O Automóvel e A Cidade

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APRESENTAÇÃO

O AUTOMÓVEL E A CIDADE
Erminia Maricato

“... o carro tornou a cidade grande


inabitável. Tornou-a fedorenta, barulhenta,
asfixiante, empoeirada, congestionada, tão
congestionada
que ninguém mais quer sair de tardinha.”
André Gorz1

C omo se instalou entre nós a cultura do “rodovia-


rismo”? Como chegamos à tragédia verificada nos aci-
dentes de trânsito, sempre atribuídos a questões de
natureza individual? Qual o peso e o custo do automó-
vel, da indústria de infra-estrutura e da opção energé-
tica para o ambiente e a saúde dos moradores urba-
nos? O que pode ser constituído com vistas a minimi-
zar o impacto da “indústria do automóvel” no meio
ambiente e para melhorar as condições de mobilidade
da maioria da população urbana? O que pode ser feito
na tecnologia do automóvel ou em relação aos com-
bustíveis para diminuir a emissão de gases poluentes?
Quais as perspectivas de uma nova política energética?
E em relação à cidade, quais modos de transporte ou
política de mobilidade e uso do solo podem ser intro-
duzidos? Essas e outras questões são abordadas pelos
colaboradores da presente edição de Ciência & Am-
biente. Algumas medidas propostas são viáveis e não
requerem transformações profundas. Outras exigiriam
mudanças significativas para a sua implementação.
Todas elas, no entanto, são decisivas para o movimento
de negação dessa tragédia anunciada e contribuem pa-
ra alimentar a consciência social sobre tema tão fun-
damental.
O automóvel e a cidade

Ilustração de abertura: O automóvel conformou as cidades e definiu, ou pelo


Google Earth
menos foi o mais forte elemento a influenciar, o modo de
1 GORZ, André. A ideologia vida urbano na era da industrialização. Daquilo que era ini-
social do automóvel. I n :
LUDD, Ned. (org.) Apoca- cialmente uma opção – para os mais ricos evidentemente –
lipse motorizado. São Paulo: o automóvel passou a ser uma necessidade de todos2. E
Conrad Livros, 2004. p. 79. como necessidade que envolve todos os habitantes da cida-
2 Chamei atenção anterior-
mente para o fato de que o
de, ele não matou apenas a cidade, mas a si próprio. Sair da
automóvel não é uma esco- cidade, fugir do tráfego, da poluição e do barulho passou a
lha. É uma necessidade mes- ser um desejo constante. Em outras palavras, o mais desejá-
mo nas cidades do mundo
não desenvolvido, tal a for- vel modo de transporte, aquele que admite a liberdade in-
ma de organização da mobi- dividual de ir a qualquer lugar em qualquer momento, desde
lidade nessas cidades. Para que haja infra-estrutura rodoviária para essa viagem, funcio-
dar um exemplo, as pesquisas
sobre origem e destino do na apenas quando essa liberdade é restrita a alguns. Quando
metrô de São Paulo mostram tal possibilidade passa a ser “democratizada”, a partir das
que a mobilidade diminuiu
para todos, ricos e pobres, ações pioneiras de Henry Ford, que incorporou seus ope-
porém as viagens feitas por rários no mercado desse bem, ela mostra-se inviável pelos
automóveis levam menos congestionamentos, além de insustentável. A aparente liber-
tempo do que as viagens fei-
tas por transporte coletivo, dade, mobilidade para todos com independência de trilhos
que podem levar muitas ho- e horários – uma verdadeira utopia, prometida aos trabalha-
ras a cada dia. (MARICA-
TO, Erminia. Brasil, cidades:
dores como parte do acordo entre capital e trabalho, firma-
alternativas para a crise urba- do pelo Welfare State –, quando extensiva a toda a socieda-
na. Petrópolis: Vozes, 2001) de, transformou-se numa prisão.3 A dependência em relação
3 Estamos fazendo referências ao automóvel acabou se tornando maior do que a dependên-
às cidades dos países capitalis-
tas centrais, em especial aque- cia dos trens e, evidentemente, maior do que as viagens
las dos Estados Unidos. A si- feitas a pé ou com tração animal, embora envolva viagens
tuação de cidades dos países
menos desenvolvidos, que se-
mais longas e, apesar do tráfego, mais rápidas. Não há como
guem o modelo hegemônico, comprar pão a pé nos subúrbios americanos desenhados em
será tratada mais à frente. É total dependência ao automóvel. Sem o automóvel não há
preciso lembrar também que,
nos países centrais, a extensa como abastecer uma casa na cidade marcada pela urbaniza-
rede de transporte coletivo ção dispersa: vastas áreas com baixa densidade de ocupação
permite uma convivência com
a motorização individual, re-
onde predomina, no uso do solo, frequentemente de forma
gulada por iniciativas públicas, absoluta e exclusiva, a moradia e a infra-estrutura rodoviária.
como a que instituiu o pedá- A cidade do fim do século XX se confunde com a
gio no centro de Londres.
Essa convivência é necessaria- região. Se o taylorismo e o fordismo (formas de organização
mente precária. Apenas os ri- da produção industrial no início e no fim do primeiro quar-
cos continuam podendo circu- to do século XX, respectivamente) induziram a uma ocupa-
lar de automóveis na área cen-
tral, confirmando o fato de ção urbana mais concentrada, a disseminação do automóvel
que essa modalidade é intrin- e o pós-fordismo determinaram uma ocupação dispersa e
secamente desigual.
4
fragmentada. A robotização, a terceirização, a incorporação
Ver a respeito o interessante
vídeo documentário elaborado do just in time obedecendo a uma nova estratégia logística,
por Michael Moore, Roger and a mobilidade do capital que transfere unidades de produção
me (Warner Brothers, 1980), para regiões ou países onde a mão-de-obra é mais barata e
sobre a decadência de Flint
(Michigan), sua cidade natal, a legislação ambiental menos rigorosa, condenando ao aban-
após a transferência da unida- dono cidades marcadas pela produção fordista (como o caso
de de produção da General
Motors condenando a cidade clássico de Detroit)4, todas essas características da chamada
e os trabalhadores à falência. globalização levam a uma mudança na ocupação do território.

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Erminia Maricato

5 JACOBS, Jane. Morte e vida O capital imobiliário acompanha esse movimento com
de grandes cidades. São Paulo: a oferta dos condomínios fechados e shopping centers no
Martins Fontes, 2000. A pu-
blicação original em inglês é entroncamento de avenidas e rodovias. A segregação e a
de 1961. Jane Jacobs concen- fragmentação aumentam enquanto é decretada a morte da
tra sua crítica ao urbanismo
modernista segregador, criado
rua e do pedestre, do pequeno comércio, apesar do alerta
na primeira metade do século feito por Jane Jacobs, ainda na década de 1960.5 O movi-
XX, mas suas idéias em defe- mento de saída da cidade é paralelo ao movimento de degra-
sa do uso misto do solo e da
rua, incluindo a escala do pe- dação das áreas centrais urbanas (fenômeno típico da pro-
destre gerando uma urbaniza- moção imobiliária capitalista dirigida pela valorização do
ção mais viva, mais humana e
mais concentrada, aliada à
preço das localizações) apropriada pelos pobres até ser ob-
crítica posterior da insusten- jeto de um projeto fashion de “renovação urbana” que a
tabilidade ambiental decor- incorpora novamente ao mercado. David Harvey lembra o
rente da cidade dispersa, têm
inspirado várias correntes in- movimento de destruição e reconstrução de ambientes
ternacionais de urbanistas – construídos como parte do processo de acumulação de ca-
Smarth growth, New urbanism pital.6 A extensão da ocupação do solo urbano por novos
– que, em vão, tentam con-
trariar a orientação dada pela condomínios e shoppings centers, bem como a expansão por
tirania do automóvel na pro- “recuperação de áreas degradadas” (com a conhecida gen-
dução do espaço construído.
Esta edição da revista Ciência trificação), constituem uma determinação ilimitada do mer-
& Ambiente apresenta a versão cado imobiliário.
de uma dessas correntes de- Mais recentemente, nas últimas décadas do século
nominada “Não-transporte”.
6 HARVEY, David. O novo im-
XX, os urbanistas incorporaram, além das críticas ao anti-
perialismo. São Paulo: Loyola, modernismo segregador, as críticas dos ambientalistas que
2004. haviam sido ignoradas nas formulações do urbanismo mo-
7 ILICH, Ivan. Energia e eqüi- dernista. A impermeabilização do solo causada pela urbani-
dade. In: LUDD, Ned. O
apocalipse motorizado. Op. cit. zação dispersa que avança horizontalmente sobre todo tipo
8 No momento em que escre- de território ou de uso, a área ocupada e impermeabilizada
vo essas linhas, 17 de janeiro pelo automóvel nesse modelo de urbanização (estaciona-
de 2009, acontecem os en-
terros de uma ciclista, mili-
mentos, avenidas, amplas rodovias, viadutos, pontes, gara-
tante da mobilidade por bici- gens, túneis) fragmentando e dividindo bairros inteiros, a
cletas, atropelada na princi- custosa e predatória poluição do ar, somam-se ao incrível
pal avenida da cidade de São
Paulo – a Avenida Paulista –, número de acidentes com mortes ou invalidez, às horas
e também de um ciclista, es- paradas em monumentais engarrafamentos causadores de
portista dessa modalidade, stress; enfim, o “apocalipse motorizado” é por demais visí-
na cidade do Rio de Janeiro.
9 Em novembro de 2008, o
vel e predatório para ser ignorado. Suas conseqüências en-
presidente Bush tomou uma volvem desde aspectos subjetivos, como a “solidão da abun-
iniciativa absolutamente im- dância”7 (uma referência ao modelo de consumo que tem
pensável nos anos anteriores
dominados pela ideologia no automóvel um item central), até o principal causador de
neoliberal. Enviou ao Con- impacto sobre o aquecimento global.
gresso americano uma pro-
posta de sociedade do Esta-
Se essa condição assumida pelas sociedades no mundo
do americano com as princi- todo é tão impressionantemente clara, desumana e ambien-
pais montadoras de automó- talmente predatória por que ela se aprofunda e se reafirma
veis do país, por meio da com-
pra de 20% de suas ações, a cada momento? Por que movimentos sociais de ciclistas,
para fazer frente à crise fi- pedestres, urbanistas, ambientalistas não ganham repercus-
nanceira iniciada em setem- são?8 Por que a indústria automobilista continua a ocupar a
bro. O Congresso não apro-
vou o projeto. Pelo mesmo centralidade da preocupação de governos com prioridade na
motivo e no mesmo período, concessão de subsídios?9

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O automóvel e a cidade

o presidente Lula tomou a A indústria do automóvel não envolve apenas a pro-


decisão de subsidiar a indús-
tria automobilística elimi-
dução de carros (incluindo aí a exploração de minérios, a
nando o Imposto sobre Pro- metalurgia, a indústria de auto-peças e os serviços mecâni-
dutos Industrializados (IPI) cos de manutenção dos veículos) e as obras de infra-estru-
de seus produtos.
tura destinadas à sua circulação. Somente nos processos
citados já teríamos o envolvimento de forte movimento
econômico e, portanto, de significativo poder político. Mas
a rede de negócios e interesses em torno do automóvel vai
bem mais longe, envolvendo inclusive o coração da política
energética, estratégica para qualquer projeto de poder na-
cionalista ou imperialista. Exploração, refinamento e comer-
cialização do petróleo, com as extensas e significativas redes
de distribuição constituem, na verdade, a parte mais impor-
tante na disputa pelo poder no mundo. As últimas guerras
promovidas pela nação mais poderosa do globo confirmam
tal assertiva. O argumento falacioso que justificou a invasão
do Iraque pelos Estados Unidos não resistiu até o final do
governo Bush. O presidente foi obrigado a reconhecer que,
diferentemente do havia anunciado ao mundo, não havia
armas químicas estocadas no Iraque. As razões da guerra
foram outras. Como afirma Harvey: “O acesso ao petróleo
do Oriente Médio é, portanto, uma questão de segurança
crucial para os Estados Unidos, bem como para economia
global como um todo.” Ou ainda: “Há igualmente um as-
pecto militar envolvido nessa discussão: os militares são
10 Ver a respeito dessas razões o movidos a petróleo.”10
livro de David Harvey, O O capitalismo tem necessidade de expansão ilimitada.
novo imperialismo. Op. cit.
Ver também ARANTES, É de Karl Marx a demonstração da tese de que não é o
Paulo. Extinção. São Paulo: consumo que determina a produção mas o inverso, a pro-
Boitempo, 2007. (p. 29-30)
dução é que determina o consumo no modo de produção
capitalista. É preciso consumir para alimentar a produção
ou, mais exatamente, a acumulação. É preciso, portanto,
criar a necessidade do consumo. Produção pela produção e
consumo pelo consumo. Uma vasta máquina de propaganda
acompanha a indústria do automóvel. A construção de toda
uma cultura e de um universo simbólico relacionados à
ideologia do automóvel ocupa cada poro da existência urba-
na. Como já admitimos, o rumo tomado pelo crescimento
das cidades impôs a necessidade do automóvel, mas como
qualquer outro produto de consumo industrial, e mais do
que qualquer outro, ele não escapa ao fetichismo da merca-
doria. Ao comprar um automóvel, o consumidor não adqui-
re apenas um meio para se locomover, mas também mascu-
linidade, potência, aventura, poder, segurança, velocidade,
charme, entre outros atributos.

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Erminia Maricato

As cidades e o automóvel na
periferia do capitalismo
Após reconhecer que o automóvel ocupa um lugar
central nas relações de poder entre as nações e após reco-
nhecer ainda sua determinação no crescimento e formato
das cidades, é necessário verificar como se dá essa relação
na periferia do capitalismo, já que esta guarda especificida-
des que a diferenciam dos países centrais.
Todos sabemos que as relações entre as nações do
mundo são assimétricas. Desde a expansão mercantilista até
os tempos atuais, dominados pela globalização, as relações
internacionais de dependência se aprofundam. Essa depen-
dência é biunívoca, porém não equilibrada, pois alguns paí-
ses têm uma posição subordinada e, outros, de supremacia
no quadro de poder internacional. Os poderes hegemônicos
impõem, frequentemente pela força, mas também pela per-
suasão, modo de vida, valores, cultura, que acompanham as
exigências da expansão dos mercados. Entretanto, é impor-
tante lembrar que, se a forma de inserção nas relações
internacionais é determinante para uma dada sociedade, há
que se levar em conta suas especificidades históricas.
No Brasil, de modo bastante semelhante ao de outros
países da América Latina, as cidades e as formas de mobi-
lidade guardam diferenças marcantes em relação aos casos
dos países centrais, em que pese a mimetização do modo de
vida. Essa dominação não se restringe apenas à importação
de modelos – como é o caso da cidade ou da vida orientada
pela matriz automobilística ou ao parque industrial que tem
no automóvel seu carro-chefe –, mas também se estende à
produção das idéias, ao desenvolvimento da ciência, da
tecnologia e da cultura. Necessidades básicas como o esgo-
to ou a habitação segura estão ausentes num quadro em que
estão presentes eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e
até automóveis. De fato, pesquisa desenvolvida durante
muitos anos na Faculdade de Arquitetura da Universidade
de São Paulo mostrou a presença de bens industriais moder-
nos (incluindo o automóvel usado) convivendo com a falta
de saneamento básico ou mesmo de um banheiro com as
mínimas condições técnicas de funcionamento nas favelas
11 Durante vários anos das dé- da metrópole paulistana.11 Esse é o quadro de uma indus-
cadas de 1970 e 1980, essa
pesquisa foi desenvolvida pe-
trialização calcada principalmente nas demandas da expansão
los professores Telmo Pam- capitalista internacional e não nas necessidades básicas do
plona, Yvonne M. Mautner e mercado interno. As conseqüências da dependência subor-
Erminia Maricato, juntamen-
te com alunos da disciplina dinada desde os tempos coloniais foram muito bem explo-
de Desenho Industrial. radas por diversos estudiosos da sociedade brasileira – Caio

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O automóvel e a cidade

Prado, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Roberto


Schwarz, Francisco de Oliveira, entre muitos. Podemos dis-
pensar seu desenvolvimento aqui para nos determos na
especificidade da mobilidade urbana, em especial da metro-
politana, na era da globalização.
Grande parte da cidade brasileira é construída infor-
malmente à margem da legislação urbanística e até da legis-
lação de propriedade. O mercado residencial formal abran-
ge menos da metade da população em nossas metrópoles. O
Estado não controla a totalidade do uso e da ocupação do
solo e nem oferece alternativas habitacionais legais. Uma
parcela da cidade, aquela que se dirige à maior parte da
população e evidentemente às parcelas de rendas mais bai-
12
xas, é resultado da compra e venda de loteamentos ilegais
Observa-se em todo o país
uma predominância de fave- ou simplesmente da invasão de terras. As favelas constitu-
las em áreas ambientalmente em a forma de moradia de grande parte da população me-
frágeis. O mercado imobiliá-
rio rejeita localizações de
tropolitana. Não se trata de exceção, mas de regra. Ao con-
baixa qualidade ou localiza- trário do senso comum, a maior parte das favelas não está
ções protegidas por legisla- nas áreas valorizadas pelo mercado, mas na periferia urba-
ção ambiental. Pois são exa-
tamente as áreas rejeitadas na.12 Até mesmo no Rio de Janeiro as favelas se localizam
pelo mercado que “sobram” em sua maciça maioria na zona norte e não na zona sul,
para o assentamento da po- como muitos pensam. Essas áreas periféricas, onde são lo-
pulação excluída do direito à
cidade, já que não lhe resta calizados também os conjuntos habitacionais de promoção
alternativas. É quase uma re- pública, constituem praticamente uma outra cidade: ilegal,
gra nas regiões metropolita-
nas a ocupação de mangues, informal, invisível, ou seja, um verdadeiro depósito de gen-
dunas, beira dos córregos, te desprovido de todos os equipamentos e serviços que
beira dos rios, várzeas, en- caracterizam a “cidade”. O transporte é precário, obrigando
costas ou matas.
13 A expressão “exílio na perife-
a população a longas jornadas a pé ou ao “exílio na perife-
ria” foi cunhada por Milton ria”, ou seja, grande parte da população, especialmente jo-
Santos, ao analisar a perma- vens do sexo masculino raramente deixam o bairro que
nência da população, especi-
almente masculina e jovem, oferece poucas condições para a prática de lazer, esportes
nos bairros da periferia de ou cultura.13
São Paulo, sem alternativas Na cidade do capitalismo periférico, a saúde, a previ-
de mobilidade na cidade.
SANTOS, Milton. Metrópole dência, a moradia digna e legal, a mobilidade urbana, são
corporativa fragmentada: o apenas para alguns, mas o modo de vida hegemônico sub-
caso de São Paulo. São Pau-
lo: Nobel, 1990. As pesqui- verte qualquer previsão. Por meio de mercado agressivo e
sas “origem-destino” da As- de estratégias de publicidade, esses produtos penetram no
sociação Nacional de Trans- interior das favelas, disseminando até produtos da revolu-
portes Públicos (ANTP) têm
mostrado que as condições ção digital. Algumas transnacionais (especialmente na área
de transporte têm piorado de celulares) desenvolveram uma estratégia especial para
após os anos 80 nas metró-
poles brasileiras.
entrar no mercado das favelas.14
14 Muitas das observações feitas Com a globalização, a partir dos anos 1980, o quadro
aqui estão baseadas em expe- de pobreza e desigualdade se aprofunda na cidade brasileira.
riência pessoal da autora, de A queda do crescimento econômico tem, como conseqüên-
35 anos de convivência com
áreas de moradia precária nas cia, a queda nos investimentos públicos e privados e o au-
cidades brasileiras. mento do desemprego. Essa tragédia é acompanhada de ou-

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Erminia Maricato

tra: a implementação de políticas neoliberais. Sob inspiração


do Consenso de Washington, do FMI e do Banco Mundial,
o Estado brasileiro implementa o ajuste fiscal, o corte de
subsídios nas políticas públicas, a privatização do patrimô-
nio público, a desregulamentação financeira e trabalhista,
atingindo também os serviços públicos. As conseqüências
dos recuos nos investimentos públicos não se fizeram espe-
rar: aumento da violência, aumento exponencial da popula-
ção moradora em favelas, aumento da população moradora
de rua, aumento da infância abandonada, retorno de epide-
15 Ver a respeito, MARICATO, mias que já estavam erradicadas, entre outras mazelas.15
Erminia, pósfacio do livro A área de transportes coletivos urbanos foi uma das
Planeta favela, de Mike
Davis. São Paulo: Boitempo, mais atingidas. Se a regulação estatal era precária antes de
2006. 1980, após o ajuste fiscal a situação piorou. A informalidade
ganha uma nova escala com as redes de vans e moto taxis
ilegais ocupando os vazios deixados pela ausência do Es-
tado, conforme mostram alguns dos textos que compõem
esta edição da revista.
Como já foi mencionado, as determinações gerais
decorrentes da expansão capitalista internacional não são as
únicas a definir o destino da mobilidade urbana em um país
como o Brasil, onde a desigualdade social está entre as
maiores do mundo, em que pese o país figurar entre as dez
maiores economias.
O Brasil, assim como os demais países do capitalismo
periférico, guardadas as diferenças, apresenta especificida-
des bastante estudadas pelos autores brasileiros citados an-
teriormente. “Desenvolvimento incompleto ou interrompi-
do”, “capitalismo travado”, “desenvolvimento moderno do
atraso”, são conceitos que, embora não totalmente satisfató-
rios, tentam explicar as características específicas da socie-
dade brasileira onde produtos, tecnologias, valores oriun-
dos nos setores internacionais de ponta convivem com con-
dições atrasadas e pré-modernas. Entre as características
presentes em nossa formação social, ganham destaque, na
16 Ver a respeito: ARANTES,
gestão urbana, o clientelismo, o patrimonialismo, a preva-
O. ; M A R I C AT O , E . & lência dos privilégios (esta condição é notável no judiciá-
VAINER, C. A cidade do rio), desprestígio do trabalho não intelectual, retórica que
pensamento único. Petrópolis:
Vozes, 2000. contraria a prática etc. Esta última característica está nota-
17 Ver o caso da cidade de São velmente presente nos Planos Diretores: textos detalhistas
Paulo durante gestão muni- e bem intencionados convivem com um pragmatismo ex-
cipal do prefeito Paulo Ma- cessivo na gestão. Por esse motivo é comum encontrarmos
luf, citado em: São Paulo
entre o atraso e a pós-mo- planos sem obras e obras sem planos.16 Os orçamentos
dernidade. In: SOUZA, Ma- públicos, especialmente municipais, privilegiam os investi-
ria Adélia Aparecida de. Me-
trópole e globalização. São mentos relacionados ao automóvel ou ao sistema viário,
Paulo: CEDESP, 1999. porém dificilmente o fazem seguindo o Plano Diretor.17 Por

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O automóvel e a cidade

18 A evidência da força eleitoral outro lado, não é pouco freqüente que urbanistas se dete-
das obras de asfaltamento foi nham nas regras de uso e ocupação do solo e ignorem que
percebida pela autora, quan-
do ocupava a Secretaria Exe- o grande promotor que orienta a ocupação do solo é o
cutiva do Ministério das Ci- transporte.
dades, em reunião com inú-
meros prefeitos. Alguns re-
A prioridade dada às obras viárias tem relação com os
conheceram que ganharam financiamentos das campanhas eleitorais, com a visibilidade
eleições com essas obras. A notável dos seus produtos, mas também se prestam muito
equipe que ocupava a dire-
ção do Ministério das Cida- ao jogo clientelista. A periferia desurbanizada é uma fonte
des entre 2003 e 2005 ten- inesgotável de dependência política que afirma a relação de
tou reorientar as emendas
parlamentares que previam
clientela. O asfalto, especialmente, tem forte apelo eleito-
obras parceladas de asfal- ral. 18
tamento em numerosos mu- Não é intenção eliminar aqui qualquer perspectiva
nicípios brasileiros sem qual-
quer orientação urbanística propositiva ou contribuir com o imobilismo, como fazem
(freqüentemente essas obras tantos textos acadêmicos críticos. Sempre há espaço para
negavam a orientação do ação, mesmo na vida profissional e, frequentemente, em
Plano Diretor). Quando isso
se revelou impossível, a equi- condições especiais, até mesmo no aparelho de Estado. Aos
pe tentou ao menos garantir pesquisadores, entretanto, impõe-se um mergulho mais
a canalização de esgoto e
drenagem nas ruas antes do profundo, renovador e necessariamente crítico. Este núme-
asfaltamento da superfície. ro de Ciência e Ambiente, com o qual tive a satisfação de
Foi tudo em vão. Mais da colaborar, oferece análises críticas e propostas para o en-
metade do orçamento do
Ministério das Cidades era frentamento de um dos maiores problemas ambientais e
dirigido a asfaltamento por sociais da humanidade.
meio das emendas parlamen-
tares.
Como se instalou entre nós a cultura do “rodoviaris-
mo”, quais foram seus agentes? Como chegamos à tragédia
verificada nos acidentes de trânsito, sempre atribuídos a
questões de natureza individual? Qual o peso e o custo do
automóvel, da indústria de infra-estrutura e da opção ener-
gética para o ambiente e para a saúde dos moradores urba-
nos? O que pode ser constituído com vistas a minimizar o
impacto dessa “indústria do automóvel” no meio ambiente
e para melhorar as condições de mobilidade da maioria da
população urbana? O que pode ser feito na tecnologia do
Erminia Maricato é graduada e automóvel ou em relação aos combustíveis para diminuir a
doutora em Arquitetura e Ur-
banismo e professora titular da emissão de gases poluentes? Quais as perspectivas de uma
Faculdade de Arquitetura e nova política energética? E em relação à cidade, quais mo-
Urbanismo da Universidade de dos de transporte ou política de mobilidade e uso do solo
São Paulo (FAUUSP). Foi se-
cretária de Habitação e Desen- podem ser introduzidos? Todas essas questões são aborda-
volvimento Urbano do municí- das pelos colaboradores desta edição da revista.
pio de São Paulo (1989/1992),
coordenadora do Programa de Algumas medidas são mais viáveis e não requerem
Pós-Graduação da FAUUSP transformações profundas. Outras propostas exigiriam mu-
(1998/2002), formuladora da danças significativas para sua implementação. Todas elas são
proposta de criação do Minis-
tério das Cidades e ministra decisivas para o movimento de negação dessa tragédia anun-
adjunta (2003/2005). ciada e dimensionada e contribuem para alimentar a cons-
[email protected] ciência social sobre tema tão fundamental.

12 Ciência & Ambiente 37

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