Texto 09 - O Trabalho Do Psicólogo No Sistema Prisional

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional TEXTO 08

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1ª edição – 2016
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Conselho Federal de Psicologia


O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional: Problematizações,
ética e orientações./ Conselho Federal de Psicologia. FRANÇA,
Fátima;PACHECO,Pedro; OLIVEIRA, Rodrigo Tôrres. - Brasília: CFP, 2016.
170pp.
ISBN: 978-85-89208-77-2
1. Psicologia 2. Ética 3. Sistema Prisional 4. Justiça

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Problematizações, ética e orientações

O trabalho do psicólogo em prisões

Cristina Rauter

Em meus escritos sobre este tema desde o início de


minha vida profissional, no final dos anos 70, tenho de-
fendido uma atuação para os psicólogos prisional que se-
gue um paradigma ético-estético-político. Os anos 2000
se caracterizaram pelo aumento explosivo da população
carcerária enquanto o número de psicólogos e outros pro-
fissionais que atuam nos cárceres não teve um aumento
correspondente. As igrejas, em especial as evangélicas,
têm se feito cada vez mais presentes nesses espaços. Isto
não seria um problema, se a assistência profissional e
laica aos encarcerados não tivesse diminuído no mesmo
período. As chamadas facções têm tido também um cres-
cimento considerável e parecem preencher um vazio no
campo da assistência que o estado oferece ou deveria ofe-
recer às pessoas encarceradas.
A função primordial exercida pelos psicólogos nos cár-
ceres está atualmente (ou ainda está) ligada à elaboração
de laudos e pareceres que pretendem avaliar a periculo-
sidade criminal, principalmente no momento da conces-
são de benefícios ou da proximidade do fim da pena. Ape-
sar de todas as lutas em sentido contrário desenvolvidas
pela categoria através do Conselho Federal de Psicologia
- CFP e dos CRPs nos últimos anos, questionando os lau-
dos de previsão de comportamentos, chegando mesmo a
proibir sua realização, podemos dizer que esse é ainda ou
volta infelizmente a ser um parâmetro principal na atu-
ação do psicólogo nos cárceres. O que se perde quando
um psicólogo se volta exclusivamente para esse tipo de
atuação, de avaliação e diagnóstico? Em primeiro lugar,
é preciso considerar que dado o pequeno número de psi-
cólogos, sabemos que muitas vezes não lhes sobra tempo
para realizar outra atividade, sob o risco de que muitos
internos vejam a concessão de benefícios a que têm direi-
to atrasadas. Não há nada que um preso anseie mais do
que a liberdade, e o psicólogo se vê numa situação que

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional

uma expressão antiga e que provavelmente tem origem


na inquisição bem retrata: “entre a cruz e a caldeirinha”.
Mesmo que tenha seus questionamentos aos laudos e ao
exercício de futurologia implícito neles quando se pede ao
psicólogo a chamada “prognose de reincidência”, ele se vê
obrigado a agir nesse sentido pragmático, e desse modo,
se torna apenas um dente na engrenagem carcerária, alu-
dindo aqui a Hannah Arendt (1999), fazendo-a movimen-
tar-se apenas, sem ver nenhum sentido em sua atuação.
A realização de laudos nesse contexto se torna “a pena do
psicólogo”, como bem definiu a situação um interno cita-
do por Marcia Badaró Bandeira (2012).
Cabe colocar neste momento a pergunta: e se houves-
sem psicólogos, assistentes sociais e médicos em número
suficiente nos cárceres, nossos problemas estariam re-
solvidos?
De maneira alguma. Seguindo o paradigma “ético-es-
tético-político”, muitos problemas permanecem, ou talvez
devêssemos dizê-lo, aí é que eles começam. Temos ques-
tionado os laudos realizados por psicólogos neste contex-
to, muitos colegas, além de mim, como Marcia Badaró,
Pedro Paulo Bicalho, Tania Kolker (psiquiatra) além de
assistentes sociais, como Maria Palma Wolf, Virgílio de
Matos e Salo de Carvalho, estes do campo jurídico, entre
outros, o têm feito ao longo desses anos. Em 1989 foi pu-
blicado pela primeira vez meu artigo “Diagnóstico Psicoló-
gico do Criminoso: Tecnologia do Preconceito”, na revista
do Departamento de Psicologia da UFF, no qual abordei
essa questão, a partir de uma pesquisa que realizei com
laudos de Exame para Verificação de Cessação de Peri-
culosidade, os EVCP, durante meu mandato no Conselho
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Neste artigo fiz
uma crítica epistemológica, ética e política a esses laudos
e avaliações, demonstrando, entre outras coisas, que as
condições do cárcere não favorecem uma relação de con-
fiança entre psicólogo e examinando para que o exame
possa ter validade, tal a situação de total privação de di-
reitos em que se encontra o encarcerado, quando subme-
tido a exame. Além disso, os preconceitos muitas vezes
presentes nos mesmos, travestidos de linguagem científi-
ca, estabelecem julgamentos estigmatizantes sobre as vi-

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Problematizações, ética e orientações

das daqueles que cumprem penas no sistema penal e so-


bre sua família, que acabam por se estender a caracterís-
ticas das famílias brasileiras de um modo geral, vistos sob
uma ótica condenatória, apoiada em conceitos mal defi-
nidos cientificamente, como o de família desestruturada,
por exemplo. Os laudos tomam assim uma feição julgado-
ra, moralizante, e acima de tudo, afastam-se dos precei-
tos científicos e da ética profissional do psicólogo. Outro
aspecto a considerar, este relacionado ao número ínfimo
de técnicos presentes nos cárceres, é o de que o psicólogo
pode ter um conhecimento superficial ou até mesmo des-
conhecer totalmente o interno cujo laudo precisa elabo-
rar num tempo curto, atendendo a uma exigência legal.
Então, mesmo uma avaliação baseada no conhecimento
que o psicólogo poderia ter do preso, a partir do acompa-
nhamento que fizesse do mesmo no cárcere, tornar-se-ia
impossível. E neste ponto, mesmo aqueles que são favorá-
veis aos laudos em nossa categoria, todos são unânimes
em reconhecer que se trata de uma atuação antiética e
anticientífica, aquela de realizar laudos, nesse regime de
alta produtividade e de superpopulação carcerária.
Não vou me deter muito sobre os questionamentos
feitos aos laudos elaborados por psicólogos nos cárceres
neste momento, mas orientar minha fala nos sentido do
que os psicólogos poderiam fazer nos cárceres além disso.
Outra pergunta se associa à mesma: qual é a concep-
ção de ética que deve reger a prática do psicólogo nos cár-
ceres, dentro do paradigma ético-estético-político?
Eu acredito que vivemos no Brasil, no que diz res-
peito às nossas prisões, uma situação de calamidade, de
emergência no tocante aos direitos humanos da popula-
ção encarcerada. Tal situação não pode passar desaper-
cebida ao psicólogo que atua nos cárceres. Alguns pode-
rão achar absurdo - como passaria desapercebida, se eles
estão lá dentro das prisões? No entanto, isso pode ocor-
rer. É comum que o psicólogo tenha um gabinete, uma
sala e que seus pacientes ou testandos venham até ele
quando são chamados. Desse modo, o psicólogo pode não
circular pelos mesmos espaços onde estão os presos. Ele
pode trabalhar no cárcere, mas não conhecer de fato o
cárcere. É uma situação paradoxal. A situação se torna

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional

possível também a partir de uma espécie de vício profis-


sional, esse de achar que nós lidamos com a realidade
interna, com a fala do cliente apenas, com seus sonhos e
fantasias … e isso nos autorizaria a trabalhar no cárcere
e não perambular pelo cárcere. Porque acho importante
perambular pelo cárcere? Porque dessa forma ficamos sa-
bendo, testemunhamos as condições carcerárias vividas
pelos detentos. A realidade da superlotação carcerária.
A comida que lhes é servida. As condições de limpeza.
As condições de saúde e assistência que recebem quando
adoecem. E a corrupção notoriamente existente nos cár-
ceres, como se processa e como afeta seu dia a dia? E as
visitas que recebe? Como são recebidos seus familiares?
Tudo isso, a meu ver, faz parte da atuação do psicólogo.
Eu mesma iniciei uma atividade numa unidade carcerá-
ria do Rio de Janeiro em que tenho dado palestras e até o
momento não “perambulei” pelo cárcere. A próxima etapa
será fazê-lo, pois considero imprescindível para qualquer
trabalho do psicólogo nos cárceres. Mas mesmo na dis-
tância que se estabelece nessa situação em que “dou pa-
lestras” já pude sentir o cheiro dos dentes de um interno,
a exigir urgente tratamento dentário. Ou as marcas de
hemorragia interna em outro, aparentemente provocada
por pancada na cabeça já antiga - ele afirmava precisar
sair do cárcere para se tratar. A necessidade de conhecer
as condições de vida dos internos que aqui estou subli-
nhando se apoia nesse tipo de ética a que me referi, como
norte do trabalho - uma ética da vida. Novamente lem-
brando Hannah Arendt, ela considera que o genocídio dos
judeus, ciganos, comunistas, homossexuais nos campos
de concentração foi possível porque a realidade do que se
passava nos campos foi ignorada pela população. O que
acontecia depois que as pessoas eram colocadas naque-
les vagões de carga? Muitos moradores das vizinhanças
dos campos de concentração alegaram não saber o que se
passava e é possível que não soubessem, pois não se inte-
ressavam por isso. Mas falar do Nazismo hoje não é falar,
como mostrou Bauman, de um fenômeno que passou ex-
clusivo a uma época ou a um povo degenerado. É preciso
lembrar que o nazismo foi um laboratório da contempo-
raneidade (Bauman, 1998). Ali se estabeleceram alguns

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Problematizações, ética e orientações

procedimentos para o controle das massas, para o con-


trole político e social, que não foram abandonados depois
pelos estados modernos.
Em comum com aqueles tempos, temos que notar a
indiferença que a sociedade brasileira manifesta quanto
ao destino daqueles que são condenados e que cumprem
pena em nossas prisões, e também com relação aqueles
que nem condenados foram, mas que vivem a mesma si-
tuação (os presos provisórios, em número crescente no
Brasil atual). Que se passa com eles atrás das grades?
A sociedade precisa saber e acompanhar - o mesmo diz
respeito ao psicólogo - é dever ético do psicólogo, é dever
ético da sociedade e de suas autoridades.
Uma ética da vida, uma ética da expansão da vida
e da potência humana. Mesmo a vida de um criminoso
deve merecer preocupações éticas, perguntarão alguns?
O filósofo Spinoza nos ajuda a pensar algumas dessas
questões. A própria categoria de “criminoso” ou “delin-
quente” deve ser questionada pelo psicólogo, pois esse
etiquetamento é colado a alguém a partir de um ato que
cometeu. Ora, Spinoza nos ensina que um indivíduo é
composto por múltiplos indivíduos. Nada nos autorizaria
etiquetar para todo o sempre alguém como uma espécie
de encarnação do mal, a partir de atos por ele praticados
- nessa multiplicidade que nos compõe há sempre ou-
tros “indivíduos” que podem ser potencializados. É pre-
ciso considerar nas ações humanas um contexto, uma
situação. Numa genealogia. E ao psicólogo, sempre cabe
uma pergunta: como chegou a praticar este ato? Em que
condições, que relações estabeleceu no ambiente em que
vive que poderiam explicá-lo? Seria preciso, do ponto de
vista da transformação humana, conhecer as causas e
agir sobre elas. Diz Spinoza, ainda no século XVII, que
não há tendências para o crime, para o mal, inerentes
aos homens, mas é a sociedade é que está mal constituí-
da quando muitos começam a seguir esse caminho. E se
numa sociedade dada se recorre constantemente a penas,
a punições, é essa sociedade que precisa ser mudada, al-
terada, pois está mal organizada (Spinoza, 2009, p. 141).
Temos hoje a terceira ou quarta população carcerá-
ria do planeta - há divergências quanto à nossa coloca-

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional

ção nesse concurso nada edificante. Significa dizer que


temos escolhido, enquanto sociedade, a “solução penal e
policial” para os conflitos sociais. Certamente, não uma
solução virtuosa, diria Spinoza, mas uma solução basea-
da no silenciamento dos conflitos, na eliminação de uma
das partes deste conflito. Seria necessário, ao contrário,
encarar de frente o conflito, tomá-lo em sua positivida-
de. Quando o conflito se torna letal, isso nos indica que
nossa sociedade está mal constituída. O Brasil é um dos
países que possui índices imensos de desigualdade so-
cial, apesar das inequívocas melhorias das últimas dé-
cadas, em que muitos deixaram o mapa da fome. Mas é
ainda urgente agir de forma mais decidida no sentido de
produzir outros modos de lidar com a conflitividade so-
cial decorrente da enorme disparidade na distribuição de
renda que nos caracteriza enquanto sociedade, e que é
como que o pano de fundo para a questão do crime. Mas
não deveríamos nos surpreender que alguns roubem, as-
saltem, matem para conseguir dinheiro e riquezas numa
sociedade baseada na competitividade, na qual a compe-
titividade individual é até mesmo tomada como virtude
(criatividade, dinamismo…). Esse elogio da competitivida-
de, do individualismo e do consumo só pode colher como
fruto o fato de que alguns empreguem os meios de que
dispõem para obter os bens a que não têm acesso. Sa-
bemos que alguns têm meios muito mais eficazes para
acumular riquezas, igualmente baseados na rapinagem
dos bens alheios, mas que são muito bem-sucedidos na
ocultação dessas práticas, nunca indo parar nas prisões.
Como se sabe, elas são compostas, quase que exclusiva-
mente, por pretos, pardos e pobres no Brasil.
Temos seguido no Brasil a lógica prisional e policial,
uma lógica punitiva no lidar com os conflitos sociais - todos
sabem, desde os próprios presos até as autoridades policiais
e judiciárias, que a prisão não pode construir nada de posi-
tivo, que fracassa totalmente e que age como “escola do cri-
me” e, no entanto, persistimos nesse tipo de “solução” que é
sintoma e não solução, como disse Jock Young (2012), gran-
de criminólogo inglês falecido recentemente.
A lógica punitiva é uma lógica danosa para sociedade
e para o indivíduo e apesar disso, temos apostado nela

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Problematizações, ética e orientações

para “a solução” de conflitos. Está apoiada em vários ti-


pos de “afetos tristes”, para Spinoza. Quando nos move-
mos por afetos tristes, nossa potência vital está diminuí-
da. Não podemos construir ações virtuosas, não podemos
pensar bem. Quando somos dominados pelo espírito de
vingança, pelo prazer de contemplar o sofrimento alheio,
por exemplo, ou de eliminar aquele que elegemos como
causa de nosso próprio sofrimento, não é a ele que elimi-
namos somente, mas nós próprios temos a nossa potên-
cia diminuída. Podemos dizer que a sociedade brasileira
está sendo constantemente contagiada por afetos tristes,
exaustiva e quotidianamente divulgados. Nossa mídia vei-
cula todos os dias fatos tristes e violentos, nossas pílu-
las diárias de medo. Podemos pensar que se tenta dimi-
nuir, desse modo, a potencialidade política do povo e fa-
zê-lo atribuir a um possível assaltante a causa de todos
os seus males, esquecendo-se desse modo de todos os
outros males que vive em seu cotidiano, como por exem-
plo, a insegurança derivada da progressiva redução dos
nossos direitos trabalhistas, o problema do desemprego,
os problemas climáticos decorrentes do desmatamento, a
diminuição dos recursos para a saúde pública, etc.
Penso que o psicólogo está colocado num lugar mui-
to especial no que diz respeito a perceber e agir sobre os
processos de subjetivação instalados em nossa socieda-
de, tanto individualmente quanto coletivamente. Quando
atua em prisões, em especial quando não está exclusiva-
mente voltado para a elaboração de laudos de avaliação
de periculosidade, ele pode ter acesso às realidades vivi-
das pelos presos. Ele pode trazer este conhecimento para
a sociedade brasileira como um todo, desfazendo esse véu
que oculta o que acontece depois que alguém é preso.
Muitos comemoram a prisão de alguém, a prisão é vis-
ta como solução para as mais variadas situações: para
homens que não dão pensão alimentícia, para venda de
aves silvestres, para a corrupção (isso apesar de serem as
prisões lugares onde reina a corrupção de forma quase
endêmica). A cada dia encontra-se um motivo novo para
prender. Muitos pedem que determinados crimes tenham
penas mais elevadas, queixam-se de que nossa legislação
penal seja muito branda. Não seríamos hoje a quarta po-

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional

pulação carcerária do mundo, composta sobre tudo por


pessoas que praticaram delitos de furto e por trabalha-
rem no pequeno varejo de drogas1, se nossa legislação
fosse branda. Mas o psicólogo pode, em sua atuação, des-
fazer esse véu. De certo modo também agindo no sentido
freudiano - desvelar o que está oculto, não se comprome-
ter com o cinismo, com o falseamento dos conflitos, ou
com a ilusão de que a prisão traria para a sociedade ou
para o prisioneiro algum benefício. Fazer com que a so-
ciedade deixe de acreditar em papai Noel, como diz Vera
Regina Andrade (2012), ao se referir à crença dissemina-
da em nossa sociedade de que a prisão é solução para
alguma coisa.
Sabemos que todos os que estão nos cárceres sofrem
seus efeitos mortíferos. O psicólogo pode esclarecer à so-
ciedade sobre os efeitos da prisão – por exemplo, sobre as
questões ligadas à agressividade. Se de um lado a agres-
sividade é inerente à vida, é uma das facetas da libido
composta como disse Freud, de amor e ódio, ela pode ser
transformada em destrutividade e sadismo. A prisão é um
meio eficaz no que diz respeito a operar essa transforma-
ção da agressividade em destrutividade, em torná-la, de
reação normal que é algo descontrolado e mortífero. Ci-
tarei um exemplo do funcionamento prático da prisão no
que se refere ao “bom comportamento’ do preso: como
existe na sociedade a dominação da lógica punitivista e
prisional, mesmo que o preso tenha o chamado bom com-
portamento carcerário, mesmo que participe dos raros
programas de reinserção social existentes hoje no siste-
ma penal, isso pode não ser levado em conta pelas auto-
ridades da execução penal, no momento da concessão de
um benefício. Muitas dessas autoridades levam em conta,
ainda neste momento, a gravidade do crime praticado – se
se trata de um assaltante, ele poderá seguir sendo visto
assim, mesmo depois de ter cumprido sua pena, total ou
parcialmente, mesmo que seja um preso exemplar, que
trabalha, estuda, etc. Isso se deve também, pelo mau fun-

1 Dados divulgados recentemente sobre a composição da população


carcerária do Rio de Janeiro confirmam essa afirmação. https://infogr.am/
geografia_do_encarceramento, disponível em 8 de agosto de 2016.

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Problematizações, ética e orientações

cionamento geral dessas instituições, à pouca articulação


entre as diversas instâncias. Nessas situações, é comum
que o preso perceba com toda clareza que não importa
o que faça, o quanto se esforce, não deixará de ser visto
como um criminoso, como verdadeira encarnação do mal.
Aqueles que convivem diretamente com os presos podem
avaliar os efeitos subjetivos desse tipo de desilusão. Ainda
assim, frequentemente, os presos são responsabilizados
por sua recuperação, por sua reinserção social ou outra
“ilusão re”, como referiu Vera Malagutti Batista (2008). A
lógica prisional está associada, ainda que de forma vela-
da, a uma visão segundo a qual aquele que comete crimes
pertence a uma espécie à parte do gênero humano, par-
ticularmente má.
O cárcere leva todos que estão submetidos às suas
engrenagens à despotencialização subjetiva, e isso inclui
também os que nele trabalham, incluindo o psicólogo.
Isso já foi descrito na literatura, principalmente em lín-
gua inglesa, como o fenômeno da “prisionização”. O psi-
cólogo também se entristece e se despotencializa. Mas se
discutir coletivamente o seu trabalho, seja no seu local de
trabalho, seja nos conselhos, ou como estamos fazendo
aqui, pode se potencializar. E desse modo também enxer-
gar modalidades de atuação que possam agir no sentido
contrário à lógica encarceradora, ao atuar nos cárceres.
Não estamos aqui defendendo uma metodologia de tra-
balho, mas um princípio ético norteador. Sabemos que
as dificuldades são muitas. Esse princípio norteador de
potencialização diz respeito à vida do preso, mas também
à do próprio psicólogo, que frequentemente se entristece,
experimentando também ele os efeitos da lógica prisional,
diminuindo suas possibilidades de intervenção. Mas diz
respeito também a todos nós, que vivemos no contem-
porâneo uma formidável expansão das lógicas prisionais,
punitivas e encarceradoras, e também de vigilância. Em
minhas pesquisas recentes tenho usado a expressão “en-
grenagens carcerárias” para me referir a esses fenômenos
que não podem ser vistos como privativos das prisões,
mas que se estendem por todo campo social, nesse pro-
cesso também denominado judicialização da vida, parti-
cularmente visível na contemporaneidade brasileira.

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O Trabalho da (o) psicóloga (o) no sistema prisional

Toda minha reflexão neste campo de atuação tem se


orientado, desde a primeira vez que me defrontei, no final
dos anos setenta, com as vicissitudes da prática do psi-
cólogo em prisões, para que nós possamos superar nossa
condição de ser apenas um dente numa engrenagem mor-
tífera. Que possamos fazer essa máquina prisional em-
perrar, e que possamos ser agentes transformadores no
sentido de propor outros direcionamentos éticos e políti-
cos para a conflitividade social em nosso país.

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Referências
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