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O SIGNIFICADO DA MORTE EM LUCÍOLA DE JOSÉ DE ALENCAR

E EM O VOO DA GUARÁ VERMELHA DE MARIA VALÉRIA


REZENDE.

Francy Izabelly Oliveira Macedo; José Hélder Pinheiro Alves


(Mestranda em Literatura e Ensino - POSLE - Universidade Federal de Campina Grande. E-mail:
[email protected]; Universidade Federal de Campina Grande. E-mail:[email protected])

Resumo

Enquanto representação das relações humanas, a literatura nos possibilita pensar acerca dos papéis que
homens e mulheres desempenham na sociedade, bem como refletir acerca dos valores e ideologias que
regulam a sociedade nas mais diferentes épocas. Nesse sentido, embora temas, como a morte, o amor,
a saudade, permaneçam e se repitam na literatura, os valores atribuídos a essas temáticas mudam
conforme o contexto temporal e espacial, visto que são experimentados de modo peculiar por cada
sujeito. Assim, a compreensão do significado da morte, a partir de obras literárias pertencentes a
contextos de produção e circulação distintos, pressupõe que se leve em consideração as visões de
mundo relativas a cada época representada. Nesse artigo, buscaremos discutir o significado da morte
em dois romances: Lucíola, de José de Alencar e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Resende,
a partir das experiências vividas pelas personagens centrais dos respectivos romances, quais sejam:
Lúcia e Irene. O conflito que permeia o universo feminino dessas personagens - o fato de serem
prostitutas - contribui para a construção de significados em torno da morte. Porém, esses significados
são perpassados por visões de mundo adjacentes ao modelo de época representado em cada obra.
Desse modo, a visões de mundo das personagens, o modo como compreendem a si mesmas e de como
aceitam ou não a condição de mulher prostituída, além da forma como a sociedade visualiza o
fenômeno da prostituição em cada momento histórico, corrobora para a construção do significado da
morte enquanto libertação ou punição nas obras estudadas.

Palavras-chave: Prostituição feminina. Mulher. Significados da morte.

Introdução
Neste texto, apresentamos uma breve reflexão em torno dos romances Lucíola, de José de
Alencar e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, levando em consideração os
significados da morte nos referidos romances.
Desse modo, nossa reflexão parte da compreensão de que o contexto de produção e
circulação das obras em análise são decisivos para aferição dos valores e significados
presentes em algumas temáticas, adjacentes a esses romances, tais como: o amor, a
prostituição, a morte.
Esses temas constituem elos importantes para configuração dos romances em análise,
visto que, sendo prostitutas, a relação de amor, experimentada pelas personagens centrais
dessas obras, perpassa diversos problemas e enfretamentos, corroborando na morte delas.
Assim, o nosso enfoque, no que se refere à analise dessas obras, será o estudo
comparativo das personagens Lúcia, de Lucíola, e Irene, de O voo da guará vermelha,
levando em consideração a visão de mundo adjacente a cada obra.

Metodologia

O presente texto corresponde a um recorte dos resultados de nossa monografia de


conclusão de curso, cujo objetivo foi verificar a representação da temática da prostituição
feminina em romances da literatura brasileira, cujas obras representassem contextos sócio-
históricos distintos.
As obras selecionadas foram: O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, e
Lucíola, de José de Alencar. Sendo aquela considerada contemporânea, visto que foi
publicada em 2005 e apresenta elementos estéticos e conteúdo condizentes com as
perspectivas de mundo e valores do tempo contemporâneo. Já a segunda obra, que é um
romance representativo do romantismo brasileiro, foi publicada em 1862. É importante
ressaltar que, embora apresente visão de mundo do homem do século XIX, e elementos
estéticos representativos do romance romântico, essa obra se destaca por apresentar conflito
psicológico em torno da personagem central - característica mais presente em obras do
modernismo.
Nossa pesquisa se baseou na leitura de textos teóricos acerca da temática da prostituição
feminina, da mulher e do gênero romance, bem como leitura crítica das obras selecionadas.
Tais atividades corroboram para caracterizar nossa pesquisa como sendo de natureza
bibliográfica, visto que, conforme nos indica Torroni-Reis (2010), os dados coletados nessa
modalidade de investigação científica, correspondem às informações obtidas por meio da
análise das obras selecionadas, tendo em vista os objetivos delimitados.
Inicialmente, efetivamos diversas leituras acerca dos temas: mulher, prostituição
feminina, gênero romance. Em seguida, realizamos as leituras das obras selecionadas; depois,
demos início as análises das obras individualmente para, enfim, estabelecer as comparações
entre elas, tendo em vista seus elementos estéticos e o assunto tratado. Por fim, demos
seguimos com a produção do manuscrito final.

Resultados e discussões: significados da morte em Lucíola e O voo da guará vermelha

A visão de mundo, as experiências e os contextos políticos, sociais e ideológicos,


compartilhados pelos indivíduos em uma determinada época,influenciam a construção
estética dos elementos estruturais de uma obra, bem como a recepção dessas obras por
leitores, insurgidos em contextos sociais diferentes.
É nesse sentido que Reuter (1995) observa a evolução das personagens na literatura,
apontando para a sua relação com as transformações da própria sociedade. Assim, as
personagens, anteriormente, marcadas pela repetição (cumprindo o mesmo destino sempre),
ou personagens heroicas (perfeitas fisicamente, no caráter e na personalidade) são
substituídas por personagens anti-heroicas (marcadas por desvio de personalidade,
inferioridade física e social) e,depois, personagens marcadas por conflitos psicológicos mais
evidentes, portadoras de qualidades, defeitos, dores, experiências e histórias próprias do ser
humano comum.
Nessa perspectiva, no que se refere à análise comparativa entre as personagens Lúcia,
de Lucíola, e Irene, de O voo da guará vermelha, esta pressupõe o reconhecimento dos
aspectos de produção, circulação e consumo dos respectivos romances. Principalmente
porque tais obras refletem uma temática polêmica no que diz respeito às relações de gênero e
à maneira como a mulher prostituta é vista em sociedades distintas.
Ora, a estética romântica, em termos de literatura brasileira, é marcada pela presença
de personagens típicas: o herói e a mocinha; ou a mulher idealizada; ou ainda o amor
impossível tornando-se possível devido à mudança de atitude das personagens envolvidas na
trama.
No entanto, Lúcia, devido à temática inserida no romance, distancia-se de tal
configuração, apresentando-se esférica e amplamente psicológica. Todavia, vale ressaltar que
o efeito psicológico em Lucíola é resultado do trabalho analítico –realizado pelo narrador -
em torno da personagem. Nesse sentido, não há que esperar em Lucíola a presença enfática
do discurso indireto livre ou do monólogo interior, como ocorre em Irene, por exemplo.
O conflito vivenciado por Lúcia acompanha toda a narrativa, dividindo-a entre duas
categorias: a luz ou a sombra. Além disso, a apresentação da personagem não é realizada de
modo direto, como Irene, em O voo do guará vermelha, contribuindo para acentuar a
dicotomia em torno do caráter da personagem.
Assim, o drama psíquico de Lúcia torna-se superior ao drama experimentado por Irene.
Isso ocorre devido ao modo como cada uma delas se enxerga enquanto mulheres prostituídas
e como concebem o fenômeno da prostituição. Porém, os posicionamentos das personagens
frente à questão posta são reflexos de suas histórias de vida, mas, sobretudo, do contexto
ideológico em que são constituídas.
Acerca do contexto de produção da obra, é importante ressaltar, ainda, que Lucíola é
produzido e está ambientado na metade do século XIX. Período em que se percebe uma
influência intensa da religião cristã – sobretudo da igreja católica - na vida social dos
indivíduos da corte. Essa influência está fortemente marcada na narrativa alencariana e é
responsável pela maneira com que Lúcia enxerga a prostituição.
No que se refere às histórias de vida, Lúcia e Irene são apresentadas à prostituição por
um motivo comum: sua condição social. Todavia, em Lucíola há uma particularidade: a
violação ou abuso sexual sofrido pela personagem central. Esse fator se sobrepõe à questão
social, visto que é pelo fato de ter sido violada que Lúcia é expulsa por seu pai, restando-lhe a
prostituição.
Há, em Lucíola,um abandono voluntário da personagem pela família que considera o
ato praticado por Lúcia como indecoroso, imoral e desonroso à constituição familiar. Embora
Lúcia tenha se prostituído para salvar seu pai, sua conduta é condenável, visto que ela
profanou o amor, baseado no espelho da família cristã, violando seu próprio corpo, perdendo,
portanto, a virtude da mulher que é sua pureza (aqui sinônimo de virgindade).
Em Irene há um abandono involuntário, pois a personagem resta só em decorrência da
morte de seu avô e do desaparecimento de seu irmão. É necessário ressaltar que Irene não é
acolhida por nenhum de seus vizinhos que alegam: “moça bonita e novinha é encrenca”. Ora,
há nessa expressão um preconceito enraizado na cultura ocidental, fruto de uma visão
distorcida em torno da figura de Eva –aquela que tenta e faz o homem cair em pecado,
responsável, portanto, pela desgraça da humanidade.
Porém, Irene aceita resiliente a sua condição. Compreende a prostituição enquanto
trabalho, meio de sobreviver em sua precária realidade.
Já Lúcia, prostituta de luxo, dona de grande riqueza construída com a prostituição,
embora enxergue a prostituição com asco – nojo -, continua a prostituir-se como forma de
autopunição pelo grave erro que cometeu ao profanar o amor e a família.
Irene não compartilha do mesmo sentimento de Lúcia. Na verdade, a única
preocupação que Irene revela é conseguir dinheiro para criar o filho. Diferentemente de Lúcia
que considera não ser merecedora da maternidade, culpando-se pela morte, intrauterina, de
seu filho com Paulo. Irene não se culpa pelo fato de ser prostituta, Lúcia martiriza-se,
preferindo o sacrifício da morte a retirar o filho morto.
Assim, a morte do filho de Lúcia é prova da impossibilidade de gestação de uma vida,
fruto de um relacionamento baseado no pecado carnal. O amor abortado é a condição da
sociedade para a prostituta impura.
A impossibilidade do amor – conflito existencial presente na relação de Paulo e Lúcia
– não surge, de forma intensa, em O voo da guará vermelha. Embora haja momentos em que
a personagem teme ser abandonada por Rosálio, desacreditando que alguém possa aproximar-
se dela sem interesse. Porém, essa realidade ganha ênfase em Lucíola porque, em sendo uma
obra romântica, espera-se que haja o sucesso do amor, concretizado na união do casal
protagonista e na efetivação de uma família.
Todavia, a relação entre Paulo e Lúcia, marcada pela estigmatização da prostituta – que
enquanto mulher pública não pode entregar-se a um só homem – é imbricada de sentimentos
de desconfiança, ciúme e orgulho, sobretudo, de Paulo em relação a Lúcia.
Se os papéis sociais, puramente definidos e estáveis em Lucíola, acarretam os conflitos
entre as personagens centrais da trama, em O voo da guará vermelha tal condicionamento não
influencia a relação entre Rosálio e Irene. Contrariamente,a relação entre estas personagens é
marcada pelo respeito e aceitação da realidade um do outro.
No entanto, apesar dos conflitos coexistentes, a que se considerar está o amor presente
em ambas as relações. O amor, considerado um sentimento puro, é o retorno ao equilíbrio
perdido, à infância perdida, ao sagrado. O amor liberta e transfigura as dores de Irene; o amor
transforma a realidade de Lúcia – que deixa de se prostituir.
Entretanto, a morte de Lúcia parece revelar a impossibilidade de concretização de
amor. Não podemos realizar a mesma afirmação sobre Irene, visto que o fato da personagem
ser portadora do HIV é colocado nas primeiras páginas do livro, ou seja, a morte de Irene é
anunciada.
Lúcia, que estava grávida de Paulo, perde o filho e se recusa a realizar o aborto que
poderia salvar a sua vida. Todavia, afirma que será o sepulcro para seu filho, aceitando, desse
modo, a morte. Retirar o filho morto das entranhas, abortá-lo, seria o mesmo que abortar o
sentimento que a unia a Paulo. Porém, o filho morto revela a impossibilidade da efetiva
concretização desse amor, exceto se Lúcia morrer com ele.
Desse modo, já em seu leito de morte, Lúcia revela por palavras o seu sentimento por
Paulo:
Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te
amei por séculos nesses poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que
a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma
existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se
pode ter nesse mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade. (ALENCAR,
1999, p.136-137).

O final inesperado e a concretização do amor transfigurador e purificador, contornam


de idealização romântica a despedida dos amantes:

Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o


teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas
almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu. E contudo essa
palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela
será meu último suspiro. (ALENCAR, 1999, p.137)

A morte em Lucíola é a sentença final que, separando radicalmente a matéria física,


une a matéria espiritual. Desse modo, a morte é vista como uma purgação aos pecados
cometidos por Lúcia. Purgação que a levará ao seu destino final: separada da carne que leva
ao pecado carnal, segundo a tradição cristã, Lúcia pode entregar o seu espírito a Paulo:
Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito víamos uma
zona de azul na qual brilhava límpida e serena a estrela da tarde. Um sorriso
pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem cor e: sublime êxtase iluminou a
suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos anjos deve ter
aquela divina limpidez: "− Recebe-me... Paulo!..." (Idem, p. 37).

O final feliz esperado – aquele em que os casais constituem uma linda família e são
felizes para sempre – não ocorre. Seria contrária a lógica do romance que busca resolver o
conflito da dicotomia vivenciada por Lúcia. Desse modo, só a morte, dissolvendo a matéria,
poderia libertar Lúcia do seu passado de sombra e devolver para ela a pureza perdida.
Os conflitos vivenciados por Paulo e Lúcia revelam a complexidade dessas
personagens o que nos permite caracterizá-las, de acordo com Cândido (2009), como
personagens esféricas.
Já em O voo da guará vermelha não há essa relação punitiva. A morte de Irene surge
como libertação de todos os sofrimentos vividos por ela.
Sendo uma das temáticas presentes no romance, a morte recebe uma conotação. O
fato de ser aidética faz com que ela conviva com a iminência da morte em seu cotidiano. Em
alguns momentos, como no trecho abaixo, o pensamento da personagem sugere o anseio pela
morte. Pois, para ela, a morte seria a única forma de libertar-se do sofrimento em que vivia.
Engraçada aquela assistente social, “deixa essa vida”, esta certo, eu deixo
essa vida, não me importo de tudo acabar agorinha, que esta minha vida só
tem uma porta, que dá para o cemitério, mas a senhora vai tomar conta do
menino e da velha? Era bom, que Irene já não consegue levar dinheiro toda
semana […]. (REZENDE, 2005, p. 13).

No entanto, a necessidade de viver e continuar lutando vem da obrigação de alimentar


o filho e a velha: “Irene não pode ir embora, não é livre para morrer” […](Idem, p. 41).
Todavia, com a chegada de Rosálio, a vida de Irene ganha outro sentido ou outras tonalidades
de cores. Irene se renova e deseja viver mais intensamente os momentos com aquele homem.
Experimentar o amor? Mulher como ela precisa está atenta e o amor enfraquece.

Agora ela está tão fraca, a morte vive espreitando, é preciso defender-se,
nunca estar assim aérea, distraída, sonhadora, nunca se meter com amor, que
amar enfraquece a gente, baixa a guarda,deixa frouxa. Amor, coisa perigosa,
um luxo, só pra quem pode, Irene não, nunca pôde, água de sal nas feridas,
mas o coração insiste, nãoarrefece, resiste, bombeia amor pelas veias, pode,
sim, Irene pode desejar viver de amor, quanto mais lhe doem os golpes dos
pés do homem tarado, mas quer que o outro apareça, quer sobreviver,
viver.(p. 179-180).

Irene, que havia sido agredida por um freguês, inicia uma reflexão sobre o amor.
Como podemos observar no trecho acima, o amor é entendido como o sentimento que
enfraquece as pessoas por torná-las mais sonhadores e distraídas. Assim, Irene deseja culpar o
amor pelo fato de não ter desconfiado do homem que a espancara. Ora, é em decorrência
desse espancamento que a personagem morre. Poderíamos, então, culpar o amor pelo
incidente com ela? Porém, Irene arrebata essa possibilidade, pois é amor que o seu coração
bombeia, e é nesse amor que ela encontra forças para desejar sobreviver, viver.
Por outro lado, na afirmação: “Amor, coisa perigosa, um luxo, só pra quem pode”, a
personagem mais uma vez esclarece que o amor não pode ser vivido por uma prostituta. Mas,
ainda assim, nos últimos momentos é a lembrança do que amor que sonhara e do amor que
viveu que se entrelaçam na memória de Irene e a faz, em devaneio, chamar, clamar, implorar
por amor:
Que ele venha logo, agora, eu já não posso esperar, que venha logo e me
alcance, Romualdo, Romualdo, não demore, já não posso, que alguma coisa
se rompeu onde eu tinha o coração, Romualdo, chegue aqui, você veio me
buscar?,com você eu vou, Rosálio, me solte no azul sem fim. (p. 180).

Em “ me solte no azul sem fim”, há, verdadeiramente, um apelo por liberdade, visto
que o azul sem fim simboliza o azul do céu e que Irene é comparada a uma ave: alçar o voo
da liberdade sem fim do céu. No entanto, o amor da infância – da pureza de Irene – não
vem,porque só quem pode ajudá-la a alçar esse voo é Rosálio: o amor que aceitou a sombra e
a luz de Irene, o amor que deu-lhe sentido à vida até o último momento: “Rosálio colhe nos
braços a sua guará vermelha, colhe na boca o sorriso que verte um encarnado vivo e a cobre
inteira de plumas, tingindo todas as mágoas,transfigurando-lhe a dor” (p. 180).
Nessa passagem, há uma reflexão profunda acerca do amor. O amor e a morte
contemplam-se na dor que é transfigurada ao simples contato com o outro.Nesse sentido, o
amor que une Rosálio e Irene aproxima-se do amor divino. Ora, é o Cristo quem contempla o
amor em seu sentido extremo ao morrer na cruz, e sua ação tem a finalidade de salvar e
libertar toda a humanidade da dor e do sofrimento:transfigurar a dor.
Rosálio não é o Cristo, mas o homem que apresenta qualidades superiores aos demais
dentro do contexto da narrativa: aceita a prostituta sem julgá-la; partilha com ela o alimento,
as alegrias e as dores; ensina e aprende; age com solidariedade, mansidão e respeito e é fiel ao
seu sentimento por Irene. Em Rosálio,a capacidade de, suportando a dor, iniciar um
recomeço, demonstra a maturidade e a serenidade em ligar com as adversidades que a vida
impõe:
O homem lança ao quarto vazio um último olhar dolorido, uma das mãos
apertando a alça de sua caixa, sua âncora nas ondas e correntezas da vida,
que, com os livros e brinquedos que há anos vem carregando, leva agora
uma camisa e um vestido coloridos, o seu chapéu de palhaço e um caderno
todo escrito, e a outra mão de mansinho puxando a porta empenada que não
se fechará inteira, há de ficar no coração de Rosálio, deixando passar os raios
da pura luz que é Irene, depois de enterradas as sombras [...].Rosálio sente
que agora, e ainda por muito tempo, não deseja outra mulher, tem uma
mulher por dentro e vê claro à sua frente o destino que lhes cabe, [...]é o
destino que a vida dele e de Irene, embolada, escreveu com pó de estrelas
num papel azul sem fim: vou para o meio das praças, vou para o meio do
mundo contar tudo o que já sei e mais as coisas que só posso conhecer
quando disser [...] (Idem, p. 180).

Rosálio recomeça e deseja levar consigo a “luz que é Irene, depois de enterradas as
sombras”, pois assim como Lúcia, Irene tem um passado negro e um corpo pecaminoso que
deve ser enterrado.
A morte, em O voo da guará vermelha,recebe um sentido libertador e é aceita de
forma mais serena pelas personagens que não protestam à sua chegada.Não cenas de angústia
e desespero como em Lucíola. Apesar da dor que Rosálio revela levar dentro de si, ele retoma
a vida de imediato: sai para contar histórias: […] soltando minhas palavras, sem teto, sem laje
ou telhado por cima de minha cabeça que me separe de Irene, que eu sei que por onde eu for a
minha guará vermelha, minha mulher encantada, vai sem preme acompanhar, voando entre o
azul e mim, e ela quer ouvir meus contos. (Idem, p. 180).
Nesse trecho, ao revelar que Irene sempre irá acompanhá-lo para ouvir assuas
histórias, Rosálio admite a separação de ambos no plano da matéria, mas nãono plano
espiritual. Assim, a personagem afirma o não rompimento total entre os dois. A morte, aqui,
não é definitiva, mas encarada como uma passagem para outro plano.
Há, portanto, uma apelação ao sobrenatural, visto que Rosálio afirma que sua guará o
acompanhará por onde ele for. Por seu turno, em Lucíola, Lúcia doa seu espírito a Paulo,
demonstrando, assim, que pretende manter-se unido a ele, eternamente, por meio do plano
espiritual. Desse modo, a morte não pretende romper, definitivamente, os laços estabelecidos
pelos amantes.
As diferenças notáveis, no que se refere à apresentação da personagem; às relações
entre os amantes; ao modo como as personagens enxergam a prostituição;à forma como a
morte é vivenciada em Lúcia e em Irene revelam a imposição ideológica na constituição do
enredo e dos elementos da narrativa.
Em Lucíola a necessidade de autopunição é reflexo da imposição religiosa na
sexualidade humana, sobretudo, da mulher. Em O voo da guará vermelhas e sobrepõe a
condenação social, visto que Irene, além de prostituta, é pobre e aidética. A moral religiosa,
perdendo supremacia na contemporaneidade, não opera no sentido de puni-la, mas a
sociedade excludente e individualista o faz,condenando-a a rejeição, ao abandono, à violência
e à morte.
Das relações estabelecidas, em ambas as obras, e representadas pelas personagens,
cabe-nos ressaltar a importante reflexão em torno da condição da mulher que, embora a
distância de um século e meio, continua a ser dividida pela dicotomia do sexo partido:
dividida entre Eva e Maria; entre flor e o fruto; entre a santa e a profana.

Considerações finais:

A diferenciação das personagens, no que diz respeito ao modo como representam o


tema da mulher prostituída, revela a mudança dos valores tradicionalmente aceitos. Isso se
reflete por meio da configuração do relacionamento entre Irene e Rosálio, em que percebemos
um desejo por equilíbrio entre os gêneros, sobretudo, no que diz respeito à sexualidade, visto
que Rosálio, a personagem masculina, aceita Irene prostituta.
No que se refere às semelhanças entre as obras, percebemos a presença de um discurso
que busca vitimizar as personagens, colocando a prostituição como única alternativa de vida
para elas. Assim, a condição social de Irene e a condição social e violação sofrida por Lúcia
buscam justificar o fato de essas personagens tornarem-se prostitutas. A vitimização da
prostituta contribui para a formação de argumentos em defesa da personagem, colaborando
para a identificação do leitor com as prostituídas.
Por serem prostitutas, Lúcia e Irene são impedidas de experimentar a relação amorosa
em sua plenitude. Irene tem a sua morte anunciada desde o início do livro– é aidética – Lúcia
morre no final em decorrência de um aborto. Desse modo, o relacionamento interrompido ou
frustrado, por meio da morte de Irene e de Lúcia,corrobora para a explicação religiosa (cristã)
da morte como remissão dos pecados.A morte é coloca nas obras como sentença que, ao
dissolver a matéria responsável pelo pecado carnal, liberta e purifica a alma das personagens.

Referências

ALENCAR, José de. Lucíola. 5 ed. São Paulo: FTD, 1999.


CANDIDO, Antonio. [et al.]. A personagem do Romance. In: A personagem de
ficção. São Paulo, Perspectiva, 2009.
______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981. p. 109-240.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9 ed. São Paulo: ática,
2006.
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. São Paulo: ática, 1987.
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
REZENDE, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. Rio de Janeiro: Objetiva,
2005.
TORRONI-REIS, M. F. C. A pesquisa e a produção de conhecimento, 2010. Disponível em:
< http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/195/3/01d10a03.pdf>. Acesso:
10/09/2014.

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