Organização Social e Movimentos Sociais Rurais: Ivaldo Gehlen Daniel Gustavo Mocelin

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Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias

Organização social
e movimentos sociais
rurais
Ivaldo Gehlen
Daniel Gustavo Mocelin
Organizadores

2ª edição revisada e ampliada


Reitor
Rui Vicente Oppermann
Vice-Reitora e Pró-Reitora
de Coordenação Acadêmica
Jane Fraga Tutikian

EDITORA DA UFRGS
Diretor
Alex Niche Teixeira
Conselho Editorial
Álvaro Roberto Crespo Merlo
Augusto Jaeger Jr.
Carlos Pérez Bergmann
José Vicente Tavares dos Santos
Marcelo Antonio Conterato
Marcia Ivana Lima e Silva
Maria Stephanou
Regina Zilberman
Tânia Denise Miskinis Salgado
Temístocles Cezar
Alex Niche Teixeira, presidente
Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias

Organização social
e movimentos sociais
rurais
Ivaldo Gehlen
Daniel Gustavo Mocelin
Organizadores

2ª edição revisada e ampliada


© dos autores
1.ª edição: 2009

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Coordenação da Série:
Laura Wunsch, Gabriela Trindade Perry, Tanara Forte Furtado e Marcello Ferreira

Revisão: Equipe de Revisão da SEAD


Capa: Ely Petry
Editoração eletrônica: Bruno Assis

Curso de Graduação Bacharelado em Desenvolvimento Rural (PLAGEDER)


Coordenação Pedagógica: Rumi Regina Kubo
Coordenação de Tutoria: Laura Wunsch
Coordenação Núcleo EAD: Tânia Rodrigues da Cruz
Secretário: Jorge Luis Aguiar Silveira

A grafia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009.

O68 Organização social e movimentos sociais rurais [recurso eletrônico] / organiza-


dores Ivaldo Gehlen [e] Daniel Gustavo Mocelin ; coordenado pela SEAD/
UFRGS . –– dados eletrônicos. –– 2. ed. rev. e ampl. –– Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2018.
124 p. ; pdf
(Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias)
Inclui figuras, quadros e tabelas.
Inclui bibliografia e glossário.
1. Sociologia rural. 2, Desigualdade social. 3. Mobilidade social. 4. Estra-
tificação social. 5. Organização social – Associativismo rural. 6. Movimentos
sociais rurais. I. Gehlen, Ivaldo. II. Mocelin, Daniel Gustavo. III. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Secretaria de Educação a Distância. IV. Série.
CDU 316.334.55:316.44
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin – Bibliotecária responsável CRB10/979)
ISBN 978-85-386-0432-7
UNIDADE 2 39
......

ATORES SOCIAIS

Ivaldo Gehlen

INTRODUÇÃO

Nesta segunda Unidade, serão aprofundados conceitos introduzidos na


primeira Unidade, particularmente o de ator social, relacionando-o com ci-
dadania e com identidade sociocultural. Serão também apresentados alguns
conceitos auxiliares, na perspectiva desta disciplina, tais como exclusão social,
preconceito, estigma, patrimônio sociocultural, entre outros. O foco será a so-
ciedade, em sua acepção conhecida como sociedade civil, mediante (i) mani-
festações de interesses articulados pelos atores sociais e (ii) manifestações de
valores éticos e socioculturais da vida cotidiana expressos coletivamente, e que
constituem a cidadania e as identidades.
Os atores sociais manifestam interesses sociais, econômicos, políticos,
culturais, além de outros, de forma articulada, via de regra expressos por meio
de formas perceptíveis, legítimas e geralmente regidas por legislação, normas,
estatutos ou regimentos. Outras vezes, a manifestação coletiva dos atores sociais
não é regida burocraticamente, como, por exemplo, um movimento social, ou
o comportamento dos que ocupam uma mesma posição na estratificação social;
mas deve obedecer a uma ética consensualmente aceita.
As identidades socioculturais, também por vezes denominadas simples-
mente de sociais, expressam, sobretudo, valores de convivência, de segurança,
de bem-estar. As pessoas podem viver longe e, no entanto, formar uma espécie
de comunidade, pois compartilham valores existenciais e de orientação que dão
40
...... um sentido específico a suas vidas. Habitualmente, esses valores são legitimados
pela tradição, pelos costumes que definem uma espécie de cultura específica.
Todos sabem como agir em tais ambientes, independentemente das posições
sociais que cada um ocupa na estratificação social, na totalidade à qual pertence.
Os atores sociais ocupam diferentes posições sociais (estratos), que ex-
pressam desigualdade social, e suas atitudes são regradas normativamente por
valores éticos compartilhados; mas vivenciam, ao mesmo tempo, valores cultu-
rais específicos ou identidades que expressam as diferenças.
Conceituar sociologicamente ator social implica identificá-lo numa rela-
ção alterativa, validada pelo(s) outro(s) e situá-lo(s) numa realidade social me-
diada por relações e por concepções de mundo, por estilos de vida, por ativida-
des, pela natureza, pela religião, enfim, pela realidade complexa que os cerca.
O texto que se segue é uma espécie de guia para introduzir esta temática.
Todos nós, indistintamente, nos movemos e nos orientamos na vida cotidiana
por esses dois sistemas de valores ou por essas duas dimensões de referência –
valores éticos e valores culturais –, tendo ou não consciência disso.

2.1 ATORES SOCIAIS COMO CIDADÃOS DESIGUAIS

A cidadania remete-nos à condição da existência social referenciada numa


relação estabelecida com uma totalidade, por vezes também chamada de so-
ciedade global, que pode ser de abrangência local (o município), regional (o
estado), nacional (a nação) ou universal. Esta última abrangência, a da cidadania
universal, está crescentemente presente no debate político e em alguns movi-
mentos sociais. É global no sentido histórico de referir-se a uma determinada
totalidade social, à qual cada um pertence, pelas normas estabelecidas.
Nos contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal
normativo substancial de pertença e participação numa comu-
nidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhe-
cido como um membro pleno e igual da sociedade, com o
direito de participar no processo político. Como tal, trata-se
de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são
governadas por monarquias ou ditaduras militares são súditos
e não cidadãos (KYMLICKA, 2007, p. 2).
Na Grécia Antiga, a cidadania era definida e validada pelo lugar ocupado 41
......
na Cidade-Estado; no Império Romano, era atribuída pelo imperador a uma
parte da sociedade e válida até os confins do Império; na sociedade medie-
val, havia dupla possibilidade de ser cidadão: nos feudos, como concessão do
Senhor, com validade no território local, e nos burgos (villes, cidades), como
concessão do poder local. Mas também começa a se construir o conceito de
cidadania como direito e como condição de liberdade (igualdade formal) a ser
gozada no território citadino.
Durante a Idade Média, na Europa, avançou a construção do conceito de
igualdade social, fundado na tradição judaico-cristã, que o vincula ao conceito
de liberdade individual e de mérito pessoal (princípio da salvação), embora, na
prática, persistissem as estratificações sociais de dominação, de desigualdade
social. A separação entre o saber teórico e o saber prático em relação às ativida-
des ligadas à produção de bens materiais e aos serviços inviabilizava a invenção
e a inovação tecnológica nesses tipos de atividades. Aos poucos, esse divórcio
gerador de dicotomia foi superado por um novo paradigma teórico-científico e,
portanto, metodológico, de produção e validação do conhecimento, centrado
na capacidade do ser humano e na realidade. A superação dessa dicotomia foi
condição necessária para o desenvolvimento de tecnologias que propiciaram
aumento crescente na produtividade do trabalho, dando origem à Revolução
Industrial. Com a Revolução Industrial, também se atribuiu um novo signifi-
cado à noção do tempo, o qual passou a reger grande parte da vida cotidiana
das pessoas. Criou-se o tempo útil, medido pelo relógio e valorado pelo salário.
Com isso, universaliza-se de forma imperativa o controle social pelo uso desse
tempo, por meio da medição (horificação) das atividades socialmente conven-
cionadas, especialmente as que são conceituadas como trabalho.
No coração desta mutação qualitativa está o tempo restrito,
imposto pelo produtivismo, primeiro na Inglaterra, depois
em todo o continente. O divórcio entre tempo de trabalho e
tempo livre se somou àquele entre lugar de trabalho e domi-
cílio. A hora de trabalho tornou-se aos poucos a unidade de
referência, depois a medida de produtividade, simbolizada em
seguida pelo relógio, que vigia à porta de entrada das usinas
(NEUFVILLE, 1996, p. 46, tradução nossa).
42
...... A burguesia, classe que emerge dos mercadores e que se consolida por
meio da mobilidade social proporcionada pela indústria e pelo comércio de
mercadorias, aos poucos conquistou o poder político e nele se consolidou me-
diante a acumulação de capital, resultante do controle da produção de merca-
dorias e do comércio de produtos materiais e simbólicos, como, por exemplo,
o dinheiro. A politização do conceito judaico-cristão de igualdade fez parte
de sua estratégia de se tornar dominante e hegemônica, atribuindo-lhe uma
conotação positiva e universalizando-a, no sentido de conceber todos como
formalmente iguais. Porém, cada sujeito devia merecer esse atributo, impon-
do-se o tempo de trabalho produtivo como estratégia meritocrática para que
se cumprisse essa condição. Por consequência, a cidadania política passou a ser
a condição de inclusão social, merecida individualmente, tendo como contra-
ponto a exclusão social, provocada pela falta de méritos para usufruir os direi-
tos inerentes a esse estatuto. Por isso, atualmente, nas sociedades influenciadas
pela noção ocidental de cidadão, a cidadania é, antes de tudo, uma questão de
direitos mais do que de obrigações ou deveres. Concomitantemente a esse pro-
cesso, desenvolve-se o conceito de privado, apropriado pela burguesia e ainda
fortemente sustentado pelas classes dominantes, que defendem o direito de
sobrepor os compromissos ou direitos privados aos direitos políticos e sociais
que configuram a vida pública.
A cidadania é um direito público, universal, porém sob contrato negocia-
do. A moeda de troca passa a ser o trabalho ou, mais recentemente, uma ativi-
dade qualquer, desde que socialmente reconhecida (desportista, ator, escritor,
etc.), e ao compromisso político corresponde a liberdade, inclusive religiosa,
no território, na totalidade de pertencimento que normalmente corresponde à
nação. Alguns direitos universalizam-se, como acesso ao saber, à alimentação, à
saúde, à liberdade política. O cidadão moderno de direito, no território nação,
é, portanto, uma construção histórica.
Pelo contrato, o cidadão tem direito a reproduzir-se numa família, por
meio dos recursos disponibilizados pela sociedade à qual pertence. Por isso,
o desempenho competente de uma atividade – identidade socioprofissional –
que garanta o sustento é um dever, e o Estado deve prover a essa oportunidade,
mas cada um é livre para negociar sua atividade e, por vezes, seu valor, para
decidir suas preferências políticas (voto), para definir se vai, e com quem, cons-
tituir família. O Estado não é seu dono, mas seu tutor; ou, segundo tendência
recente, o Estado, por meio dos governos, coordena, organiza e gerencia os 43
......
direitos e deveres ou compromissos dos cidadãos.
A participação política é vista como uma atividade ocasional,
por vezes desagradável, que é necessária para assegurar que o
governo respeite e apoie a liberdade das pessoas para se en-
tregarem aos seus projetos e interesses pessoais. O pressupos-
to de que a política é primariamente um meio para proteger
e promover a vida privada está subjacente à maior parte das
perspectivas modernas da cidadania. Esta atitude reflete o em-
pobrecimento da vida pública de hoje, em contraste com a
cidadania ativa da antiga Grécia (KYMLICKA, 2007, p. 3).
Ao assegurar os direitos civis, políticos e sociais a todos, o Estado garante a
seus membros a possibilidade de participarem plenamente na vida societária. O
desafio para o cidadão moderno é construir alternativas de participação, tanto
no trabalho quanto na vida pública, societária, num esforço coletivo de relati-
vização do privado. O desafio é fazer emergir um cidadão que se oriente pelo
convívio com os que são cultural ou etnicamente diferentes e que, ao mesmo
tempo, reconheça as competências profissionais, priorizando conceitos de sus-
tentabilidade para o equilíbrio social, cultural, ambiental, econômico, político
e institucional; ou seja: fazer emergir um cidadão múltiplo, que se faça repre-
sentar de múltiplas formas. Para isso, está em processo a criação, por consenso,
de um espaço público que se fundamente nas noções, ainda em construção, de
política pública e de política social.

2.2 ATORES SOCIAIS COMO IDENTIDADES SOCIOCULTURAIS


DIFERENTES

A identidade sociocultural remete-nos à condição de existência privada,


referenciada na relação com o meio (intra), com o chamado local, que possui
abrangência e conteúdos não padronizados; por isso, precisa ser definido em
cada situação, salvo quando se refere a conceitos já consagrados, como comuni-
dade, município, estado, nação etc. É privado no sentido de referir-se a deter-
minada totalidade cultural, aquela à qual os atores sociais têm pertencimento.
44
...... Assim, entre os ciganos, ou entre os caboclos, ou entre os indígenas, ou entre
os japoneses, ou entre os poloneses, etc., cada um se define pela semelhança,
pelos gostos, pelo cheiro, pelos hábitos, validados pelos que se orientam ou se
referenciam pelo mesmo conjunto ou sistema de valores socioculturais. Nor-
malmente, possuem o mesmo cheiro, entendem-se por gestos ou meias pala-
vras; enfim, orientam-se por costumes ou hábitos particulares, que possuem
não raras vezes legitimidade social coercitiva. Não há normatização burocráti-
co-legal: as leis são “de sangue”, não escritas, mas passadas pelos costumes ou
oralmente. Pertencer a uma identidade não é uma concessão, nem uma questão
de direito formal, mas de vida, de existência em si mesma.
Na América Latina, muitas identidades socioculturais, sobretudo as de
indígenas e as de africanos escravizados, foram massacradas pela imposição, por
parte dos colonizadores europeus, dos valores da cidadania acima descrita, em
substituição aos valores identitários. Em nome dessa civilização ocidental cristã,
impôs-se aquela cidadania, subjugando essas identidades como se ocupassem
posição inferior na estratificação social. De fato, a civilização colonizadora im-
pôs o não-pertencimento ou a não-adesão aos valores civis ou identidades so-
cioculturais dos colonizadores como critério de desqualificação social, ou seja,
de desigualdade social. Portanto, nesse caso, adotar orientação de uma conduta
privada do sistema de valores socioculturais não somente significa ser diferente
mas também constitui um critério de desigualdade social. Os valores de cida-
dania se sobrepuseram, numa tentativa autoritária, higienizadora e genocida
de construir uma única referência identitária universal. Há grupos identitários
específicos que não se constituem em identidade territorializada ou comunitá-
ria, mas se referenciam culturalmente por valores comuns que orientam suas
condutas, embora dispersos difusamente. Atualmente, adquirem bastante visi-
bilidade os que se organizam e se expressam em movimentos sociais, que con-
gregam várias identidades em relação a vivências sexuais, às opções religiosas, à
adoção de costumes coletivos, sobretudo entre jovens, a um patrimônio cultural
historicamente construído, como, por exemplo, os quilombolas. Sempre que
valores políticos ou de cidadania se sobrepõem de forma absoluta e destrutiva
a valores culturais ou religiosos, desrespeitando as diversidades socioculturais,
geram-se regimes de governo autoritários, ditatoriais, em geral sanguinários.
Além da imposição violenta ou moral, outro recurso utilizado para a so- 45
......
breposição da cidadania a identidades, principalmente em sociedades democrá-
ticas, é a criação e difusão de preconceitos raciais, culturais ou religiosos. Esses
preconceitos aos poucos são naturalizados e se transmutam em estigma, como
explica Gehlen (1998, p. 138), com base na concepção de Goffman (1976):

O estigma atribuído aos excluídos transforma as vítimas nos


primeiros responsáveis pelo seu fracasso. A sociedade cultu-
ralmente dominante estabelece os atributos (“naturais”), que
assumem normatividade de conduta, “consensuais”, estabele-
cendo categorias e hierarquias sociais. Estigmatizando algumas
categorias, afirma-se a ordem social dominante. Responsabi-
lizam-se essas categorias sociais estigmatizadas, excluídas, pela
própria condição, culpabilizando-as pela incapacidade de res-
posta ao modelo, ou ao trabalho, no caso dos caboclos. Com
isso, o processo social excludente apresenta as diferenças so-
ciais como naturais, invertendo a percepção do real.

O convívio entre pessoas que se autodefinem pertencentes a identidades


socioculturais diferentes é sempre tenso e exige um esforço de aceitação e res-
peito, a começar pelo reconhecimento do outro. Nas sociedades democráticas,
esse princípio precisa ser respeitado para o convívio comum. Por vezes, é ne-
cessário criar, ao menos temporariamente, políticas inclusivas ou compensató-
rias específicas para determinados grupos sociais – no caso brasileiro, em geral
identificados com identidades socioculturais ou mesmo com expressão étnica.
Isso é feito, por um lado, com vistas à dignidade humana; por outro lado, tam-
bém para promover mobilidade social ascendente, objetivando a diminuição da
desigualdade social. Portanto, este tema permanece atual e presente, inclusive
nos meios de comunicação social. Vale a pena aguçar o olhar para perceber
que vivemos numa sociedade não somente marcada pela desigualdade social
mas também fundada numa complexidade de identidades representadas, que
deixam seus contributos na vida cotidiana.
46
...... 2.3 O LÓCUS DE AÇÃO DOS ATORES SOCIAIS

O local pode ser identificado por suas características de cidadania e defi-


nido territorialmente ou por valores cívicos de reconhecimento público. Tam-
bém pode ser entendido como o lócus associado a valores identitários, porém
definidos territorialmente.
O local e a comunidade geralmente são identificados por suas caracterís-
ticas de cidadania, pelo trabalho, pela participação na vida local por meio da
reprodução de valores democráticos naquele território, pelos valores cívicos de
reconhecimento público, cultivados pelos laços sociais e afetivos nas relações
sociais. O local também pode ser reconhecido como lócus identitário, por ve-
zes multifacetado, expressando as diferenças, porém definido territorialmente,
onde se cultivam tradições culturais específicas e, por vezes, se elaboram sín-
teses universais.
Diante da globalização do consumo de bens materiais e culturais e da
cidadania, as identidades também têm algumas oportunidades de afirmar e pu-
blicizar seus conteúdos específicos, podendo constituir uma melhor referência
para o sentido do cotidiano das vidas das pessoas. As conquistas tecnológicas
nos últimos dois séculos propiciaram oportunidades quase sem limites de do-
minação pelo controle do trabalho. As novas tecnologias de comunicação, de
informação e de produção agora oferecem novas chances para superar os limi-
tes do espaço-tempo. Contraditoriamente, recriam as condições para a intera-
ção intra e interidentidades em determinado território, possibilitando abrir-se
para o reconhecimento de outras identidades e a aceitação das diferenças no
âmbito local.
A construção do desenvolvimento sustentável tem por base o local e o
patrimônio sociocultural (qualificação dos atores sociais, identidades sociocul-
turais etc.) das comunidades. O patrimônio sociocultural de uma comunidade
ou sociedade local pode ser compreendido como sendo o conjunto de carac-
terísticas, intrínsecas a uma comunidade, que podem contribuir (ou frear) as
ações em prol de seu desenvolvimento. Por isso, o local é o território onde se
desenvolve uma determinada economia local, com suas relações específicas,
superando o rural e o urbano, e estabelecendo articulações internas de respeito
e valorização da diversidade e de acordos solidários de cidadania, com vistas ao
desenvolvimento sustentável.
2.4 ATORES SOCIAIS, PRODUTORES DE FORMAS SOCIAIS 47
......
ESPECÍFICAS DE USOS DA TERRA

A terra não é apenas um espaço necessário à produção agropecuária. Ela


possui um significado político muito importante, definido culturalmente, ou
seja, pelos interesses de grupos sociais ou comunidades identitárias. Portanto,
há uma dimensão do conteúdo do termo terra que expressa relações sociais e,
ao mesmo tempo, define formas de relações sociais segundo os valores de ci-
dadania e de identidade desses grupos. Por isso, a terra é de certa forma criada
segundo ideologias e segundo interesses de classe.
No Brasil, identificam-se claramente pelo menos oito especificidades ou
tipos de atores sociais diferentes, cada qual definindo uma forma específica de
ocupação e de uso da terra. Todas foram se criando historicamente. Umas es-
tão em mobilidade ascendente, outras em mobilidade descendente. No quadro
abaixo, mostramos essas formas sociais de maneira sintética, tendo como crité-
rios algumas variáveis (cabeçalho superior) e alguns indicadores (no interior do
quadro) fundamentais para sua análise e compreensão.
Na coluna vertical do quadro, estão os diferentes atores sociais, que con-
formam identidades específicas resultantes de sua construção histórica, como,
por exemplo: os latifundiários, que estão em mobilidade descendente; os in-
dígenas e os granjeiros, que se mobilizam de forma socialmente ascendente.
Como se pode também notar, a relação de cada tipo com o meio ambiente di-
fere segundo os interesses que orientam a apropriação e o uso da terra. Obser-
ve-se que o significado ou conceito de trabalho difere entre cada forma social
de apropriação e uso da terra, expressando parte das respectivas identidades e
possibilitando uma compreensão histórica de cada tipo de ator social.
48
......

Quadro 2 - Atores sociais rurais e formas sociais na agricultura segundo alguns indicadores (sul do Brasil)

OBJETIVO /
INDICADORES/ ORIGEM TECNOLOGIA / IMPACTOS PERSPECTIVAS /
TERRA TRABALHO DESTINO DO
FORMAS SOCIAIS Étnico-Social RACIONALIDADE AMBIENTAIS OBSERVAÇÕES
PRODUTO

Serviço não
Portuguesa Sesmaria, nobre, mas Exportação Especulador
Extensiva/ extrativa (prestígio do de Médio: tecnologia
LATIFUNDIÁRIA (Alentejo), fonte de poder necessário. (subordina públi-
Tradicional / mista. fora – desqua- tradicional usa fogo
Hispânica. Patrimônio persona- Trabalhador = co ao patrimônio),
lifica consumi- e desmatamento.
lizado, absolutizado. Patrimônio dor nacional). Em extinção.
personalizado.

Centralida- Convencional Forte: degradação.


Diversa: de ética / Gera- (moderna), Desafio:
dor de bens e Resiste a mu- competitividade
CAPITALISTA Latifundiária, Mercadoria / capital, Produtivista (uso dar para sus-
de riqueza, Mercados diversos/ (produtividade),
Burguês Militares, Meio de acu- intensivo de equipa- tentabilidade,
agregação de valor. Ajustes
(TRADICIONAL) Mobilidade social mulação. Tempo > mento e insumos), Granjeiro inte- tecnológicos
Ascendente. trabalho = Forte dependência de rage com mais (racionalizados).
Produtividade. fora da propriedade. sensibilidade.

Racionalizada,
Centralidade Sustentabilida- Racionalizado:
Mercados diversos,
Mobilidade ética/ Gera- de competitiva,
Agroindústrias, Sensibilidade Em expansão,
GRANJEIRO social ascendente, Capital familiar, dor de bens e
(uso intensivo de ambiental
Diversificação, de riqueza, Região como valor Compromisso
(EMPRESÁRIO) Meio de riqueza. tecnologias/ gestão), (tecnologias,
simbólico de com o local.
Investimento. Eficiência/ Dependência de discurso éti-
mercado. co sobre).
Competitividade. informação e de
comunicação.
(Continuação do Quadro 2)

Centralidade a) Convencional a) Agroindústria/


Forte:
ética/condi- (acumulação/ Mercado Desafio:
depredatório
ção de inclusão. qualidade de vida); interno/exportação; competitivida-
FAMILIAR/MO- (natureza selva-
Imigração italiana, Lugar de trabalho/ a) Trabalho > b) Tradicional b) Mercado regio- gem: substituí-la). de (qualidade).
DERNO reprodução familiar,
alemã, polonesa, tempo = (reprodução/ nal/diversidade; Em resseleção/
COLONIAL Tende a aceitar
russa, ucraniana Patrimônio familiar. produção; qualidade de vida); c) Mercados lo- exclusão pela
(COMERCIAL) mudar para
e outras. b) Tempo > c) Sustentável cal/agroindustrial, sustentabilidade. qualificação e
trabalho = (qualidade de vida/ caseira eficiência.
produtividade. reprodução). (autoconsumo).

Necessário para Fraco:


FAMILIAR Imigrantes, Fonte de vida/ sobreviver, Tradicional, Subsistência, Interdependência Autorreprodutivida-
reprodução familiar, Não central, braçal/animal, em relação ao de comprometida,
TRADICIONAL/ Miscigenada Autoconsumo, meio natural.
CABOCLA (SUB- (nacional única Patrimônio Trabalho> faxinal/pousio. Venda/troca de Readaptar siste-
SISTÊNCIA) social-familiar. tempo = Ética (religiosidade ma produtivo.
da colonização). excedentes. holística,
subsistência.
cosmologia).

Fonte de vida, Não trabalha “Primitiva” (Brasil) Consumo familiar, Muito fraco: Em reconhe-
Autóctone. Patrimônio da (segundo ótica Tradicional, Excedente para Forte interdepen- cimento,
INDÍGENA comunidade, nossa), a comunidade. dência em rela- Crescimento
braçal/instrumen-
uso familiar Atividade de tos rudimentares. ção à natureza. demográfico.
(rodízio). sobrevivência.
49
......
50
......

(Continuação do Quadro 2)

Patrimônio da Necessário para Tradicional Consumo familiar, Fraco: Em reconheci-


comunidade, uso sobrevivência, braçal/animal. Excedente para Interdependência mento/afirmação,
QUILOMBOLA familiar (fixo). Discurso ético troca e venda. em relação à Possível expan-
Afros, escravos
“livres”. sobre valor, não natureza (mística). são e inclusão.
na produtividade.

Lugar de trabalho Produzir bens, Subordinado ao Para contratante. Depende de Profissionalização


Diversa. cativo. Tempo > trabalho contratante. quem contrata. Estável.
ASSALARIADOS = produtividade.

Diversa Espaço de Atividade eventual Dependente de Para quem solicita. Depende Diminuição da
OUTRAS: para sobreviver, quem solicita. (em geral fraco). possibilidade de
biscateiros, (excluídos). Sobrevivência.
Troca de favores. reprodução.
andarilhos

Fonte: Elaborado pelo autor.


Toda transformação estrutural gera novas referências de valores de con- 51
......
dutas dos atores sociais, sejam éticos, sejam morais, sejam sociais. Sempre re-
criam sonhos e idealizações, por vezes utopias, do futuro. Se nos debruçarmos
com criticidade e com seriedade sobre o que está em processo atualmente,
talvez percebamos que temos a oportunidade de participar de profundas trans-
formações que estão alterando o modus vivendi contemporâneo e que marcarão
esta e futuras gerações. Percebe-se claramente uma proeminência da dimensão
cultural que valoriza as diferenças em vez de aniquilá-las. O social se expressa
por meio das organizações, da solidariedade, que se utiliza de tecnologias in-
terativas.
Essas transformações alteram o conteúdo dos territórios de pertencimen-
to, pela valorização do ator social, pelas novas formas de inclusão e de perten-
cimento. Essa valorização de organizações societárias com base principalmente
nas atividades, restringe a função da família, para a qual diminuem cada vez
mais as funções que lhe eram imputadas no passado, projetando-se sua sobre-
vivência restrita a ser o lócus identitário e igualitário.
O desenvolvimento local, porém, pode ser concebido apenas em seu veio
de cidadania, sendo, nesse caso, necessário compreender suas possibilidades e
seus contributos cívicos (para a cidadania), como participação local em ativida-
des multifacetadas: culturais, econômicas, políticas, religiosas, sociais e outras.
Porém, pode também ser concebido como o resultado de um engajamento
dos cidadãos em identidades (étnicas, por exemplo) que buscam construir ou
resgatar suas matrizes originais, seu bom-viver, seu equilíbrio, sua estabilidade,
por meio do convívio criativo, multifacetado, entre diferentes, porém iguais.
As transformações em andamento, principalmente nos campos citados
do conhecimento científico, das comunicações e das informações, afetam for-
temente o modo de vida humano e, por consequência, as relações sociais, in-
duzindo a repensar o paradigma de relação, entre os humanos, com a natureza
e com o religioso. No rural, o impacto é marcante tanto no que se refere às
relações quanto no que se refere às atividades profissionais, exigindo novas pos-
turas e competências. A necessidade crescente de interatividade induz o desiso-
lamento, a ruptura de cercas simbólicas, a criação de instituições de coopera-
ção, a formação de redes de comunicação e de intercâmbio. Nessa perspectiva,
as organizações desses atores sociais passam a ter funções de articulação e de
qualificação das relações, ou seja, de negociação, objeto de estudo da próxima
Unidade.
52
...... 2.5 APLICAÇÃO DO CONHECIMENTO

Exercícios para reflexão, estudo ou debate.


(1) O Rio Grande do Sul está entre os estados brasileiros com maior
diversidade sociocultural identitária, também por muitos denominada ét-
nica. Procure, então, responder as seguintes questões, tendo por base a
leitura do texto:
• O que é uma identidade sociocultural?
• O que diferencia o sujeito identitário do sujeito cidadão?
• Qual é a principal identidade (no sentido de representatividade estatís-
tica ou numérica) de seu município de origem, ou do município em que
você reside atualmente, ou então de sua região?
• Quais são os principais valores (aqui “valores” pode também ter sentido
negativo) que caracterizam os que se autodefinem como pertencentes a
cada uma dessas identidades?
• Qual ou quais identidades (grupos) estão em mobilidade ascendente/
descendente?

(2) Identifique uma identidade sociocultural que você julgue significativa


ou interessante, do município ou da região em que você vive, e escreva
sobre ela:
• Seu histórico de origem e formação, ou de implantação.
• Sua representatividade na região, no estado e no país (ótimo se você
conseguir dados, mesmo que aproximados; caso contrário, descreva essa
representatividade).
• Os principais valores que identificam e atribuem especificidade: culi-
nária, hábitos de lazer, de trabalho, aspectos culturais ou folclóricos, ar-
quitetura, etc.
• Observando os que pertencem a ela, como eles são classificados a partir
do conceito de atores sociais? Ocupam diferentes lugares? Quais? Há al-
guns dentre eles que recentemente tiveram mobilidade social? Qualifique
essa mobilidade.
2.6 BIBLIOGRAFIA 53
......

2.6.1 Bibliografia básica da Unidade 2

FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2. ed. rev. São Paulo:
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GEHLEN, I. Estrutura, dinâmica social e concepção sobre a terra no meio rural do Sul.
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KYMLICKA, W. Cidadania, identidade e diferença. A Tempo/SemTempo, nov.2007. Disponível


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