Afeicoes Religiosas Trecho

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Edwards acreditava que a alma tem duas faculdades: o entendimento e a inclina-

ção, também chamada de vontade. As afeições estão ligadas à última e, como ele
mesmo as de_ ne, “são as atividades mais pujantes e sensatas da inclinação e da
vontade da alma”. Com notável erudição e respaldo bíblico, Edwards mostra que
essas afeições santas são essenciais à santidade e à religião, tão indispensáveis a
ponto de ele afirmar que aqueles contrários a essa proposição deveriam jogar suas
Bíblias no lixo. Mas, ao mesmo tempo que certas afeições devem ser cultivadas, o
autor defende que outras precisam ser constantemente rejeitadas e mortificadas.
E é exatamente isso que esse livro nos ensina a fazer.
Justin Taylor, The Gospel Coalition

“Examinai a vós mesmos, para ver se estais na fé.” Podemos dizer que a reco-
mendação de Paulo em sua Segunda Carta aos Coríntios foi uma das principais
inspirações de Edwards para escrever Afeições religiosas, um livro que a cada página
encoraja os leitores a pôr em prática o conselho do apóstolo. De acordo com
Edwards, os verdadeiros cristãos manifestam seus corações regenerados por meio
de anseios e desejos divinos, como o amor e a alegria. Ore enquanto ler esse livro
e você encontrará muito para iluminar sua mente e aquecer seu coração. Na ver-
dade, você vai se deparar com verdades que lhe oferecerão alegria a partir de agora
e durante toda a eternidade.
Mark Talbot, PhD, professor-adjunto de Filosofia na Wheaton College e um
dos autores do livro Suffering and the sovereignty of God
u
Sumário
u
Prefácio ........................................................................................................................ 9

Primeira parte
Sobre a natureza das afeições e sua importância na religião ....................... 17

Segunda parte
Não há sinais inquestionáveis de que as afeições religiosas sejam
cheias da graça nem de que não sejam ......................................................... 51
I. As afeições religiosas serem mui grandiosas ou de nível elevado não significa
nem uma coisa nem outra ............................................................................... 52

II. As afeições religiosas terem fortes efeitos no corpo não significa


que tenham a natureza da religião verdadeira nem que não a tenham ............. 56

III. As afeições religiosas capacitarem aqueles que as têm a falar com eloquência,
fervor e prodigalidade das coisas da religião não significa que sejam cheias
da graça nem que não sejam ............................................................................ 60

IV. As afeições religiosas não serem produzidas nem estimuladas mediante


artifícios e habilidades das pessoas não significa que sejam cheias da graça
nem que não sejam .......................................................................................... 62

V. As afeições religiosas virem acompanhadas de passagens das Escrituras


trazidas à mente de modo incomum não é nem deixa de ser indicação
de que tais afeições sejam de fato santas e espirituais ...................................... 67

VI. As afeições religiosas terem aparência de amor não é prova de que


sejam da salvação nem de que não sejam ......................................................... 70

VII. As pessoas terem afeições religiosas de várias espécies, todas juntas,


não é suficiente para definir se elas têm alguma afeição da graça..................... 72

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6 Afeições religiosas

VIII. Consolo e alegria acompanharem convicção e despertamento de


consciência, em determinada ordem, nada pode definir seguramente
sobre a natureza das afeições ........................................................................... 75

IX. As afeições religiosas predisporem as pessoas a dedicar muito tempo à


religião e se envolverem com zelo nas obrigações exteriores do culto não
é nenhum sinal seguro de que as afeições dessas pessoas tenham a natureza
da religião verdadeira, nem de que não a tenham ............................................ 87

X. As afeições religiosas causarem forte disposição nas pessoas para louvar


e glorificar a Deus com os lábios não permite saber nada ao certo sobre
sua natureza ..................................................................................................... 89

XI. As afeições religiosas proporcionarem às pessoas confiança extraordinária


de que a experiência que estão vivendo é divina e de que elas se encontram
em boa condição não é sinal de que essas afeições sejam certas nem
de que não sejam ............................................................................................. 91

XII. As manifestações exteriores das afeições religiosas e seus relatos


serem mui tocantes e agradáveis para os piedosos autênticos e assim lhes
conquistar o coração e a generosidade não permite concluir nada acerca da
natureza dessas afeições ................................................................................. 104

Terceira parte
Apresentam-se os sinais característicos das afeições genuinamente
santas e cheias da graça .............................................................................. 115
I. As afeições verdadeiramente espirituais e cheias da graça nascem das
influências e operações espirituais, sobrenaturais e divinas no coração........... 119

II. O primeiro fundamento objetivo das afeições da graça é a natureza de


amabilidade e excelência transcendentais das coisas divinas tais como
estas são em si mesmas, e não alguma suposta relação que tenham com
o indivíduo ou com seu próprio interesse ...................................................... 158

III. As afeições autenticamente santas se assentam sobretudo na amabilidade


da excelência moral das coisas divinas ........................................................... 172

IV. As afeições da graça nascem da mente iluminada rica e espiritualmente


para entender e perceber as coisas divinas ..................................................... 184

V. As afeições verdadeiramente oriundas da graça são acompanhadas de


sensata convicção espiritual do juízo, da realidade e da certeza das
coisas divinas ................................................................................................. 208

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Sumário 7

VI. As afeições da graça são acompanhadas da humilhação, ou mortificação,


evangélica ...................................................................................................... 226

VII. Outro ponto em que as afeições da graça se distinguem das outras


é o serem acompanhadas de mudança de natureza ........................................ 253

VIII. As afeições genuinamente oriundas da graça diferem das falsas e ilusórias


porque são acompanhadas do espírito semelhante ao do cordeiro e
da pomba e da índole de Jesus Cristo. Em outras palavras, elas geram e
promovem um espírito de amor, mansidão, tranquilidade, perdão e
misericórdia como o de Cristo ...................................................................... 258

IX. As afeições cheias da graça abrandam o coração e são acompanhadas da


ternura de espírito cristã ................................................................................. 271

X. Outro ponto que difere as afeições verdadeiramente santas e cheias


da graça das afeições falsas é a beleza da simetria e das proporções ............... 277

XI. Outra diferença importante e muito característica entre as afeições da


graça e as de outra natureza é que, quanto mais elevadas as afeições
da graça, maiores são o apetite e o anseio da alma pelo aumento de
realizações espirituais. As falsas afeições, pelo contrário,
bastam-se a si mesmas. .................................................................................. 288

XII. As afeições santas e cheias da graça têm ação e frutos na prática cristã;
isto é, têm sobre o crente que as vive influência e poder capazes de fazê-lo
adotar, como prática e profissão de vida, uma conduta absolutamente
harmoniosa com as normas cristãs e por elas regida. ..................................... 293

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u
Prefácio
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N
ão há pergunta mais importante para a humanidade, nem mais pre-
ocupante para cada indivíduo bem responder, do que estas: “Quais
as características próprias de quem tem o favor de Deus e recebeu o
direito às recompensas eternas que ele concede?”. Ou, o que vem a ser o mes-
mo: Qual é a natureza da verdadeira religião? Além disso, em que consistem os
sinais característicos dessa virtude e santidade aceitáveis aos olhos de Deus?”.
A despeito da sua importância e da luz clara e intensa com que a Palavra de
Deus nos orienta nessa questão, não há nenhum outro tema em que os cristãos
professos mais divirjam entre si. Seria interminável enumerar a variedade de
opiniões sobre esse assunto que divide o mundo cristão, o que põe em evidência
a veracidade da declaração de nosso Salvador: “A porta é estreita, e o caminho
que conduz à vida, apertado, e são poucos os que a encontram”.
A reflexão sobre essas questões há muito tem me levado a perscrutar aten-
tamente o tema com o máximo zelo e diligência de que tenho sido capaz e com
toda a precisão possível na busca e investigação. Trata-se de um assunto a que
minha mente tem se dedicado particularmente desde os primeiros dias em que
comecei o estudo de teologia. Mas o juízo quanto ao êxito de minhas perquiri-
ções deve ser deixado ao critério do leitor deste tratado.
Tenho consciência de quanto é difícil julgar com isenção o objeto deste
discurso em meio à poeira e à fumaça de tal estado de controvérsia em que ora
se encontra a nação sobre problemas dessa natureza. Assim como é penoso
escrever sem parcialidade, também é difícil ler sem parcialidade. Muitos pro-
vavelmente terão o espírito ferido ao descobrir condenada aqui grande parte do
que diz respeito às afeições religiosas. Já outros talvez se abalem com indignação
e desprezo ao encontrarem aqui tanta coisa justificada e demonstrada. É possí-
vel também que alguns estejam prontos para me acusar de incoerente comigo

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10 Afeições religiosas

mesmo por aprovar com tal zelo algumas coisas e condenar com o mesmo zelo
outras tantas. Conforme vim a descobrir, tais são as objeções que alguns têm-
-me apresentado desde o início de nossas últimas controvérsias sobre a religião.
É difícil ser amigo zeloso e sincero do que há de bom e glorioso nas recentes e
extraordinárias manifestações e muito regozijar-se nisso; e perceber, ao mesmo
tempo, a tendência maligna e perniciosa do que é mau e opor-se a isso sincera-
mente. Todavia, estou plena e humildemente convicto de que jamais estaremos
no caminho da verdade, nem trilharemos uma via aceitável por Deus e não
estaremos dispostos a promover o progresso do reino de Cristo enquanto não
agirmos assim. Na verdade, há algo de muito misterioso nisto, que tanto bem
e tanto mal se mesclem na igreja de Deus, bem como misterioso é, e intriga e
espanta muitos bons cristãos, haver algo tão divino e precioso quanto a graça
salvadora de Deus e a nova e divina natureza habitando no mesmo coração,
ao lado de tanta corrupção, hipocrisia e iniquidade de um santo. No entanto,
as duas coisas são tão misteriosas quanto reais, e nenhuma é novidade nem
raridade. Não é nada novo que, numa época de grande avivamento da religião
verdadeira, prevaleça muito de falsa religião. Também não é novidade surgirem
nesses períodos multidões de hipócritas no meio dos santos genuínos. Assim foi
na grande reforma e avivamento da religião dos dias de Josias — como se lê em
Jeremias 3.10 e 4.3,4 — e também na desmedida apostasia que houve na terra
logo após o seu reinado. O mesmo ocorreu no profuso derramar do Espírito
sobre os judeus nos dias de João Batista, como se observa na enorme apostasia
desse povo logo depois de um despertar tão amplo e das efêmeras consolações
e alegrias religiosas de tantos: “... quisestes alegrar-vos por um pouco de tempo
com a sua luz” (Jo 5.35). Assim foi na notável comoção das multidões com a
pregação de Jesus Cristo: muitos foram os chamados na ocasião, mas poucos,
escolhidos. Da multidão despertada e tocada pela pregação e que vez ou outra se
mostrava fortemente comprometida, cheia de admiração por Cristo e enlevada
de alegria, poucos foram os verdadeiros discípulos que suportaram o golpe das
grandes provações subsequentes e resistiram até o final. Muitos eram como o
terreno pedregoso ou cheio de espinhos, mas relativamente poucos foram como
o solo bom. De toda a colheita, boa parte era palha, que o vento depois disper-
sou; e o monte de trigo que restou era relativamente pequeno, como mostra
com largueza a história do Novo Testamento. O mesmo aconteceu no gran-
de derramamento do Espírito nos dias dos apóstolos, como se lê em Mateus
24.10-13; Gálatas 3.1; 4.11,15; Filipenses 2.21; 3.18,19; as duas epístolas aos

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Prefácio 11

Coríntios; e muitas outras passagens do Novo Testamento. Também foi assim


na grande Reforma contra o papado. Nota-se claramente que em períodos de
grande avivamento da religião, de vez em quando, ocorre à igreja visível de
Deus o mesmo que às árvores frutíferas na primavera. Há miríades de flores, to-
das belas e saudáveis e de aparência promissora de novos frutos; muitas, porém,
pouco duram, logo caem e jamais chegam à maturidade.
Não se deve supor, no entanto, que sempre será assim, pois, embora jamais
exista neste mundo nem nos santos aqui pureza absoluta, completamente livre
de qualquer mistura de corrupção, nem ainda na igreja de Deus, sem nenhu-
ma mescla de hipócritas com santos — ou a combinação de religião falsifi­
cada e manifestações ilegítimas da graça com a religião autêntica e a santidade
verdadeira —, é evidente que chegará à igreja de Deus uma época de pureza
muito maior do que houve em eras passadas, conforme está claro nestes textos
da Escritura: Isaías 52.1; Ezequiel 44.6,7; Joel 3.17; Zacarias 14.21; Salmos
69.32,35,36; Isaías 35.8,10; 4.3,4; Ezequiel 20.38; Salmos 37.9,10,21,29. Uma
importante razão para ser assim é que, nessa ocasião, Deus concederá a seu povo
muito mais luz para distinguir entre a verdadeira religião e suas falsificações.
“Ele se assentará como refinador e purificador de prata; purificará os levitas e os
refinará como ouro e como prata, até que levem ao Senhor ofertas com justiça”
(Ml 3.3); juntamente com o versículo 18, continuação da profecia do mesmo
bem-aventurado período: “Então vereis outra vez a diferença entre o justo e o
mau; entre o que serve a Deus e o que não o serve”.
É por causa da mistura de religião falsificada com a verdadeira, mistu-
ra não percebida nem distinguida, que o Diabo tem tido, desde o início até
hoje, a maior vantagem contra a causa e o reino de Cristo. É sobretudo por
isso que o Maligno tem prevalecido contra todos os avivamentos da religião
que já aconteceram desde o estabelecimento da igreja cristã. Com tal artifí-
cio, ele prejudica muito mais a causa do cristianismo, durante a era apostólica
e depois dela, do que todas as perseguições, tanto as promovidas por judeus
quanto por pagãos. Em todas as suas epístolas, os apóstolos mostram-se bem
mais preocupados com a primeira perversidade do que com esta última. Foi
assim que Satanás prevaleceu contra a Reforma iniciada por Lutero, Zuínglio
e os demais reformadores, obstando o seu progresso e fazendo-a cair em des-
graça dez vezes maior que todas as cruéis, sanguinárias e antes não conhecidas
perseguições da igreja de Roma. Foi com esse expediente maior que o Maligno
prevaleceu contra os avivamentos da religião ocorridos em nossa nação desde

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12 Afeições religiosas

a Reforma. Assim foi que triunfou contra a Nova Inglaterra, extinguindo o


amor e deteriorando a felicidade de seus defensores cerca de cem anos atrás.
E creio ter tido oportunidade suficiente de ver com clareza que desse modo
o Diabo prevaleceu contra o recente grande avivamento da religião na Nova
Inglaterra, tão feliz e promissor no início. É essa, com todas as evidências, a
principal vantagem que Satanás teve sobre nós; com esse expediente ele nos
derrotou. Por causa disso, a Filha de Sião nesta terra agora jaz ao chão, em
circunstâncias tão dignas de pena como ora a contemplamos: com as vestes
rasgadas, o rosto desfigurado, a nudez exposta, as pernas quebradas, enchar-
cada no sangue das próprias feridas e abso­lutamente incapaz de se levantar, e
tudo isso logo depois de suas tão recentes alegrias e esperanças: “Sião estende
as mãos, não há quem a console; o Senhor ordenou que os vizinhos de Jacó
se tornassem seus inimigos; Jerusalém se tornou uma coisa impura entre eles”
(Lm 1.17). Vi o Diabo prevalecer desse mesmo modo contra dois grandes avi-
vamentos da religião neste país. Satanás continua agindo com a humanidade
assim como agiu desde o princípio. Surgindo como aliado do estado feliz e
paradisíaco em que estavam nossos primeiros antepassados e fingindo elevar
esse estado a níveis ainda mais altos, triunfou sobre eles e os lançou fora do
Paraíso, pondo fim repentino em toda a felicidade e glória que desfrutavam.
Assim também a mesma serpente astuciosa, que com sua sutileza enganara
Eva, desviando-nos da simplicidade que há em Cristo, prevaleceu de repente
privando-nos da bela esperança que desfrutamos algum tempo atrás — uma
espécie de estado paradisíaco da igreja de Deus na Nova Inglaterra.
Depois que a religião é avivada na igreja de Deus, e surgem os inimigos, os
mais empenhados na defesa da causa normalmente têm seus pontos mais vulne-
ráveis expostos ao perigo. Com a atenção toda voltada para enfrentar a oposição
que se manifesta perante eles e sem dar a devida e zelosa atenção a seus flancos,
o Maligno os ataca por trás, sem ser visto, aplica-lhes uma punhalada fatal e
tem oportunidade de aplicar um golpe mais eficaz e ferir mais fundo, pois ataca
à vontade, livre de toda resistência ou guarda.
Portanto, é provável que continue sendo assim na igreja, toda vez que a
reli­gião for vivificada de modo extraordinário, enquanto não aprendermos a
dis­tinguir com lucidez entre a verdadeira e a falsa religião, entre as afeições e
experiências salvadoras e as multiformes ostentações de aparência esplendorosa
com que são falsificadas. Tais falsificações, quando não discernidas, amiúde têm
consequên­cias extremamente pavorosas. Com isso, o Diabo se satisfaz, fazendo

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Prefácio 13

que a adoração devida a Deus pelas multidões, com a intenção de ser-lhe um


culto agradável e aceitável, seja acima de tudo abominável ao Senhor. Com
essas falsificações, o Maligno engana multidões acerca do estado da alma de
cada um, fazendo as pessoas pensarem que são alguma coisa, quando não são
nada. Desse modo, arruína-as eternamente; e não apenas isso, mas também
gera em muitos a firme certeza de sua eminente santidade, conquanto, aos olhos
de Deus, sejam os hipócritas mais abjetos. Por esses meios, ele sufoca e fere de
diversas maneiras a religião no coração dos santos, obscurecendo-a e defor­
mando com misturas corrompidas, fazendo que suas afeições religiosas se
degenerem deploravelmente, e às vezes por um período considerável asseme-
lhem-se ao maná que criou vermes e ficou cheirando mal; além de enredar e
perturbar mise­ravelmente o entendimento de outros santos e os expor a sérias
dificuldades e tentações, enredando-os numa selva da qual não conseguem
sair. Com tais falsificações, Satanás anima e enche de vigor o coração dos
inimigos declarados da religião, fortalece-lhes as mãos, abastece-os de armas
e lhes fortifica o castelo; ao mesmo tempo, a religião e a igreja de Deus ficam
expostas a eles como uma cidade sem muros. Com isso, ele faz os homens
praticarem a iniquidade pensando que cultuam a Deus, e assim pecarem sem
limites, com fervorosa intrepidez e zelo, com todas as forças. Desse modo, ele
leva até os amigos da religião a fazer inadvertidamente o trabalho dos inimi-
gos, destruindo a religião de um modo muito mais eficiente que os inimigos
declarados, julgando que estão fazendo-a progredir. Assim o Diabo dispersa o
rebanho de Cristo e os joga uns contra os outros com intenso ardor espiritual,
na intenção de ser zelosos por Deus; e a religião degenera-se pouco a pouco
em disputas vãs. Em meio ao conflito, Satanás desvia as duas partes para longe
do caminho reto, conduzindo-as a extremos opostos, uma à direita e outra à
esquerda, conforme as inclinações de cada uma, ou conforme são mais facil-
mente levadas e agitadas, até que a via média correta seja quase totalmente
ignorada. Nessa confusão, o Diabo tem a excelente oportunidade de promover
seus próprios interesses e os fortalecer de modos incontáveis, tomando em suas
próprias mãos o governo de todos e realizando sua vontade. Pelo que se vê das
terríveis consequências de não distinguir a religião falsa da verdadeira, o povo
de Deus em geral passa a ter a mente desequilibrada e perturbada nas coisas da
religião sem saber onde firmar o pé, nem o que pensar e fazer. Assim, muitos
são induzidos a duvidar de que a religião valha mesmo a pena; e a heresia, a
infidelidade e o ateísmo prevalecem com sucesso.

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14 Afeições religiosas

Portanto, cabe-nos a gigantesca incumbência de nos empenhar ao máximo


para discernir com clareza, definir e demonstrar em que consiste a verdadeira
religião. Enquanto não fizermos isso, é de esperar que os grandes avivamentos
da religião não durem muito tempo. Enquanto não fizermos isso, pouco há que
esperar de nossos apaixonados debates em conversas e nos escritos, sem saber
com plena clareza pelo que devemos lutar.
Meu intento é dar minha modesta contribuição e o melhor do meu traba-
lho (embora diminuto) para este fim no tratado a seguir, deixando claro, po-
rém, que minha intenção atual é um pouco diferente da que publiquei antes.
Anteriormente eu pretendia mostrar os sinais característicos da obra do Espírito de
Deus, entre eles suas operações comuns e os salvíficos, mas agora almejo mos-
trar a natureza e os sinais das operações da graça do Espírito de Deus, mediante
os quais elas devem distinguir-se de tudo quanto afete a mente dos homens
que não seja de natureza salvadora. Se tiver êxito em meu objetivo, com um
pouco de tolerância, espero que ele venha a promover os interesses da religião.
Além disso, quer eu consiga lançar alguma luz sobre essa matéria, quer não, e
embora minha tentativa corra o risco de ser reprovada nesses dias capciosos e
gravemente críticos, confio que o Deus cheio de misericórdia e graça aceitará a
sinceridade de meu empenho; conto também com a franqueza e as orações dos
verdadeiros discípulos do manso e bondoso Cordeiro de Deus.

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PRIMEIRA PARTE
u

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Sobre a natureza das afeições
e sua importância na religião
u
Pois, sem tê-lo visto, vós o amais e, sem vê-lo agora, crendo, exultais
com alegria inexprimível e cheia de glória (1Pe 1.8).

C
om essas palavras, o apóstolo retrata o estado de espírito dos cristãos a
quem escreve, então sujeitos a perseguições. É a essas perseguições que
ele se refere nos dois versículos anteriores, quando fala da provação da
fé desses crentes e das múltiplas provações pelas quais estão sendo afligidos.
Tais provações constituem um benefício triplo para a verdadeira religião,
por elas a sua verdade se manifesta, e ela se mostra de fato a religião genuína.
Acima de tudo, as provações costumam distinguir entre a verdadeira e a falsa
religião e fazer que a diferença entre elas se manifeste com clareza meridiana.
Por isso têm o nome de provações no versículo imediatamente anterior ao texto e
em outras inumeráveis passagens. Elas põem à prova a fé e a religião dos profes-
sos para verificar de que tipo são, assim como o que parece ouro é provado pelo
fogo e se manifesta verdadeiro ou falso. A fé do cristão genuíno, assim testada
e comprovada verdadeira, redunda em “louvor, glória e honra”, como afirma o
versículo precedente.
Desse modo, as provações são um benefício a mais para a verdadeira reli-
gião, pois não somente revelam sua verdade, mas também lhe fazem manifestar
extraordinariamente a genuína beleza e atratividade. A verdadeira virtude jamais
parece tão bela como quando é mais oprimida, e a excelência divina do verdadei-
ro cristianismo nunca se mostra tão benéfica como quando passa pelas maiores
provas. É nessas ocasiões que a fé autêntica se mostra muito mais preciosa que o
ouro. Também por causa disso ela redunda “em louvor, glória e honra”.

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18 Afeições religiosas

Mais uma vez, outro benefício que as provações trazem à religião verda-
deira está em purificá-la e desenvolvê-la. As provações não só manifestam a
religião verdadeira, mas também costumam refiná-la e livrá-la das misturas de
falsidade — que a sobrecarregam e obstruem —, de tal modo que nada mais
reste de espúrio, mas somente o que é verdadeiro. Elas revelam da melhor ma-
neira possível a atratividade natural da verdadeira religião, como já se disse. E
não somente isso, mas também costumam aumentar-lhe a beleza, proclaman-
do-a e confirmando-a, tornando-a mais cheia de vida e vigorosa e purificando-a
de tudo quanto lhe obscurece o brilho e a glória. Assim como o ouro provado no
fogo é purificado das ligas com outros metais e de todos os refugos, tornando-se
mais sólido e mais belo, também a fé verdadeira, provada no fogo como o ouro,
torna-se mais preciosa e redunda “em louvor, glória e honra”. No versículo que
antecede o texto, o apóstolo parece ter em vista cada um desses benefícios que
as perseguições representam para a verdadeira religião.
Nessa passagem, o apóstolo observa como a religião verdadeira se manifes-
tava nos cristãos perseguidos a quem ele escreve e de que maneira os benefícios
da perseguição se mostravam neles; ou que modo de funcionamento da religião
verdadeira atuava neles, de sorte que, sob a perseguição, tal religião revelava-
-se autêntica e patenteava-se absolutamente na beleza e atratividade genuínas,
mostrando-se também aumentada e purificada; e tudo isso para “redundar em
louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo”. Naqueles cristãos em sofri-
mento, havia duas espécies de atuação, ou exercício, da religião verdadeira, para
as quais o apóstolo chama a atenção no texto, nas quais se viam tais benefícios.

1. Amor por Cristo. “Pois, sem tê-lo visto, vós o amais.” O mundo se per-
guntava que estranho princípio era esse que os levava a se expor a tamanhos so-
frimentos, a abrir mão das coisas visíveis, renunciar a tudo quanto lhes era caro e
agradável, qual era o objeto do sentido. Para as pessoas do mundo ao seu redor,
era como se eles estivessem fora de si, como se tivessem ódio por si mesmos. Essas
pessoas não conseguiam ver nada que as induzisse a sofrer assim, nem que as fi-
zesse passar por tais provações. Contudo, apesar de não haver nada visível, nada
que o mundo pudesse enxergar, nem nada que os próprios cristãos vissem com
os olhos físicos e, portanto, os inspirasse e sustentasse, ainda assim eles tinham
um princípio sobrenatural de amor por algo invisível; amavam Jesus Cristo, pois
enxergavam com olhos espirituais aquele que o mundo não enxergava, a quem
eles mesmos jamais tinham contemplado com os olhos físicos.

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