Arturo Alfonso Schomburg Uma Historia
Arturo Alfonso Schomburg Uma Historia
Arturo Alfonso Schomburg Uma Historia
De acordo com David Armitage, a história atlântica é, como o próprio oceano que lhe dá
nome, um território fluido, em movimento contínuo e carente de fronteiras 1. Essa
fluidez projeta-se também, de acordo com ele, ao marco temporal. Surgida como
subcampo definido de estudo no final do século XX, seu âmbito de referência seria,
inicialmente, o da primeira modernidade (c. 1492-1815), anterior à era das revoluções.
Entretanto, ao formular suas concepções, este subcampo foi assumindo modalidades
diversas - a circum-atlântica (transnacional), a cisatlántica (nacional ou regional) e a
transatlântica (internacional) -, bem como expandindo o marco temporal de referência
de seus objetos para além daquela primeira modernidade. Paralelamente, também foi
postulando, entre outros problemas, o da sua "genealogia" - uma das quais remeteria ao
contexto da Guerra fria e à centralidade que o Atlântico desempenharia para uma noção
de "civilização ocidental [...] vinculada mais à OTAN do que a Platão" -, assim como o da
sua "anatomia" - da qual estariam excluídas "a história do comércio de escravos e da
escravidão, [...] a história da África e dos africanos, e, de forma mais geral, das raças 2".
Visto assim, o Atlântico aparece como um espaço problemático bem a propósito para a
consideração da trajetória de um sujeito afrodiaspórico da modernidade tardia que,
migrante nos Estados Unidos, se propõe a constituir uma coleção sobre cujas bases o
relato historiográfico não apenas possa incorporar os espaços, anatomias e culturas
deixados de lado pela historiografia canônica (anterior ao surgimento da história
atlântica); como também, promover a constituição de redes transatlânticas que
permitissem pensar, ainda hoje, como problemáticas as fronteiras sobre as quais os
próprios coletivos afrodiaspóricos foram sendo concebidos, opondo o Atlântico norte ao
Sul: em um primeiro momento, à América latina e, mais tarde, à África.
Propomos, a seguir, uma história transatlântica que, partindo de uma das margens
desse Atlântico norte, se configura inicialmente como uma história cisatlântica, para
transformar-se, graças à migração da personagem, Arturo Alfonso Schomburg, em
história circum-atlântica que objetiva, pela agência da coleção (especialmente de fontes
bibliográficas), cooperar no desenho de uma historiografia afrodiaspórica deveras
internacional - promovendo o tratamento comparativo, em condições de igualdade com
as dos relatos já instituídos - dos espaços e sujeitos deixados à margem por eles.
Arturo Alfonso Schomburg por James Latimer Allen, década de 1920.
Migrações
Arturo Alfonso Schomburg nasceu em San Juan de Porto Rico, em 24 de janeiro de
1874, um ano após a abolição da escravidão na Ilha. De acordo com o registro de
batismo, lavrado na paróquia de São Francisco de Assis, era filho de María Josefa
Schomburg e neto de Susana Schomburg; a primeira, de acordo com o filho, teria
nascido livre em 1837, em St. Croix, à época ainda uma das Antilhas dinamarquesas
(hoje Ilhas Virgens). Arturo Alfonso passou a infância em Cangrejos, bairro
caracterizado historicamente como local de assentamento de populações quilombolas e
migrantes, procedentes de outros arquipélagos caribenhos, bem como do interior de
Porto Rico, e incorporado mais tarde à área metropolitana de San Juan. Nesse local de
circulação e contato de diversas comunidades caribenhas, sua primeira língua foi o
espanhol. Realizou sua formação escolar básica em San Juan e passou um período de
sua adolescência nas Ilhas Virgens. De volta em Porto Rico, trabalhou na indústria do
tabaco e foi discípulo de José Julián Acosta no Instituto de Segunda Enseñanza.
Migrou para Nova York em 1891. Ali se desempenhou como funcionário administrativo
(primeiro de um escritório de advocacia e logo de uma companhia de seguros, na área
de Wall Street) e frequentou aulas de inglês na Central Evening High School (na qual
José Martí lecionava espanhol). Incorporou-se à Seção Porto Rico do Partido
Revolucionário Cubano, formado por intelectuais e trabalhadores, especialmente
tipógrafos e tabaqueiros, com o propósito de promover a independência das últimas
colônias espanholas nas Américas. Foi secretário do clube Las dos Antillas, presidido
por Martí e integrado também, como o PRC, por trabalhadores e intelectuais, exilados e
emigrados do Caribe hispânico 3. Dessa época data já o incômodo de Schomburg em
relação ao nacionalismo criollista - versão "cordial" das ideologias da mestiçagem e do
branqueamento racial, que irão ganhando progressivamente adeptos na América latina,
entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX - e ao valor semântico obsoleto
das categorias em uso de que se ocupará em brevíssimo ensaio, "Creole/Criollo", de
1927 4.
Com a firma do Tratado de Paris, em 10 de dezembro de 1898, que pôs fim à Guerra
hispano-americana, resultando na independência de Cuba e na recolonização de Porto
Rico, inicia-se uma nova "migração" de Schomburg, de hispanoantilhano a west indian .
Em termos de sociabilidade, essa migração significou para Schomburg o ingresso na
loja maçônica Prince Hall, a mais antiga loja afrocaribenha nos Estados Unidos, fundada
no século XVIII. Mas antes dessa data, por volta de 1895, tinha já iniciado a construção
de sua coleção de documentos, manuscritos, publicações bibliográficas e
hemerográficas, adquirida, ao longo de décadas, com o salário de funcionário da seção
de correspondência da Bankers Trust, cargo que teria conquistado pelo seu domínio de
diversas línguas (espanhol, inglês e francês) e que lhe permitia, paralelamente, manter
um intercâmbio amplo e intenso em busca de informações sobre materiais para sua
coleção, bem como sobre a provável existência de antepassados afro de personalidades
destacadas na história transatlântica. Neste sentido, Schomburg se ocupa de pesquisar
e logo publicar suas descobertas sobre os ancestrais africanos de personagens centrais
para a história das artes e da política europeias, como Alexandre Dumas, Pushkin ou
Alexandre de Médici, primeiro duque de Florença 5.
Entretanto, o objeto de seu primeiro ensaio publicado é também aquele que define de
modo mais específico o critério que dá sentido ao trabalho do colecionador: o Haiti e
sua Revolução. Com efeito, para além do número e caráter significativo dos documentos
de/sobre ela que Schomburg pode adquirir, essa revolução constituirá o que poderíamos
chamar o paradigma que norteou tanto o desenho da coleção quanto, sobretudo, os
propósitos a que Schomburg sempre quis destiná-la. Neste sentido, o título de seu
primeiro ensaio publicado - "Is Hayti decadent?" 6 - endereça aos seus contemporâneos
desde o presente a questão do passado (e o estatuto) coloniais. O texto surge, neste
sentido paradoxalmente, de uma viagem que Schomburg faz, como membro de uma
equipe organizada nos Estados Unidos, para avaliar as possibilidades da exploração de
minério na República Dominicana.
Escavação e arquivo
Em sintonia com as ações de exploração e escavação do minério, Schomburg antecipa
neste texto o uso dos tropos arqueológicos que reaparecerão em seu ensaio mais
conhecido, "The negro digs up his past", para expor a função, antes didática que
polêmica, que o colecionador atribui ao seu arquivo e à história 7. Nesta linha, o registro
do discurso oficial estadunidense (que avalia potencialidades comerciais no terreno que
invadirá, enfim, 10 anos mais tarde) combina-se com o da campanha jornalística já
iniciada e que gira em torno à pergunta sobre uma outra potencialidade, fundamental:
a da autodeterminação. Schomburg se serve, pois, destes supostos e os devolve sob a
forma da interrogação retórica do título. O texto refrata, assim, o alvo do discurso oficial
e oficioso dos interesses imperiais sem contradizê-lo abertamente, mas expondo, a
partir dos mesmos argumentos mobilizados por ele, alternativas possíveis de
consecução das promessas republicanas, respeitando o direito à autodeterminação.
Com este propósito, Schomburg traz à tona a história local: a) a da nação surgida de
uma revolução de escravos que, concomitantemente, como nenhuma outra nação do
continente, declarou a independência e aboliu a escravidão; b) certas modulações da
poesia cívica, surgida no período imediato posterior às guerras de independência no
continente, de função didática, ensinando a substituir a épica da guerra pela épica da
agricultura; e, por fim, c) a solução técnica contemporânea: os afroestadunidenses
formados no Tuskegee Institute de Booker T. Washington, para colaborar na solução
prática da queda na produtividade da agricultura haitiana e, paralelamente, para
mostrar que a cooperação afrodiaspórica pode ser mais eficaz e equitativa para ambas
as partes, na medida em que respeita o direito à autodeterminação de uma delas,
valorizando a formação técnica da outra 8.
A escola de agricultura sobre rodas, “escola móvel”, 1906
Cooperação afrodiaspórica
No marco dessa ação e cooperação afrodiaspórica, Schomburg conhecerá também,
nesse período, um novo mentor: John Edward Bruce ("Bruce Grit") (1856-1924), nascido
escravo em Maryland, jornalista e ativista, com quem funda em 1911 a Negro Society
for Historical Research. São anos em que, sem tirar a atenção das encruzilhadas
caribenhas, torna a ter uma atuação pública mais intensa, desta vez junto às
comunidades afroamericana e afrocaribenha não hispânica. São significativos do
primeiro aspecto, a publicação dos ensaios "Placid, a Cuban martyr" - sobre o poeta
romântico e artesão, mulato livre, fusilado na devassa da suposta Conspiração "de la
escalera", que teria por objeto reeditar em Cuba a Revolução haitiana; e "General
Evaristo Estenoz" - sobre a Guerra racial de 1912, em que a República de Cuba ordenou
ao seu exército a perseguição e morte dos líderes e simpatizantes do PIC-Partido
Independente de Cor, primeiro partido político criado com critérios raciais nas
Américas. Válido para ambas as personagens, o argumento contra o nacionalismo
homogeneizador e totalitário. Nessa linha, citando Sebastián Morales, Schomburg dirá
que Plácido foi um "mulato [...] com mais gênio e heroísmo que pátria 9".
Nesse ensaio, cujo título induziria a pensar inicialmente em uma reflexão moral
abstrata, o subtítulo vem logo a esclarecer os objetivos pragmáticos da proposta.
Condizente com o contraponto instaurado entre título e subtítulo, o corpo do ensaio
inverte a economia argumentativa habitual no Ocidente e, enformando a pulsão da
polêmica, opera silenciando deliberadamente a historiografia dita universal - na qual a
história da África e dos afrodescendentes, quando aparece, assume a forma de uma
"nota de rodapé" -, e lista o que poderia entender-se como uma "cidade escriturária" da
diáspora africana, constituindo assim uma nova série canônica.
Com efeito, nesse ensaio Schomburg vai enumerando obras escritas por africanos e
suas diásporas em diversos campos das artes e das ciências, sem obliterar contradições
ou quebras de expectativa quanto à perspectiva adotada (por exemplo, em favor da
escravidão) por alguns dos autores citados. Assim, na poesia, cita Phillis Wheatley (cuja
obra ele reeditaria e prologaria em 1915), Juan Latino (poeta e latinista, catedrático na
Universidade de Granada, sobre o qual pesquisaria em arquivos espanhóis em 1926),
Paul Laurence Dunbar (cujos manuscritos fariam parte, mais tarde, de sua coleção). Na
filosofia, cita o guineense Anthony William Amo. Na narrativa, entre outros, os
testemunhos de Gustavus Vassa e Frederick Douglass, os relatos de Pushkin, os
romances de Dumas (pai), a narrativa antiescravista caribenha. Na teologia, Alexander
Crummell, bem como Jacobus Capitein quem, nascido escravo em Gana, estudou em
Leyden, se ordenou como ministro da Igreja Reformada holandesa e escreveu um
tratado, De vocatione ethnicorum, no qual defende o princípio de não contradição entre
a prática do cristianismo e o direito a se ter escravos. Na história da música e da
pintura, cita o compositor Ignatius Sancho. Na historiografia africana, Ludoph; além de
contribuições feitas também na história da medicina e do direito. Explicita, em muitos
casos, as conexões transatlânticas dessa produção, seja pelo deslocamento (muitas
vezes forçado, na qualidade de escravos) de seus autores, seja pelo local de edição
(muitas vezes também, póstuma) de suas obras.
No segundo caso, Schomburg afirma que a agência da diáspora africana poderia surgir
tanto do âmbito universitário (como queria Du Bois com seus "talented tenth" 12), como
vir "das fileiras do povo". Com esta afirmação, Schomburg questiona o caráter
necessário da formação acadêmica para o esclarecimento quanto aos objetivos, bem
como para ocupar uma posição de liderança no ativismo político e cultural; religando-se
com sua experiência política juvenil, pautada por relações de horizontalidade. Não é
casual, na escolha de alguns dos seus objetos de estudo, o caráter combinado do
exercício de atividades manuais ou artesanais, e intelectuais ou políticas ou culturais.
Do mesmo modo, é perceptível essa horizontalidade na utilização de formas análogas de
tratamento dispensadas a seus correspondentes: colecionadores, antiquários, livreiros,
poetas, radialistas, intelectuais e acadêmicos de diversas áreas, bibliotecários,
diretores de instituições culturais de prestígio (museus, arquivos, bibliotecas), ativistas,
presidentes de estado, jornalistas, artistas plásticos, editores etc.
Portada da primeira edição reunida dos Poems and letters de Phillis Wheatley,
apresentada por Schomburg em 1915.
A. A. Schomburg, "The negro digs up his past". The New Negro, ed. Alain
Locke, 1925, p.230-231.
História transatlântica
Seu ensaio mais conhecido, "The Negro digs up his past", fez parte do número especial
da revista de pesquisa social Survey Graphic dedicado ao Harlem como "meca do Novo
Negro", em 25 de março de 1925, e cujo texto de abertura é o clássico "Enter the New
Negro", de Alain Locke. O número é lido ainda hoje como manifesto do movimento do
"Novo Negro" - denominação preferida por Locke, em lugar de Harlem Renaissance -,
constituindo-se paralelamente em laboratório do livro The New Negro, editado pelo
mesmo Locke meses mais tarde. O ensaio de Schomburg fez parte de ambas as
publicações. No primeiro caso, apareceu na segunda seção, "The Negro expresses
himself", junto com poemas de, entre outros, Countee Cullen, Angelina Grimke, Jean
Toomer, Langston Hughes e o jamaiquino Claude McKay, além de ensaios de W. E. B.
du Bois, J. A. Rogers e Albert C. Barnes sobre artes plásticas africanas e sua presença
nos Estados Unidos, e sobre música popular afroamericana contemporânea
(especialmente, o jazz). Esta seção, a central no número de Survey Graphic, esteve
emoldurada por outras duas: a primeira, sobre o Harlem como "a maior comunidade
negra do mundo" - com artigos de, entre outros, o jamaiquino W. A. Domingo e o pintor
e gravurista Winold Reiss, que tinha passado uma temporada de estudos no México em
1920 e que foi responsável pelo design gráfico do número -, e a terceira, dedicada aos
"contatos raciais" e que incluía colaborações de, entre outros, Walter F. White e
Melville Herskovits.
Nesse contexto, a coletânea editada por Alain Locke em livro, The New Negro, de 1925,
revela propósitos mais ambiciosos que o número de Survey Graphic que a antecedeu.
Nela, além do ensaio "The Negro digs up his past", Schomburg colabora com uma
"bibliografia seleta" da produção afronorteamericana e africana, na qual inclui livros de
sua coleção particular, dentre os quais (e expandindo o escopo do que o título promete)
os poemas do afrogranadino Juan Latino, os do cubano Juan Francisco Manzano, as
Réflexions politiques... do haitiano Barão de Vastey etc. O subtítulo da compilação
bibliográfica, "notable early books by Negroes", funciona, por um lado, como
reafirmação do caráter injustificável da mediação, em se tratando da
autorrepresentação do negro (consonante com o título da seção em que aparecera
inicialmente "The Negro digs up his past" em Survey Graphic: "O negro se
manifesta/fala por si mesmo"); e por outro, opera como contraponto basal (porque
documentado) na construção desse "Novo Negro" no presente e na sua projeção de
futuro. O início do ensaio não deixa dúvidas quanto a estes propósitos:
"O negro americano tem de refazer seu passado para construir seu futuro. [...] A
história tem de restituir [ao negro] o que a escravidão [lhe] arrebatou. As gerações
atuais têm de reparar e compensar o dano social da escravidão 18".
Segundo: que em virtude de ter sido vistos como ‹ excepcionais ›, mesmo que por
amigos e admiradores, negros de gênio e sucesso são injustamente desvinculados do
grupo, com o resultado de que se tira do grupo o devido crédito.
Terceiro: que as origens remotas do negro, longe de ser o que se dera a entender à
própria raça e ao mundo, dão evidência de verdadeiros trunfos coletivos quando
observadas cientificamente. E mais importante ainda: que esses trunfos são de vital
interesse por estarem ligados ao alvorecer e aos primeiros desenvolvimentos da cultura
humana 19."
Dentre os elementos mais notáveis que cabe assinalar, nos parágrafos citados acima,
estão a afirmação da agência da diáspora africana nas lutas pela sua emancipação (em
contraponto polêmico com as histórias nacionais que glorificam o caráter supostamente
magnânimo das respectivas elites); e, paralelamente, o apontamento do escândalo que,
para a "razão ocidental" teria implicado a consideração disto (a agência = a Revolução
haitiana) como acontecimento óbvio e ofuscante, ao mesmo tempo.
Francisco Oller, La escuela del maestro Rafael Cordero, c.1890, óleo sobre
tela, 39 x 62½ (99.1 x 158.8 cm), Ateneo Puertorriqueño, San Juan, Puerto
Rico.
Fonte : Wikimedia
No âmbito internacional, vale lembrar também que, desde o final da década de 1920, a
École des Annales vinha promovendo uma transformação importante na concepção da
história, assumindo uma atitude de abertura em relação a outras disciplinas das
ciências sociais, incentivando pesquisas de caráter interdisciplinar sobre novos objetos
- fluxos demográficos, intercâmbios, costumes - e renovando, em consequência, o
repertório de questões e os métodos. A história deixará, portanto, de ser
prioritariamente a do monumento e o herói nacionais e passará a se interessar por
acontecimentos e personagens 28 de outras geografias ou por alguns daqueles até então
silenciados, bem como por objetos "menores", em perspectiva comparada.
Paralelamente, a narrativa (literária e historiográfica) questionará os protocolos dos
gêneros discursivos do século XIX, privilegiando a fragmentação e as formas breves
como base de um arcabouço sobre o qual seja possível refundar uma narrativa
comparada em termos menos desiguais 29. Neste sentido, a coleção de Arturo A.
Schomburg funciona como agente que obriga a uma reformulação das bases sobre as
que se constrói e interpreta o arquivo a partir do qual se escreve a história,
incorporando fontes que tornam inverídicos os argumentos favoráveis à exclusão dos
sujeitos afrodiaspóricos do relato.
Mais significativo ainda é o fato de que os sujeitos que promovam essa radical mudança
nas condições de produção do relato historiográfico provenham de espaços marginais
àqueles em que se operava a formulação dos métodos (C. R. L. James), bem como o
desenho de coleções e arquivos precedentes (A. A. Schomburg). Em outras palavras, o
problema do método - como Deleuze e Guattari o assinalam em relação à expressão na
literatura de Kafka - não se coloca nos termos de um universal abstrato, mas na práxis
da formação (e posterior institucionalização pública) da coleção, como também, e
solidariamente com ela, na práxis escriturária que promove a fragmentação do discurso
monumentalizante e expõe, por este meio, o caráter ficcional de seu estatuto
"universal". Assim, o uso da correspondência pessoal, como forma mais próxima (em
comparação à institucional) de diálogo crítico em torno da coleção, do arquivo e do
discurso historiográfico; a preferência pelo jornalismo, em termos não apenas de meio
de circulação (mais democrática e direta que a do livro acadêmico), mas também de
protocolos de produção de um discurso (tanto no que se refere aos gêneros quanto aos
registros linguísticos utilizados); a recorrência a situações mediadas pela oralidade em
contextos não acadêmicos ou para-acadêmicos (o seminário de verão para professores
de escolas públicas); o tom do discurso e o da impostação da voz na performance
oratória (a solicitação/exortação - a plea - em lugar do imperativo) constituem meios
que coadunam na escavação para a obtenção das fontes e na consequente corrosão dos
relatos homogeneizadores e teleológicos.
Esta corrosão se opera por diversos meios. Um deles, como vimos, é o da fragmentação
das formas narrativas. Outro é o da consignação de um lugar de enunciação coletivo
dos relatos. Neste sentido, e ainda que utilizem a primeira pessoa do singular, nem
Schomburg nem C. R. L. James articulam seus relatos na perspectiva de um autor
individual; ao contrário, eles falam em nome da agência afrodiaspórica e é nesse
sentido que o discurso de Schomburg é também político.
Dedicatória de Gustavo E. Urrutia a Schomburg, na doação do livro Hojas del
sendero, de Arturo Clavijo-Tisseur, à Biblioteca pública de Nova York, 1932.
Em outra linha ainda, o uso da língua se constituirá em meio que expressa por
excelência o lugar menor desde o qual o coletivo afrodiaspórico fala; uma língua que
expõe, nas limitações e precariedade de sua aquisição - especialmente, no caso de
Schomburg -, seu caráter de língua imposta como parte da vasta empresa imperial
moderna (nas Américas) e contemporânea (na África). Paralelamente, será o modo
exótico em que se expresse esta agência - o "inglês flamboyant" de Schomburg - o que
melhor explicite o caráter extraterritorial dessa língua invasora. Em tal sentido, se o
afrocubano Gustavo Urrutia se ressente da perda de fluência no espanhol por parte de
Schomburg 30, sua escrita em inglês, paralelamente, se manterá permeável à
oralidade 31, privilegiando procedimentos rítmicos e de intensificação, mas também
expondo a ausência, especialmente, de elementos de subordinação e de conexão intra e
extrafrasais. Assim, aquilo que no âmbito da oralidade pode se depreender de recursos
presentes no contexto, na escrita expõe o caráter extraterritorial e opressor dessa
língua, bem como o multilinguismo do orador. Entretanto, essas "zonas linguísticas de
terceiro mundo por onde uma língua escapa, [...] um agenciamento se ramifica 32" são
também as que tornam possível a intervenção de dispositivos que alterem as condições
de produção (método, gêneros discursivos e meios expressivos) da escrita da história
"universal"; essa que não pode deixar de ser afetada pelas demandas provenientes da
dispersão, o coletivismo, a desterritorialização das minorias no marco de sua
consubstancial mobilidade e heterogeneidade. E assim, provavelmente, a história será
tanto mais transatlântica quanto menos pretensamente "universal".
1. Uma elaboração prévia do exposto neste artigo apareceu em: Viviana Gelado,
"Arturo A. Schomburg: um arquivo para ir além da cortina da escravidão", in
Viviana Gelado e María Veronica Secreto (orgs.), Afrolatinoamérica: Estudos
Comparados (Rio de Janeiro: Mauad, 2016), 119-136.
2. David Armitage, "Três Conceitos de História Atlântica", História Unisinos 18, no. 2
(2014), 208.
7. Arthur A. Shomburg, "The Negro Digs Up His Past", Survey Graphic 53 (1925):
670-672.
9. Arthur A. Shomburg, "Placid, a Cuban Martyr", The New Century (1909), 3. Todas
as traduções dos textos de Schomburg para o português são de autoria de VG.
10. Arthur A. Schomburg, "Racial integrity: a Plea for the Establishment of a Chair of
Negro History in Our Schools, Colleges, etc.", Negro Society for Historical
Research (1913), 17.
11. Editor de colaborações de Schomburg, Locke se referiu ao seu trabalho como "a
labor of love---for Schomburg is a loyal old friend who isn't to blame for his
flamboyant English because he was born in Puerto Rico and educated in Spanish".
Ver: Elinor des Verney Sinette, Arthur Alfonso Schomburg: black bibliophile &
collector. A biography (Detroit: NYPL & Wayne State UP, 1989), 13.
12. Ver a respeito: Kevin Meehan, People Get Ready: African American and Caribbean
Cultural exchange (Jackson: Univ. of Mississippi, 2013), 52-75.
15. Arthur A. Schomburg, "Negro composers and musicians of the world", Champion
Magazine 1 (1917): 407-410.
16. Arthur A. Schomburg, "Military services rendered by the Haitians in the North and
South American wars of Independence: A. M. E. review 37 (1921): 199-204.
18. Arthur A Schomburg, "The Negro digs up his past...", op. cit.: 670.
19. Ibidem.
21. Arthur A. Schomburg, The Crisis 38 (1931): 155-156, 174, 176; Arthur A.
Schomburg, Looking forward 2, (1935): 12, 13, 20.
25. Arturo A. Schomburg, "In quest of Juan de Pareja. Colored painters of Spain", The
Crisis 34/5: 153-154, 174.
27. Em relação a isso, ver: Díaz Quiñones, Arcadio. "Recordando el Futuro Imaginario:
la Escritura Histórica en la Década del Treinta", Sin nombre XIV, n° 3 (1984), p.
16-35.
28. Para uma breve história do estatuto, funções e questões do gênero da biografia na
História escrita, especialmente em relação aos Annales no final da década de 1980,
ver: Giovanni Levi. "Les Usages de la Biographie", Annales 44, n° 6 (1989): 1325-
1336.
31. It is worth nothing here the strategic importance which rhetoric and oratory have
for political agency. Significant in this sense is the publication of anthologies of
'black oratory' since the nineteenth century: from Douglass, Jacobs and Truth to
Angela Davis and Cornell West, passing through du Bois, Hurston, and Malcolm X
and Martin Luther King, to mention just a few names.
32. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Kafka, por uma literatura menor. (Rio de Janeiro:
Imago, 1977), 42.
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Ver em Zotero
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Autor
Professor of Latin American literatures. PhD from Campinas State University. Post-
doctoral studies at Princeton University. She was visiting professor/researcher at
the UNAM (Mexico), University of Puerto Rico-Río Piedras, Casa de las Américas
(Cuba), Northwestern University (USA) and University Pompeu Fabra (Spain).