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Resumo
Enquanto representação das relações humanas, a literatura nos possibilita pensar acerca dos papéis que
homens e mulheres desempenham na sociedade, bem como refletir acerca dos valores e ideologias que
regulam a sociedade nas mais diferentes épocas. Nesse sentido, embora temas, como a morte, o amor,
a saudade, permaneçam e se repitam na literatura, os valores atribuídos a essas temáticas mudam
conforme o contexto temporal e espacial, visto que são experimentados de modo peculiar por cada
sujeito. Assim, a compreensão do significado da morte, a partir de obras literárias pertencentes a
contextos de produção e circulação distintos, pressupõe que se leve em consideração as visões de
mundo relativas a cada época representada. Nesse artigo, buscaremos discutir o significado da morte
em dois romances: Lucíola, de José de Alencar e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Resende,
a partir das experiências vividas pelas personagens centrais dos respectivos romances, quais sejam:
Lúcia e Irene. O conflito que permeia o universo feminino dessas personagens - o fato de serem
prostitutas - contribui para a construção de significados em torno da morte. Porém, esses significados
são perpassados por visões de mundo adjacentes ao modelo de época representado em cada obra.
Desse modo, a visões de mundo das personagens, o modo como compreendem a si mesmas e de como
aceitam ou não a condição de mulher prostituída, além da forma como a sociedade visualiza o
fenômeno da prostituição em cada momento histórico, corrobora para a construção do significado da
morte enquanto libertação ou punição nas obras estudadas.
Introdução
Neste texto, apresentamos uma breve reflexão em torno dos romances Lucíola, de José de
Alencar e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, levando em consideração os
significados da morte nos referidos romances.
Desse modo, nossa reflexão parte da compreensão de que o contexto de produção e
circulação das obras em análise são decisivos para aferição dos valores e significados
presentes em algumas temáticas, adjacentes a esses romances, tais como: o amor, a
prostituição, a morte.
Esses temas constituem elos importantes para configuração dos romances em análise,
visto que, sendo prostitutas, a relação de amor, experimentada pelas personagens centrais
dessas obras, perpassa diversos problemas e enfretamentos, corroborando na morte delas.
Assim, o nosso enfoque, no que se refere à analise dessas obras, será o estudo
comparativo das personagens Lúcia, de Lucíola, e Irene, de O voo da guará vermelha,
levando em consideração a visão de mundo adjacente a cada obra.
Metodologia
O final feliz esperado – aquele em que os casais constituem uma linda família e são
felizes para sempre – não ocorre. Seria contrária a lógica do romance que busca resolver o
conflito da dicotomia vivenciada por Lúcia. Desse modo, só a morte, dissolvendo a matéria,
poderia libertar Lúcia do seu passado de sombra e devolver para ela a pureza perdida.
Os conflitos vivenciados por Paulo e Lúcia revelam a complexidade dessas
personagens o que nos permite caracterizá-las, de acordo com Cândido (2009), como
personagens esféricas.
Já em O voo da guará vermelha não há essa relação punitiva. A morte de Irene surge
como libertação de todos os sofrimentos vividos por ela.
Sendo uma das temáticas presentes no romance, a morte recebe uma conotação. O
fato de ser aidética faz com que ela conviva com a iminência da morte em seu cotidiano. Em
alguns momentos, como no trecho abaixo, o pensamento da personagem sugere o anseio pela
morte. Pois, para ela, a morte seria a única forma de libertar-se do sofrimento em que vivia.
Engraçada aquela assistente social, “deixa essa vida”, esta certo, eu deixo
essa vida, não me importo de tudo acabar agorinha, que esta minha vida só
tem uma porta, que dá para o cemitério, mas a senhora vai tomar conta do
menino e da velha? Era bom, que Irene já não consegue levar dinheiro toda
semana […]. (REZENDE, 2005, p. 13).
Agora ela está tão fraca, a morte vive espreitando, é preciso defender-se,
nunca estar assim aérea, distraída, sonhadora, nunca se meter com amor, que
amar enfraquece a gente, baixa a guarda,deixa frouxa. Amor, coisa perigosa,
um luxo, só pra quem pode, Irene não, nunca pôde, água de sal nas feridas,
mas o coração insiste, nãoarrefece, resiste, bombeia amor pelas veias, pode,
sim, Irene pode desejar viver de amor, quanto mais lhe doem os golpes dos
pés do homem tarado, mas quer que o outro apareça, quer sobreviver,
viver.(p. 179-180).
Irene, que havia sido agredida por um freguês, inicia uma reflexão sobre o amor.
Como podemos observar no trecho acima, o amor é entendido como o sentimento que
enfraquece as pessoas por torná-las mais sonhadores e distraídas. Assim, Irene deseja culpar o
amor pelo fato de não ter desconfiado do homem que a espancara. Ora, é em decorrência
desse espancamento que a personagem morre. Poderíamos, então, culpar o amor pelo
incidente com ela? Porém, Irene arrebata essa possibilidade, pois é amor que o seu coração
bombeia, e é nesse amor que ela encontra forças para desejar sobreviver, viver.
Por outro lado, na afirmação: “Amor, coisa perigosa, um luxo, só pra quem pode”, a
personagem mais uma vez esclarece que o amor não pode ser vivido por uma prostituta. Mas,
ainda assim, nos últimos momentos é a lembrança do que amor que sonhara e do amor que
viveu que se entrelaçam na memória de Irene e a faz, em devaneio, chamar, clamar, implorar
por amor:
Que ele venha logo, agora, eu já não posso esperar, que venha logo e me
alcance, Romualdo, Romualdo, não demore, já não posso, que alguma coisa
se rompeu onde eu tinha o coração, Romualdo, chegue aqui, você veio me
buscar?,com você eu vou, Rosálio, me solte no azul sem fim. (p. 180).
Em “ me solte no azul sem fim”, há, verdadeiramente, um apelo por liberdade, visto
que o azul sem fim simboliza o azul do céu e que Irene é comparada a uma ave: alçar o voo
da liberdade sem fim do céu. No entanto, o amor da infância – da pureza de Irene – não
vem,porque só quem pode ajudá-la a alçar esse voo é Rosálio: o amor que aceitou a sombra e
a luz de Irene, o amor que deu-lhe sentido à vida até o último momento: “Rosálio colhe nos
braços a sua guará vermelha, colhe na boca o sorriso que verte um encarnado vivo e a cobre
inteira de plumas, tingindo todas as mágoas,transfigurando-lhe a dor” (p. 180).
Nessa passagem, há uma reflexão profunda acerca do amor. O amor e a morte
contemplam-se na dor que é transfigurada ao simples contato com o outro.Nesse sentido, o
amor que une Rosálio e Irene aproxima-se do amor divino. Ora, é o Cristo quem contempla o
amor em seu sentido extremo ao morrer na cruz, e sua ação tem a finalidade de salvar e
libertar toda a humanidade da dor e do sofrimento:transfigurar a dor.
Rosálio não é o Cristo, mas o homem que apresenta qualidades superiores aos demais
dentro do contexto da narrativa: aceita a prostituta sem julgá-la; partilha com ela o alimento,
as alegrias e as dores; ensina e aprende; age com solidariedade, mansidão e respeito e é fiel ao
seu sentimento por Irene. Em Rosálio,a capacidade de, suportando a dor, iniciar um
recomeço, demonstra a maturidade e a serenidade em ligar com as adversidades que a vida
impõe:
O homem lança ao quarto vazio um último olhar dolorido, uma das mãos
apertando a alça de sua caixa, sua âncora nas ondas e correntezas da vida,
que, com os livros e brinquedos que há anos vem carregando, leva agora
uma camisa e um vestido coloridos, o seu chapéu de palhaço e um caderno
todo escrito, e a outra mão de mansinho puxando a porta empenada que não
se fechará inteira, há de ficar no coração de Rosálio, deixando passar os raios
da pura luz que é Irene, depois de enterradas as sombras [...].Rosálio sente
que agora, e ainda por muito tempo, não deseja outra mulher, tem uma
mulher por dentro e vê claro à sua frente o destino que lhes cabe, [...]é o
destino que a vida dele e de Irene, embolada, escreveu com pó de estrelas
num papel azul sem fim: vou para o meio das praças, vou para o meio do
mundo contar tudo o que já sei e mais as coisas que só posso conhecer
quando disser [...] (Idem, p. 180).
Rosálio recomeça e deseja levar consigo a “luz que é Irene, depois de enterradas as
sombras”, pois assim como Lúcia, Irene tem um passado negro e um corpo pecaminoso que
deve ser enterrado.
A morte, em O voo da guará vermelha,recebe um sentido libertador e é aceita de
forma mais serena pelas personagens que não protestam à sua chegada.Não cenas de angústia
e desespero como em Lucíola. Apesar da dor que Rosálio revela levar dentro de si, ele retoma
a vida de imediato: sai para contar histórias: […] soltando minhas palavras, sem teto, sem laje
ou telhado por cima de minha cabeça que me separe de Irene, que eu sei que por onde eu for a
minha guará vermelha, minha mulher encantada, vai sem preme acompanhar, voando entre o
azul e mim, e ela quer ouvir meus contos. (Idem, p. 180).
Nesse trecho, ao revelar que Irene sempre irá acompanhá-lo para ouvir assuas
histórias, Rosálio admite a separação de ambos no plano da matéria, mas nãono plano
espiritual. Assim, a personagem afirma o não rompimento total entre os dois. A morte, aqui,
não é definitiva, mas encarada como uma passagem para outro plano.
Há, portanto, uma apelação ao sobrenatural, visto que Rosálio afirma que sua guará o
acompanhará por onde ele for. Por seu turno, em Lucíola, Lúcia doa seu espírito a Paulo,
demonstrando, assim, que pretende manter-se unido a ele, eternamente, por meio do plano
espiritual. Desse modo, a morte não pretende romper, definitivamente, os laços estabelecidos
pelos amantes.
As diferenças notáveis, no que se refere à apresentação da personagem; às relações
entre os amantes; ao modo como as personagens enxergam a prostituição;à forma como a
morte é vivenciada em Lúcia e em Irene revelam a imposição ideológica na constituição do
enredo e dos elementos da narrativa.
Em Lucíola a necessidade de autopunição é reflexo da imposição religiosa na
sexualidade humana, sobretudo, da mulher. Em O voo da guará vermelhas e sobrepõe a
condenação social, visto que Irene, além de prostituta, é pobre e aidética. A moral religiosa,
perdendo supremacia na contemporaneidade, não opera no sentido de puni-la, mas a
sociedade excludente e individualista o faz,condenando-a a rejeição, ao abandono, à violência
e à morte.
Das relações estabelecidas, em ambas as obras, e representadas pelas personagens,
cabe-nos ressaltar a importante reflexão em torno da condição da mulher que, embora a
distância de um século e meio, continua a ser dividida pela dicotomia do sexo partido:
dividida entre Eva e Maria; entre flor e o fruto; entre a santa e a profana.
Considerações finais:
Referências