou analfabetos funcionais); as obras
consideradas “obras de arte” geralmente são as que mais exigem habilidades específicas
de decifração de códigos objetivos e subjetivos que normalmente são adquiridos ao
longo de uma persistência no ato da leitura literária e de obediência aos “protocolos de
leitura” 4; por último, e, talvez, mais importante, quando esse sujeito consegue passar
pela fruição da obra literária ele, na maior parte das vezes, fica restrito à recepção: seja
pela dificuldade de expressão por um meio tão pouco íntimo do cotidiano (apesar de a
escrita estar virtualmente inserida no currículo escolar de um ensino supostamente
democrático), seja, porque – tendo sido ultrapassado esse primeiro obstáculo –, a escrita
literária, para existir enquanto tal, precisa de leitores, o que implica mecanismos de
edição, divulgação e circulação. Essas características conferem às obras literárias uma
posição quase inalcançável à maior parte das pessoas, que fica restrita apenas ao
reconhecimento de uma “grande obra de arte” proclamada por um campo dominante. A
transcendência e a sublimidade atribuídas a tais obras acabam sendo responsáveis pela
aparente “incapacidade” da maior parte das pessoas de determinar quais são realmente
“artísticas”, o que implica em restringir o público à recepção:
Por que se faz tanta questão de conferir à obra de arte – e ao conhecimento que ela
reclama – essa condição de exceção, senão para atingir por um descrédito prévio as
tentativas (necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que pretendem submeter
esses produtos da ação humana ao tratamento ordinário da ciência ordinária, e para
afirmar-lhe a transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecer-lhe a
transcendência? (...) É legítimo valer-se da experiência do inefável, que é sem dúvida
consubstancial à experiência amorosa, para fazer do amor como abandono maravilhado
à obra apreendida em sua singularidade inexprimível a única forma de conhecimento
que convém à obra de arte? E para ver na análise científica da arte, e do amor pela arte,
3
Antonio Candido faz referência a essa necessidade intrínseca do ser humano: “(...) a necessidade de
ficção se manifesta a cada instante; aliás, ninguém pode passar um dia sem consumi-la, ainda que sob a
forma de palpite na loteria, devaneio, construção ideal ou anedota. E assim se justifica o interesse pela
função dessas formas de sistematizar a fantasia, de que a literatura é uma das modalidades mais ricas.”
CANDIDO, 1972, p.804).
4
Roger Chartier faz referência aos “protocolos de leitura”, ou seja, às regras impostas pelo texto, criadas
pelo autor que imagina um leitor ideal e que o conduz através de tais protocolos. (CHARTIER, 2001).
26
a forma por excelência da arrogância cientificista que, sob pretexto de explicar, não
hesita em ameaçar o ‘criador’ e o leitor em sua liberdade e singularidade? A todos esses
defensores do incognoscível, encarniçados em erguer as muralhas inacessíveis da
liberdade humana contra as usurpações da ciência, oporei estas palavras muito kantianas
de Goethe, que todos os especialistas das ciências naturais e das ciências sociais
poderiam fazer suas: ‘Nossa opinião é de que convém ao homem supor que há algo de
incognoscível, mas ele não deve colocar limite à sua busca’. (BOURDIEU,1996, p.12-
13)
5
“Para que serve este bem imaterial que é a literatura? Bastaria responder, como já fiz, que é um bem
que se consuma gratia sui, e portanto não deve servir para nada. Mas uma visão assim desencarnada do
prazer literário corre o risco de reduzir a literatura ao jogging ou à prática de palavras cruzadas – os
quais, além do mais, servem ambos para alguma coisa, ora à saúde do corpo, ora à educação léxica.”
(ECO, 2003, p.10)
6
Marisa Lajolo destaca essa distância entre a literatura fora e dentro da escola: “Levar em conta a
interação leitor-texto para discutir literatura parece dar conta de forma mais adequada do modo de
inserção da literatura na vida escolar, uma vez que a prática de leitura patrocinada pela escola é
dirigida, planejada, limitada no tempo e no espaço. Tais atributos tornam a leitura escolar bastante
afastada da individualidade, solidão e gratuidade que caracterizam a leitura prevista pelas teorias da
literatura que desconsideram, em suas reflexões, as condições institucionais nas quais ocorre a leitura
dos textos de cuja literariedade elas se ocupam”. (LAJOLO, 1993, p.44)
27
7
A “funcionalidade” da literatura é altamente questionável. O termo é utilizado aqui para apontar que no
contexto escolar há essa sensação de que o ensino de literatura necessitaria exercer uma função.
8
Não se pretende aqui adotar posturas contra a presença e a importância do estudo e da leitura das obras
canônicas na sala de aula, mas sim refletir sobre a possibilidade de também se estudar e analisar outras
obras, gêneros e autores que promovam uma outra forma de aproximação com o leitor na escola. Também
é necessário repensar o modo como a literatura, canônica ou não, é apropriada na escola e as estratégias
de abordagem.
28
objetivos que não apenas artísticos, mas pedagógico-educacionais. Eis aqui então um
problema: se a arte é praticamente indefinível devido a sua complexidade, o que surge
nas escolas parece ser apenas uma das facetas da literatura, ou seja, a literatura aparece
na escola como arte escolarizada, engavetada, chapada, não mais múltipla e dotada de
excentricidades e desdobramentos. Mesmo assim, continua a consistir em um
instrumento subversivo, até mesmo no combate a esse “engessamento” escolar a que foi
condicionada. Antonio Candido aponta para o fato de a literatura não se reduzir aos
valores morais que são impostos a ela e através dela:
A literatura pode formar; mas não segundo a norma oficial, que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa, - o Verdadeiro, o Bom, o Belo,
definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua concepção
de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (...), ela age com o
impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, - com altos e baixos, luzes e
sombras. (...) Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com
toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa
conduta. (CANDIDO, 1972, p.805)
A leitura idealmente exige que o aluno seja letrado, que consiga transitar pelos
conteúdos e pela linguagem utilizados nos textos, que possa refletir sobre aquilo que
está lendo, pedindo ainda o esforço de concentração, que se torna cada vez mais difícil
em nossa veloz sociedade midiática e imagética.
Haveria a possibilidade de iniciar essa fruição e essa postura mais reflexiva
durante a leitura mediante textos mais próximos da vida cultural e da condição sócio-
econômica do educando? Alguns estudiosos temem que os alunos, tendo acesso a
determinado tipo de leitura periférica e a um linguajar mais próximo do seu, fiquem
relegados a apenas este tipo de gênero:
ambos. Isso geralmente ocorre quando o interesse pelo texto é mútuo e vai além dos
objetivos curriculares, quando há mais valores envolvidos do que uma mera obediência
à necessidade de se ler na escola. As leituras realizadas mediante textos escolhidos pelos
docentes em geral respondem às intenções didáticas do mediador sem considerar,
contudo, interesses ou possibilidades do estudante, o que provoca um desinteresse pelo
texto indicado.
Ainda sobre o assunto, Roland Barthes realiza uma importante definição que
delimita dois tipos de textos: o de prazer e o de fruição.
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não
rompe com ela, está ligado à uma prática confortável de leitura. Texto de fruição: aquele
que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até com um certo enfado),
faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus
gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a
linguagem. (BARTHES, 1993, p.21-22)
9
Utilizam-se aqui anotações de leituras resultantes de discussão sobre textos traduzidos pelos colegas do
grupo de estudos do qual participo, coordenado por minha orientadora e pelo professor Amaury César
Moraes. Tais textos deverão compor um livro sobre o leitor real. Estes textos em parte provêm do livro
organizado por Gerad Langlade e Annie Rouxel, Le sujet lecteur: lecture subjective et enseignement de la
littérature.
10
Agradeço ao colega Richard Marcello que trouxe para a discussão no grupo de estudo o texto de
Stanley Fish, “What makes an interpretation acceptable”.
32
(...) Cidade de Deus é uma história de violência. A história de como, num ambiente
daqueles, a prática de pequenos crimes, de crimes artesanais, evolui para uma escala
industrial, vinculada ao tráfico de drogas. Acho que em nenhum desses casos se pode
dizer que a violência serve de pretexto para exercícios estéticos. Penso que é o oposto
do que acontece em filme de publicidade e em muito cinema de Hollywood, aqueles
repletos de “defeitos especiais”. Filme com defeito especial é que usa a violência como
objeto de consumo. (...) Quando é que a crítica vai se mancar e reconhecer que ela não
dispõe de referências e muito menos de aparato crítico para dialogar com essa
produção? (...) Em vez de ficar insistindo nisso, por que não acolher o pessoal do rap,
do hip hop, toda essa produção lírica que está aí? São as vozes da experiência social
brasileira para as quais a crítica volta as costas. Ou, se não volta, não dispõe de meios
para dela se aproximar. (COSTA, 2004, p.26)
33
Nesse sentido, é oportuno retomar o texto de Barthes (1993), num trecho em que
discorre sobre a duplicidade da obra e de suas margens, para fazê-lo dialogar com a fala
de Costa:
Daí, talvez, um meio de avaliar as obras da modernidade: seu valor proviria de sua
duplicidade. Cumpre entender por isto que elas têm sempre duas margens. A margem
subversiva pode parecer privilegiada porque é a da violência; mas não é a violência que
impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma
perda, é a fenda, o corte, a deflação, o fading que se apodera do sujeito no imo da
fruição. A cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma.
(BARTHES, 1993, p.12-13)
Discutir obras literárias historicamente próximas de nós (...) exige uma recriação dos
próprios instrumentos críticos. Mirar o presente (não somente o literário) parece ser um
exercício particular do olhar míope: distanciar-se de si mesmo sem perder de vista, no
momento da análise, as contradições que o animam e o angustiam.
(SCHWARZ, 2004, p.8)
(...) comprei o livro do Ferréz, Capão Pecado, e deixei sobre a mesa, lá em casa. A
empregada viu e falou: “Doutor, posso pegar?”. Ela levou, leu, três dias depois me
disse: “ É assim mesmo”. Está acontecendo uma reestruturação de leitores possíveis,
porque essa moça agora é uma leitora possível. É uma reestruturação do espaço de
consumo cultural que é uma coisa sobre a qual devemos pensar. (SCHWARZ, 2004,
p.19-20)
34
É difícil delimitar com precisão o seu verdadeiro alcance entre os alunos quando
há empatia ou identificação durante a leitura, mas podemos supor que numa experiência
literária há elementos que podem operar transformações nos envolvidos, como afirma
Umberto Eco:
(...) não esqueçamos que os jovens que enviam mensagens nesta nova estenografia11
são, pelo menos em parte, os mesmos que enchem essas novas catedrais do livro que
são as grandes livrarias de muito andares e que, mesmo que folheiem sem comprar,
entram em contato com estilos literários cultos e elaborados, aos quais seus pais, e
certamente seus avós, sequer foram expostos. Podemos por certo dizer que, maioria em
relação aos leitores das gerações precedentes, estes jovens são minoria em relação aos
seis bilhões de habitantes do planeta; nem eu seria idealista a ponto de pensar que às
imensas multidões, às quais faltam pão e remédios, a literatura poderia trazer alívio.
Mas uma observação eu gostaria de fazer: aqueles desgraçados que, reunidos em bandos
sem objetivos, matam jogando pedras dos viadutos ou ateando fogo a uma menina,
sejam eles quem forem afinal, não se transformaram no que são porque foram
corrompidos pelo newspeak do computador (nem ao computador eles têm acesso), mas
porque restam excluídos do universo do livro e dos lugares onde, através da educação e
da discussão, poderiam chegar até eles os ecos de um mundo de valores que chega de e
remete a livros. (ECO, 2003, p.12-13)
Existe ainda uma mudança no tipo de leitura direcionada aos alunos de ensino
fundamental I e para os de ensino fundamental II e médio. Em geral, com os alunos dos
primeiros anos do ensino básico costuma se privilegiar o contato lúdico com textos e
livros, evitando-se um direcionamento pedagógico12. Já nos ciclos seguintes, a leitura
costuma adquirir um caráter mais restrito, menos interessante, uma vez que tende à
análise mais que ao prazer:
Ocorre que, depois que os alunos deixam as séries iniciais do ensino fundamental, o
modelo positivista de reforço à cognição quantitativa nos estudos literários dirige o foco
de interesse para as estruturas formais do texto, colocando o aluno-leitor num plano
secundário. (LEAHY-DIOS, 2004, p.36)
11
Eco referia-se à linguagem utilizada pelos jovens desta geração nas mensagens enviadas através da
internet.
12
Sobre as primeiras experiências de leitura e avidez do pequeno leitor, diz Daniel Pennac sobre o adulto
que ensina a ler: “Que pedagogos éramos, quando não tínhamos a preocupação da pedagogia!”
(PENNAC, 1993, p. 21).
35
(...) é porque cada um projeta um pouco de si mesmo na sua leitura que a relação
com a obra não significa somente sair de si, mas também retornar a si13. A leitura de
um texto é sempre ao mesmo tempo leitura do sujeito por ele mesmo, constatação
que, longe de problematizar o interesse do ensino literário, ressalta-o. De fato, não
se trata, para os pedagogos, de uma chance extraordinária que a leitura seja não
somente abertura para a alteridade mas, também, exploração, ou seja, construção de
sua própria identidade? Não seria pois questão de apagar, no ensino, a dimensão
subjetiva da leitura”. (JOUVE , 2004)14
13
“Sollers dizia, não sem razão: ‘É preciso que o leitor compreenda que aquilo que ele lê é ele’. Nessa
mesma linha, convém opor ao tradicional e bem pensante ‘Ler é sair de si’, que figura, como se vê, às
vezes concretamente, mas geralmente secretamente, no frontispício dos livros, o vigoroso desmentido
compensador de um ‘ler é entrar em si’”. (GRIVEL, 1981/1982, p.132)
14
Tradução de Neide Luzia de Rezende do artigo para livro a ser publicado no Brasil.
15
Manifestação Ativa de Resgate Cultural Alternativo na Rua. Este projeto recebe o incentivo da
Prefeitura de São Paulo (VAI – Programa para Valorização de Iniciativas).
16
Poema de Dugueto Shabazz (ou Ridson Dugueto), “Vamos pra Palmares” que fala, entre outras coisas,
sobre a dominação dos bandeirantes e a persistência quilombola em não desistir da liberdade.
36
17
A consulta desta pesquisa aos PCNs restringiu-se a alguns tópicos referentes à área de Linguagem,
Códigos e suas Tecnologias, formulados em 2000 e aos novos documentos voltados para o ensino médio,
as OCNEM (Organizações Curriculares do ensino Médio) de 2006.
18
Todas as informações referentes aos PCNs (2000/2002) e às OCNEM 2006 foram retiradas do site
http://www.portal.mec.gov.br. As OCNEM 2006 tiveram como consultores: REZENDE, N. L.;
MACHADO, M.Z.V.;FREDERICO, E.Y. e como leitores críticos: LEITE, L.C.; OSAKABE, H.
19
“(...) a arte “inventa uma alegriazinha”, rompe com a hegemonia do trabalho alienado (aquele que é
executado pelo trabalhador sem nele ver outra finalidade senão proporcionar o lucro ao dono dos modos
de produção), do trabalho-dor. Nesse mundo dominado pela mercadoria, colocam-se as artes inventando
“alegriazinha”, isto é, como meio de educação da sensibilidade(...)”. (BRASIL, 2006, p.52).
37
II) preparação básica para o trabalho e para a cidadania do educando, para continuar
aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de
ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III) aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.
(LDBEN, 1996 apud BRASIL, 2006, p.53)
Qual seria então o lugar do rap, da literatura de cordel, das letras de músicas e de tantos
outros tipos de produção, em prosa ou verso, no ensino da literatura? Sem dúvida,
muitos deles têm importância das mais acentuadas, seja por transgredir, por denunciar,
enfim, por serem significativos dentro de determinado contexto, mas isso ainda é
insuficiente se eles não tiverem suporte em si mesmos, ou seja, se não revelarem
qualidade estética. (BRASIL, 2006, p.56-57)
É preciso lembrar que nem sempre o professor consegue identificar tais clichês
e estereótipos já que às vezes ele próprio é um leitor só de best-sellers e obras de
20
As OCNEM apontam a dificuldade em se estabelecer uma diferenciação clara entre textos
considerados literários e os não-literários: “Se a literatura é arte em palavras, nem tudo que é escrito
pode ser considerado literatura, como já dissemos. Essa questão, entretanto, não é tão simples assim,
visto que a linha que divide os campos do literário e do não literário é bastante tênue, confundindo-se
muitas vezes”. (BRASIL, 2006, p.55).
38
Não obstante a multiplicidade e os diferentes níveis de leitura, um leitor crítico pode ser,
pois, também um leitor vítima. Entretanto, pode um leitor predominantemente vítima
ser um leitor crítico? Sobretudo, poderá ele ser um leitor de obras mais complexas e
mais elaboradas esteticamente? Como leitores críticos, adquirimos a enorme liberdade
de percorrer um arco maior de leituras, o que faz toda a diferença. Qual o perigo de
sermos apenas leitores vítimas? O perigo é consumirmos obras que busquem agradar a
um maior número de leitores, oferecer ao leitor uma gama já consumida de elementos,
aquela literatura voltada para o consumo de que falamos, desprovida de potencial de
reflexão, que apenas confirma o que já sabemos, e que por isso nos entretém, sacia
nossa necessidade mais imediata de fantasia. (BRASIL, 2006, p.69)
Formar para o gosto literário, conhecer a tradição literária local e oferecer instrumentos
para uma penetração mais aguda nas obras – tradicionalmente objetivos da escola em
relação à literatura – decerto supõem percorrer o arco que vai do leitor vítima ao leitor
crítico. Tais objetivos são, portanto, inteiramente pertinentes e inquestionáveis, mas
questionados devem ser os métodos que têm sido utilizados para esses fins. (BRASIL,
2006, p.69)
21
Gabriela Rodella fez um levantamento, em sua pesquisa de mestrado, com cerca de 80 professores da
rede estadal de São Paulo sobre os hábitos de leitura e foram essas as obras que constituíram o topo do
ranking.
22
“Estudos recentes apontam as práticas de leitura dos jovens fundadas numa recusa dos cânones da
literatura, tornando-se experiências livres de sistemas de valores ou de controles externos. Essas
leituras, por se darem de forma desordenada e quase aleatória (...), podem ser chamadas de escolhas
anárquicas. A ausência de referências sobre o campo da literatura e a pouca experiência de leitura – não
só de textos literários como de textos que falem da Literatura – fazem com que os leitores se deixem
orientar, sobretudo, por seus desejos imediatos, que surgem com a velocidade de um olhar sobre um
título sugestivo ou sobre uma capa atraente. Encontram-se na base desses desejos outros produtos da
vida social e cultural, numa confluência de discursos que se misturam”. (BRASIL, 2006, p.61)
39
Ainda relativamente à seleção dos textos, é importante lembrar que o cânone não é em
si negativo: significa que uma obra, na sua trajetória, de quando surgiu até o momento
contemporâneo de leitura, foi reiteradamente legitimada como elemento expressivo da
23
Tais apontamentos (idéia não-estática de cânone e de valores e regras legitimados por um grupo) são
importantes para este trabalho na medida em que fortalecem a noção de campo literário ou campo
educacional como um sistema em que mudanças ocorrem de acordo com as forças atuantes que travam
lutas entre si (BOURDIEU, 1990).
40
sua época. O cânone não é estático, ele incorpora ou exclui obras em decorrência de
algumas variáveis, sendo talvez a mais importante aquela dos estudos críticos, em
especial os estudos acadêmicos. Ele é importante para formar uma tradição segundo a
visão de determinado momento histórico (em perspectiva). (BRASIL, 2006, p.75)
Tampouco se pode adotar um cânone asséptico do ponto de vista moral (sabemos que
determinadas obras são excluídas do repertório escolar em virtude de sua moral
contrária a valores de determinado grupo, da escola, da família...), buscando responder à
exigência de uma certa visão pedagógica oficial. (BRASIL, 2006, p.77)
Há duas passagens no texto das OCNEM 2006 que merecem reflexão mais
apurada nesta pesquisa uma vez que trazem à tona a problemática de se trabalhar apenas
com textos canônicos e, por outro lado, a “permissividade”, tão condenável quanto, de
se trabalhar em sala qualquer produção textual sob o discurso de uma pretensa abertura
literária:
campo cultural mais amplo, de acordo com regras e valores distintos dos do seu grupo?
No desfecho do capítulo sobre literatura, as OCNEM 2006 revelam que o ensino deve
atender, sobretudo, a uma “dimensão social” na formação do sujeito escolar:
É necessário saber lidar com os textos nas diversas situações de interação social. É essa
habilidade de interagir lingüisticamente por meio de textos, nas situações de produção e
recepção em que circulam socialmente, que permite a construção de sentidos
desenvolvendo a competência discursiva e promovendo o letramento. O nível de
letramento é determinado pela variedade de gêneros textuais que a criança ou o adulto
reconhecem. Assim, o centro da aula de língua portuguesa é o texto. (SÃO PAULO,
2008)25
24
“A criação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que deu autonomia às escolas para que definissem
seus próprios projetos pedagógicos, foi um passo importante. Ao longo do tempo, porém, essa tática
descentralizada mostrou-se ineficiente. Por esse motivo, propomos agora uma ação integrada e
articulada, cujo objetivo é organizar melhor o sistema educacional de São Paulo.” (Texto de Maria
Helena Guimarães de Castro, Secretária da Educação do Estado de São Paulo. Proposta Curricular, p. 5,
2008).
25
SÃO PAULO, Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: Língua Portuguesa. (Coord. Maria Inês
Fini) “Concepção da disciplina: duas palavrinhas sobre o ensino de Português”, Proposta Curricular. São
Paulo, 2008, p.43.
42
A literatura é uma forma artística de representação da realidade. Por isso não se deve
confundir o conteúdo de uma obra literária com os fatos da vida real. No texto, o
escritor cria uma outra realidade – a artística, que não pode ser analisada como se
estivéssemos diante do nosso mundo concreto. (TUFANO; SARMENTO, 2004, p.13)
De uma forma simplificada, pode-se dizer que a literatura é a arte da palavra. (...) Sendo
a literatura a arte da palavra e a palavra a unidade básica da língua, podemos dizer que a
literatura, assim como a língua que ela utiliza, é um instrumento de comunicação e de
interação social e, por isso, cumpre também o papel social de transmitir os
conhecimentos e a cultura de uma comunidade. (CEREJA; MAGALHÃES, 2003, p.31;
grifo dos autores).
Texto não-literário apresenta uma linguagem com sentido denotativo. As palavras não
assumem tantos significados como no texto literário. Os fatos fazem parte da realidade e
são apresentados de forma objetiva. Texto literário apresenta uma linguagem com
sentido conotativo. Os fatos têm caráter ficcional: não fazem parte da realidade e são
apresentados de forma subjetiva. (TUFANO; SARMENTO, 2004, p.358)
Para ser literário, o texto deve apresentar linguagem literária, isto é, uma linguagem em
que se encontram recursos expressivos que chama a atenção para o modo como ela
própria está construída. (...) Em síntese26:
Texto literário: linguagem pessoal, contaminada pelas emoções e valores de seu
emissor; linguagem plurissignificativa, conotativa; recriação da realidade, intenção
estética; ênfase na expressão.
Texto utilitário: linguagem impessoal, objetiva, informativa; linguagem que tende à
denotação; informação sobre a realidade; ênfase na informação, no conteúdo. (CEREJA;
MAGALHÃES, 2003, p.28)
26
A síntese é apresentada pelos autores em forma de quadro, diferenciando as características dos dois
tipos de textos.
43
dimensão de leitura individual, que responde ao universo de um sujeito leitor, por outro,
sua dimensão de recepção social, que responde às instâncias do leitor coletivo, ou seja,
sua inserção num horizonte de expectativas (JAUSS,1970) de uma determinada época e
sociedade. Para a presente pesquisa é imprescindível frisar essa característica social que
envolve o ato legitimador realizado pelas instâncias legitimadoras (crítica, academia,
mercado).
Demarcar o que objetivamente faz de uma obra uma “boa obra”, num
determinado momento da história, é dificultoso, justamente pelo fato de se tratar de um
produto cultural sujeito às considerações e análises realizadas por um determinado
grupo que possui um arcabouço de referências sociais pré-definidas e, portanto, é
detentor de visão crítica que, segundo seus parâmetros, elege alguns textos como
legítimos e exclui outros.
44
27
O escritor, roteirista e também jornalista Fernando Bonassi fez um comentário sobre a obra Graduado
em marginalidade (2005), publicado na contracapa do livro, fato que, sem dúvida, forneceu maior
credibilidade a essa primeira obra do autor Sacolinha (Ademiro Alves): “Gostei da pegada desse texto.
Taí a tragédia de Vander exposta com conhecimento de causa; taí a paisagem da periferia, tão esquecida
dos nossos letrados; gostei muito dos cortes cinematográficos (sem frescura ou maiores explicações) de
um capítulo para o outro. Tem o tamanho e o tempo certo. É um romance urbano contemporâneo como
deve ser. Curto e grosso”.
28
Moacyr Scliar, escritor contemporâneo, na contracapa do livro de contos do autor Sacolinha 85 letras e
um disparo (2007), faz o seguinte comentário sobre o autor: “A maior qualidade de Sacolinha é sua
espontaneidade. A linguagem ficcional brota dele naturalmente, sem frescuras, sem pretensões a grande
literatura, ainda que seja ele influenciado por muitos bons autores. E esta espontaneidade, esta
autenticidade são dignas de admiração. Estamos diante de um talento nato. Sacolinha ainda é jovem, tem
um longo caminho pela frente. Pois eu digo: acompanhem-no neste caminho. Ele levará vocês ao
encontro do Brasil verdadeiro”.
45
29
A leitura, pelo seu caráter internalizado, não consiste em boa ferramenta para o “controle” por parte do
professor do que foi absorvido pelo aluno durante a aprendizagem. A escrita, mais palpável e externa
revela mais facilmente os “erros e acertos” dos alunos, segundo o ensino padrão.
46
transgressões criativas de qualquer ordem. Por outro lado, os “limites do texto” são
lembrados nesse mesmo material de orientação para o professor da rede estadual de
ensino: “Desejamos assim que o processo escolar sirva para que nossos alunos e
alunas consigam expor com suficiência suas opiniões, respeitando os limites de
alteridade do texto. Ou seja, o texto impõe limites para a interpretação de nossas
opiniões e tais limites devem ser respeitados a fim de que nossa argumentação tenha
credibilidade”. Mas quais seriam esses limites? O que um texto precisaria
fundamentalmente conter para obter essa credibilidade? Seria possível atender a essa
recomendação de considerar a diversidade sócio-cultural durante a produção de um
texto padrão? E a norma culta da língua poderia ser subvertida sem o texto perder essa
credibilidade? As diversas produções artísticas populares adentrariam o universo
literário escolar de que forma?
Tais perguntas permitem pontuar os conflitos que aparecem, quando o assunto é
a heterogeneidade cultural no contexto escolar, e potencializados pelas orientações
existentes num material confeccionado a ser seguido pelos docentes do ensino básico.
Pressupõe-se que a diversidade cultural deva ser considerada na escola por meio das
manifestações artísticas, que deva ser incorporada nas aulas de leitura e de escrita. No
entanto, o mesmo material traz orientações que deixam clara a necessidade de se
“delimitar”, de “impor limites” a tais manifestações, mais especificamente às produções
textuais dos alunos, ou seja, a leitura e a escrita não estão livres de regras previamente
elaboradas mesmo em meio a essa inserção do diverso.
Por outro lado, existe o aluno com os seus referenciais próprios, seus anseios e
seus conhecimentos de mundo que interferirão em toda e qualquer produção que se
queira realizar em sala de aula.
“Professora, eu até gosto de escrever, escrevo tudo o que é colocado na lousa,
mas de redação eu não gosto não” é uma afirmação recorrente nas aulas de português
da rede pública por alunos e alunas de diferentes faixas etárias. Ao contrário do que de
imediato possa parecer, o “gostar de escrever” refere-se ao gosto pelo ato mecânico da
escrita – a cópia – e a “redação” como toda e qualquer produção textual requerida no
âmbito escolar. A escrita “copista”, livre do pensar e da reflexão, aparece comumente
no cotidiano escolar do ensino fundamental e médio como algo inerente à atividade
educacional, uma transcrição dos saberes que são postulados na lousa pelo professor –
que, por sua vez, também “copia” de autores, livros didáticos, apostilas e outros
materiais pedagógicos, trechos por ele considerados importantes – e que devem ser
47
incorporados pelo aluno ou, como é mais comum, apenas ficarem registrados em seu
caderno.
Essa atividade “copista”30 parece surtir um efeito “calmante” nos alunos e alunas
– alguns até fazem questão de caprichar na caligrafia, outros enfeitam o caderno com
cores e desenhos durante toda a cópia dos textos. Até mesmo os mais “desajustados”
aproveitam essa atividade manual para mostrar que acatam de vez em quando as
propostas de aprendizagem impostas31 pelos professores: desde que não haja exercícios
ou atividades que exijam reflexão, organização e seleção de tópicos e idéias, a inércia da
cópia é aceita de bom grado pelos educandos.
Para boa parte dos alunos, a capacidade de realizar uma cópia já consiste em um
domínio da escrita. Ao transpor os pensamentos, idéias, teorias, resumos, poemas de
outrem que são expostos no quadro-negro, muitos acreditam já estar realizando
plenamente o ato de escrever. O ato de apenas transcrever um saber que já está dado – e,
que muitas vezes, está longe de ser um saber que lhes interessa – sem incorporá-lo de
fato, a nosso ver, está no cerne dessa questão.
O aluno consegue identificar os códigos lingüísticos, alguns até conhecem as
regras de ortografia, de ordenação de períodos, as construções frasais e conectivos, ou
seja, eles às vezes conhecem as ferramentas gramaticais da escrita, embora
normalmente não as incorporem organicamente. No entanto, o que se ressalta aqui é o
fato de o aluno estar acostumado a “receber o saber” na esfera educacional como algo
pronto, intocável, favorecendo um não-pensar que poderia ser considerado tão nocivo
quanto o fato de não saber ler ou escrever32. A aceitação passiva dos conteúdos
escolares, a realização mecânica dos exercícios (e da leitura e da escrita) transmitidos
(também mecanicamente) pelo professor, termina por encerrar esse aluno numa
alienação receptora que se reproduzirá no ato da escrita. Na escola, o “escrever” é feito
a partir de formatos e gêneros preestabelecidos, e, produzir algo próximo do que é a
escrita canonizada pela escola reforça um não-saber-escrever por parte do aluno quando
30
Registro aqui experiência própria em sala de aula, lembrando também alguns relatos informais de
professores que se referem à cópia como um artifício capaz de fazer os alunos se acalmarem na volta do
intervalo ou da educação física, por exemplo. Outros professores admitem utilizar tal recurso como o
último possível com determinadas turmas refratárias à explicação oral ou resistentes à aula expositiva.
31
Alguns alunos fazem questão de copiar a matéria da lousa para usar como prova de que, apesar da
bagunça e da indisciplina em sala de aula das quais são protagonistas, possuem o “caderno em ordem”.
Alguns pais de alunos também utilizam a quantidade de páginas escritas no caderno como parâmetro para
medir a dedicação dos filhos durante as aulas.
32
Essas questões foram discutidas por Jean Foucambert em palestra dada na FEUSP em 1º. de outubro de
2008.
48
ele não domina a escrita, ou seja, ele acha que não sabe escrever quando não reproduz o
que é considerado bom enquanto “escrita padrão”.
Ao se propor a escrita de um texto, alguns elementos envolvidos no processo
parecem dificultar essa produção ao invés de incentivá-la: a obscuridade da proposta, a
obediência a determinado tema, estrutura ou gênero, o destinatário (geralmente é o
próprio professor), a função etc. Este último elemento transforma o ato da escrita em um
fazer utilitário, quando na verdade, poderia – ou deveria – consistir em algo
intimamente ligado àquele que escreve, uma extensão do pensar do indivíduo, a
materialização de sensações, reflexões e sentimentos, a afirmação de uma autoria por
parte do aluno:
Para mim, é essencial que as crianças estejam profundamente envolvidas com a escrita,
que compartilhem seus textos com os outros e que percebam a si mesmas como autores.
Creio que estas coisas estão interconectadas.Uma sensação de autoria nasce de uma luta
para imprimir no papel algo grande e vital, e da observação de que as próprias palavras,
impressas, atingem os corações e as mentes dos leitores. (CALKINS, 1989, p.22)
33
Allan da Rosa escreveu uma obra (Da Cabula – istória pá tiatru) em que a protagonista, uma senhora
moradora de periferia que trabalha exaustivamente para sobreviver, tem como sonho a alfabetização. A
apropriação da escrita , em seu grau mais elementar, surge na ficção dramática do autor como o objetivo
máximo da personagem principal.
49
Allan Santos da Rosa trabalhou como feirante, office-boy, operário de indústria plástica,
vendedor de incensos, livros, churros, seguros e jazigo de cemitério. Em 1998 estudou no
cursinho do Núcleo de Consciência Negra e passou no vestibular para cursar graduação em
História. Ganhou um troco também como professor, pesquisador, alfabetizador de adultos,
dançarino, ator de rua e produzindo e montando exposições rádio-comunitárias.35
(Alessandro Buzo) Sobre o fato de não ter concluído o ensino fundamental e ter escrito quatro
obras, costuma dizer: “Pensavam que não sabíamos nem ler, e estamos escrevendo livros”.36
Essa última afirmação feita por Alessandro Buzo e citada em seu livro sintetiza
bem o sentimento de orgulho dos autores periféricos ao se apropriarem de um
instrumento quase sempre negado às populações de periferia. A produção literária – e,
por conseguinte, a expressão de idéias e sentimentos – passa a ser realizada por quem,
até então, só se via descrito literariamente a partir de outrem. Essa autoria consiste em
um dos elementos de maior valor entre leitores e escritores da literatura marginal-
periférica, pois significa o domínio de uma força expressiva (“grito da periferia”, “voz
do gueto”, popularmente falando) por parte de quem sempre esteve às margens da
escrita.
A vida periférica desses autores (e efetivamente marginal de outros37), junto a
outros fatores, parece despertar a identificação dos alunos de periferia. Muitas vezes
imersos em um cotidiano próximo do descrito nas obras, com empregos parecidos pelos
executados anteriormente pelos autores, com um linguajar repleto de gírias e códigos
que também estão presentes ao longo das narrativas e poemas dessa vertente literária,
esse jovem aluno de escola pública de periferia passa a perceber, a partir das leituras
literárias experimentadas em sala de aula, uma representatividade social até então não
vista nas demais obras canônicas. Não só isso; esse mesmo aluno percebe que, para
além das drogas e da violência como fuga ou vazão da opressão a que constantemente é
submetido, a expressão artístico-literária de seus medos, anseios e angústias é uma
alternativa possível e com a leitura dessas obras sente-se lido pelo outro. Ele não está
mais só: existe um grupo de pessoas que fez e faz dessa mesma opressão material
34
FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. São Paulo:Objetiva, 2006.
35
ROSA, Allan da. Vão. São Paulo: Edições Toró, 2005.
36
BUZO, Alessandro. Guerreira. São Paulo: Global, 2007.
37
Alguns textos publicados na coletânea Caros Amigos Literatura Marginal são de detentos ou ex-
detentos.
50
(...) se a identificação é mais fácil entre pessoas que têm um mesmo sistema de valores,
é, em primeiro lugar, porque a analogia desses valores, ao inspirar condutas comuns, e
também, ao permitir uma linguagem comum, amplia as possibilidades de comunicação
e de compreensão. É também em razão de um mecanismo de tranqüilização e de defesa
do eu: se meus valores são rejeitados, arrisco sê-lo também; se, ao contrário, são
divididos, estou tranqüilizado, protegido, forte. (MAISONNEUVE, apud JOUVE, 2002,
p.130)
A escola e a formação
38
Existem alunos que precisam trabalhar para ajudar na renda familiar quando não são eles próprios o
arrimo da família.
39
Concebendo-se o ensino de literatura na trajetória que inicia neste século XXI, a de deslocamento da
formação de um especialista do texto para a de um sujeito leitor (o que aparece sem sistematização teórica
nos últimos documentos do MEC e nos ensaios que começaram a circular no meio acadêmico vindos
sobretudo da França).
40
“O status da literatura na escola expõe a contradição entre as coisas como são e como poderiam ser.
Mais que intelectual ou estilística, essa é uma questão política” (LEAHY-DIOS, 2004, p.4).
41
NEVES, Maria Helena Moura propõe ao menos três dimensões implicadas no ensino da língua:
lingüística, comunicativa e cognitiva (NEVES, 1994).
53
(...) toda a metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria
de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados na sala de
aula. (FISCHER apud GERALDI, 2002, p.80-81).
Não parece ser possível, portanto, realizar a educação literária sem passar
necessariamente por questões políticas – não as partidárias, mas as referentes às
relações de poder uma vez que os próprios textos são detentores de discursos que
envolvem estes entre outros elementos.
54
Uma das decorrências mais visíveis do que chamei tempo acelerado da indústria cultural
é a perda de memória social generalizada que lesa o seu consumidor inerme. Apesar da
força e da nitidez com que as imagens da TV são projetadas no cérebro do espectador,
este não tem literalmente, tempo de absorvê-las na retentiva, que Santo Agostinho
considerava “o ventre da alma”. O problema não se deve a uma eventual falha técnica
do canal de comunicação, pois a TV é um dos intentos mais complexos e requintados da
eletrônica moderna; o problema está na urgência da substituição e, daí, no caráter
descartável que o signo adquire dentro do regime industrial avançado. Da corrente de
representações e estímulos, o sujeito só guardará o que a sua própria cultura vivida lhe
permitir filtrar e avaliar. (BOSI, 2003, p.10)
desinteresse pelo que é ensinado e discutido em sala. Mesmo mediante muitos esforços
em tornar atraente o conteúdo das aulas, estas não conseguem superar o abismo
existente entre contexto escolar e cotidiano, pois a função educacional não permite que,
nas esferas de ensino sejam tratados temas que fujam ao controle do que é considerado
“pedagógico” ou “politicamente correto”.
Diante desse panorama, devemos nos perguntar quem é esse jovem aluno que
tanto queremos que leia? Quais são as suas concepções de mundo? Quais são os seus
referenciais sociais, culturais e literários44 ?
Nesta discussão sobre a cultura escolar do jovem aluno, a noção de cultura
escolar é utilizada para denominar o encontro dos referenciais culturais preexistentes e
aqueles concomitantes à sua inserção na escola e dos valores impostos constantemente
pelas instituições de ensino ao longo de sua vida.O que resulta desse encontro? Esse
resultado é considerado quando se pensa na formação do jovem? Tocar nessas questões
servirá para repensarmos o processo literário em sala de aula e para refletirmos em que
medida poderíamos realizar “ajustes” ou rupturas no intuito de aproximá-lo do aluno
jovem das escolas públicas de periferia.
Os alunos que estiveram envolvidos com o processo de leitura de textos de
literatura marginal-periférica (e posteriormente com outros textos, filmes e debates
suscitados a partir de tais leituras) são alunos de uma escola da rede pública estadual de
ensino, a maior parte pertencente às camadas sócio-econômicas pouco favorecidas,
moradores de uma área periférica da zona norte do estado de São Paulo, situada na Vila
Cruz das Almas (Freguesia do Ó, próximo ao Morro Grande, Vila Brasilândia e
Pirituba). O bairro possui poucas opções de lazer, como centros de cultura ou de
esportes45, mas mesmo para estas poucas, principalmente no que diz respeito aos cursos
paralelos voltados para atividades culturais, a procura por parte dos jovens ainda é
44
“O elemento cultural na escola exerce uma função capital na interação social dos alunos, ‘gerando
uma cultura vivida específica’; ou seja, a agenda própria do grupo social, que não é apropriada nem
reconhecida pela escola”. (LEAHY-DIOS, 2004, p.33)
45
Existem duas bibliotecas próximas à escola. Há uma casa de cultura localizada na Freguesia do Ó, no
largo da matriz. O local é considerado o “centro de agitação do bairro”, mas o espaço cultural tem pouco
a ver com essa alcunha, já que fornece poucas opções de oficinas e raríssimas exposições ou intervenções
culturais. O largo apresenta forte concentração de jovens, principalmente nos fins de semana, em virtude
da grande quantidade de bares ali existentes. Trata-se de um ponto de encontro dos jovens moradores da
região com poucas opções de lazer. Os centros culturais mais próximos que efetivamente apresentam
atividades constantes seriam o da Vila Nova Cachoeirinha (inaugurado em 2006 e que freqüentemente
traz atividades relacionadas à literatura e cultura periférica) ou o Espaço Cultural Tendal da Lapa (onde
são ministradas oficinas de teatro, dança e música). Com relação aos espaços destinados aos esportes,
existem dois locais: um ginásio municipal (chamado comumente de CEFÓ – Centro de Esportes da
Freguesia do Ó) e um outro que passou a fazer parte do projeto “Criança Esperança”. Este último já
recebeu a visita de autores de literatura periférica, como Alessandro Buzo.
56
bastante tímida. Os meninos ainda preferem o futebol. A própria escola oferece turmas
de treinamento para competições entre escolas da região, mas tampouco ela incrementa
atividades voltadas para a área cultural. Já foram realizadas algumas tentativas (oficinas
curtas de arte, de teatro e de artesanato), mas a falta de interesse ou desistência por parte
dos jovens, o que geralmente as leva à extinção.
Por intermédio de questionários informais, aplicados logo no início das aulas de
português em turmas do ensino médio (primeiros, segundos e terceiros anos) cujos
alunos têm aproximadamente entre 15 e 18 anos – visando colher informações sobre os
jovens que iriam participar das aulas ao longo do ano para definir quais leituras e
práticas seriam adotadas – é possível ter uma amostra do perfil dos alunos. Dos que
responderam ao questionário (cerca de cento e cinqüenta alunos), computou-se o
seguinte:
vistos como excluídos, ou, não querem ser dignos de dó. Percebe-se uma sensação de
“pertencimento” a um tipo de vida periférica que envolve perigo e alguma transgressão.
Ao longo das aulas e das leituras de textos periférico-marginais, alguns dos alunos que
apresentavam um perfil mais próximo do estereótipo de “marginalidade” (alunos
envolvidos com drogas, violentos, apáticos, em regime especial da Fundação CASA,
ex-FEBEM), aparentaram, ainda que timidamente, maior interesse do que manifestam
pelas aulas ou leituras tradicionais.
Dentro das salas de aula (quase sempre cheias, com cerca de quarenta alunos),
esse aluno comporta-se segundo as “regras” ditadas pelos próprios jovens, o que reforça
o caráter da necessidade de aceitação por parte do outro, ainda mais latente nessa fase.
Observa-se um consumismo exacerbado: quase todos (inclusive os alunos de visível
baixa renda) possuem aparelhos celulares, MP3 ou MP4, os quais ostentam como
maneira de integração e utilizam, não sem contrariar o professor, em aula. Quanto mais
nova a tecnologia que “possuem”, maior o status social. As vestimentas são bastante
características: mesmo sendo obrigatório o uniforme escolar, os meninos costumam
vestir enormes blusões com capuz (mesmo no calor!), bonés ou toucas de times, de
marcas esportivas ou de tags (“pichos” de um determinado grupo). As meninas
geralmente vestem calças justas, camisetas e blusinhas decotadas e coladas ao corpo,
maquiagem, cabelos alisados ou encaracolados com gel e, nos pés, botas de salto
“plataforma” ou tênis de marcas (re)conhecidas pelos próprios jovens. Obviamente há
quem destoe desse padrão totalitário, mas os elementos citados podem ser observados
em grande quantidade, o que aparenta constituir um “código” de vestuário desses
jovens.
Recentemente, pude observar uma tendência crescente entre os alunos de se
organizarem em grupos (constituídos de pessoas da própria escola ou da comunidade)
que se unem – sob o signo da pichação – para formar uma “família”, que se auto-
protege de outros grupos e cria suas próprias leis, as quais devem ser obedecidas pelos
integrantes, sob pena de serem expulsos ou sofrerem retaliações. A influência norte-
americana é perceptível, não só na organização dos grupos como também na música,
nas roupas, na linguagem etc. Identificam-se por meio de bonés bordados com as
pichações que simbolizam o grupo e pelas siglas. Quando questionados por mim sobre
as “famílias”, os alunos pouco falam, receosos. Muitos, que não pertencem a nenhuma
“família”, querem fazer parte de alguma, como forma de pertencimento, de assegurar
uma possível proteção e de ser reconhecido por um coletivo.
58
Dentro da sala muitas vezes os alunos agridem-se uns aos outros. Essa agressão
pode ser física (geralmente em turmas do ensino fundamental II, ou seja, entre os mais
novos) ou moral, verbal (entre os mais velhos, mais comum no ensino médio) quando se
dá de maneira implícita (não menos contundente), mais elaborada, uma vez que eles já
“dominam” certas formas de ataque oral e de depreciação moral. Outra dificuldade
durantes as aulas é manter o aluno de ensino fundamental sentado em sua cadeira: ele
precisa se expressar corporalmente, seja andando pela sala, seja dançando, seja
brincando com o outro. Há preconceitos de diversas ordens, o que decerto decorre dos
valores vigentes na sociedade: preconceito em virtude da raça, da cor46, do nível sócio-
econômico47, de gênero48, de comportamento, de região49 entre outros.
A maior parte dos alunos reclama muito da escola, das matérias, dos professores
e da direção que, segundo eles, ou são – professores e direção – repressores demais ou
maleáveis demais; não enxerga uma finalidade específica na escola, apenas vislumbra
que deva ser para prepará-lo para o mercado de trabalho. Há uma grande necessidade de
expressão por parte desse jovem, o que é constatado pelas pichações freqüentes em
cadernos, livros, carteiras, cadeiras, paredes, mesas, lousas etc. A escrita literária ainda
está longe de seu domínio, mas a vontade de apresentar ao mundo algo seu, de deixar
suas marcas, está presente nele.
A linguagem dos alunos e alunas também tem suas peculiaridades: sempre
carregada de gírias locais, de palavrões e de expressões de conotação sexual. No
entanto, quando alguém entre os alunos fala de maneira “errada” ao se dirigir à turma ou
ao professor, ou seja, quando alguém não se utiliza das normas da língua padrão, sofre
“gozações” – gritos, piadinhas e xingamentos (burro, estúpido, tonto) – por parte dos
demais. Isso denota a arraigada concepção de que quem não obedece à norma culta
46
O preconceito relacionado à cor e a raça ocorre mesmo entre iguais. Geralmente o tom é de piada, com
a intenção de fazer “graça”, mas revela uma faceta extremamente perversa e desde cedo introjetada no
aluno.
47
Esse tipo de preconceito existe tanto do “mais rico” para com o “mais pobre”(menos freqüente), como
do “mais pobre” com o “mais rico”(esse último tachado de “burguesinho”, “filhinho da mamãe” etc).
48
Há um comportamento visivelmente machista por parte dos alunos homens e, também, por parte das
alunas. Como querem ser aceitas e “admiradas” pelos meninos considerados mais “populares”, muitas
copiam as vestimentas, modos e trejeitos de cantoras, artistas e dançarinas que vêem na mídia, como
maneira de se “destacarem”. O problema é que há nessa reprodução de valores um grau de permissividade
que assusta pela sexualidade e sensualismo precoces e que contribui para a reafirmação do preconceito de
gênero (objetificação da mulher). O preconceito contra homossexuais dentro da escola também é nítido
(não só por parte dos alunos, mas também por parte dos professores).
49
Em uma turma de primeiro ano do ensino médio havia uma aluna recém-chegada do nordeste que
sofreu inúmeros preconceitos por causa de seu “sotaque” nordestino, embora a maior parte dos alunos
também fosse de origem nordestina.
59
(embora poucos o façam, tanto na fala quanto na escrita) não deve ser considerado ou
respeitado50.
Tendo em vista estes elementos aqui rapidamente expostos, ainda é difícil falar
em uma “cultura escolar do jovem periférico”. A professora e pesquisadora Christine
Barre-de-Miniac, em artigo que estuda a apropriação da escrita por parte dos jovens
alunos nas escolas francesas, chama atenção para essa fase peculiar que é a adolescência
e para os diferentes papéis que adotam referentes à escrita:
(...) essa vertente da prática da escrita toma uma coloração particular na fase da
adolescência: é a idade em que se apresenta de maneira nova e crucial a questão da
identidade do indivíduo: identidade pessoal, social. Quem sou eu quando escrevo na
escola e para escola? Serei o mesmo de quando escrevo para mim, para meus amigos,
ou serei um outro? Ou serei ao mesmo tempo eu e um outro em vias de se construir no
contato com o mundo do conhecimento? São questões cruciais, que não devem ser
elididas nem pelos jovens nem pela escola, pois elas são determinantes na apropriação
da escrita pelos jovens, têm profunda implicação na escrita, e também quando se
escreve para organizar os conhecimentos e entrar no mundo do saber. (BARRE-DE-
MINIAC, s/d)
50
Em uma de minhas aulas, durante a explanação de orientações para a produção textual, surgiu a
pergunta: quem não domina a escrita tem menor valor? Os alunos prontamente responderam que sim,
revelando a importância (desmesurada) que atribuem à escrita padrão. Mediante uma nova pergunta
minha – quem é analfabeto não tem valor? – eles começaram a pensar melhor sobre a questão, embora
alguns continuassem a reafirmar “quem é analfabeto é burro, é ignorante, é preguiçoso”. Resolvemos
então redirecionar a aula para refletir sobre os preconceitos lingüísticos e a exclusão literária.
60
51
“Tanto a função como a disfunção podem ser manifestas (efeitos pretendidos) ou latentes (efeitos não
pretendidos). Uma e outra existem para a sociedade, para os subgrupos, para os sistemas culturais e
para o indivíduo.”(BOSI, 2007, p.40)
52
Merton-Lazarsfeld usa o termo para analisar uma das disfunções da publicidade, segundo Ecléa Bosi
(BOSI, 2007, p.41).
53
Ecléa Bosi, em pesquisa acerca das leituras realizadas por jovens operárias, fez apontamentos sobre a
questão: “(...) a hipótese, no caso, é de que o teor e os processos de composição da literatura de massa
estariam subordinados a necessidades de evasão e de consolação. Tarzan e Super-Homem dariam ao
jovem operário (e não só ao operário) o avesso de sua impotência social; as personagens olimpianas,
princesas em férias ou estrelas do cinema e da TV, compensariam do cinzento anonimato milhares de
jovens balconistas e empregadas domésticas”. (BOSI, 2007, p.106)
54
Esses elementos (inserção na indústria cultural, estruturada em função de um determinado público,
distinto da literatura legitimada) serão estudados nos capítulos da segunda parte da pesquisa.
55
“Gramsci admirava essa capacidade vital que tem a cultura popular de absorver e reelaborar
elementos urbanos já afetados de novas tecnologias. Ante a pergunta – “A cultura de massa vai absorver
a cultura popular”? –, podemos pensar em outra pergunta: – “A cultura popular vai absorver a cultura
de massa”? Tanto do ponto de vista histórico quanto do funcional, a cultura popular pode atravessar a
cultura de massa tomando seus elementos e transfigurando esse cotidiano em arte. Ela pode assimilar
novos significados em um fluxo contínuo e dialético”. (BOSI, 2007, p.80)
61
Capítulo 2
56
Os referenciais que trazia tinham sido adquiridos sobretudo na disciplina Metodologia do Ensino de
Língua Portuguesa, do curso de Licenciatura, da FEUSP. A retrospectiva desse meu percurso na escola
me faz lembrar que, não obstante virgem para a sala de aula (o estágio na Licenciatura é precaríssimo),
havia sim representações adquiridas no curso, sobre o ensino de língua, que orientaram essas minhas
opções.
66
Experiências I
Primeiras impressões
57
Não havia realizado a leitura do texto, mas já havia assistido a uma reportagem sobre a ex-menina de
rua Esmeralda que havia escrito o livro com o apoio de um jornalista.
69
algazarra, mas, ao longo da leitura, percebi que em algo ela se diferenciava da anterior:
havia um silêncio participativo da turma. Estranhei o silêncio e procurei entendê-lo;
entre um trecho e outro, comecei a ouvir comentários baixos sobre o conteúdo da
leitura.
O livro trata da experiência da autora com drogas pesadas, como crack e
cocaína, e de como conseguiu deixar de ser dependente delas. O capítulo lido em sala
narrava um episódio ocorrido com uma das amigas da autora, a qual deixara seu bebê na
Praça da Sé para fumar crack, e, ao voltar, pela manhã, encontrara o bebê morto por
causa do frio. A leitura desse trecho provocou um “horror” na sala de aula. Consegui
terminar a leitura e ainda tecer alguns comentários com os alunos. O impacto da leitura
– entrevisto pelos comentários baixos como “nossa!”, “que horror!” e, principalmente,
pelo silêncio – permitiu que conversássemos um pouco sobre o que fora exposto, fato
incomum durante ou após as leituras em sala58.
Após esse dia, tentei a leitura de outros textos, mais “convencionais” e
legitimados acreditando que a turma poderia reagir melhor depois de uma experiência
bem-sucedida. Mas foi em vão: o desinteresse surgia no decorrer da leitura, às vezes
logo no início dela. Tentei algumas vezes ler após a contextualização do texto,
explicitando os aspectos que faziam dele uma leitura importante, interessante, porém,
era nítido que a comunicação não se efetuava. Não conseguia identificar se o
descompasso se dava pela linguagem, pelo tema, pelo estilo literário ou pela soma
desses fatores. Com essa turma, não consegui realizar nenhuma outra leitura com o
mesmo êxito.
58
Em uma mesma turma leituras diferentes requerem estratégias diferentes. Em uma turma de segundo
ano do ensino médio, durante as leituras de obras marginais, observou-se que qualquer interrupção do
professor ocasionava a dispersão da sala. Já durante a leitura de um poema de Baudelaire (“O albatroz”),
as interrupções se fizeram necessárias para esclarecer o significado de alguns termos, estabelecer outras
relações semânticas, e, com isso, reter a atenção da classe, o que contribuiu para que a turma
compreendesse, e gostasse, do texto.
70
Vislumbrando possiblidades
No ano seguinte, com outra turma de oitava série, após realizar a leitura do
mesmo texto de Esmeralda Ortiz59, incentivei os alunos a escrever textos curtos, nos
quais eles narrariam ou descreveriam algo em um rápido espaço de tempo por mim
determinado. A idéia era desbloquear a mente e escrever sem se policiar demais. Após a
atividade, um dos alunos, repetente, ausente, órfão, com passagem por instituições
reformatórias, resolveu me contar sobre as suas aventuras como pichador. Tivemos uma
longa conversa sobre o cotidiano dele e percebi o seu interesse, ainda que tímido, pela
leitura realizada e pela escrita “descompromissada”. Infelizmente, mais adiante, ele
optou por deixar a escola, mas essa abertura pontual, após a leitura e a escrita realizadas
em sala, chamou a minha atenção.
Em outra turma de primeiro ano de ensino médio também tive experiências que
contribuíram para dar impulso à idéia desta pesquisa. Durante uma aula percebi que um
dos alunos estava concentrado em desenhar algo na contracapa de seu caderno. Quando
a aula terminou, pedi-lhe para ver o desenho que tanto o havia absorvido. Ele titubeou
um pouco, mas mostrou: era um dos personagens – Zé Pequeno – do filme Cidade de
Deus, dirigido por Fernando Meirelles e que havia sido transmitido na noite anterior
pela TV. Empunhando uma arma e com um balãozinho de fala, típico dos desenhos em
quadrinhos, o personagem dizia: “Dadinho o c..., meu nome é Zé Pequeno”. Trata-se do
momento do filme em que Zé Pequeno, um morador da favela, desde cedo envolvido
em crimes e com gosto pela violência e pela crueldade, deixa claro que já não é mais
uma criança, e sim um dos líderes do tráfico da região. Perguntei a razão dele ter
escolhido justamente aquela fala, aquele momento específico do filme para reproduzir
em seu caderno e ele respondeu com brilho nos olhos: “Por que essa parte é muito
louca, professora!”. Percebi a admiração e identificação com a personagem.
Nessa mesma sala de primeiro ano do ensino médio apresentei a síntese de
algumas opções de leitura, sendo a escolhida (em detrimento dos canônicos contos de
Machado de Assis e romances de cavalaria, típicos do Trovadorismo) uma reportagem
sobre subemprego da jornalista Natália Viana, publicada na revista Caros Amigos60. A
leitura se estendeu com êxito pelas cinco aulas com a turma durante a semana. Os
59
A leitura desses textos não fez parte de um projeto específico, elaborado e autorizado pela coordenação
da escola ou pela diretoria de ensino, apenas foi incorporada como obediência às orientações de trabalho
com leitura e escrita com os alunos.
60
Caros Amigos, edição 94, São Paulo: Editora Casa Amarela, Janeiro de 2005.
71
alunos se revezavam na leitura em voz alta para os demais e, ao término de cada aula,
discutíamos um pouco sobre os temas presentes no texto. A reportagem, escrita em
linguagem bastante coloquial, com diálogos carregados de gírias, retratava a situação
em diversos subempregos que a jornalista vivenciara para fazer a reportagem, como
suposta desempregada – garçonete, propagandista de placa em farol, massagista,
montadora de bijuterias em grande escala – e abordava a exploração a que estavam
submetidos tais trabalhadores. As primeiras leituras foram bastante truncadas, a sala
estava mais interessada em se ater aos erros do colega leitor. No entanto, com o
transcorrer das aulas, o conteúdo da reportagem, exposto de maneira
predominantemente narrativa, passou a ser o objeto de maior atenção61. Ao final da
leitura, após as discussões, solicitei alguns comentários por escrito. Nessa ocasião,
expus que nada havia de vergonhoso em trabalhar naqueles subempregos e que, na
realidade, o horror está em ser vítima de um sistema que degrada as pessoas através da
exploração de mão-de-obra; relatei também já haver trabalhado como garçonete e como
entregadora de panfletos nos faróis de São Paulo. Presenciei então mais um momento de
identificação da turma, que passou a fazer comentários mais pessoais: “eu também já
passei por isso”; “eu já fui humilhado dessa e daquela forma”; “meu patrão também me
trata dessa maneira”; “infelizmente eu preciso fazer essas coisas, pois ajudo a sustentar
minha família” etc. Foram discussões que aproximaram os alunos e alunas do texto
escolhido e propiciaram um pensar acerca de assuntos que estão presentes na vida deles
(as). Percebi que se reconheciam no interior de um grupo; ali, na sala de aula, eram uma
comunidade interpretativa, a exemplo do que diz Stanley Fish (FISH, 1980).
Após essa experiência, passei a arriscar outras leituras que abordassem temas do
horizonte de expectativas dos alunos, para usar uma já corrente expressão de Hans
Robert Jauss. Escolhi um capítulo (“Meninos torturados”) do livro Pixote – a lei do
mais forte, de José Loureiro, onde o autor discorre sobre um episódio ocorrido com
garotos de rua, em outubro de 1974. O teor do texto é forte, e mais uma vez os alunos
trouxeram indagações e propiciaram rica discussão sobre a condição dos meninos de rua
e da crueldade com que são tratados. Para complementar alguns pontos sobre as
questões levantadas, li um trecho do livro A escola e o conhecimento, do professor e
filósofo Mário Sérgio Cortella, onde o autor a partir da história de um índio que vem
61
De resto é o que se observa mesmo num leitor culto: se o enredo seduz, as falhas iniciais (sobretudo
aquelas de ordem técnica, como falhas de revisão ou de tradução) tendem a ser ignoradas com o
transcorrer da leitura.
72
conhecer a cidade, traça observações sobre a civilização (se um homem não é livre,
nenhum o é).
Essa leitura ofereceu aos alunos a oportunidade de responder a uma outra tarefa
escolar, para a qual pediram minha ajuda: montar uma cena teatral que seria avaliada
pela professora de Artes. A sala inteira precisaria participar: atuar, montar o roteiro, o
cenário, os figurinos, a sonoplastia. Decidimos todos em comum acordo montar um
texto próprio, cujo tema seria a vida de um jovem que se envolve com drogas. O
processo de escrita foi coletivo: uns falavam que um primo era “assim” (e o personagem
ganhava tintas desse primo), que o amigo havia “caído nessa vida” (e a caracterização
do modo de vida ia ficando mais clara), que os drogados agiam dessa ou daquela
maneira etc. O texto final, apesar de simples, agradou. A linguagem coloquial
aproximou a escrita da fala e tudo ficou mais íntimo para os alunos-atores. O mais
curioso foi ver o “pior aluno da sala” engajar-se no projeto para ser o protagonista da
peça (e ele acabou sendo um grande protagonista!). O melhor foram os ensaios. Em um
deles, resolvi inserir uma pequena briga entre o personagem principal e seus algozes, o
que causou um alvoroço na sala: alguns achavam que isso não era possível, que o
diretor da escola não permitiria, que traria problemas. Mas ousamos incluí-la, e deu
certo. Os alunos, embora “descolados”, têm receio de testar certas coisas no âmbito
escolar. A pergunta “mas isso pode aqui na escola?” rondou o processo, o que
considerei muito proveitoso, pois pudemos discutir aspectos da realidade e da realidade
na arte, como aquilo que é nocivo no meio social pode ser, pela arte, um meio positivo
de reflexão. Em um dos ensaios, resolvi trazer uma sétima série para assistir.
Novamente, um dos alunos, o considerado mais “baderneiro” e “improdutivo”, foi o que
mais vibrou com as cenas enquanto espectador. Não queria ir embora. O entusiasmo
parecia provir da identificação com o anti-herói protagonista (um adolescente
criminalizado em virtude do envolvimento com drogas). O resultado final ficou muito
interessante, apesar da pouca quantidade de ensaios e do nervosismo de todos (a peça,
que era para ser apenas encenada na própria classe, terminou por ser assistida pela
escola inteira).
Também houve experiências positivas com turmas do segundo ano do ensino
médio. Em uma delas, ofereci textos de literatura marginal-periférica a dois alunos
repetentes que não participavam de quase nada durante as aulas (o desinteresse não era
só pelas aulas de português, mas pelas demais matérias também). Para um deles o
professor coordenador pediu-me que aplicasse um castigo, ou seja, que o obrigasse a me
73
62
Caros Amigos, edição107, São Paulo: Casa Amarela, Fevereiro de 2006.
63
Acredito que o formato das aulas é um agravante no ensino de literatura, já que os 45 minutos não
permitem um aprofundamento no que está sendo lido e analisado.
74
não se pronunciava, talvez por timidez ou por vergonha em falar algo impertinente
diante da sala. Os comentários ocorriam mesmo depois das aulas ou nos corredores, de
maneira mais informal.
Uma expressão utilizada por esses mesmos jovens, em letras de rap e também
em obras de literatura marginal-periférica, sintetiza as adversidades ocasionadas pela
violência urbana e esse gosto pelo perigo: vida loka. Traduz a “adrenalina” existente no
dia-a-dia da periferia e o caos no qual está imerso o morador-sobrevivente dela. Outra
expressão comum que faz alusão ao jovem considerado esperto, descolado, malandro,
marginal ou marginalizado é “bicho solto”. Pude observar, a partir de algumas situações
vivenciadas na escola, que grande parte dos meninos e meninas ali presentes, diante da
violência, das privações e das disparidades sociais que vivenciam, procuram inserir-se
nesse meio através de uma máscara social que lhes permite suportar as agruras a que são
submetidos diariamente. Ser um “bicho solto” ou ter uma “vida loka” passa a ser
sinônimo de status para esse jovem que é continuamente excluído social e
economicamente de um círculo privilegiado, uma tentativa de subverter a ordem
vigente, tomar à força aquilo que lhe é constantemente negado: já que não há igualdade,
não há justiça, não há dinheiro, não há saída, a solução é ser um fora-da-lei, um
marginal.
No entanto, apesar do progresso nas aulas de leitura e literatura, percebi que,
mesmo atentos à literatura marginal-periférica que lhes era apresentada, os jovens ainda
tinham dificuldades em apreciar outros textos, já que as expressões de enfado e as
conversas paralelas surgiam durante as leituras de textos canônicos Diante disso
questionava-me se estar estritamente restrito a um determinado tipo de literatura que
não exige outras aptidões do leitor ao qual se destina seria a melhor opção de leitura. As
narrativas64, por exemplo, trazem linguagem de fácil entendimento, os temas têm apelo
marcado pela violência, pela sexualidade e por momentos de clímax a cada capítulo – o
que prende a atenção do leitor, como se fosse uma novela –, os personagens são
facilmente decifráveis. Tudo isso contribui para que a leitura seja fluída, sem momentos
de digressão, nem de questionamento ou reflexão mais profunda que façam com que o
leitor abandone seu cômodo lugar de receptor “passivo”. Percebi esse fato, que antes era
apenas instintivo, quando propus às salas trabalhar com um artigo de opinião que se
64
Essa “facilidade” durante a leitura é mais comum nas narrativas marginal-periféricas (contos e
romances). O trabalho com poemas de Allan da Rosa, citados anteriormente, por exemplo, suscitou
muitas indagações e reflexões.
75
estruturava na ironia65. A maior parte dos alunos não conseguia identificar essa
peculiaridade, fundamental para o entendimento do texto. A linguagem, por distanciar-
se da coloquialidade, também consistiu em empecilho na recepção. Somente com apoio
de outros materiais (outros artigos relacionados, discussões que elucidavam o tema e um
filme66 referente ao assunto) é que foi possível “desvendar” o conteúdo do artigo com as
turmas.
Isso contribui para explicitar que foi observado um fenômeno entre alunos não-
leitores – o interesse por textos marginal-periféricos –, mas que a formação de um
sujeito leitor na escola não é feita somente de leituras “de gosto”, o que não significa
que essa ou aquela literatura não sirva, mas que o leitor-aluno para se tornar um leitor
pleno, autônomo, precisa da mediação do leitor especialista, no caso, o professor.
65
“Caros Inimigos”, artigo de Cesar Cardoso sobre a dominação e a exploração ao longo da história
mundial para a Revista Caros Amigos, edição 115, São Paulo:Casa Amarela, outubro de 2006.
66
Fahrenheit, 11 de setembro, de Michael Moore.
76
67
Durante a minha incursão pela oficina, o espaço cultural onde eram ministradas as aulas passou por
uma forte crise em virtude de um projeto municipal que visava transformar o lugar em local destinado à
expedição de documentos (Poupatempo), o que ocasionaria o fechamento completo das oficinas culturais
ali realizadas desde a década de 1990. Formou-se então um movimento organizado por alguns grupos do
Tendal da Lapa e associações de moradores do bairro, que ficou conhecido como “Viva o Tendal”. Os
integrantes da Oficina do Ator Antropofágico participaram ativamente das reuniões e das manifestações
em prol da preservação e ampliação do espaço reservado à cultura.
77
68
As duas palestras foram ministradas na própria escola, em horário de aula. Pretendia-se que houvesse
um “intercâmbio”, devendo os alunos também participar das aulas no Tendal. Houve até mesmo um
projeto enviado para o Programa de Fomento aos Teatros de Grupo de São Paulo, no qual se
privilegiavam essas “trocas culturais”, mas o mesmo não foi aprovado. Os alunos também não chegaram
a participar efetivamente das oficinas.
69
Dentre os filmes, os alunos assistiram Notícias de uma guerra particular, documentário que trata dos
conflitos e complexidades que envolvem o narcotráfico e a ação policial nas favelas do Rio de Janeiro; o
curta-metragem O dia em que Dorival enfrentou a guarda ; Brasil: muito além do Cidadão Kane e
Quanto vale ou por quilo?. Em evento organizado pela revista FLAP, intitulado Embates (o tema da
mesa-redonda em questão era “Periferias?”, o diretor Sérgio Biancchi (Quanto vale ou é por quilo?),
esteve presente em uma banca de debatedores, juntamente com Sérgio Vaz, Allan da Rosa, André du Rap,
Bruno Zeni e outros, discutindo sobre a arte que emerge das periferias.
78
jovem aluno das periferias que transita (ou que poderia transitar) entre esses saberes,
mas que não o faz com pleno domínio, nem com consciência do processo em que está
inserido. Foi o estopim para novas reflexões. As obras Macunaíma e O rei da vela,
requisitadas como leitura obrigatória, também foram assunto da pauta das palestras,
bem como a figura do anti-herói, do malandro, do marginal na literatura e na vida.
Houve certa dificuldade na passagem do gênero periférico-marginal para outro mais
institucionalizado. As leituras coletivas dos textos daquele primeiro deram lugar à
leitura solitária de uma obra literária densa, de linguagem trabalhada, que mescla
situações distintas e foge do naturalismo e dos personagens de fácil compreensão.
É interessante pontuar que a turma que assistiu às palestras foi a única que
aceitou debater as questões ligadas à literatura marginal-periférica sem restrições. Falar
sobre a inserção do gênero no mercado editorial, sobre a linguagem marcada pela
oralidade e próxima do cotidiano, sobre a crítica que o considera gênero menor, o perigo
do leitor e do autor restringirem-se a apenas essa vertente literária entre outros aspectos
só foi possível com esse grupo. Em outras salas, quando iniciávamos às discussões, os
alunos apresentavam grande resistência em discorrer sobre as peculiaridades da
literatura marginal-periférica. Aparentava que eu, enquanto mediadora, ao tecer
comentários condenava ou ameaçava o gosto dos que simpatizavam com o gênero, e
que manifestava uma espécie de preconceito em relação à cultura periférica.
Tais constatações me levaram a pensar que os alunos, ao se identificarem com
essas obras, passam a apropriar-se dela de tal maneira que pareça ser necessário
defendê-la de possíveis “ataques externos” oriundos dos paralelos com a cultura
canônica. Essa identificação primária propiciaria, portanto, uma necessidade de
reafirmar um tipo de cultura que representaria socialmente o indivíduo leitor, o qual, por
sua vez, vê-se na obrigação de defender aquilo que o representa como legítimo.
Essas foram algumas experiências empiricamente felizes observadas em séries
diferentes. No entanto, pude perceber que a literatura marginal-periférica, ainda que
possa consistir em uma importante ferramenta de ensino – na medida em que desperta a
atenção e o gosto pela leitura, principalmente nos alunos e alunas que costumam
rechaçar as leituras tradicionais –, apresenta limitações no âmbito escolar se não
mediada. Entretanto, essa afirmação requer discussão mais aprofundada e é o que
pretendemos fazer ao longo desta dissertação. Como fazer uso dessa literatura em sala
de aula, bem como investigar o processo de identificação causado no sujeito receptor da
leitura são objetos de estudo da presente pesquisa.
79
Desde 2006 é professor efetivo de uma Escola Estadual no Parque Císper, Zona Leste,
SP. Além de dar aulas na escola, é coordenador pedagógico do jornal “Fique de Olho!”,
escrito, produzido e distribuído pelos estudantes, e do projeto de incentivo à leitura e
produção escrita “Literatura (é) Possível”, que consiste na realização mensal de saraus e
atividades culturais dentro da sala de aula, além de encontros literários entre os alunos e
escritores do agora, principalmente periféricos. Ambos os projetos desenvolvidos na
raça, na crença, sem patrocínio de quaisquer entidades (governamentais ou não).
(CIRÍACO:2008:106-107)72
70
Este livro foi publicado pelas Edições Toró, uma editora “periférica”, organizada por Allan Santos da
Rosa, Silvio Diogo e Mateus Subverso.
71
A dúvida seria se um autor detentor de conhecimentos acadêmicos, portanto, participante da cultura
legitimada e dominante, ainda poderia ser considerado um autor “marginal” ou “periférico”, já que não
mais estaria às margens ou na periferia da cultura autorizada.
72
CIRÍACO, Rodrigo. Te pego lá fora. São Paulo: Edições Toró, 2008.
80
próprio professor, na experiência dos saraus da Cooperifa73, a qual ele proclama como
“a mais ativa Academia de Letras de São Paulo” e “onde comunga com a comunidade
seus contos e poemas”. Nos saraus em sala de aula, qualquer um pode escolher um texto
e ler, seguindo uma ordem de inscritos. As únicas regras são: apresentação (da pessoa
que vai ler, título do texto e autor), silêncio da platéia e palmas ao final da apresentação.
Pelo que percebi, as leituras que mais inflamam e agradam são aquelas que envolvem
um ritmo de leitura e de semi-dramatização próximas do canto de rap ou hip-hop, cuja
malemolência, gingado de corpo e expressividade dão cor e vivacidade à leitura, muitas
vezes já decorada, o que confere ainda mais propriedade à apresentação.
Após essa palestra, fui até a escola situada na Zona Leste para conhecer mais de
perto o projeto, a metodologia, as obras e os alunos do professor. Trata-se também de
uma escola periférica que atende as comunidades do Parque Císper, Jardim Verônia e
proximidades. Apesar de ser uma escola do outro lado da cidade, seu aspecto,
funcionamento e condição aproximam-se muito da escola onde leciono. No dia em que
fui visitá-los, o encontro literário seria entre os alunos e o poeta e escritor de periferia
Sérgio Vaz, organizador da Cooperifa. Havia cerca de doze alunos de 6as, 7as. e 8as
séries, era uma atividade extra-classe. O convidado começou discorrendo sobre sua
experiência como escritor e ativista cultural. Algumas questões foram levantadas pelos
jovens alunos e mediadas pelo professor (quais foram as dificuldades em se iniciar um
projeto como a Cooperifa? como vc se tornou escritor? quais os autores que o
influenciaram? como foi a sua infância? etc).
O escritor respondeu uma a uma às perguntas, tendo o cuidado de se fazer
entender pelos adolescentes. Falou sobre sua infância pobre, seu contato com a
literatura, de como os livros o ajudavam a ser menos tímido, das brincadeiras de rua e
do pai leitor; da descoberta de autores como Pablo Neruda e Górki, da leitura
emocionada de Capitães da Areia, de Jorge Amado, na adolescência. Também
apresentou rapidamente aspectos do sarau literário que desenvolve pela Cooperifa, do
início como músico e letrista de um grupo musical, de suas primeiras apresentações
como poeta em shows de bandas, da sua persistência em adentrar um meio fechado
como o literário, da importância da escola, de não acreditar que não são capazes de
73
Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia) surgiu como sarau periférico que ocorre há sete anos na
periferia da zona sul (Piraporinha), num bar (Bar do Zé Batidão), cujo organizador é o poeta e escritor
Sérgio Vaz.
81
Após o lanche, os alunos escolheram poemas para ler num breve sarau. O
professor trouxe uma caixa enfeitada com papel crepom onde se podiam escolher obras
de Ferreira Gullar, Drummond entre outros grandes poetas brasileiros. Mas o interesse
dos educandos estava essencialmente centrado nas obras marginal-periféricas (Vaz,
Ciríaco, Buzo entre outros). Quase todos leram. Ao término da leitura, o convidado
distribuiu livros para os presentes.
Logo no início da reunião, o professor se desculpara pelo reduzido número de
alunos presentes, já que o grupo inicial diminuíra muito, apontando que é difícil
competir com outras possibilidades mais “palatáveis” como a televisão, o play station,
os namoricos, a recém inaugurada sala de informática da escola, etc. Era visível o
orgulho com que o encontro literário em questão produzia no seu organizador, o que
também pode ser depreendido destas palavras retiradas do blog:
em dois anos de projeto, mais de 100 saraus foram feitos em sala de aula; mais de 30
encontros literários - fora do horário de aula - foram realizados, nove poetas e escritores
compareceram na escola (Sérgio Vaz (2x), Marcelino Freire, Sacolinha, Allan da Rosa,
Dinha, Alessandro Buzo, Carlos Galdino, Akins Kinte e Elizandra Souza), mais de 80
livros destes autores - entre outros - foram distribuídos GRATUITAMENTE aos alunos
integrantes do projeto, além do compartilhar de risos, lembranças, choros, saudades e
muita, muita leitura.74 (grifos do autor)
74
Retirado do blog do professor: www.efeito-colateral.blogspot.com .
82
Destaco, pois, a preferência dos alunos, quando de leitura em voz alta, pelas
obras marginal-periféricas, como se sentindo eles próprios lidos pelos poetas. Alunos
tão novos parecem perceber que existe ali uma possibilidade de expressão genuína
através das leituras de alguns expoentes que se tornaram porta-vozes da periferia.
83
Capítulo 3
75
Textos que atacavam direta ou indiretamente a repressão na época da ditadura militar, por exemplo,
poderiam ser relacionados nessa categoria (peças como Abajur lilás e Mancha roxa de Plínio Marcos, os
contos de Malagueta, Perus e Bacanaço de João Antônio entre outras). Poderiam ainda ser agrupadas
nesta categoria obras que almejavam ser veiculadas sem o controle e o financiamento de grandes editoras,
86
um apelo contra a imposição mercadológica capitalista que invadia a área cultural. No conto “Sintomas”,
de Paulo Leminski, o autor, considerado também um autor marginal da década de 70, aponta para o
problema da inserção das obras marginais nas grandes editoras, através do diálogo da personagem, um
suposto escritor, e seu médico:
“– Tem sentido algum soneto?
– Só de manhã, quando vou dormir de estômago vazio.
– Impulsos marginais?
– Depois que fui editado pela Brasiliense, meus sintomas marginais desapareceram(...)”
(LEMINSKI, 2004, p.149-150)
76
A Ação Educativa promove uma série de eventos relacionados à cultura periférica, além de projetos de
literatura. Há uma publicação mensal viabilizada por ela denominada Agenda Cultural da Periferia, na
qual são arrolados os acontecimentos culturais que serão realizados ao longo do mês nas áreas e
comunidades da periferia da capital. Esta ONG tem, entretanto, o apoio de um grande banco (Fundação
Itaú Social).
87
Tratando de espaços não valorizados socialmente, como a periferia dos grandes centros
urbanos, ou os enclaves murados em seu interior, como as prisões, os textos citados
(Cidade de Deus e Carandiru) e alguns outros vêm conseguindo visibilidade na mídia,
êxito perante parte importante da crítica e reconhecimento dentro do campo literário e
cultural, provocando debates sobre a sua legitimidade, enquanto expressão de um sujeito
social até então sem voz, ou mesmo sobre a possibilidade de criação de uma nova
vertente temática e estilística correspondente à matéria que traduzem. (PELLEGRINI,
2008, p.41)
77
Sérgio Vaz, no intervalo da palestra realizada em escola da zona leste.
78
É necessário frisar que a denominação “literatura periférica”, bem como o termo “literatura marginal”,
são expressões provindas dos próprios autores dessas correntes.
88
O silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que
buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária
de seus próprios integrantes. Mesmo no último caso, tensões significativas se
estabelecem: entre a “autenticidade” do depoimento e a legitimidade (socialmente
construída) da obra de arte literária, entre a voz autoral e a representatividade de grupo e
até entre o elitismo próprio do campo literário e a necessidade de democratização da
produção artística. O termo-chave, neste conjunto de discussões, é “representação”(...).
(DALCASTAGNÈ, 2008, p.78-79)
Uma vez que a cultura letrada entre nós não foi nunca uma cultura de libertação, mas
uma cultura de dominação, é muito importante o domínio da letra. Dominar a letra, em
alguma medida, é inverter o próprio processo cultural. Escrever seus livros, produzir
seus poemas, escrever letras para o rap é importantíssimo. A educação foi sempre uma
barreira para o acesso à cultura letrada. Dominar a cultura letrada é virar pelo avesso a
lógica da dominação. (ROCHA, 2007)
79
É notório até hoje o exemplo de Carolina de Jesus, autora de Quarto de despejo. Surgiram nos últimos
anos autobiografias, algumas ficcionalizadas e com contribuição de outros para a escrita, de jovens que
passaram por situação de marginalização, além de outros exemplos que serão mais adiante abordados.
80
Dalcastagnè frisa em seu estudo o fato da literatura permanecer de maneira majoritária no círculo
restrito da classe média: “Na narrativa brasileira contemporânea é marcante a ausência quase absoluta
de representantes das classes populares. Estou falando aqui de produtores literários, mas a falta se
estende também às personagens. De maneira um tanto simplista e cometendo alguma (mas não muita)
injustiça, é possível descrever nossa literatura como sendo a classe média olhando para a classe média”
(DALCASTAGNÈ, 2008, p.79).
89
Aqueles que estão objetivamente excluídos do universo do fazer literário, pelo domínio
precário de determinadas formas de expressão, acreditam que seriam também incapazes
de produzir literatura. No entanto, eles são incapazes de produzir literatura exatamente
porque não a produzem: isto é, porque a definição de “literatura” exclui suas formas de
expressão. Assim, a definição dominante de literatura circunscreve um espaço
privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns
grupos, não de outros. (DALCASTAGNÈ, 2008, p.80-81)
81
Esta referência é afirmada por alguns dos expoentes do próprio movimento de literatura marginal-
periférica, como o escritor Ferréz, por exemplo. Fica explícita a influência de escritores do período da
ditadura no desenvolvimento literário de Ferréz quando o autor escreve a nota do editor na segunda
edição especial da Caros Amigos/ Literatura Marginal – Ato II: “A literatura marginal , sempre é bom
frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à
margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder
aquisitivo. Temos assim duas pessoas de que eu particularmente sou fã e não estou sozinho na
admiração, estou falando de Plínio Marcos e João Antônio, como autores marginais, ou seja, à margem
do sistema, já que falavam de um outro lugar com voz que se articulava de uma outra subjetividade (tá
vendo, quem disse que maloqueiro não tem cultura?). Também não vamos nos esquecer que em São
Paulo, no gueto da Boca do Lixo, e no Rio de Janeiro, nas rebarbas da geração Paisandu e do elitismo
90
etílico de Ipanema, se fazia um certo cinema marginal, na periferia dos grupos de vanguarda do cinema
novo. Desse tempo também é o manifesto ‘Seja marginal, seja herói’, de Hélio Oiticica”.
82
“Estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como se existisse uma
unidade prévia que aglutinasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro. Mas é
claro que tal unidade ou uniformidade parece não existir em sociedade moderna alguma e, menos ainda,
em uma sociedade de classes”. (BOSI, 1992, p.308)
83
Sem dúvida um desses momentos férteis foi o período de disseminação das vanguardas européias no
Brasil e sua movimentação cultural posterior, genericamente chamada de movimento modernista. Mas a
multiplicidade de movimentos e manifestações culturais das décadas de 60-70 pulsavam de acordo não só
com as motivações internas dos artistas, mas também com as externas e políticas.
91
Este é um produto desenvolvido e criado 100 por cento na periferia. Todos os artistas
que participaram deste projeto representam a verdadeira cultura popular brasileira. A
Editora Casa Amarela e a Editora Literatura Marginal criaram este projeto com o intuito
de passar informação, e de trazer novos talentos juntamente com alguns nomes já
conhecidos, para que a informação, que tanto é vital para vivermos, seja divulgada
também para o povo sofrido de toda a periferia.(FERRÉZ, 2001, contracapa) 84
84
Trecho, de autoria do escritor Ferréz, publicado na contracapa da revista Caros Amigos Especial.
Literatura marginal: a cultura da periferia: ato I.
85
Segundo o estudo feito pela antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, o significado da sigla 1daSul é
“Somos Todos Um pela Dignidade da Zona Sul”. Em sua dissertação de Mestrado ela registra que a
1daSul engloba movimento cultural, grife, selo fonográfico, loja e produtora, todas geridas por Ferréz.
(NASCIMENTO, 2006).
86
Algumas delas: Fortaleza da desilusão (1997), Manual prático do ódio (2003) e Amanhecer Esmeralda
(2005), sendo este último um dos poucos livros de literatura marginal-periférica destinados ao público
infanto-juvenil.
92
“Mais simples, porque abstrato e unilateral, é o confronto que certa cultura erudita,
centrada em si mesma, faz com as manifestações folclóricas: ela as desclassifica
enquanto cultura, acentuando, no seu julgamento, o teor simples, pobre, elementar,
grosseiro, vulgar ou as formas monótonas, repetitivas, não-originais, dessas mesmas
expressões”. (BOSI, 1992, p. 334)
87
Entre as obras mais expressivas de Plínio Marcos escritas no período da ditadura estão as peças
Navalha na carne (1968), Barrela (1976), O abajur lilás (1975), Quando as máquinas param (1971); há
também o romance Querô – uma reportagem maldita (1976) e a coletânea de contos Histórias das
quebradas do mundaréu (1973).
88
Ao pesquisar comentários sobre a obra Quarto de despejo, de Maria Carolina de Jesus, li os seguintes
comentários do escritor Alex Castro em seu artigo na internet: “(...) colocar Carolina na estante ao lado
de Machado de Assis, especialmente mantendo os erros gramaticais, nada mais é do que um modo
simpático de nos humilhar para divertimento alheio. Quando minha editora (...) encontra um erro de
português em minha coluna, ela corrige. É uma ato de amor e de respeito. Ela não quer que eu passe por
ignorante. Manter os erros de Carolina é um meio de garantir que ela seja vista somente como mais um
literary freak. Nesse jogo entre pessoas limpinhas e cheirosas, Carolina só entra mesmo como atração
principal. O jornalista que editou o livro é o mestre de cerimônias do circo, nós somos a platéia e
Carolina, coitada, é a mulher-barbada. A graça de Quarto de despejo parece justamente fazer seus
leitores bem alimentados sorrirem condescendentes e pensarem: olha só, que bonitinho, a preta
ignorante quase consegue escrever direito...” (www.sobresites.com.br; acesso realizado em 21/12/2008).
93
A inclusão, no campo literário talvez ainda mais do que nos outros, é uma questão de
legitimidade. Neste sentido, a própria crítica e a pesquisa acadêmica não são
desprovidas de relevância. Afinal, são espaços importantes de legitimação (ao lado dos
próprios criadores reconhecidos). Ler Carolina Maria de Jesus como literatura, colocá-
la, quem sabe, ao lado de nomes consagrados, como Guimarães Rosa e Clarice
Lispector, em vez de relegá-la ao limbo do “testemunho” e do “documento”, significa
aceitar como legítima sua dicção, que é capaz de criar envolvimento e beleza, por mais
que se afaste do padrão estabelecido pelos escritores da elite.
(DALCASTAGNÈ, 2008, p.82)
94
O estudo que aqui se pretende é investigar o que há nesses textos que poderia
despertar a identificação e desencadear o processo de leitura no aluno jovem de
periferia, uma vez que o objetivo geral do trabalho é verificar as possibilidades ou
potencialidades dessa literatura para a escola. Para tanto, busca-se discutir a linguagem,
os temas e as personagens, aspectos que primeiro aparecem quando se pensa em
identificação. A seguir, antes de passar à análise propriamente, comentamos as quatro
obras de modo a situá-las no panorama da literatura marginal-periférica.
O romance (Capão Pecado) não foi saudado como acontecimento literário, tampouco
foi lançado sob o aval de algum crítico renomado, mas movimentou o interesse da
imprensa que buscou evidenciar mais os aspectos sociológicos relacionados à produção
95
O mesmo Ferréz que não serviu para ser faxineiro de um grande hotel em São Paulo e
depois de seis meses estava palestrando nesse mesmo hotel, que durante anos insistiu
em passar no teste de dezenas de empresas, e, embora fosse malsucedido, continuava
tentando. (FERRÉZ, 2005, p.7)
89
www.ferrez.blogspot.com.
90
“Entre seus autores favoritos estão Dostoiévski, Carlos Drummond de Andrade e Herman Hesse.
Ferréz dá palestras em escolas e comunidades, e tem crônicas publicadas em diversos veículos, como a
revista Caros Amigos e o jornal Folha de São Paulo” (FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. São
Paulo:Global, 2006).
96
91
www.sacolagraduado.blospot.com
97
livros publicados por editora própria, com incentivo de uma organização não-
governamental, a Ação Educativa. Em seu livro Vão, há uma breve descrição do autor:
Allan da Rosa promove seus livros e geralmente os vende nos eventos que
envolvem artes de periferia (saraus, lançamentos de outros livros, apresentações de
danças e de vídeos etc). Não foi publicado por nenhuma grande editora, tendo fundado a
sua própria, denominada “Edições Toró”92. As publicações da editora de Allan da Rosa
primam por publicar obras de outros autores periféricos93. Seus livros são sempre feitos
de maneira quase artesanal, costurados à mão, com caligrafia e desenhos esmerados
feitos por artistas também da periferia. Dispõe-se a participar de debates e proferir
palestras para os alunos da rede pública de ensino, como forma de incentivá-los na arte
literária.
O livro Vão foi escrito e publicado por Allan Santos da Rosa em 200594.Esta
primeira obra contém diversos poemas que se organizam em torno dos seguintes temas:
a periferia, o preconceito, a luta diante da desigualdade social e econômica, o amor à
arte entre outros. Há três partes no livro: “Conduítes”, “O Barco” e “Vão”. São poemas
de protesto e de desabafo que não deixam de lado o lirismo e o elemento lúdico; o eu-
92
A abertura do site da editora faz clara referência à necessidade de se cultivar uma cultura da maioria,
de baixo para cima e ainda faz crítica à escola tradicional que não incentiva a leitura:“Dissolve a zica,
chama a chama, chove álcool, taca fogo na masmorra disfarçada de escola. Deixa antes a gente cuidar
das pétalas e vem aguar nossos canteiros. Chove persistente. Afoga esses medos de ler.Poças sejam
espelhos no caminho, sem caldo morto. Não. Essa poça é quente, tem páginas, tem peixes namorando
estrelas. Essa poça pensa. Vem, chuva. Dá água pra massa sovar. Água que junta e que separa. Destaca
cada grão, une de novo. Dá a liga, dá o pega. Pra mão que trampa até de olhos fechados, que modela,
busca, duvida. A mão também tem seus sonhos. Toró. A água é o pensamento sangrado. A terra, o
cimento, a mandioca são o lugar, a linguagem. O livro é a massa da obra, a farinha, o trabalho pra ser
comido, morado. Vai chover de baixo pra cima.(edicoestoro.net).
93
Entre os livros publicados estão Um segredo no céu da boca (coletânea envolvendo textos de vários
autores), Te pego lá fora, de Ciríaco, Punga, de Elizandra de Souza e co-autoria de Akins Kinte, De
passagem mas não a passeio, de Dinha, Negrices em flor, de Maria Tereza, Desenho do chão, de Silvio
Diogo, Notícias jugulares, de Dugueto Shabazz entre outros.
94
Publicou uma peça de teatro intitulada Da Cabula – istória pa tiatru, 2006, e um livro de fotos,
Morada, 2007, realizado em co-autoria com Guma.
98
lírico na maior parte dos poemas é uma voz que vem da exclusão, mas que não perde a
altivez e o sonho.
95
Ao final do livro, o autor aponta: “Os personagens e as situações deste livro são reais apenas no
universo da ficção, não se referem a pessoas e fatos concretos”. No entanto, a veracidade das palavras e
dos temas representados estão muito próximos do que conhecemos enquanto realidade nas escolas de
periferia.
96
Manter contato constante com os autores através de diários virtuais e sites viabiliza decerto a conexão
entre os leitores e escritores, favorecendo uma relação mais dinâmica e participativa principalmente dos
jovens.
97
Na coletânea da Revista Caros Amigos – Literatura Marginal, há alguns autores que estiveram
envolvidos com atividades ilegais, como Jocenir, autor de Diário de um detento, transformado em letra de
música rap pelo grupo Racionais MC´s. Na compilação da revista, Jocenir apresentou o texto “A lua e
eu”. Cascão, MC do grupo Trilha Sonora do Gueto e autor de Virando as páginas da vida, também
denota em seus escritos a condição de ex-detento: “E não pense você que tá a pampa, quem tá preso não
tá não, viu? Mó veneno, truta tirá cadeia, experiência própria, fiquei sete anos e cinco meses, tô ligado
qual que é a fita qui você imagina da cadeia.” (“A conscientização”, Caros Amigos/Literatura Marginal
– Ato I, p.30).
99
98
Na última página de Da cabula – istória pá tiatru está escrito sobre o autor: “Em 1998 estudou no
cursinho do Núcleo de Consciência Negra e passou no vestibular para cursar graduação em História.
Atualmente estuda Educação. (...) Habitou o Crusp e mora em Taboão da Serra “. (ROSA, 2006).
Deduz-se que o autor, por habitar o CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo) – um
local destinado à moradia de alguns estudantes da USP – deva ter estudado lá, embora não o tenha
afirmado categoricamente.
100
A indústria cultural
99
“Essas questões estão ligadas também ao que se pode chamar de uma pedagogia da violência gerida
pela indústria da cultura, sobretudo pelos meios visuais, cujo principal método é a espetacularização. No
interior dessa indústria, a violência real que castiga a sociedade brasileira vem gradativamente sendo
percebida como um dado simbólico portador de grande potencial de agregação de valor, desde que
devidamente estetizada por meio do excesso, da exacerbação, transformando-se assim em espetáculo, tal
como acontece, por exemplo, na cinematografia americana. A meu ver, o traço mais geral desse
espetáculo não é a procura de um possível e “democrático” valor de exposição, mas o seu oposto, de
forma degradada: o valor de culto hoje votado a todas as formas de violência e crueldade passíveis de se
transformar em valiosa mercadoria; a exposição da morte, da destruição, da tortura e da violação
exacerbadas, diluem qualquer pretensão à neutralidade estética ou moral na representação. Estetizar a
violência tem sido, na verdade, criar condições excitantes para a velha fruição de um mórbido deleite;
mais uma vez o terror e a piedade, a atração e a repulsa, a aceitação e a recusa reforçam os estereótipos
em que o pobre e o feio sempre aparecem como risco e ameaça, pois sua contextualização histórica e
social desaparece”. (PELLEGRINI, 2008, p.48-49)
102
100
“Voltando ao princípio dos anos 70, sob o governo Médici, quando se consolidou o processo de
modernização conservadora da sociedade brasileira, a atuação dos artistas de esquerda foi marcada por
certa ambigüidade: por um lado, a presença castradora da censura e constante repressão a quem ousava
protestar, que implicou a prisão, o exílio e até mesmo morte de alguns deles; por outro lado, cresceu e
consolidou-se uma indústria cultural que deu emprego e bons contratos aos artistas, inclusive os de
esquerda, com o próprio Estado atuando como financiador de produções artísticas e criador de leis
protecionistas aos empreendimentos culturais nacionais. O governo e a mídia, especialmente a televisão,
iam desfigurando as utopias libertárias, transformando-as em ideologias de consolidação da nova ordem
nacional. A relação dos artistas de esquerda com a indústria cultural mereceria um estudo específico,
particularmente no caso da rede de TV hegemônica no Brasil: a Globo. Essa relação tem sido vista ora
como capitulação ideológica diante da burguesia – cuja dominação os artistas ajudariam a garantir,
contribuindo para gerar uma ideologia nacional-popular de mercado, legitimadora da modernização
conservadora da ordem social vigente – ora como possibilidade de levar uma visão crítica ao
telespectador, contribuindo para mudanças sociais. Entre essas duas visões opostas, parece haver
espaço para uma série de nuanças”. ( RIDENTI, 2000, p.323-324)
103
também transforma a arte, pois os fins, os “tempos’ (de arte e de fruição) e as intenções
são outras:
Alegando cooptação por parte dos artistas que passaram a trabalhar em veículos
de massa (como Dias Gomes, para a Rede Globo), no período ditatorial, os artistas de
extrema esquerda acreditavam estar diante de supostos “traidores”, que haviam
abandonado seus ideais de transgressão para posicionar-se a favor da ordem vigente,
reafirmando-a mediante a disponibilização de suas obras a esses veículos de
comunicação. Por sua vez, os artistas que difundiram suas obras por meio dessas redes
de massa alegam a pretensão de atingir o maior número de pessoas no intuito de
popularizar a cultura, ou seja, uma cultura que realmente chegasse até o público amplo.
Atualmente, os veículos de massa, em especial o televisivo, apresentam uma
grande capacidade de absorver e transformar a chamada “cultura de periferia”. Essa
apropriação propicia uma relação identificatória com o cotidiano de milhares de
espectadores, moradores de periferia, causando a falsa sensação de “inclusão” diante de
programas, séries e filmes que abordam (geralmente de maneira superficial) a temática
suburbana e periférica. É incomensurável a capacidade que tais veículos têm de
reorganizar as culturas preexistentes e de arranjá-las de um modo que neutralize tensão,
confronto ou questionamento por parte do público ao qual é destinado101.
101
Nesta última década surgiram muitos programas televisivos que tratavam dessa temática como
“Central da Periferia”, apresentado por Regina Casé; a série “Cidade dos Homens”, surgida como
extensão do filme “Cidade de Deus”, da obra de Paulo Lins, a série “Antônia”, do filme homônimo de
Tata Amaral entre outros.
104
É preciso pontuar, contudo, que, por mais que a obra literária esteja inserida no
mercado editorial ou indústria cultural, ela, por si só, pela sua condição de permitir a
reflexão durante a sua leitura, tanto para reafirmar quanto para rechaçar o que está ali
representado, pode realizar ou promover rupturas mesmo cerceada por ditames
mercadológicos:
A crítica literária
Não são muitos os estudos sobre a posição sócio-cultural ocupada pela literatura
marginal-periférica na esfera da cultura e da crítica literária. Talvez um dos fatores que
possivelmente põem em dúvida o valor literário legítimo de obras marginal-periféricas
e, conseqüentemente, o posicionamento favorável da crítica, seja a dificuldade de
distingui-la dessa literatura massificada, destinada essencialmente ao consumo e que
não traria elementos que levassem ao “corte”, à modificação e transformação do pensar
no sujeito leitor como os romances popularescos ou textos mais digeríveis que serviriam
apenas para “consolar” – estruturas de consolação (ECO, 2006) – o receptor:
estereotipada, feita para as massas e girando, como a fotonovela, em torno de uma mitologia
sentimental.(BOSI, 2007, p.211-212)
A noção de campo de produção cultural (que se especifica como campo artístico, campo
literário, campo científico etc) permite romper com as vagas referências ao mundo
social (através de palavras como “contexto”, “meio”, “fundo social”, “social
background”) com que normalmente a história social da arte e da literatura se contenta
O campo de produção cultural é este mundo social absolutamente particular que a velha
noção de república das letras evocava. Mas não se deve ficar limitado ao que não passa
de uma imagem cômoda. E se é possível observar todos os tipos de homologias
estruturais e funcionais entre o campo social como um todo ou o campo político, e o
campo literário, que como eles têm seus dominantes e dominados, seus conservadores e
sua vanguarda, suas lutas subversivas e seus mecanismos de reprodução, ainda é
verdade que cada um desses fenômenos reveste-se de uma forma inteiramente
específica no interior do campo literário. A homologia pode ser descrita como uma
semelhança na diferença. Falar de homologia entre o campo político e o campo literário
significa afirmar a existência de traços estruturalmente equivalentes – o que não quer
dizer idênticos – em conjuntos diferentes. (BOURDIEU, 1990, p.169-170)
As homologias entre os campos não serão estudadas aqui, mas, dentro dessa
ótica, podemos enxergar com maior clareza que a função da literatura marginal-
periférica não se restringe apenas ao campo literário, pelo contrário, ela atua ainda mais
fortemente no campo social-político, enquanto força ou poder que emerge de uma
determinada classe que não é dominante, que não determina as regras do jogo político
ou cultural, que não consegue se apropriar das ferramentas de legitimação cultural e que
sempre se viu representada por mediadores (ou porta-vozes). A diferença, com o
surgimento dos autores marginal-periféricos, reside na possibilidade de representantes
legítimos – seus pares –, ou eles próprios, se transformarem em porta-vozes de
expressão coletiva:
102
“Se a promoção das classes pobres depende da instrução, na cidade ou no campo, se é preciso
reivindicar o direito à ciência e à arte, essa luta já é, em si, uma fonte de cultura”. (BOSI:2007:21)
107
No trecho acima, quando Candido diz que o artista “é ou não reconhecido como
criador ou intérprete pela sociedade”, adotando-se a perspectiva de campo literário,
poderíamos afirmar que, no que concerne à literatura marginal-periférica, na medida em
que existe a recepção dessa vertente por um público leitor, em que os livros possuem
meios de circulação (alguns já integrados ao grande sistema editorial, outros com modos
específicos ou alternativos), e que estes se tornaram alvo até mesmo da grande mídia
televisiva e jornalística e do mercado editorial, ela é parte integrante do campo literário,
ou seja, é tão literatura quanto qualquer outra legitimada, e desempenharia um papel de
força oposta àquela que está em voga. No entanto, apesar de estar em parte inserida na
mídia e no mercado, o reconhecimento dessa literatura freqüentemente denominada
“menor” é feito por uma parcela da sociedade, a que é excluída e que não determina os
juízos de valor dominantes e vigentes. Ou seja, a maior parte da crítica que possui esse
poder de legitimação ainda não reconhece tal literatura, tais obras e autores –
provavelmente por se distanciarem dos parâmetros adotados para critério de julgamento
e valoração. Esse não- reconhecimento traz à superfície as forças internas que coexistem
e constituem o campo:
(...) se é verdade que o campo literário é, como todo campo, o lugar de relações de força
(e de lutas que visam transformá-las ou conservá-las) permanece o fato de que essas
relações de força que se impõem a todos os agentes que entram no campo – e que pesam
com especial brutalidade sobre os novatos – revestem-se de uma forma muito especial:
de fato, elas têm por princípio uma espécie muito particular de capital, que é
simultaneamente o instrumento e o alvo das lutas de concorrência no interior do campo,
a saber, o capital simbólico como capital de reconhecimento ou consagração,
institucionalizada ou não, que os diferentes agentes e instituições conseguiram acumular
no decorrer das lutas anteriores, ao preço de um trabalho e de estratégias específicas.
Ainda seria preciso determinar a natureza desse reconhecimento, que não se mede nem
pelo sucesso comercial – na verdade, seria o oposto deste –, nem pela simples
consagração social – pertencer às academias, obter prêmios etc –, nem mesmo pela
simples notoriedade, que, mal adquirida, pode levar ao descrédito.
(BOURDIEU, 1990, p.170)
108
O que é importante ressaltar é a condição dessa literatura que surge nas margens
do campo literário dominante, a qual, embora fruto de uma parte do campo (ou de um
sistema dentro de um polissistema, se partirmos do modelo do crítico israelense Itamar
Even-Zohar) não-dominante, não só faz parte do campo como é peça fundamental dele
no movimento de forças contrárias que determinam a existência do mesmo:
(...) um dos alvos mais importantes que estão em jogo nas lutas que se desenrolam no
campo literário ou artístico é a definição dos limites do campo, ou seja, da participação
legítima nas lutas. Dizer a propósito dessa ou daquela corrente, desse ou daquele grupo,
que “isso não é poesia”, ou “literatura”, significa recusar-lhe uma existência legítima,
significa excluí-lo do jogo, excomungá-lo. Essa exclusão simbólica não é senão o
inverso do esforço no sentido de impor uma definição de prática legítima, no sentido,
por exemplo, de constituir como eterna e universal uma definição histórica de tal arte ou
tal gênero que corresponda aos interesses específicos dos detentores de um determinado
capital específico. Quando bem sucedida, essa estratégia, que, assim como a
competência que ela coloca em jogo, é inseparavelmente artística e política (no sentido
específico), consegue garantir-lhes um poder sobre o capital detido por todos os demais
produtores, na medida em que, através da imposição de uma definição da prática
legítima, é a regra do jogo mais favorável a seus trunfos que se acaba impondo a todos
(e sobretudo, pelo menos no limite, aos consumidores), são as suas realizações que se
tornam a medida de todas as realizações.(BOURDIEU, 1990, p.173)
Se estendermos ainda mais essa noção de campo literário e de forças que atuam
dentro dele (dominantes e não-dominantes), apropriando-nos da noção de polissistema,
poderemos entender a literatura marginal-periférica não só como parte constitutiva de
um campo maior, mas como um sistema dentro de um polissistema onde não somente
duas forças opostas travam lutas, mas onde diversas forças de diferentes poderes atuam
e se relacionam (inter-relações e intra-relações).
Visando desenvolver um estudo acerca dos mecanismos que regem as leis e
regras dos sistemas que existem, Even-Zohar destaca o erro de se considerar apenas
aquilo que é, ou foi, legitimado historicamente:
O que constitui a troca no eixo diacrônico é a vitória de um estrato sobre outro. Neste
movimento opostamente centrífugo e centrípeto, os fenômenos são arrastados do centro
para a periferia, enquanto isso, em sentido contrário, certos fenômenos podem abrir-se
para o centro e ocupá-lo. Um polissistema, não obstante, não deve ser pensado em
termos de um só centro e uma só periferia, posto que, teoricamente, se supõem várias
destas posições. Pode ter lugar um movimento, por exemplo, no qual certa unidade
(elemento, função) se transfira da periferia do sistema adjacente dentro do mesmo
polissistema, e, nesse caso, poderá logo continuar movendo-se, ou não, até o centro do
segundo. (EVEN-ZOHAR, 1972)
O autor destaca ainda a condição existencial do sistema que prescinde das forças
opostas para firmar-se enquanto tal. Assim como na teoria sobre os campos de
Bourdieu, Zohar afirma a necessidade de uma “regulação” através dos movimentos que
ameaçam a hegemonia dos fenômenos canonizados.
Tendo em vista essas afirmações, podemos depreender que qualquer sistema
literário, ou elemento do sistema literário, inserido num mais amplo teria condições de
suplantar e tomar o lugar dos gêneros canônicos, desde que se firmassem o suficiente
para que tal fato ocorresse. Diante disso, podemos supor que a literatura marginal-
periférica, mais do que subverter a ordem canônica (literária e social) com suas
especificidades, precisaria de mais força enquanto movimento de oposição, de ajustes
para “substituir” o fenômeno dominante. É de se perguntar se tal evento, que ainda não
é possível hoje, talvez o seja após alguma maturação do movimento, ou talvez nunca
ocorra por estar muito próximo das regras já estabelecidas, não constituindo, portanto,
103
EVEN-ZOHAR, Itamar. Teoria di Polissistema (Teoria del polisistema). A primeira versão foi
publicada com o título “Polysystem Theory”. In: Poetics Today, 1972. Esta versão é uma tradução para o
espanhol de Ricardo Bermudez Otero e foi utilizada em português nesta pesquisa. Os trechos originais
encontram-se nos sites oficiais do autor (www.tau.ac.il/~itamarez ou www.itamar.even-zohar.com).
110
uma força oposta, mas sim complementar ao campo dominante104. De qualquer modo, é
preciso considerar que os textos, canonizados ou não, são apenas fruto dos processos
que envolvem essas relações intra e inter-sistêmicas105, resultados dessas relações tão
complexas que compõem o campo (ou sistema-polissistema) literário.
104
Em elementos como estrutura textual, o enredo, as personagens, os conflitos da trama etc, muitas obras
marginal-periféricas são bastante próximas das obras tradicionais. A inserção no mercado editorial bem
como a exposição na mídia impressa e televisiva podem ser fatores que denotam essa similaridade com o
campo literário dominante.
105
“No sistema literário, os textos, mais que desempenhar um papel nos processos de canonização, são
resultados desses processos. Só em sua função de representantes de modelos os textos são fator ativo nas
relações sistêmicas”. (EVEN-ZOHAR,1972).
111
A leitura de textos em sala de aula trouxe um dado importante e deve ser levado
em conta neste estudo. Tanto os textos de literatura marginal-periférica como os demais
gêneros narrados nas experiências (reportagem, obras de relato e testemunhais)
apresentam uma característica comum já apontada antes: todas são muito próximas do
real. O que pôde ser percebido ao longo das leituras é que existe no jovem aluno uma
necessidade de verdade em relação ao texto literário. Em momentos diferentes e em
turmas com idades diferentes (ainda que todos adolescentes) eram comuns os
questionamentos e perguntas sobre a realidade e a verdade trazidas pelos textos:
“Professora, mas isso realmente aconteceu?”, “É de verdade?”, “Ela passou por isso
mesmo?”, “Ele morreu de verdade?”. Quando a resposta era afirmativa, como no caso
das reportagens ou das obras de relato ou testemunhais, havia uma nítida confirmação
do valor da obra e a conseqüente validação da experiência literária. Quando a resposta
elucidava que se tratava de ficção, mas muito próxima da realidade, era comum haver
uma expressão de desapontamento, acompanhada de sinais de desaprovação. A
retomada do interesse pelo texto, embora difícil, acontecia, mas era feita a partir de
outras bases: o que estava ali descrito não havia efetivamente acontecido. O
envolvimento com o texto se dava então mediante outra relação: o ficcional, apesar de
não ser verídico, vinha carregado de veracidade, pois estava de acordo com os
referenciais e experiências de vida cotidianas do leitor.
Podemos aventar, com esse dado, que a identificação nesses processos de leitura
se dá também por esse motivo; as obras marginal-periféricas, apesar de não serem
registros da realidade106 e de apresentarem fatos efetivamente ocorridos, possuem forte
relação com o real, um real periférico, por vezes violento e cruel107, trazendo para a
106
Na realidade, nenhum gênero é exatamente fiel à realidade, são sempre representações dela, ou
melhor, são criações ficcionais do autor a partir dessas representações. Mas há os que partem de um fato
ocorrido e outros que são frutos da imaginação do autor, fictícios.
107
“Essa tendência neodocumental da ficção, com tinturas tardo-naturalistas, constituía referência óbvia
à compulsão pelas situações-limite na vida social. Desde o aparecimento do Cidade de Deus, de Paulo
Lins, sucedido por muitas outras narrativas da marginalidade e da exclusão – como o Estação Carandiru,
de Drauzio Varella, o Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, ou ainda o Capão Pecado,
de Ferréz – que o esforço testemunhal dos narradores, diante da desumana inserção social vivenciada,
patenteia-se na linguagem fluida, comunicável, de forte compleição jornalística, na obsessão etnográfica
com a contextualização da cena e dos caracteres, bem como na enfática objetivação da violência, em
precisos recortes de extremos da torpeza humana.” (DIAS, 2008, p.30)
112
literatura e para o texto fatos fictícios, mas verdadeiros, um novo realismo, como
aponta Tânia Pellegrini:
Parece que a questão primeira a ser tratada, com relação aos textos escolhidos,
é a da situação concreta e imediata da exclusão e da violência no Brasil, com
todas as suas implicações e nuances, pode ser representada sem resvalar para o
artificial, para o convencional ou para o ambíguo, tornando-se mais um
elemento de folclore ou de exotismo, presa de fácil manipulação da mídia e do
mercado. O que está em jogo nesse novo realismo feroz – neo-realismo, hiper-
realismo ou ultra-realismo, como já foi chamado – não é apenas o modo como
as coisas são construídas enquanto linguagem, mas também o que elas são;
sendo um estilo, esse realismo está funcionalmente ligado a um objeto cuja
referência é concreta; assim, o objetivo da mimesis aqui tanto pode ser a
indignação, a denúncia, o protesto, a contestação, quanto a constatação
desinteressada ou interesseira e, na pior das hipóteses, cínica.
(PELLEGRINI, 2008, p.46)
De fato, esse cinismo apontado pela autora na parte final do trecho citado, está
muito presente em obras que poderiam ser classificadas como marginais, mas que foram
produzidas por sujeitos pertencentes à classe média.
Se, por um lado, essa exploração de uma realidade violenta é interessante para a
indústria cultural108, uma vez que desperta o horror e a piedade nos receptores, sejam
eles leitores, espectadores ou ouvintes, por outro, as obras literárias que abordam a
realidade sob esse mesmo viés podem encontrar ressonância entre os alunos jovens,
acostumados a outros suportes de leitura (internet, revistas juvenis), pois fornece ao
texto um outro ritmo e condição. Se o mercado fetichiza a violência no intuito de
transformá-la em produto a ser consumido, essa mesma fetichização transforma essa
literatura periférica que se mostra como crítica ao sistema em leitura atraente para os
adolescentes.
Resumindo, na medida em que o texto fictício está colado numa determinada
realidade, nela se funda, mas não é verídico, poderia gerar o desinteresse naqueles
alunos que procuram uma “constatação do real”, um retrato fidedigno do que ele
conhece como real. No entanto, quando as reflexões sobre os textos ocorrem em
diálogos abertos posteriores à leitura e o professor pontua que o autor conseguiu
108
“Na forma de um neodocumentarismo, baseado na prosa testemunhal, autobiográfica e confessional,
dando voz a sobreviventes desses infernos institucionais, criou-se uma zona cinza entre ficção e registro
documental, capaz de conquistar uma fatia significativa do novo mercado editorial”.
SCHOLLHAMMER, 2008, p.70-71)
113
Toda leitura tem, sabemos, uma parte constitutiva de subjetividade. Para muitos, trata-se
de uma realidade negativa a implicação pessoal do leitor no texto contendo em germe
todos os desvios possíveis, indo do simples erro de leitura ao contra-senso mais
flagrante. Gostaria de nuançar esse ponto de vista (sem, contudo, me opor frontalmente)
atendo-me aos aspectos positivos dessa reapropriação parcial do texto pelo leitor. Com
efeito, é porque cada um projeta um pouco de si mesmo na sua leitura que a relação com
a obra não significa somente sair de si, mas também retornar a si. A leitura de um texto
é sempre ao mesmo tempo leitura do sujeito por ele mesmo, constatação que, longe de
problematizar o interesse do ensino literário, ressalta-o. De fato, não se trata, para os
pedagogos, de uma chance extraordinária que a leitura seja não somente abertura para a
alteridade mas, também, exploração, ou seja, construção de sua própria identidade? Não
seria pois questão de apagar, no ensino, a dimensão subjetiva da leitura. Eu proporia, ao
contrário, de colocá-la no coração dos cursos de literatura. Pode-se contar com um
duplo benefício: é mais fácil, no plano pedagógico, fazer com que um aluno se interesse
por um objeto que fale dele próprio; e não é desinteressante, no plano educativo, de
completar o saber sobre o mundo pelo saber sobre si. (JOUVE, 2004)
Esse retorno a si mesmo que pode ser fomentado pelo ato de ler traz uma
perspectiva interessante para as leituras realizadas a partir da literatura marginal-
periférica. Se o jovem aluno, entrando em contato com os textos em questão durante as
aulas, conseguir com eles identificar-se, projetando os seus anseios e sublimando suas
angústias, voltando o seu olhar ao mesmo tempo “para fora e para dentro”, parece-nos
que a literatura já estaria desempenhando um importante papel ou função.
Com relação à análise das obras estudadas em sala, os itens explanados foram:
biografia do autor, tema (conteúdo), personagem (anti-herói) e linguagem. Dentre tais
itens, aquele que mais aparenta sustentar relação de identificação entre autor-obra-leitor
no caso da literatura marginal e o aluno de periferia é a linguagem, seguida pelo
assunto. O formato e as personagens também vão ao encontro das vivências do aluno
em questão, mas é através da linguagem próxima do seu linguajar cotidiano – elemento
facilitador – que o interesse maior pela leitura é despertado.
Procuraremos abordar esses elementos nas obras selecionadas e já comentadas,
visando observar e possivelmente detectar quais deles promoveriam o interesse pela
leitura em alunos jovens de escolas públicas situadas em zonas periféricas urbanas.
116
“Sou pobre, mas não sou fracassado.” Falta algo pra esses manos, sei lá, preparo; eles
tem que se ligá, pois se você for notar, tudo tá evoluindo e os chegado tão lá no mesmo,
e não tô dizendo isso porque sou melhor não. Cê tá ligado que comigo isso não existe,
mas, na moral, cara, esses aí vão ser engolidos pelo sistema; enquanto eles dormem até
meio-dia e fica rebolando no salão até de manhã, os playbas tão estudando, evoluindo,
fazendo cursinho de tudo quanto é coisa. (FERRÉZ, 2005, p.93)
117
Esse mesmo pensamento está presente também nas inserções entre as cinco
partes nas quais se dividem os capítulos, como, por exemplo, neste trecho assinado por
Outraversão:
É óbvio, nós sabemos quais são as carências daqui, mas muitos não fazem a correria
para que isso se reverta. As armadilhas estão armadas há tempos, algumas já utilizadas,
nós as enxergamos e podemos desativá-las. Basta acreditar que a revolução começa a
princípio em cada um de nós. Se eu quero, eu posso, eu sou. Abrace essa idéia de modo
positivo. (...) (FERRÉZ, 2005, p.69)
Durante a conversa começaram a falar de literatura e Capachão lhe contou que, a pedido
da professora, estava lendo o livro dum cara chamado Drummond. Rael teve vontade de
ler também. (FERRÉZ, 2005, p.55)
Rael fechou os olhos e tentou orar, mas não conseguiu. Ele viu tudo errado, o pai que
degolou o filho em um momento de loucura química, a mãe que fugiu e deixou três
filhos, a grande manipulação da mídia que elege e derruba quem quer, a forte pressão
psicológica imposta pela família, o preconceito racial, o pastor que em três anos ficou
rico, o vereador que se elegeu e na voltou para dar satisfação, o dono do banco que
recebe ajuda do governo e tem um helicóptero, os empresários coniventes, que vivem da
miséria alheia, a mulher grávida que reside no quarto de empregada, o senhor que devia
estar aposentado e arrasta carroça, concorrendo no trânsito com carros importados que
são pilotados por parasitas, o operário da fábrica que chegou atrasado e é esculachado, o
balconista que subiu de cargo e perdeu a humildade, o motorista armado, o falso artista
que não faz porra nenhuma e é um viado egocêntrico e milionário, o sangue de Zumbi
que hoje não é honrado.(...) Rael tentou se concentrar em Deus, mas penou no que seria
o céu... teria periferia lá? E Deus? Seria da mansão dos patrões ou viveria na senzala?
Ele entendeu que tá tudo errado, a porra toda tá errada, o céu que mostram é elitizado, o
Deus onipotente e cruel que eles escondem matou milhões; tá na Bíblia, tá lá, pensava
Rael, mas apresentam Jesus como sendo um cara loiro. Que porra é essa? Que padrão é
esse? (FERRÉZ, 2005, p.54)
109
Três pontos, segundo a crítica norte-americana, distinguem o roman à thèse: 1. a presença de um
sistema de valores unívoco, dualista; 2. a presença, ainda que implícita, de uma regra de ação dirigida ao
leitor; 3. a presença de um elemento doutrinário (SULEIMAN apud REZENDE, 2003, p. 92).
119
autor opta por inserir uma passagem que faz subir “adrenalina” do leitor: é uma fuga
com armas, carros, multidão, no centro da cidade de São Paulo. Esse parece ser um
elemento que poderia “prender” a atenção de um aluno-leitor pela sua proximidade com
a ficção imagética (filmes de ação e policiais). Em seguida, Vander, que é atingido por
um tiro no sonho, acorda do pesadelo para entrar em outro, o da vida real, dando início à
narração de sua trajetória.
Morador da Vila Clemetina, bairro de Brás Cubas, periferia de Mogi das Cruzes
(município próximo de São Paulo), o personagem Vander tem a vida perpassada por
tragédias e sofrimentos. O pai é assassinado por ladrões de carga, a mãe fica enferma e
morre em virtude de tristeza pela viuvez e por negligência médica; o lugar onde mora é
alvo de disputas entre traficantes (Escobar é um traficante mais “humano”, mas é morto
pelo policial e policial corrupto Lúcio Tavares, personagem cruel e mau-caráter), os
amigos não encontram emprego e facilmente adentram o mundo das drogas e do crime.
Com apenas dezenove anos, o protagonista passa por momentos de muito
sofrimento. Até encarcerado como represália ao seu não-envolvimento com o crime ele
é. Na cadeia também “faz escola” e começa a aprender a “se defender da vida” depois
de tantas tragédias, torturas, humilhações e mortes: ali encontra o assassino de seu pai e
jura vingança contra Lúcio Tavares, seu antagonista. Lendo os livros trazidos pela
namorada Rebecca, arma o plano para tomar a chefia do tráfico na região usando
dinheiro de assaltos a bancos. Foge do presídio, e com Pacola e outros comparsas –
entre eles João Ligeiro, um ex-companheiro de cela e também morador da vila e Benon,
um “criminoso intelectual” conhecido também na cadeia – busca colocar o plano em
ação. Ao se tornar o novo chefe, Vander desfruta de alguns momentos de glória, mas
logo é destronado: seus companheiros, sua mulher grávida e ele próprio morrem pelas
mãos de Lúcio e capangas ao final da narrativa.
Ao longo do romance, há trechos que se desprendem um pouco da narrativa
central, mas que não fogem do foco da periferia: há a morte que ocorre no prostíbulo de
um personagem só citado nesse momento (Zé Bonitinho); há os colegas de vila que se
envolvem com drogas, cujas histórias vão sendo citadas ao longo da trajetória de
Vander; há os momentos de devoção religiosa (candomblé); há a descrição das taras de
Lúcio bem como algumas passagens amorosas e sexuais. Esses assuntos, organizados
num enredo que até poderia virar roteiro de filme policial pela quantidade de cenas de
ação, vão ao encontro da expectativa do jovem leitor. Não há muitas inovações na
120
Em vários momentos o autor deixa clara a retidão do protagonista. Ele não bebe,
não fuma, faz exercícios para manter a forma (p.41) e dá valor aos estudos e aos livros,
como mostra o seguinte trecho, uma fala de um personagem comentando sobre a prisão
de Vander:
(...) Ela olhou na sacola que carregava e deu um breve sorriso, ali estava o que Vander
muito procurava; a biografia de Che Guevara, Carlos Lamarca, Carlos Marighela, Anita
Garibaldi, Antônio Conselheiro, João Cândido e Nunes Machado. (...) O que ela não
sabe, é que essa pequena compra mudará o futuro de Vander, sendo assim, o destino
dela também. (SACOLINHA, 2005, p.109)
110
Mesmo na utilização de expressões coloquiais, há uma certa obediência à norma padrão da língua, por
exemplo, a manutenção do plural no final das palavras, o que não ocorre em outras obras do mesmo
gênero que optam por aproximar mais a escrita da fala suprimindo o plural dos substantivos : “ – Aí, seus
candangos, quando eu voltar, a gente termina esse jogo. Ô Manelão, desce uma rodada de cerveja pros
parceiros, depois nós conversamos”(p.18). Os palavrões existem mas não em grande número ao longo da
obra; geralmente estão presentes nas falas dos traficantes ou em momentos de fúria, como nesse exemplo
da fala de Escobar: “ – Esses pregos estão achando que vão dominar a minha área, que idéia é essa? Vou
torturar todos, pingar vela no corpo de cada um até os cabelos do cu baterem palma, eles vão ver.”(p.29)
121
(...) – Meu filho, você sabia que Deus está presente em nossas vidas e sabe o que faz?
Vander balançou a cabeça afirmativamente, mas na verdade queria dizer que o Deus que
ele acredita, se chama Olodumarê, e que não acredita na bíblia, mas respeitou a opinião
dela, e além do mais, a senhora estava a fim de consolá-lo. (SACOLINHA, 2005, p.67)
No poema “Licença”, que abre o livro Vão, de Allan da Rosa, há um verso que
poderia orientar o crítico em relação a sua poética :
111
Livro publicado em 1933, no contexto da luta político partidária da escritora, naquele momento
militante do Partido Comunista Brasileiro. (São Paulo: José Olympio, 2006).
122
remete a uma situação social, não à vida interior do poeta: o autor um morador de
periferia e, portanto, submetido ele também às condições periféricas, luta no campo da
escrita, com a linguagem, as palavras, contra a sociedade inóspita. Esse mesmo poema
já fornece ao leitor uma prévia do que se pode esperar da obra que tem em mãos e que
vai oscilar entre dois extremos, dor e alegria/carinho.
O poema “Pontas da ponte” traz um eu-lírico que fala do trabalhador, operário,
subempregado, desfilando suas agruras do dia-a-dia em formas poéticas. Na estrofe
seguinte à qual descreve o cansaço e a condição humilhante do trabalhador, há outra que
contrapõe a essa ação a do lazer, da alegria, mesmo mediante o cansaço físico oriundo
da partida de futebol com os amigos:
Em outro verso do poema, o autor realiza esse mesmo movimento fazendo outra
comparação entre a ação do trabalho que suga, que fere e traz revolta à mulher que
trabalha (provavelmente uma empregada doméstica ou cozinheira) e a devoção religiosa
que eleva:
Como é fácil pros herdeiro ser universitário (...) (ROSA, 2005, p.47)
112
Em “Rancor”, esse embate norteia todo o poema. E em “Poesia de segunda”, mais uma “flecha” contra
a escrita que circula pelos meios institucionalizados: “ Esterilizada/ no sarau dos herdeiros/ horas atrás/
Usurpada/ maquiada/ comprada por cinqüenta contos/ na livraria chique dos jardins.” (ROSA, 2005,
p.135)
113
“(...) haverá uma senhora que apressará o passo, agarrará
A bolsa ao passar por minha touca(...)” (ROSA, 2005, p.61)
125
Considerando esses trechos e a leitura dos poemas em sala, pude observar que a
linguagem poética apresenta-se quase sempre como barreira ao entendimento por parte
do leitor, ou seja, a poesia não é um gênero “fácil” para o aluno. Mesmo
compreendendo partes dos poemas, a apreensão do todo, a abstração e a compreensão
pelas imagens e figuras parece exigir do leitor-aluno um esforço maior do que na
recepção dos outros gêneros. Durante a leitura em voz alta dos poemas de Vão foi
possível perceber momentos em que o aluno-ouvinte aparentou comungar com o texto,
mas, em seguida, veio o desabafo de que não foi possível compreendê-lo inteiramente.
Mas o texto poético é um desafio, que leva o aluno a querer entender “o que o poeta
quis dizer”, e a desejar preencher os vazios com proposições suas (por parte de quem
lê); assim, as leituras foram ricas e os comentários que se seguiram também. No trecho
de alusão aos deuses e orixás do candomblé ou da umbanda, houve certa resistência por
parte de alguns alunos, como se ali se apresentasse uma “heresia”, algo proibido, uma
“afronta” às religiões monoteístas. Aliás, todas as questões envolvendo religiosidade
durante os textos provocaram problemas entre os alunos114. São tabus que mostraram o
114
Evitei ler, em algumas turmas, o capítulo de Capão Pecado em que um dos personagens (pai do vilão
Burgos) é espancado na igreja evangélica em algumas turmas. Em outras turmas, durante o curta-
metragem Ilha das Flores, exibido em decorrência de discussões surgidas após a leitura dos textos, pude
ouvir, quando da frase inicial do filme “Deus não existe”, exclamações como “O quê? Já não gostei do
filme” ou “Que é isso, professora? Que absurdo!”. Após as leituras que abordavam o universo das
religiões politeístas, houve até um conflito entre uma das alunas que acreditava na existência de deuses e
outro aluno que afirmava a existência de um só. O interessante é a importância da mediação, por parte do
professor, requisitado em assuntos polêmicos como este: “Não é verdade que existe apenas um único
Deus, professora?”.
126
115
Os contos “Um estranho no cano”, em que o autor descreve com sarcasmo e ironia a sala dos
professores, “Da frente do front” em que se estabelece uma comparação entre a escola e a guerra e o
conto final “Nós, os que ficamos”, quase um auto-desabafo dedicado àqueles que permanecem na
estrutura educacional pública, provocam empatia num possível leitor-educador.
116
Os textos curtos permitiram a leitura integral dos contos (praticamente um por aula) e favoreceram o
entendimento dos alunos pela apreensão do todo (o que não ocorreu com a leitura solta dos capítulos dos
romances, cujo encadeamento e término ficaram comprometidos pela incompatibilidade do tempo de
leitura com o da aula).
127
Se eu já matei? Eh, prussôr, da missa cê não sabe o terço? Já tenho treze anos, pô. Sô
bicho solto, bicho feito. Tô enquadrado. É, já tô viradasso. Já paguei até veneno. Um
ano na FEBEM. Várias rebelião e o caralho. Tô aqui de L.A., só por causa do juiz.
Memo assim não tem quem me segura. Fico pelos corredor, só nas fissuras. Dando umas
volta, ganhando a fita. (...) Ó, tô saindo. Cansei de ficar na sala de aula, na escola, sei lá.
Aqui é tudo muito parado. Vou pra rua. Lá que é o barato. É lá que eu já sou mestre.
(CIRÍACO, 2008, p.12)
A diferença nessa obra é que existem contos em que a voz narrativa é feminina,
como em “Aprendiz”, cuja narradora-personagem rapidamente relata a sua condição de
menina nova que já é empurrada para a comercialização do corpo; “Nos embalos”, a
narradora conversa com seu professor e diz que é uma “mina firmeza” (p.18), que não
vai “no embalo de ninguém” (p.19), mas que para não ser “taxada de babaca e de
careta” (p.18) pelos colegas, bebe, fuma e dança; em “Miolo mole frito”, a confidência
de uma menina que jura se vingar dos abusos sexuais cometidos pelo padrasto jogando
óleo fervente nos tímpanos dele. Esses contos estão presentes na primeira parte do livro
(“Verão”).
A segunda parte (“outono”) foi dedicada aos contos que envolvem críticas ou
que se reportam ao universo escolar visto pela ótica docente, ou como crítica às atitudes
docentes, exceção feita ao primeiro conto “Pedido irrecusável”, constituído de apenas
uma frase: “Tio, me dá um conto?” (p.29). Essa parte possivelmente teria como leitor
implícito (JAUSS, 2002) não o aluno, mas o professor. Em “Inverno”, a terceira parte
do livro, o foco vai da escola para a rua. O primeiro conto, “Medo”, dá indícios do teor
dos poemas dessa parte: são contos cuja temática gira em torno do preconceito (“O livro
negro”), da exploração dos jovens em subempregos (“A placa”), da condição dos
menores nas ruas (“Cobra-criada”), da depredação das escolas (“Boca do lixo”), da
depressão dos docentes frente às calamidades encontradas no ensino público
(“Obituário”). Na última parte, “Primavera”, estão os contos mais “leves” e
esperançosos do livro, mas nem por isso isentos de crítica social.
Como já foi dito, a linguagem do livro constitui um dos elementos que mais
possibilitam a leitura dos alunos jovens, pois estão presentes expressões do cotidiano
não só periférico, mas também do escolar. A estrutura do conto, mais curta e precisa,
também aparece como elemento facilitador da leitura em sala de aula.
128
117
Em uma de minhas experiências de leitura, após ler trechos de Capão Pecado com as turmas de
segundo ano do Ensino Médio, levei um poema de Álvares de Azevedo (“Meu sonho”, analisado por
Antonio Candido em seu livro Na sala de aula – caderno de análises literárias) para ler em sala. Por se
tratar de um poema altamente erótico, segundo a análise de Candido, e por ser um dos poetas com os
quais o planejamento determinava que se estudasse, acreditei que seria importante e interessante trabalhá-
lo na aula. Qual não foi minha surpresa quando, ao término da leitura e, principalmente, após a análise de
Candido, as turmas mostraram-se espantadas, num misto de indignação e vergonha diante de um poema
tão “sexual” que trazia em seu bojo elementos como “masturbação”, termos ambíguos como “bainha”,
“galope”, “trevas impuras”. “Mas isso é tema de literatura, professora?”; “Os caras daquela época
pensavam nisso, professora?”. A leitura de um poema romântico cujo autor é canônico causou tanto ou
mais controvérsia do que a violência e a sexualidade do que um texto marginal contemporâneo. No
entanto, o poema romântico não foi recebido com muita empatia por parte do aluno-leitor.
129
artística. Portanto, trata-se de uma experiência vivida por intermédio de um outro, e que,
no indivíduo que lê/vê, o impacto causado leva a reflexões e a interpretações do real.
No caso do nosso aluno, o deslocamento da identificação pelo herói para o anti-
herói, parece ser um dado importante.
No Brasil, a figura do anti-herói na literatura tem seu emblema em Leonardo
Pataca, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de
Almeida. Leonardo Pataca não se enquadra no filão dos mocinhos, já que apresenta
traços de malandragem, de preguiça, de cobiça e de adultério, entre outros defeitos,
contrários à imagem do herói, que, como diz Gilda de Mello e Souza, tem sua origem
nos cavaleiros medievais dos romances de cavalaria (SOUZA, 1979). No entanto, se
aqui o anti-herói estava apenas surgindo, iniciando um tipo de persona118 que
posteriormente seria amplamente verificado na literatura, na Espanha já havia o
personagem pícaro, o qual apresentava semelhanças com o personagem brasileiro de
Manoel A. de Almeida119: nascido pobre, o pícaro quase sempre almejava alcançar
notoriedade e riqueza através de trapaças e mentiras. Mario González aventa a
possibilidade de haver essa transposição e transmutação do pícaro da literatura
espanhola para o malandro anti-herói da literatura brasileira pelas semelhanças
histórico-sociais existentes entre os dois países:
118
“(...) [Memórias de um sargento de milícias] que não parece admitir uma vinculação direta com a
picaresca clássica como fonte (...) mas inaugura a existência de uma personagem típica da literatura
brasileira, o malandro, em que nos parece possível ver a retomada do anti-herói, e que irá proliferar em
diversas manifestações culturais brasileiras”. (GONZÁLEZ, 1994, p.262).
119
Antonio Candido, em “Dialética da malandragem” (1993) vê algumas afinidades do livro com o
romance picaresco, mas descarta a filiação.
131
120
Apesar de os personagens anti-heróis dos romances serem os mais passíveis de análise, devemos
ressaltar que o eu-lírico dos poemas de Allan da Rosa também é fortemente marcado pela necessidade de
expressar poeticamente o que o humilha e o que o acomete diariamente. É uma voz lírica negra, que traça
figuras oníricas, mas que não abandona a temática social. Os contos de Ciríaco também revelam
personagens que denunciam e criticam os valores sócio-econômicos e culturais que são impostos, tanto
pela sociedade de consumo, quanto pelas instituições.
132
O malandro não quer mudar nada. O impulso principal do malandro é ser cooptado.
Uma parte considerável da cultura brasileira insiste em apresentar o país como sendo o
país da malandragem. Mas uma parte cada vez maior e mais consistente diz que não.
Nós não somos o país do malandro simpático. Nós somos o país do malandro
aproveitador de um lado – e do marginal do outro. O termo marginal é muito importante
porque tanto pode ser aquele que está à margem quanto pode ser o criminoso. (...)
Passamos décadas idealizando o malandro. Mas não existe nenhuma possibilidade de
idealização da figura do marginal: na palavra marginal está presente tanto o lado solar
quanto o lado noturno, o bem e o mal. Você pode ser marginal porque está à margem e
quer adquirir a sua voz. Mas você pode ser o marginal porque coloca o revólver no
bolso e assalta alguém. (ROCHA, 2007)
Do ponto de vista do Estado, o nosso horizonte é desértico, como sempre foi na história
brasileira. Nós não temos um projeto cultural, não há um projeto educacional para o
país. Mas no momento dessa entrevista há uma importantíssima transformação
acontecendo no país. Essa é a esperança que eu tenho de uma real transformação.
Determinados dilemas do Brasil só poderão ser resolvidos quando forem enfrentados. O
malandro não enfrenta nada, o malandro dribla, o malandro sai de banda. Quem enfrenta
é o marginal. Então a Dialética da Marginalidade, me parece, é um esforço sério de um
enfrentamento radical desses dilemas brasileiros. (ROCHA:2007)
133
121
“Nossa imagem do malandro é uma figura sobretudo simpática, um tanto rebelde. Mas jamais
imaginaríamos o malandro como conservador. Minha hipótese básica é a seguinte: o malandro é uma
das figuras mais conservadoras da cultura brasileira. Quando o malandro tem de preparar um golpe, o
malandro realiza esse golpe contra o chefe de polícia? Não. Contra o poderoso de plantão? Também
não. Quem o malandro em geral achaca, quem em geral o malandro enreda na sua lábia, na sua trama?
Seu vizinho. Mais que isso. O malandro é a promessa de uma falsa ponte entre a ordem e a desordem,
entre o pobre e o rico. Quando o malandro tem de optar, ele não escolhe o pobre, escolhe o rico. (...) O
malandro é sempre individual. Só o que importa é ele: o lustro da roupa, o lustro do sapato, a elegância.
Ele sempre se preocupa consigo mesmo, não com o outro, muito menos com os outros da sua classe.
Muito pelo contrário. Por isso digo que é uma falsa ponte. Porque uma ponte verdadeira tem duas vias.
Ela vai, mas ela também vem. No caso do malandro, a ponte é uma rua de mão única. O malandro não
convida seus vizinhos do morro para comer caviar. Ele vai comer sozinho. É preciso, em alguma medida,
reavaliar criticamente a figura do malandro. É preciso deixar claro que o malandro é conservador, é
uma figura que não tem nenhuma preocupação com o universo ao qual pertence”. (ROCHA, 2007)
122
“Na obra de Carolina de Jesus há uma revolta e uma denúncia da desigualdade social. (...) A
novidade agora é que, além de um projeto coletivo, não se trata apenas da expressão individual de uma
precariedade, mas da tentativa de compreensão de que essa precariedade não é individual, é sistêmica.
Trata-se do esforço de compreender a desigualdade social a partir de suas causas – e não apenas a
partir dos seus efeitos, que é a violência e a precariedade do uso da linguagem”. (ROCHA, 2007)
134
(...) há “participação” quando o leitor transcende a posição limitada que ele tem na vida
cotidiana, e “contemplação” quando chega a uma visão de mundo que não é a de seu
universo cultural. (JOUVE, 2002, p.111).
123
124
Poderíamos considerar que o teatro abarca também a figura do diretor; no entanto, durante o ato de
fruição da peça, os fatores atuantes podem resumir-se à obra-ator-espectador, já que a voz autoral
encontra-se diluída na obra dramática que tem como porta-voz o ator, que faz a mediação tanto da
concepção do autor quanto da do diretor. Já no ato de fruição literária, a figura autoral é mais presente.
Uma vez que não há mediações, o sujeito leitor depreenderá da obra aquilo que o autor propôs e o que a
sua (do leitor) concepção de mundo permitir.
125
Podemos pensar que essa comunhão não ocorre quando há rejeição por parte do leitor do narrador ou
do personagem, provavelmente porque não houve identificação. No entanto, mesmo quando existe essa
rejeição, a leitura resulta mais uma vez das escolhas do leitor, como afirma Jouve: “A adesão passiva não
é a única forma de sentir a consistência de seu eu. A rejeição absoluta de uma personagem inassimilável
tem também como resultado confortar o leitor em suas escolhas ideológicas na base de sua identidade.
(...) O interessante é que, mais uma vez, a leitura acaba numa confirmação de si: a recusa espontânea de
identificação e a revolta que a acompanha levam o leitor a fechar o livro” (JOUVE, 2002, p.130).
135
Entende-se assim a decepção tão freqüentemente sentida quando um romance que se leu
é filmado. A personagem que, ao longo de sua leitura chegava à existência pelas
representações imaginárias do leitor, apresenta-se na tela como um outro absoluto na
produção do qual o espectador não participa. (JOUVE, 2002, p.116)
126
O lingüísta Vincent Jouve, em seu livro A leitura, estuda o processo em questão sob a luz dos teóricos
da estética da recepção, e traz aspectos fundamentais para a compreensão do fenômeno da leitura.
127
Podemos entender o termo “interpretações” em seu sentido ambíguo: refiro-me tanto às encenações
feitas utilizando-se do método quanto às diferentes “compreensões” do mesmo.
136
(...) a coisa melhor que pode acontecer é o ator se deixar levar pela peça inteiramente.
Ele então vive o papel, independente de sua própria vontade, sem notar como se sente,
sem se dar conta do que faz e tudo se encaminha por conta própria, subconsciente e
intuitivamente. (...) espera-se que criemos por inspiração; só o subconsciente nos dá
inspiração e, entretanto, parece que só podemos utilizar esse subconsciente por meio do
nosso consciente, que o mata. Há, felizmente, uma saída. Achamos a solução por um
processo indireto e não diretamente. Na alma do ser humano há certos elementos que
estão sujeitos ao consciente, à vontade. Essas partes acessíveis podem, por sua vez, agir
sobre processos psíquicos involuntários. (STANISLAVSKI, 1989, p.57)
128
“(...) desprezando tudo aquilo que é forma e expressão exterior da personagem-imagem
transformada em lei sob o nome de ‘método’ no Actor´s Studio, onde estudos e exercícios
stanislavskianos muitas vezes se converteram em psicodrama. Aliás, desde 1934, quando Stella Adler –
uma das atrizes do Group Theater – visitou Paris, Stanislavski advertiu seus ‘discípulos’ americanos
contra o abuso do recurso exclusivo à ‘memória emotiva’ e aos exercícios de ‘lembrança de
sentimentos’”. (DORT apud RIZZO, 2001)
129
Essa interpretação do método russo apresentava problemas na medida em que permitia uma margem
muito grande de descontrole emocional por parte do ator que, ao tentar alcançar maior veracidade cênica
através da vazão dos sentimentos, acabava por perder-se em si mesmo.
130
Os ensinamentos quanto à sistematização do trabalho do ator de Stanislavski foram reunidos
essencialmente em três livros
131
“Enquanto que a atuação mecânica utiliza estereótipos elaborados para substituir os sentimentos
reais, a sobreatuação, o exagero, pega as primeiras convenções humanas de ordem geral que aparecem
e delas se servem sem sequer defini´las ou prepara-las para o palco. (...) Um papel construído à base de
verdades cresce, ao passo que fenece o que se baseou em clichês”. (STANISLAVSKI,1989, p.56-57)
137
experimental”), primeiramente mostrando aquilo que não deveria ser realizado em cena.
No entanto, ao longo de sua vida de diretor, dramaturgo e estudioso de teatro, o alemão
Bertolt Brecht afasta-se dessa crítica de oposição ao método stanislavskiano, chegando
mesmo a incorporar certos ensinamentos do mestre russo principalmente depois da
fundação do Berliner Ensemble, sua companhia teatral (RIZZO, 2001, p.58). No
entanto, o suposto antagonismo entre Brecht e Stanislavski se viu propagado no meio
artístico teatral e até hoje causa polêmicas.
Brecht pregou, em seus estudos sobre teatro, um fazer cênico fundamentado no
distanciamento do ator, um teatro essencialmente político-social – o teatro épico – cuja
encenação não-ilusionista, rupturas no enredo, bem como a presença de um narrador,
são elementos necessários para impedir o espectador de se deixar iludir pela catarse.
Alertar o público de que o que se assiste é uma representação – uma mímese da
realidade – e despertá-lo para uma consciência crítica participativa e politizada, ao invés
de expurgar-lhe certos sentimentos e conduzi-lo a uma “dormência”, consiste na
finalidade dessa vertente teatral.
Eugênio Kusnet132 – frente a essas duas possibilidades de interpretação –
apresenta uma terceira: a fusão de ambas durante o ato interpretativo, o que resultaria no
que ele denominou dualidade do ator, ou seja, uma interpretação realizada a partir da
capacidade do ator em fazer coexistir em cena um sujeito envolvido verdadeiramente
com a personagem (atendo-se às suas circunstâncias, aos seus dilemas, objetivos e
superobjetivos), mas sem ser “tomado” por ela. Através do domínio de sua ação cênica,
seria possível ao ator transitar entre o “limiar do subconsciente”133 (propiciado pela
identificação com a personagem) e o distanciamento crítico134 (estranhamento).
Neste ponto parece possível traçar um paralelo entre a prática de interpretação
teatral e a prática de leitura com o intuito de ressaltar a semelhança entre ambos os
processos de fruição. Jouve, ao sintetizar as idéias dos teóricos da recepção, apresenta
três instâncias do leitor identificadas por Michel Picard, em A leitura como jogo (1986):
o ledor, o lido e o leitante:
O “ledor” é definido como a parte do indivíduo que, segurando o livro nas mãos,
mantém contato com o mundo exterior; o “lido”, como o inconsciente do leitor que
132
Ator, professor e teórico russo de teatro, radicado no Brasil.
133
Termo utilizado por Stanislavski para designar o estágio ao qual o ator deveria chegar para alcançar a
verdade cênica.
134
“(...) adquirindo a fé cênica” na realidade da sua existência, vive como se fosse a personagem com a
máxima sinceridade, mas, ao mesmo tempo, não perde a capacidade de observar e criticar a sua obra
artística – a personagem.” (KUSNET apud RIZZO, 200, p.82)
138
(...) a relação com o texto é sempre, ao mesmo tempo, receptiva e ativa. O leitor só pode
“fazer falar” um texto, isto é, concretizar numa significação atual o sentido potencial da
obra, desde que insira seu pré-entendimento do mundo e da vida no espaço de referência
literário envolvido pelo texto. Esse pré-entendimento do leitor inclui as expectativas
concretas que correspondem ao horizonte de seus interesses, desejos, necessidades e
experiências tais quais são determinadas pela sociedade e classe à qual pertence como
também pela sua história individual. Não é preciso insistir no fato de que, a esse
horizonte de expectativa que concerne ao mundo e à vida, experiências literárias
anteriores já são também integradas. A fusão dos dois horizontes – aquele que envolve o
texto e aquele que o leitor traz na sua leitura – pode operar-se de maneira espontânea na
fruição das expectativas realizadas, na liberação das imposições e da monotonia
cotidianas, na identificação aceita tal qual era proposta, ou mais geralmente na adesão
ao suplemento de experiência trazido pela obra. Mas a fusão dos horizontes pode
também assumir uma forma reflexiva: distância crítica no exame, constatação de um
estranhamento, descoberta do procedimento artístico, resposta a uma incitação
intelectual – enquanto o leitor aceita ou recusa integrar a experiência nova ao horizonte
de sua própria experiência. (JAUSS apud JOUVE, 2002, p.139)
No entanto, o jovem em questão pode ainda não estar preparado para a recepção
de obras com as quais não estabelece uma relação imediata de identificação. O
estranhamento causado por uma obra pela qual não vê despertado o seu interesse não o
impulsiona, na maior parte das vezes, a obter um distanciamento crítico ou artístico, fato
que poderia ser facilmente observado em leitores mais desenvoltos – com outras
referências literárias – ou mais adultos. Essa questão, longe de querer ser determinista,
aponta apenas uma necessidade de ampliar não somente o horizonte de leitura do jovem
139
leitor, mas também as suas experiências sociais, culturais, de vida. Há, entretanto, que
se realizar esta passagem do leitor “colado” ao texto, numa estrita relação de
identificação, para o leitor que consegue (e vê prazer estético nisso) distanciar-se do
mesmo para realizar uma fruição de outra ordem.
Essa transição de um determinado tipo de leitor (diretamente envolvido com
texto) para outro (distanciado, crítico) apresenta dificuldade em se efetuar
possivelmente pelo fato da leitura identificada propiciar um efeito catártico poderoso. O
receptor, ao ser “lido” pela obra, entrevê a si mesmo. É fundamental considerar que
esses tipos de leitores convivem ou não no mesmo, não são pessoas diferentes, mas
diferentes níveis de leitura. O leitor, na estrita definição do termo, ou seja, “aquele que
lê”, e lê autonomamente, escolhe e maneja a leitura segundo suas próprias regras135:
O que a maioria dos leitores busca não é uma experiência desestabilizante, mas, ao
contrário, uma confirmação daquilo em que eles acreditam, daquilo que sabem e
esperam. A habilidade toda dos best-sellers é responder a essa demanda. O leitor,
dividindo de antemão os valores do herói, não se transforma ao seu contato. O outro não
lhe serve para se redefinir, mas para consolidar a imagem (muitas vezes ilusória) que ele
tem de si próprio. Ver uma personagem dividir nossos valores tem algo de
135
Daniel Pennac, em seu Como um romance, apresenta os direitos imprescritíveis do leitor: “(...) o
direito de não ler; o direito de pular páginas; o direito de não terminar um livro; o direito de reler; o
direito de ler qualquer coisa; o direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível); o direito de ler
em qualquer lugar; o direito de ler uma frase aqui e outra ali; o direito de ler em voz alta; o direito de
calar”. (PENNAC, 1993)
140
O prazer aponta para o objeto de prazer, que é fruído no isolamento; o prazer estético de
certa forma elimina este isolamento do prazer, porque agora se toma posição, se
encontra prazer no objeto de prazer. Realiza-se assim aquele hiato no decurso do prazer
que se descreve como distância estética ou como momento de contemplação” (GIESZ
apud JAUSS, 2002, p.96)
Para considerar esse contato profundo com o texto literário como um “primeiro
passo” para a recepção literária na escola, o qual deveria ser seguido por um segundo137,
ainda que concomitante – o distanciamento crítico do receptor – é essencial que ele
tenha acesso a outros textos, outras referências que dialoguem com a obra lida. Sem
137
Poderíamos considerar também um terceiro momento, onde o leitor, após identificar-se e distanciar-se,
volta a si mesmo com um novo olhar, o olhar renovado de quem experimentou uma nova experiência
estética e reflexiva ao se deparar, através das palavras de outro, com a sua própria alteridade: “O leitor
(...) pode somente meditar sobre o antropomorfismo espontâneo que rege sua visão de mundo. Obrigado,
num primeiro momento, a se implicar pessoalmente na leitura, é levado, num segundo momento, a se
observar refletindo. É essa volta para si que, como repara Iser (1985), faz o valor da leitura: ‘As
contradições que o leitor produziu ao formar suas configurações adquirem sua própria importância. Elas
o obrigam a perceber a insuficiência dessas configurações que ele próprio produziu. Pode então se
distanciar do texto do qual participa de tal forma que possa se observar, ou, pelo menos, se ver
engajado. A aptidão para se entrever a si próprio num processo do qual participa é um momento central
da experiência estética’.” (JOUVE, 2002, p.114)
141
138
Ao longo da leitura há diferentes desdobramentos, tanto do leitor como do autor: “O autor pode ser
percebido de duas formas: é tanto a instância narrativa que preside à construção da obra quanto a
instância intelectual que, por intermédio do texto, se esforça por transmitir uma ‘mensagem’. O ‘leitante’
pode assim ser desdobrado em um “leitante brincando” (o qual procura adivinhar a estratégia narrativa
do texto) e um ‘leitante interpretando’ (o qual visa decifrar o sentido global da obra)”. (JOUVE, 2002,
p.52)
139
O professor acaba por reproduzir a autoridade da crítica literária. Na medida em que aprova e
reconhece determinadas obras como canônicas, inserindo-as na escola como o modelo literário canônico,
ele passa a reafirmar o que está dado como legítimo no campo literário. “Se o modelo da luta entre o
padre lector e o profeta auctor, que evoquei no começo, se transpõe tão facilmente, é porque, entre outras
razões, uma das apostas da luta é a de se apropriar do monopólio da leitura legítima: sou eu que lhes
digo o que está dito no livro ou nos livros que merecem ser lidos em oposição aos livros que não o
merecem”. (BOURDIEU, 200, p.242)
142
143
Conclusão
grupo140 – um ponto de vista que nos ajudou a considerar a especificidade desse nosso
leitor quando lia na escola textos que, em princípio, eram estruturados a partir da
matéria humana e social da periferia, por autores também pertencentes a esse meio.
A reflexão sobre o que denominamos Experiências levou-nos a observar que a
empatia durante a leitura escolar depende em grande parte da seleção dos textos: levar
em conta o aluno (leitor ou ouvinte) – seus interesses, indagações, necessidades, anseios
– como parte fundamental do processo de recepção literária propicia um
compartilhamento da leitura, que passa a figurar como um processo coletivo e não mais
impositivo, ou seja, passa a ser apropriado pelos alunos, deixando de ser apenas uma
tarefa a ser executada pelo professor, considerando exclusivamente o seu ponto de vista.
Observou-se que a inserção da literatura marginal-periférica na escola pode
ocasionar alguns “riscos” durante a leitura, já que as obras contêm violência, erotismo,
linguagem marcada por oralidade, palavrões, que, se por um lado, fazem parte do
cotidiano do jovem, na escola é malvista (a linguagem), e sobretudo pelos próprios
alunos, que, pouco ou nada familiarizados com o universo literário, não percebem num
primeiro momento os mecanismos de mediação, e rejeitam a obra; ou, pelo contrário,
ainda ignorando a mediação, identificam-se com esse universo violento e vêem nele
uma apologia de uma parte da realidade da periferia, a vida loka, que atrai muitos
jovens para a marginalidade. Perceber os elementos mediadores é trazer esse aluno para
o universo da literatura, é torná-lo leitor, e este pode ser um bom trabalho da escola. O
risco é permanecer no primeiro nível, o que associamos à identificação mais imediata.
Por isso, tentamos desenvolver, em comparação com as teorias de preparação do ator no
teatro (Stanislavski e Brecht), entender os mecanismos de distanciamento do texto para
construir uma visão mais crítica desse tipo de leitura.
Outro ângulo importante de discussão neste trabalho está relacionado à própria
legitimidade dessa vertente literária para fazer parte de um conteúdo escolar, uma vez
que em termos de literatura, é praticamente naturalizada na escola a permanência em
termos absolutos de uma literatura fixada pela tradição, o denominado cânone141.
Ultimamente, as orientações oficiais têm insistido na abertura para outras vertentes
culturais, talvez impulsionadas pelas discussões sobre multiculturalismo (essas
140
Esse texto de Vincent Jouve se encontra no livro organizado por LANGLADE & ROUXEL (2004),
mas outros que li foram enviados por Rouxel, inéditos na França, para compor um livro futuro a sair pelas
Edições Paulistanas.
141
Apesar do cânone literário não ser fixo, como lembram as Orientações Curriculares para o Ensino
Médio.
147
142
Em sua dissertação de mestrado, Gabriela Rodella de OLIVEIRA (2007) identificou que a absoluta
maioria dos professores (cerca de 80), sujeitos de sua pesquisa, eram formados por institutos superiores
particulares, que tradicionalmente lidam mais com a reprodução do que com a produção de
conhecimento.
148
marginal-periférico e parece permitir que a leitura seja concebida pelo aluno como algo
que se reporta a ele. O aluno, movido pela identificação, seja por intermédio da
linguagem, dos personagens, do conteúdo ou até mesmo do próprio autor, é “capturado”
pelo texto e dele se apodera.
A identificação com o autor – pessoa que por intermédio da literatura conseguiu
expressar sua voz, até então inaudível para a sociedade – merece ser salientada. O
aluno, diante dessa mescla entre autor-narrador-personagem, parece ter reforçado na
leitura o sentimento de representação de si, fato não tão comum na prática de leituras
autorizadas pela escola:
Concluímos que uma leitura escolar que tem por objetivo a formação de um
sujeito leitor, para não se tornar tão restrita, pode se desdobrar em leitura identificada
ou distanciada, sendo que a esta última, ao romper com o estado catártico da leitura, a
exemplo do que ocorre com o espectador no teatro épico, exige do aluno um olhar
reflexivo durante ou após a recepção dos textos. A abordagem realizada após a leitura –
os comentários e questionamentos – e a leitura de outros textos ampliam o referencial
teórico do aluno, permitem a convivência entre os diferentes modos de leitura e
contribuem para que ele possa ter autonomia em suas escolhas literárias.
143
ROUXEL, Annie. “Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor?” Este
texto foi enviado à professora Neide Luzia de Rezende, traduzido por seus alunos de pós-graduação, para
compor o livro a ser publicado.
149
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