2020 - Livro - Comunicação Audiovisual e Educacao - CACE

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br/ri/handle/ri/32359

Comunicação,
audiovisual e educação
narrativas de pesquisa

Adriana Hoffmann
Rosane Tesch
Vanessa Gnisci
Organizadoras
Adriana Hoffmann Fernandes
Pós-doutora em Comunicação pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), doutora e mestre em Educação e
Mídia, respectivamente pelo PROPED da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela PUC-Rio.
Professora da Escola de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Membro da Rede Internacional de Educação, Artes e
Humanidades (Redarth) que integra Brasil, Portugal e
Uruguai e da Rede de Formação Docente (Formad) em
diálogo com toda a América Latina. Líder do grupo de
pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação
(CACE) da Unirio/CNPq.

Rosane Tesch
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); mestre em
Educação e Licenciada em Letras pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ); especializada em Arte
e Cultura (UCAM). Atuou como professora convidada
no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação
(ISEAC/FAAC). Professora e gestora na
SME/RJ e integrante do Grupo de Pesquisa
Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação
(CACE/UNIRIO) com pesquisa em cultura visual, redes
cotidianas digitais e práticas docentes.

Vanessa Gnisci
Doutoranda em Educação na Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e integrante do
grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura
e Educação (CACE/UNIRIO) com pesquisa voltada à
literatura e booktubers nas redes digitais. Mestre em
Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e especialista em Literatura Infantojuvenil pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora
adjunta do Colégio Pedro II e leciona as disciplinas
Linguística Aplicada e Alfabetização e Letramento na
pós-graduação em Psicopedagogia na Universidade em
Nova Iguaçu (UNIG).
Comunicação,
audiovisual e educação:
narrativas de pesquisa
universidade federal da bahia
reitor João Carlos Salles Pires da Silva
vice-reitor Paulo César Miguez de Oliveira
assessor do reitor Paulo Costa Lima

editora da universidade federal da bahia


diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

conselho editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

grupo de estudos e pesquisa comunicação,


audiovisual, cultura e educação
Comunicação,
audiovisual e educação:
narrativas de pesquisa

Adriana Hoffmann
Rosane Tesch
Vanessa Gnisci
Organizadoras

Salvador
EDUFBA
2020
2020, Autores.

Direitos para esta edição cedidos à Edufba.


Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 2009.

projeto gráfico
Gabriela Nascimento

normalização
Bianca Rodrigues de Oliveira

revisão
Cristovão Mascarenhas

ilustração capa
Semente de ecrã 1, Ludmila Duarte

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Comunicação, audiovisual e educação : narrativas de pesquisa / Adriana


Hoffmann, Rosane Tesch, Vanessa Gnisci, organizadoras. – Salvador :
EDUFBA, 2020.
233 p.

Contém biografia
ISBN: 978-65-5630-046-7

1. Recursos audiovisuais. 2. Cinema. 3. Cinema na educação. 4. Comunicação e


cultura. 5. Ensino audiovisual. I. Hoffmann, Adriana. II. Tesch, Rosane. III. Gnisci,
Vanessa.

CDD – 371.33

Elaborada por Jamilli Quaresma CRB-5: BA-001608/O

Editora filiada à:

EDUFBA

Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina


Salvador - Bahia CEP 40170-115   Tel.: (71) 3283-6164
www.edufba.ufba.br
[email protected]
Sumário

prefácio … 7
apresentação … 13

Projeto “o cinema e a narrativa de crianças e jovens


em diferentes contextos educativos” (2010-2013)

1
cinema no ensino fundamental: a pesquisa com o projeto megacine
pelas narrativas das crianças … 21
Adriana Hoffmann
Érica Rivas Gatto
Renata Costa Ferreira

2
narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora
da escola … 37
Kelly Maia Cordeiro

3
“cinema é um acontecimento”: investigando a prática cineclubista
do cine cch na universidade … 55
Thamyres Dalethese
Adriana Hoffmann

Projeto “o cinema e as narrativas na era da convergência: modos de


consumo, formação e produção de audiovisuais de crianças, jovens
e professores” (2013-2018)

4
jovens youtubers: novas aprendizagens … 75
Lucineia Batista
5
pedagogias da animação: experiências de criação de filmes na
escola … 89
Joana Sobral Milliet

6
uma pesquisa com filmes para jovens cegos: cultura do ouvir no
contar filmes e/ou audiodescrever … 109
Margareth Olegário
Adriana Hoffmann

7
juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo … 125
Érika Lourenço de Menezes

8
“se inscreve no meu canal”: relações entre crianças
e youtube … 145
Thamyres Dalethese

9
professores de artes: a experiência audiovisual como formação
e prática … 161
Jamila Guimarães

10
cibercultura e redes sociais: refletindo sobre as práticas das
juventudes … 179
Lucy Anna Diniz
Adriana Hoffmann

11
a arte de criar tapetes de histórias: ensaiando um convite
narrativo entre o artesanal e o tecnológico … 195
Daniela Fossaluza

12
agamben e a profanação da educação: as relações do cinema com a
sala de aula e a formação de professores … 211
Pedro Freitas

sobre os autores … 229


Prefácio

UMA DÉCADA DE PESQUISAS QUE TRATAM DE TEMAS


URGENTES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CINEMA E
EDUCAÇÃO

O diretor de cinema português, Edgar Pêra, realizou, em 2016, o filme intitulado


O espectador espantado. Trata-se de um documentário de longa-metragem, pou-
co convencional em seu formato. Nele, o diretor indaga o que define o cinema,
ou a experiência com o cinema, século XXI adentro, quando os suportes e apa-
ratos por meio dos quais os filmes são produzidos e veiculados sofrem transfor-
mações cada vez mais velozes. A narrativa se concentra numa sala de cinema
onde são projetados fragmentos dos próprios filmes de Edgar Pêra. Os relatos
dos espectadores constituem os fios condutores. Dentre os espectadores, estão
atrizes, diretores, críticos de cinema, além de cinéfilos e amantes do cinema em
geral. Interessa a Edgar Pêra compreender o que acontece na relação entre o es-
pectador e as imagens em movimento, sonorizadas, projetadas na grande tela.
“Espanto” é a palavra por ele escolhida para adjetivar esse encontro.
Alinhada às inquietações desse cineasta, antes de prosseguir no texto, peço
permissão à leitora, ao leitor, para perguntar: quais suas lembranças mais anti-
gas com o cinema? Quais foram as circunstâncias? Teria sido numa sala de cine-
ma? Caso não tenha sido numa sala de cinema, em que lugar? Lembram-se da
história, ou de fragmentos, talvez alguma imagem ou impressão? Que sentimen-
tos acompanham essas lembranças?
Sem quaisquer pretensões de produzir algum documentário ou outro gêne-
ro fílmico, há algum tempo venho colecionando relatos de pessoas em diversas
faixas etárias, sobre suas primeiras experiências com o cinema. Uma senhora,
numa turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), contou-me certa vez, en-
tre muitos risos e brilhos nos olhos, uma aventura inesquecível. Determinada a

| 7
assistir ao filme Nos tempos da Brilhantina, estrelado por Olivia Newton-John e
John Travolta no final dos anos 1970, ela teria fugido da aula, no turno vesper-
tino, pulando o muro dos fundos da escola que fazia fronteira com o terreno da
sala de cinema. Sua fuga envolveu planejamento prévio, e contou com a cumpli-
cidade das colegas de turma. Envolveu, ainda, uma clandestina troca de roupas
– o uniforme escolar poderia denunciá-la –, e a companhia de um candidato a
namorado, que a teria encorajado para o feito. Segundo ela, o namoro não deu
certo, do mesmo modo que, pouco tempo depois, precisou abandonar a vida es-
colar. Esta só foi retomada algumas décadas depois, entre adultos trabalhadores,
quase todos já na meia idade. Mas aquela experiência permaneceu, indelével,
entre suas lembranças mais vívidas.
Nesse relato, encontram-se alguns elementos bem frequentes no tocante às
memórias pessoais com o mundo encantado das imagens animadas e sonoriza-
das. A escola e o cinema muitas vezes se colocam em relação, não necessaria-
mente de modo amigável, linear ou de complementaridade, mas quase sempre
mediada pelos sentimentos de aventura, pelo desejo e, nesse caso, pelo romance.
Geralmente, as lembranças mais antigas que as pessoas trazem, no tocante à ex-
periência de assistir a um filme projetado no telão, numa sala escura, são carrega-
das de magia, de afeto, de sustos. De espanto.
Afora as sessões de cinema compartilhadas coletivamente, as narrativas fíl-
micas, atualmente, estendem-se para outros territórios e rituais, multiplicando-se
em telas de diversas dimensões, que habitam nossos quotidianos, desde os apara-
tos móveis a nos acompanhar, por onde possamos ir, aos aparelhos dispostos em
ambientes domésticos, de trabalho, instituições escolares, dentre quantos outros.
Tais experiências e as narrativas nelas testemunhadas integram memórias,
constituindo identidades. Não foi ao acaso que o cineasta e escritor chileno
Alberto Fuguet escreveu o romance Os filmes da minha vida,1 lançado, no Brasil,
em 2005. Nele, em vez de se debruçar sobre a linguagem cinematográfica pro-
priamente dita, ou de analisar os filmes que compõem a lista, o autor constrói
um livro sobre as memórias pessoais entrelaçadas ao cinema. Não estão ali os fil-
mes preferidos do autor, ou do personagem que assume, em alguma medida, seu
alter ego. Os filmes reportados a cada capítulo do livro são aqueles que, a partir
de um e outro aspecto formal ou narrativo, ou de outras referências circunstan-

1 FUGUET, A. Os filmes da minha vida. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

8 | Comunicação, audiovisual e educação


ciais, ficaram enganchados em alguma esquina ou cruzamento dos vários fios
que tecem as histórias de vida. Podem ser fragmentos da narrativa, a roupa que
um ator ou uma atriz usava, uma luz ou paisagem, ainda a imagem do cartaz, ou
o ambiente de projeção: retalhos da experiência compondo os bordados imper-
manentes da memória.
Nos projetos de pesquisa que tenho desenvolvido no campo do cinema,
reiteradamente chama a atenção como os filmes evocam as circunstâncias nas
quais são vistos. Essa constatação motivou-me, por exemplo, a, no início dos
anos 2000, desenvolver um projeto com a programação de filmes cujas histórias
versavam sobre temas da ficção cientifica. A audiência era formada por estudan-
tes do ensino médio, e também por docentes que atuavam nesse segmento da
educação básica.
Os filmes escolhidos tinham sido, anteriormente, por mim analisados du-
rante o doutoramento. No processo de análise, acabei por dar-me conta de que o
estudo, a despeito de sua amplitude e complexidade, carecia de percepções que
extrapolassem a minha própria. Que eventualmente até a ela pudessem se con-
trapor. Ou seja, ainda que eu conseguisse promover discussões adensadas a partir
dos filmes, elas estavam ancoradas tão somente em minhas percepções pessoais.
Eu sentia falta de interlocutores para diversificar os pontos de vista, propiciando
essa dimensão mais coletiva e dialogal do encontro com o cinema. Por isso, com-
partilhar aqueles filmes com estudantes e docentes da educação básica propicia-
va uma experiência de mão dupla: o projeto assegurava àquele grupo que pudesse
ampliar seus repertórios fílmicos, debatendo livremente sobre as narrativas mos-
tradas, ao mesmo tempo que oportunizava, a mim, a ampliação na percepção dos
filmes, sempre tão múltiplos, organizados em tantas camadas.
Quando uma pessoa se dispõe a assistir a um filme aberta à possibilidade
da experiência, sem um roteiro prévio a ser observado, amplia-se a riqueza das
aprendizagens propiciadas. Isso pode ainda ser potencializado, quando se asse-
gura a partilha da experiência, na interlocução entre os pares. Um tal exercício
resulta em produção de conhecimento, em descortinamento de paisagens, no
redimensionamento do sensível.
Sim, a experiência com o cinema, instaurada há pouco mais de um sécu-
lo, tem tomado parte ativa na formação e renovação de nossos imaginários, de
nossas visões de mundo, e da percepção de nosso estar no mundo. A lingua-
gem fílmica, em contínua transformação técnica, formal e narrativa, desde os

Prefácio | 9
primórdios, tem deflagrado aprendizagens múltiplas, que demandam inves-
tigações com diferentes recortes. Particularmente, é necessário, no âmbito da
educação, que se busquem estudos mais abertos à complexidade dessas relações
entre a experiência com o cinema e as aprendizagens deflagradas, nos processos
de escolarização, em diálogo com as demandas dos circuitos oficiais do cine-
ma e do audiovisual. Reside exatamente nesse aspecto a importância e a urgên-
cia do trabalho desenvolvido pelo grupo de estudos e pesquisa Comunicação,
Audiovisual, Cultura e Educação (CACE), com investigações sistemáticas sobre
essas relações entre as narrativas fílmicas, a cultura do cinema e as questões da
educação, contando com a liderança sempre sensível e competente da professo-
ra Adriana Hoffmann.
Criado em 2010, o CACE vincula-se ao Programa de Pós-Graduação e à Escola
de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ao
longo de uma década, já construiu uma bagagem importante que inclui pesquisas,
publicações, participação em eventos, dentre tantas outras frentes de atuação.
A professora Adriana Hoffmann teve reconhecida sua liderança e importância
como pesquisadora na área, ao ser contemplada, pelo programa Jovem Cientista
do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (Faperj), para o período de 2018 a 2020. Não por acaso,
ela tem reunido, no CACE, pesquisadores em diversos níveis de formação, num
painel amplo de interesses e discussões que têm, em comum, interesses relativos
à educação, ao cinema e à cultura contemporânea.
Este livro coroa, assim, o percurso de uma década de trabalho. O conjunto de
textos apresentados, com a cuidadosa organização assinada pelas pesquisadoras
Adriana Hoffmann, Rosane Tesch e Vanessa Gnisci, abre-se para a atualidade
das questões já apontadas. Ressalta-se, como eixo orientador aos trabalhos, a
prioridade dada à educação, desde o ensino fundamental ao superior. Partilhada
por todos, também, é a base formada pela pesquisa de campo, de natureza parti-
cipativa. Assim, o trabalho de pesquisa se associa à docência, em processos que
aliam a vivência à reflexão e produção de conhecimento.
As temáticas abordadas abrem um gradiente necessário, tendo em vista o
cenário contemporâneo das questões da educação, do cinema e do audiovisual,
da cultura digital, sem perder de vista ainda as questões relativas à inclusão e à
acessibilidade. Ressaltam-se, inicialmente, os estudos sobre os modos como as
pessoas vivenciam a experiência de assistir a filmes, como se apropriam dessas

10 | Comunicação, audiovisual e educação


narrativas, trazendo-as para as narrativas de si mesmas. Em caráter complemen-
tar a esse, estão as discussões sobre as possibilidades de produção de narrativas
audiovisuais por parte de jovens, estudantes, em contextos de aula e em plata-
formas digitais. A propósito, a temática da cultura digital também ganha prota-
gonismo entre os assuntos abordados, em suas reverberações aos modos como
os aparatos tecnológicos têm modificado tanto a recepção de filmes quanto a
produção de vídeos e seu compartilhamento em rede. Mais que isso, como as
plataformas digitais têm configurado novas dinâmicas de construção de apren-
dizagens compartilhadas.
Tem destaque especial o trabalho em que se discutem as potencialidades
do cinema junto a pessoas cegas ou com baixa visão. Os desafios trazidos por
tal abordagem colocam em pauta reflexões importantíssimas sobre o ato de ver,
bem como o papel das narrações na construção de referenciais sobre o estar e o
ser no mundo, cada qual com suas singularidades.
O livro que temos em mãos propõe possibilidades do cinema no campo da
educação que vão além, muito além do uso de filmes para ilustrar conteúdos cur-
riculares, ou como mera distração, preenchimento de tempo ocioso. Ao mesmo
tempo, sinaliza que trabalhos nessa direção não devem se subjugar aos interes-
ses do mercado cinematográfico, enquanto indústria do entretenimento. Essa
posição não se orienta por uma noção ingênua que possa supor possível deslocar
essa experiência para fora do mercado cinematográfico e suas demandas políti-
cas e econômicas. Contudo, reivindica a atenção para o fato de que o encontro
com o filme é impregnado de experiências culturais, pessoais, de memórias, re-
pertórios e referências que vão além dos interesses de mercado, ou dos possíveis
modismos.
Fica evidenciada, também, a necessidade de se aprofundarem investigações
relativas ao potencial pedagógico do cinema, sem ter como única condição sua
domesticação às delimitações da organização curricular da instituição escolar.
É comum apontar-se, como uma dificuldade importante para a inserção das
narrativas fílmicas no quotidiano escolar, a incompatibilidade entre os tem-
pos de aula e a duração dos filmes. As soluções para impasses como esse, qua-
se sempre, buscam limitar os conteúdos dos filmes aos conteúdos curriculares.
Um caminho possível está na organização de espaços, dentro e fora das escolas,
ou extrapolando os horários regulares de aulas, nos quais se possam ver filmes,
compartilhar relatos, falar sobre a experiência, produzir as próprias narrativas,

Prefácio | 11
construindo repertórios mais abertos, diversificados e complexos. É exatamen-
te nessa direção que o CACE tem encaminhado suas investigações, desaguando
nesta coletânea indispensável para pesquisadores e professores já no exercício
da profissão ou em formação.
Que os espaços de interlocução possam se multiplicar, desdobrando-se em
novas experiências e projetos nos vários níveis da educação. E que a todos seja
assegurado o direito ao espanto no encontro com filmes, projetados em salas de
cinema, em salas de aula, em copas de árvores, nas laterais dos edifícios, em su-
perfícies desde onde possam impregnar nossa imaginação com suas narrativas.

Alice Fátima Martins


Universidade Federal de Goiás (UFG)
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

12 | Comunicação, audiovisual e educação


Apresentação

A proposta do presente livro é apresentar as pesquisas concluídas em dois


projetos institucionais realizados dentro do grupo de pesquisa Comunicação,
Audiovisual, Cultura e Educação (CACE), grupo registrado no Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob orientação da profes-
sora Adriana Hoffmann. Tais pesquisas giram em torno do audiovisual dentro
dos espaços educacionais – escolas e universidade –, assim como em sua relação
com a cibercultura, articulando diferentes sujeitos, tanto crianças como jovens
e professores. Desse modo, ele será organizado em dois grandes eixos em que
cada um deles terá o nome do projeto maior de pesquisa institucional dentro
do qual as pesquisas foram finalizadas. Os dois projetos de pesquisa institucio-
nais que nomeiam cada grupo de pesquisas aqui apresentadas foram financia-
dos pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (Faperj), assim como também a publicação desse livro. Nesse texto
inicial, temos como objetivo apresentar o conjunto da produção e a construção
de trajetória e reflexão que viemos construindo nas pesquisas realizadas pelo
grupo. Mesmo tendo os dois projetos institucionais o viés apenas das áreas da
educação e comunicação, inicialmente, no decorrer do percurso das produções,
a questão da arte é trazida para o grupo, e começa a entrelaçar-se com a educa-
ção e a comunicação. Portanto, o título final do livro tem a cara das produções
desse grupo que está integrando cada vez mais essas áreas.
O livro marca em 2020 os dez anos de aniversário do grupo de pesquisa e foi
organizado procurando colocar juntas todas as pesquisas de dois projetos insti-
tucionais já finalizados, proporcionando ao leitor a reconstrução dessa trajetória
de pesquisa construída no coletivo. Cada pesquisa trazida por cada pesquisador
do grupo e suas parcerias integra as discussões do grupo como um todo e foi
construída nesse diálogo do fazer da pesquisa individual no conjunto das trocas
com o grupo e a orientação. Entendemos que o individual dialoga com o coletivo

| 13
e o coletivo com o individual e, portanto, o conjunto de pesquisas de cada projeto
aponta para o caminho que esse grupo como coletivo vem construindo. O livro é
mais uma forma de visibilizarmos, para nós e para os que querem nos conhecer
e dialogar conosco, esse percurso de ser e fazer-se pesquisador. Atualmente, es-
tamos no terceiro projeto institucional financiado por órgãos de fomentos como
a Faperj, mas o projeto atual ainda não tem pesquisas finalizadas para serem
incluídas neste livro.
O primeiro projeto institucional, intitulado “O cinema e a narrativa de crian-
ças e jovens em diferentes contextos educativos”, foi realizado entre os anos de
2010 e 2013, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com
apoio da Faperj. O projeto teve como objetivo perceber como crianças do ensi-
no fundamental e jovens do ensino médio e superior constroem seus modos de
relação com o cinema e que narrativas produzem a partir dessas experiências
vividas em espaços de formação – escola e universidade – que proporcionam
momentos de convívio com o assistir, pensar e produzir com a linguagem audio-
visual. Considerando o referencial teórico dos estudos culturais latino-america-
nos, o projeto de natureza qualitativa teve como estratégias metodológicas para
o trabalho de campo a observação de momentos de exibição de filmes e debates
nas instituições e a realização de entrevistas coletivas com as crianças e os jovens
com posterior análise de suas produções narrativas.
No contexto desse projeto, foram realizadas três pesquisas que trabalharam
na perspectiva do cinema como espaço de formação nas diferentes instituições.
Nesse período, a pesquisa proposta realizou-se em parceria com o prof. Pedro
Benjamin Garcia, da Universidade Católica de Petrópolis (UCP), sendo um dos
campos de pesquisa uma escola de ensino médio técnico em audiovisual na ci-
dade de Petrópolis. Os demais campos de pesquisa foram uma escola de ensino
fundamental, em que uma das pesquisadoras era docente, e a própria Unirio,
através do projeto de extensão do cineclube Cine do Centro de Ciências Humanas
(CCH), de 2010 a 2016, nas dependências da mesma universidade. Sendo assim,
tivemos as mestrandas Erica Rivas pesquisando com as crianças do ensino fun-
damental numa escola pública do município do Rio de Janeiro e Kelly Cordeiro
pesquisando com os jovens do ensino médio dentro da parceria feita com a UCP
numa escola pública do estado do Rio de Janeiro, na cidade de Petrópolis, e, no
ensino superior, diferentes turmas e cursos que frequentaram nosso cineclube

14 | Comunicação, audiovisual e educação


e a escrita de monografias de graduandas bolsistas de iniciação científica das
quais o estudo de uma delas, Thamyres Dalethese, está presente nesse livro.
O capítulo de Erica Rivas, escrito em parceria com Adriana Hoffmann e
Renata Ferreira, bolsista de Iniciação Científica (IC) da graduação, traz os resul-
tados de uma pesquisa com crianças do ensino fundamental, cujas experiências
vividas, coletivamente, na escola, com a criação do cineclube Megacine, fizeram
emergir narrativas das crianças sobre si e suas relações com a cultura do cinema
e a construção de sentidos a partir de cada filme exibido. O texto também mos-
tra o envolvimento dessas crianças na pesquisa, que passam a atuar, inclusive,
como mediadoras de sessões de cinema para outras crianças, estimulando os
debates, em um desdobramento do Megacine.
Kelly Cordeiro apresenta a pesquisa realizada no ensino médio de um colégio
estadual, em Petrópolis, com curso médio integrado de formação profissional em
Áudio e Vídeo, durante os anos 2011 e 2012, em momentos de exibição e debate
de filmes em parceria da escola com a Unirio e a UCP. A pesquisa apresenta como
os jovens construíam suas relações com o cinema dentro da escola e que relações
eram vividas por eles com o cinema fora da escola. Através das falas dos jovens
entrevistados, a autora comenta alguns dos achados da pesquisa que evidenciam
o modo como os jovens viviam essa experiência com o cinema na escola e ela co-
meçava a fazer parte dos modos de consumo e leitura deles.
Thamyres Dalethese e Adriana Hoffmann trazem a prática do cineclube uni-
versitário realizada junto ao projeto de extensão “Cine CCH: aprendizagens com
o cinema” que existiu na na Unirio de 2010 a 2016 associado e coordenado pelo
grupo CACE. Aqui, o cinema é pensado como espaço de ações pedagógicas e co-
letivas que formam os participantes, social e culturalmente. No capítulo, as nar-
rativas desses participantes, em sua maioria estudantes do curso de Pedagogia
da Unirio, revelam como trajetórias de vida permeadas pelo cinema são recons-
truídas, reconhecendo-se a relevância do papel do outro na formação de cada
um de nós.
O segundo projeto institucional, intitulado “O cinema e as narrativas na era
da convergência: modos de consumo, formação e produção de audiovisuais de
crianças, jovens e professores”, foi realizado de 2013 a 2018 e também contou
com financiamento da Faperj. Essa nova proposta de pesquisa teve como obje-
tivo ampliar as demandas surgidas na pesquisa anterior. Dessa maneira, nessa
nova proposta integraram-se professores como sujeitos da pesquisa e também

Apresentação | 15
se considerou a presença da internet nos consumos de cinema nos espaços de
consumo para além unicamente do espaço escolar, elementos que apareceram,
também, nas pesquisas do projeto anterior. Esse projeto institucional teve como
objetivo olhar de forma mais ampliada para as relações formativas vividas com
o cinema fora dos espaços institucionais visando à percepção dos processos de
autoria no consumo e à produção de narrativas audiovisuais de crianças, jovens
e professores e em sua atuação como cidadãos na sociedade. Nesse projeto, as
estratégias metodológicas já começaram a se diversificar, o que será percebido
nos capítulos referentes às pesquisas desse período.
No capítulo “Jovens youtubers: novas aprendizagens”, de Lucineia Batista,
a autora reflete sobre os processos de autoria e as novas aprendizagens contem-
porâneas de sete jovens, gamers e youtubers, estudantes do ensino fundamental
ao superior, com um interesse em comum: o mundo dos jogos. A partir de entre-
vistas e análise das produções compartilhadas no YouTube sobre cultura gamer,
Batista aborda as relações virtuais, oportunidades educacionais e atuais desafios
de jovens imersos em uma cultura de consumo e mediação tecnológica.
Animação é o tema do capítulo escrito por Joana Milliet. Parte de sua pes-
quisa de mestrado, o texto mostra como foi a participação de quatro professoras
da rede municipal de educação do Rio de Janeiro no projeto Anima Escola, em
2012 e 2013. Centrada na última etapa do projeto, quando as professoras são con-
vidadas a propor um filme de animação com alunos nas escolas, a pesquisadora
convida a pensar sobre uma possível “pedagogia da animação”, durante o pro-
cesso de criação, defendendo que gestos poderiam ser considerados pedagógi-
cos nesse processo.
O capítulo “Uma pesquisa com filmes para jovens cegos: cultura do ouvir no
contar filmes e/ou audiodescrever”, de Margareth Olegário e Adriana Hoffmann,
apresenta alguns dos achados da pesquisa de Olegário, realizada no Instituto
Benjamin Constant (IBC), onde ela atua como professora de crianças e jovens
cegos. A pesquisa teve como objetivo perceber o acesso desse público aos filmes
para entender como cegos e pessoas com baixa visão se relacionavam com os
filmes, buscando uma relação entre a experiência da pesquisadora e dos alunos,
ambos cegos. Através da pesquisa, Margareth vai vivenciando, junto com eles,
as tensões e aproximações entre a experiência deles de ouvirem/conhecerem os
filmes pelo contar filmes ou pelo audiodescrever.

16 | Comunicação, audiovisual e educação


Os desenhos animados, a juventude e o tempo se entrelaçam no capítulo de
Érika Lourenço, que compartilha, a partir de uma pesquisa de mestrado, dados
produzidos entre os anos de 2015 e 2017 com jovens do ensino médio de uma
escola pública federal, no Rio de Janeiro. As narrativas dessa juventude nos aju-
dam a refletir sobre as relações construídas em um tempo de canais exclusivos
para desenhos e o aumento na produção dessas mídias para TV e cinema nos
últimos anos. Em meio às próprias experiências com os desenhos animados,
os jovens revelam seus olhares sobre o tempo e narram o que seriam, para eles,
“tempo livre”, “falta de tempo”, “cursos da vida”, em dimensões diversas.
Thamyres Dalethese, no capítulo “‘Se inscreve no meu canal’: relações entre
crianças e YouTube”, busca investigar as produções audiovisuais produzidas e
consumidas por sete crianças, de 7 a 12 anos, na plataforma de vídeos YouTube
e os sentidos culturais que se constroem a partir dessas interações no am-
biente virtual. Através dos relatos das crianças em encontros on-line e off-line,
Dalethese apresenta aspectos dos contextos de consumo, produção audiovisual
e expressão das infâncias contemporâneas.
No capítulo “Professores de artes: a experiência audiovisual como forma-
ção e prática”, Jamila Guimarães propõe investigar as relações de experiência
e formação com o audiovisual de quatro docentes que atuam no ensino público
com a disciplina de Artes. É a partir dos relatos autobiográficos desses professo-
res que Guimarães reflete sobre suas trajetórias e aborda temas como formação
de professores, relações de consumo de Arte, usos e produções audiovisuais em
sala de aula.
Lucy Anna Diniz e Adriana Hoffmann, no capítulo “Cibercultura e redes so-
ciais: refletindo sobre as práticas das juventudes”, problematizam as relações e
acesso de jovens entre 11 e 15 anos na internet, apresentando dados produzidos
em entrevistas e questionários de pesquisa desenvolvida numa universidade
pública. Diniz e Hoffmann abordam questões relacionadas à cibercultura, aos
processos de comunicação em rede e às mediações nas experiências juvenis com
a tecnologia na atualidade.
No capítulo seguinte, a autora Fossaluza, artista contadora de histórias e
professora, questiona acerca da possibilidade de alinhavar um fazer artesanal a
um fazer tecnológico com as crianças. Através do artigo “A arte de criar tapetes
de histórias: ensaiando um convite narrativo entre o artesanal e o tecnológico”,
ela narra como realiza sua pesquisa numa instituição filantrópica que atende

Apresentação | 17
crianças em situação de risco social das comunidades do Pavão, Pavãozinho e
Cantagalo, localizadas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro e, através da me-
todologia da pesquisa-atelier, percebe o despontar do eu-narrativo das crianças,
percebendo indícios de relações entre o artesanal e o tecnológico nesse processo
de contar das crianças.
Pedro Esteves, em seu capítulo “Agamben e a profanação da educação: as
relações do cinema com a sala de aula e a formação de professores”, traz uma
vertente de pesquisa relacionada a um olhar da arte que começa agregar valor às
pesquisas do grupo. Em sua pesquisa, concluída em 2018, que teve como objeti-
vo investigar a possibilidade ou não de profanar o processo educacional em uma
sala de aula de formação de professores através dos saberes cinematográficos,
ele concebeu as relações entre arte e cinema, a partir de leituras do filósofo ita-
liano Giorgio Agamben (1942-) e realizou seu trabalho de campo numa turma de
formação de professores em uma universidade pública. Através de propostas de
ver, refletir e produzir com os jovens da pesquisa, o autor apresenta os indícios
de profanação da educação através do cinema.
As três últimas pesquisas já vão apontando o vínculo que o grupo inicia com
a arte, começando a mesclar pesquisas que trazem a arte para esse diálogo com
a comunicação, agora articulada às discussões da cultura visual, num projeto
em andamento que atualmente realizamos com outras novas pesquisas. Por esse
motivo convidamos para ilustrar o livro, tanto na capa quanto nas entrada de
cada projeto institucional, a artista Ludmila Duarte, agora também integrante
do grupo que trouxe nos seus desenhos toda a sensibilidade dos debates que as
pesquisas trazem à baila. Esperamos que o leitor ao conhecer as pesquisas con-
cluídas possa promover diálogos com/sobre e a partir delas para construção de
novos caminhos de pesquisa ainda não pensados e que esse livro possa ser fonte
de inspiração para pesquisadores que se interessam pelos estudos da área.

A todos e todas, boas leituras com diálogos profícuos!

Adriana Hoffmann, Rosane Tesch e Vanessa Gnisci


Organizadoras

18 | Comunicação, audiovisual e educação


O cinema e a
narrativa de crianças
e jovens em diferentes
contextos educativos
(2010-2013)

Semente de ecrã 2
Fonte: Ludmila Duarte (2020).
1
Cinema no ensino fundamental:
a pesquisa com o projeto megacine pelas
narrativas das crianças
Ad riana Ho ffm ann
Érica Ri vas G att o
Re nat a C o s t a Fer rei ra

INTRODUÇÃO

As reflexões trazidas neste texto foram realizadas no contexto do projeto de pes-


quisa institucional explicitada em artigo (FERNANDES, 2010) que teve como
interesse investigar as questões pertinentes à relação de crianças e jovens com
o cinema na formação vivida dentro das diferentes instituições escolares par-
ticipantes da pesquisa. A pesquisa abarcou os campos do ensino fundamental,
médio e superior tendo em cada um deles uma instituição participante que fazia
parte da investigação proposta.
Essa publicação apresenta um dos campos da pesquisa: o do ensino funda-
mental. O estudo de mestrado em questão trabalhou na perspectiva da pesquisa
intervenção e seu campo constituiu-se pela criação de um cineclube com cerca
de 40 crianças na faixa etária de 10 a 12 anos do 5º ano do ensino fundamental
de uma escola da rede municipal de ensino no bairro Oswaldo Cruz, zona norte
do Rio de Janeiro, durante o ano de 2011. A investigação buscou o entendimento
do modo como essas crianças estabelecem sua relação com o cinema e que ti-
pos de narrativas produzem pela sua participação no cineclube criado na escola:

| 21
o Megacine. Escolhemos o espaço escolar como campo de pesquisa, privilegian-
do um olhar para o modo como as crianças desse campo estão se apropriando do
cinema com o intuito de desmistificar a ideia corrente do cinema na escola como
mera ferramenta para ilustrar ou aprofundar conteúdos. Ao observar as relações
das crianças e suas narrativas diante dos filmes exibidos na escola pelos debates
realizados livremente, ampliam-se as possibilidades de ver e pensar sobre filmes
com o objetivo de formação estética, entendendo-se a criança, sujeito da pesqui-
sa, como produtora de cultura em sua relação com as imagens cinematográficas.
Ao falar de narrativa na pesquisa entendemos que ela nos constitui, pois,
como reflete Benjamin (1994), nos formamos pelas narrativas a que temos aces-
so, rememoradas pela coletividade. Por elas, criamos e damos sentido ao que vi-
vemos no mundo. Essa nossa constituição narradora também ocorre, em nosso
entender, na relação que as crianças estabelecem com o cinema. Nossa relação
com o outro e com o mundo passa pela narrativa. É um modo de percebermos
o mundo e sermos afetados por ele, pois nossa formação depende das histórias
que contamos aos outros e das que contamos para nós mesmos, das construções
narrativas nas quais cada um se constitui, simultaneamente, autor e narrador da
sua própria existência.
Diante disso, questionamos: como as crianças se relacionam com as narra-
tivas do cinema no cotidiano? Como narram-se na relação com o cinema? Que
narrativas conhecem e escolhem para compartilhar com os colegas? Que relação
estão construindo com o cinema dentro do cineclube criado? É com essas e ou-
tras provocações que tentaremos refletir e dialogar neste texto.
Nessa perspectiva, a constituição do campo investigado ocorreu fundamen-
tada na ótica da pesquisa-intervenção (CASTRO, 2008) como transformação da
realidade dos sujeitos numa construção conjunta dos pesquisados com o pes-
quisador. Segundo Sato (2008, p. 172), “[...] o processo de desenvolvimento da
‘pesquisa-intervenção’ é o resultado de um processo de negociação entre os en-
volvidos e que depende das circunstâncias presentes”. Outro ponto que merece
destaque e trouxe a singularidade do estudo, foi a relação entre a pesquisadora,
autora da dissertação resultante desta pesquisa e as crianças, já que atuava tam-
bém como professora regente desse grupo.
Consideramos que as crianças, ao atuarem na pesquisa e narrarem as suas
diferentes leituras sobre os filmes, são sujeitos produtores de sentidos e cul-
turas, ressignificam e reelaboram aquilo que veem segundo sua participação

22 | Comunicação, audiovisual e educação


na sociedade construindo com os outros – filme, demais crianças e adultos –
conhecimentos, sentidos e cultura. O estudo de Fantin (2011) dialoga com a nos-
sa pesquisa ao considerar que a criança relaciona-se com o cinema nessa dimen-
são de autoria.
Nesse sentido, apresentaremos como se constituiu o cineclube Megacine
com a exibição regular de filmes com debate para a turma investigada que é
depois ampliada para outras turmas da escola e repercute até mesmo no sur-
gimento de um clube do cinema – ambos por iniciativa das próprias crianças.
Interessante ver, diante dessas atitudes das crianças investigadas, como pensam
sobre o cinema e a experiência vivida com ele nas sessões de filme na escola.
Sobre as questões éticas inerentes ao ato de pesquisar, referentes ao uso
dos nomes e imagens das crianças na pesquisa, buscou-se a coerência com os
referenciais teórico-metodológicos adotados neste estudo. As autoras Fantin e
Girardello (2009) afirmam que pode haver uma relativização dos princípios em
relação ao anonimato, pois há situações em que os sujeitos envolvidos aceitam
divulgar sua identidade e, nesses casos, quando não há riscos envolvidos, o ano-
nimato pode ser quebrado.
Dessa forma, além das autorizações enviadas aos responsáveis como parte
da pesquisa e suas especificidades, as crianças foram consultadas sobre como
gostariam de ser mencionadas no estudo. Todas as crianças optaram por ter
seu primeiro nome como forma de identificação ao longo da pesquisa e fizeram
questão de colocar seus nomes em produções como vídeos, desenhos e carta-
zes, comprovando a marca de coautoras da pesquisa pela atuação que tiveram
ao longo do processo. E é dessa forma que as traremos aqui.

CONSTRUINDO O CAMPO: O MEGACINE EM AÇÃO

No dia 20 de maio, uma sexta-feira, 32 crianças estavam presentes, a pesquisado-


ra, a estagiária e muita, muita pipoca... Era a primeira sessão do cineclube. No iní-
cio, as crianças leram o cartaz do filme ‘Valentin’ e observaram as informações con-
tidas e levantaram hipóteses sobre o personagem, estabeleceram comparações com
um personagem da novela ‘Ti, ti, ti’ da rede Globo, que se chamava ‘Vitor Valentin’
e era espanhol. O filme é argentino e os alunos ficaram um pouco apreensivos com

Cinema no ensino fundamental | 23


o fato do filme ser com o áudio em espanhol, pois não possuem hábito de assistir a
filmes legendados.

No início da sessão, estavam mais preocupados com a pipoca, porém foram se con-
centrando com a narrativa de Valentin que foi envolvendo a todos.

Com o desenrolar do filme, ao meu ver por ser em uma língua, cultura e época dife-
rentes, as crianças foram ficando envolvidas e curiosas com a história do menino.
Durante o filme, riam e se entreolhavam, com cumplicidade nos olhares.

No momento que Valentin apareceu vestido de astronauta, cantando a sua música,


quando o tio apresenta um cassete como ‘última tecnologia’, na fala de sua ‘supos-
ta namorada’, que criou burburinhos por ter o mesmo nome de uma aluna da tur-
ma e em vários outros momentos, os alunos se divertiam com Valentin.

Quando Valentin e Letícia trocam afetos e o menino urina na árvore, as crianças


riem muito e uma aluna, ao ver o carinho de Valentin com Letícia diz: ‘–Que fofo!’.
(Diário de campo Sessão Valentin)

O trecho do diário de campo da exibição do filme Valentin aponta como as


crianças reagiram durante o filme e o modo como interagiam com este e com
seus pares durante a exibição. Risos, olhares, burburinhos marcavam os mo-
mentos de exibição dos filmes em todas as sessões.
A experiência das crianças vivida coletivamente em torno do cinema deu ori-
gem a esse cineclube na escola, trazendo vários momentos como o anteriormente
relatado. Assim como Rose Clair1 o define, cineclube é entendido como “o espaço
que congrega pessoas com a possibilidade de debater/discutir sobre os filmes”.
Na apresentação do Megacine, torna-se necessário delimitar a diferen-
ça, sempre destacada pelos estudiosos da comunicação, entre filme e cinema.
Marília Franco (2010) destaca que para pensar as relações entre cinema e edu-
cação é preciso estar claro que filme e cinema têm dimensões diferentes, mas
indissociáveis na constituição da cultura audiovisual que marcou os hábitos cul-
turais do século XX.

1 Em palestra realizada pela autora na disciplina Tópicos especiais em cinema e educação, ministrada
pela professora Adriana Hoffmann, no dia 15 de setembro de 2011.

24 | Comunicação, audiovisual e educação


O filme é um objeto estético/cultural de consumo individualizado.
Sua fruição se dá dentro de uma bolha perceptiva, construída pela
tecnologia da projeção das imagens em movimento em sala escura.
O espectador fica ‘sozinho’ para desfrutar das emoções proporcio-
nadas pela história, contada através de uma linguagem que hiper-
trofia as percepções visual e sonora (esta última a partir de 1930).
(FRANCO, 2010, p. 11)

Outro autor, Teixeira Coelho, comenta que, quando se fala de cinema, está se
falando de um modo cultural, mas não necessariamente de filmes. Nessa pers-
pectiva, considera-se neste estudo, o filme como um produto cultural, enquanto
o cinema é entendido como fenômeno social. (DUARTE, 2002) Nesse sentido,
ver filmes numa sala de projeção, com possibilidade de debater de forma coleti-
va após a exibição, constitui um modo de constituição cultural diferenciado do
ver filmes sozinho em casa.

Um filme é algo delimitado; o cinema, mais especificamente a cul-


tura do cinema, remete a domínio bem mais amplo. Um filme é uma
película impressionada, montada, sonorizada, com um sentido rela-
tivamente fixo e definido. A cultura do cinema é um universo sempre
em expansão que abrange desde as mundanidades de uma première
até as mais sofisticadas teorias sobre o que é projetado na tela [...]
(COELHO, 1999, p. 110)

Nessa lógica, fica claro que mesmo atuando na escola podemos trazer para
esse espaço a possibilidade de criação de uma cultura do cinema. Nossa inves-
tigação não pretende apenas perceber a relação das crianças com filmes como
espectadores de forma isolada, mas, ao instituir e investigar um cineclube no
espaço da escola, objetiva perceber a possibilidade de captar o modo de relação
das crianças com a cultura do cinema numa dimensão mais ampla assim como a
apontada por Coelho (1999).
A constituição do cineclube Megacine criou uma forma de relação com os
filmes como evento, inserindo-os numa provável construção de prática cultu-
ral que, para esse grupo de crianças moradoras da zona norte, pode não ser tão
próxima de seu cotidiano. Como o objetivo da investigação é pensar as relações
de crianças com o cinema, a proposição desse espaço favoreceu momentos de

Cinema no ensino fundamental | 25


diálogo com as crianças que aconteceram tanto nos debates coletivos após os fil-
mes como nas entrevistas, aspectos que fazem parte da estratégia metodológica
da pesquisa.
As crianças receberam bem o projeto, no entanto, houve alguns estranha-
mentos iniciais principalmente em uma das sessões iniciais como a que ocorreu
com o filme Valentin, um filme Argentino, que foi exibido com áudio em espa-
nhol e legendas.
Nas sessões, foram feitas poucas interferências nos debates, atentando prin-
cipalmente para a percepção das narrativas que as crianças construíam livre-
mente a partir dos filmes fazendo uma ou outra provocação para pensarem a
respeito do que viam. Algumas crianças trouxeram suas impressões logo nos
primeiros debates realizados: “Eu achei que o filme foi diferente do que a gente
costuma assistir, às vezes a gente assiste filme de ação, comédia...” (Hannah) “É
como se a gente visitasse filmes feitos por outros países, para a gente ver como
são diferentes do que a gente já estava acostumado... de Hollywood ”. (Esther) “É
conhecer filmes de outras linguagens, ‘tipo’ aprender... só isso...” (Brenda)
Hannah, criança da pesquisa, iniciou o debate do filme Valentin, tratando
da experiência estética de ver a um filme diferente do que costumava assistir,
como aponta sua fala. Ao possibilitar novas experiências e construções de senti-
dos pelas crianças com os filmes e “[...] crer que o cinema olha para certos temas
de hoje, e, ao fazer isso, nos convida e nos ensina também a olhá-los de outro
modo” (FISCHER; MARCELLO, 2011, p. 507), garante-se o direito de interação
com as culturas, ampliando e atualizando os repertórios, “[...] além de trazer aos
espaços formadores referências culturais de vários lugares, países e tempos his-
tóricos, através de gêneros, linguagens e estéticas as mais diversas possíveis”.
(FANTIN, 2007, p. 4)
Dos filmes exibidos em 2011 no Megacine, tivemos cinco sessões de filmes
longas: quatro fizeram parte do campo de análise da pesquisa, dos quais dois
foram trazidos pelas pesquisadoras – Valentin, filme argentino de Alejandro
Agresti, e Filhos do Paraíso, filme iraniano de Majid Majidi – e dois escolhidos pe-
las crianças – O pequeno Nicolau, filme francês de Laurent Tirard, e As Aventuras
de Sharkboy e Lavagirl, filme americano de Robert Rodriguez. O filme francês
foi escolhido após parte da turma tê-lo assistido no Festival Internacional de
Cinema Infantil (FICI). O filme americano foi escolhido pela maioria ser fã do
mesmo. Em todas as sessões realizadas no cineclube, houve exibição, debate e

26 | Comunicação, audiovisual e educação


as crianças, além de participarem vendo e debatendo, também fotografavam, fil-
mavam e registravam o que pensavam desse processo. Os filmes foram exibidos
no auditório da escola municipal, onde as crianças estudavam. O espaço foi dis-
ponibilizado pela escola e o facilitador desse processo foi o fato da pesquisadora
também ser professora da instituição. Durante o percurso no campo empírico,
desdobramentos foram surgindo a partir do retorno da participação das crianças
na pesquisa. Um deles foi o clube do cinema criado por um grupo de crianças
participante do Megacine e outro foi a exibição de filmes do cineclube – organi-
zada pela turma do Megacine – para outras turmas da escola com a mediação de
algumas crianças da pesquisa.

CLUBE DO CINEMA

O clube do cinema surgiu a partir de um projeto já existente na turma chamado


“clube do livro”, que funcionava como uma pequena biblioteca da turma, onde
eram feitos empréstimos em que as próprias crianças pegavam livros a qualquer
momento do dia. Fizeram, então, a mesma sistemática com um acervo de filmes.
No total, o clube obteve 31 filmes. Alguns dos títulos desse acervo criado pelas
crianças são: Alvin os esquilos 2; O diário da barbie; Hello Kitty; Vila sésamo 1,2,3,
conte outra vez; Avatar; Astroboy; dentre outros títulos que o compuseram. Cabe
ressaltar, que as pesquisadoras não interferiram na constituição do acervo cria-
do pelas crianças. O pequeno acervo criado pelas crianças é composto em sua
maioria por DVDs “piratas”, fato que desencadeou várias discussões e conclu-
sões por parte das próprias crianças. Bergala, em seu projeto na França, também
destaca que ao trabalhar com projetos de cinema na escola sentiu a necessida-
de de selecionar um conjunto de filmes para uso na mesma. As crianças, a seu
modo demonstram perceberem que o trabalho com cinema demanda ver mais,
ampliar o ver e o acesso.
Para explicar o processo de aquisição dos filmes e a dinâmica do clube cria-
do por elas, trazemos algumas falas que justificam como pensaram para montar
o clube do cinema e sua importância no ponto de vista delas:

Ah, [montamos o clube] pedindo empréstimos para as turmas, botamos e fizemos


cartazes pela escola, entregamos nas salas e pedimos filmes... quem tiver filme
velho, velho mesmo, mas que esteja em bom estado pra gente assistir. Esses filmes

Cinema no ensino fundamental | 27


foram conseguidos assim, através de pessoas caridosas, que têm filme, mas não as-
sistem e trouxeram pra gente poder assistir. (Hannah)

Muita gente não tem dinheiro para ir à locadora, aí escolhe alguns filmes, assiste
em casa, traz no dia... É do jeito da pessoa, o filme que quiser... E também tem gente
que doar para outros assistirem...Tem um filme aqui que a maioria tem preconcei-
to de assistir porque fala que é chatinho... Quase ninguém pega esse filme! É o Vila
Sésamo 1,2,3, conte outra vez, dizem que é pequenininho, chatinho, de criança...
(Andressa)

“O clube do cinema é como uma locadora que a gente poderia ter colocado ou-
tros filmes, mas como a gente pediu emprestado, só entraram filmes mesmo que a
maioria já conhecia ou então não eram de outros países, sem ser de Hollywood”.
(Esther)

Figura 1 – Caixa confeccionada pelas crianças da pesquisa para o clube do cinema


Fonte: arquivo da pesquisa.

28 | Comunicação, audiovisual e educação


A constituição do clube do cinema pelas crianças demonstra que elas per-
cebem a importância de que para se apropriar de uma cultura do cinema é pre-
ciso construir um espaço de acesso aos filmes, tal como esse criado por elas. No
entanto, é interessante perceber que elas próprias dizem que como pediram
emprestado, receberam filmes de “pessoas caridosas”, só entraram filmes “que
a maioria já conhecia” ou como disse Hannah “filme velho mesmo mas que esteja
em bom estado para assistir”. Isso demonstra que, mesmo criando o clube, sa-
bem que conseguir filmes que a “maioria não conhece” ainda se constitui num
desafio de ampliação do acesso. Dessa maneira, os filmes que fazem parte do
acervo do clube do cinema dão pistas para pensar como as crianças se relacio-
nam com os filmes como produtos culturais e se constituem como consumido-
ras destes, ampliando a questão do consumo como espaço que serve para pensar
(CANCLINI, 1997), não o encarando de forma simplista como usos e gastos que
nada dizem.
O consumo cinematográfico das crianças, o gosto que possuem pelos filmes,
estão intimamente relacionados às práticas sociais e culturais por elas vividas.
De acordo com Duarte (2002, p. 89), “mesmo aqueles considerados ruins (e esse
julgamento é sempre subjetivo) podem despertar o interesse e estimular a curio-
sidade em torno de temas e problemas que, muitas vezes, sequer seriam leva-
dos em conta”. Entretanto, como aparece nas falas anteriores, essa dificuldade
do acesso “a filmes que a maioria não conhece” transparece quando questio-
nadas sobre a possibilidade do clube do cinema ter acesso aos filmes exibidos
no Megacine, principalmente aos filmes trazidos pelas pesquisadoras, que as
crianças não teriam acesso em locadoras ou locais próximos às suas residências.
Todas manifestaram o desejo de levar tais filmes para compartilhar com outros,
como observa-se a seguir: “Ia ser bem legal a gente ter. Porque a gente vê e nossos
pais, às vezes, falam: ah, é mentira! Pra gente mostrar para eles outros filmes de
cultura, que alguns pais não veem, que os irmãos que não conhecem”. (Esther)
Tal fala aponta que entendem a importância da ampliação do acesso ao pos-
sibilitar que a família, pais e irmãos, vejam filmes novos que não conhecem. O
desejo de ter o filme desses no clube do cinema passa por poder compartilhar
também com as pessoas de fora da escola. A ampliação do acesso promovida
pelo Megacine começa na escola e eles demonstram que desejam que saia dela,
que atinja outras pessoas de fora da escola como suas famílias. A discussão so-
bre o consumo e acesso aos filmes para o clube do cinema trouxe à tona a forma

Cinema no ensino fundamental | 29


como entendem a questão da cópia dos filmes na relação estabelecida com eles,
a partir do clube do cinema: “Eu acho assim, mesmo que a pessoa devolva ele di-
reitinho, se ela tiver com a cópia, ela pode fazer várias outras cópias dessa cópia
e vender... Isso é que é pirataria! Mas se a pessoa fizer uma cópia para ficar para
ela tudo bem, não tem nada de errado, mas se ela copiar e vender, aí já não está
certo...” (Esther) “Filme pirata tem sempre algum erro, sempre tem algum pro-
blema... já para baixar, a minha irmã tem um site que ela se cadastra no site...
viu só? Tem até que se cadastrar no site! Já mostra que lá não é site que tem filme
pirata...” (Fernanda)
Apesar de associarem na maioria das vezes filmes piratas a filmes com pro-
blemas e erros, as crianças (re)construíram um conceito de pirataria no contexto
do projeto, associando-o a possibilidade de acesso a filmes que não teriam de ou-
tra forma e identificando e validando o significado sociocultural desses produ-
tos e bens simbólicos diante do contexto vivido. (CANCLINI, 1997) Interessante
a diferença que fizeram nesse contexto entre “copiar” e “baixar” o filme como se
fossem coisas diferentes. A ideia de “pirata” para elas foi entendida como fazer
algo escondido “sem identificação” e encararam o copiar um filme para consu-
mo próprio como algo possível – e não pirata –, diferente do copiar para vender
que, para elas, “não está certo”.
Sem dúvida, as crianças da pesquisa mostraram ao longo do percurso da in-
vestigação que não se configuram em momento algum como dóceis audiências
assim como aponta Canclini (1997) na relação de consumo que estabelecem com
os filmes, mas atuam como sujeitos que participam da construção da cultura de
seu tempo trazendo questões para se pensar os desafios da ampliação do acesso
à cultura do cinema na contemporaneidade.

SESSÕES DE CINEMA PARA OUTRAS TURMAS COM


MEDIAÇÃO DAS CRIANÇAS DA PESQUISA NO DEBATE

Como outro fruto do Megacine, algumas crianças realizaram juntamente com


as pesquisadoras, a exibição do filme Valentin para outra turma da escola com
mediação das próprias crianças da pesquisa. Tendo marcado dia e horário com a
outra turma, as crianças da pesquisa realizaram o convite para os colegas, convi-
dando-os para a sessão que exibiu o filme Valentin.

30 | Comunicação, audiovisual e educação


Figura 2 – Modelo de cartaz confeccionado pelas crianças da pesquisa
Fonte: arquivo da pesquisa.

As crianças que foram chamadas na pesquisa de “mediadoras” foram aque-


las que demonstraram maior envolvimento com a pesquisa, tanto nos debates
com comentários acerca do filme como na preparação das sessões do cineclube,
com cartazes de divulgação e disponibilidade para fotografar, filmar e fazer diá-
rios de campo. Observa-se que os papéis das crianças mediadoras se intercalam,
ora comentam sobre o filme, ora fazem perguntas às outras crianças e ora gra-
vam a voz, a imagem e fotografam o momento, interagindo o tempo todo com
a outra turma que estava presente e que havia sido convidada por elas. Essas
mesmas crianças, também idealizadoras do clube do cinema já apresentado an-
teriormente, deram continuidade ao projeto, criando as sessões do cineclube
para toda a escola, mesmo após a finalização do campo da pesquisa. A seguir,
trazemos algumas falas sobre suas impressões das sessões realizadas por elas:

Eu gostei muito da sexta-feira, porque eles se pareciam com a gente nos primeiros
Megacine. Tínhamos vergonha de falar e muito mais de se expressar, igualzinho a
eles. E foi uma oportunidade para mim, porque eu tinha faltado o filme Valentin,
foi uma segunda chance e espero que eles tenham gostado do projeto assim como
nós. (Andressa)

Cinema no ensino fundamental | 31


Os alunos que estavam sentados na primeira fileira pareciam muito impressiona-
dos com o filme, pois não tiravam o olho da telinha. Deu para perceber que os alu-
nos estavam se expressando em algumas cenas, até comentavam com os colegas do
lado sobre as cenas mais apavorantes. (Mylena)

Através dessas falas, as crianças mediadoras trouxeram questões importan-


tes em que falam dos colegas comparando-se a eles ao dizerem que “pareciam
com a gente nos primeiros Megacine” e expressam que percebem mudanças ao
viver o cineclube até vendo que nesse novo papel viam os colegas num processo
de crescimento no debate com os filmes.
Ao possibilitar novas experiências e construções de sentidos pelas crianças
com os filmes e “[...] crer que o cinema olha para certos temas de hoje, e, ao fazer
isso, nos convida e nos ensina também a olhá-los de outro modo” (FISCHER;
MARCELLO, 2011), garante-se o direito de interação com as culturas, ampliando
e atualizando os repertórios, “[...] além de trazer aos espaços formadores referên-
cias culturais de vários lugares, países e tempos históricos, através de gêneros,
linguagens e estéticas as mais diversas possíveis”. (FANTIN, 2007, p. 4)
Ao atuarem como mediadoras na pesquisa, as crianças se configuram como
coautoras, confirmando a intervenção vivida com os nossos sujeitos da pesqui-
sa e a opção teórico-metodológica escolhida para o estudo. Ao participarem da
criação do cineclube com as pesquisadoras e o ampliarem em outras atuações
com o cinema, produziram sentido e cultura, construíram suas identidades, dei-
xaram suas marcas sociais pelas diferentes apropriações feitas com o cinema.

32 | Comunicação, audiovisual e educação


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu no Megacine me via como uma pessoa que ontem falava que filme era chato e
hoje estou participando de debates, falando de filmes. Estou vendo coisas no filme
que eu não via antes. Eu não tinha a visão que tenho agora, não era só porque eu
era menor. Eu tinha um olhar diferente, eu não debatia, eu não tinha sentimento
em relação aquele filme, eu só queria ver filme já mastigado, filme bobo, não bobo,
mas assim Hello Kitty...
(Juliana em entrevista ao falar sobre sua participação no Megacine)

Figura 3 – Sessão do filme Valentin, exibido no dia 20 de maio de 2011 no cineclube Megacine
Fonte: arquivo da pesquisa.

As falas das crianças trazem pistas para compreendermos as relações cons-


truídas com o cinema a partir das experiências culturais tecidas no contexto
do Megacine. Quando Juliana, na epígrafe, afirma “Estou vendo coisas no filme
que eu não via antes [e] eu tinha um olhar diferente” aponta possibilidades para
pensarmos como as crianças narram-se na relação com o cinema, tendo como

Cinema no ensino fundamental | 33


precursor dessa relação o cineclube. A partir desse espaço, as crianças refletem
e dialogam com os seus pares e pesquisadoras sobre as narrativas dos filmes,
construindo suas próprias leituras e narrativas, ao ressignificar o que viram com
suas apropriações.
Percebemos como o convívio, como o ver e debater filmes ampliam o olhar
das crianças o que possibilita que se tornem mediadores do ver para outros que
ainda não viram. Ao “verem coisas novas”, passaram a propor novas práticas
articuladas ao que já conheciam pensando no clube de cinema e na exibição,
tendo elas como mediadoras dos debates dos filmes. Esses foram, na pesquisa,
dois espaços de produção de cultura criados e mantidos pelas próprias crianças
empenhadas em levar adiante o cineclube na escola.
Com o clube do cinema, as crianças, além de formularem ideias e conceitos
a respeito do acesso aos filmes “que todos conhecem” ou mesmo os chamados
pelas mesmas de “diferentes”, indicam as narrativas escolhidas para comparti-
lhar com os colegas e familiares e a relação que estão construindo com o cinema
nesse contexto.
Ao propor pesquisar a relação das crianças com o cinema na escola, percebe-
mos que o cinema como dispositivo constrói sonhos que atravessam o imaginário
infantil e, através da leitura dos filmes, os debates “valorizam a imaginação da
criança” como afirma Juliana, criança mediadora da pesquisa. Nesse contexto,
precisamos ouvir suas vozes, ver seus olhares e sentir o encontro delas com os
filmes e as leituras que eles proporcionam. (FRESQUET, 2009) Somente assim,
como afirma Fresquet (2009, p. 153), “[...] eles são os reais protagonistas na recep-
ção e produção de uma cultura que lhes é própria”.
Como afirma Xavier (1988, p. 370), “No cinema, posso ver tudo de perto, e
bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo dos acon-
tecimentos, dos gestos. A imagem na tela tem sua duração, ela persiste, pulsa,
reserva surpresas”. Assim como no cinema, a pesquisa reserva surpresas, faz
as nossas reflexões pulsarem e amplia os detalhes que no cotidiano poderiam
passar despercebidos. Detalhes que as próprias crianças revelam. Os processos
sociais significados pelas crianças ao assistir e experienciar os filmes, atribuem
novos sentidos à cultura e nos permitem ampliar o olhar ao perceber – cada vez
mais de perto – a relação das mesmas com o cinema.

34 | Comunicação, audiovisual e educação


REFERÊNCIAS

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7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CANCLINI, N. O consumo serve para pensar. In: CANCLINI, N.


Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização.
3. ed. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1997. p. 51-70

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intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa: FAPERJ,
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36 | Comunicação, audiovisual e educação


2
Narrativas de jovens do ensino médio sobre
cinema dentro e fora da escola

Kel l y M ai a C o rd ei r o

INTRODUÇÃO
A recepção através da distração, que se observa crescentemente em
todos os domínios da arte constitui o sintoma de transformações
profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema seu cenário
privilegiado. (BENJAMIN, 1994, p. 194)

Ao se colocar diante das mudanças sociais ocorridas a partir dos novos paradig-
mas, procedentes das múltiplas possibilidades contemporâneas da reprodução
técnica, Benjamin (1994) considera o cinema como um meio de distração e pos-
sibilidade de construção de conexões mentais que trazem a percepção a novos
sentidos. Através do filme, da contemplação estética da arte, a mente se “solta”
para construir elementos que surgem a partir dessas narrativas, permitindo aos
espectadores um “alívio” das tensões do momento, num processo contínuo de
aprendizagem e fruição.
As relações de consumo do cinema compõem elementos da cultura, que
como aponta García Canclini (2009), são concebidas por um conjunto de práti-
cas sociais, econômicas e políticas. Conforme tal autor, essas relações abarcam
o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo de signifi-
cação na vida social, sendo um processo de significação social. A cultura, nesse

| 37
contexto, não se fecha sobre um aspecto pré-definido, se abre para ser pensada
de forma híbrida, entrelaçando elementos significativos da esfera local e global.
Compreendendo que o cinema se estabelece também através da cultura,
e faz parte do contexto dos jovens, procuramos na pesquisa do mestrado em
Educação, investigar como são construídas as relações dos jovens com o cinema.
Neste artigo, apresentaremos um recorte da pesquisa trazendo a metodologia
adotada, o campo, os sujeitos e parte dos resultados da pesquisa que mostram
o consumo do cinema através das narrativas dos jovens. Destaco que a pesqui-
sa foi realizada dentro de um projeto institucional da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio), e tanto o projeto quanto a pesquisa de mestra-
do que deu origem a esse capítulo tiveram outras versões em publicações ante-
riores em revistas.1

O CINEMA NO CONTEXTO EDUCATIVO DA PESQUISA

A pesquisa realizou-se a partir dos pressupostos da pesquisa-intervenção por


compreendermos que no processo e no percurso da pesquisa nos colocamos en-
quanto pesquisadores, atuando com os sujeitos participantes, que se encontra-
vam num movimento de estar, aprender, ouvir e deliberar em colaboração. Bem
como sinaliza Moreira (2008, p. 430), “a pesquisa não é feita ‘sobre’ um grupo,
mas ‘com’ um grupo”.
Desse modo, a intervenção aconteceu desde o momento em que começamos
a circular e a dividir os espaços da instituição. Passando pelo estágio da obser-
vação, exibição de filmes, debates e avançando pela interação na cibercultura.
O material que subsidiou a análise foi coletado por entrevistas, conversas na es-
cola e na rede social. Os critérios que balizaram essas escolhas foram norteados
pelo delineamento da pesquisa e pela flexibilidade que o campo apresentou.
Tendo como prioridade as narrativas dos professores da escola e dos sujeitos da
pesquisa.
O campo de pesquisa foi constituído a partir da parceria entre duas univer-
sidades, a Unirio – onde realizei meu mestrado – e a Universidade Católica de
Petrópolis (UCP) em processo de parceria entre os projetos de pesquisa institu-
cionais de seus professores. (FERNANDES, 2010; GARCIA, 2010) O local de pes-

1 Ver: Fernandes (2010) e Cordeiro e Fernandes (2017).

38 | Comunicação, audiovisual e educação


quisa foi um colégio em que ambos os professores já faziam projeto em parceria
e ao entrar no mestrado foi aberta a possibilidade para que fizesse meu campo
de pesquisa nesse mesmo local. Trata-se de um colégio estadual no municí-
pio de Petrópolis que oferta o Ensino Médio Integral (EMI) com o Curso Médio
Integrado de Formação Profissional em Áudio e Vídeo. A proposta do curso é
oferecer e desenvolver as práticas audiovisuais a partir dos princípios da ciência,
cultura e trabalho, e a formação de técnico audiovisual oferecida busca contem-
plar os estudos: de roteiro; de direção; produção de pequenos curtas-metragens;
análises de filmes e de textos.
Nosso campo de pesquisa ocorreu nos tempos de aula da disciplina de
Comunicação crítica num total de sete encontros às quartas-feiras, sempre no
período da manhã. Os filmes exibidos2 tinham a característica de serem histórias
adaptadas de obras literárias, com temática diversificada, de países variados.
As narrativas não seguiam um padrão comum nos filmes de alta comercializa-
ção, procurando sempre trazer filmes com narrativas instigantes e artísticas.
Participaram da pesquisa, nos momentos de exibição e debate, 30 alunos.
Após os debates, foram feitas seis entrevistas com: três jovens do 2º ano e outros
três do 3º ano, escolhidos pela intensa participação nos debates. Além disso 12
alunos – os seis da entrevista e outros seis alunos – nos aceitaram para amizade
no Facebook, o qual se constituiu num espaço fora da escola para nossas conver-
sas. Como percepção geral sobre esse grupo, evidenciamos que:

• Falavam muito sobre cinema, conversando sobre os filmes que assisti-


ram, sobre os atores e atrizes, o que gostavam e o que não gostavam;

• Possuíam um repertório construído de histórias para contar sobre situa-


ções vividas em relação ao cinema. De idas ao cinema, realização de ati-
vidades que envolviam filmes e a produção de audiovisual como propos-
ta da escola;

• A faixa etária dos jovens eram entre 17 e 20 anos, se interessavam por di-
ferentes gêneros de filmes. Boa parte deles eram “amigos” no Facebook e
também interagiam em outros espaços fora da escola.

2 Os filmes da pesquisa foram: O carteiro e o poeta, Fahrenheit 451, Adeus Lenin!, Ensaio sobre a ceguei-
ra, Balzac e a costureirinha chinesa, Edifício Master.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 39


Estar na escola no horário integral – manhã e tarde – apresentava uma rup-
tura aos jovens que estudavam no ensino regular, com carga horária de meio pe-
ríodo. E o deslocamento para alguns deles que moravam na Baixada Fluminense
do Rio de Janeiro, também era um fator de adaptação pela distância com o des-
locamento. Para muitos deles, a entrada no EMI significou uma passagem para
outra fase da vida em que o jovem deixou, de certo modo, uma condição com
menos tarefas e tempos escolares, para se envolverem mais questões formais da
escola. De um lado, a preocupação com a formação profissional e, de outro, com
o ingresso no ensino superior.
O Facebook, como espaço não escolar dos alunos, era um espaço de conti-
nuidade de alguns debates promovidos pela escola. Nele, havia uma intensa tro-
ca de ideias, opiniões diferentes entre os alunos, e isso se concretizava também
fora da escola. O consumo do cinema estava tão presente na vida desses jovens
que o espaço e o tempo dado pela escola pareciam poucos para as construções
vivenciadas por eles. Nesse sentido, o cenário das relações sociais e das formas
de aprender de crianças, jovens e adultos se redesenham no espaço das redes
sociais, envolvendo processo de conectividade, de autoria e de coautoria, que
se estruturam a partir da comunicação e da circulação de informações na rede.
O cinema tem esse poder, enquanto linguagem audiovisual, real e de ficção, atra-
vessa os limites territoriais e do imaginário, trazendo acima de tudo elementos
para pensarmos o consumo na sociedade contemporânea e dos jovens da pes-
quisa. Para García Canclini (2010), a apropriação dos bens culturais nos diz que
o consumo sofre um processo de racionalidade, não se consome apenas por ma-
nipulação, por passividade de receber a informação e acatá-la. O consumo exige
um ato pensado, que se estrutura pelas organizações sociais dos sujeitos, nas
mediações entre ele e o grupo social ao qual pertence. A escola era um desses
espaços de mediação do consumo para esses jovens.

A RELAÇÃO DOS JOVENS COM O CINEMA NA ESCOLA

Ao analisarmos as narrativas dos jovens quanto ao cinema no contexto educa-


cional, identificamos dois pontos que merecem destaque: a proposta expressa
no currículo formal da escola e a afirmação dos jovens quanto ao aprendizado
com o cinema.

40 | Comunicação, audiovisual e educação


Na matriz de organização curricular organizada pelo EMI, havia duas disci-
plinas – Comunicação crítica e Projetos experimentais em comunicação –, que
marcavam a proposta de formação constituída em atividades teóricas e práticas,
afim de que os alunos pudessem ter contato com produtos de diferentes estilos e
gêneros de filmes, como experiência para o desenvolvimento de seus conteúdos.
A proposta não se baseava em fechar um modelo, com regras e formato único de
cinema, pelo contrário, se abria as múltiplas criações, leituras e olhares.
No entanto,3 a escola precisava definir qual seria a vertente de formação e fez
a opção pelo cinema, devido a suas múltiplas dimensões, entre elas a linguagem,
que é o eixo principal desenvolvido no currículo do EMI, como nos disse uma
das professoras:

A gente queria que eles pudessem ampliar a compreensão desse processo opera-
cional e dominar minimamente a discussão sobre a linguagem, que gramática é
essa, que sentido a gente constrói com essa linguagem, quais as possibilidades es-
téticas que essa linguagem oferece. Tanto do ponto de vista da imagem enquanto
texto (entendido no seu sentido ampliado); então a gente queria aprofundar isso.
O currículo todo, na verdade, foi muito mais pensado nessa compreensão da lingua-
gem do que nas técnicas da apropriação e manuseio de equipamentos. (Professora
Implementadora)

O estudo da linguagem cinematográfica envolve discussões densas, que in-


corporam à estética proposições que potencializam a crítica diante do que é as-
sistido. Como exemplo, lembremos de alguns recursos como a música, o plano,
a luz, a sequência e o ângulo de filmagem que expressam uma intencionalidade
do diretor para com o espectador.
As proposições em trazer ao contexto escolar discussões nesse nível, ex-
pressam a preocupação em valorizar a dimensão cinematográfica da cultura
do cinema, a dimensão social, política e cultural da sociedade contemporânea.
E, também, proporcionam o desenvolvimento dos alunos, nos campos cognitivo
e afetivo. Vivenciar atividades de construção e desconstrução do cinema é um
potencializador para o desenvolvimento de aprendizagens variadas aos sujeitos
participantes. (FRESQUET, 2013)

3 As entrevistas foram cedidas a autora no segundo semestre do ano de 2011. Selecionamos jovens do 2º e
3º anos do ensino médio e uma das professoras implementadoras do projeto no EMI.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 41


Faz sentido se, no currículo para aprendizagem, o cinema era destaque e os
jovens da pesquisa, ao serem questionados sobre esse tema, tinham muito re-
pertório de diálogo. Diante disso, era recorrente a afirmativa que o olhar mudou
a partir do convívio com os filmes. Demonstravam que estavam vendo os filmes
com mais conhecimento teórico, de uma forma mais elaborada, mais profunda
teoricamente, do que antes de estarem na escola vivenciando essa prática.
É o que nos disse uma das alunas, nos fornecendo pista para refletirmos
sobre essas percepções dos jovens.

É legal de ver que a gente muda vários fatores na nossa vida. A gente olha as coi-
sas de uma forma bem diferente, tanto o filme quanto a vida. É até ruim a gente
falar que a gente só aprendeu um olhar crítico, não é não, a gente aprendeu
a olhar nossa vida, né? Nossa vida toda já é um filme e pode mudar a qualquer
momento, cada cena. (Estudante 1, grifo da autora)

O olhar que a jovem demanda nessa fala está relacionado à aprendizagem


construída pela prática escolar, pela mediação do professor tanto nas aulas de
Comunicação crítica quanto nos momentos mediados pelos pesquisadores da
universidade. Os jovens apontam que a experiência do EMI “mudou o modo de
ver os filmes”, seus modos de ler, e que aprenderam não só “um olhar crítico”,
mas um olhar para a vida. Aprenderam a olhar a vida deles, contribuindo com
o sentido de formação crítica diante do cotidiano da sociedade. Para Duarte
(2009), utilizar a linguagem cinematográfica na educação possibilita construir
outros sentidos para discursos já vistos e desdobrados, dando ao receptor uma
visão mais completa do mundo, sintonizado com seu tempo e espaço, ensinan-
do, dessa forma, a busca de novos sentidos da realidade de forma autônoma,
ou seja, constitui uma prática social importante que atua na formação geral dos
sujeitos e contribui para distingui-las socialmente.
Quando os jovens afirmavam que passavam a “olhar as coisas de forma di-
ferente”, “tanto nos filmes quanto na vida”, nos apontam que há uma dimensão
formadora na experiência vivida por eles. Na compreensão de Bergala (2008), o
cinema tem um vasto horizonte de possibilidades, independe de estar o profes-
sor atrelado a uma disciplina e conteúdo específico, mas sim disposto a pensar
o cinema como arte e não como puro ato impensado. E afirma: “a arte é o que
resiste, o que é imprevisível, o que desorienta num primeiro momento. A arte

42 | Comunicação, audiovisual e educação


tem que permanecer, mesmo na pedagogia, um encontro que desestabiliza o
conjunto de hábitos culturais”. (BERGALA, 2008, p. 39)
Nesse sentido, a proposta não é aprisionar o filme a um modelo de constru-
ção e interpretação, mas propor uma possibilidade de expressão oral em grupo,
exercitando outras possibilidades ao visto para criar novas hipóteses e ampliar a
leitura, pensando em questões como a apresentação do filme, a música, a luz e os
elementos de composição. O espectador é envolvido e interage no contexto geral
do filme pela fruição estética, abrindo-se para o enriquecimento da sensibilida-
de e novas possibilidades ao dialogar com seus pares, é um encontro com a arte
e como espaço de alteridade – esta entendida, como possibilidade de diálogo,
troca, ampliação do olhar mediante a troca e opiniões dos sujeitos. (BERGALA,
2008)
As narrativas que os jovens trouxeram sobre o vivido no contexto da escola,
do cotidiano com o cinema, nos indicam uma relação que movimenta seus pen-
samentos ao longo do tempo escolar, como o expresso na fala a seguir:

A gente fica o dia inteiro conversando, viu aquela cena? Viu como é maneiro? Viu o
que o diretor quis passar? Não só o dia inteiro, mas o ano todo, a gente fica: lembra
aquele filme? Aquele? Qual? Um vai lembrando, vai lembrando... E vai comentan-
do, que fez tal coisa, e vai todo mundo lembrando. (Estudante 2)

O filme toca, envolve, fica na mente, provoca reflexões, fazendo com que
essa troca em conversas coletivas se alongue na escola para além do momento de
exibição do filme. Medeiros (2009, p. 5) – a partir do que traz Benjamin – explica
que a “experiência de ver um filme não é apenas lazer, mas uma experiência es-
tética, uma maneira de ver o mundo”. Nesse sentido, o ato de ver e debater filmes
se constitui como experiência prazerosa, de troca de saberes e de construção de
subjetividades. O ponto de vista que cada um constrói sobre o filme é fruto do
próprio aprendizado e se expressa, por exemplo, ao se pensar na linguagem que
caracteriza o cinema.
Os jovens pesquisados estavam em tempo integral na escola e nela inicia-
ram as práticas com e para o cinema, sinalizando o desenvolvimento no olhar
de uma maneira diferente, ampliada, tanto para interpretar melhor o desenrolar
das narrativas fílmicas, quanto para o aprendizado geral a partir do cinema.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 43


AS NARRATIVAS DOS JOVENS SOBRE O CINEMA NO
CONTEXTO FORA DA ESCOLA

O cinema no contexto da prática social está inserido num espaço público que
apresenta aos espectadores a representação de aspectos da vida social, portanto,
a escolha sobre o que e o como assistir se apoiam num ato pensado de consumo.
No ilimitado que se mostra o espaço fora da escola, o cinema aparece carregado
de sentidos, construções e reflexões pessoais, provido de diferentes experiências
e bagagens dos sujeitos da pesquisa.
Dessa forma, procuramos por pistas que nos indicassem os caminhos para
compreender os aspectos centrais dos sentidos construídos pelos sujeitos da
pesquisa, quanto ao contexto externo à escola, aos espaços não tutelados pela
instituição escolar. Dentro desse contexto, elencamos três aspectos de diálogo
e reflexão trazidos para este artigo: os modos de assistir a filmes; os critérios de
escolha desses filmes; e a relação entre o cinema e a cibercultura.
Em “modos de assistir a filmes”, buscamos identificar quais as práticas dos
jovens quanto aos modos de assistir e percebemos que os principais são: “assistir
em grupo e assistir com alguém que tem o mesmo aprendizado” e “ver tudo ao
mesmo tempo”. Esses diferentes modos de assistir apontam que assistir a filmes
não se restringe apenas ao cinema e se interliga por diferentes contextos de suas
vidas.
Assistir em grupo com colegas da turma agrega o sair junto, o assistir a um
filme escolhido coletivamente por eles, ir ao cinema e conversar sobre o visto. No
depoimento, a jovem expressa sua preferência por assistir acompanhada:

Ah, tem! Com certeza tem diferença [ver filmes acompanhada]. Porque eu acho que
sozinho não tem graça, né? Tem que ouvir a opinião dos outros. Eu gosto de ouvir a
opinião dos outros. Eu gosto de saber o que a pessoa tá pensando. Discutir é ótimo!
Mas discutir num sentido bom. Ver o que a pessoa acha, o que a pessoa não acha.
(Estudante 3)

O cinema tem o caráter fundamental do coletivo, ele nasce com a premissa


de se aproximar das massas. Para Benjamin (1994), essa é a característica revolu-
cionária do cinema: a recepção de modo coletivo, diferente da pintura, que tra-
dicionalmente em épocas passadas era destinada a poucos. Pensando então, que

44 | Comunicação, audiovisual e educação


o cinema é esse espaço de apreciação coletiva da obra, tomemos outra situação,
em que a preferência em assistir a filmes se dá pelo coletivo num debate com
sujeitos “que tem o mesmo aprendizado”, jovens colegas de escola que cursam
o EMI.

Eu já me dei mal por causa disso por que eu já tentei ver filme com alguém que
não entende do que a gente tá falando. E eu sou o tipo de pessoa que quando eu
aprendo alguma coisa eu fico naquilo o tempo inteiro, então eu vejo um filme e fico:
‘Caraca, ângulo aberto, ângulo não sei o quê...’, aí a pessoa pergunta: ‘O que você
tá falando?’, e eu: ‘Não, nada não, um negócio aí’. Eu tentei ver filme com o meu
namorado, mas não deu. Ele desistiu de ver filme comigo porque eu falava mais dos
ângulos que da própria história do filme, e o final do filme eu não gostei, podia ter
terminado de outro jeito. E ele: ‘Ah, eu gostei do filme, eu não reparei em nada não’.
‘É claro que você não reparou em nada, só repara quem tem aquela prática’.
(Estudante 1, grifo da autora)

Ao que parece, o sentido de assistir com “quem tem o mesmo aprendiza-


do”, assim como fala a jovem ao dizer que “só repara quem tem aquela prática”,
demonstra que ela fala do ponto de vista de explorar a técnica, a imaginação e
criatividade, de “brincar” com a composição da narrativa apresentada pelo filme
com alguém que não vai achar “chato” ou enfadonho conversar sobre o ponto de
vista várias vezes. O “ver com o outro de mesmo aprendizado” configura uma co-
munidade interpretativa. Entendemos “comunidade interpretativa” segundo a
definição de Varela (1999), ao afirmar que os sujeitos se agrupam compartilhan-
do regras e estratégias de leitura que fixam uma aceitabilidade interpretativa,
permitindo a fluência na comunicação, o intercâmbio e a coincidência de inter-
pretações. O grupo se faz pelo sentido e pela ideologia comum que estrutura a
recepção e o desejo de estar junto.
Preferir assistir com alguém do mesmo aprendizado significa, do ponto de
vista do consumo, que este se atrela a uma linguagem coletiva, de grupo. Assim
como aponta García Canclini (2010), o consumo é cultural, sua base se justifica
nas relações sociais, mediadas por diferentes interesses, um deles é o do gru-
po. Nesse sentido, o cinema dentro da escola repercute nos modos de assistir
o cinema fora da escola, mostrando o entrelaçamento de ambos os espaços no
cotidiano dos jovens.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 45


Sabemos que na contemporaneidade os modos como estamos em contato
com as tecnologias e, principalmente como consumimos os produtos das mí-
dias digitais, modificam as maneiras como estamos inseridos e participando do
mundo. Vejamos o que expressam os jovens sobre essa temática: “Eu procuro os
meios tradicionais gosto de ir ao cinema, alugar, comprar, gosto muito de comprar
porque gosto de assistir mais de uma vez. Minha mãe se revolta comigo porque às
vezes eu passo uma semana vendo o mesmo filme”. (Estudante 4)
Outra jovem relata que assiste #tudoaomesmotempo: “Eu vejo filme, fico no
Facebook e ao mesmo tempo no MSN” (Estudante 3), o que nos mostra que o con-
texto das mídias atuais reorganiza o cenário cultural (CANCLINI, 2010), havendo
um processo natural de diminuição de determinada prática social, para emer-
gir outras. São tensões em relação ao território geográfico e social em torno da
desterritorialização e reterritorialização, a exemplo do próprio cinema, que num
processo de adaptação se encontra voltado para diferentes mídias. Isso quer di-
zer que os meios clássicos de manifestações culturais dividem espaço com ou-
tros meios, como a cibercultura.
Enquanto na primeira situação, o jovem assiste ao filme de uma forma mais
lenta, “degustando”, apreciando as cenas, em outra, não se incomoda em assistir
ao filme e estar conectado a outras mídias. Essas são formas distintas e atuais de
consumo. A afirmação “Gosto muito de comprar porque gosto de assistir mais de
uma vez” demonstra um consumo pensado de escolha de gosto e de aquisição
material. Ele compra não só para ter o produto, mas também pela possibilidade
de assistir mais de uma vez. O modo de consumir desses jovens se faz de modo
interativo, demonstrando o contexto social desses sujeitos frente às mudanças
na comunicação e nos artefatos da tecnologia.
Seguindo para os “Critérios de escolha de filmes”, percebemos que o fator
emocional se mostrou presente. As jovens buscam por emoções coerentes com
seus estados de anseio e escolhem os filmes de acordo com o que estão sentindo.
“Quando a gente está na lama, aí vê coisa pra deixar mais na lama ain-
da!”. (Estudante 5) “Eu pego mais comédia romântica e drama pra eu chorar”.
(Estudante 3)
Enquanto ir ao cinema é não saber bem ao certo o que vai pulsar de emoções,
as jovens demonstram um querer ir ao encontro da emoção, combinando o sen-
timento pessoal com o articulado na ficção. As emoções que o cinema pode des-
pertar são inúmeras e refletem-se na tela e no espectador. Solomon (2015) afirma

46 | Comunicação, audiovisual e educação


que o ser humano tem uma inteligência emocional que se forma pelas ações de
participação no mundo, uma combinação que compreende a ética e a moral so-
cial do lugar referência para o indivíduo. O que se relaciona com as diferentes
manifestações do indivíduo e da plateia sobre um filme, reações diferenciadas
para o mesmo filme.
Outro fator que se mostrou presente quanto ao critério de escolha é a in-
fluência dos membros da família. Considerando que o contexto das mídias se
inicia pelas práticas em família e que o mesmo se constitui como motivador e
exerce influência nas escolhas dos jovens, destacamos três falas que exempli-
ficam a participação da família na escolha dos filmes a que assistem os jovens
da pesquisa. “Minha avó tem uma caixa com mais de 500 filmes só de terror, ela
vê muito, eu peguei um filme lá que tinha dez dele, quando eu vou lá trago muitos
vejo e devolvo”. (Estudante 2) “Lá em casa minha mãe já deixa direto no canal de
filmes. Aí passa um filme e a gente se anima de ver”. (Estudante 1)

Esses dias eu fui falar com o meu irmão, que ele está morando longe, daí eu fui pegar
uns filmes com ele e tinha um filme que ele baixou: Scott Pilgrim, é um filme de um
livrinho, eu acho que é um Mangá, não lembro. Aí é um filme muito doido, cheio de
coisa louca, ele tem que derrotar os sete reis malignos, que são os sete ex-namorados
da garota que ele quer ficar, aí eu comecei a rir do filme, achei legal, e perguntei:
‘Onde você baixou?’. (Estudante 5)

Queremos enfatizar que a família exerce um papel formativo na cultura des-


ses jovens ao participar de forma muito próxima de suas escolhas. Avó, mãe, ir-
mão participam da formação dos jovens na relação com o cinema. No capítulo
de Fernandes, Cordeiro e Gatto (2012), os alunos de pedagogia narram situação
semelhante trazendo as suas memórias nos contatos com o cinema e a família
permanece como referência nos consumos da infância. É possível pensar que a
narrativa também se faz pelo contexto do cinema quando esses jovens são mar-
cados com a história de sua experiência com a família nas escolhas que fazem
ao longo da vida nos consumos realizados muitas vezes pelas questões afetivas.
Longe de ser o gosto pelo cinema um processo individual e isolado de outras
práticas, ele se encontra, como percebemos nas falas dos jovens, inserido num
contexto de socialização e práticas comuns de consumo.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 47


Nesse contexto, o cinema como prática social e cultural, conforme apontam
autores como Duarte (2009), se reafirma como espaço de socialização e forma-
ção, a experiência com o cinema pode suscitar marcas que o sujeito carrega ao
longo da vida, tornando-se necessário o aprendizado para os diferentes aspectos
em que o cinema se insere hoje.
Ao buscarmos pela relação do cinema com a cibercultura, destacamos as
buscas/pesquisas aos filmes e as narrativas sobre o assistido. Logo de início, uma
das jovens nos diz que usa a internet para procurar por novidades (se refere aos
lançamentos). Essa questão representa um simbolismo universal sobre a inter-
net. A busca é uma ação de pesquisa, de escolha e de compreensão diante do
achado. E isso não é tão fácil quanto parece, pois estamos falando de um banco
de dados global, com abas, links que redirecionam a outras interfaces, fazendo
essa “pesquisa na internet” se tornar cada vez mais complexa.
Vejamos os comentários de duas jovens a respeito da pesquisa de filmes na
internet: “Eu pesquiso filme pelos atores e diretor. Vou no trailer e site. Escrevo na
pesquisa do Google, não entro em site específico”. (Estudante 2) “Eu procuro muita
resenha sobre o filme. Resenha mesmo, a resenha original. Aí é legal, a gente faz
uma comparação boa, e dali a gente tira o que interessa”. (Estudante 3)
As falas das duas jovens demonstram a complexidade do pesquisar na inter-
net. Aqueles que o fazem precisam saber como encontrar o que desejam. Utilizar
a varredura por atores e diretores é um critério, ver o trailer é outro, buscar rese-
nhas e críticas sobre os filmes é uma outra forma. A internet se tornou um meio
muito mais fácil e rápido para a realização de pesquisas.
Diante do domínio das redes sociais em fazer com que as informações cir-
culem, Recuero (2009) sinaliza sobre a falta de credibilidade que podem estar
contidas em alguns desses conteúdos que circulam. Qualquer indivíduo pode
gerar conteúdos que alimentam esse espaço de circulação, recirculação e discus-
são de informações nas redes de notícias. O que se torna complexo é a condição
de percepção sobre o que é uma notícia com conteúdo verídico ou um boato,
exigindo que os consumidores das redes sociais sejam mais atentos e críticos aos
conteúdos. Tanto pela possibilidade de ser uma notícia falsa, como pela carga
ideológica contida nela.
Procurando pelo cinema nas postagens dos jovens da pesquisa pelo
Facebook, encontramos diferentes maneiras para essa relação. Assim como o
cinema, a cibercultura pode causar diferentes sentidos ao olhar. Para Lemos e
Cunha (2003, p. 5), a cibercultura vem mudando as formas tradicionais de comu-

48 | Comunicação, audiovisual e educação


nicação, pois “trata-se da migração dos formatos, da lógica da reconfiguração e
não do aniquilamento de formas anteriores”.
Os autores enfatizam que apesar da reconfiguração fazer parte de uma das
três “leis”4 da cibercultura, ela não substitui outras formas da comunicação, e
para entendermos melhor o que isso significa, nesse momento, trazemos três
produções realizadas/compartilhadas pelos jovens no Facebook a respeito de
filmes. Aparecem cenas de filmes com falas de personagens como no filme do
Batman, frases de cineastas, no caso o Woody Allen, e o remake de autoria dos
jovens sobre o filme Os normais 2. As situações compartilhadas são de páginas
com temas relativos a filmes, como “Vi nos filmes” e “Crítica livre de cinema”,
demonstrando que navegam por diferentes espaços relacionados a esse tema.

Figura 1 - Postagem sobre o filme Batman: o cavaleiro das trevas


Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 7, 2012.

No primeiro post, com 3.999 compartilhamentos, tem uma fotografia do


filme Batman: o cavaleiro das trevas, em que a combinação do personagem vi-
lão da trama e a frase “Se você é bom em alguma coisa, nunca faça isso de graça”
(Estudantes 7, 2012) montam o quadro que para nós representa um juízo de valor
social.

4 Para Lemos (2005), as três leis da cibercultura são: a livre emissão da comunicação; a conexão em
rede que a tecnologia propicia; e a reconfiguração de sentidos que os sujeitos fazem ao interagir com
interfaces variadas.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 49


Figura 2 – Postagem sobre Woody Allen
Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 5, 2012.

Figura 3 – Postagem sobre Remake: Os normais 2


Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 6, 2012.

50 | Comunicação, audiovisual e educação


No segundo post, a criação combina a frase de efeito dita por um cineasta,
com um olhar mais atento, percebemos que esta foto não representa a imagem
atual dele. O foco desse post é a frase e o efeito que ela pode trazer na publicação.
No terceiro post da reconfiguração, destacamos a postagem do Remake: Os
normais 2, produzido pelos alunos do EMI.
Santaella (2008) compreende os espaços da internet como híbridos, que
abrigam ao mesmo tempo, o sujeito físico, real, no contexto do virtual. Essa in-
serção gera modificações que atingem tanto o sujeito quanto os contextos, mo-
tivando outros sujeitos à mesma prática e a outras criações. Procurando refletir
sobre as interseções nas postagens apresentadas, percebemos que duas delas
são compartilhadas – transferida de um lugar para outro –, enquanto a outra
postagem é criação dos jovens. No Facebook, é comum essa prática, a autoria vai
se movimentando, tornando-se uma obra aberta. Santos (2011, p. 88, grifo nos-
so) contribui para a compreensão do que se constituem os processos de autoria,
quando falamos da cibercultura, ao afirmar o seguinte:

Os produtos culturais que emergem da autoria e da comunicação in-


terativa são em potência hipertextos, isto é, textos que se conectam a
outros textos através da polifonia dos sentidos e significados que são
criados nos contextos on-line e off-line. Além da hipertextualidade
construída nas interfaces on-line, os conteúdos deixam de ser paco-
tes fechados e passam a ser universo semiótico plural e em rede. Seus
links, elos, levam o leitor a adentrar com autoria, leituraescritaleitura
em conteúdos estáticos e dinâmicos que se apresentam em diversos
gêneros textuais. Cada sujeito que interage com o conteúdo hipertex-
tual articula-o com sua história de leitura, produzindo novas cone-
xões físicas e mentais e diversos desdobramentos desses conteúdos
em seus cotidianos.

As práticas culturais de nossos tempos movimentam os espaços com dese-


nhos que incorporam diferentes saberes e percepções de mundo. Nesse sentido,
assim como o cinema, a cibercultura também é um elemento de mediação e edu-
cação. Percebemos com isso, como a cibercultura é impulsionadora de práticas
a favor da formação cognitiva e humana dos jovens e que assim como o cinema
não se prende a um único contexto.

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 51


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aponta que ambos os espaços e tempos – incluindo aí também a


cibercultura – constituem-se como locais de acesso, fruição e debate sobre os
filmes. Percebemos que o aprendizado, de forma geral, começa na escola e se
estende a outros espaços. O fora da escola é o que mais marca a recepção, ao
pensarmos sobre o espectador e as construções que esse faz a partir do cinema.
Esses jovens se constituem como espectadores tanto na escola quanto nos de-
mais espaços sociais. No entanto, sobressai na pesquisa o papel da escola nessa
formação já que demonstram que o aprendizado maior recai sobre a narrativa
dos filmes e sobre a linguagem cinematográfica, aspectos do currículo da escola
na formação profissional.
A reflexão que traz um dos jovens do EMI ao nos dizer: “Eu não estava fa-
zendo qualquer coisa, não ‘tava’ só assistindo filme pra aprender como os outros
fazem filmes, mas também criar uma identidade nos nossos filmes” aponta que
o sentido construído por esse jovem relaciona-se aos processos de aprendi-
zagem que fazem parte do seu cotidiano nesse momento. Ele não quer imitar
um cineasta, quer aprender com ele e sobre ele para desenvolver a sua criação.
Na perspectiva do cinema educação, Bergala (2008, p. 35) defende “uma aborda-
gem do cinema como arte: aprender a tornar-se um espectador que vivencia as
emoções da própria criação”.
Nesse sentido, trabalhar o cinema na escola num horizonte formativo, pro-
cessual, é também buscar por uma pedagogia que dá sentido ao ver. Vimos que faz
parte da prática escolar do EMI a exibição de filmes, tentando criar um ambiente
semelhante ao do cinema, ao criar produções com/sobre o cinema. Pelo que nos
disseram esses alunos, pode-se viver experiências de transformação do olhar.

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54 | Comunicação, audiovisual e educação


3
“Cinema é um acontecimento”:
investigando a prática cineclubista do
Cine cch na universidade
Thamyres D aleth es e
Ad rian a Ho ffm ann

INTRODUÇÃO

O presente texto traz um recorte da pesquisa de monografia de Dalethese (2013),


realizada no contexto de um cineclube universitário. Trata-se do projeto de
extensão “Cine CCH: aprendizagens com o cinema”,1 da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O projeto Cine do Centro de Ciências
Humanas (CCH) constituiu-se um dos eixos da pesquisa O cinema e a narrativa
de crianças e jovens em diferentes contextos educativos, cujo intuito era investigar
as relações construídas com o cinema em espaços de educação formal, como o
ensino fundamental, médio e superior. As ações desse projeto foram sempre fei-
tas em diálogo com outros espaços de educação, gerando trocas e parcerias de
interessantes conversas.

1 O projeto Cine CCH realizou-se durante sete anos no Auditório Paulo Freire do CCH da Unirio sob
a coordenação da prof.ª Adriana Hoffmann. Esse projeto foi realizado de 2010 a 2016 e foi o campo
de pesquisa desste estudo e de outros realizados no grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE) como as anteriormente apresentadas neste livro. Thamyres, uma das au-
toras deste capítulo foi participante do projeto, bolsista e depois realizou uma monografia que está
resumida neste artigo a partir das conversas com os sujeitos do projeto.

| 55
Em tempos de culturas midiáticas, é impossível pensar as relações e práti-
cas humanas sem a presença de artefatos audiovisuais. Percebe-se com cada vez
maior intensidade o caráter intrínseco que essas mídias assumem nos modos de
existência na contemporaneidade, na medida em que elas perpassam e se entre-
laçam continuamente às nossas experiências e vivências cotidianas. Em meio ao
extenso repertório midiático, o cinema se constitui um desses meios significativos
que certamente desempenha papel relevante na vida social e cultural das pessoas.
Dentre as ações pedagógicas e coletivas desempenhadas pelo cinema, des-
taca-se o papel dos cineclubes como ambientes favoráveis à socialização e difu-
são cultural. Entende-se que a dinâmica de reunir grupos para assistir e debater
filmes pode se constituir em uma prática fundamentalmente educativa que se
consolida pela criação de espaços de “significação e ressignificação de conhe-
cimentos variados”. (SILVA, 2009, p. 146) Desse modo, este capítulo traz o Cine
CCH como campo de investigação e apresenta as falas tecidas ao longo de entre-
vistas com alguns dos frequentadores do projeto a fim de perceber os sentidos
que esses participantes atribuíam ao cinema no processo de formação acadêmi-
ca que atravessavam. Trata-se de um resumo de alguns dos achados da pesquisa
no cineclube que também deu origem a outros artigos anteriores. (FERNANDES,
2010; FERNANDES; DALETHESE, 2015; FERNANDES; RIVAS; MAIA, 2012)
O projeto Cine CCH realizou-se vinculado à Escola de Educação da Unirio
e, ao longo das sessões, percebeu-se que mesmo recebendo diferentes públicos
de outros cursos como Música, Teatro, História, Engenharia etc. era do curso
de Pedagogia o público majoritário em praticamente todas as exibições. Talvez,
consequentemente, pela maior divulgação entre seus estudantes e professores.
Portanto, foi com base nos cadernos de assinatura na entrada das sessões do ci-
neclube que levantou-se o número médio de participantes por sessão, entre 80 e
100 participantes. A partir desse critério, foram selecionados e convidados para
entrevistas dez estudantes desse curso, pela assiduidade e expressiva participa-
ção nas sessões do Cine CCH.

NARRATIVAS COM O CINEMA, MEMÓRIAS DE VIDA

Ao longo do projeto, tivemos a participação de vários artistas e, dentre eles, a


Juliana Damiani, que trazemos aqui seus cartazes. Ela foi nossa voluntária e,

56 | Comunicação, audiovisual e educação


infelizmente, nos deixou, mas será lembrada aqui pelos seus lindos cartazes que
fizeram parte da nossa história e também fazem parte desta pesquisa. Todos os
cartazes trazidos neste artigo foram da autoria dela.

Figura 1 – Cartaz divulgação do Cine CCH – Juliana Damiani (in memorian)


Fonte: material de pesquisa.

Os estudantes, quando questionados sobre suas relações com o cinema, fa-


lam sobre suas histórias de vida com o cinema e percebemos que a maior parte
demonstra grande envolvimento, revelando a presença expressiva do cinema em
suas vidas, desde a infância. Algumas falas são entretecidas por muita emoção,
desejos e perspectivas de vida, conotando valores significativamente afetivos e
sensíveis com o cinema. Relatos que expressam sempre experiências coletivas,
situações, hábitos compartilhados com familiares ou círculos de amizade entre-
meados por lembranças afetivas. Em determinadas falas,2 os próprios sujeitos

2 Foram realizadas ao final do ano de 2012 cerca de 10 entrevistas com frequentadores assíduos do Cine
CCH até aquele momento, as quais nos permitiram ampliar a percepção das relações construídas com

“Cinema é um acontecimento” | 57
parecem reconstruir suas trajetórias de vida permeadas pelo cinema, reconhe-
cem o papel relevante do outro – de um parente próximo, de amigos – na forma-
ção dessas tramas, como apontam as falas seguintes:

Eu sempre gostei muito de cinema, sempre fui envolvida de alguma forma. Quando
eu era criança, assim, eu ficava perturbando o meu pai, ia na locadora toda sema-
na, alugava os mesmos filmes toda semana, aquela coisa de criança. Um hábito lá
em casa. Porque bem ou mal meu pai me levava toda semana na locadora, a gente
ia, alugava os filmes. (Vanessa)

Eu nasci numa família que ia periodicamente ao cinema, então quando eles iam
eles me levavam. Então, na minha infância eu ia pra esses filmes que tão em cartaz,
infantis, Disney, essas coisas, eu sempre ia com os meus pais. Depois que a gente se
desprende desse núcleo familiar, de programinhas tão familiares e, digamos, mais
próprio da infância e da criança, eu comecei a ir ao cinema, claro, por conta pró-
pria e fui diminuindo um pouco o ritmo. (Igor)

Eu lembro que, pequena, uma vez minha mãe levou a gente ao cinema para poder
ver Xuxa (risos). Todo mundo, eu e minhas irmãs pequenas indo ver Xuxa. A lem-
brança que eu tenho melhor da minha infância no cinema. E depois eu já lembro
muito vendo filme, que lá em casa todo mundo gosta muito de ver filme. (Sinara)

Na compreensão da narrativa em Benjamin (2012), os relatos compartilha-


dos nas entrevistas apresentam sentidos intencionalmente criativos e inven-
tivos de contar e pensar a própria história. Ao convidar os sujeitos a revisitar
suas histórias de vida, os sujeitos trazem das memórias espaços e tempos dos
passados que são entrelaçados com o hoje, intercambiando experiências de di-
ferentes tempos e lugares. No processo de rememorar, eles desencavam, sele-
cionam, imaginam e refletem sobre filmes, pessoas, gestos, comportamentos
e sentimentos que perpassaram suas trajetórias de vida com o cinema. O valor
narrativo nesse movimento de contar suas histórias reside na possibilidade de
confrontar experiências passadas com os sentidos atribuídos no presente. Desse
modo, as lembranças, quando narradas, vão sendo elaboradas através dos olha-
res de hoje, o que configura movimentos de reconstruir essas trajetórias.

o cinema ao longo de suas trajetórias de vida. Optamos por trazer seus nomes originais, tomando
esses sujeitos também como autores e autoras desse projeto.

58 | Comunicação, audiovisual e educação


Para Benjamin (2012), a arte de narrar busca na experiência sua matéria, a
fonte para ser tecida e compartilhada. Com isso, é que entendemos que toda coi-
sa narrada sempre traz marcas significativas que atravessaram e ainda atraves-
sam as identidades dos sujeitos produzidas em experiências com filmes, com o
cinema que se desdobram em espaços e tempos mais recentes.
A recorrência nos relatos em assistir determinados filmes diversas vezes ins-
tiga a necessidade em compreender os sentimentos e sentidos envolvidos nes-
sa forma de consumo. A prática de rever é significativa nos modos como eles
se relacionam com filmes. Essa necessidade da “repetição” aparece associada
a filmes marcantes, que lhes tocam ou referem-se a um tipo de filme de suas
preferências:
“Tem essa coisa de ver várias vezes. Então, eu alugava sempre o mesmo filme
e agora se eu gosto muito de um filme eu compro e fico vendo de novo e ninguém
aguenta ver comigo. Eu vejo sozinha, várias vezes”. (Vanessa) “Filme que me toca
eu não consigo assistir uma vez só. Não consigo cansar. Aquela coisa da experiên-
cia que você tem começo, meio e fim e acabou. Não. Quando eu assisto de novo, eu
acabo me emocionando, me atentando para as mesmas partes”. (Igor) “Eu gosto
muito de filmes da Jane Austen. Conhece a Jane Austen? Orgulho e preconceito,
Persuasão, Emma... Todos esses filmes eu vejo, revejo. Todo mundo que vai lá em
casa eu boto para ver, meu namorado tem que ver também”. (Sinara, grifo nosso)
E falar de cinema é também falar de filmes, que assim como as redes de ami-
zades e a família, as culturas de cinema (COELHO, 2012), também se formam nas
práticas de consumir e interagir com as imagens e narrativas fílmicas. Recorro
à definição de consumo para Nestor Garcia Canclini (2010, p. 60) que o entende
como “conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e
os usos dos produtos”. Na compreensão de que os filmes constituem elementos
culturais fomentadores de significações e sentidos do mundo, o consumo desses
bens também integra e intervém em modos de pensar, criar e agir na vida cole-
tiva em sociedade.
A prática de rever determinados filmes ou partes várias vezes é sinalizada na
maioria das falas. É interessante notar, por exemplo, a necessidade de Igor em
retomar cenas que lhe causaram emoção, de estar atento às mesmas cenas como
ele mesmo afirma. Essa repetição é, sem dúvida, associada a filmes que lhes to-
caram, provocaram vestígios que podem se configurar em experiências no sen-
tido que Larrosa (2002) nos fala. Parece então que no retorno ao filme, ou a uma

“Cinema é um acontecimento” | 59
determinada cena, há uma tentativa de ser novamente tocado, de apreender o
efeito produzido outrora. Mesmo na impossibilidade da experiência se repetir,
é preciso sempre um reencontro que reafirme as emoções, sentidos e afetos pro-
vocados naquele encontro.
A partir das referências cinematográficas que aparecem nas entrevistas
como filmes que mais gostam ou que mais lhe marcaram, como os próprios su-
jeitos dizem, os filmes são concebidos como produtos culturais que, na intera-
ção com os espectadores, se constituem consumidores e produtores singulares e
múltiplos de culturas de cinema. Tal como Larrosa (2002) conceitua o sujeito da
experiência como território de passagem, o espectador se define pela disposição
e receptividade para ser atravessado pelo filme que assiste. Assim, penso que,
quando dizem que algum filme lhes marcou, os sujeitos admitem a condição de
entrega e abertura para serem transpassados pelo filme e nele transpassar.
Outro ponto relevante que surge na maioria das entrevistas é a distinção
entre filmes fora do circuito industrial e filmes comerciais que apontam para
uma forma significativa de consumo, como compreendem e se relacionam com
filmes. Algumas denotam certo desprezo pelas produções hollywoodianas ou
comerciais, apresentando esse tipo de critério para discriminar filmes bons e
filmes ruins.
“Eu tento me informar mais sobre esses filmes alternativos porque eu não costu-
mo gostar muito do que está passando nas salas. Eu amo cinema, mas não gosto de
ver Lanterna Verde, Hulk, Batman”. (Mariana) “Como a gente mora afastado desse
eixo zona sul/centro, lá perto de casa é difícil a gente ter filmes mais assim... É mais
pastelão, blockbuster. Então, meu namorado, às vezes tá com preguiça de ir pra lon-
ge e aí a gente vai ver, sabe, esses filmes. E aí eu acho um saco”. (Vanessa) “Quando
eu digo ‘ir ao cinema’, não necessariamente numa sala de cinema com essas apre-
sentações de filmes hollywoodianos que também não são os que mais me apetecem,
mas algo alternativo, né? Estação, Cine Santa, deixa eu ver... Arteplex”. (Tiago)
Percebe-se como a criação desses valores é decisiva nos modos de escolher e
avaliar filmes, constituindo assim uma forma de ser espectador. Duarte (2009, p.
64) aponta que a criação dessas categorias repousa numa “concepção de cinefi-
lia” com a qual os sujeitos tendem a valorizar produções que abordem temáticas
mais complexas, produções experimentais e fora do grande circuito comercial
que envolvem também práticas de pesquisa e investimento intelectual sobre
cinema.

60 | Comunicação, audiovisual e educação


A grande maioria dos entrevistados faz referência ao cinema como um pro-
grama social, evento ou passeio, fazendo distinção do filme em si. Alguns entre-
vistados admitem a baixa frequência a salas de cinema, denotando outros hábi-
tos adquiridos para se relacionar com a arte cinematográfica.

É uma espécie de ritual, né? Um ritual de você ir ao cinema, de estar ali no coleti-
vo, partilhando daquela experiência de ver aquele filme, enfim, tem todo um ritual
que em casa não tem. (Tiago)

Hoje em dia, eu ir ao cinema é um pouco difícil, eu assisto filme em casa mesmo,


baixo na internet ou pego filme com alguém e assisto no meu computador. É bem
diferente, né, a sensação é outra. Na verdade, eu não tenho ido muito ao cinema
porque eu moro em Niterói e as salas de cinema que tinham lá praticamente todas
fecharam. (Aghatha)

Cinema virou um lazer um pouco difuso. É um pouco disperso hoje em dia, na mi-
nha experiência atual. Não sei se cabe falar aqui, mas eu baixo muitos filmes na
internet [fala rindo com certa ‘vergonha’], acho que não cabe, né? É pra falar de
cinema? Eu baixo muitos filmes em alta definição, coloco no meu HD externo, assis-
to o filme e a experiência é outra. Não digo nem que é melhor ou pior, mas é outra
experiência. (Igor)

O acesso a filmes pela internet, através de compra, locação de filmes em


DVD e cópias não autorizadas sobressaem como as formas que os sujeitos bus-
cam para assistir filmes. Evidencia-se com isso um consumo de filmes muito
mais relacionado com esses suportes do que a frequência a salas de cinema vista
como um “ritual”. Por outro lado, vemos que uma parte deles ainda frequenta,
com alguma regularidade, as salas de cinema tanto quanto buscam e utilizam
outros meios e recursos para consumo de filmes. No entanto, essa frequência ao
cinema tem um objetivo específico como nos aponta a fala seguinte que corro-
bora com a de outros entrevistados: “O cinema é mais um acontecimento. Estou
querendo comemorar alguma coisa, tive uma semana muito estressante, então eu
vou ao cinema”. (Juliana)
Essa imagem trazida por Juliana remete inevitavelmente às palavras de
Larrosa (2002, p. 24), que chama o sujeito da experiência de “espaço onde tem
lugar os acontecimentos”. “Ponto de chegada”, “território de passagem” ou “lu-

“Cinema é um acontecimento” | 61
gar do acontecer” são termos que o autor utiliza para se referir ao sujeito no
qual a experiência passa. Isso supõe que a experiência não é o acontecimento,
mas o que torna o sujeito vulnerável a habitar acontecimentos. Sendo assim, o
acontecimento é sempre exterior a nós, algo que não resulta das nossas ideias,
projeções, vontades e poderes. Nesse sentido, a prática de ir a salas de cinema
é sentida e tratada pela maioria como ocasião especial, “um ritual” como disse
Tiago, que não deve ser reduzida a uma situação corriqueira. A noção do cinema
como acontecimento repousa nesse entendimento de escapar temporariamente
dos regulamentos e linearidade da vida cotidiana e se lançar ao que está fora de
nós, abrir em si um caminho para que o novo e inesperado ganhem passagem.

Figura 2 – Cartaz divulgação do Cine CCH – Juliana Damiani (in memorian)


Fonte: material de pesquisa.

62 | Comunicação, audiovisual e educação


NARRATIVAS COM O CINEMA E A UNIVERSIDADE

Num segundo momento, procuramos focalizar nas entrevistas as relações que


existem e que podem existir entre o cinema e a universidade pela percepção dos
estudantes, qual o lugar do cinema, dos filmes no espaço acadêmico.

A gente está na universidade, só lê texto, vira uma coisa maçante, não que isso seja
chato, também adoro ler. Mas também é tão legal ir numa aula, diferenciar, em vez
de ler, ver um filme. A gente está ganhando tanto quanto, aprendendo tanto quan-
to, mas de uma maneira diferente, de outra forma de expressão. (Mariana)

Uma vez eu falei isso lá na Unirio, diante dos professores, uns adoraram, outros
ficaram com a cara meio torta, mas eu falo. Eu posso estar totalmente enganado,
mas é meu ponto de vista! Eu acho que o cinema é um... Não gosto da palavra dispo-
sitivo, mas na falta de outra eu vou falar: é um dispositivo formativo privilegiado.
E qual é a crítica que eu faço? Que na universidade, na Unirio, no curso de Pedagogia
mesmo, muitos professores, a despeito de ter uma discussão de cinema no curso de
Pedagogia não entendem, do meu ponto de vista, o cinema como essa possibilidade
de formação. Ainda tem – isso do meu ponto de vista – um ranço de achar que o
cinema é pra discutir a matéria. Porque vai quando o filme tem a ver com a minha
disciplina, se não tem, vou perder o tempo da aula, como se a aula garantisse a pes-
soa discutir questões... Entendeu? E aí você perde uma experiência que é formativa
do ponto de vista estético, do ponto de vista ético, e do ponto de vista epistemológico
mesmo. (Tiago)

Os relatos acima apontam, sob diferentes perspectivas, a constatação de


um tratamento escasso e distante que o cinema encontra no contexto de forma-
ção universitária e defendem o seu valor como possibilidade de aprendizado,
diálogo e experiência. Assim como Mariana, Tiago também contesta a maneira
secundária com que o cinema é contemplado nas práticas curriculares, ressal-
tando sua potencialidade formativa tanto quanto a prática recorrente de leitura
de textos no curso que frequentam. Tiago acredita que, em geral, os professores
tenham ainda receios e dificuldades em trabalhar com o cinema em suas diver-
sas vertentes de abordagem, como ele mesmo cita, que podem ser pelo ponto de
vista epistemológico, estético, ético, em detrimento de reduzir um filme como
ferramenta de apoio disciplinar.

“Cinema é um acontecimento” | 63
Eu não iria evitar em citar o próprio filme numa dissertação, num trabalho. Eu
já fiz isso! Uma música, alguma obra de arte... Por que não um filme? Então, se eu
estou assistindo um filme na universidade que possa ter me tocado e que eu posso
fazer uma relação com a minha vida e com a minha pesquisa, com o que eu leio, por
que não? Eu acho que a gente tem que ter o livre arbítrio e a universidade tem rom-
per... Não romper, apenas, com alguns modelos, mas deixar com que a própria vida
entre na formação. E quando começa a pesquisa, será que você não pode trazer um
pouco do que você vê, do que você faz atualmente para a pesquisa? (Igor)

Essa fala deixa transparecer como o cinema já é referência na vida cotidiana


dele e essa forma de ver e pensar o mundo com e através de filmes esbarra nas ló-
gicas convencionais e hegemônicas de pesquisas acadêmicas. Essa postura é um
desafio para se pensar em possibilidades outras de produzir, refletir e circular
o saber científico, pelas quais também sejam legitimados processos discursivos
e investigativos promovidos com a linguagem cinematográfica. É interessante
notar, pelo relato de Igor, o reconhecimento de como a relação com filmes pode
tomar rumos transformadores. Como o próprio estudante afirma, um filme pode
desestabilizar o pensamento, subverter formas rígidas e naturalizadas de con-
ceber o mundo que, também, estão imbricadas em formas de ser e estar na uni-
versidade. Se é na abertura e exposição ao outro que a experiência nos acontece,
como nos fala Larrosa (2002), um filme é um possível outro para nos atingir, nos
arrebatar e formar.
Essa percepção do caráter formador do cinema construída dentro da univer-
sidade é evidenciada em outras falas, como Sinara e Lúcia, que sinalizam para o
que já havia sido apontado pelos outros colegas, o cinema como parte inerente
ao cotidiano e, portanto, já atravessa o meio universitário.

Faz parte, da universidade, da escola, da nossa vida como um todo. O cinema tam-
bém é uma forma de aprendizagem. As pessoas não enxergam dessa forma. E a gen-
te está aprendendo, está crescendo, amadurecendo. (Sinara)

É uma arte, né. É uma leitura, uma construção, uma linguagem que o homem fala
do seu cotidiano, do que afeta, dos seus incômodos, inventa, inventa tanta coisa...
É muito bonito. Tem a literatura que já é uma loucura, né, e o cinema... então!
A gente aprende muito com o cinema. (Lucia)

64 | Comunicação, audiovisual e educação


Apropriando-se das palavras de Lucia, esta pesquisa acredita que o cinema
que afeta é o que nos forma, e, incomodados, nos afetamos e nos (co)movemos
para formar o outro, a realidade. Nesse exercício de narrar o cinema dentro da
universidade, eles não só problematizam o lugar que ele ocupa no âmbito aca-
dêmico, como também buscam pensar nas pontes e tramas entre o cinema e a
própria formação cultural e social.

Eu acredito que ele (cinema) deve ser incorporado na universidade de uma forma
planejada e sistematizada mesmo, mas sem com isso perder a participação coleti-
va, espontaneidade, atendendo a demanda das pessoas. [...] Até porque, por exem-
plo, na faculdade de Pedagogia, sobretudo, você vai trabalhar com professores e o
professor para desenvolver uma demagogia da leitura, ele tem que ler. E, hoje em
dia, você já tem que ler, ler o mundo, você lê diversas linguagens, inclusive cinema.
Então, o professor nos processos de letramento de mundo é ideal que ele trabalhe
com o audiovisual porque as crianças estão sendo bombardeadas por isso o tempo
todo. Então, assim, é bom que tenha isso, em ter espaço sistematizado para você
enriquecer a sua experiência com o cinema, é importante. (Aghatha)

Vejamos que Aghatha defende a integração do cinema com a universidade


na formação dos sujeitos assim como seus colegas. Contudo, seu olhar focaliza
a experiência com o cinema, isto é, como a universidade pode contribuir na for-
mação com e para a linguagem cinematográfica. O cinema não aparece em sua
fala apenas como elemento potencializador de questões e debates para os cursos
acadêmicos, como recurso de aprendizado a ser contemplado nas práticas disci-
plinares. O que ela propõe é a importância da universidade incorporar o cinema
através de atividades, projetos e recursos materiais, no reconhecimento do valor
coletivo e acolhedor das imagens fílmicas na formação cultural das pessoas.

NARRANDO O CINE CCH, A UNIVERSIDADE ATRAVESSADA


PELA EXPERIÊNCIA CINECLUBISTA

No terceiro momento das entrevistas, buscamos trazer dos entrevistados seus


olhares e dizeres para o projeto Cine CCH e para a própria experiência construí-
da enquanto espectador/estudante. Nas falas a seguir, eles contam como conhe-
ceram o projeto, suas motivações e expectativas para participar e continuar a
frequentá-lo.

“Cinema é um acontecimento” | 65
O leitor, a Janela da alma e Carregadoras de sonhos foram três filmes em que a
professora deixou a gente ir assistir o filme e discutir depois em sala. Ela pediu pra
gente assistir, fazer uma relação com a disciplina. Sobre a questão da leitura e da
escrita. Discutir um pouco o filme, o que a gente compreendeu e como a gente enxer-
garia, como a gente poderia se situar naquele contexto da menina que não sabia ler
e pedia pra outra pessoa ler. (Igor, grifo nosso)

Tinha disciplina que você conseguia negociar: o professor não vai, mas deixa que
você vá, e tem outras que não dava pra negociar e aí não tinha jeito. No início, era
porque era disciplina. As disciplinas pediam pra levar, pra ir. Depois eu comecei a
gostar. Assim, vivendo na experiência mesmo de ver o filme e depois discutir sobre o
filme, aí comecei a gostar. Alguns professores não levavam, mas aí eu falava que ia,
eles deixavam e eu ia. E quando não deixavam... Teve dois... Teve uma vez que uma
professora disse que não podia abrir mão da aula, eu tinha direito a falta, faltei.
E acabou! (Tiago)

A professora sugeriu que a gente assistisse. Porque na verdade, professor não leva,
ele sugere. Tem gente que assina (caderno de presença) e foge, né. O aluno não fica se
não quiser, por isso que eu disse que não leva. Ele assina, foge, entra e sai pela outra
porta. Eu fui para participar do debate porque eu acho interessante essa coisa do
filme com debate. (Lucia)

É claro nesses relatos como o papel do professor que permite a ida ou sugere,
nas palavras de Lucia, uma determinada sessão do Cine CCH para seus estudan-
tes se mostrou fundamental para a entrada desses sujeitos no projeto, mesmo
que seja em favor de sua própria disciplina. Como projeto de extensão, o Cine
CCH não possui vínculo com qualquer disciplina específica dos cursos ofereci-
dos pela Unirio, apesar do caráter articulador com práticas de ensino e pesquisa.
Dessa forma, quando há o desejo de estar presente em algum filme e debate, os
estudantes também sugerem a seus professores que levem a turma, ou, como diz
Tiago, criam argumentos e estratégias para negociar.
Já Aghatha e Mariana demonstram outro aspecto de envolvimento com o
cinema que revela o interesse e curiosidade em vivenciar uma atividade nova na
universidade, uma experiência cineclubista.

É uma coisa que estava faltando, uma coisa que eu acho maravilhosa e que estava
faltando. Tudo de bom! Ela faz sessões de cinema, não com filmes de cinema que

66 | Comunicação, audiovisual e educação


passam no cinema... É muito bom! Na universidade e podendo ainda conversar so-
bre o filme depois. Eu acho muito legal a ideia do projeto. A gente sempre passa pela
primeira Unirio e lá tem sempre um cartaz do Cinema e Psicanálise (outro cineclu-
be na Unirio) e eu sempre queria ir lá, só que é lá, é longe e é sempre nos horários de
aula. Aqui (prédio do CCH), por mais que seja no horário de aula, além de alguns
professores liberarem, é aqui, aqui embaixo, é pertinho, dá para a gente ir, matar
aula se for o caso... para ver um filme acho que vale a pena. (Mariana)

Eu comecei a participar quando veio a ideia de sala de exibição lá no prédio do


CCH, achei superinteressante, foi produtivo e aí, geralmente você vem para aula e
os professores quando liberam para ver o filme, pô, não tem porque você não ir, você
já tá aqui, você vem para a aula, então vai acontecer um filme, vamos ver o filme,
é super enriquecedor sim, parar e ver o filme ali, todo mundo e, discutir depois.
(Aghatha)

Ao narrar suas participações no projeto, os estudantes avaliam o lugar e


significado do projeto na Unirio, percebendo-o como espaço alternativo de vi-
venciar a travessia enquanto universitários. A proposta de assistir e debater os
filmes em meio a práticas de formação acadêmica surge como possibilidade de
ampliar, diversificar e pluralizar a trajetória na universidade. Isis e Juliana expli-
citam que buscam e encontram no Cine CCH a possibilidade de exercitar olhares
e fazeres outros para além das disciplinas curriculares.

Eu gosto dessa coisa de ter esse espaço na universidade porque há um tempo não
tinha. É uma que eu sinto falta na universidade, é falar de questões atuais ou ques-
tões que não são ligadas à educação. Então no Cine CCH, nos debates, eu vou pelo
filme também, que eu gosto de ver filme, mas nos debates, eu acho que essa coisa
não que venha ser tão forte assim, mas às vezes eu consigo falar mais sobre o que
está acontecendo hoje em dia do que só o mundo à parte e sobre outras coisas. Eu
posso debater sobre outras coisas e que a gente não fala na sala de aula ou na uni-
versidade. (Isis)

Eu acho interessante se criar esse espaço. Se a gente for pensar nisso, a gente não
tem espaço na Unirio que se utilize de outra forma. E o Cine CCH é mais ou menos
isso, é uma opção de você estar na faculdade e você debater, não é só assistir o filme
e ir embora. É você discutir sobre alguma coisa, não necessariamente na sala de
aula, não necessariamente sobre educação. Discutir outras coisas que são impor-

“Cinema é um acontecimento” | 67
tantes também. Aí se trata da questão da universidade, né, que é faculdade-pesqui-
sa-extensao-ensino, né. Não é só ensino, não é só sala de aula. É utilizar o espaço de
diversas maneiras. (Juliana)

Os relatos anteriores tomam o Cine CCH como campo de embrenhar ques-


tões e territórios poucos explorados do cotidiano acadêmico, favorecendo a ex-
pressão e construção de sentidos e conhecimentos desalojados das exigências
curriculares da graduação. Não por acaso, essas últimas entrevistadas acabaram
ingressando na equipe que organizava o projeto, tais eram suas identificações
com a proposta. Essa postura que se revela em suas atitudes e falas que é impul-
sionada pela escolha, abertura e disponibilidade ao diferente, que escapa das
situações impostas e instituídas é o que Larrosa (2002) chama de “gesto de inter-
rupção”. A vontade de parar, suspender os rituais e obrigatoriedades de sala de
aula, pressupõe um gesto de busca e risco. Se retomarmos ao que Lucia disse, o
professor nunca leva, ele sugere que seus estudantes participem do Cine CCH. O
que os instiga é a vivência ao diferente, experimentar maneiras outras de estar e
ser estudante na Unirio.
Assim, ao arriscar abdicar-se, temporariamente, das demandas disciplina-
res do dia a dia, os sujeitos procuram intencionalmente deslocar e reinventar
olhares e relações na e com a universidade, que não sejam vinculados ao saber
vivenciado, produzido, habilitado, mas o saber da experiência. Por isso, o sujeito
da experiência se define como “superfície sensível que aquilo que acontece lhe
afeta de algum modo” (LARROSA, 2002, p. 19), pois somente quando rompe com
as práticas calculáveis centradas na ação e produção de conteúdos, na compe-
tência e execução de tarefas é que se torna um território de passagem para que o
outro lhe atravesse e lhe altere.
Nessa perspectiva, destacam-se relatos nos quais os sujeitos reconhecem a
participação no Cine CCH como lugar possível para que algo lhes aconteça, isto
é, espaço onde podem emergir outros sentidos e caminhos para a própria for-
mação. Como bem lembra Vanessa, o Cine CCH “contribui pra formação e, além
disso, formação cultural, assim, formação como pessoa, te dá mais repertório”.

Tudo o que acontece na universidade faz parte da minha formação. Às vezes a gen-
te acha que não, que são coisas isoladas, um evento que a gente participa, um filme,
ou uma oficina. Está tudo ligado, é o processo de formação da gente como estudante

68 | Comunicação, audiovisual e educação


universitário. Por isso eu acho tão bacana. Eu acho que deveria até ter outras coi-
sas também além do Cine CCH. Sair um pouco da sala de aula. (Sinara)

O gesto de interrupção que requer a abertura e disposição para escutar,


olhar, abrir e se expor ao outro é evidenciado em muitos relatos. Reconhecem o
lugar do outro como aquele que lhe é externo, diferente, mas também constitui-
dor da sua experiência, que provoca, incita e contribui na construção de olhares
e significados novos nos momentos de debates após os filmes. Contudo, algumas
falas deixam expressar como a diversidade de sentidos apropriados e partilha-
dos a partir dos filmes podem causar incômodos, que é próprio também do que
nos afeta.

Você discute com pessoas que você conhece, outras que você não conhece, e sem-
pre surge uma questão nova, que te faz pensar, e isso me motivou a ir ao encontro.
Porque se for só pelo filme, eu não sei se eu iria. Não vou nem dizer que eu gosto dos
debates, porque a gente não sabe como vão ser, mas a possibilidade de ter o debate.
Eu mesmo quase não participo, mas ouvir o outro... (Igor)

Sinceramente, a parte que eu mais gosto (os debates) – sem contar o filme, que é
uma experiência ótima. Mas eu gosto muito dos debates. Porque você tem a possibi-
lidade de compartilhar pontos de vista, ouvir o ponto de vista do outro que, muitas
vezes, te mostra ou te convida a pensar em uma coisa que você nem tinha pensado.
Agora, claro que tem aquelas pessoas que falam umas coisas que você fica arrepia-
do. Né? Eu fico arrepiado, me dá um frio na espinha, mas faz parte, é lidar com o
outro, né, com a diferença. (Tiago)

Todos os entrevistados admitiram participar e gostar dos momentos de de-


bate após os filmes. Como o Cine CCH é sempre aberto, sem temas e debatedores
direcionados, as discussões que se seguem aos filmes são compostas conforme
as articulações e movimentos criados pelos próprios frequentadores. Para além
de expor opiniões e explicações sobre o filme, os sujeitos percebem os debates
como momentos de troca, escuta, confronto de ideias, ampliação do olhar e da
reflexão. Assim como Tiago e Igor, os demais entrevistados também valorizam a
fala do outro, mesmo que controversa, como legítima na dinâmica dos debates.
Isso sugere uma compreensão do olhar do outro que também constitui o olhar
que construímos com o filme.

“Cinema é um acontecimento” | 69
Os relatos tecidos ao longo dos debates podem ser entendidos como narrati-
vas criadas a partir das marcas provocadas pelo filme. No movimento de narrar
e escutar, os sujeitos dialogam, aprendem, refletem e compartilham suas expe-
riências trazidas com os filmes. Afinal, o filme nunca é um lugar fechado em si,
mas habita possibilidades e experiências. Os olhares que se revelam em narra-
tivas são abertos e receptivos ao outro, assim, ao narrar e escutar a experiência
com o filme se recria. E é exatamente isso que se denota pelos entrevistados, a
busca, nos debates, de outro sentido com o filme, a possibilidade de ampliar as
tramas na relação com o que foi exibido.

Figura 3 – Logo do projeto Cine CCH


Fonte: autoria Isis Lucena.

CONCLUSÃO

Nesse exercício de narrar, os estudantes entrevistados do curso de Pedagogia


não só problematizam o lugar que o cinema ocupa no âmbito acadêmico, como
também buscam pensar nos possíveis entrelaçamentos entre o cinema e a edu-
cação. As entrevistas se revelaram momentos de narração tecidos pelas conver-
sas e encontros entre diferentes espaços e tempos que provocam outros afetos,

70 | Comunicação, audiovisual e educação


inquietações, reflexões e desejos com o cinema, com a universidade e com a
realidade.
Destaco das falas, a importância atribuída ao Cine CCH, em suas formações,
ao reconhecê-lo como atividade que possibilitou redimensionar a estrada que
percorriam como universitários. Como futuros educadores e educadoras, essa
constatação denota não apenas o valor que percebem da prática cineclubista no
contexto da graduação, mas implicitamente compreendem o cineclube como
alternativa para os espaços tradicionais de aprendizado formal, como possibili-
dade de produção e interação de conhecimentos. Assim, o Cine CCH como ativi-
dade cineclubista pode ser entendido como lugar de construção e circulação de
saberes entre seus participantes favoráveis à sociabilidade, à ampliação do re-
pertório cinematográfico e à formação do espectador. Nesse sentido, percebe-se
como a experiência com o cinema na universidade possibilita outras maneiras
de construir esse percurso de formação, isto é, criar maneiras outras de ver, pen-
sar, agir, criar e se relacionar com esse espaço que não está prescrito nas ementas
curriculares.

REFERÊNCIAS

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e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

CANCLINI, N. G. O Serve Para Pensar. In: CANCLINI, N. G.


Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio
de Janeiro: EdUFRJ, 2010. p. 61-73.

COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural: cultura e


imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2012.

DALETHESE, T. Cinema, narrativas e experiências: a formação


atravessada pela prática cineclubista na universidade. 2013. Trabalho
de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) - Escola de
Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2013.

DUARTE, R. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

FANTIN, M. Mídia-educação, cinema e produção de audiovisual


na escola. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA

“Cinema é um acontecimento” | 71
COMUNICAÇÃO, 29., 2006, Brasília, DF. Anais [...]. São Paulo:
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FERNANDES, A. H.; DALETHESE, T. Cineclube, narrativa e formação:


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em diferentes contextos educativos. Rio de Janeiro, 2010. Projeto de
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reflexões iniciais. Revista Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro,
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LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.


Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, 2002.

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social. Domínios da imagem, Londrina, v. 2, p. 137-147, 2009.

72 | Comunicação, audiovisual e educação


Projeto “O cinema e
as narrativas na era da
convergência: modos de
consumo, formação e
produção de audiovisuais
de crianças, jovens
e professores”
(2013-2018)

Semente de ecrã 3
Fonte: Ludmila Duarte (2020).
“Cinema é um acontecimento” | 73
4
Jovens youtubers:
novas aprendizagens
L uc in ei a B at i s t a

INTRODUÇÃO

“O que você tanto assiste aí nesse computador, filho?”. Foi observando meus fi-
lhos assistindo diariamente a vídeos que me aproximei do tema. Eram vídeos de
toda sorte: mangás, cômicos, animações de jogos... Desse universo, o que mais
me chamou atenção foram os vídeos produzidos por outros jovens, inclusive
mais novos do que eles. “Garotos produzindo vídeos e assemelhando-se a pro-
dutores culturais de mercado, divulgando-os e tendo audiência considerável?!”.
Orozco-Gómez, já em 2010, refletia sobre o processo de midiatização da socieda-
de, no qual tornamo-nos todos simultaneamente audiências e produtores nas di-
ferentes telas e plataformas. Esses jovens iam além do costumeiro: consumiam,
produziam vídeos e publicizavam sua produção para uma audiência ampliada,
que chegava a ter centenas e até milhares de visualizações, algo impensável há
pouco anos atrás, antes do advento da internet 2.0.
Quem seriam eles? Que produções seriam essas? O que os levaria a fazer
esses vídeos e com que recursos? Como aprenderam a produzir audiovisual?
O que pretendiam e o que ganhavam com isso? Essas foram questões que levaram
aos eixos norteadores minha pesquisa de mestrado Jovens youtubers: autoria e
aprendizagens contemporâneas, que realizei no Programa de Pós-Graduação

| 75
em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio).1 (BATISTA, 2014)
No âmbito da educação, embora convivamos dia após dia com adolescentes
e jovens em sala de aula, ainda pouco se conhece sobre suas vidas fora da escola
e sua presença no mundo contemporâneo – modos de ser e de viver. Há muitos
discursos e representações sociais, que formam mitos acerca da juventude, que
repetimos sem nos darmos conta dos conceitos e preconceitos que neles estão
embutidos.
O certo é que os jovens não constituem uma classe social ou um grupo:
compõem-se em agregados sociais com características continuamente flutuan-
tes (CARRANO, 2007), não facilmente capturáveis. A condição juvenil é dada
a “cada tempo e lugar, em função de fatores históricos, estruturais e conjuntu-
rais, que determinam as vulnerabilidades e as potencialidades das juventudes
(ou dos diferentes segmentos e agrupamentos juvenis)” (NOVAES, 2007), numa
perspectiva coletiva, social e familiar. Mais do que a dimensão biológica, ser jo-
vem é viver uma experiência geracional comum. (NOVAES, 2008) No entanto, o
que muitas vezes não nos damos conta é que toda experiência geracional é inédi-
ta, ou seja, só sabe o que é ser jovem hoje, quem é jovem hoje. Não devemos usar
a nossa juventude de outros tempos e circunstâncias como referência.
Na contemporaneidade das sociedades urbanas interconectadas, as vivências
e as expectativas da atual geração de jovens parecem ser mais complexas e me-
nos previsíveis do que as das gerações que a antecederam, visto serem largamente
atravessadas pela experiência massiva do consumo e da comunicação, na nossa
sociedade hoje tão tecnificada e midiatizada. No entanto, os jovens vivem essas
experiências em diferentes graus de profundidade e imersão a depender de fato-
res sociais e individuais. Temos de levar em conta suas múltiplas dimensões de
socialização locais, sem esquecer que eles também estão submetidos a processos
globais transnacionais, desterritorializados, facilitados pela técnica e pelas tecno-
logias, vivendo novas formas de sociabilidade com as quais convivem e modificam
os modos tradicionais da relação cotidiana, em um ambiente de consumo global
que produz uma cultura remix, caracterizada por hibridismos de toda ordem.
Essa reflexão representou um grande desafio para a pesquisa. Há uma ur-
gência que a Educação se aproxime mais da experiência geracional da atual

1 Para os que se interessarem, outra vertente dessa pesquisa foi publicada em revista. Ver: Fernandes e
Batista (2016).

76 | Comunicação, audiovisual e educação


juventude, o que, pelo menos em parte, esta pesquisa tinha como propósito ao
tentar desvelar o mundo dos youtubers. No entanto, como adentrar esse univer-
so complexo, com códigos próprios, de jovens produtores culturais que são co-
nhecidos por meio de seus produtos, sendo eu uma pesquisadora pertencente a
outra geração? Como encontrá-los já que não se tratava de um grupo controlado
ou cadastrado? E, principalmente, como definir uma metodologia investigativa
que pudesse apreender a riqueza do fenômeno e sua intrincada relação com a
produção audiovisual, a vida digital e off-line, considerando-os em suas próprias
perspectivas, sendo sujeitos de suas narrativas e história?
Visto que a minha área de interesse é a educação, fiz o recorte de trabalhar
com jovens que estivessem em idade escolar – educação básica ou universitária
– e estabeleci alguns critérios para delimitar o objeto de estudo: ter uma produ-
ção frequente ou, pelo menos, alguns vídeos produzidos (não uma experiência
isolada); não trabalhar com audiovisual e nem pertencer a famílias cujos paren-
tes próximos fossem profissionais da área.
Havia ainda o caminho metodológico a definir. Era claro que a investigação
deveria ser de cunho qualitativo e que tínhamos de ir a campo encontrar com
esses sujeitos em seus ambientes de produção cultural. Optamos pela pesquisa
em rede,2 na qual um participante indica o outro, pois ele possui informações
privilegiadas do campo pesquisado. Ou seja, os próprios jovens pesquisados ser-
viram de “embaixadores”, ajudando-me a identificar outros jovens e a decifrar
os códigos envolvidos. Assim, iniciando com os conhecidos de meus filhos, che-
guei a sete jovens divididos em duas redes de relacionamento. Foram, pelo me-
nos, duas horas de entrevistas adensadas individuais, presenciais ou via Skype,
complementadas pelo acompanhamento da presença digital de cada um no
YouTube e no Facebook, observando imagens, escritas, ícones, fluxos e sentidos
atribuídos por eles à sua produção nesses espaços. Acrescidas, também, dos da-
dos objetivos: quantidade e tipo de vídeos produzidos, volume de inscritos e as
trocas estabelecidas pelos jovens nessas plataformas. Por oito meses –setembro
de 2013 a abril de 2014 –, pude observar esses aspectos que ajudaram a compor a
narrativa sobre a identidade e o fazer de cada um.

2 Na pesquisa em rede, a partir dos contatos diretos ou indiretos de uma pessoa, chega-se via seus
inter-relacionamentos à outra pessoa situada dentro da rede. (BOTT, 1976 apud DUARTE, 2002)

Jovens youtubers | 77
OS JOVENS YOUTUBERS E SEUS CANAIS: UM ESPELHO DE
SI?

Os jovens a que chegamos eram todos do sexo masculino, moradores de gran-


des cidades no Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, que tinham entre 15 e
21 anos, nascidos entre 1994 e 1998, usuários da web 2.03 desde criança e que,
nesse sentido, viviam a mesma experiência geracional. Eles cresceram imersos
na cibercultura, acessavam a internet desde os 9 e 10 anos, especialmente os jo-
gos eletrônicos, “que sempre estiveram presentes”, como resume um deles. Foi
o jogo a chave de entrada na vida on-line. Eles se diziam gamers antes de serem
youtubers, ou seja, todos compartilhavam a cultura dos jogos eletrônicos, que vai
muito além do que apenas jogar. O mundo gamer é uma base comum entre eles,
mesmo que não pertencessem à mesma rede e nem soubessem da existência
do outro. Suponho que a metodologia utilizada na pesquisa tenha corroborado
grandemente para este recorte. Como cada um fazia suas indicações, ficamos
restritos a suas redes de relacionamento, o que levou a circunscrever a pesquisa
ao sexo masculino e a um mesmo tipo de utilização da internet, e, por outro lado,
possibilitou aprofundarmos a compreensão acerca dessa perspectiva.
A cibercultura e os games apresentaram-se como marcadores identitários
que perpassavam a todos os participantes. Também, o hábito de consumir ví-
deos. Alegavam que assistiam a vídeos todos os dias, no computador ou no ce-
lular. Vídeos de toda ordem e tipo, até instrumentais, mas pouco assistiam à
TV. Assistiam ao que queriam e na hora que queriam, em um comportamento
“midiaticamente ativo” como cita Henry Jenkins falando de jovens americanos
que não conheceram a TV antes do cabo ou da internet. (JENKINS, 2008) Eram
videófilos no sentido que Canclini (2008) descreve: jovens que cresceram com o
vídeo e têm uma relação natural com a exibição em telas menores e estão sempre
em busca do mais novo lançamento, num presente sem memória. Eram prosu-
mers,4 ou seja, o consumidor fundido com o produtor, perfil que parece ser cada
vez mais comum nos nossos dias, e que se concretiza na produção efetiva de
conteúdo gerado por não profissionais. (AMARAL, 2012) No caso, produção em
imagem e som.

3 Evolução da web para uma modalidade de conversação e interação.


4 Prosumer: consumo + produção, no original, producer + consumer – conceito cunhado por Alvin Toffler,
nos anos 1980, sobre a terceira onda do marketing.

78 | Comunicação, audiovisual e educação


Ao final da fase de pesquisa, os sete, juntos, já haviam postado quase 850 ví-
deos em seus oito canais,5 visualizados quase 1,7 milhões vezes, por cerca de 23 mil
inscritos. Vários classificavam seus canais como “de jogo” (gameplay),6 com vídeos
de partidas comentadas, nos quais davam dicas, mostravam erros, bugs etc. Ou de
comédia: com vídeos engraçados, vestindo-se, com outra narração sobre as ima-
gens dos jogos, novas edições misturando personagens de jogos diferentes, narra-
tivas ficcionais cômicas próprias ou sobre trechos de obras prontas. Além desses,
havia muito testemunhal (vlog), videoclipes e vídeos instrucionais etc.
Um aspecto que me intrigava era saber o porquê teriam aberto um canal.
A maior parte informou que queria ser youtuber, ou seja, ter presença na plata-
forma YouTube como produtor de conteúdo audiovisual, ser visto e reconhecido
por seus vídeos. Havia uma busca explícita por reconhecimento, pela aceitação
no coletivo. Isso ficou evidente na importância que davam aos comentários e
curtidas em suas páginas. Percebi que a atividade em si era um valor para eles, a
ponto de se autointitularem youtubers nos seus perfis do Facebook: era também
um modo de se diferenciar e ao mesmo tempo signo de pertença e protagonis-
mo, buscas muito recorrentes nessa faixa etária. Quando perguntados sobre o
quanto o canal tinha a ver com eles,7 Tet teve um insight: “Mesmo que ele não
tenha uma imagem minha, é um somatório das imagens que tão comigo. Por mais
que eu tente desvincular, não tem como impedir isso 100%. [...] todos eles [os ví-
deos] têm um pouco de mim”. (Tet)
Essa dimensão da identidade de cada um dos entrevistados foi emergindo
dos relatos sobre suas práticas como produtores de vídeos ao longo da pesquisa.
Cada canal no YouTube tem identidade própria, com nome e visualidade
escolhidas pelo seu dono, além de haver símbolos e outros links que represen-
tam status ou apoio de outros youtubers. Observei que trocavam muito o banner
identificador do canal (arte do canal),8 sempre em busca de atualização, e alme-
javam certos ícones (logomarcas de networks), que seriam marcadores de qua-

5 Um deles tinha dois canais.


6 Vídeos que mostram trechos de jogos, com jogadores narrando o que está sendo feito: passo a passo,
comentados, ou de zoeira, detonados etc.
7 Entrevista foi concedida em 9 de fevereiro de 2014. Informo que foram utilizados os seus nomes públi-
cos que apareciam no canal do Youtube.
8 Segundo o YouTube, a arte é usada para “proporcionar uma aparência única à página e para estabelecer
a identidade visual”.

Jovens youtubers | 79
lidade. André Lemos (2009) observa que, neste momento de embaçamento de
fronteiras, há o surgimento de novos modos de territorialização no mundo digi-
tal, com seus ícones, artes, apresentações, títulos, endereçamentos transmidiá-
ticos, símbolos de distinção, que transbordam para outros “lugares” na internet,
como as redes sociais ou os perfis criados para seus personagens. Entendi que
este seria o caso, pelo qual disputavam presença, notoriedade e reconhecimento.
Os jovens declararam também intenções de se divertir e de divertir aos ou-
tros (seu público), mostrar o seu trabalho, “o que ele fez” ou o que tiveram acesso.

Eu gravava para mostrar pras pessoas que quisessem ver. Era só gravar e mostrar
como é que jogava o jogo tal, como é que passava de tal parte. E tentar entreter as
pessoas comicamente. (Mizu)

Isso são coisas que a pessoa não vai ter acesso, mas eu tenho, então, eudou um jeito
de permitir que a pessoa veja como é que é. [...] Eu tenho autoridade naquilo que eu
faço. (Tet)

Além do componente lúdico explicitamente colocado, havia a cultura do


compartilhamento instaurada: tomar parte, participar de e dividir com o outro.
Lemos (2009) afirma que a cibercultura potencializa essa prática social, que é
própria de toda dinâmica cultural, o compartilhamento, a distribuição, a coope-
ração, a apropriação dos bens simbólicos. A própria plataforma do YouTube já é
construída nessa lógica, pois ao final da exibição de cada vídeo abre a possibili-
dade de compartilhamento para mais de dez redes sociais.

COMO APRENDERAM, AFINAL?

Como educadora, eu tinha uma curiosidade muito grande em saber como apren-
deram a fazer vídeos e me perguntava se a escola teria tido alguma participação
nesse processo. Não, não teve.

Tudo eu aprendi pela internet. É engraçado isso, eu também fico pensando:


como? (Renan)

Eles disseram que aprenderam na base da pesquisa na internet, do “se


vira boy” e de tutoriais. Resumindo, consideravam que aprenderam sozinhos.

80 | Comunicação, audiovisual e educação


No entanto, ao longo da investigação, percebi que não era bem assim. Os pró-
prios tutoriais mencionados são “aulas virtuais” de outros youtubers ou video-
makers – jovens ou não, profissionais ou amadores. Também falaram de suas
referências, ou seja, canais grandes e pequenos, gringos e brasileiros, de conhe-
cidos seus e de desconhecidos em que se espelhavam. Pelo menos em parte, es-
ses canais lhes serviram de modelo, uma primeira aproximação e apreensão da
realidade de youtubers, na qual desejavam se inserir.
Relatavam que o começo não tinha sido nada fácil, pois não tinham ideia
de como gravar vídeos da tela ou com câmera, não tinham equipamento, nem
sabiam o que precisariam e que quebraram muito a cabeça. Citavam sempre os
amigos – físicos e virtuais – que tinham interesses em comum e nos quais eles se
sustentavam em uma rede de apoio mútuo. Essa menção foi constante e apareceu
nas entrevistas de todos. Eles se “juntam” por grupos de afinidade, organizados
em torno da cultura gamer e youtuber. A indústria cultural do universo dos jo-
gos eletrônicos e o YouTube criam um lastro de significação semelhante para os
diferentes jovens de variadas origens e o seu uso traça novos sentidos e apropria-
ções. Dominam códigos e sentidos específicos dessas culturas, compartilhando
comportamentos e consumindo produtos ligados à cultura do jogo eletrônico e
do YouTube. Também conhecem os vídeos e os mesmos canais-referência, além
dos criados por membros dessa comunidade. É o que Orozco-Goméz (1991) con-
ceitua como comunidade interpretativa: “Uma comunidad de interpretación
se entiende básicamente como un conjunto de sujetos sociales unidos por un
ámbito de significación del cual emerge uma significación especial para su ac-
tuación social (agency)”. (OROZCO-GOMÉZ (19--]) apud VARELLA, 1999, p. 5)
Ela se caracteriza por essa comunhão de propósitos e práticas no uso da
mídia. (SCHRAMM, 2005) Não se trata de uma comunidade territorial. Com
a mundialização da cultura (ORTIZ, 2007), as comunidades interpretativas se
ampliaram atravessando cada vez mais fronteiras. Usando o meio digital, eles
estabelecem contatos, conversam com seus inscritos e fazem amizades com ou-
tros youtubers e jogadores que nunca viram, mas que consideram. Encontram
pessoas digitalmente e, muitas vezes, acabam constituindo com elas um vínculo
mais duradouro, formando redes de relacionamento e de aprendizagem. Lucke,
um dos youtubers pesquisados, por exemplo, embora morasse em outro estado,
era amigo de Renan e chegou, inclusive, a ser seu editor de efeitos especiais por
um tempo. Eles nunca se viram pessoalmente.

Jovens youtubers | 81
E o legal é que a gente é muito parceiro, muito, muito. A gente se fala todo dia.
A gente conversa, a gente zoa, a gente causa, é engraçado. A gente não se conhece,
mas se fala bastante. Eu fiz um teste pro meu clã de sniper, aí, ele entrou contente.
Pô, aí, a gente ficou muito amigo, muito amigo mesmo. (Renan)

Foi selecionado para o tal clã pelo que sabia, sem nenhum outro tipo de
barreira, social, étnica, etária, geográfica etc. Renan, filho de classe média alta,
morador de Santos, São Paulo. Lucke, da Baixada Fluminense, pai motorista de
caminhão e mãe, costureira. Gabriel, de Pernambuco, tem no Renan sua refe-
rência, era um dos seus milhares de inscritos. Renan nem sabia de sua existên-
cia. Renan alegava ter aprendido muito sobre edição com o Lucke, que aprendeu
vendo tutoriais e correndo atrás do inglês, auxiliado por uma prima. Como Lucke
fez edição de vários vídeos para o Renan, em contrapartida, colocou o ícone do
canal de Lucke na sessão “canais parceiros”, aumentando as chances de visua-
lização deste. Gabriel conheceu Renan por meio do Bobcutback, um dos jovens
que foi influenciado diretamente por Renan a abrir um canal, pois era seu amigo
pessoal e estudavam juntos. Gabriel fez uma arte do canal para o Bobcutback
de graça. E assim, nessa intrincada rede, um ia ajudando e aprendendo com o
outro, por meio de dicas e da cópia de procedimentos, estratégias de divulgação,
organização etc. Também na solução de problemas que não conseguiam resolver
sozinhos. Aprendiam em rede de cooperação e colaboração.
Nelson Pretto (2010) destaca essas redes ponto a ponto – peer-to-peer: rede
entre pares, rede entre amigos – que se formam na cultura digital. Elas têm em
sua base a produção e a circulação colaborativa, por meio das quais partilham as
produções e seus conhecimentos. Nesses poucos meses em que acompanhei es-
ses jovens, soube ou mesmo vi essa colaboração acontecer de diferentes modos:
um fazendo para o outro, um enviando link para o outro aprender, dando dicas
sobre como resolver uma situação, fazendo junto, fazendo uma parte junto, in-
terferindo no processo do outro e dando ideia, acionando o amigo no que ele era
bom etc. Para tal, usavam os recursos das ferramentas de comunicação disponí-
veis: Facebook, Skype, Twitter, Team Speak, YouTube.
Também vi ações cooperativas (BELLONI; GOMES, 2008) nas quais dois
ou mais youtubers colaboravam para um projeto comum, como aconteceu com
Lucke e Renan nos projetos de vídeos em que trabalharam, um criando e o outro
aprimorando a edição. Ou, como no caso de Mizu ou Hoxton, levando amigos

82 | Comunicação, audiovisual e educação


youtubers a participar de uma live com eles, fazendo comentários, aparecendo
no vídeo ou outro modo de participação.

COMO PRODUZEM E SEUS DILEMAS

Inicialmente, eu tinha uma suposição de que produziriam muito com celular


e gravariam coisas aleatórias do cotidiano, performances suas e de colegas.
Não era isso. Até gravavam eventualmente com celular, mas não para o canal.
Alegaram que a qualidade da imagem do celular ficava ruim. A maioria dos ví-
deos era gravada sem roteiro prévio nos seus tempos livres, depois da escola ou
fins de semana, em seus computadores, principalmente os gameplays. Alguns
vídeos eram captados com webcam, como os vlogs e as séries nas quais apare-
ciam. Definiam alguns formatos e os perseguiam. Parte dos jovens lançava mão
de uma prática um tanto comum no YouTube que é a organização de seus vídeos
por séries, a partir de formatos consagrados de outros canais ou inventando o
seu próprio, arriscando-se. As séries tinham episódios numerados, podendo
ser sequenciados ou não. Mizu, por exemplo, tinha cerca de 12 diferentes séries,
como a Naruto Shippuden, com 40 vídeos e mais de 100 mil visualizações.
Concluí que, na aparente anarquia ou aleatoriedade, havia uma organiza-
ção, por vezes, até bem rígida. Os canais tinham um perfil temático/identitário
definido. Os jovens criavam formatos e séries temáticas, sempre de olho no que
sua audiência pedia ou no que dava mais visualização.
A relação com o público foi um ponto que ressaltou na pesquisa. A maio-
ria fazia seu canal para garotos como eles e para um público ampliado, o qual
tinham o desejo que se ampliasse mais e mais. Valorizavam indicadores como
a quantidade de “gostei” (likes) recebidos, de comentários elogiosos e comparti-
lhamentos, de vezes que eram classificados como favoritos e o número de novos
inscritos no canal. É a relação positiva com o público que mantém o youtuber ati-
vo e com vontade de continuar, apesar de todas as dificuldades que enfrentam.
No entanto, nem sempre é assim que ocorre e, por vezes, ficam muito desesta-
bilizados emocionalmente com o que recebem de retorno, especialmente nos
comentários. Os entrevistados que tinham mais idade pareciam já terem apren-
dido que “estar exposto na rede é correr mesmo este risco [...] Muita gente critica,
né? Mas, faz parte”. (Mizu)

Jovens youtubers | 83
Também enfrentavam o dilema entre atender ao pedido do público, o que
significaria manter e, até mesmo, ampliar suas visualizações e inscritos, ou aten-
der aos próprios desejos, pois nem sempre ambos coincidem. O público pres-
sionava. “O canal é de quem?”. Renan esbravejava: não queria fazer mais vídeos
de bugs! Mizu havia parado de fazer gameplays do Naruto havia mais de ano:
cansou, mas sua audiência continuava pedindo e assistindo aos antigos, aumen-
tando suas visualizações. Aos poucos, iam aprendendo lidar, cada um a seu jeito.
Sempre observando as reações do público iam chegando a algumas conclusões
do que dava certo. É um eterno repensar e reconquistar o público, que nunca
é 100% previsível. Isso é um fenômeno de toda produção cultural, que implica
num elevado grau de incerteza no nível da demanda, já que não é possível prever
o êxito ou o fracasso. Na internet, as práticas e preferências revelam-se ainda
mais heterogêneas, ecléticas e cambiantes. (SANTINI; CALVI, 2013) Um vídeo
pode “bombar” em visualizações e outro semelhante ser um retumbante fias-
co. Ficavam intrigados, levantavam hipóteses. Uma coisa que logo aprenderam
foi a se tornarem responsáveis com o seu público: assumiam compromisso com
ele. Preocuparam-se em esclarecer, por exemplo, quando não tinham tempo de
postar um vídeo novo, por conta das provas escolares. Postavam um vídeo expli-
cativo. Percebiam-se, progressivamente, como comunicadores, vetores de infor-
mação, o que era muito recompensador e melhorava a imagem que tinham de
si – produtores culturais: youtubers.

O QUE APRENDEMOS COM A PESQUISA?

O desafio a que a pesquisa se propôs não foi pequeno e nela encontramos uma
riqueza de aprendizagens e de bons pontos para reflexão. Considero que a me-
todologia de trabalho foi acertada, pois propiciou que pudéssemos, ainda que
temporariamente, mergulhar nas redes de relacionamentos formadas entre eles.
Também permitiu que os protagonistas pudessem contar suas próprias narrati-
vas com detalhes e iluminassem aspectos que, de outro modo, poderiam ficar
despercebidos.
Os sete jovens em foco cresceram em um ecossistema cultural mediado pelo
consumo e pela onipresença das mídias, convergentes em sua maioria – no qual
as fronteiras entre o natural e o artificial, o tradicional e o novo, a realidade e a
ficção se confundem; em que as interações virtuais são tão ou mais significativas

84 | Comunicação, audiovisual e educação


que as presenciais; e no qual as janelas se abrem para o mundo web, globalizado
e multicultural. Desde crianças, convivem com a internet e com os jogos eletrô-
nicos, dominam a cultura gamer e querem mais: ser youtubers.
Quando adotam essa persona, assumem um papel social diferente e pas-
sam a ter público e novas responsabilidades, limites e possibilidades. É um
novo mundo a ser conquistado, com regras e contratos diferentes do que esta-
vam habituados até então. Enfrentam o desafio e a excitação do caminhar pelo
desconhecido, com suas alegrias, dificuldades e contradições. Passam a ter um
projeto que envolve muita dedicação, horas de edição, de pesquisa, definição de
estratégias de manutenção e ampliação do seu território virtual, solução de pro-
blemas práticos e éticos, exposição amplificada, elogios e críticas do público etc.
Tornam-se produtores culturais submetidos a regras e sanções de mercado e a
viverem experiências das quais não têm controle. Do ponto de vista da comu-
nicação, aprendem a se colocar, a construir narrativas audiovisuais que façam
sentido para si e para seu público, a organizá-las em séries e a avaliá-las segundo
objetivos pré-determinados. Também têm de se renovar e se arriscar em novos
gêneros, em falar ao vivo para sua audiência, usar recursos da publicidade e da
transmídia, sempre observando a reação dos seus interlocutores. Mediam confli-
tos por escrito, defendendo-se, seja com seu público ou com o próprio YouTube.
Têm de lidar com agruras como plágios ou críticas, educadas ou não. E dilemas
éticos. Angustiam-se. Enfrentam sucessos e fracassos, recomeçam e se reinven-
tam. Mudam, comemoram, mas nem sempre acertam. São reconhecidos, entre-
tanto, várias vezes não se reconhecem no que faz sucesso da sua produção.
Muitas são as questões e desafios. Para tal, é evidente que há um forte com-
ponente motivacional que promove toda essa busca autônoma e os faz resilien-
tes. Por trás, entre outros fatores, há uma rede de apoio que os suporta nessa
trajetória por meio das comunidades virtuais e presenciais que participam. Logo
descobrem que “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma
coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nos-
sas habilidades” (JENKINS, 2008, p. 28), característica importante da cultura da
participação. Aprendem juntos e em rede, na qual cada um contribui comparti-
lhando o que sabe, pesquisou e descobriu, em projetos coletivos ou individuais,
interconectados por interesses afins.
Durante a pesquisa, fiquei pensando que esses comportamentos citados
não são possíveis apenas no ambiente digital e poderiam/deveriam acontecer

Jovens youtubers | 85
em qualquer ambiente de aprendizagem, especialmente na escola. Como seria
seu comportamento no ambiente escolar? Será que eram assim tão aguerridos e
motivados? Praticavam a colaboração e a cooperação para avançarem nas ativi-
dades escolares? Compartilhavam o que aprendiam, dando acesso aos demais ao
que descobriram? Será que seus professores ofereciam essas oportunidades de
desenvolverem essas competências e habilidades?
É uma riqueza de oportunidades educacionais que passa ao largo das esco-
las. Das discussões e experiências que se dão nas brechas, nos intervalos do al-
moço, no recreio, todos com o celular na mão twittando, postando, fotografando,
navegando e conversando... Muitas dessas conversas, questões e modos de fazer
poderiam ser trazidos para a sala de aula. Nenhuma das escolas dos sete jovens
investigados, de diferentes regiões do país, aproximou-se da experiência vivida
por eles ou considerou o aporte que poderiam trazer para os demais. Ficou a
pergunta: por quê? Que fatores ou elementos afastam os educadores de enxergar
a potência que ela pode representar? Fatores pessoais, culturais, institucionais
ou todos simultaneamente? O que gera esse descompasso entre a vida familiar e
a vida escolar? O que poderíamos fazer para superá-lo?

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88 | Comunicação, audiovisual e educação


5
Pedagogias da animação:
experiências de criação de filmes na escola
Jo an a S o bral M i lli et

Onde não há tudo, mas onde cada palavra, cada olhar, cada gesto
tem fundamentos.
(BRESSON, 2005, p. 31)

A Animação não é a arte dos DESENHOS-que-se-movem, mas a arte


dos MOVIMENTOS-que-são-desenhados.
O que acontece entre cada fotograma é muito mais importante do que
o que existe em cada fotograma.
A Animação é, portanto, a arte de manipular os interstícios invisíveis
que se encontram entre os fotogramas.
(MARTIN ([199-]) apud MAGALHÃES, 2004)

AUDIOVISUAL NA ESCOLA

A comunicação e a informação ocupam hoje papéis centrais na configuração das


sociedades contemporâneas e vêm, ao longo das últimas décadas, produzindo
impactos e transformações nos modos de vida das pessoas nas mais diversas ins-
tituições sociais, inclusive na escola. Diferentes fatores estabelecem as condi-
ções históricas para essas transformações, entre eles a popularização de alguns
aparatos tecnológicos como o computador, o tablet e o celular, que são, hoje,
grandes mediadores das relações interpessoais e culturais dos sujeitos.

| 89
No campo da educação, muitos autores têm questionado de que forma as
novas tecnologias podem se integrar a um projeto pedagógico realmente ino-
vador. Com o acesso cada vez maior, principalmente de crianças e jovens aos
meios digitais, nos colocamos hoje em um patamar diferente enquanto recepto-
res. Orozco (2010, p. 16) diz que, na “condição comunicacional contemporânea”,
temos, pela primeira vez na história, a oportunidade de interagir de maneira real
com os produtos midiáticos, graças à interatividade que o digital permite, e não
apenas de maneira simbólica como era anteriormente, na dimensão analógica,
em que a atividade das audiências não se manifestava de maneira visível. Agora,
temos a possibilidade de “desconstruir comunicacionalmente” os referentes mi-
diáticos, podendo, enquanto audiência, ressemantizá-los, destruí-los e recons-
truí-los, tanto materialmente como informacionalmente. Por isso, Orozco (2010)
ressalta que um dos grandes desafios que hoje se apresenta é o desenvolvimento
de competências comunicativas para sermos, enquanto audiências, não ape-
nas receptores, mas também produtores e emissores. Ele afirma a necessidade
de uma política comunicacional-educativa que busque fortalecer as capacida-
des de produção comunicativa dos cidadãos: “Porque assim como não se nasce
receptor de TV ou rádio, mas torna-se um, também não nascemos emissores,
transmissores ou criadores, temos que aprender a sê-lo”.1 (OROZCO, 2010, p. 17,
tradução nossa) Sibilia (2012) sugere que a escola do século XXI deve ser um es-
paço capaz de ensinar aos alunos estratégias que deem sentido e transformem
em experiência o grande fluxo de informações e operações disponibilizadas pe-
las novas tecnologias.
Nesse contexto, os usos desses aparatos tecnológicos estão cada vez mais
vinculados à imagem, que parece ser o principal meio de comunicação, seja na
propaganda, nas notícias, nas histórias narradas – filmes, novelas, seriados tele-
visivos – e na internet – sites, redes sociais. Pode-se dizer que vivemos, hoje, uma
audiovisualização da nossa cultura, impactando as relações que as crianças têm
com o conhecimento, pela presença da imagem em seu processo de formação.
(FERNANDES, 2010)
Diante dessa realidade, Duarte e Alegria (2008) apontam ser fundamen-
tal oferecer às novas gerações a formação que necessitam para viver e pensar

1 Texto original “Porque si bien como receptor o televidente o radioescucha no se nacía, sino que se iba lle-
gando a ser, como emisores y transmisores, como creadores, tampoco se nace, hay que aprender a serlo”.

90 | Comunicação, audiovisual e educação


numa sociedade de imagens. Sendo o cinema percebido como “a narrativa mais
complexa que permite, de forma mais ampla, a percepção da formação narra-
tiva dos sujeitos em seus modos de ler e narrar por imagens” (FERNANDES,
2010, p. 2), parece significativo refletirmos sobre a presença do cinema no con-
texto escolar. Essa mesma autora aponta, em pesquisas anteriormente realiza-
das (FERNANDES, 2012), a relação significativa das crianças com os desenhos
animados e isso reforça a escolha por fazer pesquisa na escola com práticas de
professoras com animação, realizando com as crianças os chamados “desenhos
animados” que elas tanto gostam.

PEDAGOGIAS DA ANIMAÇÃO

Nessa perspectiva, propõe-se analisar o uso na escola de uma linguagem audio-


visual que tem seu modo de fazer muito peculiar: a animação. As reflexões aqui
apresentadas são fruto da pesquisa realizada durante o mestrado em Educação,
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que teve, como
sujeitos pesquisados, quatro professoras da rede municipal de educação do Rio
de Janeiro que participaram do Anima Escola em 2012 e 2013. O projeto Anima
Escola, uma iniciativa do Anima Mundi,2 Festival Internacional de Animação
do Brasil, oferece cursos de formação de cinema de animação para professores.
O projeto divide-se em várias etapas, com cursos introdutórios e mais avançados
para professores, oficinas com alunos e uma fase de produção autônoma nas es-
colas. O campo da pesquisa centrou-se nesta última etapa do projeto, a produção
autônoma, em que professores que já passaram pelas etapas anteriores – cur-
sos e oficinas – são convidados, através de um edital, a proporem um projeto de
produção de um filme de animação em suas escolas, realizando esses filmes com
seus alunos de forma autônoma, sem a presença de monitores ou professores do
Anima Escola, contando com apoio do projeto no empréstimo de equipamentos,
quando necessário, participando de encontros para trocas de experiências entre
os professores, ou acionando, via telefone ou e-mail, a equipe do projeto para
tirarem dúvidas quando precisam.

2 O Projeto Anima Escola há 18 anos leva o cinema de animação, através de cursos e oficinas, para alu-
nos e professores de escolas públicas e particulares de diversas cidades do Brasil. Na rede municipal
de educação do Rio de Janeiro, já chegou a mais de 2 mil professores e 10 mil alunos.

Pedagogias da animação | 91
Os professores que se inscrevem nessa etapa do projeto e se propõem a rea-
lizar um filme com seus alunos são, portanto, os condutores desse processo de
criação de animação na escola. A partir do aprendizado técnico sobre a lingua-
gem da animação, ensinado durante os cursos de capacitação para professores
do Anima Escola, o que criam esses professores com seus alunos? Durante esse
processo de criação, estariam os professores construindo uma pedagogia? É
possível percebermos semelhanças e diferenças entre as possíveis pedagogias
criadas pelos professores? Como os professores atuam como narradores nesse
processo? Essas foram as principais questões colocadas para a pesquisa.
Pensar sobre a possível criação de uma pedagogia da animação, por parte
de professores que realizam filmes de animação com seus alunos na escola, foi
o objetivo principal da pesquisa. O termo “pedagogia da animação”, inspirado
na pedagogia dos cineastas,3 surge do pressuposto de que há gestos pedagógi-
cos nos modos de fazer cinema e que cada professor desenvolve uma pedagogia
própria a partir das escolhas feitas durante o processo de criação dos filmes de
animação com seus alunos.
Para refletir a respeito da criação das pedagogias da animação, foi funda-
mental saber quem são esses professores, ouvi-los sobre como realizam a pro-
dução dos filmes de animação com seus alunos, buscando entender os funda-
mentos das “palavras, olhares e gestos”, como cita Bresson na abertura deste
texto, utilizados na criação das diversas etapas desse processo de realização de
animação na escola. Foi preciso olhar para diferentes aspectos relativos à cria-
ção dos filmes de cada professora, observando as regularidades, os elementos
privilegiados, suas fontes e critérios. Tais fundamentos do fazer delas carregam
narrativas e experiências, assim como vão constituindo uma pedagogia/modo
ou forma de contar.
Entendendo a pedagogia da animação como as escolhas feitas durante o
processo de produção de filmes de animação e os gestos pedagógicos existentes
nesse “fazer”, foi possível perceber ao longo da pesquisa que cada professora
tem a sua própria pedagogia da animação, criada a partir de diferentes experiên-

3 A pedagogia dos cineastas é uma proposta da Adriana Fresquet e Anita Leandro da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de buscar o que há de pedagógico no processo criativo dos cineastas.
A pedagogia de Abbas Kiarostami foi discutida durante a disciplina Pedagogia dos cineastas cursa-
da por Joana Milliet, em 2012, e lecionada pela professora Adriana Fresquet no Programa de Pós-
-Graduação em Educação da UFRJ.

92 | Comunicação, audiovisual e educação


cias constituídas em suas histórias enquanto professoras, a partir da cultura em
que estão inseridas e seus consumos e relações com a cultura do cinema.
As principais marcas observadas em cada pedagogia foram resumidas no
quadro a seguir:

Quadro 1 – Principais marcas das pedagogias da animação de cada professora

Alessandra Amália Tatiana Imaculada


- Valorização das - Tentativa de mexer - Criação coletiva do - Exibição de filmes que
atividades prévias com com o tempo escolar roteiro, com liberdade mostrem o processo
os brinquedos óticos; para conseguir produzir para ser modificado ao de produção da
- Busca por não animação; longo da filmagem; animação/confecção de
didatizar a experiência - Temas articulados - Pesquisa para brinquedos óticos.
de produção dos filmes; com os projetos da contextualização do - “Fazer animação”
- Fazer animação como escola; tema e busca por enquanto experiência
forma de trabalhar as - Parceria com os referências; artística;
relações na escola; professores; - Parceria com outros - Ênfase na liberdade de
- Cinema na escola - Criação coletiva do professores. criação individual dos
como algo estranho ao roteiro; - Autonomia dos alunos alunos.
cotidiano escolar; - Todos os alunos durante a produção; - Animação “trash”
- Storyboard como participam de todas as - Valorização da – criação a partir das
forma de planejamento; etapas; comunidade onde os possibilidades;

- Temas das animações - Materiais utilizados: alunos vivem / visão de - Busca por trabalhar
dialogando com a sucata, recorte, mundo dos alunos. o artesanal e o
literatura – liberdade de massinha. tecnológico.
“caminhar dentro da
obra”.

Fonte: elaborado pela autora.

Como pode ser observado no Quadro 1, um dos aspectos de análise nas pe-
dagogias das professoras foi a forma de escolha dos temas para as animações.
Olhando, por exemplo, para o conjunto de filmes já realizados pela Alessandra,
professora de sala de leitura, com seus alunos, percebemos que os temas eram
bem variados, alguns inspirados em livros e outros ligados a assuntos estudados
em sala de aula com os alunos, como animais que habitam a savana, o pintor
Picasso e a Copa do Mundo. Quando questionada sobre a escolha dos temas,
Alessandra disse que procura fazer do trabalho com animação algo que não seja
estritamente ligado aos projetos da escola.

Pedagogias da animação | 93
Figuras 1 – Brinquedos óticos:
flipbooks
Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 2 – Brinquedos óticos:


taumatrópios
Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 3 – Brinquedos óticos:


zootrópio feito de caixa de DVD
na escola da Alessandra 
Fonte: arquivos de pesquisa.

94 | Comunicação, audiovisual e educação


Eu não gosto de usar a animação de forma didática, dentro do projeto da escola
[...]. Eu acho que animação tem que ser um momento em que os alunos estão na
escola, fazendo coisas de escola e acham que não estão, entendeu? É um momento
que eles estão ali, que estão fazendo uma coisa que eles estão a fim de fazer e que teo-
ricamente não está em livro, não tem que estudar para a prova. É diferente de você
colocar uma folha de redação e dizer: produza um texto. Ali eles estão produzindo
um texto deles, riquíssimo, fazendo inúmeras interpretações de textos já existentes
e não tem prova. Você vê, eles vêm fora do horário porque querem. Eles estavam em
tempo vago, podiam descer para o recreio e subiram. Tem que ter alguma coisa que
faça eles quererem estar na escola. Tem um professor de história da outra escola
que diz: o que você lembra dos seus professores? Você lembra de oração coordenada,
oração subordinada? Não, você lembra da pessoa, você lembra de um livro, de uma
leitura que foi feita, de uma festa que teve, você lembra é das relações, então, a esco-
la tem que ter isso. (Alessandra)

Na pedagogia da animação de Alessandra, a opção por não trabalhar com


assuntos ligados ao projeto ou currículo escolar aparece de forma marcante em
sua fala. Não só na escolha dos temas, mas também do tempo para se fazer a ani-
mação, Alessandra busca mexer com a rotina da escola. Ela desenvolve o projeto
com os alunos no contraturno e muitas vezes os alunos aparecem na sala de lei-
tura nos tempos vagos, interessados em dar continuidade ao filme de animação.
As falas em negrito demonstram como Alessandra percebe o papel da animação
na construção da sua pedagogia: algo que faça eles quererem estar na escola, que
amplie as relações. Os temas, de acordo com ela, quando relacionados ao que
motiva os alunos, geram esse afeto, esse gosto por estar ali até na hora do recreio.

Figura 4 – Imagem do filme


Fogo no céu (Alessandra)
Fonte: adaptada de Anima Escola
(2008).

Pedagogias da animação | 95
Figura 5 – Imagem do filme Voo,
inspirada no livro de Picasso
(Alessandra)
Fonte: adaptada de Anima Escola
(2013).

Bergala (2008) diz que o cinema tem que entrar na escola como um elemento
de caos e desordem, justamente para se contrapor ao lugar da ordem, da regra e
do didatismo presentes na escola, como nos relata Alessandra. Sendo esse ele-
mento perturbador, o cinema tem a possibilidade de estar na escola enquanto
arte e promover o encontro com a alteridade. Esse encontro com o outro, com
o que é diferente, também aparece na fala de Alessandra, quando ela diz que a
escola precisa das relações – proporcionadas por momentos como o de produção
de animação –, pois acredita que é isso que fica na memória, na experiência dos
alunos. “Ver o encantamento nos olhos dos alunos” nada mais é do que construir
uma experiência que “fica” na dimensão apontada por Benjamin (1985). Como
ela diz: “afinal, o que você lembra dos seus professores?”. O que marca a experiên-
cia deles, alunos, faz parte da pedagogia de Alessandra.
Outra professora pesquisada, Amália, também responsável pela sala de leitu-
ra, aponta como um dos desafios de fazer animação na escola a organização do
tempo escolar e a necessidade que as atividades entrem nesse planejamento, ten-
do que se encaixar em tempos de 50 minutos e atenderem concomitantemente
todos os alunos da turma. Para conseguir dar atenção e trabalhar com pequenos
grupos, algo que na pedagogia da animação de Amália aparece como fundamen-
tal, ela e as professoras com quem trabalha em parceria precisam atender aos alu-
nos em seus horários de Centros de Estudos,4 fora do tempo das aulas.

4 Os Centros de Estudos são um cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


(LDBN) nº 9394/96, em seu artigo 67, inciso V, que estabelece aos professores um período reservado
a estudos, planejamentos e avaliação, incluído na carga horária de trabalho.

96 | Comunicação, audiovisual e educação


A realidade vivida pela professora Amália em sua escola trouxe novas refle-
xões sobre a dificuldade de se vivenciar a experiência na velocidade em que vi-
vemos atualmente, que atravessa também os muros da escola. Segundo Larossa
(2002), o sujeito da experiência se define por sua receptividade feita de paciência
e atenção, além de disponibilidade e abertura para ser tocado. O autor, ao pensar
a educação a partir da experiência, diz que esta é cada vez mais rara por falta de
tempo e excesso de trabalho e que isso está acontecendo também na escola.

Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada


vez mais convencido de que os aparatos educacionais também fun-
cionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma
coisa nos aconteça [...] Cada vez estamos mais tempo na escola, mas
cada vez temos menos tempo. (LAROSSA, 2002, p. 23)

Uma das formas que Amália encontrou para conseguir fazer filmes de ani-
mação na escola mesmo com a falta de tempo, foi trabalhar em parceria com
outros professores, como os regentes das turmas e a professora de artes, que aju-
dam na confecção dos personagens e cenários. É assim que busca tempo para
que “algo nos aconteça” na escola:

Aquela professora da turma que você acompanhou no ano passado entrou mara-
vilhosamente bem no projeto, aí vai muito mais fácil. Então depende também de
com quem você está trabalhando, como está aceitando. A professora de artes é uma
que há anos faz junto, então isso auxilia à beça. Ela também cansa de pegar centro
de estudos dela para pegar as crianças para fazer material para as animações [...]
Não tem um horário em que você possa fazer isso com os grupos, então isso atrapa-
lha. Ele [o projeto de animação] não entra tão naturalmente assim dentro do plane-
jamento como deveria ser, que seria muito mais enriquecedor. Infelizmente ele não
entra mais assim. (Amália)

Durante o trabalho de campo, Tatiana, que é professora de Artes Visuais,


demonstrou em seu discurso uma preocupação em desenvolver competências
comunicativas nos alunos. (OROZCO, 2010) Tatiana nos ajuda a perceber que,
apesar da vivência que os alunos possuem com o audiovisual, para a experiência
da produção de filmes de animação, é preciso um aprendizado e apoio propor-
cionados pela escola:

Pedagogias da animação | 97
Figura 6 – Alunos da Amália produzindo o filme Sonho, em 2012
Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 7 – Alunos produzindo o filme Arca de Noé, em 2013


Fonte: arquivos de pesquisa.

98 | Comunicação, audiovisual e educação


Eles estão sempre ligados na internet, sempre ligados na televisão [...]. Então eles
ficam ligados nessas mídias né, eles sempre visualizam isso. Agora a parte de tra-
balhar minuciosamente na animação, o movimento tem que ser assim, assado,
eles não têm essa noção, eles têm a noção a partir do momento em que eu explico e
que eles participam das oficinas. Olha fazendo assim dá pra vocês fazerem isso, aí
eles despertam. Eles gostam, se sentem fascinados pelo movimento, mas eles ainda
não têm a noção de como fazer aquilo mesmo vendo tanta coisa na tv e na internet.
(Tatiana)

Tatiana reafirma, a partir de sua prática, o que destaca Orozco (2010) sobre o
fato de que não nascemos emissores e criadores de audiovisual, mas precisamos
aprender a sê-lo e a escola tem também esse papel. Segundo Tatiana, o consu-
mo de mídias – internet e TV, principalmente – dos alunos não garante o co-
nhecimento sobre a forma de se produzir o movimento na animação. Ao mesmo
tempo, ela destaca que a partir do momento em que eles são introduzidos a esse
universo rapidamente ganham autonomia para realizarem sozinhos as cenas
dos filmes:

Ficava um aluno responsável porque eu dava aula nos outros tempos e tinha isso, eu
praticamente deixava eles sozinhos, eles faziam animação sozinhos. Eles já sabiam
fazer tudo. Durante a aula, eu ia lá, corria pra ver como é que estava. Mostravam
pra mim, ‘aí professora tem que tirar isso, isso e isso’, já sabiam até as cenas que
tinham que tirar. Então vamos tirar e agora vamos ver o roteiro, o que está faltan-
do? Cena quatro, cena cinco, cena seis. Eu ia lá dava uma olhada, mas eles eram
autônomos, sabiam o que fazer, entendeu? [...]
Tinha maquiadora, tinha cabeleireira, a que fazia as roupas, a que carregava as
coisas, cada um tinha uma responsabilidade, tem que delegar senão você enlou-
quece. (Tatiana)

A confiança dos alunos durante o processo de fazer o filme e a crença de


Tatiana no saber de seus alunos são corroborados por Fresquet (2013), quando
diz que fazer cinema na escola ajuda a reduzir assimetrias entre professores e
estudantes, desconstruindo papéis. Nesse processo, ambos são criadores e tra-
balham em conjunto na realização do filme, mexendo com a hierarquia presente
em sala de aula.

Pedagogias da animação | 99
Figura 8 – Imagem do filme A Família Real na Maré com os alunos da Tatiana caracterizados
na Baía de Guanabara
Fonte: adaptada de Anima Escola (2008).

Figura 9 – Cena do filme Jasmin, a princesa da Maré. A arquitetura de Paris, desenhada pelos alunos
Fonte: adaptada de Anima Escola (2011).

100 | Comunicação, audiovisual e educação


Como professora de Artes, Imaculada, outra professora pesquisada, priori-
za o fazer artesanal proporcionado pela animação. Alguns filmes de animação
produzidos pelos alunos ela denomina como “Animação Trash I, II, III...”. Em
suas falas ela explica o porquê do uso do termo, que o blog da escola chama de
“estética poética trash”:

Porque eu via na internet as pessoas falando que faziam filmes trash e eu falava,
nossa isso parece com o que eu faço na escola, a gente tem que improvisar, a gente
pensa numa coisa e tem que usar outra, é o material que tem e as ideias vão surgin-
do a partir dali. Até isso é legal também porque entra um elemento novo, o acaso.
Eu acho essas coisas interessantes. Você saber trabalhar com aquela dificuldade
que surge, né? Está faltando isso, mas a gente pode usar aquilo. Então já surge uma
ideia nova, são coisas boas numa situação de aprendizagem, de desenvolver isso
neles, e na gente também. Eu acho que o tempo todo a gente ensina e aprende, né?
A gente aprende fazendo aquilo ali, a gente vê muita coisa nova que vai surgindo
deles e que eles passam para a gente e a gente passa pra eles e vai saindo. Eu acho
isso muito legal! E essa questão mesmo que eu falei, que eu chamo de trash, porque
o cinema trash tem aquela coisa muito do acaso, não é só por ser mal feito. Porque
o cinema trash é conhecido por ser mal feito, mas o que eu acho legal é a situação
que a pessoa precisa resolver. Não tem sangue cinematográfico? Coloca ketchup!
(Imaculada)

Quando define seu cinema de animação trash, Imaculada fala também da


sua forma de criar com os alunos, usando o que há disponível na escola, tanto em
termos de recursos quanto de tempo, aprendendo e ensinando através desse fa-
zer e, também, correndo riscos junto com os alunos, como o passador de Daney
(2007 apud BERGALA 2008), estimulando a criatividade a partir do que surge
como possibilidade. O “passador”, conceito proposto por Serge Daney e retoma-
do por Bergala, é aquele que inicia o outro em algo que lhe é caro, a partir de um
lugar menos protegido, pois envolve seus gostos e o que o toca pessoalmente. Por
isso, corre riscos junto com seus alunos, estando ao seu lado no fazer e nas des-
cobertas, falando de um outro lugar que, simbolicamente, não é o do professor
tal como definido pela instituição escolar. (BERGALA, 2008)
Um outro aspecto fundamental para se compreender a pedagogia de
Imaculada é a forma como ela vê a experiência de produzir animação enquanto
arte, como ela relata:

Pedagogias da animação | 101


Figura 10 – Imagem do filme O pintor, da série animação Trash 2 (técnica de pixilation)
Fonte: adaptada de O Pintor (animação trash 2) (2011).

Figura 11 – Imagem do filme O pardal distraído (técnica de recortes)


Fonte: adaptada de O Pardal distraído (2013).

102 | Comunicação, audiovisual e educação


Eu acho que é essa experiência de arte mesmo, que não tem uma coisa assim de o
que me traz de útil. Uma experiência de fazer animação é uma experiência da arte,
então eu não posso falar assim, o que isso trouxe de bom para a sua vida, porque
eles são muito novinhos [...]. Então é aquela experiência mesmo que eles têm em
relação à arte, de conhecer uma arte nova, de experimentar uma arte nova. Eu
não vejo só utilidade, utilidade é o que a nossa sociedade quer, né? Mas com a arte
nem sempre a gente tem isso de ter que ser útil. (Imaculada)

Essa experiência de conhecer uma nova forma de arte faz parte do modo
como Imaculada define sua pedagogia. Como professora de Artes, ela se posicio-
na sobre sua crença na potência de “fazer animação” enquanto experiência artís-
tica, dialogando com Bergala (2008, p. 31), que defende em sua hipótese-cinema
que a arte não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do “fazer”: “a
arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias
além do discurso do saber, e, às vezes, mesmo sem qualquer discurso. O ensino
se ocupa da regra, a arte deve ocupar um lugar de exceção”.
Imaculada vê seu trabalho com animação, assim como Bergala (2008) tam-
bém aponta, acima de tudo como uma experiência que os alunos devem viven-
ciar e que, como sabemos por Benjamin (1985), é capaz de tocar e transformar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imersão na complexidade dos processos de fazer cinema de animação na es-


cola, durante o trabalho de campo e na análise do material coletado das quatro
professoras pesquisadas, evidenciou não só as marcas características das dife-
rentes pedagogias da animação, mas também que esses filmes de animação fei-
tos na escola – sem descolar, é claro, cada filme de todo o seu processo de cria-
ção – se apresentam como uma forma de narrar contemporânea. Inspirados em
Benjamin (1985, p. 200), que diz que “o narrador é um homem que sabe dar con-
selhos”, podemos ver os professores como narradores, que “aconselham” seus
alunos ao indicarem os caminhos para produzirem juntos as animações. Nesse
processo, o professor/narrador retira da sua experiência o que conta, o que pro-
põe aos alunos e nesse movimento de fazer junto, incorpora as coisas narradas
à experiência de seus alunos e à sua própria experiência, transformando ambos.
“Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na

Pedagogias da animação | 103


argila do vaso” (BENJAMIN, 1985, p. 205), da mesma forma que as pedagogias da
animação nos filmes realizados.
A animação e sua forma própria de produção, que difere bastante do cinema
live action, com maior destaque nos debates de autores e pesquisas acadêmi-
cas, apareceram no decorrer da pesquisa como uma proposta que mexe bastante
com o cotidiano escolar. Seu processo de realização, que demanda muito tempo,
atenção e trabalho em grupo, acontece muitas vezes, como visto na pesquisa,
nas brechas do sistema educacional, como um elemento estranho e perturbador,
como defende Bergala (2008). E a escola, quando possibilita esse trabalho com
animação, desponta como lugar em que também é possível “inventar espaços
e tempos que possam perturbar uma ordem dada, do que está instituído, dos
lugares de poder” (FRESQUET, 2013, p. 25), assim como concordamos que a edu-
cação não é mais algo que possa prescindir dos demais meios de comunicação,
procurando meios de dialogar e integrá-los ao cotidiano escolar como mais um
dos muitos modos de leitura capazes de promover – a partir da experiência das
crianças com a animação – uma pedagogia do olhar. (FERNANDES, 2012)
Nessa invenção de espaços, lugares e novas ordens, descobre-se que ainda
é possível trocar experiências enquanto se cria animações na escola, quando
é exigido um tempo diferente das pessoas e o contato direto entre elas, como
acontecia na cultura da oralidade. (BENJAMIN, 1985) Se, para Benjamin (1985),
o fracasso da experiência na sociedade moderna capitalista extinguiu a arte de
contar, a reconstrução da experiência seria acompanhada de uma nova forma
de narratividade, “fruto de um trabalho de construção empreendido justamente
por aqueles que reconhecem a impossibilidade da experiência tradicional na so-
ciedade moderna e se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência
vivida individual”. (GAGNEBIN [19--] apud BENJAMIN, 1985,p. 197) Parece que
esses professores sujeitos da pesquisa de fato não se contentam com o tempo
e ritmo impostos pela escola e se arriscam a propor novas formas de ensinar e
aprender junto com os alunos. Fazer animação na escola, como foi visto durante
a pesquisa, representa essa nova forma de narrar contemporânea que Benjamin
diz ser necessária, que está em consonância com os modos de ser dos sujeitos,
constituídos a partir da cultura audiovisual. (SIBILIA, 2012) Animar requer ges-
tos raros nos dias de hoje: demorar-se nos detalhes, cultivar a atenção, a paciên-
cia, a escuta, parar para olhar, pensar, ações que possibilitam que a experiência
nos aconteça. (LARROSA, 2002) A análise das pedagogias da animação das pro-

104 | Comunicação, audiovisual e educação


fessoras mostrou também que, nas diferentes etapas e propostas para os pro-
cessos de criação, professores e alunos intercambiam experiências. Se a arte de
narrar é cada vez mais rara por falta de condições de realização da transmissão
da experiência, ligada a um trabalho e tempo compartilhados, podemos pensar
que ações como essa de realizar animação fazem da escola um lugar onde a ex-
periência e a narrativa ainda são possíveis na atualidade.
A função do professor durante esse processo de criação coletiva com os alu-
nos esteve em foco na análise do material do campo. Como o sujeito que apre-
senta aos alunos algo que lhes tocou – fazer filmes de animação –, verificou-se
que ele exerce o papel que Daney ([19--]) (apud BERGALA, 2008) denominou de
“passador”, investindo nas propostas dos alunos, buscando soluções em parce-
ria, apresentando seus gostos, permitindo que os alunos contribuam com seus
saberes, correndo riscos juntos num fazer compartilhado.
Finalizando, retomamos aqui umas das razões iniciais que impulsionaram
essa pesquisa: pensar a dimensão formativa do cinema no contexto escolar.
Dimensão essa que pode ser percebida em diferentes ações, por diversos cami-
nhos, mas que neste percurso se deu através do olhar sobre invenções e escolhas
capitais das professoras para proporcionar a criação de filmes de animação na
escola. Dialogando com o que diz Norman MacLaren na abertura deste texto, po-
demos dizer que analisar as pedagogias da animação das professoras é também
uma busca por tornar visíveis os “interstícios invisíveis que se encontram entre
os fotogramas” dos filmes feitos nas escolas.

REFERÊNCIAS

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1 DVD (92 min).

ANIMA Escola. Produção: Anima Mundi. Rio de Janeiro: SME, 2011.


1 DVD (103 min).

ANIMA Escola. Produção: Anima Mundi. Rio de Janeiro: SME, 2013.


1 DVD (72 min).

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Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios

Pedagogias da animação | 105


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Pedagogias da animação | 107


6
Uma pesquisa com filmes para jovens cegos:
cultura do ouvir no contar filmes e/ou
audiodescrever

Margareth O leg ár i o
Ad riana Ho ffm ann

INTRODUÇÃO

A questão em foco neste texto trata de um debate surgido na pesquisa realiza-


da em uma escola especializada com jovens estudantes cegos e com baixa visão
do 4º ano do ensino fundamental. O objetivo da pesquisa foi perceber o acesso
desse público aos filmes e o modo como se relacionavam com os filmes vistos.
Trata-se do estudo realizado por Margareth Olegário no Mestrado em Educação.
(OLEGARIO, 2015)1
Explicitamos que pelo fato da mestranda, autora da dissertação de mestra-
do e coautora deste capítulo, ser cega de nascença, optou-se por não trazer no
mesmo notas de rodapé. As informações estarão todas no corpo do texto a fim
de possibilitar a leitura de pessoas cegas através de leitores de tela. Reiteramos
também que por tratar-se de assunto como a audiodescrição – em grande parte
desconhecido do público – optamos por fazer um artigo que procura apresentar
um pouco do universo dos jovens cegos e as questões envolvidas no acesso aos
materiais audiovisuais tendo a audiodescrição um papel de tecnologia assistiva

1 O texto apresenta uma versão revisada do artigo já publicado na Revista Teias.

| 109
por dar acesso, de forma profissional, aos que não podem ver o que hoje circula
nas muitas telas da atualidade.
Algumas das questões que fizeram parte da investigação são: que ideia de
cinema teriam os jovens que não o enxergam? Como pensar sobre um cinema
para os que têm acesso ao som mas não a imagem? Seria essa uma outra forma
de entender o cinema?
Tal experiência assemelha-se ao que foi vivido por vários dos depoentes do
filme brasileiro Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho de 2001. O fil-
me, já em seu título, alude à frase de Leonardo da Vinci: o olho é a janela da alma,
o espelho do mundo. Essa visão de que só se tem ideia do mundo pelo ver é algo
que nos traz questionamentos. Os diretores do filme tem o desafio de nos fazer
pensar sobre isso. Para tanto, entrevistaram pessoas de diferentes países e com
diferentes profissões para refletir sobre o que é a visão na experiência de cada
um deles. Os entrevistados no filme tem diferentes graus de visão indo desde
a cegueira, com maior ou menor acuidade da visão, ao uso dos óculos de grau.
Os depoimentos do filme nos desacomodam e nos fazem pensar sobre o que ve-
mos e como vemos. O filme nos faz perceber que – mesmo tendo visão – nem
sempre vemos com os olhos. Nos deparamos no filme com o depoimento de Win
Wenders que nos diz que prefere “ver enquadrado” para ver menos e ver melhor
e com falas como a de Hermeto Paschoal que diz ver com sua vista embaçada o
que a maioria não vê. A visão torna-se algo que não é apenas a imagem mas algo
que se constrói com as imagens ou que se diz ou se faz com elas. O filme nos faz
questionar nossa relação com a visão e a funcionalidade do olho na percepção
do mundo ao redor.
Nesse sentido, um exercício importante na pesquisa realizada foi o que vi-
veu uma das autoras deste capítulo – Margareth Olegário – que, por ser cega de
nascença, encarou o desafio de rever sua experiência com os filmes para poder
– a partir dela – perceber a experiência dos sujeitos da pesquisa.
Como Margareth Olegário, cega de nascença, viveu e entendeu até hoje os
filmes? Como construiu essa relação com a TV, o cinema e os audiovisuais de for-
ma geral? O que é acessível ou não a ela? Como faz suas escolhas do que assistir
e como busca entender o que assiste? O que a estimula a querer assistir algo ou a
continuar assistindo e o que a faz desistir de tentar?
E, afinal: como esses jovens que são cegos ou com baixa-visão se relacionam
com filmes que passam na TV e no cinema? De que forma eles tornam-se ou não

110 | Comunicação, audiovisual e educação


acessíveis a eles? Que ponto de encontro existe entre a experiência de Margareth
e a experiência deles?
Margareth relata que nasceu cega mas tem quatro irmãos que enxergam nor-
malmente e sempre buscaram inseri-la nas atividades das quais eles participa-
vam. Algumas eram atividades que tinham imagens como assistir a desenhos
animados na TV, filmes, novelas, reportagens, entre outras. A TV foi o primeiro
recurso audiovisual a que Margareth teve acesso e desde muito cedo teve inte-
resse pelo que se passava nas imagens da TV. Os irmãos descreviam – a maneira
deles – o que estavam vendo e ela os inquiria acerca do que não compreendia.
Porém, o internato de segunda a sexta-feira aos seis anos de idade para que pu-
desse estudar, interrompeu um pouco esse contato com o audiovisual contado
pelos seus irmãos e às vezes por sua mãe, pois na escola quase não assistia à
televisão e quando assistia a alguma programação na TV, não havia esse contar
ou descrever o que se passava.
Não se recorda a idade em que foi pela primeira vez ao cinema, mas nesse
dia, assistiu com os irmãos ao filme Tarzan. Foi tão impactante para todos que
eles quase não falaram no momento do filme. Somente no caminho de casa, ela
soube um pouco do que se passou na tela e não foi compreendido por ela.
Muitos anos se passaram e chegou o dia que ela conheceu o recurso da au-
diodescrição no primeiro Festival Assim Vivemos, no Centro Cultural do Banco
do Brasil (CCBB), quando já atuava como professora no Instituto Benjamin
Constant (IBC). Na época, foram exibidos filmes acerca de questões que envol-
vem as deficiências e esses eram todos audiodescritos e acessíveis a ela.
A descoberta da audiodescrição tornou-a mais curiosa do que antes e exi-
gente nas descrições não só de filmes, mas de imagens estáticas, tais como qua-
dros e esculturas e objetos. Atualmente, ela dá preferência a programações que
possuam audiodescrição mas, não deixa de ir a eventos sem a audiodescrição,
pois se assim o fizer, estará fadada a não ir ao cinema, teatro, exposições, pois
reconhece que ainda são pouquíssimos os eventos audiovisuais que utilizam-se
do recurso da audiodescrição. No entanto, fica sem dúvida, limitada a frequen-
tar esses locais somente na companhia de quem enxerga para contar para ela o
que ocorre nas imagens mesmo que informalmente. No seu ponto de vista, a au-
sência da audiodescrição prejudica imensamente a compreensão dos conteúdos
audiovisuais, principalmente, os filmes que não têm muitas falas.

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 111


Uma questão surgida na experiência de Margareth apareceu também na fala
dos sujeitos da pesquisa: o acesso aos filmes e materiais audiovisuais se dá em
sua maior parte por dois meios: pelo contar do outro ou pela audiodescriçao.
As duas são formas apontadas pelos sujeitos e por Margareth de acesso à expe-
riência com filmes e audiovisual trazem um ponto de encontro entre a experiên-
cia dela e dos seus sujeitos de pesquisa.
Uma questão em especial assemelha-se no contar e na audiodescriçao. Nos
dois, o jovem cego tem acesso as imagens pela fala de outra pessoa – que não
ele próprio – já que ele não as pode ver. Nas duas situações, ele precisa confiar
em quem conta ou na equipe que audiodescreve. Assumir que precisa do outro
para viver a experiência com a imagem é remeter a alteridade imprescindível
dela. Para fazer essa discussão, nos remeteremos a Larossa para pensar que a
experiência dos cegos com a imagem é uma experiência fundante de alteridade.
Larossa (2011, p. 2) chama de “princípio de alteridade” a experiência que ele ex-
plica adiante:

A experiência é ‘isso que me passa’. A experiência supõe, em primeiro


lugar, um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar de algo que
não sou eu. E ‘algo que não sou eu’ significa também algo que não
depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é
resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas
representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos,
nem de minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem
de meu poder, nem de minha vontade. ‘Que não sou eu’ significa que
é ‘outra coisa que eu’, outra coisa do que aquilo que eu digo, do que
aquilo que eu sei, do que aquilo que eu sinto, do que aquilo que eu
penso, do que eu antecipo, do que eu posso, do que eu quero.

Desse modo, esses jovens cegos vivem essa experiência com o princípio da
alteridade de forma extrema, entendendo que dependem da alteridade, ainda
mais do que nós, como forma de localizarem-se e atuarem no mundo em que
vivem. No entanto, dialogando com Larossa, pensamos que essa alteridade que
não sou eu é a alteridade que me permite ser mais eu e, no caso dos cegos, é a
alteridade que os faz ver como eu percebo e crio minha imagem a partir do ouvir
da imagem dita pelos outros.

112 | Comunicação, audiovisual e educação


José Eugenio Menezes (2008, p. 114) vai discutir a cultura do ouvir. Na escuta
de si mesmo e na escuta do outro, “o ouvido desenvolve um papel fundamental
na constituição da subjetividade e da sociabilidade”. Como seria contar esses fil-
mes a quem não vê? E o que seria a audiodescrição? A audiodescrição asseme-
lha-se ou diferencia-se do contar o filme oralmente?
Essas e outras questões foram discutidas na pesquisa realizada por Margareth
dentro da ótica da pesquisa-intervenção. Para a pesquisa, foram realizadas qua-
tro sessões de exibição de curtas audiodescritos na escola com cerca de 20 jovens
cegos de 16 a 23 anos com debate posterior. Também foram feitos questionários
e entrevistas com os jovens participantes. O objetivo foi perceber como ocorria
essa experiência com os filmes e o audiovisual no ponto de vista deles.
Percebeu-se em todos os depoimentos da pesquisa que o ouvir para o cego
é fundamental. Através do ouvir, é que ele tem acesso ao mundo que ele não vê.
Algumas das reflexões feitas por Jose Eugenio Menezes (2008) buscam investi-
gar como os vínculos sonoros podem ampliar as experiências de cidadania indo
além da profusão de imagens do nosso cotidiano. Algumas de suas questões são:
“É possível dissolver a fixação espacial do olho? Não se devem reforçar as capa-
cidades do ouvido?”; “O que seria uma ‘cultura do ouvir’”?
Dessa maneira, este capítulo procura fazer uma reflexão acerca das relações
entre jovens cegos e os filmes pensando também sobre esse “contar um filme”
e “assistir ao filme com audiodescrição” no cotidiano desse público. Traremos a
seguir dois exemplos de situações em que são apresentadas o contar o filme e o
audiodescrever o filme para refletirmos sobre alteridade do ver pelo outro e essa
questão da cultura do ouvir como possibilidade de cidadania.

CONTANDO FILMES

Havia crianças que recebiam dinheiro de seus pais para irem ao ci-
nema, e preferiam vir para a minha casa (ouvir contar o filme), fazer
uma doação mínima e gastar o resto em bobagens. E muitos adultos
analfabetos, quando o filme era ‘com letras’, escolhiam ouvi-lo con-
tado por mim em vez de ir ao cinema e não entender nada. E descobri
também que tinha gente que vinha me ouvir, não porque não pudes-
se pagar a entrada do cinema, mas porque gostavam de verdade era

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 113


que alguém contasse os filmes. Alguns diziam que eu era tão boa para
caracterizar os personagens que, só com piscar os olhos, podia passar
a expressão de candidez de Branca de Neve à ferocidade do leão da
Metro Goldwyn Mayer. E que me ouvir era como ouvir aquelas radio-
novelas que eram transmitidas dia a dia lá na capital, pois, além de
imitar as vozes e fazer caras, eu sabia manter a platéia em suspense.
[...] Sem nem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado
numa fazedora de ilusões. (RIVERA LETELIER, 2012, p. 2)

Nesse trecho do livro A contadora de filmes (2012), Hernan Letelier nos conta
que a personagem principal mora numa localidade onde se tem pouco acesso
aos filmes exibidos no cinema. Devido a isso, o pai faz uma eleição entre todos
os filhos para ver qual deles será o contador de filmes, ou seja, aquele que vai ao
cinema e depois conta o filme aos demais da família. A personagem contadora
ganha essa eleição e toda semana conta um filme começando a ganhar notorie-
dade dentro da comunidade. Esse contar dos filmes de que o livro fala revela
que trata-se de um momento coletivo de narrativa na dimensão de que nos fala
Walter Benjamin (1994) ao falar sobre o narrador tradicional, que reconta o que
viu pela narrativa oral. O narrador é aquele que narra entremeando a narrativa à
sua experiência vivida, algo que a menina do livro aprende e faz bem ao narrar os
filmes. Passa a narrar as partes que mais lhe agradam esquecendo-se das demais
e o contar de cada filme ganha uma interpretação própria da narradora. Como
narradora, torna-se uma fazedora de ilusões para alguns que buscam suas his-
tórias no lugar dos filmes, apontando como o contar é parte desse viver e desse
estar junto.
Foi por pensar em situações como essas que nos questionaram se esse contar
filmes não poderia ser uma forma de tornar os filmes acessíveis aos jovens cegos.
Será que esses jovens conseguiriam entender o que a personagem conta dos fil-
mes de forma acessível?
Importante pensar como um jovem cego teria acesso à parte visível da con-
tação – ou seja – as caras e bocas da contadora e seus trejeitos, os objetos usados
para contar, as vestimentas e outras informações visuais que muitas vezes não
nos damos conta de que fazem também parte do contar... Refletir sobre o acesso
que se tem pelo ouvir do outro, pela alteridade, demanda também pensarmos

114 | Comunicação, audiovisual e educação


o quanto o ouvir de que nos fala Menezes (2008) vai além do ouvido. Baitello
Junior (2005, p. 116 apud MENEZES, 2008, p. 116) relembra:

O ouvir e o ver, operações perceptivas associadas a cada um destes


dois universos, requerem ambos o cuidado e o cultivo dos próprios
limites. O ouvir, mais vinculado ao universo do sentir, da paixão, do
passivo, do receber e do aceitar. O ver, mais associado ao universo da
ação, do fazer, da atividade, do atuar, do agir e do poder.

Percebe-se que, no contar, o ouvir e o ver se articulam na sociedade. Percebe-


se que o receber e o fazer, a ação e a passividade não ocorrem desse modo estan-
que remetendo apenas da experiência de ver ou de ouvir. Como Larossa (2011)
nos aponta: o princípio da subjetividade ou da transformação revela que essa
experiência sou eu. Portanto, esse ouvir e esse ver são a experiência do sujeito e
também o que ele faz com ela a transformando em parte de si próprio. No caso
dos jovens da pesquisa, esse ouvir sem ver seria parte desse princípio da sub-
jetividade deles. Mas como seria esse ouvir do outro tendo em vez do contar o
audiodescrever? O que seria a audiodescrição dessas imagens que não podem
ser vistas?

AUDIODESCREVENDO FILMES

Aqui, traremos como exemplo de audiodescrição, parte do roteiro do curta


Engano, que foi audiodescrito por Daniel Machlini. Nele, vê-se as imagens das
cenas iniciais e a audiodescrição aparecerá aqui no texto como legenda da ima-
gem, mas no filme esse material é falado no mesmo instante em que as imagens
passam.

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 115


Figura 1 – Cena do curta Engano
Audiodescrição: Tela dividida em duas partes: na direita, Mila em foco. Na esquerda, Rodrigo aguarda o
trem, na estação de metrô. A moça de vestido verde e braços cruzados, parece aguardar algo na rua. O
rapaz de camisa cinza e pasta azul na mão faz sinal enquanto a moça vê o ônibus parar em um ponto à
sua frente. Ela rói as unhas e em seguida, guarda uma revista em sua bolsa.
Fonte: material de pesquisa.

Trecho de audiodescrição

Ao assistir a esse trecho inicial do curta, percebe-se que é audiodescrito somente


o conteúdo imagético elaborado por Cavi Borges. (ENGANO, 2015) Antes de ini-
ciar o filme, os seus créditos são lidos e, deste modo, a pessoa cega tem acesso às
informações sobre o filme que irá assistir. Porém, em outros casos, o audiodes-
critor opta por audiodescrever o cenário em que se passará o início do filme ou
faz a leitura dos nomes dos atores do elenco ou dos diretores. A essa descrição
prévia dá-se o nome de “notas proemias”. Trata-se de informações de apresenta-
ção inicial do filme para situar quem escuta.
Portanto, o principal objetivo da audiodescrição é permitir que a pessoa cega
saiba o conteúdo imagético de um filme, peça teatral ou de qualquer obra de
arte. Não cabe ao audiodescritor opinar/interpretar acerca do que está vendo,
mas, falar somente o que vê, permitindo ao sujeito que terá acesso a essa tecno-
logia assistiva formar a sua própria opinião acerca do que está sendo exibido.

116 | Comunicação, audiovisual e educação


Mesmo reconhecendo que o outro nos constitui, busca-se deixar livre a inter-
pretação das imagens audiodescritas que é papel do ouvinte da audiodescrição.
Em geral, a audiodescrição, para tornar as imagens acessíveis aos cegos, é fei-
ta por uma equipe composta de: audiodescritor (pessoa que elabora o roteiro da
audiodescrição); consultor (pessoa cega ou com baixa visão que verifica se as des-
crições das imagens estão compreensíveis a uma pessoa com deficiência visual);
revisor (profissional com formação em língua portuguesa, que revisa o texto do
roteiro); e o locutor, que poderá ser o próprio audiodescritor, conforme o filme
que exemplificamos acima, consultor ou revisor, que tenha boa dicção e leitura
clara, obedecendo à ordem das cenas do filme. Trata-se de uma proposta profis-
sional de acessibilidade de materiais audiovisuais a pessoas que não podem ver.
A audiodescrição é compreendida como um serviço cujo alvo são as pessoas
que não veem e conforme a leitura de Lima (2010), a audiodescrição precisa ter
um caráter narrativo somente para descrever: vestimentas, gestos e efetuar lei-
tura de créditos que aparecem na tela ou qualquer outra informação que não é
dita pelos atores mas que aparece nas imagens.
Seria a audiodescrição suficiente para tornar o filme acessível aos jovens ce-
gos? Como eles percebem esse recurso e como acessam os filmes audiodescritos?
Que diferenças percebem entre ter acesso aos filmes pelo contar de alguém ou
pela audiodescrição?

EXPERIÊNCIA E CULTURA DO OUVIR: FILMES COM E SEM


AUDIODESCRIÇÃO E O VER PELO OUVIR DO PONTO DE
VISTA DOS SUJEITOS

A exploração ou uso acentuado do sentido da visão marca, ainda que


de forma diferente, as características bidimensionais das imagens
nas telas dos equipamentos eletrônicos ou nos impressos. Isso nos
leva a pensar que o envolvimento de um maior número de sentidos,
como a audição, pode ajudar na percepção da tridimensionalidade
dos objetos e especialmente das pessoas envolvidas nos processos
de comunicação. Assim, os conhecimentos obtidos por um sentido
teriam uma expressão diferente dos conhecimentos obtidos por um
conjunto de sentidos ou, no nosso caso, pela audição [...]

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 117


Os sons ou vibrações entre duas pessoas criam um espaço de inter-
locução, repercutem envolvendo concreta e fisicamente os corpos.
É possível que este universo sonoro nos ajude a percebermos que a
ampliação do número de sentidos envolvidos permite questionar-
mos uma epistemologia cartesiana e privilegiarmos os caminhos
para uma epistemologia aberta à compreensão da complexidade dos
processos comunicacionais. (MENEZES, 2008, p. 113)

Nesse trecho, Menezes nos faz pensar sobre como seria adquirir conheci-
mentos pelo sentido da audição. Trata-se do debate empreendido pelo autor em
torno da cultura do ouvir. Que espaço de interlocução poderia ser esse criado
prioritariamente a partir do ouvir como é a experiência dos jovens cegos?
Durante a pesquisa nos momentos de exibição dos filmes com e sem audio-
descrição, percebemos a diferença nesse processo de recepção. Alguns filmes
exibidos sem audiodescrição e sem alguém que conte a eles o que ocorre nas
imagens tornam-se completamente inacessíveis a esse público. Eles passam a
fazer da relação com as imagens uma relação de adivinhação do que deve estar
se passando e, com o tempo, desinteressam-se por tentar entender o que ocorre.
Também deve ser por motivo semelhante que foi percebido ao longo da pes-
quisa que os jovens cegos costumam ter pouco acesso a materiais de filmes e au-
diovisuais. A maioria costuma ter acesso apenas por passeios feitos pela escola e
contatos pela família. No seu cotidiano, veem TV ou assistem a filmes em geral
com a ajuda de uma pessoa próxima para contar o que acontece a eles. Fato se-
melhante ocorreu na experiência de Margareth. São poucos os locais que exibem
filmes com audiodescrição.
Na escola, os jovens da pesquisa apontaram que foram a eventos com esse
recurso e viveram algumas sessões com audiodescrição dentro da pesquisa.
Perguntamos a eles sobre como perceberam as diferenças e suas percepções
de assistir a um filme com e sem audiodescrição. De que modo percebem essas
diferenças?
Algumas das falas dos jovens aqui trazidas apresentam as tensões existentes
nessa relação: “[...] no filme tem como escutar com audiodescrição, aí você vê me-
lhor”. (I) “Ah... Esses filmes assim do cinema é sem audiodescrição. E quando sento
lá atrás, eu não vejo o que tá passando, meu irmão tem que ficar contando pra
mim”. (J) “Eu vejo mais rápido (sem audiodescrição). Sei lá. De repente aconteceu

118 | Comunicação, audiovisual e educação


alguma coisa. É uma coisa mais direta, é mais rápido de entender. Com a audio-
descrição fica tudo embolado, entendeu?” (T)
As falas anteriores dos jovens apontam diferentes relações com os filmes
com e sem audiodescrição. Assim como os primeiros depoimentos ressaltam
a audiodescrição dos filmes dizendo que com esse recurso “você vê melhor”, a
última já coloca que a audiodescrição torna o entendimento do filme confuso.
Ao mesmo tempo, o segundo depoimento fala do “irmão [que] tem que con-
tar para mim”, algo que também aparece na fala de outros jovens da pesquisa.
Sabemos que é pelo contar – pelas pessoas próximas – que eles passam a ter os
primeiros acessos a materiais com imagem. Esse contar é algo que os jovens ce-
gos têm acesso desde pequenos. Da mesma forma, a audiodescrição torna-se um
processo de aprendizagem para eles. Para entenderem o que fala o audiodescri-
tor e também as falas do filme, precisam aprender a lidar com essas diferentes
falas e concatená-las. É algo que demanda viver essa experiência cotidianamen-
te. Demanda aprendizagem. Trata-se de dificuldade semelhante a que tem al-
guns dos nossos jovens videntes com a leitura de legendas dos filmes quando
essa é uma prática pouco vivida por eles.
Todos os 20 jovens pesquisados têm um consumo da imagem de forma redu-
zida por dependerem de outros para acessá-las e contá-las. Mesmo quando têm
acesso a pessoas que contam para eles, em sua maioria, estas são familiares que
veem junto os filmes, contando-os ao mesmo tempo em que assistem. Da mes-
ma forma, essas pessoas selecionam o que eles podem assistir de acordo com
suas preferências e também selecionam o que contam ou não a eles. Assim, nem
sempre eles tem autonomia para fazer escolhas sobre o que assistirão. Essa é a
forma como vivem esse princípio da alteridade de que fala Larossa (2011).
No entanto, a partir do que aponta Menezes, esse contar ou audiodescrever
parecem não ter uma relação mais direta com a cultura do ouvir da qual ele fala.
De acordo com o próprio autor, o ouvir relaciona-se com o ver. No entanto, indo
além do que Menezes aborda e, pensando especificamente nesse público que
não vê, podemos pensar numa cultura do ouvir sem ver, entendendo que essa
forma de acesso tem uma especificidade própria que tem no outro o ouvir prio-
ritário. Menezes destaca que “quando falamos em cultura do ouvir retomamos
as possibilidades do corpo, em especial do universo sonoro, antes e depois dos
equipamentos de comunicação”. (MENEZES, 2008, p. 115)

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 119


O outro que narra ou que audiodescreve traz seu universo sonoro e comu-
nica-se com seu ouvinte instituindo a cultura do ouvir, pois é somente por ele e
pela troca com este que o cego terá acesso às imagens. Não há experiência sem o
outro, sem algo exterior a mim conforme nos aponta Larossa (2011). E isso é cada
vez mais claro na experiência dos jovens cegos. Há uma relação constitutiva en-
tre a ideia de experiência e a ideia de formação. O autor deixa claro que o resulta-
do da experiência é a formação ou a transformação do sujeito da experiência. O
sujeito da experiência é nada mais que o sujeito da formação e da transformação.
Nesse caso, a experiência ocorre pelo sensorium do ouvido e pela fala do outro.
Walter Benjamin (1994) é o autor que nos fala do sensorium. Podemos nos
referir que esse ouvir das imagens pelo outro ancora-se nesse sensorium dife-
rente do visual – um sensorium prioritariamente auditivo – do ouvir e do ouvir
do outro. Uma narrativa que se estrutura com base no relato do outro para cons-
tituir o seu próprio relato. Todos nós somos constituídos pelos outros, mas ter
essa predominância do ouvir do outro na sua constituição pela impossibilidade
da visualidade torna esse outro ainda mais perceptível. Entende-se, no entanto,
que isso não impede a autonomia de pensamento e as escolhas dos jovens cegos
com base em tudo o que ouviram a respeito. Trata-se de uma ideia de formação
com base no sensorium do ouvir sem o ver, uma formação outra. Uma construção
outra de alteridade.
Mesmo que o contar tenha uma dimensão afetiva importante para os sujei-
tos nesse contato alteritário com a família e pessoas próximas, descobrir que há
um outro modo de tornar os produtos audiovisuais acessíveis a eles – através da
audiodescrição – é uma descoberta importante, pois lhes dá maior autonomia
mesmo que esta ainda seja pouco acessível nas obras audiovisuais. A aposta é
que com as novas legislações que trazem a audiodescrição como direito se ca-
minhe para tornar os filmes e produções audiovisuais da TV e de outros espaços
mais acessíveis a esse público.

REFLETINDO SOBRE OS DESAFIOS QUE NÃO CESSAM

Menezes (2008) questiona: de que forma uma cultura do ouvir contribui para a
passagem de sociedades de informação para as futuras sociedades de conheci-
mento, nas quais além de controlar ferramentas o homem crie novos conteúdos,

120 | Comunicação, audiovisual e educação


cultive vínculos e experimente a ampliação da cidadania em termos intersubjeti-
vos e interculturais? Considerando que os estudos a respeito da cultura do ouvir
investigam caminhos para o cultivo dos vínculos e ampliação da cidadania em
termos intersubjetivos e interculturais, entendemos a mútua interação entre os
estudos de cultura do ouvir e os estudos da alfabetização para os meios. O autor
nos remete ao antropólogo Christoph Wulf (2001 apud MENEZES, 2008, p. 114) o
qual afirma que, na escuta de si mesmo e na escuta do outro, “o ouvido desenvol-
ve um papel fundamental na constituição da subjetividade e da sociabilidade”.
A compreensão do universo da cultura do ouvir nos remete tanto aos tempos
das grandes narrativas mitológicas como também à atual valorização das histó-
rias contadas de geração a geração. O autor considera que é pouco estudada a
passagem da ênfase no ouvir para o processo civilizatório que gerou o predomí-
nio da cultura do ver, ou cultura da imagem que temos hoje.
Menezes (2008) questiona se a cultura do ouvir pode ajudar a enriquecer os
processos comunicativos da visão. Nós questionamos se essa cultura do ouvir
que procura incorporar mais o ouvir na comunicação valorizando, não somente
e prioritariamente as imagens, pode dar maior acesso aos que não têm a faculda-
de da visão, que poderiam estar mais inseridos nos espaços e ações que privile-
giassem o sonoro para além apenas do visual.
Entendemos também que falar de cinema é mais do que falar de filme. Trata-
se da cultura de cinema de que nos fala Coelho (1997) na qual o cinema, mais
especificamente a cultura do cinema, remete a domínio bem mais amplo. Assim
como o ver, esse ouvir faz parte dessa cultura. A cultura do cinema se infiltra
por toda parte, da memória mais íntima à roupa que se veste; a cultura fílmica e
ao que está nos livros e criticas de jornais. São diferenças nada pequenas entre
filme e cultura do cinema. No caso dos jovens cegos, essa cultura do cinema vai
sendo adquirida por eles nessa experiência do ouvir.
Sendo assim, é a acessibilidade às imagens dos filmes que ajuda a constituir
a cultura do cinema dos jovens pesquisados e, dessa forma, quanto mais acesso
tiverem, mais possibilidades de entendimento dessa cultura e participação nela
poderão ter. Falar de cultura nesse contexto é também falar de consumo. Afinal,
a pesquisa buscou saber como os jovens consomem os filmes. Sonhamos com
um dia próximo em que consumir os filmes não seja um modo de diferenciação
entre os que veem ou não. Que brevemente esses jovens que não veem possam
participar dessa cultura do cinema de que fala Coelho (1997), podendo viver essa

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 121


experiência de modo acessível a eles, com total possibilidade de troca com os vi-
dentes, experimentando essa relação com os bens culturais dentro da sociedade
se apropriando e recriando-os por sua própria escolha de forma acessível.
Finalizando, podemos destacar que a principal diferença entre o “contar o
filme” e “assistir ao filme audiodescrito” refere-se a maior possibilidade de aces-
so autônomo ao filme como uma política de ampliação de repertório. Importante
destacar que a audiodescrição ocorre de antemão na maioria dos filmes e obras,
e não no momento de exibição, o que já é característica informal do “contar os
filmes”. Para que os materiais sejam audiodescritos, há uma equipe que realiza
essa audiodescrição assim como ocorre também na legendagem dos filmes.
Assim, os dois – contar e audiodescrever – criam sentidos diferentes e cum-
prem funções também diversas no cotidiano do jovem cego. O audiodescritor
não é um narrador de filmes, mas um descritor de conteúdos imagéticos em mo-
vimento ou estático.
Da mesma forma, vimos que podem ter os que preferem vivenciar em alguns
momentos o contar filmes e em outros a audiodescrição. Esse contar torna-se
um contar afetivo que alia os ouvintes aos contadores assim como Benjamin
(1987) comenta na narrativa tradicional. Afinal, quem não gosta de ouvir alguém
contar uma boa história? Mas gostar de ouvir filmes contados não pode ser moti-
vo para deixarmos de lado a importância da acessibilidade e sua necessidade de
ampliação para os vários usos que os não videntes precisam fazer dos conteúdos
audiovisuais – hoje cada vez mais dentro dos processos de ensino e aprendiza-
gem dos sujeitos. Para isso, a audiodescrição tem um papel importante.
Em primeiro lugar, cabe-nos esclarecer que o filme assistido por quem não
enxerga mantém a sua originalidade e pode suscitar relações com os fazeres e
cotidianos desses sujeitos. No entanto, a audiodescrição, conforme relato dos
jovens pesquisados, é um recurso que auxilia na compreensão do que é exibido
na tela, exclusivamente em relação ao conteúdo imagético que quem não en-
xerga a ele não tem acesso. Entender que esse direito amplia – e muito – a vida
e as possibilidades dos que não enxergam é perceber que essa é uma demanda
política tanto para os que produzem audiovisual quanto para os que trabalham
com cinema na educação.
O debate trazido neste capítulo foi apresentado em eventos da área e torna-
-se cada vez mais relevante principalmente nesse momento em que se discute o
impacto de duas novas legislações: a Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014, que

122 | Comunicação, audiovisual e educação


diz respeito à exibição de duas horas de cinema nacional na escola e também a
Instrução Normativa da Agência Nacional do Cinema (Ancine) nº 116, de 18 de
dezembro de 2014, que trata da obrigatoriedade da audiodescrição nos filmes
com financiamento público (para o acesso de pessoas cegas).
Se entendemos que o acesso à cultura é parte do processo educativo por pos-
sibilitar a ampliação do repertório dos sujeitos, percebemos que essa discussão
aqui trazida apenas se inicia... Muito há ainda para se fazer e se pensar de forma
a integrar os sujeitos cegos em nossa sociedade predominantemente visual.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA (Brasil). Instrução Normativa


nº 116, de 18 de dezembro de 2014. Dispõe sobre as normas gerais e
critérios básicos de acessibilidade a serem observados por projetos
audiovisuais financiados com recursos públicos federais geridos pela
ANCINE; altera as Instruções Normativas n° 22, de 30 de dezembro de
2003, n° 44, de 11 de novembro de 2005, nº 61, de 7 de maio de 2007
e n° 80, de 20 de outubro de 2008, e dá outras providências. Diário
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124 | Comunicação, audiovisual e educação


7
Juventude, desenhos animados e modos
de viver o tempo

Érika L o u renço d e M enez es

INTRODUÇÃO

Desenhos animados já encantavam quem os visse antes mesmo do primeiro fil-


me de animação para o cinema. Fossatti (2009) assinala que a primeira anima-
ção produzida freme a freme foi Fantasmagorie, em 1908, por Emile Cohl. Desde
então, pessoas de todo o mundo assistem e desenvolvem as mais diferentes re-
lações com essas mídias. Trago aqui fragmentos de minha dissertação de mes-
trado, cujas reflexões sobre a relação entre um grupo de jovens e os desenhos
animados – a partir de seus relatos – permitiram encontrar uma série de cons-
truções com e sobre o tempo.
Este capítulo trata de pesquisa realizada no mestrado em Educação
(MENEZES, 2017)1 com jovens do ensino médio de uma escola pública federal no
Rio de Janeiro. A metodologia foi construída ao longo do processo de pesquisa,
através de leituras,2 conversas com o grupo de pesquisa e atividades com o pró-

1 Identificados no texto com o nome de seus personagens favoritos, por motivos burocráticos determi-
nados pela escola em que a pesquisa foi feita.
2 Uma conversa com Gustavo Fischman. Esse artigo foi realizado pelas autoras Sandra Kretli da Silva,
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni e Jaqueline Magalhães Brum, no ano de 2015. Além de
pesquisas com infância e desenhos animados feitas por Adriana Fernandes (2005; 2007; 2012), Raquel
Salgado (2006; 2012) e Analice Pilar (2005).

| 125
prio grupo de sujeitos com o qual pesquisei, além da organização de encontros
nos quais realizamos algumas atividades e conversamos sobre diversos temas re-
lacionados às questões da pesquisa. O desejo de pesquisar juventude e desenhos
animados surgiu de um movimento percebido dentro da escola em que trabalho
e foi fomentado por uma vontade de encontrar nesse grupo uma continuidade
de pesquisas realizadas com crianças anteriormente – que consideramos mes-
ma geração desses sujeitos – como na pesquisa de Fernandes (2012). Pensar em
jovens e desenhos animados, hoje, é também refletir sobre uma relação construí-
da em um tempo de canais exclusivos para desenhos, e o aumento na produção
dessas mídias para TV e cinema nos últimos anos. Nesse diálogo com a pesquisa,
tive como referencial teórico autores dos estudos culturais latino-americanos,
que me ajudaram a refletir sobre cultura e as relações dos sujeitos com a mídia
e a tecnologia.
As leituras transcritas dos encontros com os jovens apresentaram muitas
possibilidades de eixos para as análises. As falas surgidas no contexto da pes-
quisa entremeavam-se, algumas complementavam-se, outras destacavam-se.
Percebemos, então, o tempo como linha de guia e união para a construção das
reflexões que se seguem. Trago aqui um olhar dos jovens sobre o tempo a par-
tir de suas vivencias com os desenhos animados: “tempo livre”, “falta de tem-
po”, “cursos da vida”. E é desse eixo da pesquisa que apresento meu olhar neste
artigo. Destaco que, para preservar a identidade dos jovens sujeitos da minha
pesquisa, optei nomeá-los por nomes de personagens de desenhos animados.
A escolha dos nomes foi feita pelos próprios jovens e, portanto, cada nome de
personagem que aparece no texto refere-se a um jovem participante da pesquisa
tal como Katara, Ash, Dexter etc. como poderão ver a seguir.

“DESENHO ERA A MINHA VIDA”: TEMPO LIVRE DENTRO E


FORA DA ESCOLA PELO PONTO DE VISTA DOS JOVENS

Eu era meia viciada porque eu estudava de manhã, aí eu ia pra escola e quando


eu chegava [da escola] não fazia mais nada, só via desenho. Sabe? Comia, tomava
banho e só via desenho não estudava nem nada. (Katara)

126 | Comunicação, audiovisual e educação


Assim, eu sempre tive TV a cabo, desde bebê. Então eu sempre assisti desenho. Eu
assisti Discovery Kids, eu assistia TV Cultura, TV Cultura é aberto né, mas eu assis-
tia desenhos de bebê e criancinha. E depois já fui pro Cartoon, Nicklodeon etc. [...]
Mas isso acabava que eu era um pouco assim, eu era uma criança muito tímida e eu
não tinha muitos amigos. Então, assim, eu acabava que me fechando no mundo dos
desenhos, e acabava ficando naquilo sabe? Desenho era a minha vida, tá ligado?
Chegava em casa pra ver desenhos e era isso [...]. (Ash)

Assistir a desenhos, para os jovens com os quais pesquisei, era uma ativida-
de comum do tempo em que não estavam na escola. Essas falas – “desenho era
a minha vida” e “eu não fazia mais nada, só via desenho – nos dão a ideia de que
esses jovens, quando crianças, não tinham tempo ou que o tempo fora da escola
era todo ocupado com desenhos. No entanto, é preciso relativizar que essas falas
ditas pelos jovens são “modos de dizerem” que gostam muito de desenhos e que
se ocupavam muito com os mesmos.
Nas oficinas realizadas, surgiram os mais diversos temas, desde as conver-
sas sobre as memórias da infância até a falta de tempo de um vestibulando. Os
encontros trouxeram para esta pesquisa um convite para pensar no tempo. Por
isso, sentimos a necessidade de pensar e refletir um pouco sobre esse tempo fora
da escola, que era preenchido por brincadeiras e desenhos animados. Um tempo
tratado por eles como uma continuação de suas atividades diárias, as quais, pri-
meiramente, não se tinham referido em nenhum momento como tempo livre ou
de lazer, mas, sim, como o tempo depois da escola.
Para esse tempo fora da escola, farei uso do conceito de “tempo livre” ba-
seando-me no sociólogo francês Joffre Dumazedier. Para Dumazedier, Lima e
Ansarah (1994, p. 48), tempo livre é “um tempo que a sociedade, num determina-
do momento de suas forças produtivas, pode liberar para o sujeito social fora dos
tempos socialmente marcados pela obrigação ou pelo compromisso”, e esse tem-
po seria uma conquista dos sujeitos, um espaço de autonomia e aprendizagem.
O momento de “caminhar sem rumo” (DUMAZEDIER; LIMA; ANSARAH, 1994,
p. 49), o tempo de lazer e da imaginação. Esse é um tempo organizado da ma-
neira deles. E sendo assim, aparecem diferentes maneiras de viver esse tempo.

eu via com meus pais às vezes também. Meu pai adora Coragem também. E bob es-
ponja também eu via. Mas eu gostava de assistir sozinho, era tipo o meu momento.

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 127


Meu ritual. Chegava no quarto e via mais de noite, então, às vezes era pra eu ir
dormir eu fingia que tava dormindo assim, aí eu ligava a TV e ficava assistindo.
Desenho era minha vida. Eu amava muito [...] (Dexter, grifo nosso)

É importante contextualizar a escolha teórica desse conceito através de


Dumazedier, Lima e Ansarah (1994). Esses autores, assim como nos estudos cul-
turais latino-americanos, foca seus estudos em compreender os usos, apropria-
ções, relações e consequências das relações que os sujeitos estabelecem com a
cultura. Elementos que Dumazedier, Lima e Ansarah (1994) vão identificar, na
maioria das vezes, como presentes no tempo do “não trabalho”, o momento do
tempo livre. Dumazedier, Lima e Ansarah (1994) também associam esse tempo
livre como fora do espaço escolar de escola paralela, ou ainda, escola do tempo
livre. Dessa forma, seu conceito vai ao encontro da forma expressa pelos jovens
desta pesquisa – o tempo fora da escola – e, também, valoriza com essa deno-
minação a formação não escolar, podendo dialogar com autores atuais, como
Barbero (2002), que, entende todos os espaços como espaços de aprendizagem e
formação de sentidos.
Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), buscando entender a evasão3 escolar no
ano de 1988, realizou uma pesquisa com 1199 jovens franceses, de idades entre
15 e 24 anos. Nesse estudo, Dumazedier, Lima e Ansarah levaram em conside-
ração o calendário escolar da época, composto por 136 dias letivos e 200 dias
de tempo livre (recessos, fins de semana, e férias escolares). Salientando o uso
de mídias como TV e rádio nos momentos de tempo livre (próprios da época).
Como resultado dessa pesquisa, os autores relatam que os jovens identificam o
tempo livre como um espaço no qual desenvolvem autonomia, atividades físi-
cas, criatividade e trato social – seja com a família ou amigos – de maneira mais
aprofundada e satisfatória do que na escola. Essa questão da facilidade de estrei-
tar (aprofundar) relações fora do espaço escolar também apareceu durante as
nossas oficinas. Um jovem relata a importância do tempo durante as ocupações
estudantis de 2016 para construir amizades como as que viviam fora da escola,
pelo tempo para conversas sobre individualidades:

3 Com base um uma pesquisa anterior do Institut Français d’opinion Publique (Ifop), de 1973, que apon-
tava que o número de estudantes que abandonavam a escola por falta de interesse e tédio era maior do
que o número de estudantes que abandonavam por questões financeiras.

128 | Comunicação, audiovisual e educação


[...] eu sou mais amigo do pessoal fora do colégio. Não mais amigos, mas são as ami-
zades que eu confio mais. Aqui na escola são poucas pessoas. Não agora porque eu
tô tipo tendo contato. Como a gente na ocupação 24h por dia, você tem um contato
maior, você conhece mais a pessoa fora do horário dela. Porque na escola você pode
fingir ser uma pessoa. Mas pô, passar 24h fingindo ser uma pessoa. Você começa a
descobrir coisas que você não sabia de tal pessoa. [...] E você vai criando amizades
verdadeiras aqui. Então também me ajudou bastante. (Virgil)

Falar sobre suas individualidades para outrem, dentro do processo de cons-


trução de confiança em uma relação de amizade, apresenta, nessa fala, o ele-
mento que difere os amigos com quem se pode contar, dividir problemas e trocar
experiências, das relações construídas pela convivência dentro da escola. Ainda
que para Virgil todos sejam seus amigos dentro da escola, nos poucos momentos
de conversa fora das aulas, não seria possível conhecer alguém tão bem quanto
“fora do horário dela”, no horário em que se é estudante dentro do tempo crono-
metrado da escola.
Para os jovens da pesquisa de Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), a escola
seria responsável por ampliar seus conhecimentos sobre o mundo, garantir um
futuro profissional, melhorar sua comunicação e formar cidadãos responsáveis.
O tempo da escola e o tempo livre seriam dois espaços distintos, cada qual com
sua relevância para a formação dos jovens, segundo eles mesmos constataram.
A fala de Virgil mostra que há uma mistura e que não é possível dividir esse tem-
po da escola e tempo livre de forma tão estanque, como o denomina Dumazedier,
Lima e Ansarah (1994). Os autores falam, ainda, de outro contexto de juventude e
de outro contexto tanto da relação dos jovens com a tecnologia quanto do modo
como a escola vive o tempo.
Importante lembrar que a maneira como lidamos e vemos o tempo está
relacionada com o nosso tempo. Quando Dumazedier, Lima e Ansarah (1994)
fizeram seu estudo, não havia a internet com todas as demandas que ela traz
hoje, estreitando o tempo do trabalho e o do lazer num único e mesmo tempo.
Portanto, mesmo sendo muito relevante pensar nesse tempo livre, percebemos
que atualmente o tempo livre é percebido em um contexto totalmente diferen-
te do vivido por Dumazedier, Lima e Ansarah em seu estudo. Mesmo assim, os
autores nos ajudam a pensar a respeito, trazendo discussões que são relevantes
para nossa reflexão.

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 129


Alguns jovens fizeram relações em suas falas sobre criatividade, elemento
também comum ao tempo livre, segundo Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), e
desenhos animados. Para eles, o consumo dos desenhos favorecia a vontade de
criar histórias, brincadeiras e outros personagens. Nos parece que essa rituali-
dade do tempo livre favorece a criação. Seria essa a relação que fazem os jovens?

Você me disse que quer ser designer, que tem alguma ligação com isso? Você quer ser
designer pelo seu envolvimento com os desenhos? (Pesq)

Tem, talvez.... Eu acho que tem na questão do... tipo, quando eu era criança, eu
gostava de tentar desenhar os ... os desenhos que eu gostava, desenhar aquilo no
papel. Eu não conseguia muitas vezes, claro, mas eu ficava inspirado pra desenhar,
e querer desenhar e misturava os personagens... fazia minha história. (Ikki)

Você misturava os personagens? (Pesq)

Sim, eu pegava um personagem de uma história e falava: esse aqui combina com
esse aqui, eles vão fazer um bom trabalho juntos. E aí eu criava minha história, e
eu achava isso bem interessante [...]. De vez em quando, eu pegava um boneco super
aleatório, um soldado, e ficava imaginando em um desenho e fazia minha própria
história. As coisas aconteciam mais na minha cabeça, eu nem mexia as mãos, às
vezes, só ficava imaginando [...].(Ikki)

Na fala de Ikki, podemos perceber a continuidade de atividades. Dos dese-


nhos assistidos, passa-se para os bonecos e para criação de histórias que com-
plementariam as vistas, ou ainda, novas histórias para suas brincadeiras. Tudo
a partir de uma vontade de interferir no que foi visto. Vontade que aqui toma
lugar de motivação para criações durante as brincadeiras em seu tempo livre.
A pergunta que fiz sobre a vontade de formação em designer surgiu, pois, ao lon-
go da conversa, Ikki sempre voltava nesse ponto de gostar de imaginar continui-
dade ou mudanças nas histórias. Essas misturas vividas por Ikki se parecem com
o que traz Fernandes (2003), em sua pesquisa, quando fala das hibridações das
criações pelas crianças. Parece que, nesse aspecto, crianças e jovens não se di-
ferenciam muito. Ambos gostam de hibridar personagens e situações e de criar
novos mundos a partir do consumo que fazem.

130 | Comunicação, audiovisual e educação


Acho que por conta disso, por conta de querer interferir no desenho, é.... eu acho
que eu comecei a jogar vídeo game. Porque eu via no desenho a possibilidade de
fazer a minha história, sabe? Acho que tem uma ligação muito forte com isso. (Ikki)

A vontade de criar, construída desde a infância, possivelmente traz alguma


influência na carreira escolhida. Além de gostar de desenhar, o jovem falou so-
bre seu gosto por programação e informática e apontou que uma das possibi-
lidades dentro da área de designer mais admiradas por ele é a de designer de
games.4 Uma soma de atividades no seu tempo livre e em espaços formais de
aprendizagem, encontrando um caminho comum em sua formação acadêmica.
O espaço de aprendizagem, colocado por Dumazedier, Lima e Ansarah (1994),
com os jovens, apresenta uma relação de continuidade quando se trata dos dese-
nhos animados. Algo iniciado na infância, apresentando suas marcas em outras
produções ou, ainda, sendo uma atividade comum no tempo livre do jovem.
Barbero (2013) identificou, como Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), o es-
paço do “não trabalho” como um lugar de sociabilidades, criatividade e forma-
ção de identidades (individual e coletiva). Todos esses elementos se constituem
como mediações para os sujeitos, e essas mediações populares tomariam lugar
de “resistência intrínseca, espontânea, que o subalterno oporia ao hegemônico”.
(DUMAZEDIER; LIMA; ANSARAH, 1994, p. 268)
Em toda nossa trajetória sobre o tempo livre, podemos observar, primeira-
mente, o lugar de destaque dos desenhos animados dentro das atividades desse
momento do dia, principalmente, durante a infância. Pensando nesse momento
como um lugar de aprendizagens dentro das reflexões de Dumazedier, Lima e
Ansarah (1994) e Barbero (2013), é possível desconstruir o senso comum e com-
preender a relevância das construções – sociais e culturais – estabelecidas nesse
lugar e seus desdobramentos em diferentes fases da vida.

“NÃO EXISTE TEMPO QUANDO VOCÊ É CRIANÇA”:


DIFERENTES RELAÇÕES COM O TEMPO

A frase que nomeia esta seção traz a fala de Fiona, quando afirma que o tempo
não existe quando você é criança. Com essa frase simples e singela, a jovem nos

4 Dado revelado em sala de aula.

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 131


conta que o tempo é criado pelo mundo adulto, pela rotina do trabalho e das
obrigações que você escolhe e que na infância essa rotina é vivida de outra for-
ma. Com o tempo escolhido, surge, também, a “falta de tempo”. Só sente falta do
tempo quem tem consciência da existência dele. A falta de tempo surge também
na fala dos alunos ou como um ritmo paralelo dos mais velhos, quando ainda são
crianças, ou como um dos fatores que reduziram seu contato com os desenhos
ou outras atividades de lazer. A falta de tempo é ainda utilizada para falar do
momento atual que vivem. Mas afinal, o que seria essa falta de tempo? Excesso
de atividades? Uma relação mais responsável sobre o seu tempo? Uma sensação
causada pelo excesso de informações pelas mídias nos dias de hoje? Na conversa
com os jovens, que trago a seguir sobre como assistiam aos desenhos, surgem
ideias relativas ao tempo e seus consumos.
“Você assistia [desenhos] sozinha? Acompanhada?”. (Pesq) “É, eu só via so-
zinha mesmo, porque minha irmã tava sempre ocupada estudando porque ela é
mais velha e tal... é isso”. (Katara) “E você Jimmy, assistia mais desenhos sozinho
[...]?” (Pesq) “Assisti, mas... Eu tenho duas irmãs mais velhas, assistia sozinho por-
que elas já tinham passado essa fase, talvez. Quer dizer, não sei se tem fase, mas sei
lá... elas já tinham parado um pouco. Também os horários não batiam. Assistia
mais de manhã e elas estavam do colégio, sei lá...” (Jimmy)
Essas falas, ainda que se refiram à infância, são colocadas pelo jovem em seu
novo/outro olhar sobre aquele momento. De qualquer forma, essa é a percepção
de que, no mundo adulto, o tempo é algo destinado às obrigações. Os horários
que não batem apontam uma agenda cheia de obrigações. Essa ideia de que o
ver está associado a fases da vida, também chama a atenção. Que tempo vivido
é esse que permite que assistam desenhos numa época e não os permite mais
em outra? Essa percepção já apareceu também em pesquisas sobre infância e
desenhos animados, como na pesquisa de Fernandes (2012), em que alguns de
seus sujeitos falam sobre como como os adultos trabalham “24 horas por dia”5
e que estes só teriam tempo de ver desenho nas férias. Será que eles passaram
da fase de assistir a desenhos no ponto de vista das crianças e também dos jo-
vens? Ou ainda, como diz Hoffmann, quando as crianças dizem que os adultos
que assistem a desenhos parecem crianças. Isso parece-nos trazer a concepção

5 Fala de Thiago, aluno de uma escola particular. Fala contida no livro As crianças e os desenhos animados:
mediações nas produções de sentidos, publicado em 2012.

132 | Comunicação, audiovisual e educação


de que assistir a desenhos seria uma atividade que exige tempo (suficiente para
se aprofundar na atmosfera de um desenho), algo que só as crianças possuem.
Nessa análise, Fernandes (2012, p. 126) fala sobre a relação com o “saber” cons-
truído nesse contexto:

Percebe-se que a maior presença dos meios de comunicação, espe-


cialmente a TV, na vida das crianças favorece a construção de outros
saberes que não os tradicionalmente instituídos na relação entre
crianças e adultos. O fato de as crianças saberem coisas que os adul-
tos não sabem descentra o papel do adulto e também impõem a ele
desafios de que para entender os desenhos é preciso ser também um
pouco criança.

Fernandes (2012) reforça, com essa colocação, o lugar do lazer como lugar
de aprendizagem, e sua pesquisa, mesmo realizada nos anos 2000, pode dialo-
gar com o estudo de Dumazedier, realizado na década de 1980. Fernandes (2012)
apresenta também a relação com a TV, que é um espaço fora da escola, e, ain-
da, apresenta os desenhos animados como lugar de autonomia até mesmo do
mundo adulto (os pais). O que nos resta, dentro do contexto desta pesquisa com
jovens e neste estudo sobre o tempo, é perceber que para ser um pouco criança
é preciso se desvencilhar do relógio como fala uma jovem de minha pesquisa.
“Eu não pensava muito em tempo quando eu era criança. Porque não existe
tempo quando você é criança. Você não fica pensando, você não vê a hora, você
não cronometra. Você não racionaliza”. (Fiona) “É sempre a mãe que fala – Ah,
vem comer [...]”. (Scooby)

É sempre a mãe que tá avisando, você não racionaliza as atividades, eu acho, você
não sistematiza sabe? É justamente o meio adulto, a escola, as instituições sociais
que fazem você ir criando essa coisa... né? De dividir as atividades, de ter obriga-
ção. Quando você é criança você é livre. Você faz o que você quiser, quando você qui-
ser. Eu acordava de madrugada pra ver desenho, pra ver filme. Eu não tinha esse
senso de tempo. (Fiona)

Pela fala da jovem, o tempo, quando se é criança, é o tempo dado pelo adulto
quando diz que está “na hora disso” ou “na hora daquilo”. Falar que não tinha
“esse senso de tempo”, nos remete a alguns questionamentos: como essa racio-

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 133


nalização do tempo chega com a juventude? Como ela ocorre e quais são seus
desdobramentos? Embora, talvez, possamos perceber pela própria fala dos jo-
vens que essa percepção consciente do tempo é uma construção social, pautada
pelas instituições como a escola e a família, assim como apontou a jovem na fala
anterior. E ainda, mesmo que ela diga que “quando você é criança você é livre”
em relação ao tempo, sua fala já aponta um controle externo do tempo, ou seja,
uma liberdade limitada.
Outro ponto presente nessa fala é que, mais uma vez, pensar no tempo é algo
comum ao mundo adulto. Racionalizar o tempo é se tornar adulto. Perceber-se
dentro das horas do dia e tentar resolver as demandas dentro desse tempo são
processos nos quais a escola, nesse momento específico da vida, exerce grande
influência. Alguns vão organizar seu tempo diante das necessidades movidas
por fatores internos ou externos. Outros irão perceber o “tempo adulto” e irão
transgredi-lo sempre que for conveniente.

Eu estudo tipo, agora por dia, na ocupação, eu tô meio ausentando da ocupação,


mas pra eu dar aquela, aquele gás na UERJ então eu tô estudando assim: tem dias
que eu estudo três horas, tem dias que estudo quatro horas. Tem dias que, eu acho
que eu estudo 6 horas, mas tem aquele tempo em que você dá aquela olhada. (Virgil)

A fala do jovem, embora confusa, apresenta uma tentativa de organização de


seu tempo para buscar “dar conta” de todas as atividades importantes para ele.
O que a fala não revela são características cotidianas de Virgil no espaço esco-
lar. Com boas notas e frequência de visitante, Virgil é famoso entre professores
e estudantes pelo desempenho escolar acima da média. Sua presença em sala
é comemorada por todos de forma amigável e divertida (até mesmo nas redes
sociais). Durante as oficinas, ficou claro para o grupo que suas tardes – em que
ele deveria estar na escola – eram preenchidas com desenhos animados, cuida-
dos com os irmãos mais novos e muitos cochilos. Apesar disso, ele esteve pre-
sente em todas as oficinas e, também, presente de forma intensa, no período
de ocupação da escola durante a greve das escolas e universidades federais no
fim do ano de 2016. Fica claro que ele dedica seu tempo ao que identifica como
mais importante ou motivador para si. Passou para arquitetura em duas grandes
universidades do Rio de Janeiro, com sua organização temporal diferente dos
demais colegas de turma.

134 | Comunicação, audiovisual e educação


Para Schwertner e Fischer (2012), o movimento de transgressão do “tempo
adulto” seria algo comum a essa geração. Para as autoras, ao pensar nas tem-
poralidades juvenis, não podemos nos desapegar da realidade em que vivem.
Schwertner e Fischer refletem sobre o “tempo presente”, afirmando que esse
presente está regido “cotidianamente por incertezas e mudanças constantes, os
jovens são submetidos a uma exigência de alta performance, de um amplo dina-
mismo; defrontam-se eles com uma ordem de imediatismo”. (SCHWERTNER;
FISCHER, 2012, p. 402) Na fala do jovem, fica claro que ele não persegue uma
rotina “adulta”, destina seu tempo para as importâncias do presente ou de um
futuro próximo.
A falta de tempo como elemento que limita atividades, apareceu na fala de
alguns sujeitos trazendo curiosidade ao grupo e também momentos de identifi-
cação coletiva.

Pesq: Vocês ainda assistem desenho hoje em dia?


Scooby: Não.
Kira: Quando você assistia?
Ash: Acho importante você estar nessa oficina.
Pesq: Por que você não assiste mais desenhos animados?
Scooby: Porque eu não tenho tempo mesmo.
Pesq: Você estuda muito?
Scooby: estou fazendo outras coisas ou prioridades.
Pesq: Você assiste televisão?
Scooby: Também não.
Pesq: Também não, você assiste YouTube?
Scooby: No YouTube é mais música.
Katara: Série?
Scooby: Série é só nas férias que eu assisto
Cosmo: Só seriado brasileiro.
Scooby: Só, também não sou de assistir série, eu assisto mais filmes.
Pesq: Você escuta música?
Scooby: Sim, e desenho só quando eu era pequeno que eu falei na oficina e era
aqueles desenhos que passavam no Bom dia e cia e foi basicamente isso, era basica-
mente esses que eu assistia, e quando passa são os que eu assisto de vez em quando
com o meu irmão.
[...]

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 135


Pesq: Você gosta mais de ler, de ouvir música, o que você mais gosta de fazer?
Scooby: Ler também eu não estou lendo muito.
A turma ri e fala sobre a falta de tempo de Scooby.
Pesq: Mas, se você tivesse uma semana, em que você falasse assim: ‘Não estou fa-
zendo nada’?
Scooby: Eu iria assistir um filme e iria escutar música, porque música eu escuto
fazendo outras coisas.
Virgil: Eu assisto música vendo TV.

Os jovens falam de não ter tempo e de ter que escolher prioridades. Essa
seria uma das formas pelas quais começam a construir essa noção de tempo?
Quando crianças, são os adultos que escolhem as prioridades da vida deles.
Podemos pensar que, ao poderem escolher quais são as suas prioridades, já de-
monstram que percebem como está sendo essa passagem para o mundo adulto.
O tempo e os usos que fazem dele marcam esse momento.

Você tem tempo livre hoje? (Pesq)

Agora que a gente tá em greve eu tenho tempo livre, rs. Mesmo estudando... por
isso até que eu estudo. Pra preencher meu tempo com o estudo. Mas eu coloco limi-
tes, claro! Eu faço atividade física. Mas quando eu tava na escola, quando a gente
tava tendo aulas normais, eu sentia que eu não tinha assim.... é muito sufocante
[...] (Fiona)

Em poucos anos, deixa-se a infância, na qual o tempo não importa, e entra-se


em uma corrida contra ele. O que mudou então? O que faz essa geração correr
tanto contra o relógio? Para estudantes de ensino médio, vestibulandos, em uma
escola com aulas de segunda a sábado, 13 disciplinas e uma grade horária que
conta com aulas no contraturno, o tempo nunca sobra. O ano de 2016, então,
foi uma grande luta para dar conta das exigências da escola e as horas extras de
estudo para o vestibular. Estudar, ainda que não apareça claramente nas falas
durante as oficinas, é o principal motivo das olheiras e cansaço segundo as falas
dos estudantes no dia a dia de sala de aula. Fazer mais de uma atividade ao mes-
mo tempo, como disseram alguns jovens com os quais pesquisei, poderia assim
ser uma possibilidade para fazer coisas simples, como ouvir música, que se torna
tão valiosa pela necessidade de ter algo que não se parece uma obrigação nesses

136 | Comunicação, audiovisual e educação


dias tão corridos. No cenário de hoje, passar de ano na escola e passar no vestibu-
lar ao mesmo tempo – para os jovens que almejam e/ou possuem melhor estrutu-
ra familiar e escolar – é mais que uma necessidade, é quase que uma obrigação.

TEMPO, AS TELAS E A ESCOLA: RELAÇÕES SURGIDAS

Além da escola, você acha assim que tudo no entorno, celular apitando toda hora.
As informações chegando mais rápidas, isso também gera uma diminuição do tem-
po? (Pesq)

Acho que sim, porque a gente não fica o tanto tempo no celular assim direto. Mas a
gente fica um pouquinho aqui, um pouquinho ali... de pouquinho em pouquinho,
a gente poderia estar fazendo outras coisas. É uma coisa que ocupa. E a gente fala
que não tem tempo mas a gente tem tempo pra pegar o celular e ver a mensagem
quando toca. Então eu acho que tem a ver com a velocidade das informações. É
muito fácil você ver qualquer informação na internet, você falar com qualquer pes-
soa. Então, fica tudo muito rápido. (Fiona)

Para o uso do celular, o tempo acaba surgindo mesmo em meio às diversas


atividades do dia. Manter os canais sempre abertos é uma prática comum, e, por
vezes, até automática de muitas pessoas, principalmente para os jovens. Nesse
ponto, durante a fala dos jovens, o que me chamou a atenção foi o fato de que
esses elementos – celulares e redes de comunicação – só foram apontados como
possíveis provocadores de falta de tempo quando fiz essa pergunta diretamen-
te. As atividades diárias como escola, cursos e deveres de casa são as que foram
citadas como as preenchedoras do dia. Surgiram, assim, duas possibilidades
para o fato, sem que uma exclua a outra: ou eles não percebem os canais aber-
tos como produtores de um tempo acelerado – pois enxergam estes muito mais
como espaços de diversão e sociabilidade, ou, ainda, por falta de experiências
com outras vivencias com o tempo, não percebem a existência dessa diferença
como acontece com outras gerações. Estar conectado para essa geração sempre
fez parte do cotidiano.
Pensar no tempo, na contemporaneidade, é pensar bastante em como a tec-
nologia influência nas nossas práticas cotidianas. Barbero (2008, p. 70) diz que
vivemos um novo regime cultural baseado na tecnicidade e que “a experiência

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 137


com o audiovisual transformada pela revolução digital [...] marca a construção
de novas temporalidades ligadas à compreensão da informação”. Barbero (2008)
ainda afirma que todas essas transformações na relação com o tempo trabalham
sempre o presente, o “aqui e agora”, que nos faz pensar na importância do que se
faz naquele instante da vida e, até mesmo, a necessidade de se publicizar tudo
o que é feito, o tempo todo, por meio das mídias. Barbero (2008) fala ainda que
esse movimento desvaloriza o passado e naturaliza o instantâneo, logo, pode-
mos começar a refletir sobre as urgências dos jovens vestibulandos colocadas
anteriormente.
Dentro de todo conceito “tempo livre” desenhado por Dumazedier, Lima e
Ansarah (1994), sua definição, abrangência e suas observações sobre o tema no
cotidiano de jovens estudantes, não só percebemos um aporte teórico impor-
tante para se pensar no tempo fora do espaço escolar, como também refletimos
sobre o tempo livre nos dias de hoje nesse contexto de consumo vivido pelos
jovens de hoje.
Falar sobre tempo livre, em 2016, é falar sobre um tempo em que a tela cabe
no bolso, o uso de mídias não se restringe ao tempo fora da escola. Segundo a
Empresa Brasil de Comunicação (EBC),6 uma criança ou jovem, entre 4 e 17 anos,
passa uma média de 5 horas e 35 minutos por dia em frente à televisão. Hoje, po-
der-se-ia dizer que essas horas são maiores em frente ao celular do que em frente
à TV, fato que as empresas de comunicação nem sempre admitem, o que geraria
uma média de 1.947 horas por ano, quase o dobro apresentado na pesquisa de
Dumazedier, Lima e Ansarah (1994). Sem contar que, para além do uso de tele-
visões, temos os celulares e tablets, nas mais diferentes telas, o que gera um uso
quase que contínuo de mídias. Trata-se de uma época em que o tempo é quase
todo vivido nas telas, sendo tempo livre ou não.
Enquanto a escola proíbe celulares e espera que os estudantes façam uma
atividade por vez, eles já vivem uma realidade de estarem habituados a lidar com
muitas situações ao mesmo tempo. Precisamos refletir sobre como lidar com di-
ferentes relações temporais dentro da escola.
Sposito (2003) apresenta reflexões importantes sobre o que ela nomeia como
“Uma perspectiva não escolar sobre o estudo sociológico da escola”. Para a auto-

6 Pesquisa realizada entre 2004 e 2014, publicada em 2015. Ver: http://www.ebc.com.br/infantil/para- pais/
2015/06/tempo-de-criancas-e-adolescentes-assistindo-tv-aumenta-em-10-anos.

138 | Comunicação, audiovisual e educação


ra, pensar em escola hoje é perceber a autonomia dos universos juvenis e como
eles interferem e modificam o espaço escolar e a relação dos jovens com esse
lugar. Dentro dessa perspectiva, Sposito (2003) apresenta a importância de se
pensar e pesquisar os lugares externos presentes no cotidiano dos estudantes,
para compreender essas mudanças, os jovens e pensar em possibilidades a partir
dessas observações.

Trata-se de pensar a escola, quer como unidade analítica quer como


objeto empírico de investigação, em seus elementos não escolares.
Ao se apoiar nos estudos sociológicos sobre a formação dos atores
coletivos – a sociologia da ação coletiva e dos movimentos sociais –
como na investigação sobre os sujeitos no ciclo de vida – a sociologia
da juventude e das relações entre as gerações – a análise dos fenôme-
nos educativos e escolares não se inscreve em um registro único das
sociologias especiais. (SPOSITO, 2003, p. 222)

Assim, todas as questões percebidas pela pesquisa que trago aqui, no con-
texto das temporalidades, apresentam esse lugar externo à escola do qual fala
Sposito (2003). Lugar esse que proporciona diferentes elementos que integram
os modos com os quais os estudantes interagem e interpretam a escola. Nesse
contexto, a forma de lidar com o tempo, se perceber e se colocar, baseado em
suas relações com as mídias – e aqui especificamente com os desenhos anima-
dos – trazem importantes questões para se pensar na escola nos dias de hoje.
A autora ainda nos traz uma importante questão sobre a escola e os espaços ex-
ternos a ela, e também, o que ela representa no cotidiano dos jovens. Ela diz que:

Na ausência de experiências mediadoras entre o mundo da casa e


o universo impessoal da esfera pública, a escola passa a ser o único
território de interações contínuas para adolescentes e jovens, ainda
sob certa proteção do mundo adulto, mesmo que este último apareça
como distanciado e, também, em crise. (SPOSITO, 2003, p. 222)

E é preciso estar consciente dos choques de temporalidades entre alunos e


professores, e a própria estrutura escolar. Possibilitar experiências diferentes
para permitir as diversas formas de lidar com o tempo em um mundo, no qual
a informação está cada vez mais acessível, traz um desafio nada pequeno para

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 139


a escola. É essa instituição que ainda guarda o lugar da sociabilidade, pois é o
lugar onde, dentro do cotidiano dos estudantes, é possível conviver com mui-
tas pessoas e aprender coletivamente e com as diferenças. A escola é o lugar da
pausa e da concentração. Ainda que também seja o espaço da exigência e de uma
constante corrida contra o tempo. Como aliviar pressões e lidar melhor com o
tempo dentro da escola? Essa resposta todos nós ainda buscamos.

CONCLUSÃO

As análises da pesquisa de campo nos levaram a refletir sobre o tempo. Naquele


lugar, percebemos a importância do tempo livre e o lugar de destaque dos de-
senhos animados nesse momento do dia durante a infância de nossos sujeitos.
Percebemos a importância da autonomia nesse tempo no qual, entre outros
atributos, se desenvolve a criatividade através de brincadeiras e desenhos (sem
se esquecer que ver desenho também faz parte da brincadeira). Contrapondo o
tempo livre, também pensamos sobre a falta de tempo presente nas narrativas
dos jovens. Percebemos como a concepção de “não ter tempo” está vinculada ao
mundo adulto e como os jovens começam a lidar de forma mais consciente com
o tempo, elegendo prioridades e organizações para lidar com todas as suas tare-
fas e necessidades diárias. Perceber o tempo, para os jovens, parece-nos trazer
um amadurecimento, uma passagem da infância para a juventude e para a pró-
xima etapa, a vida adulta. Refletimos sobre como a tecnologia influencia nessa
falta de tempo a partir da narrativa dos jovens, e chegamos à escola.
O lugar do tempo livre, a partir de Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), já não
dispõe de todos os elementos do passado. O tempo fora da escola já se transfor-
mou, para muitas crianças e jovens, em um tempo para outras atividades crono-
metradas. A presença de parentes e amigos nesse tempo vem dando lugar aos
grupos em aplicativos de bate-papo em plataformas on-line. O tempo livre perdeu
tempo e pessoas. Enquanto isso, a escola se encontra em uma posição de perda da
centralidade do conhecimento e vive – como evidenciado nesta pesquisa – uma
crise de temporalidades entre diferentes gerações, provocada pela rápida trans-
formação temporal ocorrida nos últimos anos com crianças e jovens, resultado
das mudanças que a tecnologia vem imprimindo em nossa sociedade.

140 | Comunicação, audiovisual e educação


Esta pesquisa, ainda que não trate de algo do cotidiano escolar, segue o ca-
minho apontado por Sposito (2003), de perceber o que trazem os jovens – de seus
cotidianos fora da escola – para suas vivencias e leituras dentro desse espaço.
Percebemos como os jovens desta pesquisa trazem a escola em suas falas, não só
por estarmos dentro dela durante o processo. Falam pela centralidade da escola
em seu cotidiano, dentro das horas do dia, dividindo-o em antes, durante e de-
pois do horário escolar. E também, em como percebem que essa escola poderia
ser diferente. Vejo assim, que é quase impossível pensar em qualquer elemento
da vida de crianças e jovens de forma separada da escola. Chegar a essa percep-
ção só reforça a importância de entender mais os jovens e crianças em seus uni-
versos, para assim, buscar caminhos para o novo lugar da escola na formação e
mediação desses sujeitos.
Entendo como possibilidade para equilibramos as perdas de ambos os espa-
ços – tempo livre e tempo de escola – uma troca mais ampla entre as aprendiza-
gens e as possibilidades de experiências. As pessoas estão nas escolas, e sempre
estarão. Como melhorar a interação e a qualidade das relações estabelecidas den-
tro desse espaço? Precisamos perceber que pessoas fazem parte dessas pequenas
comunidades. Tirando-as da invisibilidade ou passividade dos processos que
constituem esse ambiente. Buscando entender os elementos – principalmente
sobre crianças e jovens – que as compõe para criar possibilidades a partir disso.
Bem como respeitar os limites e diferenças – sejam elas quais forem, e incluo
aqui a diferença temporal – de todos os sujeitos que convivem nesse espaço (es-
tudantes, docentes, dirigentes etc.). A escola é, ainda, o lugar do tempo de pausa,
de reflexão, de saber ouvir a si e aos outros. Algo raro nos espaços em que transi-
tamos nos dias de hoje, raro e importante. Precisamos pensar em caminhos para
melhores usos desse lugar dentro de suas possibilidades e potencialidades.
Sigo buscando conhecer melhor os estudantes que atravessam meu cotidia-
no como professora. Procurando caminhos para pensar em uma escola mais pró-
xima das necessidades que eles trazem de suas vivências. Pensar em desenhos
animados é pensar em um importante traço cultural e identitário que os cons-
titui. Ainda que seja um pequeno passo para entender o universo jovem, todo
passo é importante para uma caminhada.

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 141


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Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 143


8
“Se inscreve no meu canal”:
relações entre crianças e YouTube
Thamyres D aleth es e

INTRODUÇÃO

Este texto traz um recorte de parte dos aspectos que surgiram em minha pesqui-
sa de mestrado em Educação. (DALETHESE, 2017) A pesquisa estava articulada
ao projeto institucional (FERNANDES, 2013) e teve como objetivo investigar as
práticas de consumo e produção audiovisuais de crianças na plataforma de ví-
deos YouTube. A questão principal da pesquisa foi perceber que sentidos cultu-
rais as crianças construíam nas interações com esse ambiente virtual.
Tomei o YouTube como foco do estudo ao perceber a importância que esse
ciberespaço assume nas interações das crianças com o audiovisual e com a cul-
tura em que vivem. Na complexidade de ambientes culturais protagonizados
pelas mídias, o YouTube se afirma como um dos espaços em que os saberes
construídos e compartilhados entre os grupos sociais vão sendo cada vez mais
estruturados pelo consumo de objetos e informações que circulam pelas redes
transnacionais e hipermidiáticas na contemporaneidade.
Para realizar essa pesquisa, busquei indicações de amigos, colegas de tra-
balho e trocas com o grupo de pesquisa pela metodologia da rede para selecio-
nar crianças que fossem atuantes no YouTube. A pesquisa reuniu sete crianças
interlocutoras entre 7 e 12 anos de idade, seis moradoras de diferentes regiões
da cidade do Rio de Janeiro e uma do município de São Gonçalo. As estratégias

| 145
metodológicas empreendidas foram encontros on-line e off-line com cada uma
delas. Busquei encontrá-las em seus ambientes domésticos e em seus canais
no YouTube. Nos casos das crianças que tinham canal aberto no YouTube, esse
meio serviu como fonte prévia de informações para a pesquisa. Das crianças in-
vestigadas, cinco tinham canais públicos no YouTube e duas não, mas tinham
intenções de publicar seus vídeos nesse site.
Diante das mudanças vividas pelas crianças e jovens nos últimos anos
(FERNANDES, 2010), percebe-se cada vez mais uma perspectiva da cultura atre-
lada à comunicação e, entende-se que, para perceber os processos interativos
entre crianças com o YouTube, é preciso olhar mais para o conjunto de media-
ções do que para seus conteúdos. (MARTIN-BARBERO, 1997) Partindo dessa
lógica, é que me proponho a apresentar alguns dos aspectos percebidos nas
produções, nos relatos das crianças e nos contextos de consumo e produção de
vídeos. Dentre os aspectos que as crianças apresentaram em suas produções e
relatos, trago no presente trabalho a perspectiva sobre o YouTube pela lógica do
espetáculo (SIBILIA, 2016) que atua como um dos mediadores nos processos de
consumo e produção de vídeos delas. Junto a isso, destaco os discursos autobio-
gráficos que caracterizam as novas modalidades narrativas que compareceram
com expressividade entre as crianças.

YOUTUBE, UMA VITRINE DE SI


Eu sempre quis ser uma youtuber desde que eu nasci. Quero ser uma
youtuber que tenha fãs porque deve ser muito legal cuidar deles. Isso
deve ser muito legal!. (Talita, grifo nosso)

Essa frase é do primeiro vídeo que uma das crianças interlocutoras da pesquisa
publicou em seu canal no YouTube. Nele, ela anuncia o início do canal e justifica
o motivo que a levou a abri-lo: a vontade de ser uma youtuber. Burgess e Green
(2009) designam esse termo para sujeitos que são muito ativos no YouTube, mas
para as crianças são as novas celebridades da internet, pessoas que produzem
vídeos para o YouTube e ganham muita notoriedade nesse ciberespaço. Não à
toa, Talita faz essa associação entre ter um canal e ter fãs, pessoas que te sigam
e te admirem e pelas quais se deve zelar, como ela mesma diz. Eu desconhecia a
grande parte dos youtubers que as crianças citaram, mas para elas são como se

146 | Comunicação, audiovisual e educação


fossem ídolos, pessoas pelas quais as crianças se inspiram, falam com entusias-
mo e admiração. Mas o prestígio que atribuem aos youtubers é pelas narrativas
que produzem ou pelo sucesso atingido nesse ciberespaço?

Eu acho interessante [ter um canal]. Eu vejo muito YouTube também. Aí, eu disse
‘Por que não ter um canal no YouTube?’ Eu posso ter um canal famoso também! Aí,
de repente surgiu. (Yuki)

[Eu gosto] porque no YouTube você vê pessoas famosas. (Alice)

O que essas falas apontam é a percepção que as crianças parecem construir


sobre esses sujeitos que emergem nesse contexto midiático, mas, vale ressaltar,
são minoria. Essa construção do olhar sobre os caminhos possíveis de se trilhar
no YouTube não é à toa. A própria premissa do site com o slogan “Broadcast
yourself” – numa tradução literal significa “transmita a si mesmo” – incita a
uma suposta autonomia de seus usuários para que sejam também produtores
de conteúdos. De modo geral, a dinâmica do YouTube funciona de acordo
com ações interativas que convoca a “expressão comunicativa e curatorial do
público usuário, por meio do que consomem, produzem ou recomendam”.
(BATISTA, 2014, p. 38) E os sujeitos que estão promovendo essa nova forma de
entretenimento para as crianças, divulgando produtos e conteúdos, suscitando
valores e emoções, surgiram no próprio ambiente virtual do YouTube.
As crianças acompanham nas telas usuários comuns produzindo e trans-
mitindo vídeos amadores e observam a evolução de suas produções, o aperfei-
çoamento de técnicas de edição, o crescimento da audiência, de anúncios pu-
blicitários até virarem celebridades. Por usuário comum, entendo pessoas que
produzem vídeos em seus ambientes particulares como a casa ou o quarto, de
forma independente de conglomerados das mídias. O discurso midiático que se
cria e circula nesse ciberespaço – presente desde os youtubers à própria política
do site – é de que chegou a vez da “indústria caseira, de fundo de quintal, feita na
garagem ou no escritório de casa por você, eu ou qualquer um de nós” (SIBILIA,
2016, p. 76) conquistar o seu lugar na tela. As mensagens que se divulgam nessas
redes digitais e interativas são de que todos somos potencialmente criativos e
promissores. Basta estar conectado que somos constantemente convocados a se
mostrar.

“Se inscreve no meu canal” | 147


As crianças seguem jovens no YouTube que produzem vídeos que começa-
ram de forma despretensiosa. O que começa como um hobby, uma atividade de
lazer e diversão, como a prática de jogar videogames com amigos, pode se tornar
uma profissão remunerada e bem-sucedida. Como as próprias crianças relatam,
os youtubers extrapolam as fronteiras virtuais do YouTube viram capas de revis-
tas, cadernos escolares, aparecem em programas televisivos, livros. Com a facili-
dade que elas dispõem de algum tipo de recurso de gravação audiovisual, assim
como seus youtubers favoritos, também podem criar suas narrativas e socializá-
-las nas mídias sociais da internet e, quem sabe, também ficar famosos.

Eu já parei pra pensar que o YouTube pode ser uma carreira. Pode ser um trabalho.
Tipo, fazer vídeo pro YouTube e eu ser famosa. Sei lá, ter fãs que gostam de você, que
te apoiam, que compartilham seus vídeos, que te ajudam. Acho que é muito legal.
(Talita)

Essa perspectiva sobre o YouTube pela lógica da fama perpassou em todas


as falas das crianças de alguma forma. Mesmo os que não diziam explicitamente
como Talita o desejo em ser reconhecido no YouTube, deixavam transparecer
que atribuíam valor significativo aos canais com grande audiência e repercussão
nesse ambiente virtual, que tinham como inspiração canais famosos. Podemos
pensar, então, que as narrativas que as crianças criam em suas gravações são me-
diadas, sobretudo, pelo prisma do mercado que nos fala Orozco-Goméz (2009,
p. 174) no qual “construir uma história não é suficiente, deve-se fazer dela um
espetáculo para que seja consumida por mais audiências”.

Samara: Eu sei que falta muito, mas é um sonho né, conseguir a plaquinha do
YouTube!
Pesquisadora: Por que você acha que é legal receber a plaquinha do YouTube?
Samara: Porque eu acho que é o nosso trabalho né, a gente se esforçar, é o nosso
trabalho reconhecido, né! Tipo, como que tem a plaquinha de 100 mil, de 1 milhão
e de 10 milhões. A de 100 mil é de ferro, a de 1 milhão é de ouro e a de 10 milhões é
de diamante!

Como Samara aponta em sua fala, o YouTube premia os canais que alcan-
çam mais de 100 mil inscrições neles. Há um desejo em ampliar o quantitativo
de usuários inscritos em seu canal. Essa política do YouTube parece funcionar

148 | Comunicação, audiovisual e educação


como uma motivação para produzir e difundir conteúdos. Portanto, ser famoso
no YouTube é atingir números altos de visualizações nos vídeos postados e na
quantidade de inscrições em seu canal. Quando isso ocorre, além do usuário re-
ceber em sua residência uma placa da empresa YouTube, o canal pode ficar em
destaque na página inicial do sítio e aparecer como sugestão em outros canais de
modo a atingir outros usuários. Possuir um canal com notoriedade, ter muitos
inscritos é um símbolo de status porque significa que você está sendo visto, se-
guido por muitos outros nativos na comunidade do YouTube.
Paula Sibilia (2016) reflete sobre esse fenômeno na sociedade contemporâ-
nea que é a exposição voluntária nas telas globais. A publicização dos espaços
que antes eram privados, como a autora contextualiza, é um traço característico
dos novos arranjos de comunicação permeados pelas mídias. As subjetividades
que se constituíam de dentro para fora, agora se constroem de fora para dentro.
O eu que precisava ser protegido, recluso e zelosamente reservado no âmbito ín-
timo e familiar para ser autenticado, agora se desloca para o exterior. Passamos
do retraimento da intimidade burguesa para a euforia da exibição midiática.
Sibília destaca que é preciso primeiro ser visto para depois existir.
A importância que dão para o número de inscritos, visualizações e dos
cliques de “gostei” nos seus vídeos expressa uma ânsia constante de conquis-
tar mais audiência. A visibilidade é o principal objetivo em ter um canal no
YouTube e, por isso, ampliar o quantitativo de visualizações e inscritos acaba
sendo uma expectativa que se constrói ao publicar produtos nesse espaço. Para
Sibilia (2016), a lógica da visibilidade ocorre em meio a um grau de narrativas
midiáticas centradas no eu, na exibição da trivialidade da vida cotidiana. E, nes-
se contexto, o YouTube comparece como grande palco virtual, uma vitrine de si.
Sem dúvida, tal comportamento obedece a uma condição de mercado que
domina o intercâmbio cultural ao redor das telas (OROZCO-GOMÉZ, 2009) que
permeia a atmosfera cultural em que vivemos de que para comunicar é preciso
que os outros nos vejam. Segundo o autor, estamos presos nessa lógica da socie-
dade globalizada de que construir uma história é transformá-la em produto de
mercadoria. Novos dispositivos como YouTube convertem os usuários em auto-
res do próprio ambiente como mecanismo de transformá-los também em pro-
duto mercantil. A tirania do exibicionismo empurra a intimidade do quarto, das
paredes particulares dos lares para as telas globais. Para a autora, o cenário atual
da sociedade se organiza e funciona sob essa lógica. E o YouTube se configura

“Se inscreve no meu canal” | 149


como espaço privilegiado no amplo leque das novas práticas comunicativas que
enaltecem essa ordem.
Se o contexto comunicacional no qual as crianças estão crescendo e se for-
mando sujeitos convoca as personalidades a se mostrarem, essas personalidades
precisam da aceitação do outro por meio de curtidas, comentários, inscrições.
O olhar alheio é o que confirma nossa existência já que os outros também nos
narram. (SIBILIA, 2016) Dentre as crianças da pesquisa, Mateus foi o único que
não mostrava seu corpo e rosto em seus vídeos. No entanto, ele publicava vídeos
que traziam marcas de suas identidades ao transitar entre referências como as
Tartarugas Ninja, personagens de terror, música rap e games. Essa personalida-
de, no entanto, é uma obra criada. Uma obra projetada para ser exibida de acordo
com o que ele espera de aprovação social, do grupo social que ele quer pertencer
na comunidade YouTube.

Figura 1 – Vídeo publicado no canal de Talita


Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Samara fez um vídeo para comemorar e agradecer as 30 inscrições em seu


canal e, da mesma forma, Talita fez um vídeo para anunciar que havia alcançado
mil visualizações em seus vídeos, como podemos ver na Figura 1. Esses feitos
merecem ser enaltecidos, destacados e, claro, compartilhados com os demais.
Mais do que se exibir na tela, há uma necessidade em ter um cúmplice, um
admirador. Há nessa busca pela aprovação do outro uma obediência subliminar
a lógica da exposição. Isaac expressou não se importar com o quantitativo de
visualizações de seus vídeos no canal, mas quando comenta de um formato de

150 | Comunicação, audiovisual e educação


vídeo muito recorrente em seu canal que ele intitula de “intro”, ele demonstra
certa preocupação em agradar sua audiência.

Eu não ligo muito não para as visualizações. [...] Pras pessoas verem, pra gostarem
do meu canal eu faço vídeo de intro. (Isaac)

Percebe-se pela fala de Isaac como o desejo em atrair outros usuários para o
seu canal o leva a produzir e postar muitos vídeos que ele chama de “intro”, um
tipo de vinheta de abertura para suas produções. Ao mesmo tempo em que ele
subestima a estatística de vezes que seus vídeos foram assistidos, deixa trans-
parecer que há sim um esforço para assegurar a frequência de seus espectado-
res. Na verdade, a busca não é apenas pelo olhar alheio mas, sobretudo, para se
adequar, ser aceito socialmente por uma comunidade. No seu caso, o desejo de
pertencimento da comunidade de consumidores dos jogos Roblox e Kogama que
são os temas que dominam seu canal.

Figura 2 – Vídeo do jogo Roblox publicado no canal de Isaac


Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Diana foi a criança que trouxe com mais expressão a ideia de como as práti-
cas de consumo com o YouTube também dizem muito sobre as formas de legiti-
mar nossa expressão no mundo, de objetivar os lugares que anseiam pertencer.

“Se inscreve no meu canal” | 151


Todos as youtubers teens geralmente têm vinte e poucos anos, e eles sempre falam
de virgindade, da sua primeira vez, do seu primeiro beijo. E uma coisa que eu acho
que eu sempre quis falar também, é um negócio de bullying, esse negócio de homo-
fobia. Porque eu gosto de falar desses assuntos, eu sou uma pessoa que gosta dessa
praia. (Diana, grifo nosso)

Diana deixa claro que, se voltar a ter um canal no YouTube, quer ser da praia
dos youtubers que ela considera teens, pois abordam assuntos mais maduros para
crianças. No entanto, seus vídeos produzidos eram de temáticas diferentes como:
desafios, tutoriais de maquiagem, dublagens de música, histórias com bonecas bar-
bie e brincadeiras com os irmãos mais novos. Sobre esses vídeos, ela disse: “Eu vou
fazer uma coisa mais legal que as pessoas gostam de ver”. Para ela, publicar um vídeo
de uma brincadeira de desafio com os irmãos mais novos é dizer que ela consome
esse tipo de vídeo no YouTube. No entanto, como ela não se reconhece mais como
criança, como apontam suas falas, busca se distinguir dos irmãos mais novos.
Esse aspecto simbólico parte da hipótese de que “quando selecionamos os
bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente va-
lioso”. (CANCLINI, 2010, p. 35) A construção da imagem on-line é uma constru-
ção da identidade que visa a uma aproximação de grupos de usuários de um lu-
gar ao qual ela deseja pertencer. Sobre isso, Sibilia (2016) faz um alento de que o
eu que se apresenta na tela são fragmentos selecionados, editados e reordenados
de si. As crianças selecionam fragmentos de si, de suas identidades e criam seus
mosaicos do que querem expor de si.
Se as crianças são motivadas pelo YouTube a produzir vídeos, elas esperam
entrar nas dinâmicas interativas desse ciberespaço e se situar na condição de
consumidores, produtores, seguidores e, logicamente, de “seguidos”. Para tanto,
é preciso fazer vídeos que atraiam audiências, em especial, aquelas que sejam da
sua comunidade de pertencimento.
Penso que, para as crianças, ter um canal significa se apresentar ao mundo,
ou pelo menos ao mundo que você gostaria de participar. E ter baixo rendimento
nesse ciberespaço é ser desaprovado pelo outro. Dialogando com Sibilia (2016),
entendo o canal como uma objetivação do eu. Cada obra são pedaços do show
performático que criam sobre si na web. Podemos entender que essa prática de
narração comum na contemporaneidade caracteriza uma forma de apresenta-
ção, uma performance de si já que estão criando um personagem. O que elas

152 | Comunicação, audiovisual e educação


são em seus canais é a personalidade construída para ser vista, um personagem
mediado pelas interações sociais estabelecidas nessa comunidade virtual.

Figura 3 – Vídeo de gameplay publicado no canal de Yuki


Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Esses mecanismos de interação com outros usuários no YouTube são


significativos nas produções e publicações das crianças em seus canais. Em uma
das minhas visitas semanais ao YouTube, observei dois comentários novos no
canal de Samara que criticavam a qualidade da imagem de seu vídeo. Uma sema-
na depois, notei que todos os vídeos de seu canal tinham sido apagados sem avi-
so prévio para seus seguidores. Havia mais comentários de outros usuários em
outras postagens interagindo com perguntas sobre jogos, fazendo elogios e pedi-
dos para entrar em seus canais. Porém, dois comentários de desaprovação foram
suficientes para ela excluir de uma vez tudo que havia produzido e postado. Em
nossa conversa, Samara acabou falando desse ocorrido sem eu tocar no assunto.

Eu percebi que estava tendo comentários ruins por causa da qualidade do telefone,
aí agora eu voltei porque eu… Eu pretendo comprar uma câmera, ter tudo de filma-
gem, luz essas coisas, e tentar conversar com meu tio pra ele me ensinar a editar os

“Se inscreve no meu canal” | 153


vídeos, pra ter uma qualidade melhor e a gente conseguir chegar aos 100 mil, né!.
(Samara)

Fiquei me questionando se caso não houvesse comentários negativos, ela


continuaria produzindo e postando vídeos. Se a necessidade em melhorar a qua-
lidade da imagem, iluminação e som em seus vídeos já existia, ou surgiu ape-
nas com as poucas reações nos comentários de pessoas que ela nem ao menos
conhecia em sua vida off-line. Essa categoria apresenta o importante papel do
outro nas relações que se estabelecem on-line. E para satisfazer o olhar alheio,
sua exposição precisa ser construída, por isso, surge uma preocupação em admi-
nistrar a própria imagem on-line para atender aos critérios do outro. Nessas es-
tratégias de cultivo e cuidados com a própria imagem, Sibilia (2016, p. 42) reflete

[...] até que ponto tais comportamentos se naturalizam entre nós,


com uma rapidez inusitada, passando a desempenhar um papel fun-
damental no cotidiano de qualquer um. Afinal, o que se busca ao se
exibir nas redes? Seduzir, agradar, provocar, ostentar, demonstrar
aos outros – ou a alguém em particular – quanto se é belo e feliz, mes-
mo que todos estejam a par de uma obviedade: o que se mostra nes-
sas vitrines costuma ser uma versão ‘otimizada’ das próprias vidas.

O tom informal de conversa, bem-humorado e descontraído que os youtubers


e também as crianças na pesquisa adotam em seus vídeos imprimem a sensação
de confidência, de companhia e aproximação com o outro. Essa sede por olhares,
por manter sua audiência, por estar na tela, o desejo em ser bajulado se aproxima,
na verdade, de uma noção de celebridade. Como Sibilia (2016) aponta, elas não
querem propagar suas obras, ter seus trabalhos reconhecidos e aclamados, como
muitas dizem, elas buscam a aclamação de si mesmas. A busca pelo outro é a
busca em um confidente, alguém para compartilhar os fatos intencionalmente
selecionados e negociados de si, da vida e, por isso, ser aceito.

50 FATOS SOBRE MIM, YOUTUBE E O CONTAR DE SI

Ao prestarmos atenção ao que as crianças dizem em seus relatos e produções no


YouTube, percebemos que a tendência hegemônica que atravessa suas narra-

154 | Comunicação, audiovisual e educação


tivas com o YouTube são discursos autorreferentes, autobiográficos. O que ob-
servei nas produções é o uso majoritário do gênero narrativo que Lemos (2002)
chama de “ciberdiário”, uma espécie de diário pessoal, porém, aberto na web.
O autor analisa que quando o usuário comum conquista maior liberdade da
grande mídia para produzir e disponibilizar suas obras, ocorre o efeito crescente
da publicização do espaço privado. Isto é, ao exercitar o papel de emissor – pos-
sibilitada pelas novas tecnologias da comunicação – o sujeito traz situações e
interesses particulares para suas criações on-line.
Vejamos os títulos dos vídeos de Talita em minha última consulta a seu ca-
nal: “10 fatos sobre mim”; “Minhas 5 músicas favoritas”; “Minhas 5 séries favo-
ritas”; e ”2 verdades e 1 mentira”. Este último tem a participação de uma amiga
e é um tipo de desafio de contar três episódios de suas vidas, de modo que o
outro precisa descobrir qual é o falso. Ela também publicou um vídeo chama-
do “Medo”, em que contava o que lhe causava medo e os que já havia perdido.
Samara também publicou vídeos nessa mesma linha como os intitulados: “Tour
pelo quarto”, em que mostra cada detalhe de seu quarto; “Se arrume comigo para
a escola”, esse tipo de vídeo ela chegou a publicar quatro vezes; “Meu celular
morreu”; “Passeio no shopping”; “Meus melhores amigos”; e “Minhas capinhas
de celular”. Os títulos dos vídeos são autoexplicativos e trazem conteúdos do que
promovem. Elas duas crianças foram as que mais atualizavam seus canais com
informações e situações da vida pessoal.
Mateus, em meio a publicações de vídeos de gameplay, personagens de fil-
mes de terror e super-heróis – que não deixam de ser marcas de um consumo
identitário – chegou a postar vídeos mostrando fotos suas quando era bebê,
também fez vídeos para mostrar os presentes que havia ganhado de Natal e, em
outro, comentava sobre um livro de extraterrestres que também havia ganhado.
Mas todos esses foram apagados do canal em pouco tempo. Alice fez um vídeo
mostrando sua casa de boneca, fez um vídeo sobre sua rotina em casa, vídeos
brincando com os irmãos. Isaac tem vídeos de sua festa de aniversário, de um
passeio com a família, mostrando uma visita à casa de sua tia, brincando com os
primos. Diana contou que o primeiro vídeo que pretende postar quando tiver seu
canal será “50 fatos sobre mim”, uma forma de se apresentar para as audiências.
Contar ocorrências do cotidiano, exibir objetos pessoais de consumo, divi-
dir informações particulares, eventos familiares são formatos narrativos muito
comuns nas produções das crianças da pesquisa. Se nos atentarmos ao nome

“Se inscreve no meu canal” | 155


“YouTube”, “you” é a palavra inglesa para “você”, e “tube” uma gíria que faz alu-
são à televisão, de modo que sugere que “você é a TV”. Assim sendo, ao con-
vencer os usuários que também podem ser os protagonistas, roteiristas, atores e
autores, “as personalidades são convocadas para se mostrarem”. (SIBILIA, 2016,
p. 48) E, nesse jogo, as crianças trazem para a sua TV elas mesmas, conteúdos
particulares, seus gostos, interesses, sonhos e experiências pessoais. Em uma
cultura da informação baseada na exposição, o YouTube comparece com força
como uma vertente para os usos confessionais na internet. As narrativas audio-
visuais que as crianças produzem e publicam na internet trazem marcas dessa
lógica do espetáculo midiático e sinalizam para a tendência cada vez mais exibi-
cionista, autocentradas e performáticas que alimentam a construção das subje-
tividades. (SIBILIA, 2016)

Figura 4 – Vídeo publicado no canal de Mateus


Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

O maior exemplo que encontro nessa modalidade de narrativa são os vlogs,


termo constantemente usado pelas crianças nas nossas conversas. Talita, Diana
e Samara, por exemplo, caracterizavam dessa forma os vídeos que produziam.
Em muitos momentos, as crianças diziam esse termo de maneira natural, che-
gando a usar a expressão ao invés de simplesmente “vídeo”. Vlog é a junção das

156 | Comunicação, audiovisual e educação


palavras “vídeo” e “blog”, videoblog, que se caracteriza como uma forma de nar-
rativa audiovisual composta por “experiências amadoras, produtos narcisísticos
e exibicionistas” (RECUERO, 2002), com o propósito de publicação nas redes vir-
tuais. São formatos narrativos compostos de imagens, sons e movimentos gera-
dores de conteúdos particulares. Assim como os diários íntimos, o vlog também
se estrutura numa lógica confessional, uma escrita/imagem de si. Mas diferen-
temente dos diários, o vlog não tem cunho introspectivo com conteúdos restritos
e, na maioria, secretos. O que antes era abafado e preservado, agora se estrutura
sob a lógica da visibilidade. A sua narrativa é construída para ser compartilhada
e, por isso, supõe a existência de um público. Portanto, a construção dessa escri-
ta/gravação é interpelada pelo outro na medida em que as curtidas, comentários
e números de visualizações acabam exercendo papel de mediar as construções
dessas obras sobre eles mesmos.
Percebo nesse formato de vídeo o esforço em glorificar a menor das peque-
nezas para torná-las a maior das grandezas (SIBILIA, 2016), em elevar a banali-
dade da vida ao estado de arte pura. (LEMOS, 2002) O que se busca é fazer do
ordinário da vida comum um acontecimento. É possível sentir nessa compulsão
em publicizar o que se veste, o que se come, o que assiste, o que ouve e o que
se compra o sabor das conversas cotidianas, dos assuntos fiados e corriqueiros
do dia a dia. Pormenores sufocados pela velocidade e abundância de fatos e in-
formações que nos passam incessantemente ganham a preferência das narrati-
vas produzidas e compartilhadas no YouTube. Atribuir valor para os pequenos
detalhes que escapam para a maioria como trivialidades reside na importância
em contar a sua história. E narrar no contexto global mediado pelas interações
sociais digitalizadas reside predominantemente em práticas de autoexposição.

NÃO DEIXE DE CURTIR OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebi que as crianças são consumidoras midiaticamente ativas nas relações


que estabelecem com o YouTube. Para elas, a plataforma tem um significado
maior que um mero artefato para assistir e publicar conteúdos audiovisuais.
Quando criam conta no Google e fazem login no YouTube, elas podem se inscre-
ver em seus canais favoritos, acompanhar as atualizações dos youtubers, dar like
nos vídeos, comentar, compartilhar em outras redes sociais e até mesmo postar

“Se inscreve no meu canal” | 157


suas próprias produções. São ações que podem se traduzir na formação de redes
de contato, colaboração e cooperação. (BATISTA, 2014) Sendo assim, as crian-
ças encontram no YouTube um terreno fértil para criar vínculos e se afirmar so-
cialmente como sujeitos. Por meio virtual, as crianças incorporam novos papéis
sociais, assumem posições como espectadores, produtores e comunicadores e,
assim, vão construindo seus territórios por meio eletrônico.
Se o consumo de vídeos no YouTube atua na produção e circulação de senti-
dos culturais e simbólicos, as crianças estão se apropriando de mecanismos, lin-
guagens, formatos e conteúdos narrativos inerentes ao furor da espetaculariza-
ção midiática. Por isso, arrisco a dizer que, em geral, parte das interações sociais
que se criam nesse ciberespaço são significativamente mediadas pela noção
do espetáculo. As crianças com um pouco mais de autonomia em suas produ-
ções filmam e postam suas interpretações sobre o que elas já veem no YouTube.
Penso que, como espaço de sociabilidade, as crianças não buscam no YouTube
um meio de apresentar suas experimentações audiovisuais como o próprio site
propaga num suposto estímulo a usuários serem produtores.
As crianças fazem vídeo para postar nas redes da internet, porque elas que-
rem se comunicar com o outro. E se comunicar é dar expressão a formas de ser e
estar mundo. É no intercâmbio com indivíduos e grupos que a vida ganha sen-
tido, que legitimamos quem somos. Sibilia (2016) fala da construção da subjeti-
vidade visível. Comunicar no YouTube é ser visto. Elas querem expressar, apre-
sentar e compartilhar com alguém do outro lado da tela o que pensam, o que
gostam, o que sonham, o que vivem.
Sibília (2016) acredita que no cenário de avidez pelo consumo e produção
de conteúdos íntimos, a narrativa e autor se confundem sendo o narrador a sua
própria obra. O que se mostra é o que se diz, e o que se diz é quem se é. Narrar é se
expor. As infâncias atuais estão se (trans)formando junto com esse ambiente vir-
tual, globalizado e hiperconectado e essas interações provocam outras maneiras
de olhar, de sentir, de narrar. Na sociedade do espetáculo, as crianças narram ao
mesmo tempo em que se mostram e constroem imagens de suas identidades que
são fluidas e plurais.

158 | Comunicação, audiovisual e educação


REFERÊNCIAS

BATISTA, L. F. S. Jovens Youtubers: processos de autoria e


aprendizagens Contemporâneas. 2014. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2014.

BURGESS, J.; GREEN, J. YouTube e a revolução digital. São Paulo:


Aleph, 2009.

CANCLINI, N. G. O Consumo Serve Para Pensar. In: CANCLINI, N. G.


Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2010. p. 61-73.

DALETHESE, T. A lógica do espetáculo nas interações entre crianças


e Youtube. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO E
COMUNICAÇÃO-SIMEDUC, 8., 2017, Aracaju. Anais [...]. Aracaju:
[s. n.], 2017. p. 1-15

DALETHESE, T. Faz de conta que todos nós somos youtubers: crianças


e narrativas contemporâneas. 2018. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2018.

FERNANDES, A. H. O Cinema e as narrativas na era da convergência:


modos de consumo, formação e produção de audiovisuais de crianças,
jovens e professores. Rio de Janeiro, 2013. Projeto de pesquisa
institucional da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

FERNANDES, A. H. Revoluções culturais e as mídias: reflexões sobre


as relações de crianças e jovens com o conhecimento. Ciências &
Cognição, Rio de Janeiro, v. 15, p. 55-63, 2010.

LEMOS, A. L. M. A arte da vida. Webcams e diários pessoais na


internet. Revista Comunicação e Artes: a Cultura das Redes, [s. l.],
p. 305-319, 2002.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura


e hegemonia. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1997.

OROZCO-GÓMEZ, G. O. Entre telas: novos papéis comunicativos das


audiências. In: BARBOSA, M.; FERNANDES, M.; MORAIS, O. J. (org.).
Comunicação, educação e cultura na era digital. São Paulo: Intercom,
2009. p. 183.

“Se inscreve no meu canal” | 159


RECUERO, R. Weblogs, Webrings e Comunidades Virtuais. In:
SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO, 7., 2002, Belo
Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: [s. n.], 2002. Disponível em:
http://www.raquelrecuero.com/webrings.pdf. Acesso em: 20 mar. 2017.

SIBILIA, P. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de


Janeiro: Contraponto, 2016.

160 | Comunicação, audiovisual e educação


9
Professores de artes:
a experiência audiovisual como
formação e prática
Jamil a Gu i m arães

INTRODUÇÃO

Este capítulo tem como objetivo apresentar um recorte dos achados da minha
pesquisa de mestrado (SILVA, 2017) realizada dentro do projeto institucional.
(FERNANDES, 2013) O objetivo da pesquisa foi investigar os processos formati-
vos dos professores de Artes com o audiovisual. Para discutir essa relação entre
arte e audiovisual e o processo formativo dos professores, apresento uma refle-
xão que relaciona as duas áreas, mostrando o quanto são cada vez mais imbrica-
das na atualidade.
A proposta aqui é investigar as relações de experiência e formação com o
audiovisual que atravessam a vida e a prática do professor de artes. Vale ressal-
tar que o meu entendimento sobre audiovisual abarca os mais diversos suportes
disponíveis como o cinema, filmes baixados da internet, conteúdo acessado em
canais de vídeo – YouTube, Vimeo etc. –, a televisão, redes sociais – compartilha-
mento de vídeos no Facebook, Instagram, SnapChat, WhatsApp –, entre outros.
Para esta análise, terei como base as leituras feitas no grupo de pesquisa sobre
os estudos culturais latino-americanos – Canclini (2005; 2013) e Barbero (2002;
2013) – assim como autores que tratam das questões da arte e do audiovisual.
A pesquisa, de cunho qualitativo, num momento inicial, buscou ouvir e ana-

| 161
lisar as narrativas dos professores através de relato autobiográfico. Tive como
arcabouço teórico para esse momento o conceito de narrativa e experiência de
Benjamin (2012) e Larrosa (2002).
Quando penso a formação do professor de artes, consigo estabelecer um
paralelo com a concepção do “ser artista”. Ao artista associamos a genialidade.
Prefiro pensar no artista como um ser dotado de talento. Talento além da capaci-
dade de produzir algo fantástico, mas talento como a capacidade sensível de tra-
duzir plasticamente as inquietações que nele habitam germinadas por seu am-
biente cultural. Sendo a arte um dos elementos de construção de conhecimento,
cultura e identidade, penso de que forma o professor de artes “se constrói” com
as narrativas audiovisuais que permeiam sua vida.

A ARTE NA/DA DOCÊNCIA: CONVERSAS AUTOBIOGRÁFICAS

Para a metodologia da pesquisa, a organização das questões que me orientaram


não poderia ter uma ordem hierárquica, dessa forma, a melhor forma para orga-
nizá-las foi através do seguinte rizoma:

Figura 1 – Rizoma das relações de formação dos professores


Fonte: elaborada pela autora.

Temos o professor de Artes Visuais como parte de uma estrutura em que ele
– indivíduo, professor, aluno, experimentador, produtor, consumidor, pensador,

162 | Comunicação, audiovisual e educação


criador – compõe uma teia de relações a serem pensadas aqui: com o audiovisual,
seus modos de consumo, produção e formação; o que os levou à prática docen-
te vendo quais seriam os reflexos desses cruzamentos em sua prática. Da forma
como compreendo essas articulações na pesquisa, penso que esses conceitos estão
entremeados, tecendo as histórias e experiências desse sujeito professor. Sendo
assim, optei por elaborar esse rizoma de modo a contemplar essas diferentes pos-
sibilidades de formação. As suas relações de consumo e produção relacionam-se
diretamente com as experiências que esses professores tiveram e têm com as Artes
e com o audiovisual e a partir delas pensam sobre o que é Arte e audiovisual.
Entendo que o primeiro passo para compreender a formação do professor
de artes visuais é conhecer como viveram e pensaram sobre suas vidas até o mo-
mento a partir de suas experiências. Por esse motivo, a pesquisa optou por traba-
lhar de modo autobiográfico com as narrativas dos professores.
Por trazer ao narrador um momento de pausa e reflexão sobre si (DUARTE,
2004), a autobiografia tem também uma dimensão formativa. Autores como
Souza (2007, p. 61) assinalam a narrativa autobiográfica como “método para a
compreensão do percurso de vida do professor como metodologia de pesquisa,
pois intercambiar experiências é um processo de conhecimento com potencia-
lidade formativa”. Além disso, a narrativa autobiográfica como metodologia de
pesquisa deu-se principalmente pela compreensão de que os espaços de forma-
ção se dão também na academia e na escola, mas não apenas nesses. Como, a
partir dos autores que serviram de arcabouço teórico para essa escrita, penso a
formação como processo contínuo que atravessa as mais diversas instituições –
escolares, acadêmicas, sociais, virtuais, culturais, artísticas etc. – essas leituras
ajudam a perceber a “formação como percursos rizomáticos que se multiplicam
e problematizam-se a partir do reconhecimento do não-aprender, do não-conhe-
cimento também como lugares de formação buscando, com isso, desestabilizar
esses pensamentos quase naturalizados”. (SÜSSEKIND; FERRAÇO; OLIVEIRA,
2015, p. 4, grifo dos autores)
Os atores desta pesquisa são quatro professores de artes. Era um grupo bas-
tante heterogêneo no que diz respeito à faixa etária tendo o mais jovem 28 anos
e o mais velho 56 anos. No entanto, o grupo é mais homogêneo no tempo de ex-
periência como professor porque todos têm em média dez anos de experiência e
atuam na rede pública de educação. À exceção de um professor, todos trabalham
com ensino fundamental.

Professores de artes | 163


A busca pelos sujeitos da pesquisa deu-se através de contatos de integran-
tes de um grupo de pesquisa, de redes sociais – página do Facebook do grupo
de professores de arte – e contatos pessoais em eventos como o da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) Sudeste e o evento
no Museu de Arte do Rio (MAR). Tivemos um número pequeno de professores,
mas os achados foram significativos, pois a pesquisa pôde ser realizada com mais
profundidade, atenta ao percurso individual desses professores. Identificar os
sujeitos por seus nomes foi uma decisão acertada e autorizada pelos professores.
No diálogo com Walter Benjamin (2012), em sua concepção de narrativa e ex-
periência, entendo que, do ponto de vista desse autor, a narrativa pode ser com-
preendida como o relato de uma história carregada de investimentos simbólicos.
A palavra “experiência” tem sua raiz no latim, e significa “passagem através do
perigo”. Essa passagem traz ao sujeito uma aprendizagem. A essa aprendizagem
podemos associar a ideia de experiência de que nos fala Benjamin comentado
por Larrosa (2002, p. 25-26), em que “a experiência é aquilo que ‘nos passa’, nos
toca, ou que acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma” e, pensando
que o sujeito deve se mostrar sensível a vivências outras, complementa: “somen-
te o sujeito da experiência está aberto à sua própria transformação”. (LARROSA,
2002, p. 26) Essa sensibilidade é uma forma de mobilização poética do sujeito em
relação ao nosso cotidiano, pois

a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,


requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos deta-
lhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza,
abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,
ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24)

Para Benjamin (2012), as palavras não são ingênuas, elas definem uma rela-
ção de essência entre a história, carregando-a com investimentos simbólicos. Ao
narrar sua própria vida, o narrador revisita suas memórias, seus marcos, suas ex-
periências, organizando-as de uma forma compreensível a ele mesmo e a quem
o ouve. Dessa forma, o narrador elabora e reelabora sua própria história, cria um

164 | Comunicação, audiovisual e educação


roteiro no qual – tal qual um diretor de cinema que decide os cortes e duração de
uma cena, ou um pintor que, através do uso da luz e da sombra, consegue desta-
car um elemento específico da obra – decide quais fatos são relevantes ao pon-
to de serem mais bem desenvolvidos em sua trama narrativa e quais merecem
menos destaque. Essas leituras ajudam a pensar que a cultura enquanto eixo
formador da identidade do sujeito está diretamente relacionada às experiências
vividas por esses professores.

FORMAÇÕES DOS PROFESSORES

Nesse momento, minha intenção foi tratar das formações dos professores en-
trevistados pensando essa relação especificamente a partir de seus consumos
culturais para, dessa forma, pensar suas trajetórias.
Tenho aqui a intenção de abordar as múltiplas possibilidades formativas dos
professores, por isso uso o termo “formações” no plural, pois entendo que os su-
jeitos se formam em diversas instâncias que não se restringem apenas às acadê-
micas. As pesquisas de (FRANGE, 2009; LOPONTE, 2011; NEITZEL; CARVALHO,
2013; SOARES; ALVES, 2011; SOARES, 2010 entre outros) apontam para essa di-
reção de uma formação de caráter mais amplo, que entendem que todos os es-
paços são potências formativas. Recorro a este trecho de Luciana Loponte (2011,
p. 42, grifos da autora) para ilustrar esse entendimento:

Acredito que um grupo de docentes em formação não é um ponto


de chegada e a ético-estética que o constitui, uma ética que adjetivo
como ‘artista’, pouco tem a ver com a arte das ‘obras-primas’ e sua in-
suspeitada originalidade cristalina. Assemelha-se mais àquela arte
que se assume como esboço, como rascunho contínuo, como
busca de estilo, como experimentação, como resultado árduo e
quase infinito de trabalho do artista sobre si mesmo. Uma arte
que se aproxima mais do que chamamos hoje de arte contemporâ-
nea, avessa a rotulações, legendas definidoras, sentidos fechados,
rompendo com fronteiras de materiais, técnicas e temáticas. Para
Bauman (2009, p. 99), fazer da existência uma ‘obra de arte’ nesse
mundo líquido-moderno é ‘viver num estado de transformação per-
manente, autorredefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo
menos tentando se tornar) uma pessoa diferente daquela que tem
sido até então’.

Professores de artes | 165


Atribuir a metáfora do esboço e do rascunho à formação – acredito que não
apenas a docente – nos ajuda a entender como esse caminho não é único e como
ele não possui um ponto de chegada. Nossa formação se dá através de erro e
acerto, fazer e refazer, escrever e reescrever, desenhar e redesenhar, numa ação
contínua que nos constrói enquanto sujeito e enquanto profissional, embora
uma função não esteja apartada da outra.
A busca pelo conhecimento dá-se por diversas vias e uma delas é pelo acesso
aos bens culturais. (NEITZEL; CARVALHO, 2013) O acesso a esses bens, a intera-
ção com eles, sua apropriação e relação contribuirão para a formação estética dos
professores de arte já que segundo Vygotsky (2013, p. 234 apud SOARES, 2010,
p. 2) “como toda vivência intensa, a vivência estética cria um estado muito sen-
sível para as ações posteriores e, naturalmente, nunca passa sem deixar marcas
em nosso comportamento posterior”. Como um profissional que possui estreita
relação com a imagem, é essencial pensar as esferas em que se dão sua formação
estética, pois é a partir dela/com ela que sua prática pedagógica será norteada.
Rosália Duarte e João Alegria questionam como se faz a formação estética de
espectadores (2008, p. 74) para pensar a construção do gosto pelo cinema, mas
penso que a pergunta se aplica à formação estética e de gosto de uma forma ge-
ral. Os autores usam o pensamento de Bergala (2002 apud DUARTE; ALEGRIA,
2008) para ajudar a formular uma resposta ao seu questionamento. Este diz que
o gosto não se ensina como dogma, tratando-se de “uma disposição que se forma
lentamente, pouco a pouco, por imersão e experimentação, em ambientes em
que existam obras de arte cinematográfica e nos quais estas sejam valorizadas
como objeto de fruição”. (BERGALA, 2002 apud DUARTE; ALEGRIA, 2008, p. 74)
A partir do entendimento sobre o que esses autores me dizem sobre forma-
ção e formação estética, trago a seguir um dos aspectos mais interessantes que
pude observar na narrativa dos professores, que diz respeito à formação como
uma busca.

BUSCA CULTURAL COMO FORMAÇÃO

Nesse momento, é importante esclarecer a ideia de “consumo” que pretendo


abordar e, para isso, trago o entendimento que Canclini (2005) nos dá sobre esse
conceito, de não compreendê-lo apenas como uma ação irrefletida, mas como
uma forma de identificação e pertencimento social e cultural. Em um mundo

166 | Comunicação, audiovisual e educação


globalizado, no qual as fronteiras estão cada vez mais se diluindo, e nos inserin-
do numa sociedade cada vez mais heterogênea,

[...] encontramos códigos que nos unificam, ou que ao menos per-


mitem que nos entendamos. Mas esses códigos compartilhados são
cada vez menos os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos.
Essas velhas unidades, quando subsistem, parecem se reformular
como pactos móveis de leitura dos bens e das mensagens. Uma
nação, por exemplo, a esta altura é pouco definida pelos limites ter-
ritoriais ou por sua história política. Sobrevive melhor como uma
comunidade hermenêutica de consumidores, cujos hábitos tradicio-
nais levam-nos a se relacionar de um modo peculiar com os objetos e
a informação circulante nas redes internacionais. Ao mesmo tempo
encontramos comunidades internacionais de consumidores [...] que
dão sentido de pertencimento quando se diluem as lealdades nacio-
nais. (CANCLINI, 2005, p. 67, grifo do autor)

Existem formas de consumir que aproximam as pessoas de seus pares


criando códigos de aproximação, conforme veremos adiante com as falas dos
professores. O consumo é entendido aqui não apenas como a aquisição de bens
materiais, mas do acesso/participação de ambientes, lugares, leituras, aprecia-
ções que permeiam a identidade dos sujeitos enquanto professores de arte, que
caracterizam ainda modos de circulação. Trata-se de um consumo como forma-
ção. Essa circulação é importante para pensarmos que a promoção de acesso a
diferentes bens culturais rompe com o conhecimento hegemônico. Dentro dessa
temática, o questionamento levantado aos professores foi sobre os critérios para
escolherem o que veem, leem, assistem, visitam, enfim, aquilo que se relaciona
ao consumo de bens culturais. Alguns professores deram respostas a linguagens
específicas como cinema e exposições, outros falaram de forma mais generaliza-
da. Tentarei fazer um apanhado geral do que eles me disseram.1

1 A coleta dos dados se deu por entrevista presencial, gravada em áudio e transcrita pela autora.  Os
professores assinaram uma autorização para participação na pesquisa relacionada à questão ética, na
qual eram esclarecidos sobre a possibilidade de as informações dadas poderem ser divulgadas nos
mais diversos meios e onde deveriam assinalar a opção de revelar seus nomes ou não.

Professores de artes | 167


A temática do filme, diretor. Diretor e temática, isso me prende. [...] Ah, eu gosto
de cinema de artes e cinemas voltados à temática LGBT, essas questões de di-
versidade de orientação sexual, até porque eu trabalho isso na escola com alu-
nos, então eu procuro ver, procuro participar de movimento social, eu gosto de ver
como é que as pessoas têm esse olhar, como isso está sendo mostrado. [...] Exposição
sempre o que tem no CCBB, no MAR – hoje, né? – e no MAM eu vou independente
do que seja até pra ver o que está acontecendo em termos de artes plásticas.
No Oi Futuro, também, como agora tem uma exposição lá de mídias. [...] E até pra
indicar também para aluno, porque quando eu vou à exposição, eu indico
pros meus alunos. (Antônio, grifos nosso)

[Filme] Geralmente eu escolho pelo enredo, né? Quando eu leio a sinopse ou en-
tão quando leio também algum comentário, alguma crítica, ou então... Pelo
diretor, pelo ator também. Varia. Exposição também, vai de acordo com as obras
que estão sendo expostas. O artista às vezes é um artista que é desconhecido por
mim aí me desperta interesse de repente pelo enfoque que tem a obra daquele ar-
tista e surge a curiosidade de conhecer e às vezes também é em relação ao trabalho
porque alguma coisa que eu estou trabalhando com alunos eu acho interessante
ver, ou então levar os alunos, então preciso ir antes pra conhecer, também varia!
(risos). (Sobre o que lê) Varia do momento e do interesse mesmo de ocasião, assim...
às vezes da necessidade também (risos). [...] Antes de eu entrar pra faculdade de
artes eu já visitava exposições. Não com a frequência que eu faço hoje, mas já visi-
tava, inclusive visitava às vezes com amigos, colegas de escola. Eu acho, (ênfase) eu
acho que tenha sido algo que foi despertado pela escola também. (Rosiane, grifos
nosso)

(Risos). Acho que não tem nenhum critério na verdade. A gente escuta de Adele a...
Sei lá, Smashing Pumpikins. [...] Tem coisas que acho que me atraem mais
que as outras de modo muito natural, [...] Eu acho que eu levo muito em con-
sideração o que falam sobre as coisas, então, por exemplo, se vai sair um filme
a primeira coisa que eu faço é ir no Google, digitar o nome do filme no Metacritic
que é um site que soma os índices de avaliação pra ver quantos pontos tem. Então,
tem uma relação com essa crítica muito forte. Tem uma relação muito forte
com o que as pessoas indicam. [...] Claro que eu tenho gostos, então, no campo da
música particularmente eu não sou muito fã de música brasileira, é difícil eu ou-
vir alguma coisa, mas eu já adoro música eletrônica, adoro músicas que envolvam
eletropop, rock, coisas assim. Adoro ouvir coisa ruim também, que é sei lá, Inês

168 | Comunicação, audiovisual e educação


Brasil, coisas que a gente sabe que são ruins, mas fazem a gente rir. Acho que te-
nho uma tendência muito forte para o humor também, entendeu? Tanto pra
cinema quanto pra música quanto pra tudo, mas um humor mais ácido. Agora
pras artes visuais, por exemplo, como é uma coisa que eu trabalho, eu tento ter
um olhar muito amplo. Então, sei lá, eu adoro pintura, mas eu acho mais fácil
encontrar um bom trabalho de pintura do que um bom trabalho de performance.
Como eu trabalho com curadoria eu tento me obrigar a ver tudo, entendeu?
E tento não ter pré-conceitos em relação a isso. Só que é claro que eu acho que
alguns trabalhos têm uma linguagem supostamente mais tradicional me atraem,
entendeu? E acho que acabo sendo guiado por esses gostos. (Raphael, grifos nosso)

Eu acho que sou muito de momento. [...] Eu tenho momentos que eu estou mais ro-
mântica, mais cult, tem momentos que eu estou muito aérea e aí nessa coisa do mo-
mento, às vezes rola uma busca mesmo de ‘ah, eu quero buscar uma leitura mais
mitológica, mais ligada à mitologia’. Ou eu quero buscar uma leitura mais ligada
à ficção. Eu sinto que eu tenho um pouco de momento. Mas eu sempre me vejo
buscando coisas que eu posso trabalhar com as crianças. [...] Então, às vezes,
eu estou trocando de canal na televisão e aí tá passando um desenho animado. Aí
eu paro, vou ler sobre o que é aquele desenho animado, quanto tempo ele tem e, às
vezes, eu começo a assistir ‘caramba, esse tema dá para trabalhar com os alunos’.
[...] Às vezes, estou passando de canal e vejo que dá pra linkar com alguma coisa, eu
paro de fato pra assistir. Mas a minha busca mais individual, fora da questão
do que eu posso usar na escola, eu acho que ela tem muito a ver com o momento,
e às vezes eu me forço a ver ‘ah, isso aqui é sobre arte’, então eu vou parar e
vou ver. Às vezes me prende, e às vezes não. Às vezes, eu acho chato e dispenso. Mas
eu tento sempre estar ligada na arte. [...] O primeiro (critério) é muito emotivo
mesmo, de exposição é muito emotivo: um artista que eu goste; um tema que
me interesse; às vezes eu nem sei direito quem é o artista, mas eu sei que o
tema é um tema do meu interesse, então eu pego e vou, faço um esforço pra
ir. E também que eu posso usar com os alunos. Tem um exemplo muito recente
que foi Frida Kahlo. Eu não sou muito fã, mas numa aula no PEJA eu resolvi falar
sobre ela e... Falei e senti um interesse muito grande dos alunos e por isso eu me
interessei em ir à exposição. Então dentro de arte tem a ver com isso: o afetivo
e o que eu posso trabalhar com os alunos. (Thaís, grifos nosso)

Pode-se notar que o consumo desses professores está associado a uma bus-
ca, como podemos perceber na fala da professora Thaís: “[...] eu sempre me vejo

Professores de artes | 169


buscando coisas que eu posso trabalhar com as crianças [...] A minha busca mais
individual [...] tem muito a ver com o momento, e às vezes eu me forço a ver ‘ah, isso
aqui é sobre arte’, então eu vou parar e vou ver”. A “busca” nesse contexto pode
ser entendida como procura, e como ir a algum lugar e trazer de lá o conheci-
mento ou vivência que o professor entende como necessário principalmente à
sua prática profissional, como eles mesmos dizem. Mesmo quando o consumo
é atribuído a um viés pessoal, aquilo que eles encontram em suas buscas acaba
refletindo nas suas práticas como é o caso do professor Antônio, cujo interesse
pessoal pela temática LGBT reflete-se nos usos que faz do audiovisual em sala de
aula. Como nos aponta Nóvoa (1992, p. 13),

a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conheci-


mentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexivi-
dade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma
identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar
um estatuto ao saber da experiência.

Dentro desse contexto, os professores buscam suas experiências estéticas –


e, consequentemente, formativas – levados também pela relação com o trabalho,
como nos dizem os entrevistados Rosiane e Raphael, respectivamente: “às vezes
também é em relação ao trabalho”. “Como é uma coisa que eu trabalho, eu tento
ter um olhar muito amplo”.
Observando o que os professores contam, é possível perceber que em relação
ao consumo de Arte – idas a exposições, museus, galerias – existe forte incli-
nação a associar isso às suas práticas profissionais, ou seja, como eles podem
utilizar esse conhecimento com os alunos ou, no caso do Raphael, na crítica de
Arte. Para isso, apesar de terem seus gostos e preferências, no que se relaciona a
exposições e práticas artísticas, não existem embarreiramentos no processo de
escolha do que visitar, mantendo o olhar atento a todas as possibilidades artísti-
cas, já que entendem que sempre pode haver uma porta para que seja trabalhada
em sala de aula ou para indicar aos seus alunos (Antônio, Rosiane e Thaís). É in-
teressante perceber que ao pensar em indicar ou levar os estudantes a visitarem
exposições, os professores estão preocupados também em ampliar seus repertó-
rios culturais, promovendo acesso a outros códigos de linguagem. Segundo Ana
Mae Barbosa (2012, p. 34), “o canal de realização estética é inerente à natureza

170 | Comunicação, audiovisual e educação


humana e não conhece diferenças sociais”. Ao indicarem exposições aos alunos,
esses professores potencializam a formação de seus aprendizes, ascendendo à
condição de cidadão. (CANCLINI, 2005) Ainda segundo esse autor:

Estas ações, políticas, pelas quais os consumidores ascendem à con-


dição de cidadãos, implicam uma concepção de mercado não como
simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações
sociais mais complexas. [...] O consumo é visto não como mera pos-
sessão individual de objetos isolados mas como apropriação coletiva,
em relações de solidariedade e distinção com outros, de bens que
proporcionam satisfações biológicas, que servem para enviar e rece-
ber mensagens. (CANCLINI, 2005, p. 70, grifo nosso)

Podemos pensar que existe um aspecto formativo do professor na intenção


de formar o outro, pois nesse gesto se reflete a sua própria formação, já que, ao
indicar uma exposição, ele o faz a partir da experiência que teve com a mesma.
Adriana Fresquet (2013, p. 46) afirma que a formação do professor é fun-
damental e, para isso, é preciso investir em hábitos de leitura, cultura e gosto
pelas artes. A autora coloca que o bom professor deve ser um bom “passador”,
de acordo com Alain Bergala e Serge Daney. (FRESQUET, 2013) “O passeur é
alguém que dá muito de si, que acompanha, e em um barco ou na montanha,
aqueles que ele deve conduzir e ‘fazer passar’, correndo os mesmos riscos que
as pessoas pelas quais se torna provisoriamente responsável”. (BERGALA, 2006
apud FRESQUET, 2013, p. 47, grifo nosso) Percebe-se que os professores têm in-
ternalizado dentro de suas práticas essa ideia do passador, ainda que essa ação
ocorra de modo instintivo, ao tentar aproximar outras visualidades, seja den-
tro da sala de aula, seja fora dela, do cotidiano de seus estudantes. Acredito que
isso fica claro na fala do professor Raphael, quando ele diz não ter pré-conceitos
acerca das coisas, pois penso que uma educação realmente emancipadora em
artes deve ser livre de padrões e julgamentos preestabelecidos. Ainda sobre o
professor Raphael, existe uma fala dele que nos faz refletir sobre o que são nos-
sas experiências quando ele diz existirem coisas que o atraem de modo muito
natural. Ora, o que seria esse modo natural? Esse natural não é também uma
construção social adquirida através de nossas experiências? Segundo Benjamin
(2012, p. 128), as peças do patrimônio humano são as que nos tornam ricos em

Professores de artes | 171


experiências, é através delas que experimentamos esteticamente e isso é experi-
mentar o mundo.

A EXPERIÊNCIA DO AUDIOVISUAL EM SALA DE AULA

A pesquisa teve como objetivo perceber, principalmente, as relações dos profes-


sores de artes com o audiovisual no sentido de formação e produção. No decorrer
da pesquisa, percebi vários usos do audiovisual feitos pelos professores de artes
que nem sempre visavam apenas a produção. O contato com esses professores
trouxe a diversidade de possibilidades existente em suas práticas. Destaco aqui
um dos usos feitos pelos professores que possui relação direta com o pensamen-
to da experiência como processo de formação de sujeitos.
Como parte desse processo de formação, é necessário um momento de apre-
ciação e fruição, ou seja, a sensibilidade estética está diretamente ligada às con-
dições sob as quais os sujeitos têm contatos com diferentes produções imagéti-
cas, conforme nos afirma Ana Mae Barbosa em diversos textos quando aponta
essa necessidade para o professor de artes.
A artista Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade e processos de criação
(2007), nos apresenta um enfrentamento ao problema da criatividade enquanto
reflexão teórica e como experiência vital da artista, cabendo aqui como supor-
te para análise já que os sujeitos aqui investigados, sendo professores de Artes,
atuam nesses dois campos: o de reflexão e o da prática artística.
Ostrower (2007) nos permite entender o potencial criador do ser humano
como elaboração através do trabalho. Ela nos diz que “a criação se desdobra no
trabalho porquanto este traz em si a necessidade que gera as possíveis soluções
criativas. Nem na arte existiria criatividade se não pudéssemos encarar o fazer
artístico como trabalho, como um fazer intencional produtivo e necessário que
amplia em nós a capacidade de viver”. (OSTROWER, 2007, p. 31) Assim, podemos
compreender que o trabalho artístico demanda certa compreensão dos limites
e possibilidades dentro do fazer, ou seja, da produção. Como nos diz a autora,

Toda atividade humana está inserida em uma realidade social, cujas


carências e cujos recursos materiais e espirituais constituem o con-
texto de vida para o indivíduo. São esses aspectos, transformados em
valores culturais, que solicitam o indivíduo e o motivam para agir.

172 | Comunicação, audiovisual e educação


Sua ação se circunscreve dentro dos possíveis objetivos de sua época.
Assim, o conceito de materialidade não indica apenas um determi-
nado campo de ação humana. Indica também certas possibilidades
do contexto cultural, a partir de normas e meios disponíveis. Com
efeito, para o indivíduo que vai lidar com uma matéria, ela já sur-
ge em algum nível de informação e já de certo modo configurada –
isso, em todas as culturas; já vem impregnada de valores culturais.
(OSTROWER, 2007, p. 43)

Entendo a materialidade da qual nos fala a autora como as produções huma-


nas – não apenas as artísticas – e, a partir desse entendimento, podemos mais
uma vez perceber como o meio em que vivemos influencia nossas práticas, favo-
recendo – ou não – possibilidades de formação estética e humana.
No cotidiano do trabalho em escola, percebo como o audiovisual é utilizado
nas aulas – aqui não trato especificamente das aulas de Artes, mas de todas as
disciplinas e em todos os segmentos – como um momento de descanso do pro-
fessor. Nessa pesquisa, não foi diferente. É notoriamente sabido o desgaste físico
do profissional de educação principalmente no nosso contexto social e, como
seres humanos, o descanso deve se fazer presente, mas o uso seja do filme ou do
vídeo tem aqui o sentido não apenas do “parar de falar”, mas também de obser-
var as reações dos estudantes mediante a imagem que se apresenta a eles, con-
forme nos aponta o professor Raphael. Quando Larrosa (2002) compara o saber
da informação com o saber da experiência, é possível estabelecer um paralelo
com esse momento específico da aula: quando o professor fala, e quando o estu-
dante assiste ao vídeo/filme, quando existe a possibilidade de que algo aconteça
a ele quando assiste àquele conjunto de imagens. Esse momento do assistir tor-
na-se um momento de pausa, um momento de deixar-se permitir experimentar
outra sensação ou transferir-se para um espaço outro que não o da sala de aula.
Ou seja, nas palavras desse autor, “o sujeito da experiência se define não por sua
atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibili-
dade, por sua abertura”. (LARROSA, 2002, p. 24) Além disso, o professor Raphael
sente que

Os alunos prestam mais atenção do que a projeção de imagens, tipo slide, Power
Point, o vídeo cria... O cinema tem essa coisa de todo mundo querer ver, debater,

Professores de artes | 173


querer falar se gostou ou não gostou tipo um YouTube da vida. E eu fazia isso que
era um modo de eu descansar também na aula.

O momento de pausa também é percebido na fala da professora Thais quan-


do fala do cineclube como um espaço em que os alunos aprenderam a agir dife-
rente do que era feito na sala de aula, aprenderam a fazer a pausa diferente da
vivida em sala de aula.

E eu vejo ano passado, quando teve esse cineclube que foi um pouco mais intenso,
que tinha uma programação certinha, era gente de fora e era interessante que ela
tinha uma abordagem um pouco diferente da gente. Ela direcionava muito mais
eles do que quando são as professoras que estão acostumadas a fazer o cineclube,
elas direcionam menos [...] e aí a gente via uma mudança no comportamento do
aluno. Então, isso aconteceu em abril... Alunos que em fevereiro, março não que-
riam muita coisa com a vida, a gente tinha certa exigência, esses alunos mudaram
o comportamento até dentro de sala de aula, no horário diferente do cineclube.

O professor tem duas experiências no que diz respeito à fruição na sala de


aula: aquela quando ele assiste determinada produção audiovisual e decide uti-
lizá-la em sua aula, na qual ele tem uma experiência específica e quando ele as-
siste novamente com seus alunos, quando a experiência é renovada a partir das
reações percebidas ao longo da exibição e a partir dos comentários tecidos em
eventuais debates acerca do que foi mostrado. E tem ainda uma terceira fora do
contexto da sua aula quando assiste num cineclube organizado por pessoas ex-
ternas à escola, fora de seu planejamento e percebe as reações e comportamen-
tos de seus alunos nesse momento.

REFLEXÕES FINAIS

Em nosso cotidiano, estamos sempre em contato com o audiovisual nas dife-


rentes situações vividas e basta andar pelas ruas para perceber isso. Estamos
a todo o momento em contato com alguém de olhos e ouvidos atentos ao seu
smartphone. Parece que o que era contado por nossos antepassados, através de
histórias orais e depois escritas, nos é contado hoje de forma mais dinâmica atra-
vés de novos suportes, principalmente audiovisuais. A nossa capacidade narra-

174 | Comunicação, audiovisual e educação


tiva se renova na medida em que o homem e o mundo à sua volta se renovam.
Continuamos contando histórias, mas a forma de multiplicá-las mudou.
Ao serem questionados sobre o que os levam a consumir determinado bem
cultural, os professores foram bem enfáticos com relação ao consumo direcio-
nado à arte, dizendo que visitam exposições não apenas guiados por seus gos-
tos pessoais, mas principalmente por conta do trabalho. Consigo entender que
há uma preocupação com relação à ampliação dos seus repertórios artísticos.
O mesmo comportamento não se vê presente no que diz respeito aos seus con-
sumos relacionados ao audiovisual, quando os gostos pessoais apresentam-se
como principais critérios de escolha. Quando entrei em contato com os profes-
sores, pedi que narrassem suas experiências marcantes com o audiovisual e as
artes. Os professores contam que uma das possibilidades de uso do audiovisual
é como uma pausa, entendendo essa pausa como um descanso e renovação da
experiência no momento em que ela torna-se outra ao ser compartilhada em ou-
tro espaço.
Como nos diz Larrosa (2002), sobre a experiência ser resultado de que algo
nos toque e nos sensibilize, é necessário esse momento de parada. Pensemos
um mesmo filme visto em três circunstâncias diferentes: numa sala de cinema,
pelo computador em casa e na sala de aula. Mesmo que o filme seja o mesmo,
as motivações e situações em que a exibição ocorre proporcionam experiências
diferenciadas. Escolher um filme seja pelo enredo, pelo diretor ou pela temáti-
ca; locomover-se até a sala de exibição, comprar pipoca, ficar na fila, escolher
o assento; isso implica em uma relação corporal quase afetiva com o filme.
Ao decidir por ver o mesmo filme em casa, dentro do seu quarto, as motivações
já serão outras, incluindo a hipótese de já estar pensando em apresentá-lo como
material para aula, direcionando o olhar mais para o conteúdo que para a parte
estética. E, por fim, exibir um filme para uma turma de 30 a 40 alunos proporcio-
na uma relação totalmente diferente das anteriores, na qual a atenção se divide
entre a narrativa do filme e as reações dos estudantes. O debate gerado a partir
das impressões sobre o filme também alteram a perspectiva do professor em re-
lação a ele. Assim, mesmo que o professor tenha vivenciado as três experiências
exemplificadas aqui, cada experiência terá sua particularidade.
Essas particularidades devem-se principalmente às múltiplas possibilida-
des de suportes que encontramos nos dias atuais, em que as relações entre am-
bientes virtuais e reais estão cada vez mais entrelaçadas, possibilitando renova-

Professores de artes | 175


ções no campo da experiência e da formação. Tendo isso em mente, gostaria de
finalizar este texto trazendo esse aspecto da aproximação dos ambientes para
traçar um paralelo em relação ao texto, destacando que a formação do profes-
sor com o audiovisual precede o seu uso e compõe uma cadeia composta de um
distanciamento temporal, mas também uma aproximação pela experiência for-
mativa. Quando os professores propõem-se a buscar algo, estão se permitindo
experienciar esse algo que, no futuro, sendo utilizado em suas aulas, será viven-
ciado de outra forma. O deixar-se sensibilizar é imprescindível nesse processo.
Encerro com a fala de Fayga Ostrower (2007, p. 39, grifos nosso) a respeito da
sensibilidade e da imaginação como reflexão final deste texto:

[...] a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo do indi-


víduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou certas rea-
lidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com elas. Pois,
antes de mais nada, as indagações constituem formas de relaciona-
mento afetivo, formas de respeito pela essencialidade de um fenô-
meno. [...] Ao mesmo tempo que se aprofunda na razão de ser de
um fenômeno, essa afetividade implica uma amplitude de visão que
permite muitas coisas se elaborarem e se interligarem, implica uma
visão globalizante dos processos de vida. A visão global dependerá
da sensibilidade de uma pessoa; mas, reciprocamente, para se trans-
formar em capacidade criativa real, a sensibilidade sempre depende
dessa visão global.

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178 | Comunicação, audiovisual e educação


10
Cibercultura e redes sociais:
refletindo sobre as práticas das juventudes
Lucy An na D i ni z
Ad riana Ho ffm ann

INTRODUÇÃO

Atualmente, temos observado de perto diversas relações dos jovens com a ciber-
cultura. Nessas observações, as redes sociais são motivo de muitos debates e vá-
rias pesquisas e estudiosos vêm trazendo reflexões a respeito das redes, dos usos
e questões que elas nos trazem na atualidade. Alguns dos autores com os quais
dialogamos neste capítulo foram Nelson Pretto, André Lemos e Paula Sibília.
Este capítulo apresenta os achados de um estudo de monografia (DINIZ, 2016)
realizado no contexto do projeto institucional. (FERNANDES, 2013)
Entendemos, de acordo com Lemos (2004), que cibercultura é a cultura con-
temporânea, marcada pela circulação incessante de informações através das re-
des telemáticas, pela promoção de uma sociabilidade on-line e de uma espécie
de cultura de compartilhamento. (LEMOS, 2004) A interconexão mundial dos
computadores, e, acrescentamos, dos dispositivos de informação e comunica-
ção, dá início ao que Lévy (1999) chamou de ciberespaço, ou seja, esse espaço de
comunicação digital que abriga um “dilúvio” de informações e pessoas que não
só navegam nesse dilúvio mas também alimentam-no.
Discutimos a cibercultura como “fruto de influencias mútuas, trabalho coo-
perativo, de criação e livre circulação de informação através dos novos disposi-

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tivos” (LEMOS, 2004, p. 16) um novo espaço de comunicação. Assim, alguns dos
princípios da cibercultura são a liberação do polo da emissão de forma coletiva e
em rede, a conexão generalizada e aberta e a reconfiguração cultural. De acordo
com Lemos (2005), a grande potência da cibercultura é a potência da conversa-
ção. Os três princípios apontam esse movimento de conexão e de troca coletiva
na produção e na recepção de conteúdos e mostram os desafios que uma mu-
dança dessa ordem pode trazer para os processos de aprendizagem baseados na
linearidade e sequencialidade como os vividos na escola.
Alguns autores como Pretto (2008), Lemos (2004; 2005) e Sibília (2012) dis-
cutem também o conceito de cibercultura relacionando o processo da educação
e das redes com as questões que o contexto atual abarca. Ao mesmo tempo em
que as redes trazem questões para a escola e tensões a partir da reconfiguração
pela qual a cultura está passando a partir da cibercultura, o processo educativo
nos ajuda nesse processo de reconfiguração. De acordo com Lemos (2005), a me-
táfora que mais se aproxima do estado social atual é a da sociedade em rede. Que
reconfiguração cultural seria essa pela qual passamos? Comunicar-se em rede
seria o novo modo de convivência atual?
“As redes constituem a nova morfologia social das nossas sociedades, e a di-
fusão da lógica das redes modifica substancialmente a operação e as conseqüên-
cias dos processos de produção, experiência, poder e cultura [...]”. (CASTELLS,
1996, p. 469 apud LEMOS, 2005, p. 6)
O infográfico a seguir mostra a profusão de redes que foram criadas desde
o início das comunicações, começando pelo telefone. Mesmo considerando que
várias redes sociais atuais, bem como as que já existiram e não são mais utiliza-
das, não estão representadas nesse gráfico, essa pequena mostra já nos faz per-
ceber como é crescente o surgimento de cada vez mais novas redes que ampliam
esse processo gerado e mantido no coletivo da rede de produção e circulação de
conteúdos.
O presente capítulo pretende apresentar parte dos dados de uma pesqui-
sa que foi realizada dentro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE). Trata-se de uma busca por entender melhor o que
pensam e fazem os jovens nesse acesso às redes, problematizando e refletindo
sobre os usos realizados em diálogo com os autores e teorias em estudo.
Nesse momento, temos como objetivo apresentar os dados produzidos em
entrevistas e questionários realizados com os jovens da faixa etária entre 11 e 15

180 | Comunicação, audiovisual e educação


Figura 1 – Infográfico com a linha do tempo
do surgimento de algumas mídias sociais,
do telégrafo ao Snapchat
Fonte: adaptada de Mídia Boom (2015).

Cibercultura e redes sociais | 181


anos acerca do acesso dos jovens à internet, sua definição de internet, suportes
de acesso e usos feitos por eles. Interessa-nos discutir e refletir a respeito de uma
situação que nos chamou especial atenção na pesquisa: o fato da maioria dos
jovens deste estudo afirmarem que usam as redes sociais para manter contato
somente com as pessoas mais próximas como a família e os amigos. O que os leva
a escolher relacionar-se nas redes sociais apenas com as pessoas com as quais já
tem contato cotidiano fora da rede? Como isso pode ser pensado num contexto
em que a discussão sobre cibercultura fala justamente da liberação do polo da
emissão, da palavra, da ampliação da comunicação nessa dimensão do coletivo?
Seria uma questão de risco que é passada por eles pela família ou por pessoas
próximas?
Para uma análise dos dados produzidos, traremos alguns trechos de entre-
vista para reflexão. Devido à escolha ética de preservar a identidade dos sujeitos
participantes da pesquisa, que não desejaram ser identificados, utilizaremos
abreviações de seus nomes que os representarão. Foram realizados questioná-
rios com 26 jovens e entrevistas com 11 jovens, aqui descritos pelas siglas: E.; C.;
N.V.; C.C.; P.G.; V.; A.C.; T.; N.; J.; e H.

O ACESSO DE JOVENS À INTERNET

Os jovens pesquisados são estudantes de uma escola pública e eram participan-


tes do Programa Mais Educação em 2015, são em sua maioria moradores de uma
comunidade próxima à escola em que a pesquisa foi realizada. Do ponto de vista
de uso de dispositivos, os jovens que fizeram parte da pesquisa encaixam-se nas
estatísticas divulgadas pelas pesquisas do Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br) em 2015 e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em
2016, e continuam a mostrar a ampliação dos usos no TIC Kids On-line 2017 que
aborda usos de crianças e adolescentes. Tais estatísticas apontam que 92% dos
domicílios brasileiros possuem telefone celular. Presença massivamente maior
que a de tablets, computadores e telefones fixos, e que grande parte do acesso à
internet é realizado através de dispositivos móveis.
Como podemos observar a partir da Figura 2, os dispositivos móveis são uti-
lizados de forma frequente pelos jovens desta pesquisa: 18 entre os 26 estudantes
que participaram da pesquisa disseram ser pelos dispositivos móveis os modos
pelos quais seu acesso é mais frequente. Apesar de muitos terem acesso e usa-

182 | Comunicação, audiovisual e educação


rem computadores de mesa, é através de dispositivos móveis como celulares e
tablets que esses estudantes acessam à internet com mais frequência. Esse dado
pode influenciar no tipo de conteúdo acessado, pela existência de sites e conteú-
dos que são mais acessíveis para mobiles ou para computadores.

Figura 2 – Indicador dos suportes mais utilizados pelos estudantes da pesquisa para acesso à internet
Fonte: elaborada pelas autoras.

Acessar redes sociais, aplicativos de conversas e alguns sites de notícia pode


ser inclusive mais fácil em dispositivos móveis. Por outro lado, o consumo e a
edição de vídeos, o uso de jogos mais complexos e a edição de imagens, a partici-
pação em determinados fóruns de discussão, por exemplo, são atividades que se
tornam mais simples quando o acesso se dá através de computadores de mesa ou
notebooks. Tendo em vista ainda os aspectos econômicos, podemos supor que
por dispositivos móveis serem mais baratos que computadores de mesa e note-
books, sejam mais facilmente adquiridos pelas famílias desses jovens.
Esse uso frequente a partir de dispositivos móveis pode influenciar também
o modo como esses jovens lidam com os planos de internet, a questão do uso

Cibercultura e redes sociais | 183


de dados móveis e franquias, e a diferença entre a qualidade da internet móvel
e da internet fixa. Em determinado momento da pesquisa, uma das estudantes
reclama da qualidade de seu plano de dados, afirmando que atinge a franquia
muito rapidamente e seus créditos acabam na mesma semana da recarga. Essa
reclamação acontece em um momento em que a estudante está na escola, que
não permite acesso à rede local.
A maior parte dos estudantes diz acessar à internet de casa, sendo a escola
um espaço em que apenas oito afirmam usar a internet, e nenhum dos estudan-
tes afirma ser o local em que acessam à internet com mais frequência. A esse
dado, cabe acrescentar que existe uma lei municipal no estado do Rio de Janeiro
– como sabemos também existir em outros estados do país – que proíbe o uso
de aparelhos eletrônicos em sala de aula, e que talvez o pouco acesso na escola
possa se dever às normas escolares.
É interessante observar que, apesar de os estudantes não dizerem ter
conhecimentos técnicos sobre o funcionamento da internet e das redes, eles
aprendem na prática o que é mais vantajoso para o uso que eles fazem. A maior
parte dos jovens que responderam ao questionário afirmam ter acesso à inter-
net em suas casas, com obstáculos diferentes e velocidades de conexão variadas,
mas apenas três dos 26 relataram não ter acesso em casa. Levando em conta que
os sujeitos pesquisados são moradores de periferia, podemos perceber que o po-
der aquisitivo das famílias dos estudantes não é um impeditivo completo no que
diz respeito ao acesso à rede, à conexão, embora suas experiências com as cone-
xões sejam bastante variadas.
Com relação às atividades que fazem na internet, a maior parte dos estu-
dantes afirma que a de maior frequência são os jogos, embora digam fazer mui-
tas outras coisas, principalmente assistir a vídeos, utilizar redes sociais, fazer
trabalhos para escola, escutar rádio, conversar em aplicativos de chat e postar
fotos. Podemos perceber essa variedade de atividades e a predominância dos
jogos através da Figura 3. Nesse sentido, podemos perceber alguma relação
entre as atividades e suportes mais frequentes. Do total de 26 estudantes, 19
responderam ao questionário apontando como atividade mais frequente os jo-
gos, redes sociais e aplicativos de chat. Redes sociais e aplicativos de chat têm
aplicações específicas, e, em alguns casos, exclusivas para dispositivos móveis.
Jogos variam em complexidade, mas existe uma infinidade compatíveis com os
dispositivos mobile.

184 | Comunicação, audiovisual e educação


Figura 3 – Atividades mais exercidas pelos jovens da pesquisa quando acessam à internet
Fonte: elaborada pelas autoras.

A partir da análise das atividades que esses jovens apontam como mais fre-
quentes, podemos iniciar uma reflexão acerca do posicionamento desses jovens
com relação ao consumo de produtos culturais e à construção de conhecimen-
tos. Quais seriam os jogos que eles jogam? No relacionamento nas redes sociais,
seriam eles produtores de conteúdo? Esses questionamentos nos levam a pensar
se esses jovens teriam na internet relações muito distintas das relações que eles
estabelecem fora das redes.
Apesar de a maioria relatar ter acesso à internet em casa, cinco jovens en-
cararam a pergunta “por qual motivo você não acessa à internet?” como uma
pergunta desvinculada da pergunta relacionada ao acesso, indicando que es-
tar na internet para eles não se relaciona à facilidade ou à dificuldade de co-
nexão. Apenas dois disseram não ter vontade de acessar e outros dois disseram
ter medo, sendo que apenas um afirma não acessar por não ter condições para
acesso.

Cibercultura e redes sociais | 185


INTERNET: O QUE É NO PONTO DE VISTA DOS JOVENS DA
PESQUISA?

Trazemos aqui em forma de infográfico as respostas deles à pergunta: O que é in-


ternet para você? O infográfico a seguir aponta as palavras que mais apareceram
nas respostas dos entrevistados.
A Figura 4 revela a dificuldade que os estudantes da pesquisa têm em con-
ceituar “internet”. Um aspecto da realidade com que a maioria deles diz ter con-
tato diariamente e aparentemente nunca pararam para formular um conceito
para o termo. As expressões “internet”, “assim”, “sei lá”, “coisas” aparecem com
um tamanho maior, indicando que são as expressões mais ditas no momento de
resposta a essa pergunta.

Figura 4 – Infográfico de nuvem de palavras relativo às respostas à pergunta: “o que é internet para você?”
Fonte: elaborada pelas autoras.

186 | Comunicação, audiovisual e educação


Em seguida, podemos perceber outras expressões em tamanho menor, mas
ainda com destaque, que nos dão pistas do que esses jovens encaram como parte
da internet: “Facebook”, “comunicação”, “meio”, “jogo”, “pesquisar”. Com essas
expressões, poderíamos construir um padrão que representa a maioria das respos-
tas obtidas na entrevista e chegamos à conclusão que os estudantes conceituam
a internet a partir de seus usos. Internet é uma coisa que serve para fazer alguma
coisa, para se comunicar, jogar e pesquisar a partir das respostas mais frequentes.
É interessante observar que nenhum estudante menciona a palavra “rede”
ou “conexão”, denunciando que essa é uma ideia que não está presente quando
eles pensam nas atividades que fazem proporcionadas pela internet. Apesar de
demonstrarem que percebem uma funcionalidade de comunicação e pesquisa,
não elaboraram ainda a ideia de que essas funcionalidades são promovidas pela
conexão entre computadores e usuários. Talvez da mesma forma não percebam
que essa conexão cria possibilidades ainda não conhecidas por eles. Os usos e
relações trazidas a seguir pelas falas selecionadas podem nos ajudar a refletir
a respeito desses modos de acesso trazidos pelos sujeitos da pesquisa. Estarão
mesmo esses sujeitos dentro dessa cibercultura de que fala Lemos (2004; 2005)?
O que os modos de acesso deles falam de como percebem sua ação social na rede?

CONVERSO NA REDE “SÓ COM MINHA MÃE E COM MEU


PAI”: USOS DA REDE SOCIAL NA DIMENSÃO PRIVADA

A famosa frase dita pelas famílias – “tome cuidado, não fale com estranhos” – às
crianças quando pequenas parece se perpetuar nos usos que os jovens da pes-
quisa fazem nas suas interações nas redes sociais. As falas a seguir apontam que
os entrevistados – em sua maioria – somente utilizam as redes sociais para in-
teragir com as pessoas que são do seu círculo de convívio cotidiano – família e
amigos próximos.
Os jovens da pesquisa referem-se a seus familiares e amigos quando falam de
seus usos das tecnologias digitais, e boa parte deles chega a afirmar que interage
exclusiva ou prioritariamente na rede com seus familiares e amigos. Podemos
perceber nos trechos de entrevista a seguir:

[...]
Entrevistador: Você tem perfil em site de rede social essas coisas assim? Facebook,
Instagram?

Cibercultura e redes sociais | 187


P.G.: Tenho Facebook e WhatsApp.
Entrevistador: E com quem você conversa no WhatsApp?
P.G.: Com meus primos, alguns amigos da minha sala, meus primos que moram lá
em Caxias, os que moram lá em Cordovil…
[...]
Entrevistador: Você conversa com quem no WhatsApp?
A.C.: Só tenho.. é.. Com minha tia, só com minha tia, minha mãe e meu pai.
Entrevistador: Só com a família?
A.C.: É, isso mesmo.
Entrevistador: O que vocês conversam?
A.C.: Ah, quando tem alguma urgência a gente usa. E conversa, diariamente quan-
do a gente não se vê.
[...]
Entrevistador: Você sempre posta foto na internet?
N.V.: Nem sempre. Só um pouco.
Entrevistador: E é sempre foto sua?
N.V.: É. Minha ou da minha prima.
Entrevistador: E a sua prima mora com você?
N.V.: Não.
Entrevistador: O que você faz no Facebook além de olhar foto dos outros?
N.V.: Nada.
Entrevistador: Só olha foto dos outros?
N.V.: Da minha mãe, da minha irmã…
Entrevistador: Você conversa com a sua família no Facebook?
N.V.: É.
[...]

N.V., A.C. e P.G. dão exemplos do tipo de resposta dado ao questionamento de


com que pessoas esses jovens interagem em determinadas redes. Inicialmente,
podemos desconfiar dessas afirmações, mas com a recorrência em que as men-
cionam no decorrer das entrevistas, resta a dúvida: por que será que esses jovens
concentram suas interações com aqueles com quem eles já interagem fora das
redes? Outro jovem nos traz algumas pistas:

[...]
CC: Ah internet pra mim é pesquisa, pesquisar música, mexer no WhatsApp,
Facebook…

188 | Comunicação, audiovisual e educação


Entrevistador: Você tem WhatsApp?
CC: Aham.
Entrevistador: Com quem que você conversa no WhatsApp?
CC: Só com a minha mãe só, com minha mãe e com meu pai.
Entrevistador: Você não conversa com nenhum amigo, nenhum parente que não
seja seus pais?
CC: Eu conversava, só que agora eu não tô conversando com mais ninguém.
Entrevistador: Por quê?
CC: WhatsApp só dá apurrinhação.
Entrevistador: Como assim? Me explica.
CC: Ah o pessoal fica botando vários negócios, aí tu bota um negócio aí o outro gra-
va…
Entrevistador: Aí dá problema?
CC: É.
[...]

Dessa forma, C.C. aponta para transtornos que podem ocorrer no caso da in-
teração com pessoas que não são do seu círculo cotidiano. Usos indevidos ou ex-
posição não autorizada de informações compartilhadas, por exemplo, podem con-
figurar o que C.C. chama de “apurrinhação”. A autora Paula Sibilia (2012) fala da
“cultura da humilhação” vivida hoje nas interações nas redes sociais. Uma cultura
associada ao bullying em que, com qualquer passo em falso, se pode virar chacota
de um grupo e ser ridicularizado. Esse medo de sofrer com isso talvez seja o motivo
que leva alguns desses jovens a limitarem seu acesso apenas a pessoas próximas.
Ao mesmo tempo que a decisão de C.C. de manter contato apenas com seus
pais se baseie em experiências prévias, não podemos concluir que todos os jo-
vens que dizem interagir apenas com familiares e amigos tenham tido experiên-
cias ruins na interação com pessoas de outros círculos. E esse uso deles nos leva
a questionar: afinal, o que falam e trocam nas redes sociais apenas entre pessoas
do convívio cotidiano? Seria essa resposta dada pela maioria dos jovens da pes-
quisa uma forma de impedir o nosso conhecimento a esse universo mais íntimo
deles? O que significa estar em múltiplas redes e agir dentro delas priorizando
determinadas conexões, determinados nós mais pessoais ou privados?
Esses jovens – mesmo estando conectados à internet – parecem não co-
nhecer e viver os princípios da cibercultura de que fala Lemos. Isso nos mostra

Cibercultura e redes sociais | 189


que essa experiência cibercultural não depende diretamente da conexão, do ter
acesso à internet. Pelo que as entrevistas apontam, essa experiência na cibercul-
tura para ser vivida nesse modo de reconfiguração cultural de que Lemos (2004;
2005) fala e gerar novos processos de produção, experiência, poder e cultura de-
pende da mediação social, conforme destaca Castells (1999). Quem são os adul-
tos e jovens com os quais esse público convive? Que tipo de experiência de co-
municação é usual nas suas práticas sociais? Essa experiência social vivida por
eles nos parece, nesse sentido, mediadora e definidora das práticas nas redes so-
ciais. Portanto, é preciso mais do que “estar conectado” para estar e agir em rede.
Martín-Barbero (2006) ressalta dois discursos correntes sobre a globaliza-
ção e a comunicação em rede: um que aponta perversões; e outro, que aponta
oportunidades. Para o autor, há ainda a permanência das grandes corporações
no gerenciamento das informações aliado a um discurso de controle e vigilância
a serviço de uma necessidade de segurança. Ao mesmo tempo, o autor aponta
para a possibilidade de desmontar alguns dualismos relacionados às linguagens
e meios de informação, comunicação e conhecimento e para a possibilidade de
criação de novas configurações de exercício da cidadania.
Obviamente, o autor faz uma leitura macrossocial dos movimentos que en-
volvem a comunicação em rede. Mas, certamente, os discursos otimistas e pes-
simistas se entrelaçam com as experiências desses jovens. Em determinado mo-
mento das entrevistas, A.C. traz uma preocupação com conteúdos que podem
existir na internet. Em momento posterior, relata que seu pai tem medo que ele
acesse outros espaços diferentes do Facebook. O medo do pai é mediador dos
acessos que essa jovem faz na rede.
Tal fato remete para o que diz Martín-Barbero (2013) ao tratar das mediações
que envolvem o processo comunicativo, ressaltando que não podemos ignorar as
questões culturais e políticas ao analisar essas comunicações. Nas entrevistas, as
famílias não aparecem apenas no momento da interação através das redes, mas
também na interação com as redes. Apesar de muitos estudantes relatarem que
aprenderam sozinhos a usar os dispositivos e a acessar à internet, por tentativa e
erro, é possível perceber em suas falas que os familiares aparecem nos momen-
tos de tal aprendizagem. Desse modo, as mediações abordadas pelo autor podem
interferir tanto nos usos feitos das redes pelos jovens quanto no processo mesmo
da pesquisa. Investigar sobre o uso das redes no espaço da escola considerado
“proibido” por lei pode trazer esses traços de “não ditos” por parte deles. Da mes-

190 | Comunicação, audiovisual e educação


ma forma, como pudemos perceber, muitas famílias são mediadoras desses usos
das redes sociais limitando ou controlando o que fazem ou não na rede e isso
de alguma forma limita o acesso deles a pessoas fora de seu convívio cotidiano.
O que significa no contexto em que se discutem os três princípios da ciber-
cultura – como liberação da emissão de forma coletiva e em rede, conexão ge-
neralizada e reconfiguração dos modos de aprender – descobrirmos jovens que
mantêm em suas práticas com a cibercultura bases mais atreladas a um contex-
to local de convívio só com conhecidos? É no mínimo desafiador perceber que,
num contexto em que se fala das redes trazendo transformações na lógica da
cibercultura, surjam desafios à escola pelas mudanças que essa traz que não dia-
loga com o modo como a escola se organiza. Perceber que esses modos de aces-
sar à rede pelos jovens não caracteriza “a rede” tal como é concebida e discutida
pelos autores é algo importante.
Jesús Martín-Barbero (2006) comenta que há nas práticas culturais sempre
um “destempo”. Esse destempo de que ele fala relaciona-se a essa diferença en-
tre o que a tecnologia pode proporcionar e os usos que os sujeitos fazem em rela-
ção a ela. Assim, mesmo uma tecnologia proporcionando novas práticas, muitas
vezes, os sujeitos ainda não conseguem utilizá-las, repetindo práticas anteriores,
mais usuais e tradicionais em seu convívio social, características de tecnologias
mais antigas e já conhecidas pelos sujeitos. Talvez seja isso o que percebamos
nesses resultados. Isso nos leva a notar que não basta ser jovem, não basta estar
conectado, não basta ter os dispositivos móveis para atuar na cibercultura com
todo o potencial que ela oferece.

NÃO É A CONEXÃO QUE DEFINE O PROTAGONISMO DO


JOVEM

Que reflexões essa descoberta inicial nos traz? O que podemos dizer a respeito
desses usos dos jovens olhando para o contexto social? Estarão esses jovens real-
mente tendo acesso à rede? A partir desses dados, já pode-se perceber que não
é a rede que determina a experiência do jovem, mas seus usos. A experiência
desses jovens é substancialmente diferente da de jovens youtubers, gamers ou
outros que constroem na rede novas experiências que dificilmente teriam fora
dela. Desse modo, os dados apontam que o “estar na rede” não é um diferencial

Cibercultura e redes sociais | 191


para todos os jovens, ou que “estar na rede” precisa ser bem mais do que ter aces-
so à rede. O navegar não é livre para todos. Os papéis de produtores e recepto-
res tão difundidos como sendo parte do protagonismo dos jovens da atualidade
também não transparecem nesses jovens pesquisados.
Os usos que fazem nas redes – excluindo-se essa dimensão de com quem
interagem – não trazem uma dimensão mais ampla de produção de conteúdos.
Usam a rede para acessar notícias, blogs, ver vídeos, postar fotos e enviar men-
sagens. São aparentemente mais consumidores do que produtores de conteúdos
e isso talvez se deva às mediações vividas socialmente. Como ser protagonista
com um acesso limitado ou pela velocidade da conexão ou pela mediação dos
que limitam seu contato ou interações com outros? Como produzir sem ter a
ideia da produção como um horizonte possível? Martín-Barbero (2013) ainda
aponta em seu mapa das mediações o quanto nossas práticas não são descoladas
da socialidade – práticas sociais com as mídias –, das ritualidades – modo como
consumimos, rituais que repetimos socialmente –, e das institucionalidades –
como as instituições da sociedade de alguma forma mediam e regulam os usos
que fazemos das mídias. Portanto, os dados desta pesquisa nos revelam o quanto
as mediações são relevantes quando se fala dos usos que são feitos socialmente.
Não são as tecnologias que definem os usos sociais, mas o contexto cultural em
que os sujeitos estão imersos que pode gerar e proporcionar reduções ou amplia-
ções nos usos sociais feitos dessas mesmas tecnologias.
Nelson Pretto e Alessandra Assis (2008) apontam para a necessidade do
estímulo à produção de informações e conteúdos na escola como contributo à
formação cidadã que a escola pretende, permitindo a superação da postura de
consumo que é estimulada pelos veículos de massa. Os autores ressaltam que
para o estímulo à produção é preciso mais do que o simples acesso às tecnolo-
gias que garantam tal produção, é preciso que haja a apropriação criativa de tais
tecnologias.
O que isso nos diz sobre a escola? O que isso nos faz pensar sobre o papel da
escola e sobre a presença das mídias na escola ser muitas vezes vista como amea-
ça? São muitos os desafios que se apresentam para nossa reflexão e a respos-
ta não é simples e nem fácil. Para que haja a apropriação criativa de que falam
Pretto e Assis (2008), é preciso que a escola encare a cibercultura como parte da
cultura escolar, não como concorrente desta. Sigamos observando o que acon-
tece em nosso entorno com os jovens que estão na escola para pensarmos nos

192 | Comunicação, audiovisual e educação


desafios que temos – pelas falas deles mesmos em cada contexto –, e não pelo
que dizem que os jovens usam e fazem.

REFERÊNCIAS

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SIBÍLIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de


Janeiro: Contraponto, 2012.

194 | Comunicação, audiovisual e educação


11
A arte de criar tapetes de histórias:
ensaiando um convite narrativo entre
o artesanal e o tecnológico
D an iel a Fo s s alu z a

Era uma vez uma atriz e artesã, graduada em Artes Cênicas pela
Unirio, que percebeu nas brincadeiras das crianças, após ouvirem as
histórias contadas por ela e quando se arriscavam na manipulação
dos cenários e personagens de pano criados a partir de livros infan-
to-juvenis, uma possibilidade fértil para desenvolver uma pesquisa
sobre as infâncias e seus modos específicos de recepção e produção.
Vislumbrou, na especificidade da linguagem dos tapetes de histórias
e no interesse das crianças por filmarem as brincadeiras e performan-
ces produzindo vídeos, um possível diálogo entre tradição e contempo-
raneidade. Uma questão emergiu: existe a possibilidade de alinhavar
um fazer artesanal a um fazer tecnológico? O que podemos considerar
sobre esses fazeres nas práticas das crianças?. (FOSSALUZA, 2018)

Essas indagações impulsionaram um processo de pesquisa que se desenvolveu


como uma dissertação de mestrado dentro do contexto do projeto institucional.
(FERNANDES, 2013) O texto aqui trazido narra o percurso vivido e a construção
da pesquisa e as questões que a permearam.

| 195
Figura 1 – Crianças interagindo com o tapete de histórias
Fotografo: Claudio Medeiros disponível no Blog Costurando Histórias (2011).

OS TAPETES DE HISTÓRIAS E A PESQUISA DE MESTRADO

A ideia de transpor narrativas de livros para cenários de pano interativos con-


cretizados como tapetes foi da educadora Clotilde Hammam, em meados da
década de 1980, na França. “Para ajudar as crianças a se familiarizarem com o
livro, procuramos um meio lúdico, estético, afetuoso e tátil, que facilitasse essa
aproximação e fizesse com que elas descobrissem a felicidade da leitura-pra-
zer”.1 (HAMMAM, 1998) Essa iniciativa vem sendo difundida como projeto de fo-
mento à leitura literária em vários países da Europa através do pedagogo, diretor
teatral e artista plástico Tarak Hammam, filho de Clotilde. O artista ministrou

1 Esta observação em relação ao objeto artístico pedagógico raconte-tapis e ao projeto homônimo de


fomento à leitura (Raconte-Tapis) foi traduzida pelo filho da educadora Clotilde Hammam (Eric Tarak
Hammam) em 1998 – do francês para o português – a partir de um folheto promocional elaborado para
ser entregue em instituições de ensino e espaços culturais.

196 | Comunicação, audiovisual e educação


estágios e oficinas sobre essa linguagem entre os anos de 1998 a 2001 através
do Departamento de Extensão do Centro de Letras e Artes (CLA) da Unirio, in-
troduzindo o Raconte-Tapis no Brasil, um projeto do qual participei ativamente
como integrante e bolsista-pesquisadora, uma vivência tão significativa que fiz
da experiência a minha profissão. Desde 2001, coordeno um grupo de artistas-e-
ducadores que desenvolvem a linguagem dos tapetes em instituições de ensino
e espaços culturais – o Costurando Histórias.
A arte de contar histórias com tapetes é uma prática que encontrou sensí-
vel e promissor terreno no Brasil para se desenvolver, uma linguagem poética
e interativa – apoiada na oralidade, na performance, nos materiais têxteis e nos
conteúdos dos livros. Em relação ao envolvimento e interesse pela linguagem,
resultados positivos são atestados por mim em 20 anos de trabalho, assim como
também enormes desafios para manter viva uma arte tradicional que sobrevi-
ve com especificidades num contexto de intenso consumo de informações pro-
duzidas e transmitidas via mídias eletrônicas e outras plataformas afins. Novas
tecnologias não param de emergir, influenciando significativamente nas subje-
tividades, comportamentos e nos processos de formação cognitiva dos sujeitos,
bem como nos modos e formatos de narrar.
Percebo em minha prática como artista e professora uma necessária atuali-
zação da linguagem – a dos tapetes de histórias – com o objetivo de mantê-la viva
e em diálogo fértil com os interlocutores que dela se beneficiam. Mesmo que de
modo sutil, surge na prática a necessidade constante de ressignificar conteúdos,
modos, palavras e gestos diante dos públicos sempre renováveis em cada situa-
ção de transmissão. Apostando nisso, integrei-me ao grupo de pesquisa para de-
senvolver o estudo.
Escolhi como campo de pesquisa o Solar Meninos de Luz – instituição filan-
trópica que atende crianças e jovens em situação de risco social das comunida-
des do Pavão Pavãozinho e Cantagalo, localizadas na zona sul da cidade do Rio de
Janeiro – que me abriu as portas para a realização das atividades. Participaram
da pesquisa 22 crianças com idades entre 9 e 11 anos. Nesse contexto socioeco-
nômico, encontrei uma situação de certa exclusão digital, apenas duas crianças
possuíam aparelhos de celular próprios e computadores disponíveis em suas
casas, porém, a maioria estabelecia algum tipo de acesso frequente à internet
e contato com mídias eletrônicas, sendo, portanto, intensamente influenciados
pelas tecnologias.

A arte de criar tapetes de histórias | 197


Impulsionada pelo desejo de refletir sobre os efeitos que a linguagem dos
tapetes poderia ter na produção de vídeos narrativos elaborados pelas crianças
e o desenho e percurso que a proposta poderia tomar, a partir das apropriações
feitas por elas, tinha como objetivo também analisar a relevância de processos
dessa natureza em percursos de formação. No caminho trilhado com as crian-
ças, despontaram reivindicações: “Eu quero contar. Eu quero filmar. Eu quero
mexer. Eu quero o meu próprio tapete, quero mais aulas”, nos escreveu Beatriz.
As crianças expressaram, portanto, também o desejo de costurar e criar seus pró-
prios tapetes, inventando histórias, não querendo produzir somente a partir dos
cenários já tecidos por nós a partir de alguns livros específicos e disponibilizados
para elas (acervo do Costurando Histórias).
Neste texto, tenho a intenção de refletir sobre o processo narrativo viven-
ciado pelas crianças, percebendo como a função do narrador desponta na expe-
riência a partir de um fazer artesanal, imerso num mundo onde as tecnologias
se apresentam cada vez mais de modos imperativos. Para essa reflexão, procuro
tecer uma conversa com Walter Benjamin no que ele reflete sobre a resistência
de um fazer artesanal e sobre as particularidades dos convites que as crianças
apresentam relacionados a determinados modos de ser, estar, criar e reivindicar
seus próprios percursos de experiências.

AS COSTURAS DAS CRIANÇAS E O DESPONTAR DO EU


NARRATIVO: QUANDO AS CRIANÇAS DECIDEM O QUE E
COMO CONTAR

Essas propostas autorais solicitadas precisaram, então, ser elaboradas pelas


crianças que se aventuraram comigo na arte da costura, na brincadeira de unir
retalhos compondo personagens e ambientes e na criação de enredos e embriões
narrativos, proporcionando aprendizados e trocas. Impressões, ideias, canções,
livros, episódios da vida, personagens e situações de jogos eletrônicos, além de
letras de música e outros retalhos provenientes de diferentes lugares foram tra-
zidos para a roda de histórias e para as mesas de “trabalho e criação” com o in-
tuito de serem transpostos para a linguagem dos tapetes. Mesmo esbarrando em
dificuldades inerentes ao próprio processo de elaborar um tapete de histórias e
em dificuldades por nós percebidas e relacionadas com as habilidades de leitura

198 | Comunicação, audiovisual e educação


e produção de texto, o grupo manteve-se atento, envolvido, exercitando a pa-
ciência e desenvolvendo-se com interesse e criatividade, de forma colaborativa.
Dois celulares com câmeras digitais foram disponibilizados para o grupo
com o intuito de registrar o processo e, também, para que eu pudesse observar os
usos específicos dessa tecnologia no processo vivenciado. Entre agulhas, linhas,
livros, lápis, panos e tesouras, com as presenças das câmeras, muitas descobertas
aconteceram. Como resultado inesperado da experiência, as crianças seguraram
o fio do tempo nas mãos e “perderam-se” prazerosamente no processo de criar
e costurar, brincando de inventar enredos que pareciam não querer ser “presos”
em roteiros escritos ou vídeos gravados, pois teimosamente se mantinham aber-
tos. Nesse processo, que durou um ano letivo, as crianças foram convidadas a se
perceberem também como investigadoras, autoras e artistas, numa metodologia
que construímos juntas e que arrisquei chamar de “pesquisa-ateliê” – um fazer
que se situa também como prática educomunicativa.

A PROPOSTA METODOLÓGICA DA PESQUISA-ATELIÊ E


OS TECIDOS DE BASE

Emergiu, então, a proposta metodológica de pesquisa-ateliê, um processo que


transcorreu com a sensação de “suspensão do tempo”. Mesmo com certa pers-
pectiva dada, a escrita da dissertação e a produção dos vídeos feitos pelas crian-
ças com os tapetes de histórias, nos aventuramos numa demanda criativa que
caminhou lado a lado com movimentos reflexivos e filosóficos e que nos fize-
ram quase esquecer das finalidades, pois os propósitos confluíam no presente
de cada encontro, dando sempre espaço ao inesperado. Assim, pouco a pouco,
temas foram brotando, monstros foram ganhando contornos, sonhos foram se
colorindo, ideias e sensações sendo trocadas e um enredo de pesquisa sendo
construído. Se, no início do processo, as crianças emudeciam quando pedíamos
para que contassem histórias, no decorrer da experiência, olhando para o que
faziam e influenciadas pelos próprios materiais e processos, mergulhadas em
suas invenções e situações, elas mesmas, e também eu enquanto pesquisadora,
percebemos que tínhamos algo que poderíamos comunicar através de relatos,
fragmentos poéticos, imagens e impressões que foram produzidos durante todo
o tempo em conjunto nessa pesquisa-ateliê.

A arte de criar tapetes de histórias | 199


Como um artesão que esculpe cuidadosamente sua obra lidando com a
concretude dos materiais, considerando o imaginário, fomos conduzidos por
um fazer que aconteceu através de “mãos pensantes”, experimentando ideias
e tecidos. Em movimentos de fluências e embates, fomos dialogando e fazen-
do escolhas, problematizando limites. Para além de reiterar dicotomias, muitas
descobertas surgiram entre possíveis contornos: comunicação-educação, adul-
to-criança, cotidiano-escola, trabalho-brincadeira, estudo-prazer, concreto-
-abstrato, ciência-arte, artesanal-tecnológico. As crianças arriscaram a união de
retalhos e fragmentos, exercitando a arte dos tapetes e o convite do pacthwork.
Eu, na função de pesquisadora acadêmica, fui arriscando composições textuais
para contar, pensar e analisar tudo o que se passava.
A ideia da pesquisa-ateliê foi desenvolvida não somente para expressar o
que foi vivenciado com as crianças, mas como conceito que norteou também o
processo da própria escrita dissertativa, com o texto sendo elaborado como se
estivesse sendo construído um “tapete da pesquisa” – uma topografia com fins
de apresentar e projetar determinadas perspectivas percebidas no contato com
as crianças. A narrativa da pesquisa se configurou como uma base para apoiar as
possíveis representações dos sujeitos-personagens e dos ambientes onde vivem.
Nesse processo, eu fui me percebendo como pesquisadora, mas também como
autora e personagem. Nesse processo, as crianças do Solar projetaram vozes e
evidenciaram matizes específicas de suas infâncias.
Em relação à pesquisa acadêmica, arriscando um paralelo entre a constru-
ção do estudo e o método de confeccionar um tapete, ao longo do percurso, uma
base foi sendo preparada com tecidos resistentes – um panorama de leituras teó-
ricas – para acomodar as percepções do campo – justaposições de diversos panos
e retalhos que unidos e experimentados em perspectivas ajudaram a compor o
cenário da pesquisa: sua narrativa.
O resultado obtido foi uma “base de tapete” ou narrativa dissertativa que
buscou não conter somente uma perspectiva com determinada projeção, mas
diversos embriões narrativos que podem funcionar como “janelas” – passagens
que permitem links e acessos, convidando para reflexões e significações outras,
para além das “costuras” tecidas no texto. Como num livro em que a narrativa
salta de suas páginas, arrisquei elaborar um texto que não aprisionasse os sen-
tidos e as histórias das crianças, com a ilusão de reter significados, impedindo
outras análises. Pelo contrário, meu intuito foi criar uma base “tapete-cenário

200 | Comunicação, audiovisual e educação


da pesquisa” que acomodasse impressões e sugestões que pudessem ser, de al-
gum modo, sempre atualizadas, como faço quando conto minhas histórias. As
histórias dos livros que busco como inspiração não mudam em sua “estrutura”
registrada num texto escrito ou roteiro, por exemplo, mas permitem sempre no-
vos olhares sobre elas. Seria possível?
Quanto aos “tecidos de base” da pesquisa, para refletir sobre os proces-
sos de produção e recepção cultural e suas relações com o artesanal e o tecno-
lógico, o estudo abordou autores que discutem experiência e narrativa como
Walter Benjamin (2012a, 2012b, 2014), Nestor Canclini (1997), Martim-Barbero
(1997, 2008, 2011), David Buckingham (2007), Adriana Hoffmann (2019), Gilka
Girardello (2011, 2015, 2018) Rita Ribes (2011, 2012), Clarice Cohn (2005) entre
outros. A proposta metodológica da pesquisa com infância ocorreu nas perspec-
tivas discutidas por Rita Ribes, Solange Jobim e Clarice Cohn a qual se fez com
os sujeitos e não sobre eles.

CONFABULAÇÕES SOBRE UM TRAJETO E INSPIRAÇÃO PARA


NOVAS ROTAS

Nesse desenrolar do fio do tempo – ou do fio mágico que surgiu –, as crianças


desenvolveram com certa liberdade propostas narrativas a partir de seus ima-
ginários que foram fertilizados por histórias que levávamos para o grupo, pelos
livros encontrados na biblioteca, mas, principalmente, pelos conteúdos de seus
consumos culturais. A linguagem dos tapetes foi, dessa forma, reconfigurada
em novas possibilidades de usos através das crianças do Solar que passaram a
costurar não somente enredos literários – como acontece na proposta inicial
da linguagem –, mas também impressões provenientes de contextos diversos.
Crianças artesãs tecendo materiais, ao mesmo tempo que elaboravam discursos
próprios, exercitando leituras de mundo. As crianças compuseram cenários su-
gerindo narrativas abertas, convidando interlocutores para jogarem, navegando
e dando asas à imaginação, seguindo pistas, estabelecendo conexões e enfren-
tando desafios. Internautas? Tecelãs? É possível?
Na pesquisa-ateliê, sugestões infantis foram sempre acolhidas. Procurou-
se não censurar nenhum conteúdo. Assim, foram costurados diversos temas e
imagens: a morte, o medo, a coragem, a violência, armas, venenos, antídotos,

A arte de criar tapetes de histórias | 201


doces, remédios, monstros, heróis, o amor, a guerra, festas e metamorfoses entre
bichos e humanos, com a presença de livros e conteúdos provenientes de várias
plataformas e mídias inspirando as criações. Como projetos norteadores – e com
o intuito de organizar as produções –, foram concebidos seis universos narrati-
vos projetados em costuras, servindo como bases para dramatizações, perfor-
mances de contação e brincadeiras livres. As crianças permaneceram até o final
desse ciclo de pesquisa, improvisando enredos e formatos, configurando o que
chamamos de “histórias abertas, fugidias, cruzadas, brincadas e linkadas”.
O tempo cronológico não foi suficiente para que pudessem experimentar
e descobrir a linguagem audiovisual com maior propriedade, mas isso não se
configurou como um problema, nem para as crianças e nem para os achados
da pesquisa. Certa dimensão do tempo (kairós) fez-se presente, abrindo portais
para que os sentidos da experiência fossem para além das elaborações de produ-
tos finais.
Mesmo com o interesse evidente pelo uso das câmeras digitais, as crianças
demonstravam não saber o que expressar diante das lentes. Constatando no
percurso silenciamentos que aconteciam quando as crianças eram convidadas
a narrar, percebi que experimentações artísticas, a partir de temas de interesse,
despontam como ações potencializadoras de movimentos de encorajamento e
podem ajudar na estruturação da linguagem e do imaginário, estimulando a co-
municação e a troca. Perspectivas que somente as crianças através da expressão
de seus desejos e conflitos organizados aos seus modos podem nos contar.
A arte da costura vinculada ao imaginário pareceu desacelerar o tempo,
inserindo-nos numa lógica de produção na qual a necessidade de resultados e
as expectativas sobre eles perderam força. Nesse movimento, vozes foram bro-
tando sem maiores pressões. Como nos aponta Benjamin (2014), as crianças são
especialmente dadas a investigação de materiais e gostam de aprender a partir
dessa liberdade. Num ambiente de produção e inspiração mútua, mais em cola-
boração do que em competição, o grupo desenvolveu projetos paralelos, indivi-
duais e coletivos, em várias direções.
Pensar mais detalhadamente a partir da multiplicidade de comportamentos
percebidos, com particularidades significativas, mesmo num grupo que convi-
ve diariamente num mesmo contexto social, nos remete sobre a relevância das
mediações culturais que operam na vida de cada um e também sobre a necessi-
dade de permitir que essas individualidades construam percursos próprios de

202 | Comunicação, audiovisual e educação


aprendizagem em bases coletivas, como, por exemplo, no espaço escolar. Alguns
autores integram os chamados estudos culturais, percebemos claramente a im-
portância das mediações nos processos de produção e recepção cultural e, prin-
cipalmente, no que confere ao fomento à leitura literária e ao processo de escrita
e autoria.
Através das criações e costuras, as crianças produziram imagens táteis e
tridimensionais que configuram possibilidades de alinhavos do abstrato com
o concreto. Algumas delas criaram a partir de conteúdos de jogos eletrônicos,
sendo perceptivelmente influenciadas pelos formatos narrativos dessas plata-
formas e meios. Projetaram narrativas que nunca encontravam um fim ou se
decodificavam através de fragmentos e episódios, características das narrativas
contemporâneas. Em algum momento, uma das crianças que escolheu o jogo
eletrônico “Five Nights at Freddy’s” como inspiração, me pareceu estar aprisio-
nada dentro de um game (com dificuldades para alinhavar suas contribuições
com as de outras crianças e também de encontrar escoamentos outros para suas
construções narrativas que fugissem de certas lógicas operantes e percetíveis
no ambiente de confinamento e terror que configura o contexto desse game, em
especial). Porém, além de escrever páginas e mais páginas desenvolvendo hipó-
teses para situações-problema fertilizadas e percebidas a partir do ambiente e
enredo do jogo, Lucas foi o único da turma que projetou e finalizou uma base-
-cenário (mapa) que acolhesse e acomodasse seus fragmentos narrativos. Jamais
desistia de seu projeto e de encontrar escuta para o que o mobilizava, confiava
em sua proposta. Sua fala era firme e bem colocada, mas perdia-se no tempo e
em certa tagarelice nem sempre bem ancorada. Suas compreensões de mundo
me pareciam fugir de leituras mais lineares e apontavam para várias direções.
Mas, Lucas não conseguia trazer para os tecidos suas projeções e confabula-
ções. Não conseguia lidar com os materiais concretos – panos, moldes, dimen-
sões, o tempo cronológico parecia sempre pouco para a intensidade de suas fan-
tasias e elocubrações. Foi com a ajuda de Julia e Lorena, das “costureirinhas”,
– como apelidei as meninas que produziam com certa organização prática, pa-
ciência e empenho –, e com a ajuda de dois amigos, Marcos – que se destacava
com suas análises contundentes sobre o mundo e as realidades concretas e sim-
bólicas que cercam e acomodam as vidas dessas crianças do Solar – e Breno – o
fiel amigo sempre disposto a embarcar nas viagens e aventuras de Lucas –, que o
cenário, materialmente falando, foi concebido. Um verdadeiro trabalho de equi-

A arte de criar tapetes de histórias | 203


pe. Se, por um lado, o fazer artesanal foi evidenciado como potência, por outro,
pareceu-me fundamental considerar nos diálogos com as crianças conteúdos e
formatos que por elas são vivenciados cotidianamente em suas interações com
as mídias eletrônicas e trazem novas questões para a constituição do pensamen-
to humano. Dessa forma, as crianças são reconhecidas em suas demandas e for-
talecidas em seus processos de autoria e autonomia.
O eu narrativo das crianças brotou no processo de pesquisa na medida em
que forças se encontraram, sendo alinhavadas: a do fazer artesanal com as lógi-
cas narrativas contemporâneas, mas também desse fazer que acontece através
de experimentações e interações com as narrativas transmitidas e guardadas de
algum modo bem peculiar nos livros. Se para as crianças as histórias se multi-
plicam em hipóteses, em repetições intermináveis, em situações problemas que
não caminham necessariamente para uma culminância, mas para várias, faço
aqui o exercício de, como Lucas, levantar algumas hipóteses que continuarão
sendo investigadas numa proposta de doutoramento e que vêm estimulando ou-
tras experiências no coletivo que coordeno, o Costurando Histórias.
Entre as experiências que venho desenvolvendo a partir das descobertas da
pesquisa acadêmica realizada em cima da prática e linguagem dos tapetes de
histórias com as crianças, venho conduzindo e orientando um espaço perma-
nente de ateliê coletivo em que participam como alunos educadores, artesãos e
profissionais do meio literário desde 2017, alguns ainda atuantes no mercado de
trabalho e outros aposentados. Nos encontros quinzenais, as participantes – por-
que foram mulheres que se disponibilizaram e se interessaram pela experiência
– têm aprendido a técnica de criar e costurar tapetes, ampliando e aprofundan-
do conhecimentos técnicos. Configuram-se momentos de pura poesia e criação,
nos quais a descoberta de si mesmo, como alguém capaz de produzir maravilhas
a serem compartilhadas com crianças, jovens e outros sujeitos, encontra um es-
coamento que fomenta de modo efetivo e prazeroso à leitura literária, além de
valorizar o fazer com as mãos, a troca com o outro, a paciência necessária ao
fazer artesanal, a movimentação e ação das mãos em conexão com o intelecto,
a experimentação de materiais, a atenção necessária a reutilização ou descarte
das “sobras”, a busca e o reconhecimento constante por tecidos, a construção e
percepção de narrativas, a beleza da reciclagem e das autorias.
Essa experiência significativa e as atividades que desenvolvo com crianças
em várias instituições públicas e privadas, além das oficinas e estágios de forma-

204 | Comunicação, audiovisual e educação


ção na arte de contar histórias oferecidos a docentes, vêm embasando e fertili-
zando reflexões sobre a relevância do fazer artesanal imerso num mundo cada
vez mais tecnológico e, como isso, pode influenciar e afetar nos processos de
constituição dos sujeitos.
Percebi, durante a pesquisa de mestrado realizada com as crianças do Solar,
uma diversidade de composições e comportamentos que caracteriza individua-
lidades, além das múltiplas mediações e híbridas linguagens a que temos aces-
so no mundo contemporâneo, em que diversas espacialidades e temporalidades
convivem, no qual o artesanal se encontra não em contraposição ao tecnológico,
mas em emaranhado, em influência mútua. Cada pessoa sendo um caleidoscópio
cultural imerso em tecidos culturais que dão base a ele. Identifiquei, também,
silenciamentos – individuais e coletivos – que me pareceram importantes e a ne-
cessidade de nutrir e orientar processos e situações que colaborem com a organi-
zação dos discursos através de experimentações e momentos de trocas culturais,
como as situações de roda de contação de histórias, o intercâmbio de relatos e
os ateliês para a criação de materiais que evocam e convidam para as narrativas.
Seguindo a proposta metodológica do Costurando Histórias, aquele que cria
seus próprios materiais traduz e expõe leituras e escolhas, encontra formas, co-
res e texturas para expressar seu imaginário e leituras de mundo, em diálogo
com os autores dos livros e outras inspirações. As mãos do artesão concretizam
obras, mas é nas mãos dos outros através das manipulações desses materiais que
suas impressões e apostas são ressignificadas. Ou seja, o espaço para a convivên-
cia e troca é fundamental e, também, estruturante. O eu artesão é tão necessário
quanto o eu que contempla e manipula. Qual a importância desse movimento
para a constituição de si mesmo? Que particularidades essa ação implica? Quais
aprendizados pode viabilizar? Esse fazer com as mãos, alinhado ou alinhavado
com o coração e mente, não podem ser substituídos por máquinas que produ-
zem automaticamente a partir de logaritmos sem a percepção das identidades
dos sujeitos implicados.
Pude perceber, nos materiais produzidos pelas crianças e nos comportamen-
tos mapeados, rastros de anseios e sinais de dificuldades, movimentos inerentes
aos processos de constituição de si mesmo, conferindo tentativas de costuras
entre as subjetividades/interioridades e o mundo externo. Identidades em cons-
tante formação, mas que vão se configurando e sendo formadas a partir de diver-
sos fragmentos de experiências viabilizados por práticas culturais. Identificar

A arte de criar tapetes de histórias | 205


essas mediações e analisar apropriações podem colaborar com movimentos de
reflexão sobre processos de formação que objetivem, além do exercício das indi-
vidualidades, atitudes e práticas cidadãs.
Constatei nos momentos em que as crianças manipulavam os materiais
por elas produzidos grande riqueza expressa em silêncios e explosões narra-
tivas. Algo misterioso e simbólico acontecia nesses instantes onde o imaginá-
rio era tateado encontrando gestos e sons, movimentos e pausas, interações.
Os elementos cuidadosamente costurados fertilizavam esses movimentos que
expressavam também traços de relações e comportamentos sociais. Arrisco di-
zer, a visibilidade e a materialidade dos objetos elaborados traziam de algum
modo para os discursos e impressões compartilhadas questões que podemos
considerar invisibilizadas socialmente, sendo, muitas vezes, menosprezadas
pelas instituições ou pelo universo considerado “adulto” e que se propõe a or-
ganizar e decidir sobre os conteúdos consumidos e apresentados às crianças – o
que facilmente pode escapar dos controles se nos remetermos aos universos vir-
tuais que as crianças têm acesso no mundo atual, por exemplo. Mapear e anali-
sar essas pistas pode nos falar também sobre possíveis conflitos que as crianças
encontram e como buscam superá-los, individual e coletivamente. Assim, arte
e vida encontram-se entremeadas nos processos de comunicação e educação
como proposta de representar e discutir as sociedades. Em relação aos proces-
sos de formação dos sujeitos, “tocar” essas imagens costuradas por si mesmo
pode produzir escoamentos, desbloquear conteúdos paralisantes e alimentar e
desenvolver os processos discursivos. Essas questões também são percebidas na
prática e experiência com os adultos.
A multiplicidade de estímulos observados nas propostas narrativas das
crianças da pesquisa de mestrado realizada nos fala do contexto contemporâ-
neo em que vivem. Nós, adultos e educadores, também estamos e fazemos parte
desse mundo. Acolher esses estímulos e trabalhar também a partir deles pode
nos dizer sobre possíveis alinhavos entre o artesanal e o tecnológico e sobre o
necessário diálogo entre gerações, valorizando a diversidade e a convivência dos
saberes e fazeres e as experiências, tanto daqueles que possuem vastas memó-
rias de vida porque acomodadas no tempo e em tramas que podem funcionar
como bases que nutrem processos outros além dos próprios, quanto daqueles
que reivindicam trajetórias próprias a serem escritas e significadas a partir de

206 | Comunicação, audiovisual e educação


necessidades autorais e do tempo presente, o instante capaz de significar os en-
contros e as práticas cotidianas. Todos com histórias para contar e compartilhar.
Acreditando nessa hipótese dos alinhavos entre o artesanal e o tecnológi-
co, continuo dialogando com autores que pensam as constituições dos sujeitos
a partir das práticas culturais. Hoje, diversas mídias fertilizam nossos imaginá-
rios, porém, acredito que, para alinhavá-los e costurá-los, a formação e o desen-
volvimento do eu artesão tornam-se fundamentais para que os sujeitos não se
percam de si mesmos, em meio a tantos materiais disponíveis, estímulos e pos-
sibilidades de conexão.
Como nos aponta Tierno, referenciando Benjamin, existe toda uma discus-
são a respeito da morte da narrativa tradicional e do fazer artesanal que rondou
a pesquisa, alimentando reflexões importantes.

Foi sem dúvida a sensação de aceleração do tempo, causada pelo


aperfeiçoamento das técnicas produtivas inventadas pelo capitalis-
mo – o que suprimiu o fazer com as próprias mãos e com ele o pro-
cesso de dizer e escutar saberes da experiência – que desencadeou o
emudecimento das populações urbanas... Não havendo o fazer com
as próprias mãos, não há o que contar. Não havendo o que contar,
desaparece o narrador. (TIERNO; ERDTMANN, 2017, p. 23)

Se no início da pesquisa de mestrado eu tinha dúvidas sobre a relevância do


fazer artesanal em um mundo cada vez mais frenético e acelerado – nesse sen-
tido, em determinado entendimento, excessivamente tecnológico –, o resultado
que cheguei com as crianças do Solar e que aponta em direção à relevância do
fazer artesanal torna-se agora o ponto de partida que impulsiona novas rotas e
experiências com professores e adultos, num caminho de valorização de suas
experiências e trajetos de vida, suas visadas particulares e dedicações à educa-
ção. A prática e a linguagem dos tapetes de histórias continuam a fertilizar os
campos.

A arte de criar tapetes de histórias | 207


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A arte de criar tapetes de histórias | 209


12
Agamben e a profanação da educação:
as relações do cinema com a sala de aula
e a formação de professores
P ed ro Frei t as

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, trago um recorte dos principais achados da minha pesquisa de


mestrado (FREITAS, 2018) que teve como objetivo investigar a possibilidade ou
não de profanar o processo educacional em uma sala de aula de formação de
professores através dos saberes cinematográficos. Essa pesquisa foi realizada no
contexto de um projeto institucional (FERNANDES, 2013) e o trabalho de campo
foi realizado com uma turma de formação de professores num curso intensivo
– com duração de três semanas, de segunda a sexta – oferecido no período de
férias em uma universidade pública. Tendo Giorgio Agamben como principal
autor para a pesquisa, no curso, precisei desenvolver uma metodologia que pro-
porcionasse o diálogo entre os escritos dele com a educação e a formação de pro-
fessores. O objetivo era discutir e refletir sobre os dispositivos de poder e se eram
ou não profanados pelos educandos no curso.
A escolha de Agamben para a pesquisa deve-se pela leitura que ele faz da
atualidade, buscando criar ideias para a modificação dela, principalmente com
a profanação dos dispositivos de poder. Elegeu-se como foco de diálogo no cam-
po a linguagem do cinema, o que tornou possível o trabalho com as indagações
provenientes de leituras sobre a cultura visual.

| 211
CULTURA VISUAL, ARTE E CINEMA

A partir da leitura de Campos (2012, p. 17), surgiu a definição de cultura visual,


que seria diferente de cultura visualista. Esta última seria relativa a um modelo
cultural fortemente marcado pela imagem e pela dimensão visual. Já a cultura
visual seria um subuniverso dentro de um universo cultural:

[...] um sistema em que os modos de olhar e representar visualmen-


te o que nos rodeia são, histórica e culturalmente, modelados. Deste
modo, não abrange unicamente os processos de produção de arte-
factos visuais e de comunicação visual, mas, igualmente, a forma
particular como as relações estabelecidas no âmbito do visível se
processam. Quem olha o quê e de que modo, são indagações centrais
para entender a cultura visual de um determinado período histórico
ou recorte social.

Logo, a cultura visual foi entendida como um sistema composto por diversos
subuniversos, com diferentes agentes, objetos, processos de produção, difusão
e recepção de imagens e bens visuais. Dentro desse universo, o cinema tem um
local privilegiado no século passado e no começo do século atual, constituin-
do uma ferramenta marcante na construção de diferentes culturas do ociden-
te. Nele, residem os resquícios de diferentes artes e, por isso, a história da arte
está no próprio cinema. (AGAMBEN, 2015b; BORDWELL, 2013; CANCLINI; 2010)
A questão que decorreu desse ponto foi: que história seria essa? A resposta en-
contrada, através do estudo genealógico de Agamben (2013a) sobre a arte no oci-
dente, nos apontou caminhos para entender o cinema, a arte e a cultura visual a
partir de uma leitura que questiona o universo estético.

O HOMEM SEM CONTEÚDO E O CINEMA COMO MEIO

Agamben (2013b) aponta que o saber estético tirou da arte seu conteúdo históri-
co, que era construir a verdade, para colocar o juízo estético como a única forma
de julgamento artístico. Esse saber gerou um homem sem conteúdo, o artista que
agora só tem em seu gesto de criação, sem nada de concreto para trabalhar, o jul-
gamento do que produzir. Ao mesmo tempo, o estatuto da arte foi cindido, de um

212 | Comunicação, audiovisual e educação


lado, o artista que incorpora o gênio da criação e, do outro, o espectador que só
possui seu juízo de gosto para julgar a obra. O artista vaga, agora, em uma total li-
berdade, sua subjetividade é a essência absoluta, separado de todo o conteúdo, é
a inessencialidade. A arte foi transformada, assim, em um nada que se nadifica,
sobrevivendo eternamente a si mesma, ilimitada e sem conteúdo. Ela morreu,
mas morreu porque “a morte é, precisamente, não poder morrer, não poder ter
mais como sua medida a origem da obra”. (AGAMBEN, 2013b, p. 99) Assim, a arte
tornou-se pura negação, ela, em sua essência, tornou-se niilista, tem o destino
dos seres humanos como o nada. Ela é incapaz de atingir sua dimensão concreta
e, por isso, sua crise é a crise da poises, que é o fazer mesmo dos seres humanos.
A poesia foi separada da práxis quando o trabalho intelectual foi separado
do manual. Indo a Platão e a Aristóteles, Agamben (2013b, p. 99) define, por sua
vez, a poesia como “aquilo que faz passar algo do não ser para o ser”. Sendo a
técnica que permite a entrada na presença da obra, dando-lhe uma forma, pois
“é precisamente a forma e a partir de uma forma que o que é produzido entra
na presença”. (AGAMBEN, 2013b, p. 105) Na contemporaneidade, a rigor, des-
de a segunda metade do século XVIII, o modo da presença das coisas poder ser
explicado como sendo dividido em dois, um sobre o estatuto da estética, a arte,
e o outro sobre o da técnica, produtos em geral. A arte passou a ser identificada
como fruto da originalidade ou autenticidade. Para os gregos, a verdadeira ativi-
dade produtiva estava na obra e não no artista, eles, sequer, separavam o artesão
do artista. Com a estética, essa relação se inverteu, a produtividade passou a ser
vista no artista e não na obra, que se tornou um resíduo da genialidade daquele.
(AGAMBEN, 2013a) No campo do vazio, o juízo estético e o prazer desinteressado
do espectador conduziram a arte ao Terror. (OLIVEIRA, 2013) Há alguma saída
dessa prisão? Agamben (2013b) diz que, quando a obra é dada ao gozo estético,
ela deixa de trazer a presença, de constituir uma realidade. Quando ela está na
dimensão do estatuto poético do ser humano, ela para o instante, despedaçan-
do o tempo linear, fazendo o ser humano se reencontrar no espaço presente,
“[...] alcançando uma dimensão mais original do tempo, o homem é um ser his-
tórico, para o qual está em jogo, a cada instante, o próprio passado e o próprio
futuro”. (AGAMBEN, 2013b, p. 164) Assim, a arte é o dom mais original dos seres
humanos e observá-la é: “[...] ser lançado para fora, em um tempo mais original,
êxtase na abertura epocal do ritmo, que doa e mantém. [...] Na experiência da

Agamben e a profanação da educação | 213


obra de arte, o ser humano está de pé na verdade, isto é, na origem que se lhe
revelou no ato poético”. (AGAMBEN, 2013b, p. 165)
Agamben (2013b) evoca a ideia de que estamos no Juízo Universal, o anjo
da história de Benjamin já há muito está no céu, na verdade, ele sempre esteve
lá. Consequentemente, abole-se a ideia de história linear para se afirmar que es-
tamos perpetuamente no evento fundamental da história humana, dando aos
seres humanos responsabilidade pelos seus atos. Devendo a arte tornar-se trans-
missão, independente do conteúdo:

Quando uma cultura perde os próprios meios de transmissão, o ho-


mem se encontra privado de pontos de referência e acuado entre um
passado que se acumula incessantemente às suas costas e o oprime
com a multiplicidade de seus conteúdos tornados indecifráveis e um
futuro que ele não possui ainda e não lhe fornece nenhuma luz na
sua luta com o passado. A ruptura da tradição, que é para nós hoje um
fato acabado, abre, de fato, uma época na qual, entre velho e novo,
não há mais nenhum liame possível, a não ser a infinita acumula-
ção do velho em um tipo de arquivo monstruoso ou o estranhamen-
to operado pelo meio mesmo que deveria servir a sua transmissão.
(AGAMBEN, 2013b, p. 175)

O passado cessou de ser critério para a ação e para a salvação. Assim, não há
mais a possibilidade de ele ser atualizado, como acontecia nas sociedades tra-
dicionais, a cada ato de transmissão. Segundo Martins (2015, p. 75), “[...] o que
está em jogo, na modernidade, não é mais a transmissibilidade de algo, mas a
exacerbação de uma absoluta intransmissibilidade”, o que compõe assim uma
cultura visualista. (CAMPOS, 2012) Isto é, agora, o conteúdo a ser transmitido é
sobrevalorizado, apagando o ato de transmitir em si. É preciso, portanto, apro-
priar-se da condição histórica da humanidade, saindo da ilusão do tempo linear
para se resolver o conflito entre passado e presente. (AGAMBEN, 2013b)
Trazer a arte de volta à presença, retirá-la do reino estético, é uma missão
messiânica, que o próprio Agamben (2013b) entende não ser possível somente
através da arte, mas que essa deve fazer seu papel largando as garantias do ver-
dadeiro por um amor à transmissibilidade. O cinema talvez seja a linguagem ar-
tística com maior potencial de redenção. Como aponta Agamben (2007, p. 24), ao

214 | Comunicação, audiovisual e educação


falar das fotografias (a matéria-prima da imagem cinematográfica são fotogra-
fias postas em movimento): “o sujeito fotografado exige algo de nós”, ele exige
não ser esquecido. Para ele, a fotografia “representa o mundo assim como apare-
ce no último dia, no Dia da Cólera”. (AGAMBEN, 2007, p. 23) Nesse dia, não será o
corpo que irá ressuscitar, “mas sua figura, seu eidos. A fotografia, nesse sentido,
é uma profecia do corpo glorioso”. (AGAMBEN, 2007, p. 25) São as fotos os teste-
munhos de todos os nomes perdidos, são elas como o livro da vida que um novo
anjo apocalíptico, o anjo da fotografia, “tem entre as mãos no final dos dias, ou
seja, todos os dias”. (AGAMBEN, 2007, p. 26) Força messiânica, de ética e política,
mais do que da estética, que o cinema carrega: “Trata-se, antes, de uma exigên-
cia de redenção. A imagem fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar
de um descarte, de um fragmento sublime entre o sensível e o inteligível, entre
a cópia e a realidade, entre a lembrança e a esperança”. (AGAMBEN, 2007, p. 25)
É através da montagem cinematográfica que, segundo Serge Daney ([199-]
apud AGAMBEN, 2014, p. 25), a imagem adquire seu poder messiânico. A mon-
tagem que se dá através da repetição e da paragem. A paragem é o poder de in-
terromper algo, o que justamente diferencia o cinema da narrativa, por exemplo.
Repetição “é a memória do que não era. O que é também a definição do cinema: a
memória do que não era”.1 (AGAMBEN, 2014, p. 26, tradução nossa) “A memória
é, por assim dizer, o órgão de modalização da realidade; ela é o que pode trans-
formar a realidade em possibilidade e a possibilidade em realidade. [...] O cine-
ma não faz isso sempre, transformar a realidade em possibilidade e possibilida-
de em realidade?”.2 (AGAMBEN, 2002, p. 316, tradução nossa)
Ou seja, o cinema pode trabalhar sobre a égide da possibilidade, proje-
tando poder e possibilidade em direção ao que seria impossível, ao passado.
(AGAMBEN, 2014) A repetição e a paragem fazem a imagem, então, aparecer
como média (meio), se configurando como um pure means, tornando-se visível
ao invés de desaparecer para o que está mostrando. O que contrapõe, segundo
Agamben (2014, p. 318, grifo do autor, tradução nossa), o conceito dominante de
expressão, proveniente do modelo hegeliano, que entende que “todas as expres-

1 Texto original: “is the memory of that which was not. This is also a definition of the cinema: the memory
of that which was not”.
2 Texto original: “Memory is, so to speak, the organ of reality’s modalization; it is that which can trans-
form the real into the possible and the possible into the real. Doesn’t cinema always do just that, trans-
form the real into the possible and the possible into the real?”.

Agamben e a profanação da educação | 215


sões são realizadas por um medium […] que no final deve desaparecer na realiza-
ção completa da expressão”.3 A montagem clássica, fortemente usada pelo cine-
ma hollywoodiano – utilizado de forma massiva na tevê e nas séries de internet –,
tem como alicerce esse princípio (BORDWELL, 2013), ela pretende esconder ao
máximo a existência do médium.

Há duas maneiras de mostrar essa ‘desimagenilidade’, dois jeitos de


fazer visível o fato de não existir mais nada a ser visto. Uma é a por-
nografia e o anúncio, que agem como se sempre tivesse algo a mais
para ser visto, sempre mais imagens atrás da imagem; o outro jeito
é exibir a imagem como imagem e, assim, permitir a aparência da
‘desimagenilidade’, o que é, como disse Benjamin, o refúgio de todas
as imagens. É aqui, na diferença, que a ética e a política do cinema
surgem.4 (AGAMBEN, 2002, p. 319, tradução nossa)

O tema do cinema é a questão da ética e da política, segundo Agamben


(2015a). Para ele, o cinema está mais para essas questões do que para a estética,
isso não quer dizer que ele não esteja dentro do reino estético, mas que parece
evocar a ética e a política mais do que questões estéticas. É importante notar que
a ética aqui não se assemelha ao “direito a olhar” proposto por Mirzoeff (2016),
pois ao discutir a cultura visual, esse autor, coloca as questões éticas no campo
das disputas estéticas, espaço que, justamente, Agamben quer desativar como
dispositivo de poder na arte. O cinema parece, assim, mais propenso a redimir
a arte do que qualquer outro meio, pois precisamente evoca mais que questões
concernentes à imagem estética, evoca a própria ética dos gestos: “Se o fazer é
um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto rompe a falsa
alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como

3 Texto original: “all expression is realized by a medium—an image, a word, or a color— which in the end
must disappear in the fully realized expression”.
4 Texto original: “There are two ways of showing this ‘imagelessness,’ two ways of making visible the fact
that there is nothing more to be seen. One is pornography and advertising, which act as though there
were always something more to be seen, always more images behind the images; while the other way is
to exhibit the image as image and thus to allow the appearance of ‘imagelessness,’ which, as Benjamin
said, is the refuge of all images. It is here, in this difference, that the ethics and the politics of cinema
come into play.”

216 | Comunicação, audiovisual e educação


tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem se tornarem, por isso, fins”.
(AGAMBEN, 2015a, p. 59)
O gesto é, assim, uma medialidade pura e sem fim que se comunica, uma
comunicação de uma comunicabilidade, ela nada diz: “pois aquilo que mostra
é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade”. (AGAMBEN, 2015a,
p. 60) Podemos ver aqui a extrema proximidade entre o que faz Godard com a
imagem, ou melhor dizendo, com immageless e o gesto, que “faz aparecer o ser-
-em-um-meio do homem e, desse modo, abre-lhe a dimensão ética”. (AGAMBEN,
2015a, p. 59) Se “o cinema reconduz as imagens à pátria do gesto” (AGAMBEN,
2015a, p. 58), em Godard, isso é aparente. Ao mostrar o ser-na-linguagem, o ges-
to é essencialmente sempre gesto de não obter êxito na linguagem e, assim, é
sempre gag, “algo que se coloca na boca para impedir a palavra”. (AGAMBEN,
2015a, p. 60)

PROFANAR E EDUCAR

Para Agamben (1999), o estudo é, em si mesmo, interminável, é um estado de


“potência”, por um lado passiva – paixão pura e virtualmente infinita –, por ou-
tro, potência ativa – tensão que é irredutível em direção ao seu fim. O estudante
seria alguém que foi atingido por um sinal e ficou estupefato, absorto em um
processo de sofrimento e paixão que, devido à herança messiânica do estudo,
incita-o a prosseguir e concluir. Vivendo-se em um ritmo de alternância entre
estupefação e lucidez, descoberta e perda, paixão e ação.
Na pesquisa, então, o que interessava era pensar uma metodologia que abrisse
espaço para que os participantes experimentassem o ato de estudar: o embate
e o choque que é encontrar fragmentos que prometem novas vias, que logo são
abandonadas em favor de novas descobertas. (AGAMBEN, 1999) Entretanto, é
preciso entender que a instituição universitária é também um dispositivo de po-
der, logo a ideia de estudo não é algo simplesmente dado na sala de aula, já que
os dispositivos sagram as “coisas”, isso é, as tiram do uso comum (AGAMBEN,
2009), e estudar é um ato, como apontado, que envolve a ação do indivíduo na
construção de seus percursos.
Para Agamben (2009), dispositivos de poder são mais que instituições –
como as prisões, manicômios e escolas –, são também a caneta, a escritura, o

Agamben e a profanação da educação | 217


cigarro, o telefone celular, o computador, a filosofia etc. “[...] Qualquer coisa que
tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, intercep-
tar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os dis-
cursos dos seres viventes”. (AGAMBEN, 2009, p. 49)
Os dispositivos são os meios pelos quais o poder interfere na individualida-
de, construindo as subjetividades. No entanto, na atual fase do capitalismo, o
que o dispositivo produz é um efeito de dessubjetivação, que está implícito no
próprio processo de subjetivação, constituindo não um novo sujeito, a não ser
como uma forma espectral: “Na não-verdade do sujeito não há mais de modo al-
gum a sua verdade [...] o espectador que passa as suas noites diante da televisão
recebe em troca da sua dessubjetivação apenas a máscara frustrante do zappeur
ou a inclusão no cálculo de um índice de audiência”. (AGAMBEN, 2009, p. 47-48,
grifo do autor)
A educação, assim, é um dispositivo por si só, assim como a universidade
e a escola o são, em todos seus aspectos: os saberes trabalhados, a carteira da
sala, o quadro, os horários etc. (AZEVEDO; ROSA, 2014) A questão é, então, como
desarmar esse dispositivo? Para Agamben (2007, p. 61), isso ocorre através da
profanação, ato que “[...] desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso co-
mum os espaços que ele havia confiscado”. Sendo o oposto de sagrar, “[...] que
designava a saída das coisas da esfera do direito humano”. (AGAMBEN, 2007,
p. 61) Essa devolução não é um voltar para um suposto estado natural das coi-
sas, mas levar a um novo uso delas, de maneira a brincar com a separação, se
fazer ato de emancipação da sua relação com a finalidade original, criando um
meio puro, desativando os velhos usos e, assim, os dispositivos que produzem a
separação. Logo, não é uma relação negativa, de tentativa de enfrentamento de
determinado dispositivo pela sua negação, o que acabaria, em última instância,
confirmando o dispositivo. Pelo contrário, é a abertura para uma nova forma de
utilização das coisas que não destrói o dispositivo, mas ele, ainda existindo, se
torna inoperante, ineficaz, suspenso:

A atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou


seja, uma prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza
de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esque-
ceu alegremente o seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal,
como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possí-

218 | Comunicação, audiovisual e educação


vel ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante.
(AGAMBEN, 2007, p. 67)

A ideia de estudo se combina na pesquisa com a de cinema na relação que se


faz de ambas como meio puro em um ato político de desativação dos dispositi-
vos. Portanto, com a linguagem do cinema e seu meio de produção, foi pensado
uma forma de criar condições para que outro uso dos processos educacionais
fosse possível, ou seja, para que a profanação da educação pudesse acontecer.

CRIANDO UMA METODOLOGIA

Optou-se pela utilização de uma metodologia que permitisse ver as reações e as


criações dos educandos como um processo de constituição de si exposto em seus
diversos discursos permeados pelas suas experiências, a partir da noção de que
só podemos fazer experiências e não mais tê-las. Para tal, era necessário traçar
uma proposta metodológica mais livre, que proporcionasse uma abertura maior
para que o experimentado em campo se expropriasse com honestidade na lin-
guagem, constituindo-a como lugar intencional da verdade. (AGAMBEN, 2005)
Experiência, no entanto, está vinculada à imaginação e tem uma conexão intrín-
seca com o tempo. Isto é, era preciso que a metodologia permitisse uma relação
diferente com o tempo da pesquisa: valorizando o átimo, não como ponto no
tempo linear contínuo na construção de um progresso, mas procurando enten-
der que o passado se presentifica sem ser prisão ou acúmulo de conhecimento,
por isso, o resgate de memórias desenvolvido (seja através das memórias dos
educandos, seja através dos textos, seja através dos filmes, ou de outras formas
de se entrar em contato com a memória de nossa sociedade); e explicitando que
do futuro não se deve esperar um modelo exato (o que, nesse ponto, parece ser
um pressuposto de qualquer pesquisa, não esperar algo que já se sabe, ou que
se deseja). Assim, era necessário que a pesquisa tentasse construir situações em
que pudessem florescer o tempo parado, um tempo vivido de forma suspensa,
um tempo como história, o kairós, em um processo de trabalho “[...] que, a cada
instante, é capaz de parar o tempo, pois conservava a lembrança de que a pátria
originária do homem é o prazer”. (AGAMBEN, 2005, p. 126, grifo nosso) O prazer
foi, então, uma preocupação fundamentalmente metodológica, sem ele não ha-
veria possibilidade de que a pesquisa pudesse contemplar o que ela objetivava.

Agamben e a profanação da educação | 219


Além disso, era de extrema importância que a imaginação dos participantes fos-
se levada em conta como saber, entendida como ligada ao conhecimento e, até
mais, como condição fundamental deste. (AGAMBEN, 2005) Demanda essa que,
por sua vez, trazia a ideia de desejo como pedra fundamental para o processo de
pesquisa: “[...] fantasia e desejo são estreitamente conexo. Aliás, o fantas-
ma, que é a verdadeira origem do desejo [...], e logo, em última análise, de
sua satisfação”. (AGAMBEN, 2005, p. 34-35, grifo do autor)
Através de dinâmicas, buscaram-se espaços para a construção de ideias,
de debates e a validação dos diversos saberes, tanto no âmbito coletivo quanto
individual. Tendo o cinema como inspiração, os trabalhos foram coordenados
pelos próprios participantes divididos em três Grandes Grupos (GG): produção,
continuidade e exibição. A cada semana, os integrantes mudavam de grupo.
O GG de produção tinha como função: organização das atividades propostas,
coordenando os Grupos de Trabalho (GTs) durante as atividades, organização
do espaço físico e materiais utilizados. O GG de continuidade devia: registrar
o diário de classe –texto resumitivo do que foi a aula –, as discussões ocorridas
nas atividades dos GTs e no trabalho final do GT (quando pedido). O GG de exi-
bição era responsável: pela explanação de informações relevantes para todos os
grupos, leitura da ata do encontro anterior, apresentação dos trabalhos escritos
realizados nos GTs e organização da exibição de outros materiais produzidos em
atividades.
Quase todas as tarefas diárias eram realizadas em GTs, nos quais membros
dos três GG se misturavam, mantendo suas responsabilidades. Um participante,
por aula, do GG continuidade, tinha como função registrar os acontecimentos do
dia, que era lido no encontro seguinte por algum integrante do GG de exibição.
Os GTs tinham, sempre, como primeira tarefa expor internamente o que
cada integrante pensava sobre o tema da atividade, de forma a trazer refletidas
suas histórias pessoais. Depois, eram confrontados com diferentes perspectivas
de múltiplos autores sobre o tema. Por fim, deveriam dar uma reposta sobre o
assunto, sem certo ou errado. Essa forma de atividade gerou um vasto material
para análise: escritas, vídeos e desenhos livres.
Outro pilar de produção de conhecimento foi o caderno pessoal. A cada dia,
os participantes deveriam escrever um relato pessoal, englobando os conhe-
cimentos trabalhados no dia e como haviam se sentido durante o desenvolvi-
mento da aula. A última tarefa da turma foi a produção de um curta-metragem

220 | Comunicação, audiovisual e educação


Figura 1 – Exemplo de trabalho escrito
Fonte: fotografia do autor.

Figura 2 – Ata registro de atividades e trabalho com imagens


Fonte: fotografia do autor.

Agamben e a profanação da educação | 221


durante três dias. Somados a essa vivência final, os materiais produzidos em
grupo e o caderno pessoal permitem uma análise da relação que os indivíduos
pesquisados tinham e construíram com os saberes trabalhados, tanto no coleti-
vo quanto no individual.

OS CADERNOS PESSOAIS, INDÍCIOS DE PROFANAÇÃO NA


FORMAÇÃO

A análise dos materiais produzidos no campo atentou para os indícios de dessa-


cralização dos aparatos envolvidos no processo educacional, dos mais abstratos
– como a ideia do que é conhecimento, por exemplo – aos mais concretos – como
o horário e notas, dentre outros. Assim, profanar a educação foi entendido como
o ato dos educandos constituírem seus saberes através de um processo de es-
tudo, apropriando-se dos meios de produção de discursos e produzindo coleti-
vamente o pensamento e, por isso, uma forma-de-vida: uma vida insegregável
de sua forma, inseparável da materialidade dos processos corpóreos e modos
de vida vividos pelos educandos e, assim, trazendo a existência ao pensamento.
(AGAMBEN, 2015a)

Figura 3 – Capa de um caderno pessoal


Fonte: fotografia do autor.

222 | Comunicação, audiovisual e educação


A vivência em sala de aula levou a uma produção em que não foi evocado
“o fazer para ganhar uma boa nota ou o seu oposto, o descaso com a nota final”.

Figura 4 – Miolo de um caderno pessoal


Fonte: fotografia do autor.

Diversos relatos apontam uma preocupação com o trabalho estar bem feito
ou não e demonstram uma enorme importância com o processo de produção.
A relação julgamento-nota, assim, foi modificada. Relação que podemos inferir
estar no processo de julgamento e culpa. Para Agamben (2014), o acusado em
um processo perde sua inocência, ele já é culpado e a pena é o próprio julga-
mento. Dessa forma, sendo já culpado, a absolvição não é inocência, “pois ela é
só o reconhecimento de um non liquet, de uma insuficiência de julgamento”.
(AGAMBEN, 2018, p. 38, grifo do autor)
Na educação, podemos interpretar que essa relação funciona como um dis-
positivo de subjetivação a partir da qualificação em valor do educando em rela-
ção ao seu desempenho em um trabalho, a partir do ponto de vista do professor.

Agamben e a profanação da educação | 223


Numa espécie de tribunal, em que o educando apresenta uma obra a ser julgada
pelo professor que, por sua vez, como juiz, julga se ela contempla ou não os requi-
sitos elencados por ele para possuir a nota máxima. A soma de todos os trabalhos
durante o curso vai corresponder a nota final do educando e não a dos trabalhos.
Logo, o que se julga não é o trabalho, mas o educando. A tarefa realizada funcio-
na muito mais como prova ou falta de prova da culpa do réu de ter se desviado
de sua tarefa de educando: ser capaz de cumprir os requisitos elencados pelo
professor/juiz. Assim, como num tribunal, o educando já é acusado e já está sen-
do penalizado, podendo ser absolvido, por uma falta de “provas”. Entendemos
que esse dispositivo classificatório se tornou inoperante, sendo desarmado: ele
continuava a existir, pois, ao final, o currículo da universidade pedia uma nota
e os educandos sabiam que seriam classificados, mas não tendo mais efeito, não
mais operando sobre as subjetividades envolvidas nos trabalhos.
O outro ponto que parece ter sido afetado foi a dicotomia meio-fim. Havia
por parte dos estudantes o desejo de chegar ao produto final, inclusive porque
só poderia ser um estudo, na perspectiva agambiana, se existisse o incessante
prosseguir para concluir o estudado. (AGAMBEN, 1999) Entretanto, o objetivo
final de cada tarefa pareceu ficar em suspenso, inoperante, durante as ativida-
des. Por isso, a ação não se caracterizou nem como práxis e nem como fazer, mas
como um gesto, como um meio puro, “[...] rompendo a falsa alternativa entre fins
e meios [...]”. (AGAMBEN, 2015a, p. 59) As preocupações de muitos educandos
durante os encontros voltaram-se justamente para a vivência do processo pro-
dutivo, que os fazia perder a ideia do fim obrigatório imposto pelo titã Krónos,
principalmente pela alegria de realizar as tarefas, o que paralisava o tempo, tra-
zendo o cairos (AGAMBEN, 2005): “[...] o tempo passou e mal percebemos, quando
vimos estava na hora de ir embora [...]” (P.A. Caderno Pessoal, 17 de fevereiro de
2018); “[...] nos divertimos muito no ensaio, a produção levou tudo muito a sério e
se permitissem estaríamos gravando noite a fora [...]”. (J.C., Caderno Pessoal, 21
de fevereiro de 2017)
A felicidade se juntou a diferentes sentimentos e demonstrou uma relação
verdadeiramente intrínseca entre sentimentos e conhecimentos, uma relação
imanente: “Me envolvi, me emocionei, me liberei, me estressei, mas saio com uma
vasta bagagem informativa e formativa […]”. (A.S., Caderno Pessoal, 23 de feve-
reiro de 2017)

224 | Comunicação, audiovisual e educação


Para Agamben (2015b, p. 335), a imanência é um agenciamento absoluto, “[...]
que inclui também a ‘não-relação’, ou a relação que deriva de não-relação [...]”.
O que é imanente jorra não de si, e sim deságua incessante e vertiginosamente em
si mesmo, é um movimento que, no entanto, suspende o movimento, é potência.
Logo, a relação sentimento-conhecimento mostrou-se como algo único, um está
no outro como potência. A imanência se deu também no próprio ato de cons-
trução do trabalho, nas relações que se constituíram dentro dos grupos. O sen-
timento expresso de comunhão com os colegas, nas circunstâncias vividas, per-
mitiu uma formação imanente. (D’HOEST; LEWIS, 2015) Isto é, “[...] estudo entre
amigos que estão em mútua aprendizagem em relação a um sinal”.5 (D’HOEST;
LEWIS, 2015p. 539, tradução nossa) A relação entre amigos transformou o estu-
do em um processo de compartilhar o compartilhamento, de dividir a própria
existência com o outro e, ao mesmo tempo, separado dele, numa com-divisão.
(AGAMBEN, 2009) Logo, a aprendizagem não se deu de um para outro, mas de
um que se faz o outro e do outro que se faz o um: “ouvi ideias se complementarem
e pude ver a expressão nos rostos de surpresa e contentamento quando uma ideia se
agregava a outra”. (G.L., Caderno Pessoal, dia 08 de fevereiro de 2017); “engraça-
do ver como as pessoas se abriam com outros que nem conheciam e dividiam suas
experiências [...]”. (M.S., Caderno Pessoal, dia 07 de fevereiro de 2017).
Outro aspecto modificado foi a relação entre verdade e linguagem. A partir
do momento em que os educandos estavam envolvidos passionalmente com as
suas produções, compartilhando suas ideias com os amigos, tornaram-se uma
espécie de professor do outro e, por imanência, de si mesmo. Assim, os saberes
oriundos dos próprios educandos fugiram das dicotomias das ciências moder-
nas e se deram como um conhecimento unido ao prazer, como filosofia, de um
amor do saber e de um saber de amor. (AGAMBEN, 2017)
O que os integrantes relatavam nas apresentações de um grupo para o outro
não foi, em sua maioria, um mero cumprimento de dever, passando a ser um
dizer passional que professava o saber constituído em grupo, como palavra de fé
messiânica e, por isso, como afirmação da vida para além da negatividade e da
dialética. (VLIEGHE; ZAMOJSKI, 2017) Sendo uma experiência da palavra, “[...]
se apresenta como uma pura e comum potência do dizer, capaz de um uso livre e
gratuito do tempo e do mundo”. (AGAMBEN, 2016, p. 154) Assim, resguardou-se

5 Texto original: “[...] studying between friends who are in mutual apprenticeship to a sign”.

Agamben e a profanação da educação | 225


uma potência no ato, capaz de desarticular saberes passados e modificá-los no
presente (AGAMBEN, 2016):

Mudando totalmente meu conceito formado ontem sobre o que é arte, hoje já penso
que nem tudo é arte [...] arte para mim está ligado à questão do que é belo para de-
terminada sociedade. O momento social histórico, político, cultural, e até mesmo fi-
losófico, interfere profundamente na concepção de beleza da mesma. (P.S. Caderno
Pessoal, 10 de fevereiro de 2017)

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228 | Comunicação, audiovisual e educação


Sobre os autores

Adriana Hoffmann

Professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(UNIRIO), é coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE UNIRIO) pesquisando as interrelações entre comuni-
cação, educação e arte. Atua como organizadora desse livro junto com Vanessa
Gnisci e Rosane Tesch sendo co-autora de vários artigos publicados nesse livro
que comemora os 10 anos do grupo de pesquisa que coordena.

Daniela Fossaluza

Formada em Artes Cênicas com mestrado em Educação, ambos pela


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Especialista em lite-
ratura infantojuvenil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atriz,
artesã, contadora de histórias e idealizadora e coordenadora do projeto de arte
e educação e grupo de artistas – Costurando Histórias – há mais de vinte anos,
desenvolvendo atividades em instituições de ensino, arte e cultura. Membro do
grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da
Unirio com pesquisa voltada para a contação de histórias e sua relação com a
tecnologia.

Érica Rivas Gatto

Doutoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio


de Janeiro (Unirio). É membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE) da Unirio desde 2011 e desenvolve sua trajetória

| 229
acadêmica de pesquisa abordando temáticas voltadas para as relações entre in-
fância, narrativas e mídias. Professora do Colégio Pedro II, atuando no ensino
fundamental.

Érika Lourenço de Menezes

Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(Unirio) com graduação em Licenciatura em Educação Artística - Desenho, pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  Foi membro do grupo de pes-
quisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual
desenvolveu uma pesquisa relacionada a jovens e desenhos animados. Professora
de Desenho do Colégio Pedro II, atuando no segundo segmento do ensino funda-
mental e no ensino médio.

Jamila Guimarães

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(Unirio), licenciada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual desenvolveu uma pesquisa sobre a
relação dos professores de Artes Visuais e o audiovisual em suas aulas. Atua há
oito anos como professora na Prefeitura municipal do Rio de Janeiro e, desde
2016, leciona na Prefeitura municipal de Duque de Caxias, além de atuar em pro-
jetos paralelos relacionados à moda e à consultoria de imagem.

Joana Sobral Milliet

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro (PUC-Rio), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes). Atualmente, é integrante do Grupo de Pesquisa Educação
e Mídia (Grupem). Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (Unirio). Formada em Comunicação Social (Jornalismo) e es-
pecialista em Mídia-Educação pela PUC-Rio. Foi membro do grupo de pesquisa
Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual pes-

230 | Comunicação, audiovisual e educação


quisou as pedagogias da animação por professores de escolas públicas que pro-
duzem filmes com seus alunos. Atua há 20 anos em projetos sociais na área de
mídia e educação.

Kelly Maia Cordeiro

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Mídia (Grupem)
da PUC-Rio e do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional
(ObEE) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mestrado em
Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi
membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação
(CACE) da Unirio, bolsista do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais (Reuni), no qual pesquisou a relação dos jo-
vens com o cinema na escola pública. Professora na rede municipal de educação
em Angra dos Reis (RJ).

Lucineia Batista

Pedagoga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em


Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi
membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação
(CACE) da Unirio, no qual pesquisou a relação dos jovens com a aprendizagem
pelo YouTube. Na área há 40 anos, atuou como docente nas redes públicas de en-
sino no Rio de Janeiro e em formação de professores. Prestou consultoria para a
série “Trama do Olhar” da TV Escola e TVE. No Canal Futura, foi supervisora pe-
dagógica de produtos audiovisuais e participou de projetos sociais. Atualmente,
trabalha com atendimento educacional especializado no Colégio Pedro II.

Lucy Anna Diniz

Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(Unirio). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e

Sobre os autores | 231


Educação (CACE) da Unirio como bolsista de iniciação científica de 2013 a 2016 e,
desde o ano de 2017, é orientadora educacional no Colégio Federal Geraldo Reis
- Coluni da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Margareth Olegário

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (Unirio). Pós-graduação em Psicopedagogia com ênfase em educação
inclusiva pela PUC-Rio. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação,
Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio durante o mestrado, com
pesquisa sobre a relação dos jovens cegos com o cinema na escola. Docente no
ensino básico técnico e tecnológico do Instituto Benjamin Constant (IBC) do
Ministério da Educação (MEC) com experiência como consultora em audiodes-
crição e tutora a distância.

Pedro Freitas

Doutorando em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(Unirio), pedagogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em
Direção Cinematográfica pela Escola Brasileira de Audiovisual (Escola de
Cinema Darcy Ribeiro). Na graduação, pesquisou, durante três anos, em regime
de iniciação científica, a relação entre oralidade e audiovisual. Como integrante
do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da
Unirio, pesquisou a relação Cinema, educação e profanação e, atualmente, ini-
cia o doutorado. Atua profissionalmente como midiaeducador no Colégio Santo
Inácio, desenvolvendo projetos de midiaeducação e realizando trabalhos artísti-
cos com fotografia e vídeo.

Renata Costa Ferreira

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro


(Unirio), pós-graduada em Educação Psicomotora pelo Colégio Pedro II. Foi in-

232 | Comunicação, audiovisual e educação


tegrante do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação
(CACE) da Unirio como bolsista de iniciação científica por três anos na graduação.
Já atuou como professora de educação infantil no município do Rio de Janeiro
e na Prefeitura de Belford Roxo.  Atualmente, atua como professora do ensino
fundamental na rede municipal do Rio de Janeiro

Thamyres Dalethese

Mestre em Educação e graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do


Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Durante a graduação, foi membro do projeto
de extensão “Cine CCH: aprendizagens com o cinema”, um cineclube dentro da
universidade a partir do qual desenvolveu sua monografia. Durante a graduação
e mestrado, foi integrante, durante seis anos, do grupo de pesquisa Comunicação,
Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, desenvolvendo pesquisa so-
bre cinema e YouTube. Atualmente, é professora dos anos iniciais na rede muni-
cipal do Rio de Janeiro.

Sobre os autores | 233


Este livro foi publicado no formato 17 x 24 cm
utilizando a família tipográfica Tiempos Text e ScalaSans
Miolo em papel Off-Set 75 g/m2 impresso na EDUFBA
Capa em Cartão Supremo 300 g/m2 impressa na Gráfica 3
300 exemplares
O livro Comunicação, audiovisual e educação:
narrativas de pesquisa traz uma diversidade de
estudos sobre a temática, dialogando com várias
obras e pesquisas anteriormente publicadas no
Brasil. Destina-se ao público de pesquisadores
professores e alunos de pós-graduação e demais
interessados em investigações que relacionem a
comunicação e a educação, tendo o audiovisual
como elemento de diálogo e reflexão.

grupo de estudios e investigación


comunicación audiovisual, cultura y educación

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