Intervenção Nutricional Na Hiperuricémia e Gota

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CIENTIFICIDADES

ARTIGOS DE REVISÃO
NUTRÍCIAS
Estratégias para Intervenção Nutricional
na Hiperuricémia e Gota
Strategies for Nutritional Intervention in Hyperuricemia
and Gout
JOÃO MARTINS1; EUNICE JORGE2; JOSÉ CAMOLAS3; ISABEL DO CARMO4

RESUMO
A prevalência de hiperuricémia e gota tem vindo a aumentar na população portuguesa, nos últimos anos,
à semelhança do que acontece com outros países desenvolvidos. O objectivo deste artigo é fazer uma
revisão de evidência disponível, relativamente à intervenção nutricional nestas patologias, tendo em
vista identificar estratégias para a intervenção nutricional em doentes com hiperuricémia e gota, com
maior potencial de efectividade. Considerando que a hiperuricémia e a gota se associam frequentemente
à obesidade, hipertensão arterial, dislipidémia, aterosclerose e síndrome metabólica, estes doentes re-
presentam uma oportunidade singular para uma avaliação e uma orientação nutricional mais abrangente.

PALAVRAS-CHAVE: Gota, Hiperuricémia, Purinas, Obesidade, Etanol, Frutose

ABSTRACT
The prevalence of hyperuricemia and gout have been increasing in the Portuguese population, in recent years, similar to what
happens with other developed countries. The purpose of this article is to review the available evidence in relation to nutritional
intervention in these pathologies, in order to identify strategies for nutritional intervention in patients with hyperuricemia and
gout, with greater potential for effectiveness. Whereas hyperuricemia and gout is often associated with obesity, hypertension,
dyslipidemia, atherosclerosis and metabolic syndrome, these patients represent a unique opportunity for an evaluation and a
more comprehensive nutritional guidance.

KEYWORDS: Gout, Hyperuricemia, Purines, Obesity, Ethanol, Fructose

INTRODUÇÃO
Ao longo da história, a gota tem sido associada a da excreção do excedente da produção. Desta forma,
alimentos ricos em purinas e ao consumo excessivo valores séricos de ácido úrico, superiores ou iguais a
de álcool (1). Tendo em conta que a sua incidência se 7mg/dL, nos homens, e a 6mg/dL, em mulheres, são
relacionava com um estilo de vida habitual nas pes- critérios de diagnóstico para a hiperuricémia (4, 6). Esta
soas com elevados recursos económicos, recebeu a diferença entre sexos poderá estar relacionada com
designação de “doença dos reis” (1). A patologia foi o aumento da excreção renal de ácido úrico induzida
primeiramente identificada pelos egípcios, em 2640 pelos estrogénios nas mulheres e com o papel da obe-
a. C., como podagra (gota aguda, que ocorre na arti- sidade abdominal, mais prevalente nos homens, que se
culação metatarso-falângica primária) (1). Posterior- associa a uma diminuição da excreção de ácido úrico
1
Estagiário de Ciências da
mente foi reconhecida por Hipócrates, no século V a. C., (4, 7). Acima dos valores citados, há supersaturação de
Nutrição,
Instituto Superior de Ciências da como unwalkable disease, tendo este sido responsável urato de sódio e consequente propensão à sua precipi-
Saúde Egas Moniz, Via Alternativa pela identificação da ligação entre a doença e o estilo tação, originando os depósitos de urato monossódico
ao Monte da Caparica,
2829 - 511 Caparica, Portugal
de vida luxuoso, distinguindo a podagra, como artrite cristalizado (5). A hiperprodução de ácido úrico pode
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dos ricos, do reumatismo, a artrite dos pobres (1). O con- ter causas genéticas, nomeadamente o aumento da
2
Estagiária de Ciências da ceito de tofos gotosos foi descrito, pela primeira vez, afinidade da enzima fosforribosil-pirofosfato sintase
Nutrição,
Faculdade de Ciências da Nutrição por Galen e Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723), para т-D-Ribose 5-fosfato, a resistência ao feedback
e Alimentação da Universidade do que descreveram o seu aspecto macroscópico, apesar negativo (do GMP, GDP, AMP e ADP) aumentando a ac-
Porto, Rua Dr. Roberto Frias, s/n,
de a sua composição química ser ainda desconhecida tividade das enzimas envolvidas no catabolismo das
4200-465 Porto, Portugal
(1). A primeira pessoa a mencionar a palavra “gota” foi purinas e défices enzimáticos no metabolismo do ácido
3
Nutricionista, Randolphus de Bocking (1197-1258) (1). Mais tarde, úrico (5-6, 8). As situações em que existe aumento
Serviço de Endocrinologia,
Diabetes e Metabolismo, Hospital
Alfred Baring Garrod descreveu um método semi- da purinossíntese de novo, nomeadamente, as doen-
de Santa Maria, Avenida Professor -quantitativo para a medição do ácido úrico no sangue ças em que há um aumento do turnover celular (por
Egas Moniz, ou na urina, sendo que este foi o primeiro teste clínico, exemplo, doença neoplásica), os estados hipercata-
1649-035 Lisboa, Portugal
alguma vez testado (2). Seegmiller foi responsável pela bólicos e alguns fármacos (por exemplo os citotóxi-
4
Médica Endocrinologista, descrição do papel relevante da produção excessiva cos) também podem conduzir a hiperuricémia (5-6,
Faculdade de Medicina da
e da excreção diminuída do urato na patogénese da 8). Apesar de o consumo excessivo de purinas ser o
Universidade de Lisboa, Avenida
Professor Egas Moniz, 1649-028 hiperuricémia (3). Relativamente ao tratamento da hi- mais reconhecido, de entre os factores ambientais,
Lisboa, Portugal peruricémia, Garrod foi um dos primeiros a sugerir que os hábitos de ingestão de bebidas alcoólicas, a obesi-
Endereço para correspondência:
esta poderia ser controlada baixando a ingestão de dade, as dietas hiperproteicas ou hiperenergéticas, a
José Camolas alimentos ricos em purinas, conceito esse que se per- ingestão muito elevada de frutose e o sedentarismo
Serviço de Endocrinologia, Diabetes e
Metabolismo, Piso 6, Hospital de Santa petuou até aos dias de hoje (1). serão igualmente importantes (4, 8, 10-15).
Maria, Avenida Professor Egas Moniz A hiperuricémia consiste na presença de níveis eleva- A gota é uma doença reumatológica, inflamatória,
1649-028 Lisboa, Portugal
[email protected] dos de ácido úrico sérico, devido à sua produção endó- metabólica, que resulta de uma alteração do metabo-
Recebido a 1 de Novembro de 2013
gena elevada e à excreção renal reduzida (4-6). O valor lismo das purinas e normalmente aparece associada
Aceite a 19 de Fevereiro de 2014 normal da uricemia é 5,0mg/dl, valor mantido à custa à obesidade, piorando com a ingestão excessiva de
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álcool e gordura (4-6). Caracteriza-se pela deposição de 12,8%, sendo mais frequente nos homens (22). A hiperuricémia associa-se, frequentemente, a compo-
de cristais de urato nas articulações e progride em 4 nentes da síndrome metabólica, como a obesidade e a
estádios: hiperuricémia assintomática, artrite gotosa Fisiopatologia da Hiperuricémia e Gota dislipidémia, e com factores de risco para a doença car-
aguda (os cristais de urato monossódico presentes a) Catabolismo das purinas diovascular (4-6, 8-10, 14, 16, 19-21, 25). Em indivíduos
na articulação são fagocitados por leucócitos, levan- O ácido úrico provém da degradação das purinas (Ade- com diabetes tipo 2, a obesidade visceral associou-se
do à mais frequente manifestação inicial de gota), nina e Guanina; dois dos nucleótidos que compõem o positivamente à uricemia (10). Este tipo de adiposida-
gota intercrítica (período entre as crises agudas de DNA e o RNA), aproximadamente 85% é de produção de condiciona alterações metabólicas, que contribuem
gota com ausência total de sintomas) e gota crónica endógena e cerca de 15% é resultante da metaboliza- para a acidificação da urina, promotora da formação de
tofácea (acumulação de cristais em várias localiza- ção das nucleoproteínas contidas nos alimentos (4, 6, cálculos de ácido úrico (26).
ções, revelando um estado prolongado e evoluído 8, 23). Estes nucleótidos são captados no fígado, sen-
da doença) (5, 8). Nem todos os indivíduos que apre- do degradados em nucleosídeos, que posteriormente Tratamento Farmacológico da Hiperuricémia
sentam hiperuricémia desenvolvem gota, mas quase serão convertidos em hipoxantina e esta em xantina, e Gota
sempre doentes diagnosticados com gota tiveram hi- pela enzima xantina oxidase, que também converte a O tratamento farmacológico da hiperuricémia faz-se,
peruricémia assintomática durante vários anos (4). Com xantina em ácido úrico, produto final da degradação habitualmente, com recurso ao Alopurinol, que actua
o avanço da doença, os sintomas ocorrem com maior das purinas no organismo humano (4, 8, 24). como inibidor da enzima xantinaoxidase (converte a
frequência, de forma mais prolongada e com mais jun- b) Fisiologia molecular do transporte e excreção do hipoxantina em xantina e esta em ácido úrico), e urico-
ções articulares afectadas (17, 20-21). A presença de urato súricos (por exemplo, probenicida ou sulfimpirazona),
hiperuricémia não é apenas factor de risco para a artri- Os níveis séricos de urato dependem do balanço entre que bloqueiam a reabsorção tubular de urato, aumen-
te e gota crónica, também o é para a incidência de cál- a sua produção e a excreção (8, 17). Normalmente, o tando a sua excreção (5). Em casos de artrite gotosa
culos renais, eventos cardiovasculares e mortalidade organismo elimina urato suficiente por via renal (70%), aguda pode ser prescrita a colchicina, um fármaco
prematura (4, 6, 9). A hiperuricémia também pode surgir e em menor proporção por via fecal (30%), mantendo utilizado essencialmente nas primeiras 24 horas após
associada a outras patologias, das quais se destacam a uma concentração plasmática entre 1,5 e 6,0 mg/dl a crise (5).
síndrome metabólica, a hipertensão arterial, diabetes nas mulheres e entre 2,5 e 7,0 mg/dl nos homens (6,
tipo 2 e a doença renal crónica (4-6, 8-9, 16-19). 17). O ácido úrico é um ácido fraco, que tem uma alta Intervenção Nutricional na Hiperuricémia e
constante de dissociação, circulando no plasma (pH 7.4) Gota
Epidemiologia da Hiperuricémia e Gota principalmente na forma de urato, ligado à albumina (4, Na Tabela 1 sintetiza-se alguma da evidência dispo-
A evidência epidemiológica, sugere que a prevalência 6, 8, 24). Os cálculos de ácido úrico, formados em urinas nível, relativa à influência de alimentos e nutrientes
de gota aumentou nas últimas décadas (20). Segundo com pH ácido, constituem entre 5 a 10% dos cálculos seleccionados na incidência de gota.
dados do The National Health and Nutrition Examina- urinários (8, 17, 24). A hiperuricosúria, definida como a) Papel do aporte proteico
tion Survey, a prevalência de gota nos adultos norte- sendo a excreção renal de urato superior a 800mg/dia Habitualmente aos doentes com hiperuricémia e
-americanos, em 2007-2008, era de 3,9% (8,3 milhões nos homens e a 750mg/dia nas mulheres, pode ser uma gota é desaconselhado a ingestão de algumas car-
de adultos), correspondendo a 5,9% no sexo masculino causa de formação cálculos de urato. O tratamento nes e marisco, devido à sua riqueza em purinas. De
e a 2,0% nas mulheres (21). Foram observados níveis dos cálculos de ácido úrico pode passar pela alcaliza- facto, alguns estudos populacionais concluíram
médios de ácido úrico de 6,14 mg/dL nos homens e de ção da urina para pH de 6,0-6,5, por via da ingestão de que o consumo elevado de carne e de marisco está
4,87 mg/dL nas mulheres, com prevalências de hipe- fruta, legumes e de água mineral alcalina, por exemplo associado a um risco aumentado de gota e de hi-
ruricémia de 21,2% e 21,6% respectivamente (21). Em (17). Um estudo de intervenção, numa população de peruricémia (27, 31-32). No entanto, nem todos os
termos comparativos, os valores de hiperuricémia nos estudantes universitárias japonesas, concluiu que a alimentos fornecedores de proteínas condicionarão
adultos portugueses são inferiores, mas têm vindo a alcalização da urina, através da modelação da ingestão estas alterações, sendo que, por exemplo, o consu-
aumentar (22). Num estudo epidemiológico, realizado nutricional, promove a excreção de ácido úrico (18). mo de leite está associado a uma redução do risco,
numa amostra de adultos, representativa da cidade do c) Relações entre Hiperuricémia, Obesidade e Síndroma por via do papel uricosúrico das proteínas do leite
Porto, foi verificada uma prevalência de hiperuricémia Metabólica (27, 31). Acresce que o consumo de proteína vegetal

TABELA 1:: Influência de alimentos e nutrientes selecionados na incidência de gota (Adaptada das referências 20, 27, 28, 29 e 30)

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Comparação(1) Risco Relativo (95% IC)
Carne (total) (2)
Homens Q5 (>1,92 p/d) vs. Q1 (<0,81 p/d) 1,41 (1,07; 1,86)
Peixe e Marisco Homens Q5 (>0,56 p/d) vs. Q1 (<0,15 p/d) 1,51 (1,17; 1,95)
Lacticínios (total) (2) Homens Q5 (> 2,88 p/d) vs. Q1 (0,88<p/d) 0,56 (0,42; 0,74)
Álcool (total) Homens ≥ 50g/dia vs. Nenhum 2,53 (1,73; 3,70)
Cerveja (2) Homens Q5 (> 2,0 beb/d) vs. Q1 (<1 beb/m) 2,51 (1,77; 3,55)
Bebidas Espirituosas (2) Homens Q5 (> 2,0 beb/d) vs. Q1 (<1 beb/m) 1,60 (1,19; 2,16)
Vinho (2) Homens Q5 (> 2,0 beb/d) vs. Q1 (<1 beb/m) 1,05 (0,64; 1,72)

Refrigerantes e bebidas Homens > 2,0 beb/d vs. <1beb/m 1,85 (1,08; 3,16)
açucaradas (2) Mulheres > 2,0 beb/d vs. <1beb/m 2,39 (1,34 to 4,26)
Homens > 2,0 beb/d vs. <1 beb/m 1,12 (0,82; 1,52)
Refrigerantes light (2)
Mulheres > 2,0 beb/d vs. <1 beb/m 1,18 (0,87; 1,58)
Homens Q5 (> 11,8% do VET) vs. Q1 (<6,9% do VET) 1,81 (1,31; 2,50)
Frutose (total)
Mulheres Q5 (> 11,9% do VET) vs. Q1 (<7,5% do VET) 1,44 (1,04; 2,00)

Vitamina C
(Total: inclui fontes Homens ≥ 1,500mg vs < 250mg/dia 0,55 (0,38; 0,80)
alimentares e suplementos)

(1)
Q1: 1º quintil; Q5: 5º quintil; p/d: porções por dia; beb/d: bebidas por dia; beb/m: bebidas por mês; % do VET: percentagem da ingestão energética total
(2)
Porções: Carne (total): 112-168g; Peixe e Marisco: 80-140g; Lacticínios (total): 240ml; Cerveja: 355ml; Bebidas Espirituosas: 44ml; Vinho: 118ml; Refrigerantes e bebidas açucaradas: 355ml; Refrigerantes light: 355ml
IC: Intervalo de Confiança
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também não parece associar-se a um acréscimo no tose é excessiva, exista uma acumulação da frutose por incrementar a degradação do ATP em adenosina
risco de gota, mesmo quando se consideram vegetais 1-fosfato e uma diminuição da concentração intrace- monofosfato (AMP), que é rapidamente convertido
fornecedores de purinas (27). Note-se ainda que a lular do fosfato inorgânico (4). A baixa disponibilidade em ácido úrico e também por reduzir a excreção renal
ingestão total de proteína não parece estar direc- de fosfato limita a formação de ATP, assim o ADP ou do ácido úrico (4, 11-13). Quanto à ingestão de ali-
tamente associada à elevação dos níveis séricos de o AMP resultantes deste metabolismo são cataboli- mentos ricos em frutose, existe um grande conjunto
ácido úrico (31-33). zados, conduzindo à hiperuricémia (4). Importa tam- de evidência científica que os associa ao aumento
b) Papel da restrição calórica bém atentar à importância da ingestão de sorbitol, dos níveis séricos de ácido úrico. Contudo, existe a
A insulinorresistência e a hiperleptinémia, associa- que pode ser convertido em frutose com acção da necessidade de fazer um contraponto, relativamente
das ao excesso de peso e à obesidade abdominal, enzima sorbitol desidrogenase, podendo contribuir ao tipo de alimentos ricos em frutose, uma vez que a
parecem condicionar uma diminuição da excreção do para o aumento da produção de uratos (4). fruta, por exemplo, é responsável pela alcalinização
ácido úrico, aumentando assim os seus níveis séricos da urina, o que vai promover o aumento da excreção
(4, 10, 14). Em doentes com hiperuricémia e exces- Papel da Actividade Física em Indivíduos com de ácido úrico. Por outro lado, este efeito uricosúri-
so de peso, é aconselhada uma restrição energética Hiperuricémia e Gota co pode ser ainda incrementado pelo fornecimento
moderada (33-34). A perda de peso pode represen- A actividade física é considerada um meio importante concomitante de vitamina C (30).
tar uma estratégia eficiente para reduzir os níveis de prevenção da hiperuricémia (15, 24). Em indivíduos
séricos de ácido úrico, especialmente em mulheres do sexo masculino, concluiu-se que o risco de gota é CONCLUSÕES
na pós-menopausa e em homens (35). mais baixo naqueles que são fisicamente mais ativos A prevalência da hiperuricémia tem vindo a aumentar
c) Papel do aporte hídrico e que mantêm o peso adequado (15). A prática de na nossa população, sendo essencial definir linhas
Os cálculos de ácido úrico formam-se em urinas com exercício físico de intensidade moderada associa-se orientadoras para a intervenção nutricional a este
pH ácido (8, 36-37). Em associação a uma dieta que a concentrações mais baixas de ácido úrico, podendo nível. A hiperuricémia e a gota, geralmente, estão as-
promova a alcalinização da urina (rica em citrato e ser útil na prevenção de gota (24). sociadas com a obesidade, hipertensão, dislipidémia,
bicarbonato) é recomendável uma ingestão hídrica aterosclerose e síndrome metabólica. Neste contex-
que promova um volume de urina a rondar os dois ANÁLISE CRÍTICA to, um doente com gota representa uma oportuni-
litros nas 24 horas (37). A ingestão de água, por via A alimentação será uma via segura e efectiva na dade singular para uma avaliação mais abrangente e
do aumento da excreção renal, conduz a uma dimi- prevenção e abordagem terapêutica da hiperuri- uma orientação dietética mais objetiva e esclarecida.
nuição dos níveis séricos de ácido úrico, bem como cémia e da gota. A evidência disponível sustenta a Assim sendo, as linhas orientadoras em termos de in-
a uma menor probabilidade de formação de cálculos importância das estratégias nutricionais, muito para tervenção nutricional devem incidir nomeadamente:
renais. Em resumo, recomenda-se a ingestão de cerca além da clássica restrição de purinas. Algumas refe- a) na adequação do consumo de alimentos ricos em
de 2-3 litros de líquidos por dia, dando-se preferência rências continuam a propor que o doente com gota proteínas e purinas, por exemplo, assegurando o con-
à ingestão de água (5). opte pela evicção de alimentos ricos em purinas, tais sumo adequado de leite e derivados; b) na prescrição
d) Papel do etanol como o porco, caça, vísceras, charcutaria, conservas de um plano alimentar estruturado e ligeiramente
O consumo de etanol pode induzir hiperuricémia, por de peixe, mariscos, café, chá e chocolate (5). No en- hipocalórico em casos de obesidade; c) na restrição
diminuição da excreção e aumento da produção do tanto, outros autores alargam a lista de alimentos a de bebidas alcoólicas; d) na restrição de bebidas ou
ácido úrico (11-13). No seu metabolismo hepático, evitar ao etanol e ao consumo excessivo de frutose produtos alimentares com quantidades excessivas
o etanol é primeiro oxidado em acetaldeído, que é (5, 42). Na realidade, a associação entre uma dieta de frutose e/ou sorbitol; e) na ingestão diária de cerca
oxidado em acetato. O acetato é metabolizado em hiperproteica, fonte de alimentos ricos em purinas, de dois litros de água alcalina.
acetil-CoA e durante esta conversão o ATP é des- com a hiperuricémia e a gota, carece de documenta- Neste contexto, a terapêutica nutricional não deverá
fosforilado em AMP. Uma parte desse AMP pode ção científica adequada (28, 43). Embora as dietas estar limitada às estratégias de evicção de alimentos
entrar na via da degradação do nucleótido de ade- hiperproteicas possam conter, concomitantemente, ricos em purinas, adoptando uma perspectiva holís-
nina, conduzindo à produção de ácido úrico. Durante grandes quantidades de purinas, a sua ingestão não tica, baseada na evidência disponível. Com este for-
o metabolismo do etanol ocorre o aumento dos níveis está directamente associada com os níveis do áci- mato, constituirá uma ferramenta potencialmente
séricos de lactato que, a nível renal, condiciona uma do úrico sérico (31-33). Em boa verdade, Li-Ching e mais eficaz, ao dispor dos profissionais de saúde,
diminuição da uricosúria (4, 12-13, 33). Considerando colaboradores já haviam chamado a atenção para o nomeadamente os nutricionistas, na promoção de
os resultados obtidos do Third National Health and facto do consumo de alimentos ricos em purinas per ganhos em saúde para os utentes.
Nutrition Examination Survey, efetuado numa po- se não ser factor de risco importante para o apare-
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pulação de 14809 pessoas dos EUA, as diferentes cimento de gota (42). Numa abordagem holística do REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
bebidas alcoólicas (cerveja, licor e vinho) têm dife- doente com hiperuricémia e/ou gota, recomenda-se 1. Nuki G, Simkin, PA. A concise history of gout and hyperu-
rente impacto nos valores séricos de ácido úrico. O que se rastreiem e tratem os fatores de risco cardio- ricemia and their treatment. Arthritis Research & Therapy
consumo moderado de vinho (até um copo por dia) vascular, que fazem parte da síndrome metabólica, 2006; 8: 1-5
não se associa ao aumento do risco de hiperuricémia, nomeadamente a obesidade, hipertensão, hiperlipi- 2. Garrod AB. Observations on certain pathological condi-
em contraponto ao consumo de cerveja que confere demia, insulinorresistência e diabetes (44-45). De tions of the blood and urine in gout, rheumatism and Bright’s
um risco maior (38). Além do seu teor de álcool, a cer- facto, existe investigação que demonstrara um risco disease. Trans M-Chir Soc Edinburgh 1848; 31: 83-97.
veja é rica em purinas, em especial guanosina, favo- aumentado de gota em homens com IMC maior ou 3. Rundles RW et al. Effects of a xanthine oxidase inhibitor
recendo assim a hiperuricémia e o risco de gota (39). igual a 25, sendo que a magnitude dessa associação on thiopurine metabolism, hyperuricaemia and gout.Trans
e) Papel da Frutose varia positivamente com o aumento do IMC (46). Em Assoc Am Physicians 1963; 76: 126-140
Há alguma evidência que associa a ingestão elevada doentes com aumento da adiposidade e naqueles 4. de Oliveira EP, Burini RC. High plasma uric acid concentra-
de frutose com o aumento das concentrações séri- com síndrome de resistência à insulina, a hiperuri- tion: causes and consequences. Diabetology & Metabolic
cas de ácido úrico (15, 40-41). Durante o seu meta- cémia também estará associada a uma redução na Syndrome 2012; 4:1-12
bolismo hepático, a frutose é fosforilada a frutose uricosúria (4, 47). Portanto, em doentes obesos, a 5. Miguel C, Mediavilla MJ. Abordagem atual da gota. Acta
1-fosfato, por acção da enzima frutoquinase (4). Esta orientação dietética deve ser no sentido de uma Médica Portuguesa 2011; 24: 791-798
reacção estimula a hidrólise do ATP, com um subse- dieta hipocalórica, com vista ao controlo não só da 6. Jin M et al. Uric acid, Hyperuricemia and Vascular Diseases.
quente aumento de AMP (40). Posto isto, a enzima uricemia, mas também do peso e das comorbilidades. Front Biosci 2012; 17: 656-669
aldolase quebra a frutose 1-fosfato em dihidroxia- Um aspecto de extrema importância na orientação 7. Nicholls A et al. Effect of Oestrogen Therapy on Plasma
cetonafosfato e D-gliceraldeído (4). A acção da fru- nutricional do doente com hiperuricémia ou gota é o and Urinary Levels of Uric Acid. British Medical Journal 1973;
toquinase é rápida, mas a reacção com a aldolase é consumo de bebidas alcoólicas e de alimentos ricos 1: 449-451
lenta, o que implica que, quando a ingestão de fru- em frutose. A ingestão de álcool aumenta a uricemia, 8. Grassi D et al. Chronic Hyperuricemia, Uric Acid Deposit
Estratégias para Intervenção Nutricional na Hiperuricémia e Gota REVISTA NUTRÍCIAS 19: 28-31, APN, 2014 PÁG. 31

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