101 Cancoes Que Tocaram o Brasil - Nelson Motta

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CONSULTOR ICONOGRÁFICO: Antônio Carlos Miguel
PESQUISA ICONOGRÁFICA: Isabela Mota
TRATAMENTO DE IMAGENS: Trio Studio
FOTO DO AUTOR: © Dani D’Accorso
ADAPTAÇÃO PARA E-BOOK: Hondana

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M875c Motta, Nelson

101 canções que tocaram o Brasil [recurso eletrônico] / Nelson


Motta. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016.
recurso digital

Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-5608-013-4 (recurso eletrônico)

1. Cultura – Brasil. 2. Música. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

CDD: 306

16-35646
CDU: 316.74

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GMT Editores Ltda.


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Em memória de minha mãe, Xixa,

que me ensinou a amar a música,

e do DJ Dom Pepe, amigo e parceiro

de música e alegria a vida inteira.


BRASIL DE TODOS OS CANTOS

Na proa, sob a cruz estampada no velame, o órgão de


frei Maffeo modulava uma melodia sacra – sinuosa e
solene. Na praia, sob o dossel da floresta, os tupis
chacoalhavam seus maracás; os guizos em seus
tornozelos balançando no compasso da criação. Pouco
depois, um marujo dedilhava a gaita enquanto
Bartolomeu Dias dava uma cambalhota (ou “salto real”)
nas areias faiscantes de Porto Seguro, surpreendendo a
indiada. Mas não tanto quanto os nativos iriam estarrecer
os portugueses tão logo soprassem suas flautas: elas
eram feitas das tíbias dos inimigos que eles haviam
devorado.
A trilha sonora do descobrimento do Brasil foi
polimorfa, polifônica, ritualística e, é claro, antropofágica.
Soou, desde o primeiro dia, como uma amostra rumorosa
do que estava por vir: o nascimento de uma nação
destinada a se tornar uma das mais musicais do mundo,
na qual todos os cantos, todos os ritmos e todas as vozes
afinaram-se para fazer com que o planeta, mais do que
somente girar, bailasse... Claro que, naquele alvorecer,
quando lusos e tupiniquins cantaram e dançaram juntos,
ao som do mar e à luz do céu profundo, ainda faltava o
ingrediente primordial: os ritmos, as danças e os cânticos
que viriam da África. Quando eles chegaram – em meio
às indizíveis infâmias do tráfico de escravos –, a alquimia
sonora se completou e o Brasil forjou a música que,
desde então, tem ajudado o mundo a não ser tão ruim da
cabeça e doente do pé.
Mas ainda seria preciso esperar quase três séculos
para que o lundu africano e a modinha portuguesa
concretizassem seu flerte, misturando a casa-grande e a
senzala para dar à luz o bendito fruto do maxixe.
Consubstanciou-se assim o mistério do samba – ou
“semba”: o santo batuque, a dança lasciva, o ritmo
hipnótico, a pulsação do bumbo na mão dos bambas,
umbigo contra umbigo, batendo no ritmo do coração.
E, no entanto, tudo era só ritmo, dança e celebração –
não eram canções no sentido pleno da palavra. As
canções, específicas e únicas, são fruto direto e dileto do
século do individualismo e da solidão – o breve e terrível
século XX. E foi quando as canções entraram em cena
que a música brasileira se tornou a mais perfeita
tradução do país: seu retrato mais fiel, seu mais exato
reflexo. Nelson Motta, o branco gato de alma negra,
homem de sete vidas e sete instrumentos, é um maduro
filho do século e um típico fruto do Brasil moderno. Até
porque faz cinco décadas que entrou em cena (em 1966,
com sua “Saveiros”). Quase 50 canções depois, tendo
vivido frenéticos dancing days e amenas noites tropicais,
Nelsinho, sabendo que a vida vem em ondas como o
mar, mergulhou no cancioneiro nacional para forjar um
cânone – o seu cânone, pessoal e intransferível, mas
pronto para ser apropriado por quem quer que o queira.
E foi assim que se alinharam estas 101 canções que
tocaram o Brasil.
O desfile se inicia com uma marcha-rancho, abrindo
alas para Dona Chiquinha Gonzaga passar antes do
século raiar (a música é de 1899). Mas logo Nelson Motta
vai ao telefone, se liga na era do rádio, sintoniza a TV,
passa pelo beco das garrafas e pelo clube da esquina,
vive a vida sobre as ondas numa tarde em Itapuã,
assobia canções do exílio, canções de protesto e canções
do amor sem fim, flertando com a garota de Ipanema até
pintar sua aquarela do Brasil com a cor do pecado. Tudo
com a luxuosa ajuda do pandeiro de Antônio Carlos
Miguel, seu fiel escudeiro nessa jornada musical.
Quando a última letra se vai e vira-se a derradeira
página, os sons ainda ecoam, convidando o leitor a
entrar na parceria e recordar a trilha sonora de sua
própria vida. Para, assim, cantarolar as canções que
tornaram o Brasil e o mundo um lugar muito mais
afinado.

— Eduardo Bueno

Curador da coleção Brasil 101


Ó abre alas
Chiquinha Gonzaga, 1899

Chiquinha Gonzaga: pianista e maestrina, compôs a primeira marchinha de


carnaval

Mais de um século depois do seu primeiro carnaval, “Ó


abre alas” continua animando bailes, tocada em bandas
e blocos, lembrada no palco e nas telas. Carnavalesca
em qualquer época do ano, ela abre esta lista carregada
de simbolismos: inaugura tanto a canção popular
brasileira quanto um novo gênero, as marchinhas de
carnaval; e foi composta por uma mulher revolucionária,
ainda no século XIX. É certamente uma das que mais
tocaram a alma brasileira.
Quando fez a marcha-rancho “Ó abre alas”, a também
abolicionista, republicana, feminista avant la lettre e
pioneira na luta pelos direitos autorais Chiquinha
Gonzaga já era reconhecida como compositora, pianista
e maestrina. Ao lado de outro mestre, Joaquim Callado,
foi uma das inventoras do choro – a forma brasileira de
tocar polca, valsa, habanera, tango e demais estilos
internacionais da época. Antes do surgimento do disco
gravado e do rádio, suas músicas eram sucesso nos
teatros e nas partituras para piano que ela mesma
vendia nas ruas do Rio de Janeiro.
Para que esses feitos e tantos outros pudessem
acontecer, Francisca Edwiges Neves Gonzaga (1847-
1935) teve que bater de frente com a sociedade
conservadora da época. Rompeu com o primeiro marido –
e perdeu a guarda dos filhos –, casou, se separou e
perdeu a guarda de outro filho de novo. Até que, em
1899, ano em que compôs “Ó abre alas”, sua vida
mudou, e ela abriu alas para o amor passar: com 52
anos, passou a viver com um jovem de 16, aprendiz de
música, que foi seu amor e seu marido até o fim da vida,
aos 87 anos, em 1935.
No início de 1899, Chiquinha morava no bairro carioca
do Andaraí e, certa tarde, brincando ao piano, ouviu o
som de um ensaio na sede do cordão Rosa de Ouro,
vizinha à sua casa. Sucesso dos salões e dos teatros, ela
já tinha feito polcas e tangos carnavalescos, mas, dessa
vez, seduzida pelo ritmo percussivo e pelo canto festivo,
resolveu aproveitar o grito de “abre alas”, que era
comum entre os cordões, para criar o que chamou de
marcha-rancho. Os ranchos e os cordões eram os
principais animadores do carnaval de rua no Rio do fim
do século XIX, equivalente aos blocos que, hoje, voltaram
e cresceram em progressão geométrica tomando a
cidade. O cordão era a opção para quem não podia
frequentar os salões e os bailes da sociedade – ou para
quem sabia que a folia verdadeira estava na rua.
Nos primeiros anos, a música ficou restrita aos foliões
do Rosa de Ouro. No início de 1904, Chiquinha adaptou
“Ó abre alas” para uma peça teatral e, já no carnaval
daquele ano, transbordou do palco para as ruas e a boca
do povo. O sucesso abriu alas para as marchinhas,
gênero que continua vivo no Brasil, e também para o
choro e o samba. Sua primeira gravação foi feita em
1911, pela Banda da Casa Faulhaber & Co., num disco de
78 rpm, e classificada no rótulo como “dobrado
carnavalesco”.
Pelo telefone
Donga e Mauro de Almeida, 1916

Donga foi mais rápido e registrou como seu “Pelo telefone”, criado
coletivamente numa roda de samba na casa de Tia Ciata

Houve quem afirmasse que aquilo era mais um maxixe


do que um samba, mas este foi o gênero usado para
classificar “Pelo telefone” nos rótulos dos dois discos
Odeon gravados em dezembro de 1916, tanto pelo
cantor Bahiano quanto pela Banda da Casa Edison. Além
dessa ressalva, pesquisadores já encontraram registros
de pelo menos dois outros 78 rpm editados antes
trazendo o então recém-nascido gênero no rótulo. Mas,
como ambos passaram em branco, o crédito de “primeiro
samba gravado” ficou com o agora centenário “Pelo
telefone”. Sucesso imediato na época, este samba de
terreiro, nascido numa roda no fundo do quintal da casa
da lendária Tia Ciata, estabeleceu o novo padrão que
passou a vigorar nos carnavais do Rio. Após as
marchinhas, o samba pedia passagem para não mais sair
de cena.
Se o título de “o primeiro samba gravado” é
controverso, a autoria, mais ainda. Em novembro de
1916, Donga (Ernesto dos Santos, 1890-1974) entrou
com um pedido de registro na Biblioteca Nacional da
partitura de “Pelo telefone”, classificado pelo próprio
como “samba”. Mas, na roda de improviso na qual a
composição nasceu, também teriam estado, entre outros,
Germano Lopes, João da Baiana, Pixinguinha, João da
Mata, Caninha, Hilário Jovino Ferreira, Mauro de Almeida,
Sinhô e a própria Tia Ciata. Gente que, claro, não gostou
da esperteza de Donga.
Desde agosto daquele ano, pelo menos, versos e
improvisos misturando temas do folclore nordestino e
menções às ações da polícia contra o jogo começavam a
ganhar forma, a se popularizar entre os frequentadores
dos pagodes na Praça Onze. Donga correu antes,
justificando a ação com a máxima atribuída a Sinhô:
“Música é como passarinho, de quem pegar primeiro.”
Sob protestos de muitos, atendeu apenas a um deles,
dividindo a parceria com Mauro de Almeida (1882-1956),
o jornalista que ficara com a tarefa de consolidar a letra
editada.
O telefone do samba começou a virar sucesso no
carnaval de 1917 e continua tocando até hoje nos
celulares, enquanto a polícia e o jogo clandestino
comemoram um século de convivência.
O teu cabelo não nega
Irmãos Valença e Lamartine Babo, 1932

Lamartine Babo botou seu tempero e transformou o frevo “Mulata” na


marchinha até hoje cantada nos bailes

Num mundo cada vez mais regido pela cartilha do


politicamente correto, “O teu cabelo não nega” não teria
nascido. Patrulheiros da correção iriam acusar a letra de
racista, principalmente pelo trecho “mas como a cor não
pega”, em que os autores, buscando uma rima de
sentido cômico para “nega”, declaram o incontrolável
amor que sentem por aquela musa multirracial que tem
“um sabor bem do Brasil”. Com ou sem intolerâncias, a
marchinha dos Irmãos Valença e de Lamartine Babo
(1904-1963) foi um sucesso espetacular no carnaval de
1932, como uma ode à beleza e ao charme da mestiça,
que provoca uma guerra entre os portugueses e os
marinheiros brasileiros.
“Quando, meu bem, vieste à Terra / Portugal declarou
guerra / A concorrência, então, foi colossal / Vasco da
Gama contra o Batalhão Naval.”
Como muitas outras clássicas marchinhas, a
irresistível “O teu cabelo não nega” tem um humor
ingênuo e direto, que pega de primeira. A música, no
entanto, tem história bem mais complexa. Nasceu a
partir de um frevo, “Mulata”, que tinha animado o
carnaval de Recife em 1929 e foi oferecido à gravadora
Victor pelos seus autores, os irmãos pernambucanos Raul
(1894-1977) e João Valença (1890-1983). O então diretor
da companhia de discos implicou com a letra e Lamartine
foi convocado para reescrevê-la. O carioca Lalá não só
trocou muitos versos como mexeu na melodia, reforçou a
pulsação rítmica, aumentando seu balanço. Também
registrou a canção apenas em seu nome, com o título “O
teu cabelo não nega”. Os Valença entraram com ação
judicial, ganharam a causa e foram indenizados e
adicionados à parceira.
Gravada pelo cantor e comediante Castro Barbosa,
com acompanhamento do Grupo da Guarda Velha e
arranjo e direção musical de Pixinguinha, “O teu cabelo
não nega” foi lançada no carnaval de 1932 e desde então
não para de animar ruas, blocos e salões Brasil afora.
Feitiço da Vila
Noel Rosa e Vadico, 1934

O paulistano Vadico (no alto) e o carioca Noel Rosa: dupla cheia de feitiço

Noel Rosa foi um dos inventores do samba urbano, com


letras sem literatices, usando da linguagem coloquial das
ruas em rimas elaboradas, que continuam atuais quase
um século depois de criadas. Composto em parceria com
Vadico (Oswaldo Gogliano, 1910-1962) e lançado em
disco em dezembro de 1934 pelo cantor João Petra de
Barros (1914-1948), “Feitiço da Vila” é exemplar da força
e da beleza alcançadas por sua arte.
Com essa declaração de amor ao samba e ao bairro
de Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, onde nasceu e
viveu, Noel de Medeiros Rosa (1910-1937) dava
prosseguimento à sua célebre polêmica com o
compositor Wilson Batista (1913-1968), que rendeu
grandes canções de ambos os lados. Em 1933, o então
iniciante Batista tinha apresentado suas armas com
“Lenço no pescoço”, samba que fazia apologia à
malandragem. Noel não gostou da associação e deu
início à briga com “Rapaz folgado”. E, quase dois anos
depois, reafirmou sua posição, acenando com um samba
de “feitiço decente, sem farofa, sem vela e sem vintém”.
Houve quem enxergasse, na referência pejorativa ao
candomblé, traços de racismo na canção, mas a obra e a
vida de Noel não deixam dúvidas. Boêmio e farrista
inveterado, o Poeta da Vila esteve mais perto da
malandragem, que contestou na polêmica com Batista,
do que da classe média, cujo balde chutou sonoramente.
Largou o curso de Medicina para fazer samba numa
época em que artista era considerado sinônimo de
vagabundo e malandro. Teve convivência estreita com
sambistas negros, entre os quais Cartola e Ismael Silva,
numa relação de parceria e amizade, sem a exploração e
a compra de músicas que, então, era prática comum de
tantos intérpretes e compositores brancos. Ele também
trocava o dia pela noite, transitando entre a Lapa, o
Estácio e os morros do Rio, e a sua paixão pela boêmia é
exaltada em “Feitiço da Vila”:
“O sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque a
gente implora: / Sol, pelo amor de Deus, / não vem agora
que as morenas / vão logo embora.”
Adeus, batucada
Synval Silva, 1935

Mineiro de Juiz de Fora, Synval Silva foi um dos compositores preferidos de


Carmen Miranda

Samba que é automaticamente associado a Carmen


Miranda (1909-1955), “Adeus, batucada” foi feito sob
medida para ela por Synval Silva, em 1935. Gravado em
setembro daquele ano, com acompanhamento da
Orchestra Odeon, a encomenda emplacou de cara e virou
o prefixo musical dos programas de rádio da cantora.
Também garantiu de vez a entrada de Synval na vida da
Pequena Notável, como compositor e seu motorista
particular. É um samba melancólico, mesmo que
“valorizando a batucada”, afinal, “sambando se goza /
nesse mundo”, no qual a personagem lamenta a hora de
largar a folia. O que explica o fato de a bela e engenhosa
letra ter permitido muitas associações com a vida de sua
primeira intérprete.
Quatro anos após seu lançamento, “Adeus, batucada”
seria a música escolhida por Carmen para encerrar seu
programa de despedida na Rádio Mayrink Veiga, antes de
embarcar para os Estados Unidos e a carreira em
Hollywood. E, em 5 de agosto de 1955, estaria entre as
tocadas no adeus derradeiro, durante o cortejo fúnebre
que parou o Rio de Janeiro. Clássico incontestável da
música brasileira, desde então “Adeus, batucada” se
mantém viva, com novas gravações de Ney Matogrosso,
Ná Ozzetti, Gal Costa, Eduardo Dussek, Marisa Monte,
Alaíde Costa e Celso Fonseca.
Mineiro de Juiz de Fora, filho de um clarinetista, Synval
Machado da Silva (1911-1994) aprendeu viola e clarinete
ainda criança. Na adolescência, começou a compor seus
primeiros sambas e valsas. Chegou ao Rio em 1930, para
morar no Morro da Formiga, na Tijuca, e se sustentar
como mecânico de automóveis. Mas, sem largar a
música, após sujar a mão de graxa e óleo durante o dia,
prosseguia trabalhando à noite como integrante do
regional Good-Bye, na Rádio Mayrink Veiga. Foi lá que,
em 1934, conheceu o baiano Assis Valente, então o
compositor preferido de Carmen. Naquele mesmo ano,
graças à indicação do amigo, a cantora gravou na RCA
Victor dois sambas de Synval, “Alvorada” e “Ao voltar do
samba”, e, em 1935, um terceiro, “Coração”.
A carreira de Synval não se limitou aos discos de
Carmen. Um dos fundadores da escola de samba Império
da Tijuca, ele ainda foi gravado por outros grandes
cantores da época, como Aurora Miranda, Orlando Silva,
Trio de Ouro, Cyro Monteiro e Ataulfo Alves.
Palpite infeliz
Noel Rosa, 1936

Contemporânea de Noel Rosa, Aracy de Almeida foi a principal responsável


pela redescoberta da obra do compositor a partir dos anos 1950

Outro fruto da célebre polêmica entre Noel Rosa e Wilson


Batista, “Palpite infeliz” é um recado direto a seu
oponente. O samba foi escrito em 1936 e gravado no
mesmo ano por Aracy de Almeida.
Após o sucesso obtido por Noel com “Feitiço da Vila”,
Wilson voltou à carga com “Conversa fiada”. Sem
rodeios, ele questionava diretamente o rival: “É conversa
fiada / dizerem que o samba / na Vila tem feitiço…”
O Poeta da Vila, mais uma vez, acusou o golpe e
respondeu no mesmo tom: “Quem é você que não sabe o
que diz? / Meu Deus do céu, que palpite infeliz!”
Farpas à parte, “Palpite infeliz” se impôs pela bela
melodia, fundamento em que Noel sempre foi um
mestre, e por oferecer uma crônica do samba urbano
carioca em seus primeiros anos. Após os dois versos
endereçados a Wilson, ele faz um mapeamento dos
redutos de bambas da época (“Salve Estácio, Salgueiro,
Mangueira, / Oswaldo Cruz e Matriz”), que vê como
irmãos do bairro de Vila Isabel, onde nasceu e passou
quase toda a sua breve e louca vida.
Morto aos 26 anos, vítima da então incurável
tuberculose, Noel deixou uma grande e influente obra,
que fez enorme sucesso nos carnavais, logo caiu na boca
do povo e foi gravada e cantada no rádio pelos maiores
intérpretes da época e por ele mesmo. No início dos anos
1950, após uma década de relativo esquecimento –
período em que contemporâneos como Ary Barroso,
Dorival Caymmi, Custódio Mesquita e Lamartine Babo
não pararam de enriquecer a música brasileira –, os
sambas de Noel foram redescobertos por meio da voz e
da musicalidade de Aracy de Almeida, e voltaram a
encantar as novas gerações, tornando-se referência do
samba urbano e da crônica de costumes.
Carinhoso
Pixinguinha e João de Barro, 1937

Orlando Silva: então no auge de sua técnica, o cantor lançou em 1937 os


dois maiores clássicos de Pixinguinha

Esta é daquelas que parecem ter sempre existido no


coração de brasileiros de diversas gerações. Mas até
chegar a esse status permaneceu por duas décadas
ignorada. Inicialmente sem letra, foi escondida pelo
próprio compositor, Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna
Filho, 1897-1973), que tinha 20 anos quando, em 1917,
criou a melodia. Inseguro pelo fato de aquele ser um
choro fora dos padrões habituais do gênero, com apenas
duas partes quando o normal eram três, ele deixou a
partitura guardada na estante. Só em 1928, o também
flautista, saxofonista, arranjador e maestro finalmente
decidiu gravar “Carinhoso”, em disco de 78 rpm lançado
pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Dois outros
registros instrumentais foram feitos, em 1929 e 1934,
mas sem muita repercussão.
A história de sucesso sem fim de “Carinhoso” só iria
começar em 1937, quando a canção foi lançada em disco
por Orlando Silva, um dos grandes cantores da época, já
com os versos feitos por João de Barro, ou Braguinha,
como também ficou conhecido Carlos Alberto Ferreira
Braga (1907-2006). Carioca de classe média, Braguinha
trocou a faculdade de Arquitetura pela música popular
após ter participado do Bando dos Tangarás, ao lado de
Noel Rosa e Almirante.
Com letra simples, uma cantada escancarada e direta
na melhor tradição romântica brasileira, “Carinhoso” foi
esnobada por dois outros grandes cantores da época,
Francisco Alves (1898-1952) e Carlos Galhardo (1913-
1985), ambos com mais prestígio do que Orlando Silva.
Este, já no auge de sua técnica vocal e pronto para se
tornar o Cantor das Multidões, aceitou a missão e não se
arrependeu. Lançado num 78 rpm que vinha
acompanhado de “Rosa”, outro clássico de Pixinguinha, o
samba-choro virou um sucesso instantâneo e foi adotado
como o prefixo musical do cantor. O que não impediu
que, a partir daí, “Carinhoso” também entrasse no
repertório de todos os grandes intérpretes brasileiros,
regravado por Elizeth Cardoso, Ângela Maria, Sílvio
Caldas, Dalva de Oliveira, Elis Regina, Maria Bethânia e
muitos outros.
Rosa
Pixinguinha e Otávio de Souza, 1937

Pixinguinha: a valsa “Rosa” era o lado B do 78 rpm de Orlando Silva

A valsa de Pixinguinha repousava esquecida na voz de


Orlando Silva até Marisa Monte relançá-la em 1991,
acompanhada pelo pianista e compositor japonês Ryuichi
Sakamoto, em seu segundo álbum solo, Mais.
Uma façanha surpreendente, porque, se a belíssima
melodia de Pixinguinha era de construção sofisticada, a
enorme letra de Otávio de Souza já soava arcaica quando
foi lançada por Orlando Silva em 1937. Tanto na
construção rebuscada das frases quanto no abuso de
palavras que começavam a cair em desuso, hoje
relegadas aos dicionários, como “olor”, “lanceado”,
“remir”, “olente”… Mas as literatices inflamadas não
impediram o retumbante sucesso na época, em grande
parte ajudado por “Carinhoso”, o lado A do 78 rpm
lançado pela RCA Victor.
“Tu és divina e graciosa / Estátua majestosa do amor /
Por Deus esculturada / E formada com ardor / Da alma da
mais linda flor / De mais ativo olor / Que na vida é
preferida pelo beija-flor.”
Orlando teria conhecido as duas músicas quando
participou de uma serenata a convite de Pixinguinha. Era
a festa de um casamento em Bangu, e a certo momento
da noite o compositor mostrou a letra que João de Barro
tinha feito para o choro “Carinhoso” e também a então
inédita “Rosa”. Faro apurado, Orlando quis gravar as
duas, o que fez numa única sessão, em 28 de maio de
1937, para o disco lançado um mês depois.
Na época da gravação de Orlando Silva, compositores
como Noel Rosa, Ary Barroso e Lamartine Babo já tinham
incorporado com sucesso a linguagem coloquial das ruas
às suas canções, muitas delas usando construções e
termos que poderiam ser escritos hoje. Apesar de seu
romantismo exacerbado (ou por isso mesmo), “Rosa”
bateu fundo no coração do público de Orlando. E
refloresceu mais bela ainda cinco décadas depois na voz
de Marisa, em gravação intimista, que contou apenas
com o piano e os teclados de Sakamoto e a cuíca de
Armando Marçal.
Na Baixa do Sapateiro
Ary Barroso, 1938

Nascido em Minas Gerais e radicado no Rio, Ary Barroso está entre os


“inventores” da Bahia na canção brasileira

Gravada em 1938 por Carmen Miranda, “Na Baixa do


Sapateiro” virou uma das músicas brasileiras mais
executadas no mundo. Também é a segunda mais
conhecida de Ary Barroso, perdendo apenas para a sua
“Aquarela do Brasil”, lançada um ano depois.
Mineiro de Ubá, onde nasceu em 7 de novembro de
1903, órfão de pai e mãe aos 8 anos, Ary de Resende
Barroso começou a estudar piano na adolescência. Aos
12 anos, já trabalhava como pianista num cinema de sua
cidade; três anos depois, fez sua primeira canção; mas,
antes de abraçar definitivamente a música, por via das
dúvidas, fazia o curso de Direito no Rio de Janeiro, para
onde tinha se mudado aos 17 anos. Em 1929, recém-
formado, o colega de faculdade Mário Reis (1907-1981)
gravou duas canções suas, “Vou à Penha” e “Vamos
deixar de intimidades”, com tanto sucesso que o diploma
de advogado de Ary foi para a gaveta e o Brasil ganhou
um de seus maiores compositores.
Um dos responsáveis pela consolidação do samba
urbano e moderno, o mineiro Ary também vinha sendo
um dos inventores do imaginário popular da Bahia, que
conheceu e por que se encantou em 1929, quando
atuava como pianista na orquestra de Napoleão Tavares
e seus Soldados Musicais. Sua paixão pela cultura e pelos
sabores afro-brasileiros foi cantada também em grandes
músicas como “No tabuleiro da baiana”, “Os quindins de
Iaiá” e “Faixa de cetim”. Curiosamente e por linhas
tortas, “Na Baixa do Sapateiro” acabou abrindo caminho
para o verdadeiro baiano Dorival Caymmi. Após a
gravação de Carmen, lançada em disco pela Odeon, era
para a Pequena Notável também cantar o samba no filme
Banana da terra, mas o compositor pediu mais dinheiro
do que a produção oferecia. Sem acordo, o produtor
Wallace Downey soube da existência de um jovem
recém-chegado de Salvador, que lhe apresentou “O que
é que a baiana tem”.
Cinco anos após perder para Caymmi a vaga no filme
de Carmen, “Na Baixa do Sapateiro” teve outra chance,
dessa vez em Hollywood, na trilha sonora de Você já foi à
Bahia? (ou The three caballeros, título original do filme
de animação de Walt Disney). Graças a esse empurrão, e
com o título de “Bahia”, começou a rodar o mundo.
Foram dezenas de gravações, até pelo saxofonista
supremo do jazz moderno, John Coltrane, que gravou
“Bahia” e assim batizou um álbum lançado em 1965, um
ano após a morte do compositor mineiro e universal.
Da cor do pecado
Bororó, 1939

O carioca Bororó é o autor de um samba sensual, com letra ousada para a


época

Lançado em 1939 por Sílvio Caldas, um dos cantores


mais populares do Brasil, então vivendo o auge de seu
sucesso e sua técnica, este samba surpreende por sua
harmonia sofisticada e a sensualidade de sua letra. À
frente de sua época na forma como tratou a paixão
carnal, de “beijo molhado”, musicalmente, “Da cor do
pecado” também antecipou alguns dos fundamentos
estéticos consolidados pela bossa nova. Surpreende
ainda por ser uma das poucas composições conhecidas
de Bororó, o carioca Alberto de Castro Simões da Silva
(1898-1986), que começou a carreira quando o samba
engatinhava e se manteve em atividade até o fim da
vida. Sobrinho da Marquesa de Santos, ainda criança
aprendeu violão com o pai e marcou presença nos saraus
familiares cantando modinhas com letras de Castro Alves
e Casimiro de Abreu. No início dos anos 1920, assinou
suas primeiras composições para ranchos carnavalescos
do Rio.
Bororó é também o autor de pelo menos mais um
clássico, “Curare”, este lançado em 1940 por Orlando
Silva e, assim como o anterior, regravado por João
Gilberto. Reconhecido pelo faro apurado para pescar no
passado sambas esquecidos, no caso de “Da cor do
pecado” João chegou depois, o que só confirma a
excelência da composição de Bororó. Ele incluiu o samba
no repertório de Eu sei que vou te amar, gravado ao vivo
em 1994, voltando a ele no disco Voz e violão, produzido
por Caetano Veloso em 1999. Bem depois, por exemplo,
da versão feita por Elis Regina no álbum Elis especial,
lançado em 1968.
Em 1977, Ney Matogrosso seria outro seduzido pelos
versos e pelos sinuosos requebros do samba de Bororó,
que foi um dos destaques no disco Pecado. Entre os
intérpretes da MPB que também gravaram “Da cor do
pecado” estão Nara Leão, Fagner e Cauby Peixoto.
Aquarela do Brasil
Ary Barroso, 1939

Ary Barroso: samba-exaltação que virou o hino informal do Brasil

Quase oito décadas após seu surgimento, ela continua


sendo um hino informal do Brasil. Mesmo que sua letra
abuse de termos datados – adjetivos como mulato
“inzoneiro”, morena “sestrosa” e “merencória” luz – e de
assumidas redundâncias simplórias, como o “coqueiro
que dá coco”. Apesar dessas ressalvas, apontadas já na
época em que começou a ser conhecida, a melodia e o
ritmo arrebatadores garantiram o crescimento e a
permanência de “Aquarela do Brasil”.
Este clássico é também o principal exemplo de um
subgênero, o do samba-exaltação, que celebrava as
belezas do Brasil, suas fauna e flora, gente e geografia
com linguagem ufanista e grandiloquente. Lançada em
pleno Estado Novo, “Aquarela do Brasil” se encaixou
como uma luva à política cultural nacionalista de Getúlio
Vargas. Externamente, também ajudou a vender para o
mundo o lado mais solar e alegre de um país atrasado e
repleto de contradições e injustiças.
O estilo exuberante do samba-exaltação já estava
presente em sua primeira gravação, em 1939, no
vozeirão do então Rei da Voz, Francisco Alves, e
reforçada pelo grandioso arranjo orquestral de Radamés
Gnattali. A partir de 1942, quando foi incluída num filme
de animação de Walt Disney, Alô, amigos, em que
também estreia nas telas o personagem Zé Carioca, a
“Aquarela…” começou a dar suas pinceladas pelo mundo
na voz de Aloysio de Oliveira (1914-1995). Ainda em
1942, com letra em inglês de Bob Russell e o título
abreviado para “Brazil”, o samba de Ary foi registrado
pelas orquestras de Jimmy Dorsey e Xavier Cugat. Desde
então, vem atravessando gerações e acumulando
dezenas de regravações, por alguns dos principais
artistas brasileiros – Carmen Miranda, Sílvio Caldas, João
Gilberto, Elis Regina, Wilson Simonal, Gal Costa, Emílio
Santiago, Tom Jobim, entre outros – ou estrangeiros,
como Frank Sinatra, Bing Crosby, Paul Anka, Dionne
Warwick, e até bandas de rock do século XXI como
Arcarde Fire e Beirut.
Brasil pandeiro
Assis Valente, 1941

Assis Valente posa com Carmen Miranda, que cantou nos palcos mas não
quis gravar “Brasil pandeiro”. Lançado pelos Anjos do Inferno em 1941, o
samba teve nova chance com os Novos Baianos, em 1972, abrindo o LP
Acabou chorare

Até o fim dos anos 1930, o baiano Assis Valente (1911-


1958) vinha sendo o compositor predileto de Carmen
Miranda, a quem tinha entregue sucessos como “Good-
bye, boy”, “Minha embaixada chegou”, “Fala, meu
pandeiro”, “Uva de caminhão” e “Camisa listrada”. Em
julho de 1940, na primeira visita da Pequena Notável ao
Brasil após um ano de sua mudança para os Estados
Unidos, Assis anunciou numa entrevista que tinha três
sambas prontos, feitos sob medida para sua musa. A
letra de um deles, então batizado de “Chegou a hora”,
com algumas poucas diferenças, era basicamente a
mesma da que ficou conhecida em “Brasil pandeiro”,
aberta pelo verso: “Chegou a hora dessa gente
bronzeada mostrar seu valor.” No entanto, apesar de
cantá-lo em apresentações no Cassino da Urca e na
Rádio Nacional, Carmen avisou ao compositor que não
iria gravar o samba.
No início de 1941, já com o nome que ficou conhecido,
“Brasil pandeiro” virou disco, pelo selo Columbia, na voz
dos Anjos do Inferno. Em seguida, o grupo também
interpretou a música, dublada a partir da gravação
original, numa cena do filme Céu azul, o segundo
protagonizado pela dupla Oscarito e Grande Otelo.
Apesar da recusa de Carmen, que o torturado Assis
Valente nunca perdoou, em plena Segunda Guerra o país
inteiro cantou seu samba-exaltação:
“Brasil, esquentai vossos pandeiros / Iluminai os
terreiros que nós queremos sambar.”
Esta é mais uma canção que voltou à vida graças a
João Gilberto. Mesmo que, no caso, de forma indireta, por
meio das vozes e do instrumental dos Novos Baianos. No
início dos anos 1970, no apartamento em que viviam em
comunidade, eles recebiam quase que diariamente, ou
melhor, noturnamente, visitas do conterrâneo bossa-
novista. Eram intermináveis conversas e saraus nos
quais o grupo foi sendo apresentado por João a muitos
grandes sambas do passado. Entre eles, “Brasil
pandeiro”, que foi escolhido para abrir o fundamental
segundo álbum dos Novos Baianos, Acabou chorare
(1972), pioneiro na fusão do rock com o samba e o choro.
Aos pés da cruz
Zé da Zilda e Marino Pinto, 1942

Em 1959, João Gilberto incluiu esse samba clássico no álbum que


apresentou a bossa nova ao mundo

Sucesso em 1942, na gravação de Orlando Silva para a


RCA Victor, este samba triste sobre uma desilusão
amorosa ganhou uma segunda chance. “Aos pés da cruz”
foi uma das composições escolhidas por João Gilberto
para o repertório de seu álbum de estreia, Chega de
saudade, que, lançado em 1959, é o marco divisor da
bossa nova. E foi além: gravada pelo gênio Miles Davis
em 1962, abriu as portas do melhor jazz norte-americano
para aquele estilo.
No histórico Chega de saudade, em meio às novidades
apresentadas por compositores como Tom Jobim, Vinicius
de Moraes, Newton Mendonça, Carlos Lyra, Ronaldo
Bôscoli e o próprio João Gilberto (que assinava duas
faixas, “Bim bom” e “Ho-ba-la-lá”), o samba-canção de
Zé da Zilda e Marino Pinto fez bonito. Ou melhor,
continuou fazendo, provando entre outras coisas que
grandes músicas se mantêm através do tempo,
independentemente de modismos. Mas, sem dúvida, a
versão bossa-novista de João Gilberto foi fundamental
para a permanência de “Aos pés da cruz”, cuja letra
também popularizou uma máxima do matemático,
teólogo e filósofo francês Blaise Pascal, do século XVII: “O
coração tem razões que a própria razão desconhece.”
O compositor, cantor e violonista Zé da Zilda (José
Gonçalves, 1908-1954) foi um dos primeiros integrantes
da ala de compositores da Mangueira, ao lado de bambas
como Carlos Cachaça e Cartola. Em 1938, casou-se com
a cantora Zilda, formando a Dupla da Harmonia, que
também ficou conhecida como Zé da Zilda & Zilda do Zé,
com quem gravou até sua precoce morte, em 1954,
vítima de derrame. Um dos muitos parceiros de Zé da
Zilda, Marino Pinto (1916-1965) também compôs com
Wilson Batista, Ataulfo Alves, Pedro Caetano, Antonio
Almeida, Paulo Soledade, Vadico, Mário Lago e até Tom
Jobim (“Sucedeu assim” e “Aula de matemática”).
Rosa Morena
Dorival Caymmi, 1942

Um dos grandes grupos vocais da época, os Anjos do Inferno foram os


primeiros a gravar “Rosa Morena”

Um dos grandes sambas-canção de Dorival Caymmi


(1914-2008), “Rosa Morena” é exemplo de concisão e
precisão poética a serviço da música. Com poucos e
curtos versos, abusando da repetição, recurso usado
para realçar o balanço do samba (e da morena), ele
transporta o ouvinte para a roda na qual tenta convencer
sua musa a entrar. Dá para apostar que conseguiu.
Caymmi abusa de seus dons de sedutor, tão dengoso
quanto a morena Rosa, que flana cheia de pose com uma
rosa no cabelo.
“Rosa Morena” foi lançado em 1942 pelo grupo Anjos
do Inferno, em disco de 78 rpm do selo Columbia, que
trazia no outro lado mais um samba então inédito do
compositor, o delicioso “Vatapá” (este, segundo a
definição do próprio, tratava-se de um “samba-receita”,
ou seja, uma “list song”). Dorival gravou “Rosa Morena”
em 1955, no LP de 10 polegadas Sambas de Caymmi
(Odeon), numa versão que, ao valorizar o silêncio, o
espaço entre as palavras, reforçou ainda mais o gingado
da música. Maestria que, desde então, não parou de
encantar intérpretes e ouvintes.
O rigoroso João Gilberto deixou clara a sua admiração
pela arte de Caymmi, um precursor no formato de voz e
violão, ao incluir “Rosa Morena” no disco divisor de águas
que foi Chega de saudade, lançado em 1959. Anos
depois, numa de suas raras entrevistas (ao jornalista
Tárik de Souza), João Gilberto contou: “Uma das músicas
que me despertaram, que me mostraram que se podia
tentar uma coisa diferente foi ‘Rosa Morena’ do Caymmi.
Sentia que aquele prolongamento de som que os
cantores davam prejudicava o balanço natural da música.
Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro
dos compassos e ficava flutuando. Eu podia mexer com
toda a estrutura da música sem precisar alterar nada.”
Pra machucar meu coração
Ary Barroso, 1943

Em 1960, o já lendário Ary Barroso (no alto) abraça a bossa nova de Tom
Jobim, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra

No início dos anos 1940, o talento de Ary Barroso como


compositor já era mais do que reconhecido, colecionando
sucessos que continuam em voga até hoje, como provam
as outras duas canções aqui incluídas, “Na Baixa do
Sapateiro” e “Aquarela do Brasil”. Mas o mineiro de Ubá
ainda tinha inspiração de sobra, caso do samba-canção
de melodia arrebatadora que é “Pra machucar meu
coração”, vestido por uma luxuosa harmonia.
Na época, além das muitas funções na música
(pianista, compositor, líder de orquestra, eventual
cantor), o bacharel em Direito Ary Barroso já exercia
outras atividades. Foi apresentador de programa de
calouros e locutor esportivo (torcendo parcial e
despudoradamente por seu Flamengo durante as
transmissões), e teve participação ativa na política.
Destacou-se na luta pelos direitos autorais na música (foi
um dos fundadores e, em 1942, o primeiro presidente da
União Brasileira de Compositores, UBC) e, em 1946, foi o
segundo mais votado para a Câmara de Vereadores do
Rio.
Agenda lotada de outros interesses, mas com tempo e
inspiração para novas canções, o passional Ary é o
coração romântico que se recupera de uma “cruel
desilusão”. Do lar que mantinha com a amada restaram
apenas o (hoje, ecologicamente incorreto) sabiá e o
violão. Apesar da separação traumática, a melodia
melancólica revela que o narrador começava a se
recuperar (“Quem sabe, não foi bem melhor assim…”) e,
em seus últimos versos, transmite sua lição de vida: “A
vida é uma escola / Onde a gente precisa aprender / A
ciência de viver pra não sofrer.”
Lançado em 1943 pelo cantor Déo, hoje esquecido,
este samba praticamente renasceu 21 anos depois, em
Getz/Gilberto, gravado e lançado em 1964 nos Estados
Unidos pelo saxofonista Stan Getz e por João Gilberto,
com participação de Tom Jobim ao piano, e que
popularizou a bossa nova no mundo.
Dora
Dorival Caymmi, 1945

Dorival Caymmi: lirismo e concisão poética a serviço do samba

Mestre das canções praieiras, pioneiro na valorização dos


temas afro-baianos, Dorival Caymmi também foi o autor
de adoráveis sambas-canção urbanos. Essa é uma
vertente que, em grande parte, se deve à mudança do
jovem compositor para o Rio de Janeiro, em 1938, onde
compôs muito de uma obra reconhecida e aplaudida já
em seus primeiros passos, o que permitiu que o baiano
se dedicasse quase integralmente à música. Quase pelo
fato de o homem que viveu tão intensamente também
ter se aventurado com talento pela pintura.
Mesmo que inspirado por lembranças de uma viagem
ao Recife “do frevo e do maracatu”, “Dora” está no grupo
de sambas-canção “cariocas” e é um exemplo do talento
do compositor como cronista de seu mundo e de seu
tempo. Como o próprio contou, no carnaval de 1942,
hospedado no Grande Hotel do Recife, ele passou por um
momento de epifania durante o desfile de um bloco no
qual uma passista mulata dançava descalça. Gravada em
detalhes em sua cabeça, pouco tempo depois, a cena foi
recriada em forma de samba.
Obra-prima que funde balanço, lirismo e melodia
exuberante em doses certeiras, “Dora” também é um
exemplo de concisão poética. Em poucas pinceladas,
Caymmi apresenta o cenário (a cidade “dos rios cortados
de pontes / dos bairros, das fontes, coloniais”) e
desenvolve o enredo. Ação que, na verdade, é descrita
por meio de flashbacks, a musa anônima (que, pela
sonoridade, batizou de Dora) “requebrando / pra cá, ora
pra lá” em seu pensamento.
O samba-canção foi lançado por Caymmi num
compacto para a Odeon, em agosto de 1945, que trazia
no lado B mais um sucesso, “Peguei um Ita no Norte”.
Desde então, o compositor voltou muitas vezes à “rainha
cafusa” em seus discos – no arranjo para a gravação de
um álbum de 1960, por exemplo, manteve as breves
frases musicais dos sopros que remetem ao frevo. Com
suas duas sílabas adoráveis de degustar, “Dora” também
foi incorporada ao repertório de Nelson Gonçalves, Gal
Costa e, claro, dos filhos Nana, Dori e Danilo.
Copacabana
Braguinha e Alberto Ribeiro, 1946

Pianista e cantor de jazz, o carioca Dick Farney realçou a modernidade do


samba de Braguinha e Alberto Ribeiro

Muito antes de Tom e Vinicius apresentarem a vizinha


Ipanema ao mundo, Braguinha (ou João de Barro) e
Alberto Ribeiro (1902-1971) criaram este hino de louvor
para a “Princesinha do Mar”. Lançado em disco por Dick
Farney, em 1946, com arranjo para orquestra de
Radamés Gnattali, “Copacabana” era um samba
diferente, moderno para a época, ganhando um
tratamento sofisticado, que, somado ao canto cool de
Farney, em muitos aspectos antecipou a estética
minimalista da bossa nova.
O grande sucesso, dominando as paradas brasileiras
por mais de um ano, veio acompanhado de acusações de
plágio. A melodia do samba-canção lembra vagamente o
início de “I’ll remember April” (Gene de Paul, Patricia
Johnston e Don Raye), lançada na trilha sonora de um
filme de 1942 da dupla de comediantes Abbott &
Costello, Ride ‘em Cowboy (que no Brasil ganhou o título
de Cavaleiros da galhofa). Braguinha não seria estúpido
de “plagiary” logo um popularíssimo standard americano.
Coincidência ou não, “Copacabana” foi escrita em 1944,
para um musical que não chegou a ser montado, e teve
como ponto de partida outra composição da dupla
Braguinha e Ribeiro. É um samba curto, com apenas 12
versos que exaltam as belezas da praia carioca:
“Nenhuma tem o encanto / que tu possuis.”
O impacto inicial de “Copacabana” deve ser creditado
também à interpretação magistral do pianista e cantor
Dick Farney (1921-1987). Nascido no Rio de Janeiro como
Farnésio Dutra e Silva, ele teve formação clássica e era
apaixonado pelo jazz. Até gravar este samba-canção,
após muita insistência de Braguinha, Farney só cantava
em inglês. Entre os anos de 1947 e 1948, ele chegou a
viver e trabalhar nos Estados Unidos, onde, entre outros
compromissos, foi contratado como cantor fixo no
programa de rádio do comediante Milton Berle. Com os
sucessos de “Copacabana” e “Marina” (esta de Dorival
Caymmi), que ele tinha gravado para a Continental antes
de se radicar nos EUA, Farney voltou ao Brasil, ajudando
a plantar as sementes da bossa nova.
Asa branca
Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1947

Primeiro “popstar” brasileiro, Luiz Gonzaga botou o Nordeste no topo das


paradas

Maior sucesso do Rei do Baião e um dos nossos “hinos


nacionais populares”, “Asa branca” foi composta por Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, em 1947, a partir de um
tema folclórico que o sanfoneiro conhecia desde a
infância. Após uma década e meia longe, Luiz Gonzaga
(1912-1989) tinha visitado a cidade de Exu, no sertão
pernambucano, onde nasceu, e, ao retornar ao Rio,
mostrou ao parceiro a canção. Teixeira mexeu em alguns
versos, acrescentou outros, consolidando o lirismo e as
fortes imagens da seca que castigava sem tréguas a
região e forçava a imigração de seu povo para o Sul. Em
ritmo de toada, a música tocou fundo no coração dos
brasileiros. Além das muitas gravações de Gonzaga, foi
adotada por intérpretes de diferentes estilos e gerações,
ganhou até versões sinfônicas, virando um hino do
Nordeste e de sua gente.
Radicado no Rio de Janeiro desde 1940, Gonzagão
sobrevivia a duras penas, tocando valsas, polcas, tangos,
foxtrotes e boleros em bares da zona de prostituição. Na
época, os ritmos nordestinos que tinham feito tanto
sucesso nas duas primeiras décadas do século XX
estavam relegados à sua região, eram vistos como
cafonas no Sudeste brasileiro. Até que, uma noite,
atendendo aos pedidos de um grupo de estudantes
nordestinos de passagem pela então capital federal,
Gonzaga voltou aos sons de pé de serra que seu pai
Januário tocava. Para sua surpresa, conseguiu empolgar
a plateia e percebeu que aquele diferencial era um filão a
ser explorado. Já em 1941 compôs os chamegos “Pé de
serra” e “Vira e mexe” – tendo, este último, lhe rendido o
primeiro prêmio no programa de calouros de Ary Barroso
e um contrato para gravar na RCA Victor.
Nos anos seguintes, com seu repertório de chamegos,
xotes e baiões, adotou um visual próprio, com roupas de
couro, adereços de boiadeiro e chapéu de cangaceiro,
que, segundo um de seus fãs, Gilberto Gil, fez dele o
primeiro popstar brasileiro. Essa metamorfose se
completou em fins de 1945, quando conheceu o seu
principal letrista, o advogado cearense Humberto Teixeira
(1915-1979). No ano seguinte, a dupla fez “Baião”,
lançada pelo grupo vocal Quatro Ases e Um Coringa, com
Gonzagão tocando sanfona. A canção popularizou um
ritmo e uma dança que faziam sucesso no Nordeste
desde o fim do século XIX. O Brasil inteiro aprendeu
como se dança o baião, e Luiz Gonzaga virou rei de vez
em 1947, nas asas de “Asa branca”.
Marina
Dorival Caymmi, 1947

A vida noturna carioca influenciou sambas-canção de Caymmi

Ao lado de seu compadre Jorge Amado, Dorival Caymmi


foi um dos inventores da Bahia no imaginário brasileiro,
pioneiro das canções praieiras e do uso de temas, ritmos
e expressões das religiões africanas na música popular.
Foi também um autêntico carioca, ou copacabanense, e
um dos grandes mestres do samba-canção romântico e
intimista nas décadas de 1940 e 1950. Caymmi passou
boa parte da vida em Copacabana, dividindo-se entre a
família – ao lado de Stella Maris, a cantora que
abandonou a música para se dedicar a ele e aos três
filhos que depois também se tornaram músicos: Nana,
Dori e Danilo –, o trabalho e, sobretudo, a boêmia, na
efervescente noite de Copacabana, onde as pequenas
boates se multiplicavam depois do fim dos cassinos em
1946.
Os sambas-canção que lançou a partir da década de
1940 mostram como o ambiente e a cultura cosmopolita
do Rio influenciaram sua obra. Caymmi se tornou um dos
maiores mestres do estilo e também teve influência
decisiva para o surgimento da bossa nova nos
apartamentos e boates de Copacabana e nas areias de
Ipanema e Leblon.
“Marina” é uma das primeiras canções dessa nova
vertente, uma obra-prima em todos os sentidos, um
grande clássico da nossa música popular. Em busca da
simplicidade direta, é refinada em seu acabamento, fruto
da obsessão do compositor em encontrar as palavras
certas para cada frase musical. Foi um sucesso
instantâneo ao ser lançada, em 1947. Além da gravação
de Dick Farney para o selo Continental, um fato raro para
o período, outros três 78 rpm foram lançados ao mesmo
tempo, com Francisco Alves, Nelson Gonçalves e o
próprio Caymmi cantando “Marina”. Mas a que fez mais
sucesso foi a de Dick Farney.
Caymmi contou, em entrevista a Paulo Mendes
Campos para a Revista da Música Popular, de 1955, a
pouco romântica origem de “Marina”. Uma vez, ao sair
de casa, seu filho Dorivalzinho (como chamava a Dori)
disse-lhe com a cara zangada: “Estou de mal.” “Na rua,
essa frase ficou martelando na minha cabeça: ‘Estou de
mal, estou de mal, estou de mal…’ Enquanto ia à rádio,
comprava umas coisas, andava nas ruas, a melodia e a
letra foram se compondo em minha cabeça. No fim do
dia, a música estava pronta.”
Ao longo de sua carreira Caymmi gravou várias
versões de “Marina”, mas a primeira versão de Dick
Farney se tornou a mais influente, como referência de
qualidade do samba-canção e antecipando a
modernidade da bossa nova. Outros cantores regravaram
“Marina”, como a versão iconoclasta de Gilberto Gil (no
álbum Realce, em 1979), a belíssima gravação em estilo
clássico de Emílio Santiago e a tecnopop do capixaba
Silva, de 2015.
Nervos de aço
Lupicínio Rodrigues, 1947

Lupicínio Rodrigues: prova de que o samba também pode ser gaúcho

Nos anos 1940, dizia-se que os negros e o samba não


tinham lugar na história e na cultura do Rio Grande do
Sul, mas Lupicínio Rodrigues desmentiu ignorâncias e
preconceitos. Consagrando-se como um dos maiores
compositores de samba, com “Se acaso você chegasse”,
tornou-se um dos grandes mestres do samba-canção,
com sua poética do ódio e do rancor nas relações
amorosas, em clássicos como “Vingança”, “Cadeira
vazia” e “Volta”.
Lançado em 1947, por Francisco Alves, “Nervos de
aço”, um torturado relato de uma dilacerante dor
amorosa, bastaria para consagrar Lupicínio e seu estilo,
que se inspirava em suas próprias histórias de traições e
amores desfeitos, em dramas que ouvia em mesas de
bar nas noites frias de Porto Alegre.
Vinte e cinco anos depois, “Nervos de aço” ganhou
uma nova e brilhante exposição na voz de Paulinho da
Viola, com uma interpretação moderna, contida e
pungente dos versos doloridos de Lupicínio, batizando o
álbum que o sambista carioca lançou em 1972.
“Eu não sei se o que trago no peito / É ciúme, é
despeito, amizade ou horror / Eu só sei é que quando a
vejo / Me dá um desejo de morte ou de dor.”
Nascido em Porto Alegre, Lupicínio (1914-1974)
conseguiu viver de música fora do eixo Rio-São Paulo,
sem sair de sua cidade. Seu talento foi revelado ainda na
adolescência, quando, aos 14 anos, a pedido de um
bloco, escreveu seu primeiro samba, “Carnaval”, em
1932, e durante uma passagem de Noel Rosa por Porto
Alegre, quando Lupicínio conseguiu lhe mostrar algumas
de suas músicas e o Poeta da Vila cravou: “Esse garoto
vai longe.”
Lupi, como era chamado desde criança, conseguiu seu
primeiro grande sucesso nacional em 1938, com “Se
acaso você chegasse” (em parceria com Felisberto
Martins), lançado pelo então iniciante Ciro Monteiro. Um
ano depois, disposto a fazer carreira, o jovem compositor
viajou para a capital federal, onde se tornou conhecido e
admirado no circuito musical da cidade. Francisco Alves,
o cantor mais popular do Brasil na época, foi um dos que
apostaram no talento do gaúcho, gravando, entre outros
clássicos, “Nervos de aço”, “Esses moços”, “Quem há de
dizer” e “Cadeira vazia”. Em 1951, Linda Batista
emplacou mais um grande sucesso de Lupicínio, o
samba-canção “Vingança”. E, em 1960, seria a vez de
Elza Soares, que estreou nas paradas de sucesso com
uma espetacular regravação de “Se acaso você
chegasse”.
Lupicínio morreu em agosto de 1974, um mês antes
de completar 60 anos. Mas pôde acompanhar a
redescoberta de suas canções pela então nova geração
da MPB. Já no fim dos anos 1960, com aplausos do poeta
concreto Augusto de Campos, alguns de seus sambas
foram regravados por Caetano Veloso, Gal Costa e
Paulinho da Viola. No século XXI, Lupicínio continua
sendo cantado em gravações de Zizi Possi, Arnaldo
Antunes, Arrigo Barnabé, Adriana Calcanhotto, Gal Costa
e Elza Soares.
João Valentão
Dorival Caymmi, 1953

Caymmi: retratista de tipos e costumes brasileiros

Cronista de seu povo e de seu tempo, mistura perfeita de


africanos e italianos, Dorival Caymmi imortalizou muitos
personagens que encontrou ao longo da vida em suas
canções. “João Valentão” foi um deles, um pescador que
conheceu na juventude, na praia de Itapuã, e serviu de
inspiração para o samba-canção que se tornou um de
seus maiores sucessos. Lançada num compacto simples
em 1953 (como o lado B de “Tão só”, escrita com seu
parceiro de copo e boêmia Carlos Guinle), a composição
tinha começado a nascer em 1936, dois anos antes de
Caymmi trocar Salvador pelo Rio de Janeiro, e, com a
falta de pressa que o caracterizava, só foi terminada em
1945.
Meticuloso artesão da palavra cantada, Caymmi só
dava uma canção por terminada após esgotar todas as
possibilidades de rima, métrica, melodia e ritmo e
encontrar a forma ideal. E isso podia levar anos. Entre os
primeiros versos, escritos aos 22 anos quando estava se
iniciando na arte de compor, e a forma final, foram nove.
Seu amálgama de música e palavras é um exemplo de
força e concisão, com pinceladas psicológicas do
pescador, ao mesmo tempo durão e lírico, “que nunca
precisa dormir pra sonhar”, perfeitamente integrado ao
cenário paradisíaco que habita, à beira-mar, deitado na
areia da praia, entre o fim da tarde (“quando o sol vai
quebrando / lá pro fim do mundo pra noite chegar”) e a
noite, que, “se é de lua”, estimula a contar mentiras e se
espreguiçar.
Em entrevista à neta e biógrafa Stella, Caymmi contou
que ele e seus amigos idolatravam um pescador de
Itapuã, um cara forte e corajoso, cheio de histórias, e que
inspirou o personagem da música depois de reclamar
com Caymmi por trocar o seu convite para embarcar
numa pescaria para ficar no banho de mar em Itapuã.
Com a cobrança na cabeça e botando no personagem
também algo de si, o jovem Caymmi fez os primeiros
versos da então “João Carapeba” – também o nome de
um peixe, que era o apelido de seu personagem. Ao
longo dos nove anos seguintes ele foi avançando
lentamente na história, até que, a bordo de um bonde da
linha Grajaú, lhe ocorreram os quatro versos finais.
Enquanto grandes compositores como Tom Jobim, Ary
Barroso ou Chico Buarque têm 300, 400 músicas,
Caymmi, que viveu 94 anos, tem pouco mais do que 80.
Mas todas ótimas. Muitas levaram mais de dez anos para
serem concluídas, no feliz encontro da poesia com o rigor
e a preguiça.
Em 1965, Elis Regina regravou “João Valentão” com o
Zimbo Trio e soberbo arranjo jazzístico de Paulo Moura no
LP Samba eu canto assim.
A voz do morro
Zé Kéti, 1955

Zé Kéti: o samba em pessoa, natural do Rio de Janeiro

Primeiro grande sucesso do carioca Zé Kéti (José Flores


de Jesus, 1921-1999), este samba empolgante foi
gravado por Jorge Goulart, com arranjo de Radamés
Gnattali, para a trilha sonora do filme Rio 40 graus, e se
tornou um hit nacional.
O filme de Nelson Pereira dos Santos, produzido em
1955 e marco fundador do Cinema Novo, em que Zé Kéti
também trabalhou como ator, consagrou a canção de
melodia arrebatadora, embalando a letra que remete a
uma sintética autobiografia do gênero. “Eu sou o samba /
A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor…”, anuncia-
se nos primeiros versos, para, na segunda estrofe,
contrariar as teses e polêmicas sobre sua origem baiana:
“Sou natural daqui do Rio de Janeiro.”
Sim, foi decisiva a contribuição dos sambas de roda
do Recôncavo Baiano no começo do século XX, mas foi
no Rio de Janeiro, a partir do início dos anos 1930, com
Noel Rosa, Pixinguinha, Ismael Silva e demais bambas do
Estácio, que o samba ganhou o seu formato urbano,
distanciando-se do maxixe, do coco, do samba de roda e
demais manifestações rurais. Carioca por adoção e
formação, por meio do disco e do rádio o samba se
espalhou pelo Brasil.
Zé Kéti começou a mostrar seus talentos no início dos
anos 1940, no seleto grupo de compositores da poderosa
Portela e, antes de emplacar seu primeiro sucesso com
“A voz do morro”, teve sambas gravados por Linda
Batista, Ciro Monteiro, Jamelão e Garotos da Lua. Em
1962, Zé Kéti começou a subir aos palcos com o grupo
que idealizou, homônimo do seu maior sucesso. Uma
primeira formação de A Voz do Morro incluiu dois outros
grandes mestres, Nelson Cavaquinho e Cartola. A
formação que se consolidou um ano depois chegou a
gravar um LP, reunindo Zé Kéti, os então garotos
Paulinho da Viola e Elton Medeiros, mais Zé Cruz,
Anescarzinho e Oscar Bigode.
Além de “A voz do morro”, que décadas depois
recebeu uma interpretação luxuosa de Luiz Melodia, Zé
Kéti também compôs os clássicos “Opinião”, “Diz que fui
por aí” e o belíssimo samba de carnaval “Mascarada”,
regravado por Emílio Santiago.
A partir de 1964, quando participou do espetacular
sucesso do show Opinião, ao lado da ex-musa da bossa
nova que se tornara musa da oposição, Nara Leão (um
ano depois substituída por uma baiana de 19 anos, Maria
Bethânia), e do maranhense João do Vale, Zé Kéti foi um
dos responsáveis pela volta do samba às paradas de
sucesso. A voz do morro era ele mesmo, sim senhor.
A flor e o espinho
Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, 1957

Elizeth Cardoso subiu o morro e consagrou um dos clássicos de Nelson


Cavaquinho

Sucesso no disco Elizeth sobe o morro, de 1965, o samba


“A flor e o espinho” tinha sido gravado (e ignorado pelo
público) oito anos antes pelo hoje esquecido cantor Raul
Moreno. Na voz de Elizeth Cardoso se tornou um dos
maiores clássicos do gênero, com a marca registrada da
dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, que,
nesta música, contou com o auxílio luxuoso de Alcides
Caminha.
Foi nesse tempo que, já cinquentão, Nelson
Cavaquinho começou a sair das sombras e a ser
reconhecido. Não só pelos sambas que vinha compondo
desde a década de 1930, mas também como cantor de
voz rouca e violonista originalíssimo. Uma das atrações
do Zicartola, o misto de restaurante e casa de samba que
o casal Dona Zica e Cartola manteve entre 1963 e 1965
no Centro do Rio, Nelson também foi gravado com
sucesso por Nara Leão, Elis Regina e Beth Carvalho, que
se tornou a sua grande intérprete.
Apesar do sobrenome artístico, Nelson Antônio da
Silva (1911-1986) trocou o cavaquinho pelo violão na
juventude. Autodidata, desenvolveu um estilo inusitado e
rústico, usando apenas o polegar e o indicador para tocar
com vigor nas cordas do instrumento.
É difícil imaginar que esse arquétipo do sambista
boêmio e bom de copo, vagando de bar em bar com seu
violão, tenha sido soldado da Polícia Militar. Mas, nos
anos 1930, após servir o Exército, ele se dividiu um bom
tempo entre a PM e o samba, atuando na região do Morro
da Mangueira, onde ficou amigo de Cartola, Carlos
Cachaça e outros bambas, chamando a atenção de Noel
Rosa. Acabou largando a farda, mas passou as décadas
de 1940 e 1950 vivendo de bicos, muitas vezes
vendendo seus sambas para “comprositores” ou
cantores, prática comum na época.
Nelson teve duas dezenas de parceiros, mas o
encontro com Guilherme de Brito (1922-2006), no início
dos anos 1950, foi fundamental. Também o letrista de
Nelson em clássicos como “Folhas secas”, “Quando eu
me chamar saudade” e “Pranto de poeta”, num fim de
noite na Praça Tiradentes, após uma festa, Guilherme
teve a ideia para os versos de abertura de “A flor e o
espinho”, que se tornaram clássicos na música brasileira:
“Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar
com a minha dor.”
No dia seguinte, mostrou para Nelson a letra
amargurada, que foi completada por Alcides Caminha
(1921-1992), um funcionário do Ministério do Trabalho
que manteve por três décadas uma vida secreta como
autor de quadrinhos eróticos e se celebrizou como Carlos
Zéfiro.
Saudade da Bahia
Dorival Caymmi, 1957

O próprio Caymmi lançou, num álbum de 1957, o samba “Saudade da


Bahia”

Quase duas décadas após trocar a Salvador natal pela


então capital federal, o Rio de Janeiro, Dorival Caymmi
acumulara experiência de sobra para ter saudades da
Bahia. Terra que, a essa altura, ele próprio ajudara a criar
no imaginário de muitos brasileiros com seu cancioneiro;
incluindo pioneiras list songs como “O que é que a
baiana tem?”, “Lá vem a baiana”, “Vatapá” e “Lenda do
Abaeté”.
Mesmo tendo a sua terra natal no título, este samba
confessional tem como tema o arrependimento e a
perda. Sobrepondo-se a mais uma declaração de amor à
Bahia e à descrição de seus encantos e mistérios, a
saudade de Caymmi é do afeto e da vida em família, e
ele se arrepende de sua decisão de partir: “Ai, se eu
escutasse o que mamãe dizia.”
Naquele fim dos anos 1950, Dorival também já podia
se dar ao luxo de ser o primeiro intérprete de suas
canções, antecipando o perfil do “cantautor” que se
tornou o padrão da MPB nos anos 1960. “Saudade da
Bahia” foi lançado em seu quarto álbum, Eu vou pra
Maracangalha (Odeon), ao lado de clássicos como
“Samba da minha terra”, “Maracangalha” e a já citada
“Vatapá”.
Apesar do lançamento em 1957, o samba tinha sido
escrito uma década antes, de uma tacada só, num bar no
Leblon, e ficara restrito ao repertório caseiro. Caymmi
sempre gostou de deixar as músicas amadurecerem sem
pressa, até finalmente se convencer de que estavam
boas. O produtor do álbum, Aloysio de Oliveira, que
conhecia “Saudade da Bahia” dos saraus na casa dos
Caymmi, foi quem insistiu na sua gravação.
Consagrado como cantor, ganhando o suficiente para
sustentar a família e ainda farrear pela fervilhante noite
carioca, Caymmi também tinha seus momentos de
desamparo e saudade, e concluía filosoficamente a
canção:
“Pobre de quem acredita / Na glória e no dinheiro para
ser feliz.”
Chega de saudade
Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1958

“Dream team” da bossa nova em 1962: Vinicius e Tom (no piano), João
Gilberto e Os Cariocas

Canção-símbolo da bossa nova, marco inicial da mais


radical mudança de rumo na história da música
brasileira, “Chega de saudade” foi escrita por Antônio
Carlos Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-
1980) e gravada pela primeira vez no início de 1958 por
Elizeth Cardoso no LP Canção do amor demais. Porém, na
forma tradicional que Elizeth a cantava, de bossa nova a
música não tinha nada – apenas a batida diferente do
violão de João Gilberto, que, ao fundo e no meio da
orquestra, passou quase despercebida. Apesar da
popularidade e do prestígio de Elizeth, e da qualidade
das canções da dupla, o disco passou batido pelo público
e pela crítica.
Seis meses depois, com um arranjo moderno e
minimalista de Tom Jobim e uma introdução à maneira de
regional de choro puxada pela flauta, João Gilberto
regravou “Chega de saudade”. Agora, com a batida de
seu violão integrada à sua voz, canto com um mínimo de
volume e um máximo de suingue e precisão, alterando
acordes e divisões rítmicas, valorizando as palavras da
letra coloquial, carinhosa e cheia de diminutivos de
Vinicius de Moraes. Nascia a bossa nova. E logo se
transformava em um improvável sucesso nacional,
começando pelas rádios de São Paulo e se alastrando
para o resto do país. O estilo provocou polêmica e virou a
melhor novidade do ano, conquistando a juventude e se
tornando trilha sonora dos alegres e otimistas “Anos JK”.
No rótulo do histórico 78 rpm, a música era
identificada como “samba-canção”. A prática de
classificar os gêneros musicais dos discos começava a
ser abolida pelas gravadoras na época e, na verdade, o
próprio João Gilberto nunca aprovou o rótulo de bossa
nova. Como sempre disse, a batida de seu violão era
samba, um samba minimalista e sincopado, mas sempre
samba.
Para Tom Jobim, “Chega de saudade” era mais um
“samba-choro”, que compôs baseado em sequências de
acordes básicos de um método para violão comprado
para uma sobrinha, como contou a Tárik de Souza no
livro Tons sobre Tom. Sobre essa sequência, alterou os
acordes e escreveu uma melodia que em sua primeira
parte é toda em tom menor, saudoso e melancólico, para
se abrir em tom maior na segunda, quando a letra se
ilumina a partir de “Mas, se ela voltar / se ela voltar que
coisa linda, que coisa louca / pois há menos peixinhos a
nadar no mar / do que os beijinhos que darei na sua
boca”.
Foi uma overdose de escândalos. Um cantor que não
tinha voz para os padrões da era do rádio, cantando de
uma forma doce e feminina no reinado dos cantores viris
e grandiloquentes. Um ritmo esquisito que sambistas
tradicionais chamaram pejorativamente de “violão gago”.
Um poeta místico e dramático com a obra e a
respeitabilidade de Vinicius rimando beijinhos com
peixinhos.
Embora secundária como música e letra na obra
monumental de Tom e Vinicius, o tempo provou que a
melodia sinuosa e os acordes dissonantes, a letra
coloquial e inovadora e a nova batida de violão
envolvendo o canto mínimo e exato de João Gilberto
resultaram na criação de um novo gênero musical que,
em seguida, também ganharia os Estados Unidos, a
Europa e o Japão, e seria uma das maiores contribuições
brasileiras para a beleza e a alegria do mundo.
Eu sei que vou te amar
Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1958

Vinicius e Tom: dupla que formatou a bossa nova também foi fundo no
romantismo

Lançada em 1958, no momento em que a bossa nova


começava a revolucionar a música brasileira, esta canção
logo se tornou uma das mais gravadas da dupla Tom e
Vinicius. Tradicional e romântica em termos musicais e
poéticos, “Eu sei que vou te amar” tinha pouco em
comum com o estilo que foi sintetizado pela voz e o
violão de João Gilberto. Sua letra e sua melodia são
desesperadamente românticas, distantes do suingue
seco e sincopado, das harmonias dissonantes e das
letras coloquiais de Vinicius, cantando a leveza da vida
no paraíso carioca.
Mas tanto Tom Jobim quanto Vinicius de Moraes nunca
se restringiram a esses temas ou ao samba como a única
base musical, transitando com liberdade por modinhas,
valsas, choros, boleros, afro-sambas, sambas-canção.
O primeiro registro da música é de Sol Stein e seu
Conjunto, no LP Boate em sua casa, Vol. 1 – Encontro no
Au Bon Gourmet, em 1958, sem qualquer repercussão.
No ano seguinte, também não foi bem-sucedida com
Lenita Bruno, cantora de formação lírica, casada com o
maestro e arranjador Leo Peracchi, que deu a “Eu sei que
vou te amar” uma interpretação entre uma ária de ópera
e um standard de musical da Broadway. Só 35 anos
depois, quando finalmente João Gilberto gravou a sua
longamente amadurecida versão no disco Ao vivo – Eu
sei que vou te amar (1995), a canção ganhou sua versão
definitiva, mais próxima da bossa nova, como já tinha
sido antecipado, em 1978, por Caetano Veloso, discípulo
aplicado de João Gilberto, no disco Muito.
Dos mais bregas aos mais chiques, são incontáveis os
intérpretes de “Eu sei que vou te amar”, que se impõe
pela melodia arrebatadora e pela poética apaixonada de
Vinicius, como a mais popular música de casamentos em
todo o Brasil.
Em 2008 recebeu belíssima versão de Roberto Carlos
nas comemorações dos 50 anos da bossa nova. Em
2014, cantada por Ana Carolina, foi sucesso de novo
como tema de abertura da novela Em família. Foi
cantada a meia-voz pela multidão no funeral de Tom
Jobim.
Desafinado
Tom Jobim e Newton Mendonça, 1959

Em “Desafinado”, parceria com Newton Mendonça, Tom Jobim fez uma


canção-manifesto, sintetizando as inovações estéticas da bossa nova

Esta canção-manifesto da bossa nova é um clássico dos


mestres da efêmera e fundamental dupla Tom Jobim e
Newton Mendonça (1927-1960). Cariocas e aquarianos
do mesmo ano, Tom era lindo e charmoso, e Newton,
feioso e gorducho; juntos assinaram outra pedra
fundamental do estilo, “Samba de uma nota só”, e mais
alguns exemplos perfeitos da mescla de sofisticação e
apelo pop com “Meditação”, “Discussão”, “Caminhos
cruzados” e “Foi a noite”. Mas é a música “Desafinado”,
lançada por João Gilberto em fevereiro de 1959, que
melhor representa as conquistas estéticas de um estilo
que sintetizava, com leveza e humor, o samba com cool
jazz, clássicos impressionistas e minimalismo, na voz e
no violão de João.
“Desafinado” é o pedido bem-humorado de um cantor
para que a amada de ouvido privilegiado perdoe sua falta
de afinação na música e na vida. Ao mesmo tempo, Tom
e Newton rebatem didática, espirituosa e musicalmente
muitas das críticas feitas à bossa nova tanto pela
imprensa quanto pelo meio musical. As estranhezas que
soavam antimusicais para muitos críticos eram bossa
nova, eram muito naturais para aquele núcleo de jovens
criadores. Música e letra em perfeita sincronia brincam
com a ideia do título, forçando o limite da afinação no
fraseado musical, como no verso inicial “Se você disser
que eu desafino, amor”, que pode levar tanto ouvintes
quanto intérpretes ao erro. Muitos desavisados
comentavam que João Gilberto, o mais afinado dos
cantores brasileiros, era “desafinado”, confundindo o
efeito com o defeito.
“Você com a sua música esqueceu o principal / Que no
peito dos desafinados / No fundo do peito bate calado /
Que no peito dos desafinados também bate um coração.”
Sucesso também nos Estados Unidos, a partir da
gravação instrumental do saxofonista Stan Getz com o
guitarrista Charlie Byrd, lançada num single em 1962,
que vendeu mais de um milhão de cópias e faturou um
Grammy de “melhor performance de jazz”, “Desafinado”
foi uma das pontas de lança para espalhar a bossa nova
nos Estados Unidos. Ganhou duas versões em inglês:
“Slightly Out of Tune”, do cantor Jon Hendricks, e a que
vingou, mais fiel à ideia original, “Off Key”, por Gene
Lees, orientado por Tom Jobim.
A dupla teve papel decisivo para a canção brasileira e
teria imenso futuro, mas a vida desafinou com Newton,
que morreu aos 33 anos, vítima de enfarte, em 1960, no
momento em que a bossa nova começava a fazer
sucesso no Brasil. Tanto um quanto outro faziam música
e letra, portanto nunca se saberá ao certo quem fez o
quê. Mas, no caso de “Desafinado”, Johnny Alf, que Tom
adorava, certamente merece levar algum crédito, pois
“Rapaz de bem”, que Alf gravara em 1955, era uma
canção pioneira de melodia sinuosa e jazzística sobre
sequências de acordes dissonantes, que se alinha bem
com o espírito de “Desafinado”. Anos depois, recebeu
letra de Ronaldo Bôscoli e uma nova introdução, feita por
Tom Jobim.
Chiclete com banana
Gordurinha e Almira Castilho, 1959

Almira Castilho e Jackson do Pandeiro: dupla que misturou samba com


bebop e rock

Sucesso popular em 1959, na gravação de inconfundível


gingado do paraibano Jackson do Pandeiro, grande
mestre do suingue e das divisões rítmicas, “Chiclete com
banana” voltou às paradas em 1972, na voz de Gilberto
Gil, como um dos destaques do influente álbum Expresso
2222. Desde então, tem sido uma referência obrigatória
na afirmação da cultura musical brasileira, comentando
com humor a concorrência que o samba passou a
enfrentar com os ritmos de fora. Do bebop, um dos
estilos do jazz em voga nos anos 1950 (citado na
abertura da letra, “Eu só ponho bebop no meu samba /
Quando Tio Sam tocar um tamborim”), ao rock, que
começava a se espalhar pelo mundo.
Mesmo criticando a excessiva influência de ritmos
estrangeiros no Brasil, a canção era uma espécie de
samba-bop e também anunciava um novo híbrido, que,
anos depois, seria realidade com Jorge Benjor: “Olha aí, o
samba-rock, meu irmão.” Na letra engenhosa e no ritmo
sincopado se fundem gêneros que, apesar de espalhados
pelo continente americano, têm as mesmas raízes
africanas: jazz (bebop, boogie-woogie), rumba, samba,
coco.
Apesar de ter sido creditada ao baiano Gordurinha
(Waldeck Artur Macedo, 1922-1969) e à pernambucana
Almira Castilho (1924-2011), Jackson também participou
de sua criação. Em alguns discos, seu nome de batismo,
José Silva Gomes Filho (1919-1982), constou como
parceiro. Diz Almira, companheira de Jackson no palco e
na vida entre 1956 e 1967, que na época do lançamento
de “Chiclete com banana” eles não podiam dividir
composições por serem filiados a associações de autores
diferentes – ele estava na UBC (União Brasileira de
Compositores); ela, na SBACEM (Sociedade Brasileira de
Autores, Compositores e Escritores de Música). O samba
foi escrito a seis mãos. Gordurinha apresentou a ideia à
dupla, já com alguns versos e um esboço da melodia,
Jackson e Almira completaram a canção, mexendo no
arranjo e acrescentando alguns cacos e expressões
regionais. É dele o scat jazzístico que funciona como
introdução e dá charme especial e mais sentido à sátira
proposta na música.
A regravação de Gil, em 1972, também foi importante
para impulsionar a volta de Jackson do Pandeiro aos
palcos. Por mais uma década, o Rei do Ritmo pôde viajar
pelo Brasil com sua mistura de samba, baião, xote,
xaxado, coco, arrasta-pé, quadrilha, marcha, frevo e o
suingue irresistível que marcava seu estilo. Morreu aos
62 anos, em 1982, após passar mal durante um show em
Brasília, mas sua influência cresceu entre as novas
gerações. Uma das bandas de axé de maior sucesso
adotou Chiclete com Banana como nome e, em 1999,
Lenine usou trechos do clássico para homenagear o
mestre na música “Jack Soul Brasileiro”.
Ilusão à toa
Johnny Alf, 1961

Johnny Alf: precursor das harmonias da bossa nova e da, mesmo que velada,
temática gay

Um dos mais talentosos e originais compositores da


música brasileira, o carioca Johnny Alf (Alfredo José da
Silva, 1929-2010) teve a sorte de nascer com uma voz e
um dom musical raros. Mas, sendo negro, pobre e gay
em pleno Brasil dos anos 1950, estava destinado a
jamais conquistar sucesso popular e sequer receber o
devido reconhecimento crítico.
No fim da vida, aos 80 anos, Johnny, que sempre
evitou discussões sobre sua sexualidade, admitia o que
alguns percebiam na letra desta canção sobre um amor
secreto, trancado no armário. Nas entrelinhas, o genial e
tímido pianista cantava a melodia sinuosa de seus
sentimentos por um amigo também músico, que nem
desconfiava daquele amor discreto de uma só pessoa.
Em 1961, ano em que lançou “Ilusão à toa”, no seu
primeiro álbum solo, Rapaz de bem, a homossexualidade,
mais do que um tabu, ainda era um crime previsto pela
legislação então vigente no Brasil. Sem levantar bandeira
alguma, “Ilusão à toa” se afirma como uma grande
canção de amor, acima e além do gênero dos envolvidos.
E, ao longo das últimas cinco décadas e meia, tem
embalado muitos corações apaixonados de todos os
sexos e gerações.
Regravada por dezenas de intérpretes – Isaurinha
Garcia, Marcos Valle, Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Leny
Andrade, Emílio Santiago, Elis Regina, Gal Costa, Caetano
Veloso, Fafá de Belém, entre outros –, “Ilusão à toa”
inspirou pelo menos duas novas canções:
O sucesso dos anos 1980 “Um certo alguém”, de Lulu
Santos e Ronaldo Bastos, tem seu título tirado da
abertura da letra de Alf: “Eu acho engraçado quando um
certo alguém se aproxima de mim…”
Já no século XXI, Caetano se inspirou no verso “… a
conduzir o nosso amor discreto” para o título de sua
canção “Amor mais que discreto”, que também fala de
um amor gay.
Mesmo sendo de família pobre e órfão de pai, Johnny
teve boa formação cultural. Completou o ensino médio
em uma das mais concorridas escolas públicas do Rio,
estudou piano clássico desde os 9 anos, aprendeu inglês
e se encantou com o jazz e os standards de Cole Porter e
Gershwin, que ouvia no rádio e nas trilhas sonoras de
Hollywood. No fim dos anos 1940, decidiu que viveria de
música, como pianista e cantor na noite de Copacabana,
e logo atraiu a atenção de outros jovens músicos, como
Tom Jobim, João Donato e Carlos Lyra, fascinados pela
originalidade de seu estilo.
Precursor das harmonias jazzísticas e dissonantes que
anteciparam a bossa nova, pianista refinado e cantor de
voz de veludo com um fraseado musical sinuoso e cheio
de efeitos, Johnny Alf deixou uma obra relativamente
pequena em número e grandiosa em qualidade, como
um dos maiores estilistas da música brasileira.
Samba da bênção
Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963

Baden Powell compõe com Vinicius, que na letra desse afro-samba se


autodenominou “o branco mais preto do Brasil”

Lançado em 1966, o álbum Os afro-sambas é um marco


divisor da música popular brasileira. Mas a revolução
estética sintetizada nesse disco começara em 1962,
quando o virtuoso violonista fluminense nascido Baden
Powell de Aquino (1937-2000) começou a compor em
parceria com Vinicius de Moraes. É desse período
“Samba da bênção”, obra-prima de síntese rítmica e
poesia popular de alta densidade, anunciando as
inovações formais de Baden e Vinicius. O samba é um
dos destaques do álbum Vinicius & Odette Lara, editado
em 1963, ao lado de mais onze composições da então
recém-inaugurada parceria, incluindo outros pioneiros
afro-sambas como “Berimbau”, “Labareda” e “Deixa”.
Com suas canções impregnadas de magia, paixão e
negritude, Baden e Vinicius avançaram muito além da já
esgotada fórmula da bossa nova, que saía de moda no
Brasil e começava sua brilhante carreira internacional. Os
afro-sambas anunciavam o futuro bebendo no passado
ancestral, abrindo trilhas que logo seriam seguidas por
muitos outros, reaproximando o samba de suas fontes
afro-baianas e mudando o rumo da música brasileira.
Na letra autobiográfica, o poeta se apresenta (“Eu, por
exemplo, o capitão do mato / Vinicius de Moraes / Poeta e
diplomata / O branco mais preto do Brasil / Na linha
direta de Xangô, saravá!”) com uma declaração de
identidade cultural e oferece um manual de vida:
“É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor
coisa que existe / é assim como a luz no coração / Mas
pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado
de tristeza / senão não se faz um samba, não.”
Tão importante quanto a melodia simples sobre dois
acordes e um ritmo irresistível é a parte falada, em que,
sobre a base rítmica do violão de Baden, Vinicius
homenageava amigos e mestres do passado e do
presente pedindo-lhes a bênção: “A bênção, Dorival
Caymmi, João Gilberto, Pixinguinha, Noel Rosa, Tom
Jobim, Carlos Lyra, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ary
Barroso e muitos outros”, dedicando a cada um deles
uma pequena declaração de amor, respeito e amizade.
Entre eles, o maestro Moacir Santos (“que não és um
só, és tantos”) merece crédito à parte. Afinal, a gravação
original de “Samba da bênção”, em Vinicius & Odette
Lara, tinha arranjo e regência dele. Maestro, arranjador,
orquestrador, saxofonista, compositor e também
professor de dezenas de músicos da época, incluindo
Baden Powell, Moacir já vinha procurando essa reconexão
com a África em sua música, que foi reunida em seu
fundamental primeiro álbum, Coisas (1965).
Sem espaço no Brasil, Moacir (1926-2006) foi viver e
ensinar nos Estados Unidos em 1967 e nunca mais
voltou.
Em 1966, com a versão em francês de Pierre Barouh e
o título de “Saravá”, fez grande sucesso na França,
cantada por Barouh no popularíssimo filme Um homem,
uma mulher, de Claude Lelouch.
Em 2000, fez sucesso internacional em uma versão
electrobossa de Bebel Gilberto.
Garota de Ipanema
Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1963

Astrud Gilberto foi a primeira voz da “Girl from Ipanema”


Vinicius e Tom no bar onde escreveram “Garota de Ipanema”, com a
partitura da canção ao fundo.
Frank Sinatra gravou “Garota de Ipanema” em 1967 num álbum em dupla
com Tom.

É a música brasileira mais conhecida no mundo, uma das


cinco canções mais tocadas de todos os tempos.
E tudo começou quando Vinicius de Moraes e Tom
Jobim tomavam chope e jogavam conversa fora no Bar
Veloso (atual Garota de Ipanema), na esquina da rua
Montenegro, em Ipanema – que futuramente seria
rebatizada de Vinicius de Moraes –, quando viram passar
a jovem Heloisa Eneida, com seu corpo perfeito e um
biquíni mínimo, gingando a caminho do mar.
Depois de várias tentativas de letra de Vinicius,
finalmente a “Garota” foi apresentada ao público no
histórico show Encontro, na boate Au Bon Gourmet, que
reuniu o time de sonhos da bossa nova: João Gilberto,
Tom Jobim, Vinicius de Moraes (ainda diplomata, em sua
primeira experiência como cantor) e Os Cariocas, que
estreou em 2 de agosto de 1962.
Em cartaz por 45 dias com sucesso absoluto, o show
desmentia a voz corrente que dizia não haver nada mais
velho do que a bossa nova, desgastada e vulgarizada por
uma exposição maciça na publicidade e pela exploração
de oportunistas que surfavam na onda sem ter nada a
ver com aquele estilo.
Mas a “Garota de Ipanema” de Tom e Vinicius,
quintessência da bossa nova, foi um sucesso imediato,
que cresceu em progressões geométricas. No início de
1963, foram lançadas as três primeiras gravações: do
cantor Pery Ribeiro, de Os Cariocas e do Tamba Trio. Em
maio daquele ano, seria a vez da primeira com Tom
Jobim, em versão instrumental, para seu disco solo de
estreia nos Estados Unidos, no selo de jazz Verve: The
Composer of Desafinado Plays.
Até o fim daquele ano, saíram 18 outras gravações de
“Garota de Ipanema” no Brasil e nos Estados Unidos,
incluindo as de jazzmen de alto prestígio como Charlie
Byrd, Herbie Mann e Stan Getz. O álbum Getz/Gilberto –
Featuring Antonio Carlos Jobim, que reunia o saxofonista
com o violão e a voz de João Gilberto, o piano
minimalista de Tom, o contrabaixo de Tião Neto e a
bateria de Milton Banana, impulsionou o sucesso
internacional da canção.
Em meio às sessões, o produtor Creed Taylor sugeriu
que o disco também incluísse uma versão em inglês.
Como João não tinha intimidade alguma com o idioma de
Shakespeare, sua mulher, Astrud, que nunca gravara até
então, foi escalada para a missão. Como estamos
cansados de saber, lançada num single no fim de 1963,
“The girl from Ipanema” arrombou a festa. Em pleno
1964, quando Beatles, Stones, Dylan e companhia já
começavam a ditar as novas ordens e modas no mundo
pop, a gravação de Getz e dos Gilbertos chegou ao
quinto lugar na lista pop (a Hot 100) e ao primeiro na de
Easy Listening. No início de 1965, a ipanemense também
roubou a festa na cerimônia de entrega do Grammy,
levando o troféu de Gravação do Ano, enquanto
Getz/Gilberto ficou com três outros, incluindo o de Álbum
do Ano – pela primeira vez na história do Oscar da
música um disco de jazz, e também com um artista não
americano, vencia nessa categoria.
Inicialmente batizada de “Menina que passa”, a
canção tinha sido criada para um musical que Vinicius
planejava mas não chegou a terminar, Blimp. A versão
em inglês de Norman Gimbel carimbou o passaporte para
sua viagem sem fim e rendeu alguma discussão entre
Tom e o americano. Este não via sentido em manter o
nome do bairro/praia até então desconhecido fora dos
limites cariocas. Tom bateu o pé, não aceitava
transformá-la numa garota de South Beach, Malibu ou
qualquer outra chique e famosa dos Estados Unidos.
Logo, falantes anglo-saxões aprenderam a cantar
Ipanema, assim como franceses, japoneses, turcos,
russos, marcianos. O Rio agradece.
Se o bairro não mudou, o sexo da musa, sim. Já em
1964, a cantora de jazz Peggy Lee regravou-a como “The
Boy from Ipanema”, gênero também usado por
intérpretes como Ella Fitzgerald, Shirley Bassey e, mais
recentemente, Diana Krall. E “Garota de Ipanema” (e
suas versões “girl” ou “boy”) se tornou a segunda canção
popular mais regravada no mundo, atrás apenas de
“Yesterday”, de uns tais de Lennon & McCartney.
Comercialmente, “Garota de Ipanema” pode ter sido o
auge da dupla Tom & Vinicius, mas também sinalizou o
começo do fim. Após o sucesso, eles só fizeram mais
duas canções juntos: “Olha Maria”, em 1970, junto com
Chico Buarque, e, lançada na mesma época, “Chora
coração”, a única com letra na arrebatadora trilha sonora
do filme A casa assassinada, de Paulo César Saraceni.
Mas que nada
Jorge Ben Jor, 1963

Com seu samba diferente e inovador, Jorge Ben Jor fez uma revolução
pacífica na MPB

Apresentando-se como um “misto de maracatu”, este


“samba de preto velho” promoveu uma revolução
pacífica e festiva na canção brasileira. Lançado em 1963,
inicialmente num 78 rpm com “Por causa de você,
menina” no lado B, logo este samba diferente virou um
sucesso em todo o Brasil, apesar de tachado de primitivo
e infantil por boa parte da crítica. Com seu balanço
original e seu vigoroso violão percussivo de sotaque afro,
não dedilhado como na bossa nova, mas tocado com
palheta como entre rockers e bluesmen, Jorge Ben Jor (na
época ainda Jorge Ben) abriu novos caminhos para a
música popular, num momento em que a bossa nova já
dava sinais de esgotamento no Brasil. Uma volta às
raízes que apontava para o futuro.
Ainda em 1963, “Mas que nada” também foi a faixa
escolhida para abrir o álbum de estreia do cantor, Samba
esquema novo, produzido por Armando Pittigliani e
acompanhado pelo grupo de samba-jazz Os Copa 5,
liderado pelo saxofonista e arranjador J.T. Meirelles.
Hoje considerado um clássico da MPB, o álbum
também inclui sucessos como “Chove, chuva”, “Rosa,
menina rosa”, “Vem, morena, vem” e “Balança pema”.
Mas foi “Mas que nada” que melhor sintetizou o esquema
novo de Jorge Ben Jor, com o apelo irresistível de sua
levada e de sua letra rítmica e sonora, e começou a rodar
o mundo. Com a espetacular versão de Sérgio Mendes &
Brasil 66, tornou-se um big hit nos Estados Unidos e uma
das músicas brasileiras mais regravadas no mundo. Da
diva do jazz Ella Fitzgerald ao grupo de hip-hop Black
Eyed Peas em 2006.
O tijucano Jorge Ben Jor (Jorge Duílio Lima Menezes,
1942), de remota origem etíope, cresceu ouvindo samba
e também rock and roll, que seriam amalgamados em
seu estilo. No início da carreira, tanto se apresentava no
Beco das Garrafas, em Copacabana, reduto da bossa
nova e do samba-jazz, quanto em bailes de rock nos
subúrbios do Rio. Criticado pela MPB, a partir de 1965
teve lugar cativo no palco da Jovem Guarda, ao lado de
Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa, e, em seguida, foi
abraçado pela Tropicália, que viu nele um instintivo
pioneiro que realizava na prática a síntese musical que
eles propunham e tentavam fazer na teoria.
Apesar de se dizer “misto de maracatu”, o gênero
criado por Jorge se popularizou, mais apropriadamente,
como samba-rock.
O sol nascerá
Cartola e Elton Medeiros, 1964

Então musa da bossa nova, em 1964, Nara Leão foi até a Mangueira de
Cartola (na foto com sua mulher, Dona Zica) para se banhar no samba

Sucesso espetacular com Nara Leão em seu álbum de


estreia (Elenco, 1964), marca a volta de Cartola à vida
musical, depois de um começo vitorioso entre os bambas
do samba seguido de anos de ostracismo e alcoolismo,
até ser redescoberto pelo cronista Sérgio Porto lavando
carros em Copacabana e ter suas músicas gravadas por
Nara.
“O sol nascerá” nasceu dois anos antes, durante uma
noitada na casa de Cartola, quando o jovem Elton
Medeiros aceitou o desafio de seu mestre para criar uma
música na hora. E em pouco tempo os dois fizeram este
samba arrebatador, dividindo tanto a música quanto a
letra.
Angenor de Oliveira nasceu em 1908 e, com 11 anos,
se mudou com a família para o Morro da Mangueira,
onde, em 1928, ajudou a fundar a Estação Primeira. Além
de ter sugerido o nome da escola, foi Cartola quem
escolheu o verde e o rosa como as suas cores. Logo seus
sambas desceram para o asfalto. Amigo e parceiro de
Noel Rosa, nos anos 1930 teve músicas gravadas pelos
maiores intérpretes da época, como Sílvio Caldas,
Francisco Alves, Mário Reis e Carmen Miranda. Em 1940,
esteve entre os compositores populares que Heitor Villa-
Lobos levou até o maestro Leopold Stokowski, em um
estúdio montado num navio ancorado na Praça Mauá,
onde fez uma série de gravações depois lançadas em
disco nos Estados Unidos.
Pouco depois, devastado por uma desilusão amorosa,
Cartola sumiu dos bares e dos estúdios das rádios onde
mostrava suas músicas e mergulhou no álcool e no
abandono. Durante anos, ninguém ouviu falar dele.
No início dos anos 1960, resgatado do alcoolismo pelo
amor e a dedicação de Dona Zica, o sol voltava a nascer
para Cartola com a gravação de Nara, que marcava o
começo da fase mais produtiva e bem-sucedida de sua
carreira.
Com sua mensagem de esperança, o samba apostava
na alegria e no novo dia como um elixir musical para
todas as horas. Mas quando foi lançado, logo após o
golpe militar de 1964, a letra também foi ouvida como
uma metáfora política contra a ditadura, como nos
versos “finda a tempestade / o sol nascerá”.
Além de Nara, “O sol nascerá” ganhou mais quatro
versões, entre elas uma do próprio Cartola em seu
primeiro disco, um compacto duplo (com quatro faixas)
lançado pela gravadora Mocambo, sem qualquer
repercussão.
Em 1974, já com 66 anos, Cartola gravou em seu
primeiro álbum solo (Discos Marcus Pereira) uma
magistral versão de “O sol nascerá”, com a voz já curtida
por décadas de álcool, tabaco e afins, dando intensa
dramaticidade à receita para quem pretende levar a vida
sorrindo.
Primavera
Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1964

Um dos maiores melodistas da bossa nova, Carlos Lyra foi o parceiro


escolhido por Vinicius de Moraes para o musical Pobre menina rica

No início dos anos 1960, ambos tinham outros parceiros


e uma produção intensa. Vinicius de Moraes trabalhava
com Tom Jobim, Baden Powell e muitos jovens
compositores, como Edu Lobo e Francis Hime, enquanto
Carlos Lyra (1936) vinha de uma bem-sucedida parceria
com Ronaldo Bôscoli e ainda com Nelson Lins e Barros e
Geraldo Vandré. Mas, quando Vinicius pensou em uma
peça musical sobre o romance entre um mendigo
elegante e uma garota rica de dinheiro e pobre de amor,
foi Carlos Lyra que ele chamou para escreverem as 11
canções de Pobre menina rica, entre elas alguns futuros
clássicos da música popular brasileira.
Com sua melodia triste e pungente e os versos
doloridos de saudade e abandono, “Primavera” é um
deles.
Pobre menina rica não chegou a ser montado na
época, mas rendeu um disco lançado pela CBS em 1964.
Um ano antes, Lyra e Nara Leão, com Vinicius como
narrador, apresentaram as novas músicas em formato de
recital, na boate Au Bon Gourmet.
No disco, a primeira opção de Vinicius e Lyra para a
protagonista era a novata Elis Regina, mas Tom Jobim,
então diretor musical e arranjador, depois substituído por
seu mestre Radamés Gnatalli, preferiu a cantora carioca
Dulce Nunes. Entre as 11 canções da peça, estavam pelo
menos mais dois futuros clássicos da dupla, “Sabe você”
e “Maria Moita”.
Só em 1970, Pobre menina rica ganhou uma
montagem teatral, mas na Cidade do México, onde Lyra
estava vivendo, com o texto traduzido para o espanhol
por Gabriel García Márquez. No Brasil, a primeira
montagem na íntegra aconteceu em 1991, dirigida por
Aderbal Freire Filho. Em 1983, o musical foi adaptado
para o cinema por Miguel Faria Jr., com o título de Para
viver um grande amor e a estreante Patrícia Pillar e
Djavan vivendo o insólito par romântico, mas fracassou
nos cinemas. Restaram as lindas canções.
Em 1998, Tim Maia gravou uma emocionante versão
de “Primavera” como uma bossa nova temperada com
soul.
Trem das 11
Adoniran Barbosa, 1964

Adoniran Barbosa adicionou um sotaque caipira e italianado ao samba,


como em “Trem das 11”, lançado pelo grupo Demônios da Garoa

Ficou célebre o palpite infeliz de Vinicius de Moraes de


que “São Paulo é o túmulo do samba”. Mas depois se
esclareceu que foi apenas um desabafo do poeta, irritado
com um bando de bebuns barulhentos que não o
deixavam ouvir o samba que Johnny Alf tocava numa
boate paulistana. Johnny havia se mudado do Rio para
São Paulo, e a frase foi dita por Vinicius para consolá-lo,
provocando o bairrismo paulista.
Vinicius sabia que o samba paulista já era uma
realidade, com Vadico (parceiro de Noel Rosa em vários
clássicos), Paulo Vanzolini (de “Ronda” e “Volta por
cima”), Denis Brean (“Bahia com H” e “Boogie-woogie na
favela”), Germano Mathias e, especialmente, o
originalíssimo Adoniran Barbosa – que, desde os anos
1930, desenvolvia sua mistura de samba com música do
interior e a linguagem da colônia italiana de São Paulo,
que tinha no Brás seu quartel-general.
O próprio Vinicius já era parceiro de Adoniran no
samba-canção existencialista “Bom dia, tristeza”,
lançado em 1957 pela sambista acima de qualquer
suspeita Aracy de Almeida.
Cantor, compositor, comediante, o múltiplo Adoniran
teve nos Demônios da Garoa as vozes dos seus maiores
sucessos desde 1951, como “Malvina”, “Joga a chave”,
“Saudosa maloca”, “O samba do Arnesto” e o
megassucesso “Trem das 11”, lançado em 1964.
Adoniran desenvolveu com virtuosismo uma
linguagem popular ítalo-paulistana em que os erros
intencionais dão graça e humor aos seus sambas bem-
construídos, como no “Samba do Arnesto”:
“O Arnesto nos convidou / pro samba, ele mora no
Brás / nóis fumo e não incontremo ninguém / nóis
vortemo com uma baita duma reiva / Da outra vez nóis
num vai mais.”
E em “Tiro ao Álvaro”: “De tanto levar frechada do teu
olhar / meu peito até parece sabe o quê? / táubua de tiro
ao Álvaro / não tem mais onde furá.”
João Rubinato nasceu em Valinhos (1910) e se mudou
para a capital paulista em 1932, onde começou a
frequentar os estúdios de rádios e gravadoras e fez suas
primeiras músicas, estreando como cantor de rádio em
1934.
Composta em 1961, “Trem das 11” esperou três anos
até ser lançada pelos Demônios da Garoa. Em setembro
de 1964, o disco explodiu nas rádios do Brasil,
encantando o público com sua linguagem “errada” e
alcunhado de “Samba do Édipo” pelo verso “minha mãe
não dorme enquanto eu não chegar”. Maior sucesso de
Adoniran, permitiu que comprasse o sítio onde viveu até
o fim da vida, em 1982.
Além dos Demônios da Garoa, o “Trem” voltou ao
sucesso com Jair Rodrigues, Os Originais do Samba e
com Gal Costa, em 1973.
Mascarada
Zé Kéti e Elton Medeiros, 1965

Zé Kéti (na foto com Nara Leão) se inspirou num namoro durante o carnaval
para o samba em parceria com Elton Medeiros

Parceria de Zé Kéti e Elton Medeiros, o samba


“Mascarada” foi cantado pela primeira vez por Elton
Medeiros no álbum Roda de samba, lançado em 1965
pelo conjunto A Voz do Morro. Idealizado e liderado por
Zé Kéti, esse supergrupo começou a nascer durante o
musical Rosa de Ouro e também contava com Elton e os
bambas Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Zé Cruz,
Anescarzinho e Oscar Bigode. No ano seguinte, Elton
voltaria à canção, no álbum Samba na madrugada, que
dividiu com Paulinho da Viola, e logo esse belíssimo
samba melódico e refinado, com letra que descreve uma
típica paixão de carnaval, se tornaria um clássico e seria
adotado por muitos outros intérpretes.
Autor da melodia, Elton Medeiros revelou em 2010,
numa entrevista para o jornalista Chico Pinheiro no
programa Sarau (GloboNews), que, ao entregar a música,
alertou o parceiro que se tratava de “um samba que não
é samba nem é bossa nova”. Zé Kéti não se intimidou
com o samba diferente e escreveu a letra inspirado em
experiência própria. Durante o carnaval, participando do
desfile do Bloco das Piranhas, tinha se encantado por
uma moça que se escondia atrás de uma máscara.
Apesar dos flertes e dos amassos, só após o terceiro dia
de folia o sambista conseguiu conhecer o rosto da
misteriosa musa.
Elton conta que Zé Kéti chegou a apresentá-lo à ex-
mascarada, mas o namoro não durou muito, era coisa
passageira de carnaval. Ao contrário da arrebatadora
canção, que foi gravada por Jair Rodrigues, Beth
Carvalho, Zé Renato, Joyce e recebeu uma antológica
interpretação de Emílio Santiago, chegando ao século XXI
com o sucesso da gravação de Zeca Pagodinho.
O namoro não durou muito, mas, dois anos após
lançar “Mascarada”, Zé Kéti voltou a se inspirar no
episódio para cantar mais um amor de carnaval e
emplacou outro grande sucesso popular com a marcha-
rancho “Máscara negra”.
Preciso aprender a ser só
Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, 1965

Marcos Valle trocou o curso de Direito pela música e, aos 22 anos, emplacou
seu primeiro sucesso

Como muitos outros garotos de sua geração, o carioca


Marcos Valle (1943) foi contaminado pelo vírus da bossa
nova. Já fluente no acordeom e no piano, com o impacto
da entrada em cena de João Gilberto, também foi estudar
violão, chegando a formar um trio com Edu Lobo e Dori
Caymmi. Logo começou a fazer suas primeiras
composições, com letras do irmão Paulo Sérgio (1940).
Era o início de um caminho sem volta, que fez Marcos
trocar o curso de Direito na PUC pela música popular.
Paulo Sérgio se formou advogado, mas acabou se
tornando um dos maiores letristas do Brasil, com Marcos
e outros parceiros.
A balada romântica “Preciso aprender a ser só”, feita
por Marcos com apenas 21 anos, nasceu clássica e é um
exemplo da excelência e da maturidade artística
atingidas precocemente pelos irmãos. A música foi
apresentada pela primeira vez em maio de 1964 por Elis
Regina, num show para universitários em São Paulo, com
participação de Marcos e recepção apoteótica. Em abril
do ano seguinte seria lançada no álbum Dois na bossa,
de Elis e Jair Rodrigues, e um ano depois, em uma versão
jazzística, no LP Samba eu canto assim, de Elis Regina.
A versão de Marcos também saiu em 1965, em seu
segundo álbum solo, O compositor e o cantor, e logo foi
gravada por Os Cariocas, Dóris Monteiro, Alaíde Costa e
Pery Ribeiro. Quase uma década depois, também ganhou
uma homenagem transversa de Gilberto Gil, numa
belíssima balada que faz um contraponto com a canção
dos irmãos Valle sob uma ótica zen:
“E quando escutar um samba-canção / Assim como:
‘Eu preciso aprender a ser só’ / Reagir e ouvir o coração
responder: / eu preciso aprender a só ser.”
Vertida para o inglês por Ray Gilbert como “If You
Went Away”, também fez carreira no mundo do jazz e do
pop. Em 1966, Astrud Gilberto gravou-a no álbum Look to
the Rainbow, mas usou como título uma tradução quase
literal do original, “Learn to Live Alone”. No mesmo ano,
como “If You Went Away”, foi gravada por Sylvia Telles no
álbum The Face I Love. Dois anos depois, foi regravada
por Marcos Valle em seu primeiro disco produzido nos
Estados Unidos, Samba ‘68.
Mas sua definitiva incorporação ao seleto bloco de
standards do jazz foi com a apaixonada interpretação da
diva Sarah Vaughan, no álbum I Love Brazil, em 1977.
Samba de verão
Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, 1965

Dupla de irmãos hitmakers: Paulo Sérgio, três anos mais velho, foi o letrista
inicial de Marcos Valle

Além do talento, Marcos ganhou um presente geográfico


da vida: Tom Jobim morava em frente a sua casa, no
Leblon, e Marcos pôde beber fartamente dos
ensinamentos do mestre, que via em seu jovem discípulo
um grande talento criador e fazia dele o mais “jobiniano”
da segunda geração da bossa nova.
É o caso de “Samba de verão”, em que uma frase
musical simples se desenvolve em sequências
harmônicas tipicamente bossa-novistas que vão criando
um clima leve e solar, projetando imagens de praias no
verão carioca e meninas bonitas de biquíni, numa
combinação também presente na “Garota de Ipanema”
de seu mestre.
Com um balanço leve e envolvente, luminoso e
caloroso, o narrador, com o coração aquecido pelo verão,
descreve os encantos de uma musa que passeia pela
praia, com “esse mar do olhar” e “vai ver não tem quem
amar”. É uma típica cantada carioca.
Na época, a bossa nova já andava desgastada no
Brasil, mas a qualidade da construção de “Samba de
verão” provou que o estilo ainda era capaz de mostrar
frescor e reservar muitas surpresas. Como o sucesso nos
Estados Unidos. Primeiro e surpreendentemente, com
uma versão instrumental, do organista Walter Wanderley,
que foi um estrondoso sucesso popular e chegou aos
primeiros lugares da hit parade da Billboard.
Marcos gravou a canção em seu segundo álbum solo,
O compositor e o cantor (1965), com arranjos e regência
de Eumir Deodato – que, meses antes, tinha lançado uma
versão instrumental da música com seu grupo, Os
Catedráticos. Sucesso nas rádios, foi regravada ainda
naquele ano por vários intérpretes.
Depois, com letra em inglês de Norman Gimbel e os
títulos de “Summer Samba” ou “So Nice”, se tornou uma
das músicas brasileiras mais regravadas no mundo.
Segundo levantamento da editora americana BMI,
“Samba de verão” só fica atrás da “Garota de Ipanema”.
No século XXI, voltou a fazer grande sucesso com Bebel
Gilberto e Stacey Kent em inglês e com Caetano Veloso
em português.
Canto de Ossanha
Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966

Baden & Vinicius: a parceria que criou os afro-sambas

Com a bossa nova já decadente no Brasil e seu parceiro


Tom Jobim morando nos Estados Unidos, Vinicius de
Moraes mudou de novo o rumo da música brasileira
quando criou com o violonista Baden Powell o afro-
samba, um estilo oposto à bossa nova branca e carioca,
inspirado pelos ritmos e cantos de candomblé da Bahia e
pelo mundo mágico dos orixás.
Os primeiros afro-sambas, “Consolação” e
“Berimbau”, caíram como bombas de ritmo sobre o
intimismo da bossa nova. O fraseado musical ecoava
cantos ancestrais, cheios de dramaticidade e tensões
que explodiam em refrões abertos e festivos, cantados
em coro com Elis Regina e Jair Rodrigues pelos auditórios
do programa O fino da bossa e também gravados com
sucesso pelo Quarteto em Cy e pelo Tamba Trio.
Tudo começou em 1962, quando Vinicius, empolgado
com discos de cantos de candomblé da Bahia
presenteados pelo poeta Carlos Coqueijo, encontrou
Baden, recém-chegado de uma viagem a Salvador, onde
ficara fascinado com os ritmos e os cantos dos terreiros.
Além de anunciar o novo estilo, “Berimbau” e
“Consolação” foram grandes sucessos populares como
um novo caminho da música brasileira.
Vinicius, que se dizia o branco mais preto do Brasil, e
Baden, um mulato carioca que era o maior violonista do
momento, viveram três meses num belíssimo
apartamento da mulher do Poetinha no Parque Guinle.
Após dezenas de litros de uísque, saíram com os
primeiros 25 afro-sambas, entre eles o clássico “Canto de
Ossanha”.
“O canto da mais difícil / E a mais misteriosa das
deusas / Do candomblé baiano / Aquela que sabe tudo /
Sobre as ervas / Sobre a alquimia do amor.”
Baden e Vinicius continuaram compondo até 1966,
quando gravaram o disco histórico, com oito afro-
sambas, arranjos do maestro Guerra Peixe e vocais do
Quarteto em Cy – um dos melhores e mais influentes
discos da história da música brasileira.
No texto de apresentação, Vinicius dizia que Baden
“conseguiu carioquizar, dentro do samba moderno, o
candomblé afro-brasileiro, dando-lhe, ao mesmo tempo,
uma dimensão mais universal”.
Domingo no parque
Gilberto Gil, 1967

Gilberto Gil defende “Domingo no parque”, canção-fundadora da Tropicália

O ano era 1967 e a cidade, São Paulo, novo centro


irradiador da música brasileira com a TV Record. A
emissora dominava a audiência com uma programação
que apresentava um musical todas as noites em horário
nobre, desde O fino da bossa, com Elis Regina e Jair
Rodrigues, até Jovem Guarda, com Roberto Carlos,
Erasmo e Wanderléa, além dos festivais. Estes passaram
a ser os grandes eventos musicais a partir de 1965,
inicialmente na TV Excelsior, quando venceu “Arrastão”,
de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e 1966, já na Record,
quando “A banda”, de Chico Buarque, e “Disparada”, de
Théo de Barros e Geraldo Vandré, empataram no
primeiro lugar e dividiram o país.
Os ânimos estavam exaltados, a discussão musical e o
debate político, restrito pela ditadura, se misturavam
com artistas e canções que representavam posições
quase sempre de oposição ao governo. O festival de
1967 começou cercado de altas expectativas, os grandes
nomes da nova geração de (ex-)universitários como
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e
Geraldo Vandré, já mais amadurecidos, apresentariam
suas melhores canções. As torcidas organizadas se
preparavam para gritar pelos seus ídolos e vaiar todos os
outros concorrentes.
A TV Record estimulava a briga entre a Jovem Guarda
e a nova MPB, opondo a “música jovem” à “música
brasileira” e exacerbando o nacionalismo. Seis meses
antes do festival, a Record promoveu uma bizarra
passeata contra a guitarra elétrica. O instrumento seria o
símbolo da dominação estrangeira, mas o protesto,
liderado por Elis Regina, Geraldo Vandré e Gilberto Gil, foi
ridicularizado pela imprensa.
Gil (1942), que não acreditava em nada daquilo, logo
viu que tinha se precipitado. Afinal, ele ficara
enlouquecido com o álbum Sgt. Peppers, dos Beatles, e
pensava em apresentar sua música no festival com
guitarras, muitas guitarras, e outras sonoridades do rock
internacional. Como os amigos e parceiros Caetano
Veloso, Torquato Neto e Capinam, Gil não estava
satisfeito com o nacionalismo ortodoxo da MPB e queria
uma nova música brasileira, com uma linguagem pop
que misturasse os ritmos nacionais com o rock e outros
gêneros, num estilo que no futuro seria chamado de
tropicalista.
Quando Gil mostrou a sua música a amigos e
concorrentes, todos ficaram apavorados: seria muito
difícil ganhar de “Domingo no parque”. Era um baião,
mas um baião muito diferente de tudo o que se conhecia,
com uma letra que parecia um filme, com seus closes,
planos gerais e travellings em montagem fragmentada,
contando a história de um triângulo amoroso que termina
em sangue e morte na roda-gigante de um parque de
diversões.
Para o festival, Gil encomendou ao maestro Rogério
Duprat um grande arranjo de orquestra, inspirado nos de
George Martin para os Beatles, e chamou um jovem trio
de rock para cantar e tocar com ele: os Mutantes, com a
guitarra de Sérgio Dias, o baixo de Arnaldo Baptista e os
vocais e as percussões de Rita Lee.
Mesmo em um festival marcado por vaias ferozes e
generalizadas, a canção de Gil impôs respeito e
empolgou o público, que sentia estar diante de algo
realmente novo na música brasileira. Sim, a guitarra e o
baixo roqueiros se misturavam muito bem com o baião,
se harmonizavam com as sonoridades clássicas das
cordas e dos metais da orquestra em fraseados
modernos e elegantes, em perfeita sincronia com a letra
dramática e cinematográfica.
“Domingo no parque” empolgou, provocou grande
polêmica, mas não ganhou, embora a maioria dos
concorrentes a considerassem a melhor – e mais
inovadora – canção do festival. Numa disputa
apertadíssima, perdeu para “Ponteio”, de Edu Lobo e
Capinam, quintessência da melhor MPB possível em letra
e música, enquanto Chico Buarque ficava em terceiro
com “Roda viva” e Caetano Veloso, em quarto com
“Alegria, alegria”.
A música brasileira nunca mais seria a mesma depois
daquela noite em 1967, em que nasceu, mas ainda sem
ser batizado, o Tropicalismo.
Travessia
Milton Nascimento e Fernando Brant, 1967

Milton Nascimento canta no terceiro FIC, em 1967, no qual concorreu com


três canções, incluindo “Travessia”

Em 1967, depois de cinco anos ralando como músico da


noite paulista e nos bailes da vida, Milton Nascimento
(1942) viu a roda da fortuna girar a seu favor, quando a
já popularíssima Elis Regina gravou a sua “Canção do
sal” e o encorajou a participar, como intérprete, do II
Festival Nacional de Música Popular Brasileira, na TV
Excelsior. Milton se classificou em quarto lugar com
“Cidade vazia”, de Baden Powell e Lula Freire, mas
detestou a experiência de ver colegas se digladiando na
disputa e jurou nunca mais participar dos festivais
competitivos que empolgavam o país.
Promessa feita e cumprida, certa noite o carioca mais
mineiro do Brasil foi surpreendido pelos telefonemas de
parabéns de amigos. Para sua surpresa, ele estava entre
os selecionados no II Festival Internacional da Canção, da
TV Globo, com nada menos que três músicas, inscritas à
sua revelia pelo amigo Agostinho dos Santos. Sabendo da
decisão do compositor, Agostinho – um dos principais
intérpretes brasileiros –, pediu-lhe uma fita com “Morro
Velho”, “Travessia” e “Maria, minha fé” para mostrar a
seu produtor e inscreveu-as no festival.
O resto é história. “Maria, minha fé”, interpretada por
Agostinho dos Santos, caiu na primeira eliminatória, mas
as outras duas, ambas na voz privilegiada de Milton,
chegaram à finalíssima: “Travessia” ficou com o segundo
lugar (atrás de “Margarida”, de Guttemberg Guarabyra) e
“Morro Velho”, com o sétimo. De quebra, Milton saiu do
Maracanãzinho com o prêmio de melhor intérprete. Aos
24 anos, também chamou a atenção dos convidados
internacionais que participavam do festival, como o
produtor americano Creed Taylor, com quem assinou um
contrato para gravar nos Estados Unidos. Como na
canção que o consagrou, soltou a voz nas estradas para
não mais parar. Foi a sua travessia do anonimato ao
sucesso e ao prestígio.
“Travessia” foi a primeira parceria de Milton com o
mineiro Fernando Brant (1946-2015), que até então
nunca tinha escrito letras. Milton vinha trabalhando
numa canção que batizara de “O vendedor de sonhos”,
mas, empacado na letra, foi até Belo Horizonte em busca
da ajuda do amigo. Só depois de muita insistência, Brant
concordou em tentar e acabou também fazendo a sua
travessia pessoal para se tornar um dos mais
importantes letristas brasileiros.
Wave (Vou te contar)
Tom Jobim, 1967

Inicialmente sem a letra escrita por Tom, “Wave” foi lançada em seu quarto
LP solo (e o batizou)

Tom Jobim teve grandes parceiros, como Vinicius de


Moraes, Newton Mendonça e Chico Buarque, mas
também fazia letras muito bem e, a partir de um
momento de sua carreira, passou a assinar sozinho cerca
de 40 canções, não só em português como em inglês,
entre elas vários clássicos, como “Wave”.
Inicialmente em versão instrumental, “Wave” batizou
o quarto disco solo de Jobim, gravado entre maio e junho
de 1967 no Van Gelder Studio, em Nova Jersey. No ano
seguinte, já com sua letra e a participação no arranjo, a
canção foi gravada pelo grupo vocal Quarteto 004 no
Brasil. Em seguida, “Wave” iria abrir e fechar o pot-pourri
“Tributo a Tom Jobim”, ao lado de “Fotografia” e “Outra
vez”, faixa do disco Elis especial, de Elis Regina. Desde
então, essa onda não parou de bater, incluída no
repertório de inúmeros intérpretes ao redor do mundo.
Ao contrário dos discos anteriores de Tom – todos
feitos por encomenda de gravadoras americanas,
reunindo regravações de seus sucessos –, o repertório de
Wave era quase todo inédito. Muitas das novas músicas
foram escritas durante uma longa temporada em Los
Angeles, enquanto aguardava o início das gravações de
Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, que foi
finalizado em janeiro de 1967. Nesse período, saudoso do
Rio e da família, incomodado com o clima árido e seco da
região, ele compôs uma safra que incluiu a bela canção
“Triste” (com o célebre verso “tua beleza é um avião”) e
os temas instrumentais “Batidinha”, “The red blouse”,
“Antigua”, “Captain Bacardi” e “Mojave”.
A frase “Vou te contar”, que abre a canção e também
virou o subtítulo de “Wave”, foi uma sugestão de Chico
Buarque, com quem Tom começava a trabalhar em
parceria. A partir daí, escreveu a letra toda. Meses
depois, fez a impecável versão em inglês, gravada por
grandes vozes da canção americana.
Pra não dizer que não falei das
flores (Caminhando)
Geraldo Vandré, 1968

Geraldo Vandré não ganhou o festival, mas conseguiu emplacar a canção


mais política do período, adotada pela oposição à ditadura militar que ficou
mais dura a partir de 1968
Ele queria fazer uma canção direta, com poucos acordes,
veículo para a mensagem que pretendia passar. E
acertou em cheio. Na forma, no conteúdo e também na
maneira como apresentou “Pra não dizer que não falei
das flores” nas eliminatórias e na final do III Festival
Internacional da Canção Popular, em setembro de 1968.
Enquanto a maioria dos intérpretes subiam ao palco com
grande orquestra, e tropicalistas ainda adicionavam
guitarras e grupos de rock, Geraldo Vandré (1935) abriu
mão de qualquer acompanhamento: apenas sua voz e
seu violão.
Voz e violão que, a cada nova etapa do festival,
passaram a ser amplificados pelo coro da plateia. Até a
noite final, em 29 de setembro, para um Maracanãzinho
lotado, quando “Caminhando” (como ficou conhecida a
canção) perdeu o primeiro lugar para “Sabiá”, de Tom
Jobim e Chico Buarque. Esta, mais sofisticada
musicalmente, também tinha uma letra política, falava
do exílio e de um Brasil que se distanciava de muitos de
seus encantos. Mas, no fla-flu que virou a disputa entre
as duas, não havia lugar para sutilezas. A parcela mais
esquerdista do público adotou a música do cantor e
compositor paraibano como um hino de resistência ao
regime, com versos como “quem sabe faz a hora, não
espera acontecer”, “acreditam nas flores vencendo o
canhão” e “há soldados armados, amados ou não, quase
todos perdidos de armas na mão”.
A menção às Forças Armadas incomodou
especialmente os militares, quando setores mais radicais
passaram a pedir a cabeça de Geraldo Vandré. Após a
decretação do Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro
de 1968, o cantor foi obrigado a sumir de cena. Por
quase três meses ele se escondeu na casa de amigos,
até sair clandestinamente do Brasil, em 1969, para um
exílio que se prolongou por quatro anos.
“Caminhando”, é claro, caiu nas garras da Censura, os
discos foram retirados das lojas e sua execução pública
foi proibida. Até 1979, ano da Anistia, quando finalmente
voltou às paradas, regravada pela cantora Simone. Já o
compositor pôde retornar ao Brasil em 1973, no auge da
ditadura, após muitas negociações sigilosas que selaram
um acordo com o governo. Voltou mas não retomou a
carreira artística. Desde então, foram raras suas
aparições públicas e a única nova canção que lançou,
“Fabiana”, era uma homenagem à Força Aérea Brasileira.
Aquele abraço
Gilberto Gil, 1969

Gilberto Gil partiu para o exílio londrino, em 1969, com esse samba de
despedida

A situação não poderia ser pior nem mais triste. Preso


após o AI-5, em dezembro de 1968, Gilberto Gil achava
que ficaria ali a vida inteira ou sumiriam com ele. Dois
meses depois, quando foi libertado e recebeu a ordem
para sair do Brasil, encontrou a inspiração para compor
um dos mais alegres e empolgantes sambas de nossa
história musical, que se transformou em um sucesso
instantâneo.
Lançada em agosto de 1969 num single, “Aquele
abraço” foi uma das músicas mais tocadas nas rádios
brasileiras e um dos discos mais vendidos do ano, num
sucesso de dimensões até então inéditas na carreira de
Gil, que acompanhou tudo a distância, em Londres, num
exílio que se estendeu por três anos.
Em entrevista ao compositor Carlos Rennó para o livro
Todas as letras, Gil relembrou como nasceu “Aquele
abraço”. Em meados de 1969, depois da prisão em São
Paulo e dois meses trancado com Caetano Veloso num
quartel do Exército no subúrbio carioca de Deodoro, e
ainda um período de liberdade vigiada em Salvador, Gil
veio ao Rio tratar com os militares a sua saída do Brasil.
Na casa da mãe de Gal Costa, dona Mariah, e depois no
voo de volta à Bahia, criou sua ode à Cidade Maravilhosa
e sua canção de despedida. “Finalmente eu poderia sair
do país e tinha que dizer bye-bye; sumarizar o episódio
todo que estava vivendo numa catarse. Que outra coisa
para um compositor fazer uma catarse senão numa
canção?”
No seu samba, Gil exaltou o Rio de Janeiro e alguns de
seus grandes símbolos pop, sem conotações políticas ou
qualquer referência à prisão. No lugar do bairro de
Deodoro, onde ficou preso, preferiu botar outro subúrbio
da Central, Realengo, rimando com torcida do Flamengo,
embora fosse torcedor do Fluminense, abraçando a
Portela mesmo sendo mangueirense, saudando a Banda
de Ipanema, a moça da favela, o “Velho Guerreiro”, o
palhaço Chacrinha, que balançava a pança, buzinava a
moça e comandava a massa. Por meio da beleza e da
alegria do Rio de Janeiro, Gil mandava um abraço de
despedida a “todo o povo brasileiro”, que seria
fartamente retribuído ao longo dos anos até hoje.
País tropical
Jorge Ben Jor, 1969

Composta por Jorge Ben Jor e lançada pelos amigos tropicalistas Gal, Gil e
Caetano, foi após a gravação de Wilson Simonal que “País tropical” virou um
dos maiores hits do Brasil

Depois de uma estreia retumbante, em 1963, com “Mas


que nada”, “Chove chuva” e “Por causa de você,
menina”, a música de Jorge Ben Jor, na época ainda Jorge
Ben, vinha perdendo espaço. Num Brasil cada vez mais
politizado e polarizado, a espetacular batida de seu
samba-rock e o uso da guitarra elétrica passaram a ser
vistos pela turma mais sectária da MPB como sinais
inimigos, símbolos do imperialismo ianque e do
abominável rock and roll.
“País tropical” foi primeiro gravada em 1969 pelos
tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, que
adoravam o estilo de Jorge e tinham sua música como
referência do movimento, marcando o início da sua volta
ao sucesso, incorporando influências do Tropicalismo à
sua maneira de compor. Logo em seguida, teve uma
espetacular gravação de Sérgio Mendes nos Estados
Unidos. Mas foi com Wilson Simonal que “País tropical” se
tornou um dos maiores hits da história da música
brasileira.
Em 1970, o carioca Wilson Simonal rivalizava com
Roberto Carlos como o cantor mais popular do Brasil,
como criador de um estilo alegre e dançante que
chamava de “pilantragem”. Emplacando um sucesso
atrás do outro, Simonal ouviu a música de seu velho
amigo Jorge sobre as maravilhas de viver num país
abençoado por Deus e bonito por natureza, de ser
Flamengo e ter uma nega chamada Teresa, e adorou seu
balanço irresistível. Encantou-se também com sua
linguagem malandra e ufanista, que poderia se confundir
com a radicalização nacionalista da ditadura na
campanha “Brasil, Ame-o ou deixe-o”, mas se tornou o
maior sucesso de sua carreira e uma das músicas mais
queridas de nossa história.
Simonal também popularizou uma versão alternativa
da letra, criada por Jorge, em que as palavras eram
cantadas sem a última sílaba, e se tornou mais popular
que a versão original: “Mó num pá tropi” se tornou ícone
sonoro de um tempo.
Com uma levada rítmica empolgante e uma melodia
intuitiva e fluente, a declaração de amor ao Brasil de
Jorge, por sua qualidade e sinceridade, superou qualquer
eventual conexão com o ufanismo autoritário e
sobreviveu no tempo como um hino de alegria e
brasilidade.
Foi um rio que passou em minha
vida
Paulinho da Viola, 1969

Paulinho da Viola filmou em samba a magia de um desfile da Portela

Traição, remorso e redenção se combinam na origem


deste hino informal da Portela e um dos maiores sambas
de todos os tempos. A história começa em 1968, quando
o portelense da gema Paulinho da Viola (1942) musicou
“Sei lá, Mangueira”, uma letra de Hermínio Bello de
Carvalho, que planejava incluir o samba num show
celebrando a verde e rosa. Mas Paulinho foi surpreendido
pela notícia de que o poeta mudara de ideia. Percebendo
a força do novo samba, Hermínio o inscreveu no IV
Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record, em
que foi interpretado por Elza Soares. Sucesso imediato,
deixou em pânico Paulinho, então presidente da ala de
compositores da Portela: o que diriam seus colegas na
escola de Oswaldo Cruz dessa declaração de amor à
rival?
Perturbado com a repercussão da música na Portela,
coração dividido e réu confesso, o jovem sambista só
pensava naquilo. Até que, certa tarde, caminhando pelo
Centro do Rio, este clássico em formato de samba-
enredo, com uma longa letra de 29 versos, começou a
brotar em sua cabeça e em seu coração azul e branco.
Normalmente vagaroso no compor, Paulinho criou “Foi
um rio que passou em minha vida” de uma lavada só,
traduzindo plasticamente a sua sensação ao assistir a um
desfile da Portela: “… aquele azul / não era do céu / nem
era do mar / foi um rio que passou em minha vida / e o
meu coração se deixou levar.”
Gravada em 1969, saiu inicialmente num compacto
duplo feito para lançar “Sinal fechado”, a canção
vencedora naquele ano do V Festival da Record. Mas fez
tanto sucesso que, no ano seguinte, “Foi um rio que
passou em minha vida” voltou e deu nome ao segundo
álbum solo de Paulinho, tornando-se o maior sucesso de
sua carreira.
No carnaval de 1970, por sugestão do então
presidente da Portela, Natal, o samba foi cantado antes
do início do desfile. Desde então, “Foi um rio…” virou
uma espécie de amuleto sonoro, esquentando a entrada
da escola na avenida a cada carnaval, número
obrigatório nos ensaios na quadra ou, seja qual for a
agremiação, em qualquer roda de samba que se preze.
Apesar de você
Chico Buarque, 1970

Proibida semanas após o disco chegar às lojas, “Apesar de você” já tinha


virado um hino de protesto contra a ditadura militar. Veto que só aumentou
seu apelo

Em 1970, depois de um autoexílio de dois anos na Itália,


Chico Buarque de Hollanda (1944) voltou ao Brasil para
enfrentar o clima de terror da ditadura e a marcação
implacável da Censura, que exigia aprovação das
músicas antes que fossem gravadas.
Quando os advogados da gravadora Philips mandaram
aquela música para o Departamento de Censura Federal
(que, em 1972, seria formalizado como Divisão de
Censura de Diversões Públicas, DCDP), então
responsável pela triagem, não tinham a menor
expectativa de liberação. Afinal, tema e autor batiam de
frente com os fundamentos do regime vigente. Mas o
censor ou era um idiota ou um patriota, e “Apesar de
você” foi liberada sem cortes e gravada imediatamente.
Assim que as rádios começaram a tocar, virou um
sucesso instantâneo em todo o Brasil. Ninguém
acreditava no que ouvia: um samba extrovertido, alegre
e debochado, cantando o que tanta gente queria dizer e
ouvir, um recado direto à ditadura, abusado e
contundente. Grande samba que lavou a nossa alma.
Em poucos dias o Brasil inteiro estava cantando
“Apesar de você” como um hino da resistência, como um
desafio e uma esperança, a primeira que
experimentávamos desde o AI-5, decretado em
dezembro de 1968. Mas a alegria durou pouco: logo os
órgãos da repressão perceberam o tamanho da encrenca
e tomaram providências. A música foi sumariamente
proibida, e os discos, confiscados nas lojas. A fábrica da
Philips foi invadida pelo Exército e todos os discos com a
canção maldita foram apreendidos e destruídos.
Tarde demais: mais de 100 mil discos já tinham sido
vendidos e, mesmo sem tocar no rádio, a música
circulava em cópias de cassete, e todo mundo já tinha
aprendido e cantava, cada vez mais, com mais força, em
qualquer lugar, a qualquer pretexto.
Chico, mais uma vez, foi intimado a dar explicações e,
cínica e deslavadamente, disse a seu interrogador que o
samba era para uma mulher muito mandona e
autoritária. Drible de gênio da resistência democrática,
tornou-se uma das canções mais cantadas do Brasil. E
custou a Chico a vingança da Censura ultrajada, que
ordenou que, a partir daí, toda e qualquer obra dele
deveria ser interditada, mesmo que fosse uma cantiga de
ninar, levando-o a criar o personagem Julinho da
Adelaide para novos dribles na ditadura.
Construção
Chico Buarque, 1971

Tijolo a tijolo, Chico Buarque construiu uma das mais engenhosas canções
brasileiras

Marco divisor em sua obra e carreira, com essa canção e


o disco de mesmo nome lançado em 1971, Chico
Buarque (1944) mostrou aos seus (poucos) críticos que
era muito mais do que um continuador de Noel Rosa ou
um ótimo letrista que também fazia músicas. A densa e
pesada “Construção” é uma engenhosa e sofisticada
composição de estrutura matemática que remete a João
Cabral de Melo Neto, montada com permutações de
palavras-chave sobre uma marcação rítmica obsessiva e
crescente, para desenvolver em rimas proparoxítonas e
virtuosísticas a história trágica da morte de um operário
de construção.
Numa canção cinematográfica, com imagens
dramáticas de um cotidiano massacrante, a letra
construída por Chico, além do rigor literário, mostra
sinais da estética da Poesia Concreta, desenvolvida pelos
irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio
Pignatari, que tanto influenciaram e apoiaram os
tropicalistas.
“E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou
no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito
um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio
náufrago / Morreu na contramão atrapalhando o público.”
Fundamental para a potência da gravação de Chico foi
a grandiosidade épica e ruidosa do arranjo do
tropicalista-concretista Rogério Duprat, grande maestro
da vanguarda musical paulistana que teve papel
fundamental nos trabalhos que Caetano, Gil e os
Mutantes fizeram durante a Tropicália.
No mesmo disco, mostrando sua evolução e
amadurecimento musical e poético, Chico ainda
apresentava músicas poderosas como a irada “Deus lhe
pague” (que décadas depois seria gravada por grupos de
heavy metal), a opressiva “Cotidiano”, a belíssima “Olha,
Maria” (com Tom Jobim) e “Samba de Orly” (com
Toquinho), mas foi a faixa-título que mais se destacou,
apontando para os caminhos que a obra de Chico iria
seguir.
Detalhes
Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1971

Lançada em 1971, “Detalhes” abriu o álbum que, para muitos, é o melhor


de Roberto Carlos

Faixa de abertura e principal destaque do disco que


lançou em 1971, esta balada devastadora funcionou
como um rito de passagem na carreira de Roberto Carlos
(1941). Aos 30 anos, ele começava a deixar para trás o
ídolo da Jovem Guarda para se transformar no maior
cantor romântico brasileiro. Sucesso popular imediato e
até hoje uma das mais amadas pelo seu público, a
canção também ganhou aplausos unânimes da crítica,
que na época ainda costumava desmerecer e subavaliar
a obra de Roberto e Erasmo.
Mais um fruto da parceria com Erasmo Carlos (1941),
a letra da música, em forma de list song, lembra os
pequenos mas tão importantes detalhes que marcam as
lembranças felizes de um amor passado, mas ainda vivo:
“a velha calça desbotada”, “os erros do meu português
ruim”, “o ronco barulhento do meu carro”… e a
advertência irônica “não vá dizer meu nome à pessoa
errada”.
Como conta o biógrafo proscrito Paulo Cesar de Araújo
no livro proibido Roberto Carlos em detalhes, apesar de
ter consciência de que acabara de criar um clássico,
movido por seu lendário perfeccionismo, Roberto
implicou com a palavra “ronco”, por sua sonoridade bruta
e possíveis outros sentidos pouco poéticos. E, até entrar
no estúdio, testou a letra com diversos amigos, mas,
como ninguém estranhou, o ronco ficou na história da
música brasileira.
Roberto começou a compor “Detalhes” sozinho, numa
noite em março de 1971, em São Paulo, onde vivia na
época. No dia seguinte, ao ouvir o rascunho que gravara,
percebeu que estava diante de algo maior. Animado e
ansioso, sem querer perder tempo e o momento da
inspiração, ligou para Erasmo no Rio, que pegou o
primeiro voo e naquela mesma tarde terminaram a
canção.
A inspiração e a intuição de Roberto não falharam.
“Detalhes” nasceu clássica e conquistou
instantaneamente todos que a ouviram e, meses depois,
abriu o seu álbum do ano. Um de seus melhores discos,
seu poderoso repertório incluía uma composição que
Caetano fez para ele (“Como dois e dois”) e outras
pérolas com Erasmo, como “Amada amante”, “Todos
estão surdos” e “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”,
dedicada a Caetano, então eLivros em Londres, mas
“Detalhes” foi a que bateu mais forte.
A gravação de Roberto foi valorizada por um
sofisticado arranjo do maestro americano Jimmy Wisner,
e a levada rítmica e a estrutura harmônica de “Detalhes”
lançaram um modelo de canção que depois foi
infinitamente imitado e explorado no Brasil.
Não quero dinheiro (Só quero amar)
Tim Maia, 1971

Do segundo álbum solo de Tim Maia, “Não quero dinheiro (Só quero amar)”
sintetiza o soul carioca do cantor e compositor

No fim dos anos 1960, depois do AI-5 que endureceu a


ditadura, a música brasileira estava em crise. A MPB
parecia ter chegado a um impasse criativo, com os seus
principais nomes (Caetano, Gil, Chico Buarque, Edu Lobo,
Geraldo Vandré) fora do país. O Tropicalismo, que havia
rachado a MPB em busca de liberdade e modernização
pop, mas não chegou a ter sucesso popular,
praticamente acabou com o exílio de Gilberto Gil e
Caetano Veloso em Londres. O rock brasileiro, que nunca
chegou a ser um movimento, se resumia aos casos
isolados de Rita Lee, Raul Seixas e Mutantes. É nesse
vazio que surge como um furacão Tim Maia.
Depois de cinco anos nos Estados Unidos, Sebastião
Rodrigues Maia (1942-1998) voltou ao Brasil com 23 anos
e uma grande novidade: a mistura explosiva do funk, do
soul e do R&B americanos com ritmos nacionais – uma
alquimia sonora que mudou os rumos da música
brasileira, que ficou mais alegre, mais suingada, mais
negra e mais romântica.
Em 1968, Tim emplacou seu primeiro sucesso, o funk
raivoso “Não vou ficar”, que foi um marco na carreira de
Roberto Carlos. Um ano depois, começou a se tornar
conhecido nacionalmente por seu sensacional dueto com
Elis Regina em “These Are the Songs”, em que fazia uma
integração de soul e bossa nova. Até que, em 1970, foi
contratado pela Philips para seu primeiro LP, um arrasa-
quarteirão que se tornou o maior sucesso e a melhor
novidade do ano, graças a hits como “Azul da cor do
mar” e “Coroné Antônio Bento”, uma recriação de uma
composição de João do Vale e Luiz Wanderley, como uma
pioneira fusão de funk com xaxado.
Mas foi no seu segundo álbum, em 1971, que Tim
Maia sedimentou de vez a sua original mistura. No
repertório estava o clássico “Não quero dinheiro (Só
quero amar)”, uma melodia construída sobre uma levada
soul seca, que se desenvolve em uma sequência
ascendente para desembocar no refrão irresistível,
síntese de um novo gênero musical que conquistou
imediato sucesso popular, influenciando as gerações que
vieram depois.
Nos anos 1990 foi regravada com grande sucesso por
Marisa Monte e Ivete Sangalo.
Tarde em Itapuã
Toquinho e Vinicius, 1971

Último parceiro de Vinicius, o violonista Toquinho estreou com chave de


ouro, nesse samba lançado pela dupla e a cantora Marilia Medalha

A partir dos afro-sambas que fez com Baden Powell, no


início dos anos 1960, o carioca e “branco mais preto do
Brasil” foi virando baiano. Até se mudar de mala e cuia
para uma casa na praia de Itapuã com sua nova mulher,
a baiana Gessy Gesse, numa temporada que inspirou a
criação de um dos seus maiores sucessos na parceria
com o violonista paulistano Toquinho. A letra hedonista é
um autorretrato do artista maduro curtindo a vida e o
amor: “Um velho calção de banho / um dia pra vadiar…”
Em maio de 1969, cinco meses após o AI-5, Vinicius
foi aposentado compulsoriamente do Itamaraty – o que,
de certa forma, facilitou a sua vida de artista, a qual
passou a exercer plenamente. Com 56 anos, ele se livrou
de vez dos ternos, das exigências e dos protocolos da
carreira diplomática para ser artista e para continuar
sendo um eterno adolescente em sua vida amorosa,
largando tudo e se reinventando a cada nova paixão. Seu
sétimo casamento, com a baiana Gessy, 26 anos mais
nova, levou-o à Bahia e ao candomblé, e, por algum
tempo, a casa na praia de Itapuã virou seu porto seguro
quando não estava navegando pelos palcos.
Na verdade, Vinicius pouco desfrutou da idílica Itapuã.
Em boa parte graças ao trabalho iniciado em 1970 com
Toquinho, seu derradeiro parceiro fixo, a última década
de vida do poeta foi de intensa atividade e muitas
viagens. Violonista virtuoso e compositor de talento,
Toquinho (Antonio Pecci Filho, 1946) virou o seu fiel
escudeiro em discos e shows, dos circuitos universitários
no interior do Brasil aos clubes, bares e teatros da
Argentina, do Uruguai, de Portugal e da Itália. Em turnês
na base de dois banquinhos e algumas doses de uísque,
com o violão e a voz de Toquinho e uma cantora – Marilia
Medalha ou Maria Creuza foram as mais frequentes –,
Vinicius fez mais de 1.000 shows, até sua morte aos 67
anos.
O casamento musical com Toquinho rendeu mais de
100 canções, entre elas “A tonga da mironga do
cabuletê”, “Regra três”, “Meu pai Oxalá”, “Testamento” e
“Tarde em Itapuã”, que foi uma das primeiras, abrindo o
álbum Como dizia o poeta…, de Toquinho, Vinicius e
Marilia Medalha, lançado em 1971. Inicialmente, Vinicius
escreveu a letra para ser musicada por Dorival Caymmi,
mas, ajudado pela preguiça de Caymmi, o novato
insistiu, trabalhou dois meses na composição e
conquistou definitivamente o parceiro consagrado.
Nada será como antes
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1971

Gravada por Milton no álbum duplo que dividiu com Lô Borges (no centro),
“Nada será como antes” é um de seus hits em dupla com Ronaldo Bastos (à
direita)

Gravada em 1971 por Joyce, num compacto com o grupo


A Tribo, formado por Nelson Ângelo, Naná Vasconcellos,
Toninho Horta e Novelli, e logo depois por Elis Regina,
“Nada será como antes” entrou no mundo das canções
eternas no álbum duplo Clube da Esquina, em 1972. Ela
é uma das muitas preciosidades lapidadas por Milton
Nascimento com Ronaldo Bastos (1948), um carioca
nascido em Niterói que integrou, ao lado de Fernando
Brant e Márcio Borges, a fundamental troika de parceiros
que o carioca mais mineiro do mundo alternou na sua
carreira luminosa. Durante a década de 1970, no período
mais intenso da dupla, Milton e Ronaldo também
assinaram “Cais”, “Fé cega, faca amolada”, “Cravo e
canela” e “Circo Marimbondo”.
Com sua pegada pop, a música revelava o amor de
Milton e seus parceiros pelos Beatles e companhia, que
eram execrados pela MPB ortodoxa da época. A letra de
Ronaldo refletia o turbulento período político que o Brasil
atravessava, com a repressão aterrorizando a juventude
e o perigo escondido em cada esquina, quando a vida na
estrada passou a ser uma opção para tantos jovens
insatisfeitos com o estado de coisas. A outra era cair na
clandestinidade e na luta armada.
Além das possíveis esperanças da estrada,
premonitoriamente, a canção também parecia anunciar
que nada mais seria igual na música brasileira após o
álbum duplo feito por Milton Nascimento & Lô Borges e
quase duas dezenas de compositores, arranjadores e
intérpretes, que entrou para a história como Clube da
Esquina. Uma reunião informal de amigos e talentos que,
sem planos, receitas ou restrições culturais, misturou
samba, jazz, rock, bolero, abrindo uma riquíssima
terceira via para a música brasileira, que seria uma das
mais influentes nas décadas seguintes.
O sucesso de “Nada será como antes” mostrou sua
perfeita sintonia com o momento, e logo a canção
também começou a ser reconhecida fora do Brasil.
Inicialmente entre os músicos de jazz, que adotaram a
versão para o inglês de Rene Vincent, “Nothing Will Be As
It Was”, lançada no álbum Milton (1976), gravado em Los
Angeles, ao lado de Wayne Shorter, Herbie Hancock,
Hugo Fattoruso e Airto Moreira. E seguiu com o pé na
estrada, nas vozes jazzísticas de Sarah Vaughan, Flora
Purim e Tânia Maria.
Águas de março
Tom Jobim, 1972

Clássico instantâneo, “Águas de março” não para de ser regravado desde


seu lançamento, em 1972. Mesmo que, dois anos depois, tenha recebido
aquela que é considerada a versão imbatível, no igualmente clássico álbum
Elis & Tom

Em 1972, após uma escalada de sucesso no Brasil e no


exterior, que teve como pontos máximos a conquista, em
1964, do Grammy de Canção do Ano com “Garota de
Ipanema” e, em 1967, um disco em dupla com Frank
Sinatra, Tom Jobim não vivia uma boa fase. Estava com
45 anos, queixava-se que a bossa nova tinha acabado,
que ninguém gravava mais suas músicas, que as rádios
não as tocavam no Brasil. Mágoas que tentava afogar na
bebida, como contou tempos depois: “Parecia que tudo
havia acabado para mim, que eu não tinha mais nada a
fazer. O médico disse que eu ia morrer de cirrose.”
Foi nessa época, durante uma temporada no seu sítio
Poço Fundo, na região serrana do Rio de Janeiro, área de
difícil acesso, no meio da natureza selvagem, sem
qualquer contato com a civilização, que nasceu “Águas
de março”. Tom vinha trabalhando em outra música,
“Matita Perê”, quando surgiram os primeiros acordes ao
violão e os primeiros versos. Ficou tão entusiasmado que
acordou a família para mostrar uma primeira versão da
música, rabiscada num papel de pão. De volta ao Rio,
completou-a numa tarde e saiu eufórico para o bar
Antonio’s, no Leblon, onde se reuniam muitos de seus
amigos. Todos tiveram certeza de que estavam
conhecendo um clássico instantâneo.
Gravada pelo próprio Tom, “Águas de março” foi
lançada em maio de 1972 num compacto que
apresentava do lado B “Agnus Sei”, a música de estreia
de João Bosco com letra de Aldir Blanc. As duas canções
também inauguravam a série Disco de Bolso, vendida
nas bancas de jornais, criada pelo semanário de humor e
política O Pasquim, que fazia enorme sucesso na época.
Entre o otimismo e o pessimismo, com imagens
ligadas à natureza e à trajetória da vida, os versos
fragmentados de “Águas de março” têm sonoridade,
ritmo e cadência notáveis, bem como perfeita integração
com a melodia, garantindo a Tom Jobim um lugar entre
os nossos maiores letristas, além do músico soberano
que sempre foi.
Naquele mesmo ano, João Gilberto fez uma versão
impecável, enquanto o compositor regravou-a, em Nova
York, para o LP Matita Perê (1973). Em 1974, foi a vez do
registro de maior sucesso, um dueto de Elis Regina e
Tom, com arranjo de César Camargo Mariano e produção
de Aloysio de Oliveira realizada em Los Angeles. “Águas
de março” foi o destaque de Elis & Tom, o disco de
comemoração de seus dez anos na gravadora Philips.
O próprio Tom tratou de verter a letra para o inglês. Já
com pleno domínio da língua de Shakespeare, e
horrorizado por algumas versões precárias de outros
sucessos da bossa nova, ele foi fiel às imagens originais
e ainda se deu ao luxo de evitar palavras de raiz latina,
privilegiando as anglo-saxônicas. Grandes intérpretes do
pop e do jazz, como Al Jarreau, Ella Fitzgerald, Dionne
Warwick e Frank Sinatra, também se banharam nas
“Waters of March”.
Na década de 1980, a música foi tema de uma grande
campanha mundial da Coca-Cola, num arranjo pop de
grande sucesso popular, tornando-se uma das canções
mais tocadas do planeta. Aplaudido internacionalmente,
em sua terra Tom foi vítima permanente das críticas e
ressentimentos mais ferozes, acusado de mercenário e
vendido aos americanos, que o levaram a concluir que
“no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”.
Pérola negra
Luiz Melodia, 1972

Balada blues que apresentou ao mundo Luiz Melodia, “Pérola negra” serve
também como um apelido para esse cantor e compositor carioca tão original

Cartão de visita explosivo de um compositor até então


inédito, “Pérola negra” foi apresentada ao mundo
durante a temporada de Fa-tal: Gal a todo vapor, no Rio
de Janeiro. O revolucionário show dirigido por Waly
Salomão (ou Sailormoon, como assinava na época o
poeta) estreou em novembro de 1971, no Teatro Tereza
Raquel, e logo virou um disco duplo que, quatro décadas
depois, continua como um dos melhores e mais
influentes de Gal Costa. Entre canções de Caetano,
Novos Baianos, Macalé & Waly, Roberto & Erasmo e
sambas antológicos de Ismael Silva e Geraldo Pereira,
chamou a atenção aquele blues pesado e pungente,
digno de uma Billie Holiday, do desconhecido Luiz
Melodia, que se transformou num dos hinos do verão
louco de 1972. Um sucesso que viraria clássico para
qualquer estação e revelaria um de nossos compositores
mais originais.
Descoberto por Waly, o artista plástico Hélio Oiticica e
o cineasta underground Ivan Cardoso em suas andanças
pelas periferias cariocas, Melodia (1951) era um jovem
negro do morro de São Carlos, junto ao bairro do Estácio,
que cresceu ouvindo tanto o samba quanto a Jovem
Guarda, tanto o forró quanto o rock, o blues e o soul.
“Pérola negra” é fruto dessa formação sem preconceitos
nem limites, e abriu as portas da indústria do disco para
o extraordinário cantor e compositor inspirado, que,
ainda em 1972, emplacou na voz de Maria Bethânia
outra balada arrasadora, “Estácio, Holly Estácio”.
A bela gravação de Gal foi um perfeito lançamento,
mas “Pérola negra” ganhou sua versão definitiva como
canção-título do disco de estreia de Melodia, em 1973.
Em vez da roupagem roqueira de Gal (arranjo do
tropicalista Lanny Gordin, mas com a guitarra nas mãos
de Pepeu Gomes, que o substituiu no show), na versão
do autor a música ganhou uma embalagem luxuosa jazzy
& bluesy em clima de big band. Um tratamento mais
lírico, centrado na voz rascante e aveludada de Melodia,
no piano de Antonio Perna, no baixo de Rubão Sabino e
no fraseado dos sopros. A letra é uma cantada meio
desesperada do compositor tentando seduzir sua musa,
que chama de “Pérola negra”, inspirado pelo nome de
guerra de um travesti do morro de São Carlos.
Na verdade, a pérola negra da música brasileira é Luiz
Melodia.
Folhas secas
Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973

Nelson Cavaquinho canta com sua principal intérprete nos anos 1970, Beth
Carvalho

O que era para ser uma homenagem lírica e nostálgica à


Mangueira gerou uma história de traições, brigas e
discórdias.
“Folhas secas” é uma obra-prima da fase madura da
dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, que, em
1973, começava a receber as merecidas “flores em vida”
que cobrara em um samba. Suas músicas eram
disputadas pelos grandes interprétes da época, e “Folhas
secas” foi gravada simultaneamente por Elis Regina e
Beth Carvalho.
“Folhas secas” estava reservada para Beth, que, cada
vez mais enfronhada no mundo dos bambas do samba,
tinha escolhido a música ainda inédita da dupla, e
convidou César Camargo Mariano para fazer os arranjos
do disco Canto para um novo dia (Tapecar), com a
participação de Nelson Cavaquinho.
Os arranjos e o piano de César ficaram maravilhosos,
o problema foi ele ser também o pianista, arranjador e
namorado de Elis Regina. Encantado com o samba, César
mostrou a gravação para o então diretor artístico da
Polygram e produtor de Elis, Roberto Menescal, que
também foi arrebatado pela canção e, atropelando a
ética, decidiu oferecê-la a Elis para o disco que estava
gravando.
Amiga de César, Beth ficou furiosa, com justa razão, e
gravou a música correndo, ainda a tempo de sair junto
com a gravação de Elis, que lhe deu uma interpretação
quase minimalista com um jazz trio, enquanto Beth
privilegiava uma versão mais exuberante com
instrumentação tradicional de samba.
Ainda em 1973, o próprio Nelson gravou a sua versão,
em seu terceiro álbum solo, Nelson Cavaquinho (EMI-
Odeon). Com sua voz rouca, rascante e rachada, e o seu
improvável violão rústico tocado com dois dedos, deu
ainda mais emoção e autenticidade à história nostálgica
de um velho bamba relembrando a mocidade e os poetas
de sua Estação Primeira de Mangueira.
Ouro de tolo
Raul Seixas, 1973

Nordeste e rock se encontraram na obra do baiano Raul Seixas, que fundiu


toada e folk à la Dylan na irônica “Ouro de tolo”

Em plena ditadura militar, esta original balada pop,


quase um pastiche irônico de Bob Dylan e Roberto
Carlos, ousou questionar, pelo deboche e o sarcasmo, o
“milagre econômico” e o Brasil Grande da ditadura.
Narrada na primeira pessoa, em tom confessional e
fazendo paralelos com a vida do cantor, a letra desfila as
conquistas e as dúvidas de um sujeito “bem-sucedido”,
com salário no banco, carro do ano, apartamento em
Ipanema, “depois de passar fome por dois anos na
Cidade Maravilhosa”. As realizações materiais e os
sonhos de consumo não anestesiam a indignação do
personagem com a miséria, as mentiras e as ilusões que
o cercam. Miséria também moral e espiritual, de um “ser
humano ridículo, limitado / que só usa dez por cento de
sua cabeça animal”.
“Ouro de tolo” foi instantâneo e retumbante sucesso
popular, da noite para o dia transformou Raul num ídolo
pop, graças ao humor sarcástico e contundente da letra,
à melodia envolvente e ao arranjo que misturava
elementos de balada romântica, folk, toada sertaneja e
poesia de cordel.
“Eu é que não me sento / no trono de um
apartamento / com a boca escancarada cheia de dentes /
esperando a morte chegar”, provocava Raul.
Na virada dos anos 1950 para os 1960, enquanto
muitos de seus contemporâneos e futuros colegas na
música se encantavam com a voz e o violão de João
Gilberto, o jovem Raul Santos Seixas (1945-1989) estava
ligado no rock elétrico de Elvis Presley e companhia e foi
o sócio no 1 do Elvis Presley Fã-Clube da Bahia.
A partir da segunda metade dos anos 1960, quando
colegas de geração, como Caetano, Gil, Chico, Edu Lobo
e Milton Nascimento, começavam a conquistar o Brasil
consagrados nos grandes festivais de música, Raul ralava
no underground com seus primeiros grupos de rock.
Ainda em Salvador, à frente da banda Raulzito e Os
Panteras, conseguiu um contrato com a gravadora
Odeon, mas, lançado em 1968, o disco homônimo passou
em branco.
Em 1971, voltou a investir em sua carreira, no disco
coletivo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta
Sessão das 10, ao lado de Miriam Batucada, Sérgio
Sampaio e Edy Star. Hoje cultuado e já anunciando algo
do estilo que o consagraria em seguida, o projeto
fracassou nas rádios e nas lojas.
Em 1972, Raul classificou duas músicas para a final
brasileira do Festival Internacional da Canção, “Let me
sing, let me sing”, metade rock e metade baião, que ele
mesmo cantou, com um look de Elvis Presley, e “Eu sou
eu, Nicuri é o Diabo”, com o grupo Os Lobos. Não
ganhou, mas conquistou o público e a imprensa e ganhou
um contrato da Philips/Polygram, então a principal
gravadora da MPB.
Assim como no álbum coletivo, essas duas canções
apontavam para a fusão orgânica de pop e ritmos
nordestinos que “Ouro de tolo” iria consolidar. Lançada
num compacto em maio de 1973, abriu caminho para o
revolucionário álbum Krig-ha, Bandolo!, que chegou ao
mercado dois meses depois. Mais do que sinônimo de
rock no Brasil, depois desse pulo de pantera, ele criou
seu próprio e inconfundível estilo que até hoje ecoa no
grito de guerra de seus fãs em shows de qualquer artista:
Toca Raul!
Metamorfose ambulante
Raul Seixas, 1973

Surpreendente e iconoclasta, Raul tratou de se autodefinir em “Metamorfose


ambulante”, mais uma canção do LP que o consagrou

Depois do retumbante sucesso popular de “Ouro de tolo”,


Raul Seixas se manteve em alta execução com
“Metamorfose ambulante”, balada existencialista que
também foi destaque no seu primeiro álbum solo, Krig-
ha, Bandolo!, que anunciava um inusitado encontro do
rock brasileiro com o candomblé baiano em “Mosca na
sopa” e, talvez já por influência de Paulo Coelho, seu
parceiro em “Al Capone”, com as filosofias orientais e o
misticismo.
“Metaformose ambulante” é o autorretrato de um
artista em eterna revolução interna. É uma carta de
intenções anunciando os seus planos de voo livre,
apostando nas contradições como uma das chaves para
lidar com um mundo também sempre em movimento.
Aos 29 anos, quando se tornou parceiro de Paulo Coelho,
Raul foi apresentado por ele às drogas, a seitas
esotéricas e também ao pensamento místico do satanista
inglês Aleister Crowley.
Além de leituras esotéricas, Paulo Coelho contou em
um documentário que “da maconha ao ácido e à cocaína,
do chá de cogumelo ao mandrix”, apresentou a Raul
todas as drogas, que lhe abriram as portas da percepção
para a revolução comportamental sonhada pela
contracultura.
Num álbum com mais sucessos populares, como
“Ouro de tolo”, “Mosca na sopa”, “Al Capone” e
“Rockixe”, foi “Metamorfose ambulante” a música que
melhor expressou a natureza, a atitude e o estilo de Raul,
com sua letra confessional, analítica e didática.
“Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante / Do
que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”
Um sucesso espetacular que ultrapassava de longe as
suas melhores expectativas, não tirava de Raul Seixas a
consciência da efemeridade dos sentimentos, da vida e
da glória:
“Se hoje eu sou estrela / amanhã já se apagou / se
hoje eu lhe odeio / amanhã lhe tenho amor / eu sou um
ator.”
Raul morreu dormindo em 1989, aos 44 anos, e
sempre dizia que não era um cantor nem um compositor,
mas um ator fazendo esses papéis, que era só um magro
abusado.
Maracatu atômico
Nélson Jacobina e Jorge Mautner, 1974

Lançada por Gil e depois regravada por Jorge Mautner em seu segundo LP
solo, “Maracatu atômico” voltou, nos anos 1990, turbinada pelo mangue
beat de Chico Science & Nação Zumbi

Filho de um judeu austríaco e uma católica iugoslava


refugiados do nazismo, o poeta, romancista e filósofo
Jorge Mautner nasceu no Rio do Janeiro, em 1941, onde
viveu até os 7 anos. Até se mudar para São Paulo, com a
mãe e seu segundo marido, um violinista, o garoto
conviveu intensamente no mundo do candomblé levado
por sua babá, que era uma ialorixá. Estudioso de Marx e
Nietzsche, surgiu como um fenômeno ao ganhar, aos 21
anos, o maior prêmio literário brasileiro, o Jabuti, com
seu romance de estreia, Deus da chuva e da morte.
Comunista, com o golpe de 1964 foi preso e se exilou em
Nova York, onde viveu a explosão do pop, e depois em
Londres, onde se aproximou de Gilberto Gil e Caetano
Veloso.
De volta ao Brasil, Mautner, que, em 1966, já tinha
lançado um compacto simples com as músicas
“Radioatividade” e “Não, não, não”, encontrou no jovem
violonista carioca Nélson Jacobina (1953-2012) o seu
parceiro ideal. Em 1974, Gilberto Gil deu seu aval à
qualidade da dupla gravando “Maracatu atômico”, com
grande execução nas rádios. Enquanto a música de
Jacobina estilizava e modernizava os ritmos do maracatu
pernambucano, a letra de Jorge fundia o atômico ao
primitivo e o humor pop ao expressionismo alemão.
Receita de aparente complexidade que resultou num
grande sucesso popular.
“Atrás do arranha-céu tem o céu, tem o céu / E depois
tem outro céu sem estrelas / Em cima do guarda-chuva,
tem a chuva, tem a chuva / Que tem gotas tão lindas que
até dá vontade de comê-las.”
Vinte e dois anos depois, os pernambucanos Chico
Science e Nação Zumbi, maior revelação da música
brasileira nos anos 1990, produziram uma sensacional
regravação da música de Jacobina e Mautner como um
heavy maracatu futurista, com base rítmica ultrapesada
envolvida pelos timbres rascantes das guitarras e dos
beats eletrônicos. Reunindo o primitivo regional com as
raízes africanas e os sons planetários, “Maracatu
atômico” sintetizava o Mangue Beat e se tornou um
clássico do pop brasileiro.
A lua e eu
Cassiano e Paulo Zdanowski, 1975

Paraibano radicado no Rio, Cassiano fez (com letra do carioca Paulo


Zdanowski) uma envolvente fusão de balada soul e samba-canção

Uma balada-soul romântica, envolvente e totalmente


fora dos padrões da época, de harmonia sofisticada e
letra sofrida, existencialista como as dos sambas-canção
de Lupicínio Rodrigues, “A lua e eu” estourou nas rádios
brasileiras em 1976, impulsionada por sua inclusão na
trilha sonora da novela O grito, da TV Globo.
“Quando olho no espelho / estou ficando velho e
acabado.” O canto pungente tocava o Brasil, e Cassiano
tinha só 32 anos.
Era a faixa de encerramento de Cuban soul: 18
kilates, terceiro álbum solo de Cassiano, com oito
composições do guitarrista e cantor em parceria com
Paulo Zdanowski (1957). O disco virou uma referência
básica como o perfeito encontro do soul e do R&B com as
harmonias jazzísticas do samba-canção e da bossa nova,
emplacando mais alguns sucessos nas rádios, como
“Coleção” (regravada por Ivete Sangalo nos anos 1990),
“Onda” e “Salve essa flor”, envolvidos pelos polifônicos
arranjos vocais do trio Os Diagonais.
“A lua e eu” não era só um sucesso do momento, com
o tempo se tornou um clássico. Continua em qualquer
programação de flashback, entrou no repertório de
cantores da noite e tem sido regravada por outros
intérpretes, incluindo uma sublime gravação da diva da
MPB Nana Caymmi, em 1997.
Nascido em Campina Grande, Paraíba, em 16 de
setembro de 1943, ainda criança Genival Cassiano dos
Santos foi com a família para o Rio de Janeiro. Até poder
fazer da música seu ganha-pão, dividiu o violão que
começou a aprender na adolescência com o trabalho
como ajudante de pedreiro. Apoiado pelo pai, também
instrumentista, conseguiu seguir sua vocação e, com dois
irmãos, formou o Bossa Trio em meados dos anos 1960.
Com seu grupo seguinte, os Diagonais, participou da
Turma da Pilantragem e gravou dois álbuns solo.
Um dos pais do soul brasileiro, Cassiano começou a
ser reconhecido a partir do álbum de estreia de Tim Maia,
em 1970, com o grande sucesso de “Primavera (Vai
chuva)” e “Eu amo você”, em parceria com Silvio
Rochael, participando das gravações como guitarrista e
backing vocal.
Olhos nos olhos
Chico Buarque, 1976

Entre os talentos de Chico Buarque está o de dar voz às mulheres, como


Maria Bethânia provou ao gravar “Olhos nos olhos”, em 1976

Além de todo o seu talento de melodista e letrista, Chico


Buarque desenvolveu, ao longo de sua carreira, uma
habilidade especial para fazer músicas não só sobre
mulheres, mas pelas mulheres, falando por elas e dando-
lhes uma voz, várias vozes.
Nenhum compositor, nem seu mestre Vinicius de
Morais, mergulhou mais fundo nos mistérios da alma
feminina e expressou melhor os desejos e os sentimentos
das mulheres do que Chico. Personagens como a mulher
submissa que ama e espera o marido boêmio em “Com
açúcar, com afeto”, encomendada por Nara Leão, em
1966, e a do devastador clássico “Atrás da porta” (em
parceria com Francis Hime, 1971), com Elis Regina, que
dá voz pungente a uma mulher desesperada de dor e
abandono.
Pelos versos do compositor também falaram a
guerreira “Bárbara”, do musical Calabar: o elogio da
traição, em seu romance tórrido com Ana de Amsterdam:
“Vamos ceder enfim à tentação / Das nossas bocas cruas
/ E mergulhar no poço escuro de nós duas.” A
protagonista rodriguiana de “Mil perdões”, que diz com
sarcasmo ao homem a seus pés: “Te perdoo por contares
minhas horas / Nas minhas demoras por aí / Te perdoo /
Te perdoo porque choras / Quando eu choro de rir / Te
perdoo por te trair.” A perigosa e desafiadora mulher de
“Folhetim”: “Se acaso me quiseres / Sou dessas mulheres
que só dizem sim / Por uma coisa à toa, uma noitada boa
/ Um cinema, um botequim.” Ou ainda a trágica Medeia
de um subúrbio carioca devastada pela traição e pela
humilhação na dilacerante “Gota d’água”: “Deixa em paz
meu coração / Ele é um pote até aqui de mágoa / E
qualquer desatenção, faça não / Pode ser a gota d’água.”
São muitas as mulheres criadas por ele. Mas, além
desse conhecimento dos desvãos da alma feminina,
Chico toca onde os homens mais sentem o que as
mulheres lhes dizem, onde mais doem suas palavras e
lembranças, onde mais os ferem seus ódios e rancores,
suas mentiras e traições. Nos diversos personagens que
ele criou, as mulheres se sentem representadas – os
homens sofrem com as mulheres de Chico.
Com tantas canções sobre o melhor e o pior do amor
do ponto de vista feminino, “Olhos nos olhos”, de 1976, é
a que mais se destaca. Em grande parte, devido à
interpretação de Maria Bethânia, visceralmente vivendo
o melodrama da mulher abandonada que deu a volta por
cima e mudou de vida depois que “tantos homens me
amaram / bem mais e melhor que você”. Desafiadora, a
personagem comemora:
“Olhos nos olhos, quero ver o que você diz / Quero ver
como suporta me ver tão feliz.”
Um soco no coração.
As rosas não falam
Cartola, 1976

Aos 67 anos, quando muitos caminham para a aposentadoria, Cartola


mostrou “As rosas não falam”, gravada em 1976

Com fluidez, lirismo sintético e uso perfeito do idioma


culto, a letra deste samba está à altura de qualquer
mestre da poesia parnasiana. Sim, o estilo nascido no fim
do século XIX na França, e que teve tantos adeptos no
Brasil até a revolução estética da Semana de Arte
Moderna, em 1922, estava entre as referências de
Cartola, o genial sambista que teve direito a uma
segunda grande chance na vida.
“As rosas não falam”, um samba lento em clima de
choro, lançado em disco por Beth Carvalho, em julho de
1976 e logo em seguida também gravado pelo
compositor, é fruto dessa volta por cima do sambista da
Mangueira.
Depois de um início promissor entre os bambas do
samba nos anos 1930 e 1940, Cartola sumiu por mais de
uma década, foi dado como morto. Até 1956, quando o
jornalista Sérgio Porto encontrou-o lavando carros numa
rua de Botafogo e levou suas músicas a cantores e
produtores, trazendo-o de volta ao sucesso com a
gravação de Nara Leão de “O sol nascerá”.
No início dos anos 1960, comandou com a mulher Zica
o restaurante e casa de samba Zicartola, na rua da
Carioca, que se tornou um templo do melhor samba do
Rio, para cair mais uma vez no esquecimento. Mas voltou
na década seguinte com um baú cheio de novas e
surpreendentes músicas, com um grau de acabamento e
sofisticação ainda maior do que seus primeiros sucessos.
Gravado por Paulinho da Viola, Beth Carvalho e Clara
Nunes, Cartola também gravou na independente Marcus
Pereira (1974) seu primoroso primeiro álbum solo, com
pérolas como a confessional “Tive sim” e a canção de
despedida “Acontece”.
Dois anos depois, gravou um segundo disco em que,
além de “As rosas não falam”, se destacam “O mundo é
um moinho”, “Sala de recepção”, “Peito vazio”, “Cordas
de aço” e “Ensaboa”, regravada com sucesso por Marisa
Monte em clima de afropop em 1990.
O mundo é um moinho
Cartola, 1976

“O mundo é um moinho” foi outro clássico até então inédito apresentado por
Cartola em seu segundo álbum solo

Clássico dos clássicos do mestre da Mangueira, “O


mundo é um moinho” veio ao mundo como a faixa de
abertura de seu segundo álbum solo, Cartola (Discos
Marcus Pereira), em 1976. Então aos 67 anos, ele tinha
escrito esse samba-choro poucos meses antes de voltar
ao estúdio. Numa idade em que muita gente já
caminhava para a aposentadoria, o compositor mantinha
acesa a chama da criação e, nesse mesmo álbum,
também lançou duas outras preciosidades até então
inéditas, “Minha” e “As rosas não falam”.
Um ano após ser lançado pelo compositor, “O mundo
é um moinho” ganharia outra versão memorável, de Beth
Carvalho, no disco Nos botequins da vida (RCA). A partir
daí, muitas gravações se seguiram, até chegar ao
roqueiro Cazuza, reafirmando a abrangência da obra de
Cartola. O encadeamento perfeito da melodia e dos
versos mostra um fino artesão da canção, garantindo
lugar para “O mundo é um moinho” em qualquer
antologia da música brasileira.
Cartola sempre negou que a letra tão íntima e
emocionada fosse autobiográfica ou confessional, como
tantas de suas canções. Conta que teria se inspirado em
uma desilusão amorosa, mas de sua enteada, filha de
Dona Zica, para criar a letra. O tom é coloquial, como
uma conversa de alguém bastante sofrido e experiente
alertando sua jovem interlocutora sobre as
mesquinharias do mundo, que, como um moinho, pode
triturar os seus sonhos e reduzir suas ilusões a pó.
Uma curiosidade na gravação original de Cartola é a
participação do então iniciante Guinga. É dele o violão na
marcante introdução, ao lado da flauta de Altamiro
Carrilho. Antes de se consagrar como compositor, o
então também dentista se alternava entre o consultório e
os palcos e os estúdios. Não é absurdo imaginar que a
experiência com o mangueirense influiu na opção de
Guinga pela música.
Como nossos pais
Belchior, 1976

Cearense e roqueiro, Belchior mostrou suas credenciais com a virulenta


“Como nossos pais”

Um dos grandes talentos da safra de artistas nordestinos


que chegou ao Rio de Janeiro no início dos anos 1970
(Fagner, Amelinha, Zé Ramalho, Alceu Valença, Ednardo),
Belchior fazia música desde criança em Sobral, onde
nasceu, em 26 de outubro de 1946, como Antonio Carlos
Gomes Belchior Fontenele Fernandes. Em 1971 veio para
Rio e venceu o IV Festival Universitário da MPB com “Na
hora do almoço”, agradando ao público e à crítica.
Gravada por Elis Regina em 1972, a sua lírica e
nostálgica “Mucuripe” (em parceria com Fagner)
impressionou pela sofisticada construção musical e pelas
imagens poéticas de velas singrando o mar de Fortaleza
e as esperanças de “um rapaz novo encantado / com
vinte anos de amor”.
“Calça nova de riscado / paletó de linho branco / que
até o mês passado / lá no campo ainda era flor.”
Em 1975, ganhou mais um prêmio: uma gravação
impecável de Roberto Carlos.
“Aquela estrela é dela / vida vento vela leva-me
daqui.”
Mas o maior prêmio recebido por Belchior veio em
dose dupla, novamente na voz de Elis Regina, que incluiu
os rocks “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida” no
show e no disco Falso brilhante, no fim de 1975. O show
foi um espetacular sucesso, lotando o Teatro
Bandeirantes mais de um ano e só parando pela nova
gravidez de Elis. O álbum, gravado em 1976 (Polygram),
tinha como faixa de abertura “Como nossos pais”,
seguida de “Velha roupa colorida”.
Estrela e militante da MPB, ninguém esperava ouvir
Elis cantando um rock – e melhor do que qualquer um já
havia feito no Brasil. Com a interpretação visceral e
rasgada de Elis, “Como nossos pais” foi um grande
sucesso popular, criticando o atraso da nova geração e
provocando a anterior, de Gil e Caetano.
“Hoje eu sei que quem me deu a ideia / de uma nova
consciência e juventude / está em casa guardado por
Deus / contando o vil metal.”
Pegou pesado. Com a polêmica, em gravações
seguintes, de Elis e de outros, o último verso foi
amenizado para “contando os seus metais”.
Blues, folk, Dylan, Beatles, cordel, poesia concreta,
canções de grande apelo pop e interpretações vigorosas
de letras expressivas e contundentes, com rimas ricas e
sonoras, levaram Belchior a grandes sucessos como “A
palo seco”, “Apenas um rapaz latino-americano”,
“Paralelas” e “Medo de avião”.
Em 2006, aos 60 anos, abandonou a carreira e sumiu
no mundo, só sendo encontrado dez anos depois em uma
fazenda no interior do Uruguai.
Meu mundo e nada mais
Guilherme Arantes, 1976

Parte do disco de estreia de Guilherme Arantes, em 1976, essa balada


melancólica tinha sido escrita seis anos antes, pelo então adolescente
paulistano

Era um garoto paulistano que amava bossa nova,


Beatles, Jovem Guarda, Tropicália, Clube da Esquina, rock
progressivo, música clássica… A partir desse cardápio
musical diversificado, criou seu estilo, seu mundo e tudo
o mais.
Nascido em São Paulo (1953) e criado em uma família
de classe média alta, Guilherme despertou para a música
estimulado pelo pai, um médico-cirurgião que também
tocava violão e atualizava periodicamente a discoteca de
casa. Aos 6 anos, ganhou seu primeiro cavaquinho,
depois um bandolim e logo começou a estudar piano
clássico.
Com prodigiosa musicalidade e precocidade, ele
nunca deu muita bola para o estudo formal e sempre
teve a composição como sua meta, criando ao longo do
tempo grandes sucessos como “Deixa chover”,
“Aprendendo a jogar” (gravada por Elis Regina), “Coisas
do Brasil” (com Nelson Motta), “Planeta água”, “Um dia,
um adeus”, o hit infantil “Lindo balão azul”, “Pedacinhos”
e o mega-hit “Cheia de charme”.
O caminho foi aberto com a balada “Meu mundo e
nada mais”, incluída na trilha sonora da novela Anjo mau,
da TV Globo (1976), que apresentou ao Brasil o cantor,
compositor e pianista de 23 anos. O enorme sucesso da
música abriu caminho para seu primeiro álbum solo,
Guilherme Arantes (Som Livre), com outras nove
composições, diferentes de tudo o que se fazia na época,
tanto na MPB quanto no pop-rock brasileiro, marcadas
por seu piano percussivo, suas melodias fluentes e suas
harmonias sofisticadas: puro pop.
Mas o sucesso não era esperado: seria improvável
para uma balada sombria e melancólica, com um
personagem imerso em crise existencial só se sentindo
seguro no escuro de seu quarto, “à meia-noite, à meia-
luz”, vendo seu mundo mudar inexoravelmente, tentando
esquecer o que perdeu, sonhando e fazendo música.
“Daria tudo por um modo de esquecer / Daria tudo por
meu mundo e nada mais.” E pensar que “Meu mundo e
nada mais” tinha sido composta sete anos antes de seu
lançamento, em 1969, por um adolescente de 16 anos.
Coração leviano
Paulinho da Viola, 1977

Lançada por Clara Nunes em 1977, um ano depois “Coração leviano” foi
gravada por Paulinho

Lançado com sucesso por Clara Nunes, “Coração leviano”


foi um dos destaques do álbum As forças da natureza,
em 1977. Na voz da Guerreira, acompanhada por um
coro de pastoras, o samba parecia ambientado numa
animada roda na quadra de uma escola, em um espírito
festivo que funcionava como contraponto à desilusão
amorosa que o samba cantava. Um ano depois, a
gravação do autor, em seu décimo disco solo, Paulinho
da Viola, era mais camerística: apenas ele e seu
cavaquinho, o violão do pai, Cesar Farias, o piano de
Cristóvão Bastos, o clarinete de Copinha e uma discreta
seção rítmica.
Grande sucesso nas rádios, nos palcos e nas rodas de
samba, “Coração leviano” tem o toque sofisticado de um
estilista da composição, com refinada carpintaria musical
e poética, em perfeito encaixe. Um samba melódico e
melancólico sobre uma dolorosa separação sem adeus,
tramada em segredo pela leviandade do coração da ex-
amada.
No fim de sua década de ouro, em que mais compôs e
gravou, Paulinho tinha vivido entre extremos de
desilusões dolorosas e encontros inspiradores, mas
“Coração leviano” não parece ser confessional ou
autobiográfica: em 1978, ele se casou com Lila Rabello
(irmã do violonista Raphael Rabello), com quem veio a
ter quatro filhos. A decepção era com a Portela: um ano
antes, por discordar dos critérios nas disputas dos
enredos e dos rumos do carnaval, ele se desligou e ficou
mais de três décadas longe da quadra e dos desfiles da
escola, foi como um rio de mágoa passando em sua vida.
Duas décadas depois de Clara e Paulinho, “Coração
leviano” voltou a bater com emoção na voz de Djavan,
no álbum Malásia (1996). Em andamento mais ralentado,
era um tributo a uma de suas referências no samba, com
discretos sabores da bossa nova que também se
expressa na obra de Paulinho.
Romaria
Renato Teixeira, 1977

Com “Romaria”, lançada por Elis, Renato Teixeira (com o sanfoneiro


Dominguinhos, à direita) abriu lugar para a música caipira na MPB

Nos anos 1970, a música sertaneja vivia em um mundo à


parte, era chamada de caipira e restrita ao interior de
São Paulo, Minas e Goiás. Longe demais, portanto, do
eixo Rio-São Paulo, no qual estavam os principais
estúdios e emissoras de rádio e TV e vivia a constelação
de astros da canção. Caso de Elis Regina, em 1977, ao
lançar essa toada no álbum Elis.
Paulista de Taubaté, com fortes raízes sertanejas mas
formado ao som da bossa nova e da MPB, Renato Teixeira
de Oliveira (1945) ganhava a vida como compositor de
jingles em São Paulo até conhecer o casal Elis Regina e
César Camargo Mariano por intermédio de seu irmão,
Roberto de Oliveira, na época produtor musical de Elis.
Os dois perceberam de imediato o potencial daquela
poderosa canção-prece, ao mesmo tempo de construção
refinada e popular, com cheiro de terra e de mato,
cantada por um sertanejo em sua jornada de fé a
caminho de Aparecida do Norte:
“Sou caipira pirapora, Nossa / Senhora de Aparecida /
ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida.”
Incluída num disco repleto de material inédito de
pesos-pesados da MPB como Milton Nascimento e
Fernando Brant, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e
Vitor Martins, “Romaria” roubou a missa. Tocou
maciçamente em todo o Brasil, antecipando em quase
duas décadas a febre sertaneja que se instalou nos anos
1990 e continua imperando no Brasil do século XXI.
O sucesso também serviu de cartão de visita para
Renato Teixeira e, graças a “Romaria”, ele pôde trocar a
publicidade pela dedicação de corpo e alma à música,
tornando-se uma das maiores referências do melhor
sertanejo, ao lado de Almir Sater, com quem realizou
memoráveis discos e shows com um padrão de qualidade
muito acima e além da vulgaridade do sertanejo-pop que
veio depois.
Dancin’ days
Ruban Barra e Nelson Motta, 1978

Parceria do tecladista Ruban Barra com Nelson Motta, “Dancin’ days” teve
nas Frenéticas as intérpretes perfeitas

Em agosto de 1976, quebrado pelo fracasso comercial do


festival de rock Som, Sol e Surf, em Saquarema, o
jornalista, letrista e produtor Nelson Motta (1944) teve a
chance de abrir a discoteca Frenetic Dancin’ Days no
recém-inaugurado Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro.
A Dancin’ Days só poderia durar quatro meses porque
ocuparia um espaço já vendido para o futuro Teatro dos
Quatro, emprestado a Nelson de graça pela
administradora do shopping ainda desconhecido para
tentar promovê-lo. Mas se tornaria uma lenda das noites
cariocas, como um ponto de alegria e dança, e o símbolo
máximo da era disco no Brasil. Foi também ali que
nasceu o sexteto Frenéticas (Sandra Pêra, Dudu Morais,
Lidoka, Leiloca, Edyr de Castro e Regina Chaves), que se
tornou um espetacular sucesso popular a partir de 1977.
Inicialmente, elas seriam apenas garçonetes. Mas as
garotas pediram para, no fim da noite, subir ao palco
como Frenéticas e cantar três ou quatro músicas,
escolhidas por Nelson e ensaiadas por Roberto de
Carvalho. Era tudo improvisado e despretensioso, mas,
logo na estreia, o sucesso foi tão grande que elas
tiveram que aumentar o repertório a cada noite e se
tornaram a grande atração da casa, que lotava de
domingo a domingo para vê-las cantar.
Quatro meses triunfais depois, a Dancin’ Days virava
história, mas as Frenéticas, contratadas pela Warner e
produzidas por Liminha, estouravam vários hits
dançantes nas rádios e televisões. Da noite para o dia,
viraram as grandes estrelas da disco music brasileira,
não como imitações da disco americana, mas com
elementos de rock and roll, escola de samba e teatro de
revista, além de uma linguagem irreverente e
provocativa.
Pouco depois, Nelson foi chamado à TV Globo pelo
autor Gilberto Braga e pelo diretor Daniel Filho, que
estavam começando a produção de uma novela
ambientada na era disco carioca. Para eles, só poderia se
chamar Dancin’ Days, então a TV Globo negociou os
direitos da marca com Nelson, e Daniel lhe encomendou
o tema de abertura.
Feita em parceria com Ruban Barra, pianista da banda
das Frenéticas, em pouco mais de uma hora, no clima de
excessos da era disco, como se estivessem doidões no
Dancin’ Days, a música tinha uma batida superdançante
e um refrão irresistível, era um chamado para a festa,
popularizando expressões como “caia na gandaia” e
“livre, leve e solta”.
Nascia um hino de alegria que, ao longo dos anos e de
gerações, continuaria lotando as pistas de todas as
festas.
Força estranha
Caetano Veloso, 1978

Terceira canção que Caetano fez para Roberto Carlos, “Força estranha”
também ganhou versões definitivas de Gal Costa e do próprio compositor

Depois da política “Como dois e dois” e da sentimental


“Muito romântico”, a autorreferente e mística “Força
estranha” é a última da trilogia de canções que Caetano
Veloso dedicou a Roberto Carlos e foi lançada no seu
álbum de 1978.
Os dois se aproximaram depois da visita que Roberto
fez a Caetano em seu exílio londrino, em 1970, e, de
volta ao Brasil, escreveu com Erasmo a balada “Nos
caracóis dos teus cabelos” como uma homenagem
cifrada a Caetano, que tinha sua prisão e seu nome
proibidos nos jornais. Os cabelos encaracolados que
driblaram a Censura, como foi revelado tempos depois,
não eram de uma moça, mas do seu amigo eLivros.
A inspiração para “Força estranha” veio depois de um
encontro casual dos dois nos corredores da TV Globo.
Após os abraços e elogios recíprocos sobre a boa forma
de ambos, Roberto, então com 37 anos, comentou: “É,
bicho, artista nunca envelhece.” Caetano ficou com a
frase na cabeça e a partir dela, pensando na voz e no
estilo de Roberto, escreveu “Força estranha” como um
tributo à sua arte, à vida de grandes artistas e a estranha
força que os move.
“Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / o
tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece.”
É uma bela balada com um tempero de blues, com um
refrão poderoso, feita sob medida para o artista cantar a
força de sua própria voz, envolvida pelo misticismo tão
caro a Roberto. Na sua gravação, Roberto acrescentou
“no ar” depois de “por isso essa força estranha” e
Caetano adorou, incorporando as duas notas-palavras à
música.
Mesmo tendo sido um dos maiores sucessos daquele
disco, ao lado da balada de motel “Café da manhã”, já no
ano seguinte Gal Costa gravou uma nova versão, que foi
incluída na trilha da novela Os gigantes e também no
álbum Gal Tropical, e repetiu o sucesso nas rádios. A
música tambem parecia ter sido feita para ela.
“Por isso uma força me leva a cantar / Por isso essa
força estranha / Por isso é que eu canto, não posso parar
/ Por isso essa voz tamanha.”
Durante a década de 1970, já consolidado como o
cantor mais popular do Brasil, Roberto amadurecia e
avançava além da Jovem Guarda, vivendo esse breve
flerte com a MPB, quando gravou canções de Djavan (a
bela e estranha “A ilha”, em 1980) e de Fagner & Belchior
(“Mucuripe”, em 1975).
Sampa
Caetano Veloso, 1978

Cidade adotiva dos tropicalistas baianos entre 1967 e 1968, São Paulo foi
homenageada por Caetano nesse samba-choro

Lançado em 1978, em Muito (Dentro da estrela azulada),


um dos melhores álbuns de Caetano, este samba-canção
virou uma espécie de hino informal de São Paulo, onde
Caetano e Gil moraram na época dos grandes festivais e
do Tropicalismo até dezembro de 1968, quando, após a
decretação do AI-5, foram presos e obrigados a sair do
Brasil.
Apesar da separação traumática, São Paulo e sua
cultura cosmopolita continuaram para sempre na cabeça
e no coração do baiano de Santo Amaro da Purificação,
vindo de Salvador, “outro sonho feliz de cidade”, que
aprende depressa a chamar São Paulo de realidade.
Citando uma frase melódica e poética do clássico
“Ronda”, de Paulo Vanzolini – “que só quando cruza a
Ipiranga e a avenida São João” –, Caetano desenvolveu
um mosaico de referências e memórias sobre o melhor e
o pior de São Paulo. Do choque inicial com a dureza e
concretude da cidade a seu progressivo encantamento
com a força e a vitalidade da maior metrópole brasileira,
com “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”.
Com uma gravação e um arranjo com sonoridade que
remete aos regionais de samba e choro paulistas,
“Sampa” é o avesso do avesso do saudosismo e da
nostalgia, é um tributo emocionado à cidade
contraditória que aprenderam a amar.
Caetano fez uma espécie de list song, mas com
referências e associações cifradas, que podem ter
passado em branco para muitos ouvintes. Alguns
paulistanos são citados explicitamente – Rita Lee, como
“a mais completa tradução” de São Paulo, os Mutantes e
até os Novos Baianos, que, na época, tinham se mudado
para a terra da garoa –, mas há também muitas
homenagens percebidas apenas por connaisseurs.
Principalmente a escritores de alguma forma ligados à
Tropicália, como os irmãos Haroldo e Augusto de Campos
(“… vejo surgir teus poetas de campos”); José Agrippino
de Paula (autor do livro Pan-América); o também
compositor Jorge Mautner (o verso “teus deuses da
chuva” é uma referência ao seu livro de estreia, em
1962, Deus da chuva e da morte); e ainda o diretor José
Celso Martinez (em “tuas oficinas de florestas”,
referência ao Teatro Oficina).
Tanta sofisticação não impediu que “Sampa” virasse
um sucesso imediato nas rádios, e, desde então, mais
um item obrigatório em qualquer lista de clássicos de
Caetano.
Terra
Caetano Veloso, 1978

A partir de lembranças de sua temporada na prisão, entre 1968 e 1969,


Caetano fez uma ode à liberdade

Em 1978, depois de 14 anos de ditadura militar, o


presidente Ernesto Geisel prosseguia com uma polêmica
abertura política por ele chamada de “lenta, gradual e
segura”. Mesmo enfrentando uma facção linha-dura do
Exército que queria tomar o poder, esse processo levaria
ao desmanche da rede subterrânea de tortura, com a
demissão do general responsável pela morte do jornalista
Vladimir Herzog, e também a um início de abrandamento
da Censura prévia.
“Terra” foi a canção de abertura do extraordinário LP
Muito (Dentro da estrela azulada), que Caetano lançou
naquele ano, com clássicos como “Sampa”, “Muito
romântico” e “São João Xangô menino”. Sua letra dizia o
que até então não podia ser dito: “Quando eu me
encontrava preso / na cela de uma cadeia”, referência à
sua prisão junto com Gilberto Gil, em dezembro de 1968,
que os levou ao exílio em Londres.
Foi em 1969, quando estava preso no Rio, que
Caetano viu uma foto da Terra no espaço feita por um
satélite artificial. Pela primeira vez o planeta em todo o
seu esplendor azul e feminino, ao “não vê-la nua mas sim
coberta de nuvens”. Do confinamento abjeto somos
transportados ao amor à liberdade e à grandiosidade
cósmica do planeta em alguns versos.
Depois, Caetano brinca com a interação de signos
astrológicos com planetas no espaço, apaixonado “por
uma menina terra, signo de elemento terra”, se dizendo
“um leão de fogo / que sem ti me consumiria a mim
mesmo eternamente”.
A canção, que se desenvolve em clima denso, com
frases musicais sinuosas, não foi um sucesso popular,
mas provocou profunda emoção em crítica e público,
marcando um tempo de reinício e de esperanças.
O amanhã
João Sérgio e Didi, 1978

Do carnaval de 1978, esse samba-enredo foi muito além do desfile da União


da Ilha, regravado quatro anos depois por Simone

Na época em que este arrebatador samba-enredo foi


apresentado na avenida, no carnaval de 1978, pela União
da Ilha do Governador, o gênero já vivia sob o ataque de
críticos, que reclamavam da descaracterização, do ritmo
acelerado e da vulgaridade dos refrões levanta-povo.
“O amanhã”, porém, mostrou que o samba-enredo
tinha mudado, mas atingia um de seus pontos mais altos.
Não só nos desfiles e muito além daquele carnaval.
Puxado na avenida por Aroldo Melodia e também
gravado por Elizeth Cardoso, estourou no Brasil inteiro
quatro anos depois. Regravado por Simone no álbum
Delírio e delícias, ganhou as rádios, virando um dos
maiores sucessos da cantora baiana.
Fundada em 1953, a União da Ilha ascendeu ao grupo
especial em 1975 e passou a competir com as
tradicionais Portela, Mangueira, Salgueiro e Império
Serrano. Seu ponto forte eram os enredos inusitados e os
sambas empolgantes, criados por um advogado e
procurador federal, Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta
Neves, que se escondia sob o pseudônimo de Didi por
pressão da família tradicional, contrária ao seu
envolvimento com o mundo do samba. Gustavo chegou a
abrir mão da autoria de alguns sambas, que foram
atribuídos a outros compositores, como “O amanhã”,
assinado apenas pelo parceiro João Sérgio.
Mas, como contam os escritores Luiz Antonio Simas e
Alberto Mussa, sobrinho do compositor, no livro Samba
de enredo: história e arte (2010), “O amanhã” é um dos
clássicos de Didi, incluindo a riqueza melódica e a
cadência das palavras que marcavam seu estilo.
Até morrer, em 1987, aos 52 anos, de cirrose, o
sambista-advogado venceu 24 disputas em escolas,
sendo 16 na União da Ilha, quatro no Salgueiro e quatro
no Bloco do Boi da Freguesia. Em 1991 foi homenageado
pela União da Ilha com o enredo De bar em bar, Didi um
poeta.
Alem de “O amanhã”, Didi é autor de outro grande
sucesso que prosseguiu muito além da avenida, “É hoje”
(parceria com Mestrinho), popularizada por Caetano
Veloso e Fernanda Abreu, um clássico que poderia se
alternar com “O amanhã” nesta lista.
Explode coração (Não dá mais pra
segurar)
Gonzaguinha, 1979

Gonzaguinha explodiu de vez nas paradas de sucesso graças a esse


clássico, lançado por Bethânia no álbum Álibi
Ao estrear, no fim dos anos 1960, Luiz Gonzaga Júnior
tinha toda a pinta de bad boy. Magrelo, barbado e durão,
ele era um dos pontas de lança do carrancudo até no
nome MAU (Movimento Artístico Universitário), criado em
1969 e que reuniu outros jovens compositores também
em início de carreira, como Ivan Lins, Aldir Blanc, César
Costa Filho e Paulo Emílio.
Mas, quando morreu em 1991, aos 45 anos, num
desastre de automóvel no interior do Paraná, ele já tinha
mostrado seu lado mais doce e amoroso, o perfil já era
outro, justificando o carinhoso apelido de Gonzaguinha,
consagrado por duas dezenas de sucessos populares
lançados a partir do fim dos anos 1970 por intérpretes
como Maria Bethânia, Elis Regina, Nana Caymmi,
Marlene, Simone, Zizi Possi, Frenéticas, Fagner e Joanna.
Entre eles e um dos maiores, “Explode coração (Não dá
mais pra segurar)”, lançado em 1978 por Maria Bethânia
com um estrondoso sucesso popular, tornou-se ao longo
dos anos um dos grandes clássicos românticos
brasileiros.
Gonzaguinha nasceu no Rio de Janeiro, em 22 de
setembro de 1945, e mostrou talento cedo, compondo
suas primeiras músicas na adolescência. Em 1967, teve
duas canções gravadas pelo pai, Luiz Gonzaga, “Festa” e
“From US of Piauí”, e um ano depois o então estudante
de Economia se classificou entre os finalistas no I Festival
Universitário de Música Popular, com “Pobreza por
pobreza”, um tema de denúncia social, que marcaria seu
estilo inicial.
Em 1969, na segunda edição do mesmo festival, foi o
vencedor com a complexa “O trem”, com harmonias
audaciosas e letra contundente e sarcástica. Em plena
era de chumbo da ditadura militar, o protesto era a sua
vertente principal e o tornou um alvo preferencial da
Censura. Para conseguir gravar seus dois primeiros
álbuns solo, em 1973 e 1974, teve que submeter aos
censores dezenas de canções, a maioria vetadas, até
conseguir doze para cada disco. Na época chegou a ser
chamado de cantor-rancor, pelo tom sempre revoltado de
suas músicas.
Seu quarto álbum, em 1976, já anunciava no título
uma nova fase: Começaria tudo outra vez. Os boleros
românticos que ouviu na infância começavam a ganhar
espaço em seus discos junto a canções melodiosas de
alta voltagem emocional sobre as graças e desgraças do
amor, que passaram a ser disputadas pelos grandes
intérpretes da MPB.
Como a audaciosa “Grito de alerta”, de espírito gay,
gravada por Agnaldo Timóteo no LP A galeria do amor, no
caso, a Alasca, tradicional ponto gay de Copacabana:
“Na galeria do amor é assim / Muita gente à procura
de gente / A galeria do amor é assim / Um lugar de
emoções diferentes.”
“Explode coração” foi lançada por Maria Bethânia no
álbum Álibi, o primeiro de uma cantora brasileira a
ultrapassar a marca de um milhão de cópias vendidas,
explodindo corações em todo o país. Não dava para
segurar mesmo.
Noites cariocas
Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, 1979

Choro instrumental de Jacob do Bandolim, “Noites cariocas” voltou com


certeiras letra de Hermínio e interpretação de Gal

Lançado como um choro instrumental em disco do


próprio Jacob do Bandolim em 1957, “Noites cariocas”
ganhou os versos de Hermínio Bello de Carvalho em
1978, nove anos após a morte do bandolinista, a pedido
de Gal Costa. Apesar da diferença de duas décadas, e de
alguma polêmica levantada pelos que não admitem
parcerias póstumas e os que sustentam que os versos
desvirtuam a essência do gênero, resultou em um
casamento perfeito entre música e letra.
A canção foi lançada por Gal Costa no show Gal
tropical, que estreou em janeiro de 1979, em seguida,
também foi incluída em seu álbum de grande sucesso.
Nessa primeira gravação a música tinha um subtítulo,
“Minhas noites sem sono”, que acabou sendo esquecido
por Hermínio. “Noites cariocas” já dizia tudo.
Como muitos choros cantados, “Noites cariocas” exige
grande precisão vocal; é música para grandes
intérpretes, especialistas em driblar os desvios e as
curvas criados pelos muitos acidentes melódicos e
rítmicos de um gênero basicamente instrumental, às
vezes em andamentos vertiginosos. No auge de sua
técnica, Gal deu show, conquistando nas rádios um
grande sucesso para um gênero que, na época, vivia
uma renascença. Em seguida, a parceria póstuma de
Jacob e Hermínio seria gravada por Ademilde Fonseca, a
rainha do chorinho, e por Áurea Martins.
Um dos grandes mestres do choro, Jacob do Bandolim
(Jacob Pick Bittencourt, 1918-1969) se interessou pela
música no início da adolescência, graças a um vizinho
violinista. Autodidata, do violino passou para o bandolim,
instrumento que virou seu sobrenome artístico. Rigoroso
em suas opções estéticas, para não ceder às pressões
comerciais, Jacob sempre se dividiu entre a música e
outras atividades profissionais. Ao morrer, em 1969,
mesmo já consagrado como instrumentista e compositor,
ainda trabalhava como escrivão de polícia.
O poeta, escritor, compositor e produtor cultural
carioca Hermínio Bello de Carvalho (1935) foi um grande
amigo e profundo conhecedor da obra de Jacob, e se
tornou um especialista na difícil arte de criar letras sobre
composições instrumentais. Do mesmo Jacob ele
também letrou “Benzinho” e “Doce de coco”, assim como
Vinicius de Moraes já havia feito uma letra para o choro
“Odeon”, de Ernesto Nazareth, a pedido de Nara Leão, e
o poeta Ferreira Gullar criou uma soberba letra à altura
de “O trenzinho do caipira”, de Villa-Lobos, gravada por
Edu Lobo, legitimando a prática.
O bêbado e a equilibrista
João Bosco e Aldir Blanc, 1979

A dupla Bosco e Blanc resumiu o contraste de sufoco e esperança vivido


pelo Brasil da época e teve em Elis Regina a intérprete perfeita

Em 1979, a “abertura lenta, gradual e segura”, iniciada


três anos antes no governo Geisel, prosseguia a passos
de tartaruga, conduzida pelo general-presidente João
Figueiredo, que, em 28 de agosto, depois de grandes
mobilizações populares que se alastraram pelo Brasil,
finalmente assinou a Lei da Anistia. Mas a canção que
acabou se tornando o seu hino se revelava premonitória,
lançada dois meses antes por Elis Regina, no álbum Essa
mulher.
“O bêbado e a equilibrista” também é um exemplo da
maestria atingida pela dupla João Bosco (1946) e Aldir
Blanc (1946). No ínicio de 1978, ainda abalado com a
morte de Charlie Chaplin no Natal anterior, Bosco
mostrou ao parceiro a composição em que vinha
trabalhando. Aldir sugeriu que a letra avançasse além da
homenagem ao artista e ampliasse o tema para o Brasil.
Partindo da estrutura dos sambas-enredo, trocaram o
habitual tom épico pelo lírico, com grande apelo
emocional e fortes imagens poéticas, eternizando um
momento de transição na vida brasileira.
O verso de abertura, o incompreensível “Caía a tarde
feito um viaduto”, típico da ironia amarga do letrista,
anunciava o clima tenso daqueles tempos usando como
metáfora o desabamento, em novembro de 1971, de
parte do viaduto Paulo de Frontin, na Tijuca, matando
dezenas de pessoas. Como contraponto aos temas
sombrios, a música de Bosco cita a nostálgica melodia de
“Smile”, composta para o filme Tempos modernos por
Chaplin, que tem seu principal personagem lembrado
logo em seguida:
“E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos.”
Com “O bêbado e a equilibrista”, Bosco e Blanc
construíram um quadro do sufoco vivido pelos brasileiros
com as mensagens de esperança da anistia. Também
misturaram personagens simbólicos e figuras reais, mas
anônimas para muitos até então. O “irmão do Henfil”,
representando tantos brasileiros eLivross, era o sociólogo
Betinho (Herbert de Souza), que, meses depois, pôde
voltar e contribuir para a redemocratização do país,
criando importantes organizações de combate à fome. O
verso “choram Marias e Clarices” é referência a duas
viúvas de vítimas da ditadura, Maria, mulher do operário
Manuel Fiel Filho, e Clarice, do jornalista Vladimir Herzog,
ambos assassinados no DOI-CODI, em São Paulo.
Com a volta dos eLivross, “O bêbado e a equilibrista”
se tornou um hit no aeroporto do Galeão, todos os dias
cantada aos gritos enquanto os amigos carregavam nos
ombros os que retornavam.
Sonho meu
Ivone Lara e Délcio Carvalho, 1979

Gravada em dueto por Bethânia e Gal, “Sonho meu” consagrou de vez a


compositora Dona Ivone Lara

Como conta Maria Bethânia, é uma história que tem algo


de sonho, mas aconteceu. Em 1978, buscando canções
para seu novo disco, conheceu Dona Ivone Lara na casa
da violonista Rosinha de Valença, em Copacabana. Na
saída, já caminhando para a porta, depois de ter
mostrado alguns de seus sambas inéditos, Ivone Lara
cantarolou uma pequena melodia que atraiu a atenção
da baiana.
Já então lendária compositora, primeira mulher a ser
aceita na ala de compositores de uma escola de samba
(Império Serrano), explicou que aquele era apenas um
trecho, só tinha seus versos iniciais, o refrão “Sonho
meu, sonho meu / Vai buscar quem mora longe, sonho
meu”. Bethânia ficou encantada.
No mesmo dia, assim que chegou em casa, Dona
Ivone (1922) ligou para o parceiro Délcio Carvalho (1939-
2013) e o chamou para completar o samba que iria se
tornar um dos maiores sucessos daquele ano. Gravado
semanas depois, num dueto com Gal Costa, “Sonho
meu” brilhou no álbum Álibi e logo caiu na boca do povo,
como um samba romântico e apaixonado, mas que tem
na letra também um viés político, em referência cifrada
aos muitos eLivross que só puderam voltar ao Brasil após
a Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979. Desde
então, “Sonho meu” tem sido um número obrigatório no
repertório de Bethânia, vive nas paradas sentimentais de
muita gente e nas vozes de centenas de intérpretes
mundo afora.
O sucesso também abriu as portas para Dona Ivone,
que havia se aposentado como enfermeira –
especializada em terapia ocupacional, por muitos anos,
da equipe da doutora Nise da Silveira, a pioneira no uso
da arte no tratamento psiquiátrico. Graças a “Sonho
meu”, assinou um contrato para gravar seu primeiro
disco solo, Samba, minha verdade, minha raiz e pôde se
dedicar de corpo e alma à carreira de compositora. Outro
sonho que virou realidade.
Mania de você
Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1979

No início de seu casamento, Rita e Roberto de Carvalho fizeram essa


irresistível pérola pop

Em qualquer enciclopédia da música popular brasileira, a


paulistana Rita Lee Jones (1947) tem lugar garantido em
vários verbetes, atravessando diferentes períodos da
história. Esteve nos Mutantes, que, em 1968, foi
fundamental na equação da Tropicália, participando dos
festivais da canção da época e do álbum coletivo
homônimo, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom
Zé, Nara Leão e do maestro Rogério Duprat.
Ainda no fim dos anos 1960, junto ao trio que formou
com os irmãos Arnaldo e Sérgio (Dias Baptista), fez os
discos fundadores de um rock realmente brasileiro, que,
décadas depois, encantou artistas anglo-americanos
como David “Talking Heads” Byrne, Kurt “Nirvana”
Cobain, Beck Hansen e Devendra Banhart.
Em meados dos anos 1970, ejetada dos Mutantes, ela
passou a liderar o grupo Tutti Frutti e virou a principal
cantora e compositora de rock no Brasil. No fim dessa
mesma década, compondo em dupla com o marido, o
guitarrista e tecladista Roberto de Carvalho (1952), Rita
Lee se reinventou outra vez, produzindo uma original
mescla de rock, pop, bolero, marchinha, disco music e
bossa nova. Um estrondoso sucesso nacional, uma de
nossas primeiras popstars, abusada e divertida, vivendo
um casamento musical perfeito e de grande fertilidade.
“Mania de você”, lançada no álbum Rita Lee, em
1979, é um ponto alto da perfeita simbiose da dupla.
Como revelou em entrevista ao produtor Almir Chediak
publicada em seu Songbook, Rita escreveu a canção em
poucos minutos:
“A gente tinha acabado de transar, ele pegou o violão,
eu peguei um caderninho e começamos: ‘Meu bem, você
me dá água na boca…’. A gente estava em estado de
graça.”
O país inteiro cantou e rolou junto com o casal. O
disco produzido por Guto Graça Mello, com a contribuição
fundamental do tecladista e arranjador Lincoln Olivetti,
ainda lançou sucessos como “Chega mais”, “Doce
vampiro”, “Papai me empresta o carro” e “Corre-corre”.
Muito mais do que “a mais completa tradução” de São
Paulo, como disse Caetano, logo Rita conquistou o país
de cabo a rabo com hits como “Lança perfume”, “Caso
sério”, “Banho de espuma”, “Desculpe o auê” e “Nem
luxo nem lixo”. A sua música brasileira e cosmopolita,
alegre e festeira, virou mania nacional.
Admirável gado novo
Zé Ramalho, 1980

Do segundo álbum solo de Zé Ramalho, essa inusitada fusão de


psicodelismo e protesto conquistou as rádios brasileiras

Num caldeirão em que se misturam literatura de cordel e


ficção científica, o rock dos Beatles e dos Stones, o folk
elétrico de Dylan, o iê-iê-iê da Jovem Guarda e o baião de
Luiz Gonzaga, Zé Ramalho forjou seu estilo original,
ganhando lugar na música popular brasileira também
como um vigoroso e personalíssimo cantor de voz grave
e rascante, fora dos padrões da época e reconhecível às
primeiras notas.
Zé também se tornou conhecido por suas letras
barrocas e elaboradas a partir de sua vasta cultura do
cordel e dos grandes repentistas, como em “Avohai”,
“Frevo mulher” e “Vila do sossego”:
“Meu treponema não é pálido nem viscoso / Os meus
gametas se agrupam no meu som / E as querubinas
meninas rever / Um compromisso submisso, rebuliço no
cortiço / Chame o padre Ciço para me benzer.”
“Admirável gado novo” é o melhor exemplo da força,
audácia e personalidade do seu estilo, com letras
delirantes, irônicas e contundentes integradas ao
Nordeste elétrico de suas músicas. A sua letra de
protesto entre o cordel e o manifesto político questiona e
provoca a passividade da massa manipulada pelos
poderes dominantes, num paralelo paródico com a
distopia criada pelo escritor inglês Aldous Huxley no livro
Admirável mundo novo.
Destaque nas rádios do segundo álbum solo de Zé
Ramalho, A peleja do Diabo com o Dono do Céu, lançado
no fim de 1979, “Admirável gado novo” teve um segundo
surto de popularidade quase duas décadas depois. A
mesma gravação, com arranjo do tecladista Paulo
Machado, foi incluída, como tema dos personagens sem-
terra, na trilha sonora da novela O rei do gado (Rede
Globo, 1996/1997) com espetacular sucesso popular de
Norte a Sul do Brasil. Ainda em 1997, uma vigorosa
versão de Cássia Eller (na coletânea Música urbana)
explodiu nas rádios, universalizando e dando nova vida à
canção.
Nascido em 3 de outubro de 1949 em Brejo da Cruz,
interior da Paraíba, Zé chegou a João Pessoa na
adolescência e deu seus primeiros passos musicais
influenciado pelo rock e pela Jovem Guarda. Em 1975,
gravou ao lado do pernambucano Lula Côrtes o lendário
e ultraunderground álbum Paêbiru, de rock nordestino e
psicodélico, que foi ignorado na época mas virou um dos
álbuns mais procurados por adoradores de vinil do
mundo inteiro. Zé Ramalho começou a ser reconhecido a
partir de 1976, participando da banda elétrica de Alceu
Valença. Dois anos depois, seu primeiro álbum solo já
anunciava a alquimia sonora e poética que ele iria
sintetizar em “Admirável gado novo”.
Meu bem querer
Djavan, 1980

Uma balada arrebatadora, “Meu bem querer” calou a boca dos que
questionavam o suposto hermetismo das letras de Djavan

Em seu terceiro álbum, Alumbramento (EMI-Odeon,


1980), o alagoano Djavan Caetano Viana (1949), que
havia começado cantando em pianos-bares da Zona Sul
do Rio de Janeiro, já era um cantor e compositor
completo e de grande originalidade. A balada “Meu bem
querer”, gravada com belo arranjo de Wagner Tiso, foi o
principal sucesso desse disco, consolidando de vez a
marca autoral de Djavan. A partir daí, a música virou um
número fundamental em sua carreira, também sendo
adotada por cantores da noite em qualquer ponto do
Brasil.
Na época, por sugestão da gravadora, talvez
preocupada com algumas críticas que não entendiam as
suas originalíssimas letras sonoras e suas imagens
surpreendentes, Djavan também trabalhou com letristas
consagrados como Aldir Blanc, Paulo Emílio, Cacaso e
Chico Buarque. Mas foi exatamente uma das três
canções do disco escritas apenas por ele a que mais se
destacou nas rádios.
O sucesso de “Meu bem querer” também foi ampliado
por sua inclusão na trilha sonora da novela Coração
alado, da Rede Globo, exibida entre 1980 e 1981. Depois,
duas outras novelas voltaram a usar com sucesso a
música de Djavan, A indomada, em 1997, e até
emprestando o título à homônima Meu bem querer, em
1999.
Em setembro de 2015, ao participar da série
Depoimentos para a posteridade, do Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro, Djavan revelou as suas cinco
composições favoritas, incluindo “Meu bem querer” ao
lado de “Flor de Lis”, “Fato consumado”, “Oceano” e
“Lilás”.
Com sua melodia densa e sinuosa, a canção embala
versos românticos impecáveis e apaixonados, que
passam longe de hermetismos e rimas inusitadas, e
também ganhou belas interpretações de Zizi Possi,
Simone, Nana Caymmi e Boca Livre.
Emoções
Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1981

Inspirado no sucesso “New York, New York”, esse fox de Roberto e Erasmo
virou o prefixo dos shows do Rei

Lançada em novembro de 1981, como uma das dez


faixas do álbum Ele está para chegar, “Emoções”
contagiou imediatamente o público e se tornou um dos
maiores sucessos de Roberto Carlos. Hit instantâneo com
presença avassaladora nas rádios, a música batizou o
show que, em dezembro, estreou no palco do Canecão,
no Rio de Janeiro, e desde então virou o prefixo de
abertura de todos os shows de Roberto.
Nessa parceria com Erasmo, Roberto, que estava com
40 anos, confirmava a sua paixão pelos standards, o
estilo de música que imperou nos Estados Unidos até
meados da década de 1950, com as big bands e seus
fabulosos crooners, até o surgimento devastador do rock
and roll. A letra romântica de “Emoções” é um balanço
autobiográfico do privilégio de ter vivido, entre lágrimas
e risos, tantas emoções, que o fizeram otimista e
esperançoso com as que ainda virão.
A grande inspiração para a música e o seu arranjo foi
a gravação de Frank Sinatra de “New York, New York”,
lançada em 1980, com sucesso no mundo inteiro. O
impactante arranjo original de “Emoções” foi escrito pelo
maestro americano Torrie Zito.
Talvez por sua letra tão pessoal e identificada com
Roberto, raros intérpretes ousaram regravar a música.
Mas sobram regravações do autor. Desde o seu
lançamento, “Emoções” nunca mais saiu dos roteiros dos
espetáculos de Roberto e também teve lugar garantido
nos muitos discos e DVDs ao vivo que ele vem fazendo
nas duas últimas décadas, com pouco material inédito.
A carreira de Roberto Carlos não se descolou mais
deste sucesso, e vice-versa. Além da turnê de
lançamento do disco, a música já batizou o avião em que
o cantor percorreu o Brasil na sua turnê de 1982, um
perfume lançado no mercado em 2008, uma coleção de
joias lançada em 2009 e uma empresa de
empreendimentos imobiliários aberta em 2014. Até hoje,
inclusive, dá nome ao cruzeiro marítimo que, desde
2005, ele tem feito todos os verões: “Emoções em alto
mar”.
E “as emoções se repetindo”, como ondas no mar.
Como uma onda
Lulu Santos e Nelson Motta, 1982

Esse bolero pop, com letra “zen-surfista” de Nelson Motta, confirmou de vez
o talento de Lulu Santos

Depois de um single com seu grupo de rock progressivo


Vímana (com Lobão, Ritchie, Luis Paulo Simas e Fernando
Gama) ter passado em branco, o carioca Lulu Santos
(1953) iniciou carreira solo com o nome de Luiz Mauricio,
também sem sucesso. Em 1976, ele havia trabalhado
como músico com o jornalista, letrista e produtor Nelson
Motta no musical Feiticeira, estrelado por Marilia Pêra,
mas só em 1980 eles se reencontraram para iniciar uma
carreira vitoriosa de hitmakers.
Nelson começou como letrista na era dos festivais,
com 21 anos. Escrita em parceria com Dori Caymmi,
“Saveiros” venceu o I FIC (Festival Internacional da
Canção) em 1966. Em seguida, a dupla levou “O
cantador” às finais no histórico festival de 1967 da TV
Record. Depois do AI-5, em 1969, Nelson parou de
compor, só voltando em 1977, com o provocativo rock
“Perigosa”, parceria com Rita Lee e Roberto de Carvalho
e sucesso nacional com as Frenéticas.
Em 1982, Nelson gravava todos os dias o talk show
Noites cariocas, na TV Record do Rio, em dupla com a
jornalista Scarlet Moon. Recém-casada com Lulu, ela os
reaproximou e estimulou a comporem juntos.
Começaram com o rock “Tesouros da juventude” e
emplacaram seu primeiro hit com o surf rock “De repente
Califórnia”, do filme Menino do Rio, de Antônio Calmon,
um espetacular sucesso de bilheteria.
“Como uma onda” foi feita originalmente para outro
longa de Calmon, Garota dourada, que pretendia surfar
na onda de Menino do Rio. Mas a produção se arrastou
tanto que, quando o filme foi lançado (e naufragou nas
salas de cinema), a música já era um grande sucesso
nacional.
Apesar de ligado ao rock desde garoto, em “Como
uma onda” Lulu fez um bolero. Original e moderno, com
referências de música havaiana, mas um bolero pop. A
letra de Nelson é inspirada no verso “A vida vem em
ondas como o mar”, de Vinicius de Moraes no poema
“Dia da criação”. Para que não soasse pretensiosa e
metida a filosófica, foi acrescentado o subtítulo irônico de
“Zen surfismo”, que sintetiza a mistura de leituras de
Jorge Luís Borges, filosofia budista e a Bíblia com o
hedonismo de surfistas e gatinhas de praia, os
personagens de Garota dourada.
“Nada do que foi será / de novo do jeito que já foi um
dia / Tudo passa, tudo sempre passará / A vida vem em
ondas como o mar / num indo e vindo infinito.”
Na certeza de que tristezas e alegrias passarão, e
voltarão sempre, como no eterno retorno do filósofo
grego Heráclito (540 a.C.), a música tocou o coração do
público. Tanto como celebração da permanente mutação
da vida, quanto como consolo para as dores do mundo.
Fera ferida
Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982

Lançada por Roberto em seu disco de 1982, essa balada logo foi gravada
também por Gal e Caetano

Lançada no fim de 1982, no disco anual de Roberto


Carlos, que então funcionava como um aviso de que o
Natal chegara, “Fera ferida” logo foi incorporada à sua
longa lista de clássicos. Na letra extensa, um sofrido
desabafo de alguém devastado por uma separação,
Roberto e Erasmo usam imagens fortes e referências aos
instintos animais para marcar a sensação de desespero
do narrador. São tantos sentimentos expostos com
crueza e lirismo, envolvidos por uma bela melodia
romântica, mas cheia de tensões, que logo foi
considerada uma das mais perfeitas composições da
dupla.
A música começa feroz, com a última briga, cheia de
fúria selvagem:
“Acabei com tudo / Escapei com vida / Tive as roupas
e os sonhos / Rasgados na minha saída.”
Depois explica as razões de ter se entregado ao amor
e se decepcionado:
“Animal arisco / Domesticado esquece o risco / Me
deixei enganar / E até me levar por você.”
Sim, “Fera ferida” foi um sucesso animal, não só com
Roberto. Em 1987, também ganhou uma bela versão de
Caetano Veloso, mais pop, com arranjo de Lincoln
Olivetti. Seis anos depois foi a vez de Maria Bethânia,
como uma das faixas mais fortes de um disco
inteiramente dedicado ao repertório do Rei, As canções
que você fez pra mim, com recordes de vendagem. Sua
gravação, produzida por Guto Graça Mello, é romântica e
classuda, com belo arranjo de cordas. A música também
foi escolhida como tema de abertura e título de uma
novela que a TV Globo exibiu entre 1993 e 1994.
“Fera ferida”, portanto, virou mais um elo entre três
personagens que já tinham uma ligação forte. Como
Caetano conta, até a metade dos anos 1960, o jovem
convertido à música por João Gilberto não dava bola para
a Jovem Guarda. Foi só depois de comentários da irmã
quatro anos mais nova que começou a gostar das
canções de Roberto e Erasmo.
O que é, o que é?
Gonzaguinha, 1982

Entre o samba-exaltação e o protesto, “O que é, o que é?” é puro


Gonzaguinha

Motivos para mágoa e revolta nunca faltaram para


Gonzaguinha. Da infância e adolescência sofridas,
marcadas pelos conflitos com o pai (Luiz Gonzaga), até
começar sua carreira no período mais tenebroso da
ditadura militar, foram muitas as pedras no caminho.
Mas, a partir do fim dos anos 1970, depois de anos de
guerra com a Censura e a ditadura que lhe valeram o
apelido de cantor-rancor, amadureceu, teve filhos e
reinventou-se como um eterno aprendiz, cantando que,
apesar de todas as dores, injustiças e horrores, a vida era
bonita e podia ser ainda melhor.
“A vida da gente é um nada no mundo / É uma gota, é
um tempo que nem dá um segundo / Há quem fale que é
um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa
atitude repleta de amor.”
Faixa de abertura de seu 11o álbum solo, Caminhos do
coração, lançado em 1982, “O que é, o que é ?” sintetiza
a visão de mundo que passou a pautar o artista maduro.
Na época, o Brasil vivia os estertores da ditadura militar
e o país avançava na abertura política que levaria à
eleição indireta de Tancredo Neves em 1985. Cada um
seria livre para compor o que quisesse.
Por seu estilo festivo, sua batida empolgante, sua
linguagem popular, a música foi até classificada como
um paradoxal “samba-exaltação de protesto”, por
traduzir o sentimento de brasileiros que apostavam na
esperança e nas mudanças.
Tendo seu compositor disputado pelas grandes
intérpretes da MPB depois da gravação original, “O que
é, o que é?” virou clássico, com sua mensagem de fé e
esperança atravessando o tempo nas vozes de Simone,
Maria Bethânia, Beth Carvalho e Zé Ramalho.
De bem com a vida, Gonzaguinha, infelizmente, teve
fim precoce: em 1991, aos 45 anos, morreu vítima de um
acidente no carro que dirigia numa estrada do Paraná.
Sina
Djavan, 1982

Djavan tem entre suas marcas conjugar com perfeição lirismo e balanço, e
“Sina” é exemplar nesses quesitos

Um dos melhores e mais originais estilistas da MPB –


apenas uns poucos acordes já identificam uma música
sua –, Djavan desenvolveu seus dons com bandas de
baile em Maceió e, depois, no Rio de Janeiro, como
crooner dos melhores pianos-bares da Zona Sul nos anos
1970. Neste período conviveu intensamente com
grandes músicos jazzistas, desenvolvendo uma
linguagem musical em que a MPB, o jazz e a música
nordestina se misturam harmonicamente.
Mas não é só de melodias e harmonias
surpreendentes e sofisticadas e de seu canto doce e
suingado que se faz o estilo de Djavan. Suas letras são
cheias de imagens audaciosas e com um vocabulário em
que a sonoridade também pode ser o próprio significado
da palavra. Nelas, a sequência de sílabas se harmoniza
com a cadência do ritmo, rompendo com a tradição
literária em favor de uma poética sonora em que música
e letra formam uma unidade que cria novos significados.
“Sina”, de 1982, é uma das mais completas traduções
do seu estilo de música e letra, com imagens fortes e
surpreendentes. Segundo o autor, a canção é o relato,
djavaneado, de uma relação de amor que não acontece,
uma conquista frustrada que gera saudades da pessoa
amada apesar da impossibilidade de tê-la.
Lançada em Luz, o álbum que, em 1982, transformou
Djavan numa estrela de sucesso popular, a música ficou
meio adormecida nos primeiros tempos. Mesmo que,
ainda naquele ano, tenha sido regravada por Caetano no
disco Cores nomes. Homenageado em “Sina” com o
neologismo “caetanear” (no sentido de compor tão bem
quanto Caetano), o baiano retribuiu o afago trocando a
palavra inventada por “djavanear”. A partir de 1986,
“Sina” conquistou de vez o público e virou número
obrigatório em shows de Djavan.
Beatriz
Edu Lobo e Chico Buarque, 1983

Já consagrados, eles se juntaram em parcerias nas quais Edu (na foto) entra
com a música e Chico, com a letra. “Beatriz” é filha desse casamento
perfeito

Assim que foi lançada, em 1983, na trilha sonora de O


Grande Circo Místico, “Beatriz” virou a favorita entre os
muitos admiradores de Edu Lobo e se consagrou como
um clássico instantâneo, com lugar de honra em
qualquer lista das mais belas canções brasileiras. A lírica
descrição da vida e dos mistérios de uma atriz está entre
as preciosidades que Edu Lobo e Chico Buarque
escreveram por encomenda do Balé do Teatro Guaíra, de
Curitiba.
Revelados e consagrados durante os festivais
competitivos que sacudiram o país nos anos 1960, Edu
Lobo (1943) e Chico Buarque nunca deixaram as disputas
minarem a amizade que se estreitou através dos anos e
que virou uma parceria perfeita a partir desse musical.
Desde então, em meio às suas carreiras individuais, eles
já se juntaram mais três vezes em colaborações para os
palcos, nas peças musicais O corsário do rei, Dança da
meia-lua e Cambaio.
Naquele início dos anos 1980, quando o novo rock
brasileiro começava a tomar as paradas, estourando em
rádios e programas de TV, Edu e Chico velejavam contra
a corrente com o complexo universo lírico de O Grande
Circo Místico. A partir de um enredo inspirado num
poema do alagoano Jorge de Lima, eles criaram a trilha
sonora com música circense, blues, baladas, canções e
valsas, como a delicada “Beatriz”, prova de fogo para
intérpretes pelas surpresas e dificuldades de sua linha
melódica e pelas intensas emoções da linda letra.
“Sim, me leva para sempre, Beatriz / Me ensina a não
andar com os pés no chão / Para sempre é sempre por
um triz / Aí, diz quantos desastres tem na minha mão /
Diz se é perigoso a gente ser feliz.”
No disco com a trilha original, lançado em 1983 pela
Som Livre, “Beatriz” veio na voz de Milton Nascimento,
no auge de sua técnica e sensibilidade. É uma versão
definitiva, insuperável: só a voz de Milton, o piano de
Cristóvão Bastos e um deslumbrante arranjo de cordas
de Chiquinho de Moraes. Mas muitas outras gravações
memoráveis foram feitas por algumas das melhores
vozes do Brasil, como Zizi Possi, Mônica Salmaso, Ed
Motta e Ana Carolina, todas à altura da beleza
arrebatadora da canção.
Coração de estudante
Wagner Tiso e Milton Nascimento, 1983

Emocionado pelo tema musical de Wagner Tiso, Milton escreveu a letra que
virou um hino para muitas causas políticas

Mesmo que tenha feito sozinho letra e música de muitas


canções, em suas parcerias Milton Nascimento quase
sempre assina a melodia. “Coração de estudante” é das
raras em que ele escreveu a letra, a partir de um tema
instrumental que Wagner Tiso criou em 1983, para a
trilha sonora do documentário Jango, de Sílvio Tendler.
Milton assistiu ao filme numa sessão para convidados,
antes de sua estreia nos cinemas e, ao chegar em casa,
com a triste melodia de Wagner rodando na cabeça e
emocionado com a história do presidente deposto pelo
Golpe de 1964, escreveu a letra. Coloquial e lírico, sem
usar mensagens de protesto explícitas, Milton criou um
hino político que tem servido para muitas causas. Foi
adotado tanto na campanha pela volta das eleições
diretas para presidente, em 1984, quanto, no ano
seguinte, como o tema da agonia e morte de Tancredo
Neves, cantada pelas multidões ao longo de todo o
cortejo.
Além de estar associada a tristes lembranças, a
canção continua como uma ode à generosidade da
juventude e prova de fé no ser humano.
Nascido em Três Pontas, Minas Gerais, Wagner Tiso
Veiga (1945) é amigo e companheiro musical de Milton
desde a adolescência, quando fizeram parte do grupo
The W’s Boys. Continuaram juntos em Belo Horizonte,
pelos bailes da vida, indo onde o povo estava, até a
consagração de Milton com “Travessia” no festival de
1967 e Wagner se tornar um dos grandes pianistas e
arranjadores brasileiros.
No início dos anos 1970, Tiso liderou o grupo Som
Imaginário, que jogava eletricidade, timbres e
sonoridades de rock na MPB de Milton. O parceiro
também esteve junto no lançamento de “Coração de
estudante”, como pianista e regente da orquestra do
show em São Paulo, em novembro de 1983, registrado no
disco Ao vivo.
Pro dia nascer feliz
Cazuza e Frejat, 1983

Os “Jagger & Richards” do rock brasileiro assinam esse autorretrato do


roqueiro enquanto exagerado, lançado no segundo LP do Barão Vermelho,
na época formado por Dé (à esquerda), Mauricio Barros, Cazuza, Frejat e
Guto Goffi
Lançada pelo Barão Vermelho em 1983, “Pro dia nascer
feliz” dormia esquecida no segundo disco do grupo
carioca até, meses depois, chegar às rádios a
sensacional versão de Ney Matogrosso. Grande amigo de
Cazuza, Ney tinha ouvido a canção numa fita, antes de a
gravação do Barão chegar ao mercado, e insistiu para
regravá-la no álbum …pois é, que saiu no fim do ano.
O impacto nas rádios deste rock cru, de letra
hedonista, na voz de Ney foi tão forte que despertou o
interesse de alguns programadores pela versão original
do Barão. Relançada em single pela Som Livre, essa
gravação, mais rascante e suja, também começou a ter
grande execução, chamando atenção para a nova banda
e dando o primeiro de muitos hits à dupla Frejat e
Cazuza.
Rebelde e amoroso, sensível e debochado, cronista
agudo de seu tempo, falando de sexo e drogas com uma
linguagem original em que amores adolescentes do rock
se cruzam com dramas passionais do samba-canção,
Cazuza (Agenor Miranda de Araújo Neto, 1958-1990)
encontrou em Roberto Frejat (1962) o parceiro ideal. O
guitarrista encharcou de rock e blues aquelas crônicas
cariocas de uma vida sem rédeas, levada às últimas
consequências, como celebraram em “Pro dia nascer
feliz”, autorretrato do artista como um assumido
vagabundo em busca do prazer, “nadando contra a
corrente só para exercitar / todo o músculo que sente” e
sempre querendo mais.
Influenciados pelos Rolling Stones, e incentivados pelo
produtor Ezequiel Neves, eles se tornaram os Jagger &
Richards do rock brasileiro. Durante cerca de quatro
anos, os dois produziram muito, emplacando vários
sucessos, como “Bete Balanço”, “Por que que a gente é
assim?” e “Todo amor que houver nessa vida”, até
Cazuza sair para a carreira solo em 1985.
Inútil
Roger Moreira, 1984

À frente do grupo Ultraje a Rigor, Roger (à direita na primeira foto) sintetizou


a desilusão de sua geração com a política brasileira

Como resposta ao Golpe de 1964, a música de protesto


se fez mais presente no Brasil e foi mudando de forma,
conteúdo e intenções. Ainda naquele ano, o samba
“Opinião”, de Zé Kéti, e a toada “Carcará”, de João do
Vale, marcaram a reação da canção brasileira à ditadura
militar. Em seguida, se destacaram a metafórica
“Disparada” (Théo de Barros e Geraldo Vandré, 1966), do
vaqueiro que enfrenta o dono da boiada, e a incisiva “Pra
não dizer que não falei das flores” (também de Vandré,
em 1968), esta tão provocativa que contribuiu para a
edição do AI-5.
Ao longo dos anos 1970, além dos clássicos
oposicionistas de Chico Buarque, João Bosco e Ivan Lins,
quase todas as músicas do primeiro time da MPB eram,
ou pareciam, de protesto, mesmo aquelas sem qualquer
intenção. Para driblar a censura, os compositores foram
obrigados a criar metáforas tão elaboradas que
acabavam não sendo entendidas pelo público. Mas novas
formas de protesto surgiram, agora caracterizadas pelo
deboche e pelo sarcasmo. Essas foram as armas usadas
em 1973 por Raul Seixas em “Mosca na sopa” e “Ouro de
tolo”, achincalhando os valores do Brasil Grande da
ditadura.
Com a abertura política, nos anos 1980, bandas do
rock brasileiro como Legião Urbana, Titãs, Paralamas do
Sucesso e Barão Vermelho seguiram a trilha inaugurada
por Raul. E, além de contundente crítica política,
discutiam drogas e sexualidade, temas tabus tanto para
a direita no poder quanto para a esquerda brasileira.
Em 1983, a ditadura agonizava e aumentava a
pressão popular por eleições diretas para presidente. Em
São Paulo, Roger Moreira (1956), que abandonara a
faculdade de Arquitetura para criar o Ultraje a Rigor,
cantarolava um roquezinho debaixo do chuveiro, quando
lhe veio o refrão, com as palavras que mais ouviu de seu
pai depois de trocar a faculdade pela música: “Inútil!
Você é um inútil!”
Cheia de erros de concordância propositais, de efeito
cômico, a música não foi feita com intenções políticas,
Roger queria só retratar o atraso do brasileiro que não se
importa com nada. Mas, graças ao verso “a gente não
sabemos escolher presidente”, citado até pelo líder
oposicionista Ulysses Guimarães, acabou virando um
hino da campanha pelas Diretas Já. Não como um épico,
mas como um ultraje, com multidões cantando pelas
ruas do país “Inútil, a gente somos inútil”.
Foi tudo inútil mesmo. As diretas não passaram no
Congresso e a ditadura acabou com a eleição indireta do
oposicionista Tancredo Neves.
Fullgás
Marina Lima e Antonio Cícero, 1984

Com letra de seu irmão, Antonio Cícero, Marina Lima flagrou os anseios de
mudanças do início dos anos 1980

O Brasil fervia em 1984, assolado por uma crise


econômica sem precedentes, mas empolgado com a
perspectiva do fim da ditadura. A campanha das Diretas
Já arrebatava o país unindo políticos, artistas e
intelectuais no mesmo palco e arrastando multidões às
praças. Havia muita esperança no ar com o sonhado fim
da ditadura e o exercício da plena liberdade criativa, em
que o civismo se misturava ao romantismo, como em
“Fullgás”.
Esse também foi um ano de vigorosa produção
musical. Do já comentado hino sarcástico das Diretas
“Inútil” a canções políticas agressivas como “Podres
poderes”, de Caetano Veloso, passando por belas
baladas românticas como “Fogueira”, de Angela Ro Ro, e
“Me chama”, de Lobão. Abraçando esses extremos
estava outro sucesso que permaneceu, “Fullgás”, da
carioca Marina Lima e seu irmão, o poeta e filósofo
Antonio Cícero. É um rock leve e elegante, com tempero
jazzístico, que integra o sabor brasileiro ao pop
internacional, funde o político ao amoroso e expressa o
momento de esperança do Brasil. Seu verso de
encerramento fez história, unindo o sentimento coletivo
e o individual: “Você me abre seus braços / e a gente faz
um país.”
Com o neologismo “Fullgás”, Marina e Cícero integram
os sentidos de “a todo vapor” e da fugacidade do tempo
e dos sentimentos. A canção deu nome e foi o grande
sucesso do quinto disco da cantora e compositora,
estabelecendo-a como autora de grande personalidade e
estilo, como voz das mulheres de sua geração. Após
cinco anos de carreira, o pop melodioso, o fraseado
musical fluente e elegante, as letras sonoras e
elaboradas de Antonio Cícero e uma atmosfera sensual
criada pelos arranjos sofisticados e pela voz quente de
Marina conquistavam o grande público.
Me chama
Lobão, 1984

Regravada até pelo papa da bossa nova João Gilberto, “Me chama” foi
lançada no álbum de Lobão (à esquerda na foto) com os “Ronaldos” Odeid,
Alice Pink Pank, Guto Barros e Baster Barros

Em meados dos anos 1970, o carioca João Luiz


Woerdenbag Filho (1957) começou a escrever seu nome
na nascente cena do rock brasileiro. Ele tinha 16 anos
quando trocou o estudo do violão clássico pela bateria.
Algum tempo depois, já conhecido como Lobão, virou o
baterista da banda de rock progressivo Vímana, ao lado
de Lulu Santos e Ritchie. Em 1982, após participar do
lançamento da Blitz, abandonou escandalosamente o
grupo, justamente no momento do estouro popular, para
fazer seu primeiro disco solo, também como cantor e
compositor, Cena de cinema. Dois anos depois, com seu
segundo álbum, Ronaldo foi à guerra, e o sucesso da
balada “Me chama”, provou que fizera a coisa certa.
Lobão conta que tudo começou com a frase “nem
sempre se vê mágica no absurdo”, que lhe veio à cabeça
e não o abandonou por quase dois anos. Até o dia em
que decidiu transformá-la em ponto de partida para uma
canção despudoradamente romântica. A primeira versão
da melodia, ainda sem letra, soava tão natural e popular
que ele tentou descartá-la, achando-a “vulgar”. Um
amigo que a ouviu assegurou que ali estava o embrião
de um futuro hit, encorajando Lobão a terminá-la.
Meses depois, de volta da Holanda, onde ficara sua
namorada, Lobão estava sozinho em casa, no Rio, num
dia de frio e chuva. Com o telefone cortado por falta de
pagamento e, por puro tédio, decidiu pintar a sala. Como
só podia receber ligações, esperava ansiosamente que o
telefone tocasse enquanto pintava e repintava a sala e
criava a letra sofrida de “Me chama”.
Gravada em 1984 tanto por Marina Lima quanto por
Lobão, foi um grande sucesso popular. Além de
estabelecer um novo padrão de romantismo moderno, foi
responsável por um dos mais extraordinários crossovers
da música brasileira ao ser regravada por João Gilberto,
então representando o oposto estético do rock brasileiro.
Com sua abordagem intimista, sussurrando as palavras
acompanhado de violão e cellos, João emocionou e
surpreendeu duplamente Lobão. Primeiro por gravar “Me
chama”, depois, por omitir justamente a frase que o
inspirou: João não viu mágica no absurdo, como nem
sempre se via, e a própria letra dizia.
Será
Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, 1984

“Será” mostrou a abrangência da obra de Renato Russo (no alto), que, nessa
música, dividiu os créditos com Marcelo Bonfá (à esquerda) e Dado (à
direita). Lançada no álbum de estreia da Legião Urbana (então completada
pelo baixista Negrete), depois foi regravada até por grupos de pagode
Inspirada na urgência do movimento punk, com um
discurso político contundente e libertário, a Legião
Urbana se tornou uma das bandas mais representativas
do rock brasileiro dos anos 1980. Sucesso absoluto desde
a estreia em disco, o grupo foi adotado e adorado como
um porta-voz crítico da autodenominada geração Coca-
Cola. Mas, além da vertente de crítica e combate, muito
presente nos discos iniciais, o lado lírico e existencialista
de Renato Russo foi um fator fundamental para o grupo
avançar além dos limites do rock.
Faixa de abertura do arrasador disco de estreia, em
novembro de 1984, “Será” tem letra de Renato Russo
(1960-1996) e música dividida com o guitarrista Dado
Villa-Lobos (1965) e o baterista Marcelo Bonfá (1965).
Sucesso que também continua como o principal exemplo
do crossover conseguido pela Legião: no início dos anos
1990, seria regravada tanto por Simone quanto pelo
grupo de pagode Raça Negra.
Primeiro sucesso da Legião nas rádios, a canção
permitia diversas associações, como um protesto contra
a sociedade opressiva da época em versos como “Tire
suas mãos de mim” e “Não é me dominando assim”,
mas, antes de tudo, era uma poderosa canção de amor,
tentando usar da razão para sobreviver à paixão
avassaladora que o consome.
Como Renato revelou anos depois, entre as
inspirações para “Será” estava a leitura de O médico e o
monstro, o clássico de Robert Louis Stevenson do século
XIX. A frase “Nos perderemos entre monstros / da nossa
própria criação?” mostra que cada um de nós tem dentro
de si tanto Dr. Jekyll quanto Mr. Hyde.
Duas décadas após a morte de Renato – aos 36 anos,
em outubro de 1996 –, a dupla Villa-Lobos e Bonfá
retomou a Legião, voltando aos palcos para o encanto de
velhos e novos fãs. E, nos shows, “Será” tem lugar certo.
Alagados
Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone, 1986

Os Paralamas, de Herbert (à direita), Barone e, ao fundo, Bi, incorporaram


ao rock ecos dos ritmos nordestinos e do afropop

Um dos melhores grupos surgidos no rock brasileiro dos


anos 1980, os Paralamas do Sucesso começaram a se
diferenciar de seus contemporâneos graças a seu
terceiro álbum, Selvagem?, de 1986, que tinha como
faixa de abertura “Alagados”, uma crônica social de
como vivia (e ainda vive) parte da população carente no
Brasil. Assinada por Herbert Vianna (1961), Bi Ribeiro
(1961) e João Barone (1962), esta música também
funcionou como uma carta de intenções da nova fase do
trio, depois de um início fortemente influenciado pelo
rock-reggae do Police. A letra avançava além das
questões existenciais adolescentes e urbanas de seu
grande sucesso anterior, “Óculos”, e, musicalmente,
promovia uma perfeita integração do rock com ritmos
dançantes do Terceiro Mundo, onde muitos vivem
misérias semelhantes.
No estúdio caseiro montado no apartamento da avó
de Bi, começaram a preparar o repertório de Selvagem?,
dispostos a se descolar da marcante influência do Police,
adicionando ao seu reggae branco a pulsação do dub
jamaicano, novos ritmos dançantes de Salvador e muito
afropop contemporâneo.
A partir de levadas do baixo e riffs de guitarra, eles
apostavam nos grooves, formatando cada composição
antes de pensar nas letras, que tiveram que se integrar
ao ritmo e ao clima musical. A inspiração para “Alagados”
foi a memória de Herbert de seu breve período de
estudante de Arquitetura na Ilha do Fundão, quando
passava diariamente em frente à Favela da Maré, uma
paisagem degradada semelhante à das palafitas de
Alagados, em Salvador, ou da cidade jamaicana de
Trenchtown, ambas citadas no refrão da música, gravada
num dueto vocal com Gilberto Gil.
A temática social e a sonoridade diferenciada para os
padrões da época deram um upgrade aos Paralamas,
como a perfeita fusão do rock com ritmos brasileiros,
africanos e caribenhos, que, na década seguinte,
influenciaria o trabalho de grupos como Chico Science &
Nação Zumbi, Mundo Livre SA, Skank e O Rappa.
Coração em desalinho
Monarco e Ratinho, 1986

Lançado e regravado por Zeca Pagodinho, esse samba é um dos clássicos da


dupla Monarco (na foto) e Ratinho

Regravada em 1999 por Zeca Pagodinho no disco Ao


vivo, esta canção tinha sido lançada, mas sem tanta
repercussão, pelo próprio sambista em seu álbum de
estreia, em 1986. Em seguida, no novo século e já com
status de clássico, “Coração em desalinho” também
voltou nas vozes de cantoras como Maria Rita e Leila
Pinheiro, como uma das pérolas da parceria de Monarco
e Ratinho, também responsáveis por outro grande
sucesso no repertório de Zeca Pagodinho, “Vai vadiar”.
Apesar de ser o criador da melodia e da primeira
parte da letra, Monarco registrou a parceria com Ratinho
em nome de seu filho, o também compositor Mauro
Diniz, porque a editora que administrava as suas músicas
estava atrasando o repasse de direitos autorais, e ele
achou que seria melhor arrecadar pela editora das
músicas de Mauro.
Hildemar Diniz, o Monarco, nasceu em 17 de agosto
de 1933, e chegou a Oswaldo Cruz, o bairro onde está
sua Portela, na adolescência. Aos 20 anos, emplacou seu
primeiro samba e foi convidado para a seleta ala de
compositores da escola. Atual presidente da Velha
Guarda da Portela, ele tem uma coleção de sambas
gravados por alguns dos principais intérpretes brasileiros
e, desde 1976, também vem lançando discos como
cantor.
Seu parceiro Ratinho é a prova de que português
também faz samba. E muito bem. Nascido na região do
Alto Douro, no norte de Portugal, em 5 de março de
1948, e batizado como Alcino Correia Ferreira, tinha 4
anos quando sua família se mudou para o Rio de Janeiro.
Muito jovem Ratinho mostrou queda pela música e logo
venceu por sete vezes a disputa de samba-enredo da
Caprichosos de Pilares. Morto aos 62 anos, em 2010,
deixou muitos sambas em parceria com Zeca Pagodinho,
Mauro Diniz, Marquinho PQD e Arlindo Cruz.
Monarco começou a escrever a música que virou
“Coração em desalinho” em 1981, inicialmente como um
samba-enredo para a Unidos do Jacarezinho. Mas desistiu
da ideia depois de, na quadra da escola, conhecer e se
encantar com um samba de outros concorrentes. Algum
tempo depois, mudou a letra e pediu a Ratinho que
fizesse a segunda parte. Samba pronto, Monarco
pretendia oferecer a Martinho da Vila, mas foi convencido
pelo produtor Milton Manhães a apostar num novo cantor
que se preparava para gravar seu primeiro disco: Zeca
Pagodinho, que levou “Coração em desalinho” a clássico
do samba.
Comida
Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, 1987

“Comida”, que entrou no cardápio da MPB, regravada por Marisa Monte,


Bethânia, Ney Matogrosso e Exaltasamba, foi o destaque do quarto álbum
dos Titãs, então um octeto, com Arnaldo Antunes (no alto, à esquerda),
Branco Mello, Paulo Miklos, Charles Gavin e, agachados, Tony Bellotto,
Marcelo Fromer, Nando Reis (de chapéu) e Sérgio Brito

Lançada pelos Titãs em seu quarto álbum, Jesus não tem


dentes no país dos banguelas, de 1987, “Comida” se
tornou uma das músicas mais emblemáticas do espírito
da banda. Cantada por Arnaldo Antunes, foi o segundo
single do disco e um sucesso nas rádios como uma nova
forma de manifesto político e social anárquico, indo
muito além dos slogans ideológicos e partidários, numa
das melhores letras da década:
“A gente não quer só comida / a gente quer comida,
diversão e arte.”
E finalizando com os versos antológicos:
“A gente não quer só dinheiro / A gente quer dinheiro
e felicidade / A gente não quer só dinheiro / A gente quer
inteiro e não pela metade.”
A nova democracia ampliava as demandas sociais, já
não bastavam os velhos slogans políticos, era preciso
querer o impossível.
Arnaldo Antunes (1960) tinha feito a primeira frase, a
ideia-mãe, mas não conseguia avançar. Quando o grupo
começou a trabalhar no repertório do novo álbum,
mostrou a frase ao guitarrista Marcelo Fromer (1961-
2001) e ao tecladista e cantor Sérgio Britto (1959), e
juntos criaram a melodia e desenvolveram a letra. Como
Britto relembrou no livro Titãs: Todas as canções (1984-
2001), num primeiro momento, eles acharam que a
música tinha ficado meio monocórdica, e adicionaram
novos versos e uma marcante frase musical no teclado.
Na hora de gravar, tentaram até uma versão acústica,
mas acertaram em cheio com um funk eletrônico pesado,
produzido por Liminha e inspirado em Prince.
“Comida” foi uma das primeiras músicas de um grupo
de rock adotadas por intérpretes de MPB, a partir de
Marisa Monte, abrindo seu disco de estreia MM (1988), e
depois foi cantada por Maria Bethânia, Ney Matogrosso e
até pelo grupo de pagode Exaltasamba.
Brasil
Cazuza, George Israel e Nilo Romero, 1988

Em sua carreira solo, Cazuza foi mais político em suas letras, como nesse
canto de amor e ódio à “grande pátria desimportante”

Escrita no calor da hora, como um desabafo contra os


desmandos e ladroagens dos políticos naquele final
conturbado dos anos 1980, “Brasil” continua mais atual
do que nunca. O país pouco avançou em questões éticas
e morais, a sua cultura política apodreceu e os
escândalos se sucedem, cada vez maiores.
Talentoso, original e abusado, Cazuza foi o porta-voz
da indignação nacional do momento, falando grosso e
debochando das nossas misérias e da nossa impotência
contra os vilões de sempre. Coloquial como se estivesse
numa roda de bar, ele se colocava à margem da
sociedade, barrado na “festa pobre” e condenado a
consumir “a droga que já vem malhada / antes de eu
nascer”.
Com uma sucessão de imagens agressivas e
dramáticas, montou um mosaico em que desencanto e
deboche se juntam numa declaração de amor e ódio ao
país, um retrato amargo de uma “grande pátria
desimportante” que, apesar de tudo, ele não pretendia
trair.
Parceria com o baixista e produtor Nilo Romero (1960)
e com o saxofonista George Israel (1960), “Brasil” foi
lançada no terceiro álbum solo de Cazuza, Ideologia
(1988), quando ele já tinha sido diagnosticado como
soropositivo e estava com as emoções à flor da pele,
expressando seus sentimentos com a raiva e a liberdade
dos que estão marcados para morrer.
Na sua fase final, a celebração dos excessos e do
hedonismo foram trocados por reflexões amargas e
desilusões contundentes sobre o Brasil, como na faixa-
título do disco, em que pedia “uma ideologia, eu quero
uma pra viver”, ou na antológica “O tempo não para”
(com Arnaldo Brandão):
“Tua piscina está cheia de ratos / tuas ideias não
correspondem aos fatos / O tempo não para.”
Regravada por Gal Costa, “Brasil” foi usada como
tema de abertura da novela Vale tudo, da Rede Globo
(1988), e levou dois troféus do Prêmio Sharp (que depois
se tornou o Prêmio da Música Brasileira): Música do Ano e
Composição Pop-Rock do Ano, e ainda o de Álbum Pop-
Rock do Ano por “Ideologia”.
Lanterna dos afogados
Herbert Vianna, 1989

Melodista inspirado, Herbert Vianna explorou essa veia na balada que os


Paralamas gravaram em seu quinto álbum

Do pop adolescente de “Óculos” à pioneira fusão de rock,


reggae, ritmos nordestinos e africanos de “Alagados”, os
Paralamas do Sucesso sinalizavam alta versatilidade e
muito bom gosto desde a sua entrada em cena. Herbert
Vianna ampliou e aprofundou essas características ao
mergulhar fundo no mundo das baladas, fazendo em 10
minutos, enquanto andava de moto com a namorada, a
bela e melancólica “Lanterna dos afogados”, inspirada
em um bar citado no romance Jubiabá, de Jorge Amado.
“Uma noite longa / Pra uma vida curta / Mas já não me
importa / Basta poder te ajudar / Eu tô na lanterna dos
afogados / Eu tô te esperando / Vê se não vai demorar.”
A música foi lançada no álbum Big bang (1989),
quinto dos Paralamas, mas o segundo que faziam
reforçado nos palcos por um tecladista e um naipe de
sopros. A instrumentação aumentada também foi levada
aos estúdios, estimulando o guitarrista, cantor e principal
compositor do grupo a navegar por melodias e
harmonizações mais ousadas, além do então restrito
universo do pop brasileiro.
Arnaldo Antunes, no texto de apresentação do disco,
apontou-a como a canção-síntese de Big bang,
ressaltando a proposta de dubiedade do verso “Eu tô na
lanterna dos afogados”, que viu como uma “fossa
paradoxal”, aliviada pela visão de uma “luz no túnel dos
desesperados”, com algo “entre a fossa e troça”.
Consagrada pela crítica, “Lanterna dos afogados”
também bateu no gosto do grande público e foi o
principal sucesso do disco e uma das mais executadas do
ano nas rádios brasileiras. Cinco anos depois, ganhou
outra vigorosa interpretação, na voz rascante de Cássia
Eller. E continuou no repertório de cantoras consagradas
como Daniela Mercury, Gal Costa, Maria Gadú e Claudia
Leitte, e até do grupo emo Fresno, que gravou uma
versão emocionada, em 2010.
Meia lua inteira
Carlinhos Brown, 1989

Lançada por Caetano no álbum Estrangeiro, “Meia lua inteira” revelou a


musicalidade sem limites do baiano Carlinhos Brown

Transbordante de instintiva musicalidade, Carlinhos


Brown (1962) ficou conhecido nacionalmente a partir do
sucesso de “Meia lua inteira”, gravado por Caetano
Veloso, com quem Brown trabalhava como percussionista
de sua banda. Este samba-reggae, gênero em que o
percussionista, multi-instrumentista, cantor, compositor,
produtor e agitador cultural é um dos mestres, tinha
passado em branco no álbum Tambores urbanos, do
grupo carnavalesco baiano Chiclete com Banana, com
nome “Capoeira larará”. Um ano depois, já com o
paradoxal e poético título de “Meia lua inteira”,
referência a um passo de capoeira, era uma das
melhores faixas do poderoso álbum Estrangeiro, de
Caetano Veloso, produzido pelo guitarrista americano
Arto Lindsay e o tecladista suíço Peter Scherer, que
ampliou a projeção internacional de Caetano. E também
começou a espalhar o talento de Brown pelo mundo.
Aos 27 anos, o sensacional percussionista do grupo de
Caetano já tinha uma década de intensa atividade na
cena musical de Salvador, como instrumentista e como
compositor de sucessos de Carnaval. Com o sucesso de
“Meia lua inteira”, Brown assinou contrato com a EMI
para uma carreira solo e passou a ser gravado por muitos
grandes intérpretes, como Maria Bethânia, Gal Costa,
Paralamas do Sucesso, Cássia Eller, Daniela Mercury,
Ivete Sangalo e Adriana Calcanhotto.
Brown também desenvolveu uma parceria bem-
sucedida com Sérgio Mendes, tocando percussão,
cantando e assinando cinco faixas de Brasileiro,
premiado com o Grammy de Melhor Álbum de World
Music em 1993.
Com muitos parceiros, Brown teve em Marisa Monte e
Arnaldo Antunes os mais constantes – que formaram com
ele o trio Tribalistas, de espetacular sucesso no Brasil e
na Europa em 2002.
O estilo de Brown é marcado por suas “letras
sonoras”, que tem entre seus inventores Jorge Ben Jor,
Luiz Melodia e Djavan, em que a sonoridade e o ritmo
das palavras em sincronia com a música rompem com a
tradição literária e, como onomatopeias, não formam
frases e ideias, significam o que soam.
“Bimba birimba a mim que diga / Taco de arame,
cabaça, barriga / São dim, dão, dão São Bento / Grande
homem de movimento / Nunca foi um marginal.”
Futuros amantes
Chico Buarque, 1993

O fino artesanato de Chico brilha nessa canção lançada no álbum Paratodos

Chico Buarque pode ter dezenas de músicas em qualquer


lista de melhores, mas, para quem escolheu estas 101,
esta é a sua canção mais bonita.
Um dos maiores clássicos do Chico Buarque maduro,
lançado no álbum Paratodos, de 1993, quando completou
49 anos, “Futuros amantes” é uma deslumbrante canção
de nítidas formas e inspiração jobinianas, uma bossa
nova lenta e melancólica, cantando o destino dos amores
num futuro remoto, “milênios depois”:
“E quem sabe, então / O Rio será / Alguma cidade
submersa / Os escafandristas virão / Explorar sua casa /
Seu quarto, suas coisas / Sua alma, desvãos.”
Com fino artesanato e delicadeza de sentimentos,
Chico montou uma canção para a eternidade, como se
fosse a carta de um náufrago numa garrafa jogada ao
mar. Quando foi lançada, alguns aficionados da MPB
imaginaram que havia uma sutil homenagem a “Cidade
submersa”, o também lento samba que Paulinho da Viola
havia escrito e gravado 20 anos antes. Mas na época do
lançamento Chico contou que esta tinha sido a primeira
imagem que lhe veio à cabeça quando começou a fazer a
melodia no violão: “Eu tinha que ir atrás da explicação
dessa cidade submersa. Aí eu coloquei os escafandristas,
e surgiu a história de um amor adiado, um amor que fica
para sempre”, explicou numa entrevista em um
documentário dirigido por Roberto de Oliveira.
Homenagem inconsciente ou não, o restante da letra
e a melodia de “Futuros amantes” realmente seguem
caminhos bem diferentes dos trilhados por Paulinho em
seu samba. Dois anos após o autor apresentá-la ao
mundo em Paratodos, foi a vez de Gal Costa fazer outra
impecável gravação, no álbum Mina d’água do meu
canto, com repertório dividido entre composições de
Chico e Caetano Veloso.
Resposta ao tempo
Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, 1998

Nana Caymmi lançou o bolero contemporâneo e atemporal da dupla


Cristóvão Bastos e Aldir Blanc

Como o resto do mundo, o Brasil não ficou imune à


invasão do bolero, que nasceu em Cuba, no início do
século XX, e, a partir dos anos 1940, se espalhou pela
América Latina, tendo grande influência no samba-
canção, até o surgimento da bossa nova, quando
começou a perder espaço como “cafona”. Mas o “dois
pra lá, dois pra cá” de João Bosco e Aldir Blanc sempre
tem vez na MPB, como “Resposta ao tempo”, lançado em
1998 por Nana Caymmi no álbum de mesmo nome, que
virou um fenômeno de execução nas rádios brasileiras.
Escolhida para ser o tema de abertura da minissérie
Hilda Furacão, a gravação também se transformou no
maior sucesso popular de Nana, uma diva até então
restrita a um público mais sofisticado.
Aldir Blanc já tivera algumas boas experiências com o
gênero em suas parcerias com João Bosco, geralmente
exercendo o seu habitual e corrosivo humor, mas no
bolero com o pianista e arranjador carioca Cristóvão
Bastos (1947) preferiu explorar um lirismo profundo em
forma de um diálogo com o tempo.
“E o tempo se rói / Com inveja de mim / Me vigia
querendo aprender / Como eu morro de amor / Pra tentar
reviver.”
A música, a letra e a interpretação apaixonada de
Nana fizeram de “Resposta ao tempo” a canção ideal
para a minissérie baseada no romance do escritor
mineiro Roberto Drummond. A letra de Aldir não faz
menção alguma ao enredo ou a personagens – a história
de uma jovem da sociedade que troca um casamento
seguro pela prostituição na Belo Horizonte dos anos 1950
–, mas, em suas reflexões sobre o tempo e a existência,
são muitos os pontos de contato com a história.
Essas impressões e sensações são reforçadas pela
melodia e pelo belíssimo arranjo de Cristóvão Bastos,
que, como compositor, tem parcerias também com Chico
Buarque, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola, Abel
Silva e Elton Medeiros.
Lançado com a insuperável gravação de Nana,
“Resposta ao tempo” virou um clássico que não parou de
atrair outras grandes vozes, como Milton Nascimento,
Leila Pinheiro, Simone e Fafá de Belém.
Deixa a vida me levar
Serginho Meriti e Eri do Cais, 2002

Principal estrela do gênero no século XXI, Zeca Pagodinho emplacou esse


samba em 2002

Desde que o samba é samba os sambistas reclamam de


preconceito e perseguição. No início, eram vistos como
vagabundos e marginais pela sociedade e pela polícia.
Mas, já a partir dos anos 1930, o gênero conquistou
grande espaço no gosto popular por ser a perfeita
expressão do jeito brasileiro de viver e de sentir. E por
estar sempre em movimento.
“O samba está morrendo”, “Querem acabar com o
samba”, “O samba não pode morrer”, queixavam-se
muitos bambas. Mas ele resiste sempre: desde os anos
1940 com o samba-exaltação nacionalista, passando pelo
samba-canção dos anos 1950, pela bossa nova dos 1960,
pelo samba-rock e pelo samba-soul nos 1970 ou pelo
samba-rap nos anos 1990, ele sobrevive, se transforma e
cresce.
Tanto que grandes revelações dos anos 2000, Maria
Rita, Diogo Nogueira, Seu Jorge, Roberta Sá, são
estreitamente ligadas ao sucesso e à modernização do
samba.
Com sua alegria, seu suingue e sua verve malandra e
carioca, Zeca Pagodinho se tornou a melhor encarnação
do gênero no terceiro milênio, unindo o samba clássico
ao contemporâneo para expressar os sentimentos dos
brasileiros em linguagem popular.
Em 2002, com o país crescendo em democracia e
liberdade e vivendo um grande clima de otimismo
nacional, Zeca transformou em um estrondoso sucesso
“Deixa a vida me levar”, de Serginho Meriti e Eri do Cais.
Com sua letra que retratava a luta e a esperança
cotidiana do povo e um refrão que tomou conta do país,
o samba entrou para a história como o hino do
pentacampeonato da Seleção brasileira no Japão.
“Se a coisa não sai do jeito que eu quero / Também
não me desespero / O negócio é deixar rolar / E aos
trancos e barrancos lá vou eu! / E sou feliz e agradeço
por tudo que Deus me deu...”
Velha infância
Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Davi Moraes e Pedro Baby,
2003

No único disco dos Tribalistas, lançado em 2003, Carlinhos Brown (na foto, à
esquerda), Marisa Monte e Arnaldo Antunes uniram seus talentos

A carioca Marisa Monte (1967) e o baiano Carlinhos


Brown surgiram – junto com Cássia Eller, Ed Motta e
Adriana Calcanhotto – como as melhores novidades da
MPB nos anos 1990. Originais, talentosos, independentes
e muito diferentes entre si, os dois se tornaram parceiros
com a belíssima “Segue o seco”, gravada por Marisa em
1994, um grande sucesso de público e de crítica.
Desde o início triunfal de sua carreira, aos 20 anos,
com o megassucesso “Bem que se quis” (versão de
Nelson Motta de “E pò che fà”, do italiano Pino Daniele) e
a extraordinária regravação de “Comida”, dos Titãs,
Marisa se aproximou de Arnaldo Antunes, que foi seu
primeiro parceiro quando ela começou sua carreira de
autora em seu segundo disco, com a canção “Beija eu”
(1990) e seguiu como seu principal parceiro, ao lado de
Brown, até hoje.
O paulistano Arnaldo Antunes surgiu como compositor
e frontman dos Titãs nos anos 1980 e dez anos depois
era considerado o melhor letrista de sua geração. Com o
início de sua carreira solo em 1992, começou a compor
com vários parceiros, e uma das mais frequentes e de
mais sucesso foi Marisa Monte, pela perfeita sincronia
que encontravam entre letra e música.
Em 2002, juntando suas diferentes origens, formações
e estilos, a carioca, o paulista e o baiano criaram os
Tribalistas e produziram o maior sucesso do ano no Brasil
e um dos discos brasileiros de maior sucesso na França,
na Itália, em Portugal, na Espanha e na Argentina em
2003, mesmo sem fazerem nenhuma apresentação
pública ou entrevista do grupo.
O extraordinário sentido rítmico e popular de Brown se
uniu à musicalidade de Marisa, desenvolvida no jazz, no
samba e na música clássica, e à inteligência poética
clássica e vanguardista de Arnaldo para criar a melhor
síntese da MPB do terceiro milênio com os Tribalistas.
Entre grandes sucessos do disco, como “Já sei
namorar”, “Carnavália”, “Um a um”, “O amor é feio”, o
maior foi “Velha infância”. Além dos três Tribalistas,
foram coautores os guitarristas Davi Moraes (filho de
Moraes Moreira) e Pedro Baby (filho de Pepeu Gomes),
numa síntese de quatro décadas de música brasileira e
como expressão do espírito de brincadeira entre amigos
que inspirou o disco.
“E a gente canta / E a gente dança / E a gente não se
cansa / De ser criança / A gente brinca / Na nossa velha
infância.”
À procura da batida perfeita
Marcelo D2 e Davi Corcos, 2003

Disposto a ir além do rap americano, Marcelo D2 buscou no samba a batida


perfeita para sua explosiva mistura

Desde o Planet Hemp, que ajudou a criar em 1993,


Marcelo D2 vinha fazendo uma mistura certeira de rap e
punk rock com forte sotaque carioca e uma incendiária
mensagem pela liberação da maconha, com grande
sucesso popular e algumas prisões.
Mas foi em seu segundo disco solo, À procura da
batida perfeita, lançado em 2003, que o MC carioca
Marcelo Maldonado Peixoto (1967) deu seu pulo do gato.
A canção-título é uma espécie de carta de intenções da
nova vertente em que ele passou a investir, fundindo rap
com samba e outros ritmos brasileiros.
Sigla em inglês para “ritmo e poesia”, o rap nasceu na
periferia de Nova York em fins dos anos 1970 e se
espalhou como rastilho de pólvora pelos grandes centros
urbanos do mundo. Embora Jair Rodrigues tenha
gravado, ainda nos anos 1960, o samba-rap “Deixa isso
prá lá”, no Brasil, os primeiros representantes autênticos
surgiram em São Paulo, nos anos 1980, como a dupla
Thaíde e DJ Hum e depois os radicais Racionais MC’s.
Mas foi com a malandragem e o balanço cariocas de
Marcelo D2 que o gênero ganhou sonoridade e sotaque
diferenciado e se espalhou pelo Brasil. Enquanto o rap
paulista era mais pesado e agressivo, o carioca era mais
leve e suingado e com uma temática libertária e
hedonista de sexo e drogas. Os sinais disso já estavam
em seu primeiro álbum solo, Eu tiro é onda (1998), em
que usou samples de gravações brasileiras, incluindo a
de Baden Powell para “Canto de Ossanha”, mas foi em “À
procura da batida perfeita” que D2 acertou na alquimia.
Composta em parceria com o tecladista e produtor
Davi Corcos (1977), a música usa como base uma
gravação de Luiz Bonfá, “Bonfa nova”, com D2
explorando as semelhanças entre o canto-fala de MCs e
de partideiros, o scratch funcionando como uma cuíca e
o peso e a cadência do bumbo valorizando tanto o rap
como o samba. Sem ligar para as cobranças de puristas
do samba e do rap, criou seu “chiclete com banana” do
terceiro milênio, saudando “os arquitetos da música
brasileira” e apontando um novo caminho para o rap
nacional.
A pergunta sem resposta é: por que, com a riqueza
rítmica da música brasileira e a tradição do partido-alto e
dos cantadores nordestinos, demorou tanto a aparecer
um rap com base rítmica brasileira?
Após o lançamento de “À procura da batida perfeita”,
herdeiros de Luiz Bonfá ameaçaram abrir um processo de
plágio, mas não foram em frente. Além da cada vez mais
controversa questão de autoria na era dos samples,
nessa música a discussão prometia render muito mais.
Afinal, a melodia de “Bonfa nova” lembra muito a de
“Saudade fez um samba”, de Carlos Lyra e Ronaldo
Bôscoli, lançada por João Gilberto em seu primeiro LP, em
1959, enquanto a de Bonfá saiu num disco que o
violonista fez em 1962, o LP Brazil’s King of Bossa Nova
and Guitar.
Posfácio

BÔNUS TRACK

As 101 melhores, ou mais bonitas, ou mais importantes


canções brasileiras não existem.
Podem-se fazer várias listas de 101 canções, umas tão
boas quanto outras, por gênero, por época, por
importância histórica ou sucesso popular, além da
excelência melódica, harmônica, rítmica e poética.
Poderiam ser até 1.001, tal a criatividade e a diversidade
dos compositores brasileiros nos últimos 101 anos.
Uma das grandes qualidades da música brasileira é a
variedade inigualável de gêneros, estilos, ritmos e
misturas musicais, de Belém a Porto Alegre, em épocas
distintas e sob múltiplas influências, que representam
nossa diversidade étnica e cultural. Entre as inúmeras
canções lindas, alegres, dramáticas, românticas,
divertidas, trágicas, políticas, sociais, dos mais variados
ritmos e estilos, que se tornaram populares e marcaram
seu tempo, algumas tocaram especialmente o Brasil, nos
nossos melhores e piores momentos, e se tornaram trilha
sonora de nossa história pessoal e coletiva.
Mas listas de músicas que marcam a vida de cada um
são como impressões digitais: não há duas iguais. Das
que mais tocaram o coração do Brasil, estas 101 estão
entre as mais bonitas, populares, importantes e originais.
Mas muitas outras, que não cabem em um só livro,
também formam uma riquíssima coleção de canções de
vários estilos e gerações.
Bastaria a obra musical de Tom Jobim, de Dorival
Caymmi, de Ary Barroso, de Noel Rosa ou de Chico
Buarque para compor uma lista inestimável de mais
bonitas, mais importantes, mais originais. Porém há
muitas outras, além das já citadas nas informações sobre
a obra dos compositores das 101: a maior qualidade da
música brasileira é sua diversidade.
Grandes músicas que marcaram o coração do Brasil,
como “É o amor”, de Zezé di Camargo, megassucesso
sertanejo nos anos 1990 e depois gravada por Maria
Bethânia; sucessos eternos da Jovem Guarda, como
“Vem quente que eu estou fervendo” e “O bom”, de
Eduardo Araújo e Carlos Imperial, e “Negro gato”, de
Getúlio Côrtes; belas canções do estilo romântico popular
que foi chamado de brega, como “Sonhos” e “Sozinho”,
de Peninha, e “Dia de domingo” e “Me dê motivo”, de
Sullivan e Massadas, também fizeram história.
Entre tantas tão boas, não faltam grandes clássicos do
samba-canção, como “Molambo” (Jaime Florence e
Augusto Mesquita), “Saia do caminho” (Custódio
Mesquita e Evaldo Rui), “Chuvas de verão” (Fernando
Lobo), “Canção de amor” (Chocolate e Elano de Paula),
“Chove lá fora” (Tito Madi), e os mais recentes “Beijo
partido” (Toninho Horta), “Jura secreta” (Suely Costa e
Abel Silva) e “Simples carinho” (João Donato e Abel
Silva).
O mundo do samba também contribui com
incontáveis clássicos. Entre eles, destacam-se “Jura” e
“Gosto que me enrosco” (Sinhô), “Agora é cinza” (Bide e
Marçal), “Antonico” e “Contrastes” (Ismael Silva), “Mulata
assanhada” e “Na cadência do samba” (Ataulfo Alves),
“Falsa baiana” e “Escurinho” (Geraldo Pereira), “Segredo”
e “Ave Maria no morro” (Herivelto Martins), “De conversa
em conversa” (Lúcio Alves e Haroldo Barbosa) e “Pra que
discutir com madame?” (Haroldo Barbosa e Janet
Almeida), “Camisa listrada” (Assis Valente), “Canta
Brasil” (Alcyr Pires Vermelho e David Nasser), “Adeus
América” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), “A fonte
secou” (Monsueto Menezes, Raul Moreno e Marcléo),
“Volta por cima” (Paulo Vanzolini), “Senhora liberdade” e
“Coisa da antiga” (Wilson Moreira e Nei Lopes), “Vou
festejar” (Jorge Aragão, Dida e Neoci) e “O samba é meu
dom” (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro).
As marchinhas de Carnaval são um capítulo especial
da música brasileira, fazendo crônica social e crítica de
costumes com alegria e humor em clássicos como “Alá-
lá-ô” (Haroldo Lobo e Antônio Nássara), “Yes, nós temos
bananas” e “Jardineira” (João de Barro), “Sassaricando”
(Jota Júnior, Luís Antônio e Oldemar Magalhães),
“Balzaquiana” (Nássara e Wilson Batista), “Marcha do
gago” (Armando Cavalcanti e Klécius Caldas), até “Folia
no matagal” (Eduardo Dussek e Luis Carlos Góes).
São muitas as canções imortais da bossa nova, não só
de Tom Jobim, mas de Carlos Lyra (“Você e eu”, “Sabe
você” e “Coisa mais linda”, com Vinicius de Morais, e “Se
é tarde me perdoa”, “Saudade fez um samba” e “Lobo
bobo”, com Bôscoli), de Roberto Menescal (“Nós e o
mar”, “Ah, se eu pudesse” e “Rio”, com Ronaldo Bôscoli,
e “Bye Bye Brasil”, com Chico Buarque), de Luiz Bonfá
(“Manhã de Carnaval”, com Antônio Maria), do grande
estilista João Donato (“Naquela estação”, com Caetano
Veloso e Ronaldo Bastos, “A Paz”, com Gilberto Gil, “Brisa
do mar”, com Chico Buarque).
A tradição romântica brasileira emociona e encanta
com valsas e modinhas, desde “Linda Flor” (Henrique
Vogeler, Luiz Peixoto Marques Porto) e “Casinha
pequenina” (autor desconhecido, 1906), a clássicos de
Custódio Mesquita, como “Nada além” (com Mário Lago)
e “Mulher” (com Sady Cabral). E tantas outras, como
“Boa noite amor” (José Maria de Abreu e Francisco
Matoso), “Lábios que beijei” (J Cascata e Leonel
Azevedo), “Curare” (Bororó), “Eu sonhei que tu estavas
tão linda” (Lamartine Babo), “Nova ilusão” (José Menezes
e Luiz Bittencourt), “Vida de bailarina” (Chocolate e
Américo Seixas), “A saudade mata a gente” (João de
Barro e Antônio Almeida) e “Começar de novo” (Ivan Lins
e Vitor Martins).
A obra de Roberto e Erasmo Carlos, os maiores
hitmakers da nossa história, em sua diversidade de
temas e estilos, constitui-se, por si só, em uma trilha
sonora dos sentimentos brasileiros de várias gerações,
com canções de alta qualidade como “Além do
horizonte”, “Do fundo do meu coração”, “Café da
manhã”, “Cavalgada”, “Jesus Cristo”, “Sua estupidez”,
“Amada amante”, “O portão”, “As curvas da estrada de
Santos”, “Se você pensa”, “Sentado à beira do
caminho”... São tantas emoções, há tanto tempo.
Além dos clássicos já listados, o rock brasileiro
também produziu grandes músicas que marcaram época
com humor, alegria e irreverência, desde “Ando meio
desligado”, dos Mutantes, e “Metamorfose ambulante”,
de Raul Seixas, aos seminais Blitz (“Você não soube me
amar”, de Evandro Mesquita, Ricardo Barreto, Guto
Barros e Zeca Mendigo) e Gang 90 e as Absurdettes, de
Júlio Barroso (“Perdidos na selva”, com Guilherme
Arantes), “Corações psicodélicos” (com Lobão) e “Nosso
louco amor” (com Herman Torres). Destacam-se ainda o
RPM de Paulo Ricardo e Luiz Schiavon (“Louras geladas”);
Lobão com “Vida bandida” e “Chorando no Campo” (com
Bernardo Vilhena), “Décadence avec élégance” e
“Nostalgia da modernidade”, uma fabulosa mistura de
samba e rock pesado; Léo Jaime (“Rock da cachorra”),
Ritchie e Bernardo Vilhena (“Menina veneno”), e Cazuza,
que começou no rock e fez o que quis do jeito que quis
(“O tempo não para”, com Arnaldo Brandão, “Faz parte
do meu show”, com Renato Ladeira, “Maior abandonado”
e “Blues da piedade”, com Roberto Frejat, e “Eu preciso
dizer que te amo”, com Dé Palmeira e Bebel Gilberto).
A moderna canção nordestina produziu pérolas como
“À primeira vista”, de Chico César, “É d’Oxum”, de
Gerônimo, “Anunciação” e “Vou danado pra Catende”, de
Alceu Valença, e “Canção da despedida”, de Geraldo
Vandré e Geraldo Azevedo. Acrescentam-se ainda
clássicos na voz de Dominguinhos, como “De volta pro
aconchego” (com Nando Cordel) e “Só quero um xodó”
(com Anastácia), até “Paciência” (Lenine) e “Esperando
na janela” (Targino Gondim).
E frevos que incendiaram as ruas: de “Evocação”, de
Nelson Ferreira, a “Frevo mulher”, de Zé Ramalho, “Festa
do interior”, de Moraes Moreira e Abel Silva, e “Banho de
cheiro”, de Carlos Fernando.
Das modinhas e choros ao funk e o tecnobrega, a
música brasileira acompanha os movimentos do país
com canções que contam a história de um tempo e dos
sentimentos dos brasileiros com qualidade, quantidade e
diversidade.

– Nelson Motta
Todos os esforços foram feitos para
creditar devidamente todos os
detentores dos direitos das imagens
que ilustram este livro. Eventuais
omissões de crédito e copyright não são
intencionais e serão devidamente
solucionadas nas próximas edições,
bastando que seus proprietários entrem
em contato com os editores.
Crédito das imagens

10 Partitura “Composições para piano por Francisca H. N. Gonzaga”, sem


data. Coleção Chiquinha Gonzaga/Acervo Instituto Moreira Salles
10 Chiquinha Gonzaga aos 29 anos, 1877. FMIS/RJ
12 Partitura “Pelo Telephone: samba carnavalesco de grande sucesso por
Ernesto do Santos (Donga)”, sem data. Coleção José Ramos
Tinhorão/Acervo Instituto Moreira Salles
12 Selo 78 rpm “Pelo Telephone”, 1916. Coleção José Ramos
Tinhorão/Acervo Instituto Moreira Salles
14 Partitura “O teu cabelo não nega”, sem data. Coleção José Ramos
Tinhorão/Acervo Instituto Moreira Salles
14 Lamartine Babo, 1962. Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
16 Vadico, sem data. Arquivo JCom/D.A Press
16 Noel Rosa, sem data. FMIS/RJ
19 Carmen Miranda, 1940. Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
19 Synval Silva, sd. FMIS/RJ
21 Aracy de Almeida, sem data. Folhapress
22 Selo 78 rpm “Carinhoso”, 1937. FMIS/RJ
22 Orlando Silva, 1956. Arquivo JCom/D.A Press
24 Pixinguinha, sem data. FMIS/RJ
24 Selo 78 rpm “Rosa”, 1937. FMIS/RJ
26 Selo 78 rpm “Na baixa do sapateiro”, 1938. FMIS/RJ
26 Ary Barroso, sem data. FMIS/RJ
28 Bororó, 1955. FMIS/RJ
28 Selo 78 rpm “Da cor do pecado”, 1939. FMIS/RJ
31 Selo 78 rpm “Aquarela do Brasil”, 1939. FMIS/RJ
31 Ary Barroso, sem data. FMIS/RJ
32 Assis Valente e Carmen Miranda, sem data. FMIS/RJ
32 Capa LP Acabou Chorare, 1972. FMIS/RJ
35 João Gilberto, 1962. FMIS/RJ
35 Selo 78 rpm “Aos pés da Cruz”, 1942. FMIS/RJ
36 Anjos do Inferno, sem data. Kurt Borowik/FMIS/RJ
36 Selo 78 rpm “Rosa Morena”, 1942. FMIS/RJ
Ary Barroso, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra, 1960. Indalécio
38
Wanderley/O Cruzeiro/EM/D.A Press
40 Dorival Caymmi, sem data. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
41 Selo 78 rpm “Dora”, 1945. FMIS/RJ
42 Dick Farney, sem data. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
42 Selo 78 rpm “Copacabana”, 1946. FMIS/RJ
44 Selo 78 rpm “Asa Branca”, 1947. FMIS/RJ
44 Luiz Gonzaga, 1957. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
46 Dorival Caymmi, sem data. FMIS/RJ
46 Selo 78 rpm “Marina”, 1947. FMIS/RJ
48 Lupicínio Rodrigues, sem data. FMIS/RJ
48 Selo 78 rpm “Nervos de Aço”, 1947. FMIS/RJ
50 Dorival Caymmi, 1955. Arquivo / Agência O Globo
50 Selo 78 rpm “João Valentão”, 1953. FMIS/RJ
52 Zé Kéti, sem data. FMIS/RJ
54 Elizeth Cardoso, 1965. Arquivo/Estadão Conteúdo
54 Nelson Cavaquinho, 1965. Evandro/FMIS/RJ
56 Capa do LP Eu vou pra Maracangalha, 1957. FMIS/RJ
56 Selo 78 rpm “Saudade da Bahia”, 1957. FMIS/RJ
59 Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas, 1962.
FMIS/RJ
60 Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1962. FMIS/RJ
63 Tom Jobim, 1959. Paulo Namorado/O Cruzeiro/EM/D.A Press
64 Jackson do Pandeiro, 1958. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
67 Johnny Alf, 1971. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
68 Vinicius de Moraes e Baden Powell, 1964. Henri Ballot/O Cruzeiro/EM/D.A
Press
71 Astrud Gilberto, 1965. Arquivo O Jornal/JCom/D.A Press
72 Tom Jobim e Vinicius de Moraes no Bar Veloso, atual Garota de Ipanema.
Paulo Scheuenstuhl/Instituto Tom Jobim
73 Frank Sinatra e Tom Jobim. NBC/Getty Images
75 Jorge Ben, 1969. Arquivo/Agência O Globo
76 D. Zica e Cartola, 1975. Antônio Carlos Miguel
76 Nara Leão, 1965. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
78 Carlos Lyra, 1974. FMIS/RJ
78 Capa do LP Pobre menina rica, 1964. Divulgação internet
80 Capa do LP Trem das 11, 1964. FMIS/RJ
80 Adoniran Barbosa, 1971. Sílvio Correa/Agência O Globo
80 Adoniran e Demônios da Garoa, 1968. Acervo UH/Folhapress
83 Nara Leão com Zé Kéti ao seu lado, Paulinho da Viola ao violão e atrás
de óculos Elton Medeiros. Estudantina Musical, na Praça Tiradentes,
1964. Arquivo/Agência O Globo
83 Capa do LP Roda de samba, 1965. Divulgação internet
84 Marcos Valle, 1965. Arquivo/Agência O Globo
86 Marcos e Paulo Sérgio Valle, 1971. Jorge Peter/Agência O Globo
86 Capa do LP O Compositor e o cantor, 1965. FMIS/RJ
88 Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1965. Arquivo/Agência O Globo
88 Capa do LP Os afro-sambas na voz de Baden e Vinicius, 1966. FMIS/RJ
91 Gilberto Gil, 1967. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
92 Capa do LP Milton Nascimento, 1967. Divulgação internet
92 Milton Nascimento, 1967. Arquivo/Agência O Globo
94 Tom Jobim ao piano, 1964. Orlando Suero/O Cruzeiro/EM/D.A Press
94 Capa do LP Antonio Carlos Jobim: Wave, 1968. Divulgação internet
97 Geraldo Vandré, 1968. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
97 Peace March, Washington, 1967. Marc Riboud / Magnum/Magnum
Photos/Latinstock
98 Gilberto Gil, 1972. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
100 Wilson Simonal em show, 1969. Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
102 Paulinho da Viola, sem data. FMIS/RJ
104 Parada Militar de Sete de Setembro. Brasília, 1970. Orlando Brito
106 Chico Buarque, sem data. FMIS/RJ
106 Capa do LP Construção, 1971. FMIS/RJ
108 Roberto Carlos, 1971. Arquivo/CB/D.A Press
108 Capa do LP Roberto Carlos, 1971. FMIS/RJ
111 Tim Maia, 1972. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
111 Capa do LP Tim Maia, 1971. Divulgação internet
112 Vinicius de Moraes e Toquinho, 1972. Ronald Fonseca/Agência O Globo
112 Capa do LP Como diz o poeta - Música nova - Vinicius de Moraes, Marilia
Medalha e Toquinho, 1971. Divulgação internet
114 Milton Nascimento, Lô Borges e Ronaldo Bastos, sem data.
Arquivo/EM/D.A Press
114 Capa do LP Clube da Esquina, 1972. FMIS/RJ
117 Elis Regina e Tom Jobim, 1974. Sergio Araki/Estadão Conteúdo
117 Capa do LP Elis & Tom, 1974. FMIS/RJ
119 Luiz Melodia, sem data. FMIS/RJ
120 Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho, sem data. FMIS/RJ
123 Raul Seixas, 1972. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
123 Capa do LP Krig-ha Bandolo!, 1973. FMIS/RJ
124 Raul Seixas, 1973. Arquivo/Agência O Globo
126 Jorge Mautner e Nelson Jacobina, 1985. Antonio Andrade/Agência O
Globo
126 Capa do LP Jorge Mautner, 1974. Divulgação internet
129 Capa do LP Cuban Soul, 1976. Acervo Antônio Carlos Miguel
131 Maria Bethânia, 1971. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
132 Cartola no show Zicartola, 1975. Kenji Honda/Estadão Conteúdo
134 Cartola, 1975. Antônio Carlos Miguel
136 Belchior, sem data. FMIS/RJ
138 Capa do LP Guilherme Arantes, 1976. FMIS/RJ
140 Paulinho da Viola, 1971. Arquivo/Agência O Globo
143 Renato Teixeira e Dominguinhos no Festival da Música Popular Brasileira,
MPB 81, 1981. Adir Mera/Agência O Globo
145 Frenéticas, sem data. Carlos Ivan/FMIS/RJ
145 Capa do LP Caia na gandaia, 1978. FMIS/RJ
146 Caetano Veloso, 1972. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
148 Cartano Veloso, 1978. Arquivo/Estadão Conteúdo
150 Caetano Veloso, sem data. Thereza Eugenia/FMIS/RJ
150 Capa do LP Muito, 1978. FMIS/RJ
152 Capa do LP Sambas de enredo, 1978. FMIS/RJ
152 Desfile “O amanhã”, União da Ilha, 1978. Sebastião Marinho/Agência O
Globo
154 Capa do LP Álibi, 1979. FMIS/RJ
154 Gonzaguinha, sem data. Wilton Montenegro/FMIS/RJ
156 Capa do LP Gal Tropical, 1979. FMIS/RJ
158 João Bosco, 1976. Kenji Honda/Estadão Conteúdo
158 Elis Regina, 1977. Gerson Schirmer/Agência O Globo
160 Dona Ivone Lara, 1978. Antônio Carlos Miguel
162 Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1977. Antônio Carlos Miguel
162 Rita Lee, 1977. Antônio Carlos Miguel
162 Capa do LP Rita Lee, 1979. FMIS/RJ
164 Capa do LP A peleja do Diabo com o Dono do Céu, 1980. FMIS/RJ
166 Djavan, 1981. Arquivo/Estadão Conteúdo
166 Capa do LP Alumbramento, 1980. FMIS/RJ
168 Capa do LP Roberto Carlos, 1981. FMIS/RJ
168 Roberto Carlos em show no Canecão, 1981. Arquivo/Estadão Conteúdo
170 Lulu Santos, sem data. Antonio Guerreiro/FMIS/RJ
170 Capa do LP O ritmo do momento, 1982. Divulgação internet
172 Roberto Carlos, 1984. Arquivo/Agência O Globo
172 Capa do LP Roberto Carlos, 1982. FMIS/RJ
174 Gonzaguinha, sem data. Wilton Montenegro/FMIS/RJ
174 Capa do LP Caminhos do coração, 1982. FMIS/RJ
176 Capa do LP Luz, 1982. FMIS/RJ
179 Capa do LP O grande circo místico, 1983. FMIS/RJ
179 Edu Lobo, sem data. FMIS/RJ
180 Capa do LP Milton Nascimento - Ao vivo, 1983. FMIS/RJ
180 Wagner Tiso, 1981. Olivio Lamas/Agência O Globo
183 Capa do LP Barão Vermelho 2, 1983. FMIS/RJ
183 Barão Vermelho, 1983. Frederico Mendes
184 Ultraje a Rigor, sem data. Calil Elias Neto/FMIS/RJ
184 Capa do LP Nós vamos invadir sua praia, 1985. FMIS/RJ
186 Marina, 1988. Luiz Carlos Caversan/Folhapress
186 Capa do LP Fullgás, 1984. Divulgação internet
188 Capa do LP Ronaldo foi pra guerra, 1984. Divulgação internet
188 Lobão e os Ronaldos, sem data. Arquivo CB/D.A Press
190 Legião Urbana, sem data. Flavio Colker/FMIS/RJ
192 Capa do LP Selvagem?, 1986. Divulgação internet
192 Paralamas do Sucesso, 1985. Nem de Tal/Estadão Conteúdo
195 Monarco, sem data. Sergio Araujo/FMIS/RJ
195 Capa do LP Zeca Pagodinho, 1986. FMIS/RJ
196 Titãs, sem data. Vânia Toledo/FMIS/RJ
196 Capa do LP Jesus não tem dentes no país dos banguelas, 1988. FMIS/RJ
198 Capa do LP Ideologia, 1988. FMIS/RJ
198 Cazuza, show no Canecão, 1988. Eurico Dantas/Agência O Globo
201 Capa do LP Big bang, 1989. FMIS/RJ
201 Herbert Vianna, 1986. Antônio Carlos Miguel
202 Carlinhos Brown, 1993. Paulo Giandalia/Folhapress
202 Capa do LP Estrangeiro, 1989. FMIS/RJ
204 Capa do LP Paratodos, 1993. FMIS/RJ
204 Chico Buarque, 1994. Carlos Moura/CB/D.A Press
207 Capa do CD Resposta ao tempo, 1998. Divulgação internet
208 Zeca Pagodinho, 2005. Wilton Junior/Estadão Conteúdo
208 Capa do CD Deixa a vida me levar, 2002. Divulgação internet
210 Tribalistas, 2003. Valter Pontes/Estadão Conteúdo
210 Capa do CD Tribalistas, 2003. Divulgação internet
212 Marcelo D2, 2003. Tuca Vieira/Folhapress
NELSON MOTTA
Nasceu em São Paulo, em 1944, estudou
design, mas começou como jornalista e
crítico musical aos 20 anos. Em 1966
ganhou o I Festival Internacional da
Canção com “Saveiros” (com Dori
Caymmi). É letrista de 300 músicas e
sucessos como “Dancin’ days” e “Como
uma onda” (com Lulu Santos). Produziu
discos de Elis Regina e Marisa Monte,
escreveu os best-sellers Vale tudo: o som e
a fúria de Tim Maia, Noites tropicais: solos,
improvisos e memórias musicais e O canto
da sereia, e o sucesso teatral Elis, a
musical (com Patricia Andrade).
Estação Brasil é o ponto de encontro dos
leitores que desejam redescobrir o Brasil.
Queremos revisitar e revisar a história,
discutir ideias, revelar as nossas belezas e
denunciar as nossas misérias. Os livros da
Estação Brasil misturam-se com o corpo e a
alma de nosso país, e apontam para o futuro.
E o nosso futuro será tanto melhor quanto
mais e melhor conhecermos o nosso passado
e a nós mesmos.
Sumário
Créditos
Ó abre alas
Pelo telefone
O teu cabelo não nega
Feitiço da Vila
Adeus, batucada
Palpite infeliz
Carinhoso
Rosa
Na Baixa do Sapateiro
Da cor do pecado
Aquarela do Brasil
Brasil pandeiro
Aos pés da cruz
Rosa Morena
Pra machucar meu coração
Dora
Copacabana
Asa branca
Marina
Nervos de aço
João Valentão
A voz do morro
A flor e o espinho
Saudade da Bahia
Chega de saudade
Eu sei que vou te amar
Desafinado
Chiclete com banana
Ilusão à toa
Samba da bênção
Garota de Ipanema
Mas que nada
O sol nascerá
Primavera
Trem das 11
Mascarada
Preciso aprender a ser só
Samba de verão
Canto de Ossanha
Domingo no parque
Travessia
Wave (Vou te contar)
Pra não dizer que não falei das flores
(Caminhando)
Aquele abraço
País tropical
Foi um rio que passou em minha vida
Apesar de você
Construção
Detalhes
Não quero dinheiro (Só quero amar)
Tarde em Itapuã
Nada será como antes
Águas de março
Pérola negra
Folhas secas
Ouro de tolo
Metamorfose ambulante
Maracatu atômico
A lua e eu
Olhos nos olhos
As rosas não falam
O mundo é um moinho
Como nossos pais
Meu mundo e nada mais
Coração leviano
Romaria
Dancin’ days
Força estranha
Sampa
Terra
O amanhã
Explode coração (Não dá mais pra segurar)
Noites cariocas
O bêbado e a equilibrista
Sonho meu
Mania de você
Admirável gado novo
Meu bem querer
Emoções
Como uma onda
Fera ferida
O que é, o que é?
Sina
Beatriz
Coração de estudante
Pro dia nascer feliz
Inútil
Fullgás
Me chama
Será
Alagados
Coração em desalinho
Comida
Brasil
Lanterna dos afogados
Meia lua inteira
Futuros amantes
Resposta ao tempo
Deixa a vida me levar
Velha infância
À procura da batida perfeita
Posfácio
Crédito das imagens
Sobre o autor
Sobre a Estação Brasil

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