JonathanGoncalvesFilippon Tese
JonathanGoncalvesFilippon Tese
JonathanGoncalvesFilippon Tese
Democracia e conquista:
saúde mental como política pública
Ribeirão Preto
- 2009 -
1
Democracia e conquista:
saúde mental como política pública
Ribeirão Preto
- 2009 –
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Filippon, Jonathan G.
Democracia e Conquista: Saúde Mental como Política Pública.
Ribeirão Preto, 2009.
120p. il. ; 30cm
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovado em:
Banca Examinadora
Julgamento.________________________________ Assinatura:________________
Julgamento.________________________________ Assinatura:________________
Julgamento.________________________________ Assinatura:________________
Julgamento.________________________________ Assinatura:________________
4
AGRADECIMENTOS
e tantos outros colegas que trilharam comigo este caminho. Obrigado a todos os
alunos do curso de graduação desta escola pela acolhida, desde o estágio em
docência até os disputados jogos de futebol – AVANTE ENF! Um agradecimento
muito especial aos professores Pedro, Tite e à inesquecível professora Cecília
Puntel (in memorian), de quem tive a honra de ser aluno, educadores que tanto
acrescentaram na ampliação dos meus horizontes em temas fundamentais deste
trabalho como a política pública, a democracia e o próprio funcionamento do
Sistema Único de Saúde brasileiro. Obrigado a todos os amigos que fiz nesta
caminhada e que, felizmente, por serem inúmeros, não caberiam neste espaço
normatizado, à simpatia da professora Toyoko Saeki em acolher anseios, dirimir
dúvidas e pelo ensinamento de encarar com bom humor os entraves do sistema
burocrático da universidade e pelos convites desafiadores de participação na
orientação aos alunos do primeiro ano do bacharelado, à professora Maria Cristina
pelos “mergulhos teóricos" em outras águas, salutarmente fora dos mares
conhecidos.
A implicação política também pode ser um encontro humano de valores
comuns e, porque não, encarados de forma divertida, fazendo germinar amizades e
companheirismo. Somos formados no olhar do outro. Agradeço ao verdadeiro
significado da amizade, ensinado a mim pelos amigos do agora constituído Núcleo
do CEBES, de Ribeirão Preto e região: Dario, Julia, Tânia, Zé Marcelo, Carla,
Gabriel, Guilherme e família (valeu a acolhida hermano!), Codi, Lara e sua
churrasqueira sem fumaça, Nati, Alcimar e Karen. Obrigado a todos da família
Cebes. Um pequeno agradecimento às cachoeiras de Delfinópolis/MG, nosso local
de “astralização” nas horas difíceis.
À Gabriela, pelo carinho, pelo companheirismo e pelas inéditas perspectivas a
novos voos ainda maiores que estes, obrigado.
Por fim, agradeço à base constitutiva de mim – biológica e afetivamente, o
esforço de duas existências inteiras voltadas para os filhos, encarando de forma
corajosa tudo o que esta responsabilidade, quando assumida como projeto de vida,
acarreta. Mariza e Paulo, não há palavras para descrever o significado de vocês –
obrigado pelo sentido de existir. Ao outro fruto desta relação, minha irmã Paula,
obrigado pelo amor incondicional.
7
Chico Science
8
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
1
As pessoas lá internadas apresentam um quadro grave de sofrimento psíquico que caracterizou a
necessidade da internação hospitalar.
12
2
A Lei Federal 10.216/2001 dispõe sobre a proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental no país (BRASIL, 2001).
3 o
A Lei Ordinária n 9.716/92 dispõe sobre a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determina a
substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde
mental, determina regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente
quanto às internações psiquiátricas compulsórias, e dá outras providências (RIO GRANDE DO SUL,
2008)
15
[...] a tranqüila quietude [das ciências positivas] não está abalada. Pelo
contrário, assiste-se a freqüentes anúncios de sua absoluta positividade, por
exemplo, de que descobertas definitivas, das causas terapêuticas da
esquizofrenia e das doenças afetivas estão para acontecer a qualquer
momento: é uma questão de muito pouco tempo!
A psiquiatria tende a rechaçar as proposições dos saberes que lhe
são externos, e não apenas aqueles que colocam em discussão seus
fundamentos. Comumente, classifica tais contribuições como totalmente
desprovidas de conhecimento psiquiátrico e, portanto, desprovidas de
verdade. Se se tratam de ‘críticas’ a ela dirigidas, oriundas dos campos das
ciências sociais e humanas, são entendidas como decorrentes da completa
ausência de parâmetros científicos para julgar a positividade desse saber
sobre a natureza da doença mental. Ou ainda, por extensão, se são não-
saberes-psiquiátricos são simplesmente não-saberes, o que é outra
característica da tradição moderna [da ciência]. (p.34-35)
maneira única, singular de que cada indivíduo tem de viver a vida, de andar a
própria existência (CAMPOS, 2007).
A loucura foi territorializada, classificada, estudada, e no século XX (há
apenas pouco mais de 60 anos) foi medicalizada. Há finalmente remédio para a
loucura, para os desviantes e seus desvios (AMARANTE, 2007).
Para Luz (2008, p.88) “a psiquiatria, a psicanálise e a psicologia [...] são
formas de determinação e organização do espaço psíquico dos indivíduos enquanto
componentes de uma sociedade: enquanto cidadãos”. A mesma autora afirma que a
loucura não pode ser tomada apenas a partir do olhar biológico, tampouco apenas a
partir do viés social, para LUZ (2008, p.89) a loucura é uma “construção política e
teórica, institucional e científica”.
Tampouco é possível simplificar grosseiramente a um discurso dualista de
bem ou mal a relação de poder do saber psiquiátrico sobre as pessoas que a ele se
submetem ou que dele fazem uso em sua praxis. Partindo da concepção dialética do
papel do médico psiquiatra e das equipes de enfermagem, consideradas
empiricamente como as mais resistentes para a desconstrução do manicômio e,
principalmente, do modelo manicomial4, chegamos ao cerne de uma das principais
dificuldades apontadas por Basaglia para uma concepção de psiquiatria
democrática.
4
O modelo manicomial é a designação que pressupõe comportamentos por parte das equipes de
atendimento que não necessariamente precisam ser realizadas no território do manicômio. A
experiência dos ambulatórios de psiquiatria no Brasil, em sua maioria, são um exemplo de modelo
manicomial fora da instituição clássica da psiquiatria, o hospício (AMARANTE, 2007).
19
5
Oswaldo Cruz é uma figura histórica na cronologia das políticas sanitárias brasileiras. Foi
responsável, em conjunto com um grupo de médicos com apoio do Estado, pela reurbanização da
cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX de acordo com os modernos padrões de higiene.
Até então a cidade era conhecida como “túmulo de estrangeiros” pela grande incidência de mortes
principalmente de europeus na então capital federal. Cruz teve importante papel no saneamento dos
grandes males que assolavam a população à época como a varíola, a febre amarela entre outras
epidemias (ARRUDA e PILETTI, 1994).
20
6
O termo imagem-objetivo é utilizado aqui relacionado ao conceito de horizonte, utopia, ideal a ser
alcançado, direção.
21
7
O termo ideologização refere-se à capacidade social de produzir ideologias – “um sistema ordenado
de idéias ou representações [...] independente das condições materiais [do real]” (CHAUI, 1984,
p.65).
22
ser cidadão e acredita-se que o sistema democrático seja o que melhor responde às
necessidades de tal constructo.
Apesar disso, quando se observa a construção do eu, mencionada
anteriormente, e sua relação com a democracia, vê-se que:
8
Tancredo Neves, líder de uma coalizão de forças formada por dissidentes do antigo regime e líderes
da resistência democrática, foi eleito presidente segundo a constituição dos governos militares. A
população depositava nele esperanças de novos rumos para a política nacional. Doente, não pôde
tomar posse e morreria menos de 40 dias depois, no dia de Tiradentes: 21 de abril. O fato
surpreendente agravou as dificuldades econômicas e políticas que o novo governo civil iria enfrentar,
tendo à frente o vice de Tancredo, José Sarney – um dissidente do regime militar que até poucos
meses antes da posse presidira o partido de sustentação dos militares. (ARRUDA; PILETTI, 1994;
MOISÉS,2008)
28
9
A queda do muro de Berlim é um dos marcos históricos que demarca a derrocada dos regimes
socialistas observada a partir da década de 1980. Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha,
derrotada no conflito em 1945, foi dividida em dois países, representando in loco a polarização
política conhecida como Guerra Fria – a disputa política mundial entre os regimes Capitalistas
(ocidentais) e Socialistas (orientais). A Alemanha foi reunificada em 03 de outubro de 1990, a partir
da coligação política Aliança pela Alemanha, entre líderes da Alemanha Oriental e Ocidental
(ARRUDA e PILETTI, 1994).
30
10
Mesmo com formas de ação questionáveis e posicionamentos radicais de seus componentes, o
MST obtém êxitos consideráveis no panorama político social nacional: demarca outra via de
relacionamento com o Estado, a partir de práticas de ação organizada e, seu maior mérito, tem
mantido o tema da reforma agrária na pauta de todos os governos eleitos, independentemente da
orientação ideológica dos mesmos.
11
Segundo Arruda e Piletti (1994) a eleição presidencial no ano de 1989 foi marcada pela acirrada
disputa entre os setores conservadores (representados pelo então eleito Presidente da República
Fernando Collor de Melo) e a inovação política, representada naquele momento pelo insurgente
Partido dos Trabalhadores (na figura política do metalúrgico Luis Inácio da Silva, o Lula) – fruto dos
movimentos sociais da década de 1980, principalmente dos metalúrgicos da região do ABC paulista.
A disputa eleitoral demonstrou a inexperiência nacional da população com o processo democrático
aberto representado pelo sufrágio universal, levando as campanhas de votação à disputa dos valores
pessoais e morais dos candidatos, esvaziando-se a discussão a respeito dos planos políticos de
ambos. Os números em relação ao eleitorado explicitam a fragilidade do processo eleitoral: pela
primeira vez votaram os analfabetos e os jovens entre 16 a 18 anos; 50% dos eleitores não possuía
ensino fundamental completo; 75% possuía renda inferior a dois salários mínimos; pouco antes do
processo eleitoral, 20% dos eleitores não sabiam o nome do então presidente, José Sarney
(ARRUDA;PILETTI, 1994). A dúvida nacional demonstrava-se pelos percentuais das pesquisas de
opinião, que giravam em números próximos poucas semanas antes da eleição. Com o mote de
“Caçador de Marajás”, o jovem Fernando Collor de Melo ganha a eleição apoiado pela mídia atávica
e conservadora – a mesma que o despojará do cargo quase dois anos depois acusando-o de
corrupção. Os percentuais do resultado: Collor – cerca de 35 milhões de votos (42,75%) e Lula –
cerca de 31 milhões de votos (37,86%). Collor de Melo renuncia no ano de 1992 sob jugo da pressão
popular incentivada pela mídia de massa e por um insuflado congresso nacional que aprova o pedido
de Impeachment presidencial em 29 de setembro daquele ano, encaminhando-o ao senado federal –
que condenaria o ex-presidente à perda do mandato e suspensão dos direitos políticos por oito anos.
33
12
No ano de 1964 o governo brasileiro é assumido pelos militares através de um golpe de Estado.
Alegando a proteção da segurança e da soberanidade nacional frente a ameaça comunista,
orientados a partir da ótica do governo dos Estados Unidos da América, o regime militar assim
justificou o cerceamento da imprensa nacional; a cassação, prisão, tortura ou exílio dos principais
líderes políticos, estudantis e culturais do país; e, finalmente, a adoção de políticas públicas onerosas
e diretamente vinculadas à iniciativa privada nas principais áreas de atuação ministeriais (educação,
saúde e previdência social). O regime militar terminaria apenas na década de 80, com as primeiras
eleições diretas para Presidente da república após a Assembléia Nacional Constituinte de 1988
(ARRUDA e PILETTI, 1994).
37
13
Ainda que não divulgado oficialmente em relatório de gestão, sabe-se que o número de Centros de
Atenção Psicossocial no país credenciados pelo Ministério da Saúde ultrapassou a marca de 1200 no
ano de 2008.
43
3. OBJETIVOS
Objetivos Específicos:
4. TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
[...] foi com o trabalho que o ser humano ‘desgrudou’ um pouco da natureza
e pôde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos
objetos naturais (KONDER, 1982, p.24, grifos nossos).
O seguinte capítulo trata da análise e discussão dos dados coletados por esta
pesquisa à luz do referencial teórico previamente apresentado. Serão inseridas as
falas das entrevistas ao longo do texto, apresentadas por pseudônimos,
corroborando e enriquecendo a descrição do processo histórico da saúde mental
alegretense. Optou-se pela ordem cronológica dos fatos como organizador de uma
linha de raciocínio, o que não impediu a realização de idas e vindas ao longo do
período analisado. Inicia-se a apresentação dos dados a partir dos fatos históricos
ocorridos em 1989 no país e na cidade de Alegrete, apresentando também algumas
reflexões teóricas consideradas relevantes. Finda-se o período histórico avaliado no
ano de 2008.
O roteiro deste capítulo:
Há uma divisão histórica clara que esta pesquisa propõe: o ano de 1996, por
sua importância para este objeto de estudo. Neste ano foi promulgada a lei
municipal de saúde mental de Alegrete, dividindo historicamente o processo social
estudado nesta pesquisa. O período anterior a 1996, que inicia no ano de 1989, é
caracterizado por esta pesquisa como Processo Democrático da reforma psiquiátrica
na cidade de Alegrete e é o foco principal desta análise de dados. Dividiu-se este
período em cinco itens, descritos brevemente a seguir:
56
então definidos como países de terceiro mundo. Este processo foi demarcado pelo
fim dos regimes militares e do alinhamento continental ao capitalismo neoliberal que
marcou o término dos regimes autoritários do final do século passado. Países como
o Brasil e a Argentina efervesceram socialmente durante a década de 1980
(FAGUNDES, 2006).
E nesse período assim ó, eu lembro que gente fazia assim alguns trabalhos
bem interessantes, como várias pessoas entraram na rede ao mesmo tempo
através desse concurso, nós tínhamos assim uma reunião em que reunia
nutricionista, fisioterapeuta, enfermeiros da rede, para tratar de saúde
pública... E essa reunião, o pessoal diz até hoje: “tu lembras quando a gente
reunia todos os profissionais da rede?” (...) eu acho até que era semanal. Eu
sei que era bem estreito o nosso convívio, a nossa relação. A gente começou
atendendo a demanda que vinha de pacientes (...) tipo assim... a gente foi
montando e estruturando... né, o trabalho. (CAEIRO)
(...) nós sempre fomos da coisa do grupo né. Além desse trabalho na saúde
pública nós tínhamos um outro grupo, que era um grupo de... De conversa.
Né, era o grupo das terças-feiras. Então nesse grupo das terças-feiras tinha
assim, várias pessoas da cidade, né... Muita gente. (...) Então assim ó, era
uma série de pessoas que iam lá para conversar. E a gente conversava
assim, de vários assuntos né... Desde a saúde pública, à política, à filosofia
né... À poesia, tinha de tudo lá (...) e esse grupo assim ele demorou, não sei
se dois anos, porque todos nós estávamos chegando na cidade (...) mas
depois, quando houve uma certa abertura... Um grupo resolveu ir para a
política. Né, se candidatar a vereador e tal, e o pessoal apoiava... E começou
um movimento assim todo... E aí algumas pessoas foram para um outro lado,
outras foram para outro e o grupo dispersou. Mas eu acho que foi assim um
grupo bem importante para a história né, porque a gente não era
comprometido com... Era comprometido com tudo, não era comprometido
com partido. Aí quando o pessoal quis se comprometer com partido, (...) eu
acho que isso que diferenciou né. (CAEIRO)
CAEIRO chama de “algumas pessoas foram para um outro lado”. Este momento é
crucial para as pessoas envolvidas no segundo grupo. Entremeadas pelos
acontecimentos do início da década de 199014 suas escolhas pessoais passam pela
influência do movimento nacional de valorização da politização de seus agentes.
Tais escolhas pessoais e de projetos de vida justificam em parte a partidarização do
grupo, trazendo para ele relações institucionalizadas que aos poucos destituíram o
grupo de seu objetivo – o encontro com o outro, real, livre e despojado de travas
institucionais. Contraditório, porém necessariamente presente, a escolha pessoal
pelos projetos coletivos (busca de votos para a legitimação de projetos políticos)
dificulta a vivência livre e criadora dos mesmos projetos.
Em conjunto com a reforma sanitária proposta legalmente a partir do fim da
década de 80 a reforma psiquiátrica igualmente acontecia, materializada em ações
sociais em sua maioria, ainda incipientes mas fundamentais no âmbito
governamental:
(...) nós estávamos no processo... Bom, nós estávamos no processo da
Reforma Psiquiátrica, a gente é... O Rio Grande do Sul entrava, constituía
uma equipe itinerante, uma equipe descentralizada que eles chamavam que
era composta de profissionais de várias áreas e de vários municípios e essa
equipe prestava assessoria aos municípios que estavam formando ações em
saúde mental. E a gente era convidado para ir em seminário (...) nos
encontros de saúde mental que eram muito ativos naquela época. (PESSOA)
14
Conforme nota de rodapé 11.
63
15
A cidade de Alegrete possui cinco quartéis do exército nacional, herança histórica da posição
estratégica em relação às fronteiras do Brasil.
16
As estâncias são como fazendas, diferindo no aspecto de que estas não priorizam o plantio e sim a
criação de animais. Os trabalhadores destes locais usualmente cultivam as tradições culturais
gauchescas como a vestimenta típica para o trabalho, alimentação baseada na carne e arroz, gírias e
sotaque muito próprio com influências diretas da língua espanhola.
64
Então tem uma construção muito bacana né, e a (...) eu acho que participava
do governo na época, e eles tinham o programa né... De PAIS mental né, o
Programa de Atenção Integral em Saúde Mental... Que foi o desencadeador
desses processos nos municípios... Bagé, Alegrete, Alegrete foi depois até de
Uruguaiana. Mas assim, o pessoal aprendeu, foi lá em Uruguaiana, eu lembro
que a gente tem registrado no livro. Dia 11 de julho foi a Uruguaiana e dia 18
se reuniram aqui. Então a gente escolheu essa data, aonde foi reunida toda a
equipe multidisciplinar para marcar como o aniversário do serviço.
(WHITMAN)
17
O conceito de territorialidade para Guattari (1993) é caracterizado por um fenônemo de origem
psicológica, formado a partir de dimensões sociais e políticas. Afeta diretamente a percepção
consciente dos sujeitos acerca do que se refere – neste caso o território da loucura e do louco. Ou
seja, territorialidade aqui diz respeito ao território de símbolos culturais e construções sociais
referentes ao entendimento humano acerca da loucura, por isso seu território. Os conceitos derivados
da territorialidade: desterritorialização, que compreende os mecanismos que separam o território
simbólico de seus vínculos sociais e culturais; reterritorialização, que vem a ser a criação de novos
vínculos (símbolos, crenças, entendimentos) em lugar dos destituídos pelo movimento
desterritorializador.
66
18
Frederick Winslow Taylor viveu entre 1856 e 1915, engenheiro mecânico norte-americano, talhou
conceitos conhecidos como Administração Científica, buscando o máximo da eficácia e eficiência na
operacionalização industrial visando a produtividade. Para isso empregou métodos cartesianos de
pensamento caracteristicamente inflexíveis e mecanicistas, o que aumentou enormemente a
produção industrial de larga escala, concomitante a isso gerou demissões e desinteresse dos
funcionários por seu trabalho. Este aspecto negativo dos métodos produtivos de Taylor é chamado de
taylorismo, caracterizando uma forma de produção de trabalho em série, plana e ausente de
subjetividade humana (MATOS, PIRES, 2006).
19
Para Campos (1998), é necessário promover ações anti-taylorismo. Não abandonar os
profissionais de saúde na esteira da repetição de seu trabalho é um desafio para os gestores de
saúde atuais. É preciso não destituir os profissionais da condição de discutir e decidir sobre a
execução de suas ações de cuidado.
67
Foram inscritos 1049 alunos no período de 1988 a 1996, sendo que, destes,
709 concluíram os cursos (71,9%) (FAGUNDES, 2006). Tais cursos foram
importantes instrumentos desencadeadores de processos nos municípios do interior
do Rio Grande do Sul no tocante à saúde mental e às políticas públicas em geral. A
partir da pedagogia da implicação20 (CECCIM, 2005), que fornece sentido ao objeto
de estudo por sua implicação com a realidade, os cursos de especialização
formaram politicamente pessoas que se interessavam pelo sucesso das políticas
públicas sociais. Nas palavras da autora:
20
Ceccim (2005) propõe o método da pedagogia da implicação ao realizar a formação de
trabalhadores/atores sociais em saúde a partir de suas ações possíveis em seus locais de atuação
profissional.
69
21
Para as Ciências Sociais, massa crítica é a mentalidade de um grupo que é suficiente para, em
quantidade e qualidade, permitir, propiciar e sustentar determinada ação ou comportamento.
(LACERDA, 1991)
70
A gente começava a identificar o furo da falta de leis e dizia.... “Mas não.. Nós
temos que chegar na câmara, nós temos que mudar as leis do município, nós
temos que começar a discutir que município é esse?” Aí assim, nós temos
que ter representantes. E aí assim... Bom, então tá, nós vamos ir para a
câmara... E tá... E que partido? Quem é que agüenta a gente? O PT, claro...
Tu acha que o P não sei das quantas ia agüentar a gente? Não agüenta!
Porque o P qualquer coisa é assistencialista. A política não era o que nós
propúnhamos... Nós propúnhamos o sujeito, subjetividade! E dentro de todos
os partidos ainda quem propunha subjetividade, construção e aposta na
subjetividade era o PT. Por isso a escolha do PT. (PESSOA)
22
O termo sentido existencial refere-se ao homem e seu lugar no mundo, a partir das concepções de
Sartre (2008). Para Sartre (2008) o lugar-no-mundo é a experiência existencial da consciência: “o
plano do pensamento deve ceder seu lugar a uma experiência existencial concreta – uma experiência
que permita atingir o sentido da existência em seu ser-no-mundo”(BORNHEIM, 2007, p.19). Portanto,
ao referir o sentido existencial fornecido pelos conhecimentos adquiridos nos cursos de formação,
explicita-se que, ao atingir conscientemente conceitos como democracia, liberdade e participação
política os atores sociais alegretenses conciliaram seu lugar-no-mundo – alterando significativamente
suas biografias.
71
23
O termo razão-de-ser refere-se ao lugar-no-mundo, um sentido existencial, conforme explicitado na
nota de rodapé n.6.
72
Nós temos uma caminhada muito grande. Ele funcionou como ambulatório...
Né, depois ele avançou... O que nós chamamos de um serviço. Não existia
essa regulamentação de Centro de Atenção Psicossocial [CAPS]... Não
existia nada! Não existia nem financiamento... Né, em 91 nós, a militância nos
lugares, locais... E a vontade política do gestor municipal é que garantiu o
funcionamento do serviço. Porque tu não tinha financiamento, não é como
24
O termo tessitura ontológica refere-se à capacidade humana de construir significados coletivos a
partir de muitos vetores, constituintes do homem em sua individualidade (Habermas, 2002). Para
exemplificar o uso do termo citamos Simone (2006), que discute os conceitos filosóficos de Jürgen
Habermas e Wilhelm Dilthey, aproximando as concepções humanas destes autores do ponto de vista
filosófico. Este autor utiliza o termo tessitura ontológica ao tratar da reabilitação do conceito de
natureza para o homem na busca da expressão do sensível humano, afirmando que “os fios
temáticos singulares [da nova concepção de natureza para o Ser] se entrelaçam pela nova tessitura
ontológica [da Natureza pelo Ser]”(p.391, tradução livre). Ou seja, tessitura ontológica refere-se a um
constructo humano maior, porém composto de fios de entendimento/concepções singulares
entrelaçados coordenadamente, como um tecido de concepções, impraticavelmente uniforme por ser
de gênese humana.
74
25
hoje que tu tens um sistema APAC que financia os CAPS enfim... Não
existia nada na época... Existia vontade local de organização do serviço né...
Orientados por uma política estadual. Que era uma orientação mesmo...
Que... O argumento, ele era tão forte, a construção teórica, política, do
movimento social ele era tão forte que se convencia o gestor municipal a criar
um serviço... Sem nenhuma especificidade de financiamento. Era a pressão
do movimento... E acho que era o momento, o período que nós vivíamos de
redemocratização ele também criava essa... Essa intenção política nos
gestores... Mesmo os nossos aqui serem gestores muito conservadores (...)
(FLORBELA)
25
APAC – Autorização para Procedimento de Alto Custo; é a forma de financiamento permanente dos
Centros de Atenção Psicossocial, regulada pelo número de vezes que o usuário comparece ao local
de atendimento. Contraditoriamente necessita de diagnóstico psiquiátrico para ser emitida. O repasse
de recursos é realizado fundo-a-fundo, ou seja, em depósito direto do ente federal para a conta
bancária do ente municipal. Esta relação de planejamento e financiamento deve ser regulada pelo
controle social através do Conselho Municipal de Saúde (BRASIL, 2002).
75
conferência, com discussão, era tão grande que as pessoas estavam todas
dentro desse processo. (PESSOA)
O texto, o corpo da lei propriamente dito, foi elaborado como trabalho final de
um dos cursos de especialização realizados por profissionais da equipe na cidade
de Bagé. A produção coletiva em relação à lei é realizada fora do município, o que
configura bem a idéia de política vivenciada naquele momento, de forma regional,
extrapolando as fronteiras municipais.
Dois anos e meio. E o nosso trabalho... Para tu teres uma visão de como
essa lei chegou, como é que veio a lei. Nós... Permanente construindo... Toda
essa coisa de informação... Diagnóstico, proposta de trabalho... A gente tinha
que fazer, elaborar projeto, enfim, cada módulo tu tinhas uma tarefa a
cumprir. E o trabalho final é uma proposta para a cidade. É... No que se
refere à saúde mental coletiva. (FLORBELA)
(...) o que fez isto foi a proposta, as pessoas trabalhavam assim ó... nós
tínhamos 20h [de carga horária semanal no serviço de saúde mental], mas a
26
Conforme descrito na etapa metodológica deste estudo.
77
27
As chamadas nosografias psiquiátricas são as primeiras formas de registro e classificação das
patologias mentais, desenvolvidas inicialmente por Philippe Pinel. O médico francês é considerado o
“pai” da psiquiatria e da medicina moderna por iniciar um método de observação e classificação da
loucura (AMARANTE, 2007).
78
mãos que juntas fizeram (...). A gente fez junto com muitas pessoas né. E
isso que é importante. (BLAKE)
Não era uma luta solitária: “os outros homens cada vez mais se tornam, não
seres que vejo e ouço, mas aquele com os quais ajo em comum” (GOLDMANN,
1970, p.22). O ato em comum da luta pelos valores nos quais a subjetividade dos
sujeitos se expressa forma os próprios atores durante o processo histórico e, por
meio deste processo de idas e feedbacks a subjetividade igualmente se
forma/transforma/transtorna.
79
(...) e é isso que eu vejo que as equipes têm dificuldade de entender... que
elas... Não é uma questão burocrática e técnica, fria... Tem que ter
envolvimento senão tu não consegue dar conta da vida das pessoas né... Tu
trabalhas com projetos de vida, não é com um projeto terapêutico, clínico (...)
(FLORBELA)
Então aí é importante... Tem muitas mãos, mas estas mãos tem identidade tu
entende? E é uma identidade comprometida com um projeto. E tu busca o
apoio nesses lugares, nessas pessoas. Não é qualquer curso. Não é comprar
pacote para dar emprego para alguém, ou para alguém ganhar... Não. Tu
compra o pacote se o pacote te serve. (BLAKE)
(...) agora, o desafio é, saber que em alguns momentos uns vão estar na
gestão e aí não tem condições de levar o movimento ou a associação e
outros vão ter que pegar. Eu acho que não pode ser todos em todos os
lugares né. E aí tu tem que ter gente. Por isso a coisa da autonomia é
importante, porque se tu tem um movimento onde as pessoas não tem
autonomia, tu não consegue fazer isso. (BLAKE)
(...) o que eu tenho pedido assim é que a gente consiga fazer um fluxo de
custeio e de investimentos que garanta isso né... Que faça esse
fortalecimento. Agora, é a coisa da autonomia né, não dá para tutelar a
participação. A participação ela tem que ter autonomia ou não é participação.
(BLAKE)
28
O conceito de autonomia referido aqui é o mesmo de Campos (2005,2007) e Rollo (2007). Este
refere-se à “possibilidade de automover/agir dentro de ‘nomias’/normas ético-estéticas, técnicas
administrativas de uma instituição/organização e do estado de direito de um dado país/mundo” (Rollo,
2007, p.41). Para Campos (2005,2007) a autonomia deve ser entendida como o aumento da
capacidade de agir e compreender sobre o contexto e sobre si mesmo, utilizando a capacidade
reflexiva humana para estabelecer compromissos e contratos com outros.
82
Isso é muito difícil né. Na verdade a gente tem que chegar em um equilíbrio
entre a questão da militância e do compromisso com o trabalho. Porque tu
não precisas ser militante para ter compromisso com o teu fazer. E o que a
gente vê hoje são pessoas sem compromisso com o fazer. Porque mesmo
que tu não seja militante, se tu tiver compromisso com o trabalho que tu está
fazendo, né, o teu trabalho vai ter outra repercussão que daquele que só vai
para cumprir alguma coisa. E que nem cumpre, que muitas vezes não
cumpre. Então se tu conseguir, assim ó, uma negociação que também é uma
negociação da democracia né, entre o militante saber trabalhar com aquele
trabalhador que é... Que tem ética no seu fazer e tem compromisso, sem
saber... Sabendo que ele não vai ser militante, porque ele é um trabalhador
comprometido, acho que tem como fazer uma parceria com o trabalhador
também. Então se tu tiveres um percentual de militantes numa equipe, e tiver
um percentual de trabalhadores comprometidos acaba fluindo. E eu posso te
dizer que conosco aconteceu assim. Nós diminuímos muito a coisa... Não
temos muitos militantes, não temos. Mas nós temos alguns trabalhadores
comprometidos, e estes puxam o resto do todo e fazem a diferença. (BLAKE)
Quando há esta valoração dos atos individuais, quer sejam eles de cuidado,
políticos, militantes, afetivos, criativos o papel social executado secundariza-se;
importa, antes de tudo, o conjunto de desterritorialização da loucura, de não-
estigmatização, de ausência de julgamento moral ao sofrimento e ao sofredor
psíquico.
84
5.2) A implementação
(...) bota um cara lá para nos vigiar, que a gente apelidou ele de sombra...
Depois a gente conquistou ele né. É gente também, até era bem bacana o
coitado... Desinformado... Mas a gente brincava com ele: “oi sombra!” e tal...
E aí eu digo... “ó, não vai esquecer de contar tal coisa para o secretário hoje...
Não esquece tal coisa, não vai esquecer...” Aí caiu né, ele no fim acabou
dizendo isso para o secretário, “olha eu... não tem cabimento eu estar lá
dentro, as pessoas estão lá trabalhando, todo mundo está lá trabalhando...
Trabalhando pela comunidade... Essa questão partidária não é discutida
dentro do serviço de saúde mental...” (WHITMAN)
29
Conforme anotação em diário de campo do dia 09/03/2009.
86
30
Para Gramsci (1968) a ideologia são as idéias hegemônicas que circulam na sociedade e que
legitimam um conjunto de valores, os quais, em última instância, refletem as divisões, as lutas sociais
e as relações de força da sociedade. Segundo este mesmo autor, os tensionamentos surgidos no
exercício da ideologia por seus atores propicia o que o mesmo denomina de contra-ideologia – uma
desconstrução/reconstrução dos valores ideológicos a partir de si mesmos.
31
A Cooperativa Qorpo Santo era uma alternativa de geração de renda criada por iniciativa dos
trabalhadores de saúde mental. Gerenciada totalmente por usuários, teve participação e
reconhecimento no III Encontro Nacional de Luta Antimanicomial, realizado em Porto Alegre no ano
de 1997, ao fabricar as bolsas e pastas utilizadas pelos participantes do evento. A cooperativa durou
cerca de 4 anos.
87
semana com ela, ela sabia que ela surtada dentro do hospital eu ia estar lá
com ela, tinha plantão, a gente acompanhava final de semana, a gente era
incansável... Eu acho que era um excesso de militância... Eu quase que me
esvaí, como se diz... (FLORBELA)
32
A Portaria Ministerial 336/2002 do Ministério da Saúde regulamenta a implantação e o
financiamento dos Centros de Atenção Psicossocial no território brasileiro.
88
Eu digo que nós não estamos à altura da nossa tarefa, isso eu digo em
qualquer lugar. Eu acho que nós não... hoje o movimento, a situação política,
brasileira, tanto da democracia quanto do Sistema Único de Saúde, quanto da
reforma, é outro momento. Nós somos a política oficial e estamos na vidraça,
estamos na institucionalidade, temos muitas fragilidades, e cada um
praticamente foi se acomodando no seu espaço. E um não potencializa o
outro, que eu acho que é o mais grave. Um não potencializa o outro e
também não conseguimos sinalizar para o Brasil, para a massa de
trabalhadores que tem dentro dos serviços de saúde mental que nós temos
algumas bandeiras em comum que nós precisamos ligar. E continuamos nos
unindo no jeito mais primitivo que pode existir, que é quando tem um inimigo
quando nós somos atacados. Então aqui no Rio Grande do Sul, cada vez que
querem mudar a lei, nós nos juntamos todos e mostramos a força.
Ganhamos a batalha... CHUM! Nos fragmentamos de novo, pulverizamos de
novo. E nacionalmente acontece a mesma coisa. (REIS)
33
O conceito de Centralismo Democrático foi desenvolvido por Vladimir Ilitch Ulianov, conhecido
historicamente como Lênin, durante a transição entre os séculos XIX e XX. O conceito é exposto e
discutido em duas obras suas: Quê Fazer (1902) e Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás (1904)
(LAZZARETTI, 2007). Pensador preocupado em aproximar os conceitos revolucionários marxistas à
realidade camponesa russa, Lênin afirma que um partido revolucionário deve possuir um núcleo
sólido e organizador, a partir de parte dos trabalhadores mais lúcidos e combativos associados a
intelectuais envolvidos com a causa proletária. A organização revolucionária seria de cima para baixo,
sendo o núcleo forte o direcionador dos movimentos da base, composta pelo restante do proletariado
(LÊNIN, 1978). O conceito de centralismo foi subvertido inicialmente por Stalin na União Soviética,
que radicalizou as perseguições políticas aos indivíduos discordantes das orientações gerais do
partido. Secundariamente tornou-se, em outros regimes socialistas como a Alemanha Oriental por
exemplo, o chamado centralismo burocrático, em que uma minoria distancia-se das ações práticas e
da realidade, instalando-se em posições de comando administrativas e direcionando ordens ao
proletariado. Autores como Gomes (1999), Shanin (1980) e Domingues (2005) defendem que a
proposta leninista era a de fornecer um norte comum à massa proletária sobrepujando o capitalismo
89
Isso... Mas isso já não acontece mais. Isso não existe mais. Aliás, sentimos
falta disso. Até esses dias conversávamos sobre isso. Funcionou muito
assim, nacionalmente e no estado também. Aqui no Forum Gaúcho de Saúde
Mental e no Brasil no Movimento de Luta Antimanicomial. Desde que houve
um racha no movimento da luta antimanicomial, em 1998 ou 2000, uma coisa
assim, nós nunca mais conseguimos unificar. Nos unificar a aponto assim, de
nos unificar e fazer bandeiras de luta. Houve alguma tentativa ao fazer o
encontro em Bauru, dos 20 anos, fomos todos e nunca sentamos... Fomos
todos e os mais velhos, vamos dizer assim, e os que iniciaram o movimento,
mas não conseguimos sentar e fazer um acordo, construir uma agenda
comum. (REIS)
em direção ao socialismo. Historicamente viu-se que o julgamento das atitudes consideradas contra-
revolucionárias por parte do Partido Comunista russo resultou na morte de milhares de pessoas e na
deportação de cerca de 13 milhões de indivíduos (MARQUES; OSTERMANN, 2000).
90
preciso uma causa pela qual lutar, do contrário o movimento torna-se enfraquecido,
sendo facilmente manobrável e perdendo a utopia necessária à transformação
possível. Estamos próximos, empiricamente, de retrocessos nas conquistas
realizadas na década passada no campo da desinstitucionalização da loucura e da
clínica psicossocial no território nacional.
Nunca esteve tão perto disso. Eu espero que o tropeção não seja tão grande
assim, que a gente consiga... Nós estamos vivendo este momento, nós
estamos... O Sistema Único de Saúde está vivendo isso, o pacto de saúde
apareceu como uma tentativa de repolitização do SUS em relação ao
movimento sanitário e a reforma psiquiátrica vai para o mesmo caminho. Nós
precisamos da repolitização do movimento e dos trabalhadores. (REIS)
Após este breve afastamento das questões locais do objeto de estudo que,
por representarem uma pequena amostra do todo nacional, refletem “in loco” os
processos de cisão do movimento, observados no território brasileiro34. É preciso
explicitar a implementação dos serviços após o financiamento direto, chamado de
fundo a fundo, concedido pelas portarias ministeriais regulatórias da Lei
10.216/2001. As decisões e as formas de gestão que caracterizaram o período de
1996 até o ano de 2000 são marcadas por atritos de disputa ideológica e política,
entre a gestão, até então conservadora e presente no poder executivo, e a militância
em saúde mental, presente apenas no poder legislativo, através de cargos de
vereança.
(...) e foi uma luta muito assim de enfrentamento. Eu me lembro assim que
teve vários secretários de saúde que desbancavam as gurias né (...) porque o
pessoal tentava desmontar as coisas que a saúde mental construía. Então de
alguma forma assim às vezes as coisas aconteciam assim né, se espraiava.
Mas assim, não tinha problema, porque aí continuava no outro lugar, fazendo
saúde mental. Né, muitas vezes isso acontecia assim... Tanto é que a gente
dizia que quando uma largava o bastão a outra pegava né... Porque nós
tínhamos um secretário na época (...) Ele desmanchou com o movimento. As
pessoas assim que tinham uma militância assim mais forte, estavam em
outros lugares. Mas isso não quer dizer que a militância não tivesse
continuado. (CAEIRO)
34
O movimento de saúde mental reformista brasileiro sofreu uma cisão após a promulgação da
Legislação Nacional de Reforma Psiquiátrica de 2001 (LC 10.216/2001), a qual intensificou
divergências surgidas ao longo da década de 1990. A discordância interna entre a maior participação
de usuários nos fóruns decisivos do movimento, somada às divergências ideológicas ligadas às
fragmentações esquerdistas após a redemocratização do país em 1988, determinaram a não unidade
do movimento de reforma psiquiátrica brasileiro (baseado em anotação de diário de campo de
05/03/2009).
91
Ele era um hospital, e as gurias não queriam vir para esse hospital porque a...
Tinha aquela coisa “ah, é um hospital”. E um hospital de tuberculose, enfim....
Então foi uma resistência para vir... A gente tentou desmontar o máximo que
pôde mas... tem coisas que não... Aí de lá, desse lugar, dessa praça que as
gurias trabalhavam, elas não queriam sair de lá. Só que lá o prédio era
35
O desígnio de mentaleiro surgiu ao longo da década de 1990 (FAGUNDES, 1993) a partir dos
fóruns de discussão sobre a reforma psiquiátrica gaúcha e é carinhosamente utilizado pelos militantes
do estado entre si até os dias de hoje para designar os militantes da luta antimanicomial.
36
A prática de isolar administrativamente funcionários públicos é velada e não reconhecida, mesmo
sendo de uso comum na administração pública. Devido à estabilidade funcional (impossibilidade de
demissão) usa-se dos recursos disponíveis de realocação do funcionário que esteja ideologicamente
em desacordo com a gestão para dificultar sua ação militante junto aos pares ideológicos. (PEREIRA,
2008).
92
37
Para Arendt (2005) o termo força de trabalho remete à capacidade do homem em executar ações
para sua sobrevivência, o que a mesma classifica como labor. A autora diferencia o labor (como ação
de sobrevivência) do trabalho (como ação de transformação da natureza em benefício do homem).
Segundo Arendt o conceito de trabalho marxista estaria muito ligado ao momento histórico em que
este autor viveu, aproximando a ação do trabalho à necessária criação de um produto final. Para
Arendt o trabalho não é intrínseco à condição humana, discordando do sentido ontológico do trabalho
que Marx propõe.
93
Eu sei que aí nós trabalhamos eu acho que uns 3 anos nessa situação
precária assim... Mas sempre negociando, sempre contando muito com a
comunidade, contando muito com os usuários... E nós já trabalhávamos como
hoje são os Centros de Atenção Psicossocial. Então assim, nós tínhamos
refeições, nós tínhamos oficinas... Nós tínhamos atendimento em grupo.
(CAEIRO)
Então tudo isso assim enquanto Estado, se tu não fosse ficar nessa crítica do
Estado [ente estadual], tu não consegue trabalhar a região. E as regionais
ficam paradas né. É o que a gente tem hoje, a nível de regional tu consegues
muito pouca influência nos municípios. Agora a nível federal, o que que a
gente começou a notar: que tu mandava as coisas... E vinham. E quando veio
94
38
a portaria aquela dos CAPS, a 336 , a gente foi um dos primeiros municípios
a cadastrar o CAPS. Porque a gente já funcionava como CAPS. Nós já
tínhamos equipe de CAPS, já tínhamos serviço de CAPS, nós já tínhamos
tudo... Tudo que precisava... Nós tínhamos a associação, nós tínhamos os
lares, nós tínhamos... Tudo que precisava né, a gente tinha. Aí eu acho que
foi um dos primeiros serviços assim que se cadastrou. (CAEIRO)
E aí o nosso gestor, ele disse “ah, esse dinheiro estão tirando da atenção
básica, e ele está indo pra vocês, agora vocês vão ter dinheiro e a atenção
básica vai ficar sem dinheiro”. Eu fiquei uma fera né, aí, “eu disse então tá,
nós vamos fazer o seguinte: nós vamos lá na coordenadoria, conversar com o
pessoal de lá, e eles vão te dizer de onde vai sair este dinheiro. Só que tu
vais me prometer uma coisa: se este dinheiro não for da atenção básica, for
um dinheiro ‘extra’, todo dinheiro que entrar tu vais investir na saúde mental.
Isso é um compromisso teu: todo centavo que entrar nosso agora tu vais
investir na saúde mental.” E ele... “tá, tá...” E aí ele veio aqui e a
coordenadoria ‘se lavou nele’ né. Explicou tudo para ele e tal... (CAEIRO)
Porque daí assim ó, nessa caminhada toda, nós fomos vendo... “olha, o que
que nós queremos para a saúde mental?” Como a nossa reunião de equipe
sempre foi bem fortalecida, dentro de todos esses anos a gente construía
muitos projetos dentro da reunião de equipe. Então o que que a gente queria
assim ó, um braço na atenção básica, um braço na residência terapêutica, um
braço para os leitos psiquiátricos, a gente conseguiu lá na Santa Casa
também...(CAEIRO)
Ao longo dos últimos sete anos, a partir de 2002, o serviço de saúde mental
transpôs-se para um sistema complexo, contando com um Centro de Atenção
Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS a/d), um Centro de Atenção Psicossocial
Infantil (CAPSi), um Residencial Terapêutico, uma Moradia Assistida e o serviço de
Acompanhantes Terapêuticos para as internações, quando necessárias, no Hospital
Santa Casa de Alegrete. Todos estes serviços foram oriundos do CAPS II, este
cumprindo o papel de catalisador da rede de saúde mental.
(...) o CAPS II cumpre a função que a gente propõe mesmo, que o CAPS seja
um laboratório... Um laboratório de projetos, um desencadeador de
processos, e em Alegrete isso é muito visível e evidente né. Porque os
trabalhadores do serviço hoje, hoje ainda dizem assim: “nos faz bem ter
passado pelo CAPS II, porque aí a gente foi pro CAPSi sabendo das... Pelas
necessidades do CAPS II criou o CAPS i”, então sabe como é que funciona o
CAPS II. Do CAPS II nós criamos o serviço residencial terapêutico, e quem
está no serviço residencial terapêutico passou pelo CAPS II, e assim é no
CAPS A/D... (REIS)
Sistema porque assim, sistema é o que funciona integrado. Né, então assim
,tu vai funcionando tu tens que ter uma peça para tudo funcionar.
Engrenagens de um sistema que funciona coordenado assim... Né, então foi
isso que a gente pensou... Num sistema onde a gente pudesse ampliar o
quanto a gente quisesse. Né, para a atenção básica, para as moradias, para
o hospital... Nós pensamos assim “bom, é tudo integrado, nós temos que
trabalhar integrados”. Nós formamos né, na verdade uma rede. Mais no
sentido assim... O que que gerou isso né. Saiu dessa coisa assim de ter que
trabalhar integrado, senão tu não vais funcionar. Então foi essa a nossa idéia,
um sistema só funciona se ele está integrado. Se tu tiras uma parte ele não
funciona. Por exemplo o nosso corpo, tu tiras uma parte e ele não funciona,
deixa de ser sistema. Não funciona integrado, ou funciona com deficiências,
ou né... Então foi por isso que a gente pensou, que tinha que ser uma coisa
integrada. (CAEIRO)
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. REFERÊNCIAS
ANDERY, Maria Amália et al. Para compreender a ciência. São Paulo: EDUC,
1988. 446p.
________, Gastão Wagner de Souza. Saúde Paidéia. 3ª ed. São Paulo: Hucitec,
2007. 185p.
CHAUI, Marilena. O que é ideologia? 15ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984a. 47p.
COSTA, Mark Napoli. Por uma sociedade sem manicômios: buscando a direção. In:
Loucura, Ética e Política: escritos militantes. Conselho Federal de Psicologia
(org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 45-48
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
320p.
DÓRIA, Og. Município – o poder local. São Paulo: Página Aberta, 1992. 86p.
________, Michel. A Microfísica do Poder. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
295p.
KINZO, Maria D’Alva. Partidos, eleições e democracia no Brasil pós 1985. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.19 n.54, 2004. p.23-40
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Quê Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978. 149p.
MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril, 1974
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. 782p.
ZIMERMAN, David. E. Bion da Teoria à Prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
295p.
114
ANEXOS
115
ANEXO A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado para participar de uma pesquisa que pretende relatar o
processo democrático envolvido na promulgação da legislação municipal de saúde mental do
município de Alegrete/RS e a importância dessa legislação para as ações e planejamentos em
saúde mental do município.
Através deste estudo esperamos registrar o processo de construção da legislação
municipal em saúde mental de Alegrete.
Sua participação não é obrigatória, mas é muito importante para nós. Gostaríamos que
respondesse a algumas perguntas sobre a sua participação nesse processo, sua opinião
acerca do tema ao avaliar os 12 anos que a legislação municipal de saúde mental possui e o
seu processo de criação no ano de 1996.
Por não ser obrigatória sua participação, você pode desistir de participar a qualquer
momento da pesquisa. Não haverá nenhum prejuízo a quem quiser contribuir e nem para
quem se recusar, bem como a participação na pesquisa não acarretará nenhum tipo de custo
de qualquer espécie.
Caso aceite participar, a entrevista será agendada em horário e local que melhor lhe
convier, sendo realizada a gravação da mesma para garantir a integridade das informações.
Garantimos total segredo e anonimato, ou seja, sua identidade não será revelada na pesquisa.
Os dados poderão ser apresentados em congressos e a outros estudantes sem que saibam
quem respondeu a pesquisa.
Uma cópia desta autorização ficará com você.
Eu, Jonathan Gonçalves Filippon, estou à disposição para esclarecer qualquer dúvida.
_________________________________
Jonathan Gonçalves Filippon
______________________________
Alegrete/RS,___/___/____
CONTATOS:
Jonathan Gonçalves Filippon ou Profa. Dra. Toyoko Saeki
Seção de Pós Graduação da EERP-USP – Programa de Enfermagem Psiquiátrica
Avenida Bandeirantes, 3.900 – Ribeirão Preto/SP
(16)8136-1411 / (51) 8208-7535 / (51)3344-4655 - [email protected]
116
ANEXO B
ROTEIRO ENTREVISTA USUÁRIO
ANEXO C
ROTEIRO ENTREVISTA TRABALHADOR EM SAÚDE
ANEXO D
ROTEIRO ENTREVISTA GESTOR DA ÉPOCA
ANEXO E
ROTEIRO ENTREVISTA GESTOR ATUAL
ANEXO F