O Automóvel e A Cidade
O Automóvel e A Cidade
O Automóvel e A Cidade
O AUTOMÓVEL E A CIDADE
Erminia Maricato
5 JACOBS, Jane. Morte e vida O capital imobiliário acompanha esse movimento com
de grandes cidades. São Paulo: a oferta dos condomínios fechados e shopping centers no
Martins Fontes, 2000. A pu-
blicação original em inglês é entroncamento de avenidas e rodovias. A segregação e a
de 1961. Jane Jacobs concen- fragmentação aumentam enquanto é decretada a morte da
tra sua crítica ao urbanismo
modernista segregador, criado
rua e do pedestre, do pequeno comércio, apesar do alerta
na primeira metade do século feito por Jane Jacobs, ainda na década de 1960.5 O movi-
XX, mas suas idéias em defe- mento de saída da cidade é paralelo ao movimento de degra-
sa do uso misto do solo e da
rua, incluindo a escala do pe- dação das áreas centrais urbanas (fenômeno típico da pro-
destre gerando uma urbaniza- moção imobiliária capitalista dirigida pela valorização do
ção mais viva, mais humana e
mais concentrada, aliada à
preço das localizações) apropriada pelos pobres até ser ob-
crítica posterior da insusten- jeto de um projeto fashion de “renovação urbana” que a
tabilidade ambiental decor- incorpora novamente ao mercado. David Harvey lembra o
rente da cidade dispersa, têm
inspirado várias correntes in- movimento de destruição e reconstrução de ambientes
ternacionais de urbanistas – construídos como parte do processo de acumulação de ca-
Smarth growth, New urbanism pital.6 A extensão da ocupação do solo urbano por novos
– que, em vão, tentam con-
trariar a orientação dada pela condomínios e shoppings centers, bem como a expansão por
tirania do automóvel na pro- “recuperação de áreas degradadas” (com a conhecida gen-
dução do espaço construído.
Esta edição da revista Ciência trificação), constituem uma determinação ilimitada do mer-
& Ambiente apresenta a versão cado imobiliário.
de uma dessas correntes de- Mais recentemente, nas últimas décadas do século
nominada “Não-transporte”.
6 HARVEY, David. O novo im-
XX, os urbanistas incorporaram, além das críticas ao anti-
perialismo. São Paulo: Loyola, modernismo segregador, as críticas dos ambientalistas que
2004. haviam sido ignoradas nas formulações do urbanismo mo-
7 ILICH, Ivan. Energia e eqüi- dernista. A impermeabilização do solo causada pela urbani-
dade. In: LUDD, Ned. O
apocalipse motorizado. Op. cit. zação dispersa que avança horizontalmente sobre todo tipo
8 No momento em que escre- de território ou de uso, a área ocupada e impermeabilizada
vo essas linhas, 17 de janeiro pelo automóvel nesse modelo de urbanização (estaciona-
de 2009, acontecem os en-
terros de uma ciclista, mili-
mentos, avenidas, amplas rodovias, viadutos, pontes, gara-
tante da mobilidade por bici- gens, túneis) fragmentando e dividindo bairros inteiros, a
cletas, atropelada na princi- custosa e predatória poluição do ar, somam-se ao incrível
pal avenida da cidade de São
Paulo – a Avenida Paulista –, número de acidentes com mortes ou invalidez, às horas
e também de um ciclista, es- paradas em monumentais engarrafamentos causadores de
portista dessa modalidade, stress; enfim, o “apocalipse motorizado” é por demais visí-
na cidade do Rio de Janeiro.
9 Em novembro de 2008, o
vel e predatório para ser ignorado. Suas conseqüências en-
presidente Bush tomou uma volvem desde aspectos subjetivos, como a “solidão da abun-
iniciativa absolutamente im- dância”7 (uma referência ao modelo de consumo que tem
pensável nos anos anteriores
dominados pela ideologia no automóvel um item central), até o principal causador de
neoliberal. Enviou ao Con- impacto sobre o aquecimento global.
gresso americano uma pro-
posta de sociedade do Esta-
Se essa condição assumida pelas sociedades no mundo
do americano com as princi- todo é tão impressionantemente clara, desumana e ambien-
pais montadoras de automó- talmente predatória por que ela se aprofunda e se reafirma
veis do país, por meio da com-
pra de 20% de suas ações, a cada momento? Por que movimentos sociais de ciclistas,
para fazer frente à crise fi- pedestres, urbanistas, ambientalistas não ganham repercus-
nanceira iniciada em setem- são?8 Por que a indústria automobilista continua a ocupar a
bro. O Congresso não apro-
vou o projeto. Pelo mesmo centralidade da preocupação de governos com prioridade na
motivo e no mesmo período, concessão de subsídios?9
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O automóvel e a cidade
As cidades e o automóvel na
periferia do capitalismo
Após reconhecer que o automóvel ocupa um lugar
central nas relações de poder entre as nações e após reco-
nhecer ainda sua determinação no crescimento e formato
das cidades, é necessário verificar como se dá essa relação
na periferia do capitalismo, já que esta guarda especificida-
des que a diferenciam dos países centrais.
Todos sabemos que as relações entre as nações do
mundo são assimétricas. Desde a expansão mercantilista até
os tempos atuais, dominados pela globalização, as relações
internacionais de dependência se aprofundam. Essa depen-
dência é biunívoca, porém não equilibrada, pois alguns paí-
ses têm uma posição subordinada e, outros, de supremacia
no quadro de poder internacional. Os poderes hegemônicos
impõem, frequentemente pela força, mas também pela per-
suasão, modo de vida, valores, cultura, que acompanham as
exigências da expansão dos mercados. Entretanto, é impor-
tante lembrar que, se a forma de inserção nas relações
internacionais é determinante para uma dada sociedade, há
que se levar em conta suas especificidades históricas.
No Brasil, de modo bastante semelhante ao de outros
países da América Latina, as cidades e as formas de mobi-
lidade guardam diferenças marcantes em relação aos casos
dos países centrais, em que pese a mimetização do modo de
vida. Essa dominação não se restringe apenas à importação
de modelos – como é o caso da cidade ou da vida orientada
pela matriz automobilística ou ao parque industrial que tem
no automóvel seu carro-chefe –, mas também se estende à
produção das idéias, ao desenvolvimento da ciência, da
tecnologia e da cultura. Necessidades básicas como o esgo-
to ou a habitação segura estão ausentes num quadro em que
estão presentes eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e
até automóveis. De fato, pesquisa desenvolvida durante
muitos anos na Faculdade de Arquitetura da Universidade
de São Paulo mostrou a presença de bens industriais moder-
nos (incluindo o automóvel usado) convivendo com a falta
de saneamento básico ou mesmo de um banheiro com as
mínimas condições técnicas de funcionamento nas favelas
11 Durante vários anos das dé- da metrópole paulistana.11 Esse é o quadro de uma indus-
cadas de 1970 e 1980, essa
pesquisa foi desenvolvida pe-
trialização calcada principalmente nas demandas da expansão
los professores Telmo Pam- capitalista internacional e não nas necessidades básicas do
plona, Yvonne M. Mautner e mercado interno. As conseqüências da dependência subor-
Erminia Maricato, juntamen-
te com alunos da disciplina dinada desde os tempos coloniais foram muito bem explo-
de Desenho Industrial. radas por diversos estudiosos da sociedade brasileira – Caio
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O automóvel e a cidade
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O automóvel e a cidade
18 A evidência da força eleitoral outro lado, não é pouco freqüente que urbanistas se dete-
das obras de asfaltamento foi nham nas regras de uso e ocupação do solo e ignorem que
percebida pela autora, quan-
do ocupava a Secretaria Exe- o grande promotor que orienta a ocupação do solo é o
cutiva do Ministério das Ci- transporte.
dades, em reunião com inú-
meros prefeitos. Alguns re-
A prioridade dada às obras viárias tem relação com os
conheceram que ganharam financiamentos das campanhas eleitorais, com a visibilidade
eleições com essas obras. A notável dos seus produtos, mas também se prestam muito
equipe que ocupava a dire-
ção do Ministério das Cida- ao jogo clientelista. A periferia desurbanizada é uma fonte
des entre 2003 e 2005 ten- inesgotável de dependência política que afirma a relação de
tou reorientar as emendas
parlamentares que previam
clientela. O asfalto, especialmente, tem forte apelo eleito-
obras parceladas de asfal- ral. 18
tamento em numerosos mu- Não é intenção eliminar aqui qualquer perspectiva
nicípios brasileiros sem qual-
quer orientação urbanística propositiva ou contribuir com o imobilismo, como fazem
(freqüentemente essas obras tantos textos acadêmicos críticos. Sempre há espaço para
negavam a orientação do ação, mesmo na vida profissional e, frequentemente, em
Plano Diretor). Quando isso
se revelou impossível, a equi- condições especiais, até mesmo no aparelho de Estado. Aos
pe tentou ao menos garantir pesquisadores, entretanto, impõe-se um mergulho mais
a canalização de esgoto e
drenagem nas ruas antes do profundo, renovador e necessariamente crítico. Este núme-
asfaltamento da superfície. ro de Ciência e Ambiente, com o qual tive a satisfação de
Foi tudo em vão. Mais da colaborar, oferece análises críticas e propostas para o en-
metade do orçamento do
Ministério das Cidades era frentamento de um dos maiores problemas ambientais e
dirigido a asfaltamento por sociais da humanidade.
meio das emendas parlamen-
tares.
Como se instalou entre nós a cultura do “rodoviaris-
mo”, quais foram seus agentes? Como chegamos à tragédia
verificada nos acidentes de trânsito, sempre atribuídos a
questões de natureza individual? Qual o peso e o custo do
automóvel, da indústria de infra-estrutura e da opção ener-
gética para o ambiente e para a saúde dos moradores urba-
nos? O que pode ser constituído com vistas a minimizar o
impacto dessa “indústria do automóvel” no meio ambiente
e para melhorar as condições de mobilidade da maioria da
população urbana? O que pode ser feito na tecnologia do
Erminia Maricato é graduada e automóvel ou em relação aos combustíveis para diminuir a
doutora em Arquitetura e Ur-
banismo e professora titular da emissão de gases poluentes? Quais as perspectivas de uma
Faculdade de Arquitetura e nova política energética? E em relação à cidade, quais mo-
Urbanismo da Universidade de dos de transporte ou política de mobilidade e uso do solo
São Paulo (FAUUSP). Foi se-
cretária de Habitação e Desen- podem ser introduzidos? Todas essas questões são aborda-
volvimento Urbano do municí- das pelos colaboradores desta edição da revista.
pio de São Paulo (1989/1992),
coordenadora do Programa de Algumas medidas são mais viáveis e não requerem
Pós-Graduação da FAUUSP transformações profundas. Outras propostas exigiriam mu-
(1998/2002), formuladora da danças significativas para sua implementação. Todas elas são
proposta de criação do Minis-
tério das Cidades e ministra decisivas para o movimento de negação dessa tragédia anun-
adjunta (2003/2005). ciada e dimensionada e contribuem para alimentar a cons-
[email protected] ciência social sobre tema tão fundamental.