Copellia
Copellia
Copellia
Resumo
Freud possuía uma vivência pessoal com Les Contes d’Hoffmann, ópera de Jacques Offenbach.
Ela trata do horror da castração e da frustação amorosa em mais de quatro contos de E.T.A.
Hoffmann na adaptação do libretista Jules Barbier. A paixão do personagem Hoffmann por
Olímpia pode ser interpretada enquanto uma manifestação do fetichismo. Já Antonia o seduz
pelo seu canto e pelo desejo de ser famosa, tal qual uma Hortense Schneider, que interpretou a
Helena de uma ópera três vezes citada por Freud. E Giulietta, essa sedutora cortesã representa
o papel de uma esfinge – pelos olhos ela ameaça o herói, tal como um Édipo atormentado pelas
intrigas familiares. Educado por um tio severo, E.T.A. Hoffmann desenvolveu a sensibilidade
artística a partir do contato com a tia Sophie. Les Contes d’Hoffmann foi a última contribuição
do Maestro de Monmartre, que homenageia aquele que deixou seu registro na história en-
quanto juiz de direito, escritor e compositor.
Freud (1919) comentaria o Homem da janeiro daquele ano (Kaye; Keck, 2013). É
Areia para estudar a perda dos olhos en- como se algo estivesse querendo sair, mas
quanto metáfora para o terror da castração, existiam forças opostas: as portas do Ring-
ainda que inúmeros contos de Hoffmann theater só podiam ser abertas por dentro, o
lançassem mão de questões oculares (Sch- que em parte contribuiu para as mortes de
neiderman, 1983). Freud (1919) não deixa 1881 (Sühnhaus, 2016).
de observar a cena de suicídio de Natanael, Offenbach persistiu e, em 18 de maio de
muito parecida com a de Pauline Silbers- 1879, ofereceu uma première em sua resi-
tein. Se trocarmos o nome dele pelo dela, dência. Estiveram presentes león Carvalho, o
não obteremos uma exata descrição para o novo diretor da Salle Favart, e Franz Ritter
que ocorre com a paciente de Freud segundo von Jauner, do Ringtheater. A estreia foi um
aquele jornal de 15 maio de 1891? – Pauline sucesso, mas Carvalho exigiu inúmeras mo-
Silberstein “jaz no pavimento, a cabeça arre- dificações (Kaye; Keck, 2013). Em agosto
bentada” (Hoffmann, [1816] 1986). Freud de 1880, Jacques Offenbach havia já escrito
(1919) poderia estar refletindo sobre o suicí- vários trechos da ópera, mas a orquestração
dio da sua jovem paciente, já que ele próprio e o Epílogo estavam, supostamente, ain-
teria observado questões da vida amorosa de da pendentes. Em 11 de setembro daquele
Eduard Silberstein e estudado o suicídio de ano, começariam os ensaios para a première
sua esposa (Hamilton, 2002). mundial. Duas semanas depois, Hoffmann
Cinco anos antes do nascimento de Freud, teria terminado de escrever o trecho relati-
em março de 1851, Joseph-Jacques-Augustin vo à Aventura na noite de São Silvestre (Hof-
Ancessy, o diretor do Théâtre de l’Odéon, em fmann, [1815] 1873), o ato de Giulietta.
Paris, compôs música incidental para uma Segundo Kaye e Keck (2013), após o fa-
adaptação de contos de E.T.A. Hoffmann. lecimento do compositor, a sua família con-
Essa adaptação original foi dividida em cin- tratou Ernest Guiraud para finalizar a obra.
co atos conforme a leitura de Jules Barbier e Junto a Auguste-Jacques Offenbach, filho
Michel Carré. O primeiro criaria ainda uma do falecido, e Jules Danbé, a orquestração
adaptação musicada por Hector Salomon, e o Epílogo foram concluídos. A estreia da
em 1867 (cf. Huffmann, 1976; Kaye; Keck, versão completa estava prevista para o dia
2013). Jacques Offenbach regeu a performan- 5 de janeiro de 1881, o que não ocorreu, de
ce da versão de 1851 e sonhou que a obra po- forma que ela foi reagendada para o dia 31.
deria ser readaptada (Faris, 1980). No dia 28, o filho de Carvalho se acidenta-
Em 1873, um ano após o falecimento de ria num duelo, obrigando o adiamento por
Carré, aparecem os primeiros registros da mais uma vez. Em 1º de fevereiro, um ensaio
colaboração de Offenbach e Barbier para Les foi realizado com a participação da família
Contes d’Hoffmann. Em 1875, já existiam de Offenbach. A encenação durou 4 horas e
planos para uma performance na Salle Favart 30 minutos, exigindo cortes ulteriores. O ato
e uma primeira versão completa do libreto. referente à Aventura na Noite de São Silves-
Mas a demissão do diretor da Favart forçou tre foi excluído por inteiro, sob protestos de
a transferência da première para o Théatre de Jules Barbier. Mas era necessário encurtar a
la Gaîté. Com a falência do Gaîté, em 1875, obra e preservar os trechos mais relevantes,
Albert Vizentini intercedeu reformando a como a barcarolle, integrada no ato referente
casa e o seu repertório, justificando a perfor- ao Violino de Cremona (Hoffmann, [1818]
mance de Les Contes d’Hoffmann. O agora 1885).
chamado Théâtre-Lyrique anunciou a estreia A première oficial em Paris começou com
da ópera para a temporada de 1878, mas in- mais de 30 minutos de atraso. E mesmo com
felizmente o teatro fechou as portas em 3 de o programa terminando próximo à meia-
noite, o público pediu bis da Ária de Olímpia guinte com a inclusão da cena do reflexo no
e da barcarolle. Para a estreia em Viena foram espelho. Em 1907, a editora Choudens publi-
incluídos novos recitativos oriundos do texto caria sua quinta e definitiva edição com re-
de Barbier para o Gaîté, além da inclusão de citativos, que ficou por mais de 80 anos em
trechos cortados da estreia parisiense. Após uso no repertório das casas de ópera pelo
o incêndio, a ópera só retornaria a ser exe- mundo.2 Em 1976, Antonio de Almeida des-
cutada na capital austríaca 20 anos depois, cobriu 1.250 páginas da ópera na casa dos
quando um futuro paciente de Freud regeria Offenbach, o que levou à publicação da edi-
a orquestra na Wiener Staatsoper (Dibbern, ção crítica do Dr. Fritz Oeser em 1977. Em
2002). Theodor Reik (1949) descreveu o 1984, foram descobertos trechos cortados do
maestro Gustav Mahler enquanto um mago ensaio para estreia em Paris, que foram lei-
fabuloso. Reik (1949) resgata de sua memó- loados pela Sotheby’s e eventualmente doa-
ria o relato de que seu pai teria assistido à dos para a Universidade de Yale. Em 1993,
estreia vienense e que teria sido naquela oca- um musicólogo francês descobriu a partitura
sião que o incêndio teria ocorrido. Seu pai original para piano referente ao Ato de Giu-
teria escapado da morte ao se atirar por uma lietta, finalizado poucas horas antes da morte
janela do Ringtheater. Contudo, fontes histó- de Jacques Offenbach. Em 2004, foram reve-
ricas comprovam que o incêndio não ocor- ladas cópias das anotações de Guiraud nos
reu na estreia.1 arquivos de Paris (Kaye; Keck, 2013).
Ademais, sabemos que, entre 1886 e 1911, Entretanto, mesmo com todas as desco-
a ópera de Offenbach não foi mais executa- bertas, a ópera está fadada a ser uma obra
da na Salle Favart. Contudo, sabemos de incompleta. O método de Offenbach exigia
uma performance em Paris, no ano 1893, da uma adaptação após a estreia, o que era fei-
qual o conto de 1815 foi excluído. Nesse ano, to mediante uma negociação com a reação
Freud estava em frutífera correspondência do público. Tendo falecido antes da estreia
com Fliess, além de estar publicando traba- mundial em Paris, jamais saberemos como
lhos sobre histeria e hipnose (Jones, 1972). Offenbach teria repensado Les Contes d’Hof-
Mais ainda, sabemos da estreia da ópera na fmann (Faris, 1980).
Bélgica, em 28 de janeiro 1887, quando foi
impressa uma primeira partitura “completa” Sinopse
para orquestra. Em 25 de maio do mesmo O Prólogo (Ato I) da ópera inicia-se com
ano, um incêndio na Salle Favart, quando uma passagem possivelmente familiar a
da performance de uma ópera de Ambroi- Freud. Isso porque ela começa com o perso-
se Thomas, levou à destruição da partitura nagem título em um encontro com Nicklaus-
orquestral de Les Contes d’Hoffmann. Fe- se, que é a Musa da Poesia usando um dis-
lizmente, cópias das anotações originais de farce somente revelado no Epílogo (Ato V).
Guiraud sobreviveram. Entretanto, assim Quem se disfarça é Erato,3 a musa da poesia
como na tragédia do Ringtheater, muitas em Virgílio (1908, 7.37), poeta que Freud
pessoas morreram durante a performance da
ópera de Thomas (Kaye; Keck, 2013).
Em 1904, Raoul Gunsbourg reivindicou a 2. Essa é a edição de referência para o presente trabalho,
criação do Ato de Giulietta, com orquestra- ainda que saibamos de outras mais completas e que estão
na ordem apresentada na atualidade. Para fins de análise,
ção por André Bloch e Pierre Barbier. Essa seguiremos a ordem moderna, ainda que a paginação seja
adaptação reverberou em Berlim no ano se- referente à quinta edição da Choudens.
3. Geralmente apenas referida enquanto a Musa da Poesia.
Contudo, com base nas qualidades e apoiados pela sua re-
1. Por exemplo, sabemos de uma resenha de Eduard Hans- presentação na Ópera da Bastilha, em 2016, pensamos se
lick ([1881] 1984) para a estreia vienense. tratar da Musa Erato.
([1899] 2010] conhecia (1908, 7.312). Segun- cujas práticas alquímicas nos fazem lembrar
do Freud (1919), o locus suspectus (p. 299) [o das discussões entre o pai de Natanael e o
lugar estranho] é um exemplo de tradução Homem da Areia. Nesse sentido, os autores
para o Das Unheimliche. O mesmo Virgílio da ópera reforçam a ideia de que as três ama-
(1908) faz alusão ao Olimpo enquanto um lu- das são a mesma, por partilharem de deta-
gar distante (suspectus Olympum; 6.579). lhes de enredo que tornam uma próxima da
É sobre a estranha Olímpia (Freud, outra.
1919) que o Ato II se debruça. Nesse trecho, A nova paixão de Hoffmann, Antonia, fi-
sabemos da primeira frustração amorosa lha do Conselheiro Krespel, padece de uma
narrada por Hoffmann. O herói se apaixo- doença misteriosa. O pai a proíbe de cantar
na por ela, mas depois vem a descobrir que, – se ela o fizer, morre. Mas os amantes se en-
apesar de ser toda perfeita, ela era uma ma- contram secretamente no dueto “C’est une
quinação criada para enganá-lo. Olímpia chanson d’amour” (Offenbach; Barbier;
era uma boneca cujos olhos foram doados [1881] 1907, p. 288). Ato contínuo, o Dr.
por Coppélius, o Homem da Areia (Hof- Miracle, como se assumisse a função castra-
fmann, [1816] 1986). Como nos ensina dora do Homem da Areia, ou enquanto um
Freud (1919), como que citando Sófocles, é Mefistófeles, intervém tentando Antonia a
justamente o problema dos olhos que causa cantar. Assim, o fantasma da mãe é evocado,
mais inquietação, ao menos no que concer- e ele coloca que Hoffmann a deseja apenas
ne ao Homem da Areia, interpretação que por sua beleza e que, para se unir a ele, se-
Huffmann (1976) estende para o restante ria necessário abandonar a glória dos palcos
da ópera e Schneiderman (1983) para toda alcançada por ela. Hoffmann a encontra ao
a obra de E.T.A. Hoffmann. A descoberta final do Ato quando, já seduzida pelo Dr. Mi-
ocorre após Coppélius se enraivecer com racle, Antonia canta para morrer (Hadlock,
Spalanzani, o criador da boneca, porque 2016).
este estava agindo fraudulentamente para No Ato IV da ópera, adaptado a partir da
com aquele, que então destrói a boneca Aventura na Noite de São Silvestre, o herói re-
(Hadlock, 2016), impedindo o jovem de nunciou ao amor e está participando de jogos
se realizar na vida amorosa (Freud, 1919). apostados. Mas quando aparece Giulietta, ele
O Ato III foi extraído do Violino de Cre- se apaixona novamente, o que ocorre na fa-
mona (Hoffmann, [1818] 1885). Mais uma mosa barcarolle “Belle nuit, ô nuit d’amour”
vez Hoffmann se encontraria amorosamente (p. 196), cantada em dueto com Erato. Nesse
frustrado, mas agora em virtude de um Dr. Ato, Giulietta é orientada a roubar o reflexo
Miracle. É importante lembrar que o Dr. Mi- de Hoffmann por meio de um espelho (Ha-
racle aparece originalmente enquanto um dlock, 2016), o que nos faz pensar na obser-
personagem do conto de Giulietta, A Aven- vação de Freud (1919) acerca de sua estra-
tura na Noite de São Silvestre. Portanto, na nheza ao observar o próprio reflexo em uma
ópera, ocorre um deslocamento, de um con- viagem de trem.
to para o outro. “Miracle” é a tradução fran- Segundo Freud (1919), o seu estranha-
cesa de “Wunderdoktor, Signor Dapertutto” mento foi oriundo de uma falha no reconhe-
(Hoffmann, [1815] 1873, p. 288), que apa- cimento acerca de sua própria autoimagem
rece no original alemão. no espelho. Na ópera, os convidados do casi-
Contudo, Dibbern (2002) defende que no zombam de Hoffmann quando ele perde
o médico de Antonia tem inspiração direta o seu reflexo. A sua amada vem a óbito ao to-
em Alban, o hipnotista de um conto de 1814. mar o veneno originalmente destinado para
Ocorre a promoção de uma coerência, já que Nicklausse (Hadlock, 2016). É Erato que,
Alban é inspirado no Conde de Cagliostro, no Epílogo da ópera, reclama seu amor junto
daquele que se apaixona à primeira vista sem lacionar o fetichismo com algo que é infantil,
ponderar os perigos que isso pode causar. porque Natanael/Hoffmann falha na distin-
Além disso, a sua admiração por Olímpia ção entre objetos inanimados e animados
reverbera o efeito de maravilhamento que a (Freud, 1919). Isso em parte justifica Jents-
Europa da primeira metade do século XVIII ch (1906a, 1906b) no sentido da estranheza
teve para com os autômatos de Jacques de relativa à descoberta de que Olímpia era uma
Vaucanson (Castle, 1995). Contudo, con- boneca – porque Natanael/Hoffmann se dá
cordamos com Freud (1919), que apenas a conta de seu posicionamento infantil em re-
descoberta de Olímpia ser uma boneca não lação ao mundo. Ele se reconhece como um
é suficiente para gerar sensação de estra- adulto a brincar com uma boneca.
nheza. Ainda assim, é preciso lembrar que Notamos que Freud (1919) observa a
Freud começa a pensar no Das Unheimliche diferença de gerações para explicar seu en-
no mínimo ao final do século XIX, de forma tendimento sobre o que é o estranho, dando
que o impacto das invenções de Vaucanson mais atenção ao terror da castração. Mas isso
tiveram nele um efeito distante daquele que não implica que a tomada de consciência da
provocaram os autômatos do século anterior diferença de gerações não gere também um
(Castle, 1995). trauma. Concordamos, por exemplo, com
Ademais, concordamos novamente com Hentschel (2013), quando ele fala que o Er-
Freud (1919) na sua interpretação do conto lkönig, tanto de Franz Schubert quanto de
de Olímpia, que oferece uma crítica irôni- Carl Lowe, representa o estranho na música.
ca ao apaixonado. Isso porque ela não fala No Erlkönig, tanto a voz quanto o piano real-
muito, ainda que seja bela. Mesmo na ópe- çam essa sensação que temos quando nossos
ra, quando de sua Ária “Les oiseaux dans la “cabelos ficam de pé” (Hoffmann, [1816],
charmille” (p. 147), podemos notar um me- 1986).
canicismo no seu canto. O próprio acompa- Ao final do lied, o pai do rapaz encontra o
nhamento, na flauta e na harpa, parece imi- filho morto em seus braços, e isso após pri-
tar um orgue de barbarie. Toda a melodia é meiro desacreditá-lo quando o segundo aler-
repetida duas vezes, como se a música gerada tava que o Erlkönig o perseguia. De forma
pela manivela fosse exatamente duplicada. A similar ao comentário de Freud (1899/2010)
tão bem representada boneca poderia ser sobre La Bélle Hélène, ele dizia para o filho
uma metáfora para a mulher vazia ou mesmo que os seres da floresta eram apenas a névoa
inocente (Reik, 1949; Huffmann, 1976). ou o farfalhar das árvores. Tal fala, que seria
Quando Freud (1919) comenta o estra- típica da infância, é reconhecida com inquie-
nho em relação ao pensamento onipotente, tação pelo adulto quando o filho, que o avi-
parece haver uma sugestão de explicação sou, morre.
sobre o motivo pelo qual alguém se apaixo- Outro detalhe no Ato de Olímpia nos faz
naria por Olímpia. Nesse caso, Freud (1919) pensar no estranho. No conto de Hoffmann
disserta acerca da aplicação de poderes má- ([1816] 1986) fala-se de um trinado, um ar-
gicos (mana) a objetos, o que sugere a pre- tifício musical que aparece de forma proemi-
sença de um aspecto fetichista4 de Natanael/ nente no motivo do início do Ato e que se
Hoffmann. Nesse contexto, sua meta sexual repete ainda no Coro dos Convidados. No
se destina a um ser inanimado, o que ele conto original, o trinado marca o desejo de
pensa poder satisfazê-lo sexualmente – uma Natanael em dançar com Olímpia. Na ópera,
“mulher” que só lhe dá prazer! Podemos re- o trinado é evidente no solo de flauta ao iní-
cio e em meio às vocalizes de Olímpia. Pode-
4. Seria um caso de “Agalmatofilia”, tal como Von Krafft-E- mos pensar que se trata de um artifício que
bing (1886) observou. confere a ela o seu mágico poder sedutor.
O motivo com trinados no coro dos Bovary isolada no campo (Flaubert, 1857).
Convidados “Non, aucun hôte” (p. 131) tem A solução do casamento formal, ainda que
um clima festivo em claro contraste com o inicialmente ofereça conforto, priva Antonia
monotônico “mesdames et messieurs” (p. de se realizar pessoalmente, o que exige dela
138) de Spalanzani, cantado em Lá Maior. um excesso fatal. Huffmann (1976) aponta
O canto monotônico aparece ainda quando que tanto Hoffmann quanto o pai da cantora
Coppélius descobre que Spalanzani o estava são cegos para Antonia, por não reconhece-
enganando em “Voleur! brigand! quelle dé- rem o sonho dela de ser cantora lírica.
route!” (p. 166), em Si bemol menor – que A versão da ópera contrasta, e muito, com
ocorre quando ele descobre que o cheque de o conto original, no qual o amante de Anto-
500 ducados, oferecido por Spalanzani pelos nia, ainda que tenha prometido que não fa-
olhos de Olímpia, não tinha fundo. Coppé- ria sua amada cantar, acaba unindo-se a ela
lius inicia então as maquinações para a sua em uma cena musical na qual não é possível
vingança, que culminam com a destruição enxergar quem canta ou toca o piano. Nesse
da boneca. ponto, Antonia já havia aceitado a proibição
Além da tomada de consciência sobre o do pai em não cantar, e um violino já havia
trauma da diferença de gerações e a ligação incorporado a sua voz – o som de suas cor-
de Olímpia com Spalanzani e Coppélius, um das cantava por ela.
terceiro argumento nos faz pensar, do ponto Na versão original, entendemos que tudo
de vista musical, que Olímpia causa uma sen- que entre nós permanece apenas em pensa-
sação de estranheza no Hoffmann da ópera. mento, Krespel, pai de Antonia, tornava em
Três compassos antes de “Tu me fuis?” (p. ato. Era um homem de manias excêntricas,
131) já podemos escutar uma linha melódica que tinha o estranho hábito de adquirir um
tenebrosa nos instrumentos de cordas. Essa violino para tocá-lo apenas uma vez, e de-
ideia musical retorna pouco antes da des- pois guardá-lo. O conto menciona um vio-
coberta de que Olímpia era uma boneca em lino de Krespel que falava com ele de uma
“Un automate!” (p. 184). Ocorre que em “Tu forma estranha, de forma que ele se sentia
me fuis?”, Hoffmann teme perder o seu amor, um mesmerista revelando a arte produzida
como se houvesse uma ameaça de castração pelo próprio instrumento. Antonia gostava
ligada não à perda dos olhos, mas do objeto muito daquele instrumento. Quando de sua
de amor. A ideia musical nas cordas aparece morte, o violino se parte em muitos pedaços
justamente antes da ameaça se concretizar. (Hoffmann, ([1818] 1885). E eram muitos
Num primeiro momento ele teme perder os olhos com os quais Krespel vigiava sua
algo. Num segundo, o medo se concretiza. E filha, tal como um Argos Panoptes, cujos
assim, ele perde o seu primeiro amor. olhos são entregues por Hermes a Hera na
pintura de Goltzius.
Antonia e o canto da morte Ainda que a questão ocular apareça en-
Entre as paixões de Hoffmann, Antonia é quanto fonte de censura no Violino de Cre-
a que mais possivelmente pode ser ligada à mona, pensamos que ela nos faz pensar não
Stella, porque ambas partilham do dom do apenas no estranho (Freud, 1919), mas no
canto. Segundo Huffmann (1976), é a ino- Supereu (Freud, 1923). Antonia é proibida
cência de Olímpia e a sedução do canto que de cantar, ela não deve ser como a mãe. A ela
atraem Hoffmann para o campo do amor. é aplicada a negação operada pelo verbo dür-
Contudo, ainda que Antonia possua instru- fen, tal como Freud (1923) o fez quando da
ção musical, Hoffmann nega o seu talento, sua explicação para a formação do ideal do eu
exigindo que ela opte por um estilo de vida – observação que escapa ao registro de Sch-
sem glamour, mais típico de uma Madame neiderman (1983). Estranhamente, a proibi-
ção do pai se aplica também ao interesse de ga a cantar. Tal como notamos na biografia
Antonia em se casar e ter uma vida social, de Hortense Schneider, a Antonia da ópera
impedindo-a de se realizar dentro do que é é consumida pelo macabro abraço maternal
permitido socialmente. Para ela, o que lhe é da morte (Hadlock, 1994, 2016).
devido (sollst du sein; Freud, 1923, p. 40) é A Cena do Diagnóstico de Antonia tam-
também proibido (darfst nicht du sein, p. 40). bém merece atenção. Pouco antes da pro-
No Ato de Antonia podemos pensar tam- messa do Dr. Miracle, de que se Antonia
bém na questão ocular em semelhança com cantar, ela não sobreviverá, Hoffman canta
o trauma ligado ao Homem da Areia (Hof- “Suis-je le jouet d’un rêve? Est-ce un fantô-
fmann, [1816] 1986). Se Hoffmann e Kres- me?” (p. 314). Presa na cegueira do pai e do
pel proíbem Antonia de cantar, o Dr. Mira- amante, a cantora encontra na mãe o amparo
cle, enquanto marionetista, propõe o contrá- fatal para o conflito. Ela sai da cena incestuo-
rio. De posse do violino, ele covardemente a sa com o pai quando pensa em se casar com
compele a cantar. Junto a ele, o fantasma da Hoffmann. Mas nessa transição ela acaba se
mãe arranca o sopro da vida de Antonia. Em fundindo com a mãe na morte, realizando
“Quelle flamme éblouit mes yeux?” (p. 349), questões homossexuais, tal como Dora, que
fala-se um pouco do trauma de Natanael não escapou à metáfora do galvanômetro, tí-
num verso sobre chamas e olhos. O ardor pica do imaginário dos autômatos do século
de Antonia e a herança de sua mãe, a voz, a XVIII (Castle, 1995). Somente o clínico en-
fazem transcender (suspectus) a capacidade tende sua dor, que faz uma metáfora que usa
humana para o canto (Hoffmann, ([1818] um simbolismo similar ao de Erlkönig em
1885), além de causar a sua queda. Nem as “N’as-tu pas entendu, dans un rêve orgueil-
superstições do pai, nem a promessa de amor leux ainsi qu’une forêt par le vent balancée”
de Hoffmann fazem com que ela ceda ao im- (p. 333-334). No caso, as fantasias de Anto-
perativo categórico – ela não deve cantar. nia de ser amada pelo público têm como fon-
Segundo Hadlock (2016), o canto da mãe te o desejo de se tornar como a mãe. Mas há
nos remete a outro lied de Schubert, que nos uma corrupção, já que pelo canto ela não será
remete à roca de fiar, o Meine Ruh’ ist hin. A curada de sua aflição, uma vez que morre.
referência aqui é a Gretchen, essa apaixona-
da personagem faustiana que nos faz pensar Giulietta, ou o enigma do espelho
tanto na mulher domesticada como na trans- Se Antonia e sua mãe foram criadas a par-
gressora infanticida. tir da inspiração em Hortense Schneider, é
Antonia é como uma metamorfose de Giulietta, a terceira paixão de Hoffmann,
Stella, cantriz caprichosa. Uma Hortense que nos faz pensar mais no papel social que
Schneider, que reduziu a Belle Hélène a ca- a soprano francesa ocupou – o de uma das
racterísticas humanas, mas elevou os ensaios demimondaine, estrela do palco sustenta-
a proporções míticas e divinas, em virtude da por ricos homens muito interessados na
de suas exigências típicas da Angela, a mãe beleza delas. Havia uma corrupção moral e
de Antonia no original de E.T.A. Hoffmann. espiritual em Paris, muito ilustrada na pena
A escolha entre a vida social respeitada e a de Émile Zola (Hadlock, 1994). O mesmo
vida de cantora era o dilema de toda mu- Zola é lembrado por Freud (1916) na sua Li-
lher musicista no século XIX. Seduzida pela ção 17, quando fala da degeneração que afli-
promessa materna de se tornar uma grande ge mesmo os grandes homens como E.T.A.
estela dos palcos e enfeitiçada pelo violino Hoffmann.
do Dr. Miracle, os elementos reprimidos de Giulietta é uma cortesã com grande poder
sua psique ficcional vêm à tona de forma que de sedução. Ela já havia enfeitiçado Schlémil
ela não consegue controlar isso que a obri- quando Hoffmann entra em sua vida. É com
Schlémil que Hoffmann duelaria pela chave século seguinte, numa cena de Madame Bo-
do quarto da cortesã. E se a perda da sombra vary (Flaubert, 1857), o barômetro e o es-
de Schlemil já pode nos provocar uma sensa- pelho são associados à sexualidade feminina.
ção de horror, um outro objeto nos faz pen- Em uma cena de fúria de Madame Bovary, o
sar no estranho (Castle, 1995). Para Freud barômetro, tal como o Violino de Cremona,
(1919), tanto as sombras quanto os espelhos se quebra em muitos pedaços. E o que dizer
são associados ao fenômeno do duplo: o Do- da superstição sobre espelhos quebrados? E a
ppelgänger. boneca despedaçada?
Mas, se na ópera já somos impostos a esses Segundo Castle (1995), espelhos foram
objetos que causam a sensação de estranheza, gradualmente introduzidos nos ambientes
somos comovidos também por uma opera- domésticos a partir da Idade Média, e eles
ção de castração em relação ao duplo. Na sua fomentaram o sentimento do individualis-
doce Ária do Diamante, Dapertutto descreve mo burguês mais do que qualquer dogma
a joia enquanto um espelho que prende a co- religioso ou corrente filosófica. Ademais, o
tovia – é nessa ária do Ato de Giulietta que espelho permite a autocontemplação, realça
se faz menção a uma ave, diferentemente dos a experiência do duplo e promove a amplia-
dois outros atos, quando Olímpia e Antonia ção da consciência de si mesmo. Para Freud
falam do amor desde uma metáfora aviária. (1919), o duplo gerado na imagem especular
E se ocorre esse intrigante deslocamento da garante uma certa segurança ao Eu. A auto-
dita metáfora no Ato de Giulietta, Huffmann contemplação, de fato, só é possível graças a
(1976) destacou que Dapertutto é o único vi- essa faculdade de podermos observar a nós
lão que não tem motivo evidente para frus- mesmos. Certa vez, Freud (1919), numa via-
trar Hoffmann: Coppélius quer também algo gem de trem, se deparou com a presença de
de Spalanzani, o Dr. Miracle quer Antonia, um outro que lhe causou grande estranheza.
mas Dapertutto deseja apenas o reflexo de Como se desmentisse o princípio da incer-
Hoffmann. teza intelectual (Jentsch, 1906a, 1906b),
Estaria o motivo de Dapertutto encerrado Freud (1919) alega que o seu desgosto em
por um enigma? Ele canta: “Allez!... pour te relação ao seu reflexo, que ele falhou ao reco-
livrer combat les yeux de Giulietta sont une nhecer o que era em realidade, é um vestígio
arme certaine” (p. 216), numa alusão aos do que se entende por estranho.
olhos da cortesã. Já Hoffmann, em sua “Que Segundo Huffmann (1976), é na cena da
d’un brûlant désir” (p. 203) não deixa de jogar perda do reflexo que Hoffmann se encontra
com uma condensação poética entre os ter- em perturbação psicológica próxima à que
mos “deux beaux yeux” (p. 207) e “chants jo- ele vive na Cena do Diagnóstico no Ato de
yeux” (p. 206-207), com amplo uso de cantos Antonia e na mirada de Olímpia com os ócu-
monotônicos e uma metáfora incendiária. los de Coppélius. Não se trata, portanto, de
Nesse trecho, Hoffmann fala do efeito que uma estranheza meramente provocada pelo
os olhos da cortesã têm sobre ele – eles põem vislumbre do seu duplo, mas da perda do
em chamas o seu coração, metáfora que pode que é familiar a todos que se olham no es-
aludir ao Homem de Areia em um sentido pelho. A perda do reflexo é associada a uma
distante, já que nos é mais familiar o uso das figura literária já muito estudada pela psica-
chamas para designar as paixões ardentes. Ao nálise,5 a do vampiro. Ainda que desconhe-
sucumbir à sedução de Giulietta, Hoffmann
entrega seu reflexo para esse objeto que, jun- 5. Além de quatro estudos de Maria Bonaparte, Melanie
to aos barômetros e galvanômetros, havia se Klein e Heinrich Racker estão entre os autores psicanalistas
das mais de cinco centenas de contribuições que comentam
tornado uma parte essencial da decoração o problema em questão. Von Krafft-Ebing (1886) também
doméstica no início do século XVIII. No estudou alguns casos de vampirismo.
çamos qualquer indicação sobre Dapertutto enigmas. Ela enfeitiçava todos que tentas-
ser uma espécie de vampiro, em Vampiris- sem algo dela. Da Grécia no século V a.C.
mus (Hoffmann, [1819] 1892) sabemos de sabemos do cílice do Vaticano (H 569), do
uma mulher a quem não se recomenda amar. Pintor de Édipo, que ilustra o confronto es-
Com olhos privados pela faculdade da visão, cópico, tradição iconográfica que representa
a vampira detesta a luz. Ela pertence ao fol- o embate não por meio do enigma, mas pela
clore do Conde Drácula que, segundo Stoker sedução mortífera do olhar. O enigma envol-
(1897), não possuía reflexo no espelho. Nes- ve um desafio intelectual, e exige que o he-
se sentido, pensamos que o Ato de Giulietta rói não seja seduzido sexualmente por quem
ilustra, de forma disfarçada, o interesse de proferiu o enigma.
Dapertutto por Hoffmann. Ao torná-lo ho- Quando Giulietta canta “Je le veux, sagesse
mem sem reflexo no espelho, Dapertutto es- ou folie” (p. 235), ela convence Hoffmann de
taria ocultamente se alimentando, canibalis- que ele deve entregar seu reflexo no espelho
ticamente, de Hoffmann. Se nossa hipótese é para ela. O verso cantado por Giulietta tem o
verdadeira, Hoffmann não perde somente o mesmo motivo musical cantado por Krespel
reflexo, mas todo o seu sopro de vida. em “Misérable assassin” (p. 317), quando o
Mesmo que deixemos de lado a especu- conselheiro acusa o Dr. Miracle de ter cau-
lação sobre a identidade real de Dapertut- sado a morte de sua esposa, sugerindo ainda
to, Vampirismus (Hoffmann, [1819] 1892) uma ansiedade de perder a filha. Não é algo
nos oferece uma reflexão que pode explicar similar que teme Hoffmann ao não ceder
a diferenciação teórica de Freud (1919) em aos caprichos da cortesã? Ela entende que o
relação a Jentsch (1906a, 1906b). Hoffmann preço pelo seu amor envolve algo que é de
([1819] 1892) nos conta que a ideia de algo ordem pessoal para ele. Infelizmente, para o
causa mais horror do que a coisa ela mes- herói, tudo não passava de um estratagema,
ma. Segundo Cixous (1976), Jentsch (1906a, Giulietta não queria o seu amor, mas sim o
1906b) procura pelo Unheimliche apenas na diamante oferecido por Dapertutto. Ela o
vida cotidiana, ao passo que Freud (1919) es- abandona em uma gôndola, rindo do poeta
tuda também os casos da Literatura. Segun- na barcarolle – e morre envenenada.
do Hoffmann ([1819] 1892), para provocar
horror não é preciso um vampiro: basta uma Conclusões
ideia simples, como a de uma mera boneca. É Em 1872, Jacques Offenbach viveria a estreia
na construção do texto que o autor consegue do primeiro de seus Contos de Hoffmann mu-
transformar isso que é simples em algo que sicado. Na ocasião, Le Roi Carotte, da mesma
causa a sensação de horror. Nesse sentido, coletânea de Vampirismus, fala de uma joia
pensamos que a ansiedade ligada à castração roubada, tal como o cobiçado diamante de
não pode ser pensada fora do contexto literá- Dapertutto. Mas a Ária de Giulietta encontra
rio em que ela aparece: não é a incerteza in- suas origens em uma obra ainda mais anti-
telectual que causa a inquietante estranheza, ga de Offenbach (1864) – a sua Die Rheinni-
mas ela participa do jogo literário que emula xen. A barcarolle foi originalmente composta
o terror da castração. para essa obra em que a heroína Armgard
Mas é em outra criatura fabulosa ainda morre cantando tal como Antonia – mais
mais familiar à psicanalise que pensamos um exemplo de condensação dos contos de
durante o Ato de Giulietta. Hadlock (1994) Hoffmann.
destaca que Giulietta é a única paixão de Pensamos que Les Contes d’Hoffmann
Hoffmann que não possui um momento encerra não apenas três mulheres, tal como
de prima-donna. Sua sedução é feita pelos Reik sugeriu. Além de citações diretas ao
olhos. Pensamos na esfinge, que cantava Homem da Areia, o Violino de Cremona e à
Aventura na Noite de São Silvestre, sabemos o terror da castração está implicado também
de citações diretas ou indiretas de contos de na perda da mulher amada.
Hoffmann, como Don Juan, Kleinzach, Der Via de regra, pensamos no conceito do
Goldne Topf, Die Hypnotiste, Le Roi Carotte, estranho não apenas desde a leitura histo-
Vampirismus, Die Automate e Datura Fas- riográfica de Terry Castle. Interpretamos a
tuosa, entre outros que se associam semanti- criação de um gênero literário e o seu efeito
camente a eles, em especial quando falamos no leitor. Assim, o Romantismo alemão de
de uma força diabólica à qual o herói deve se E.T.A. Hoffmann faz emergir o gênero do
opor (Taylor, 1976). A ópera de Offenbach horror gótico, cuja finalidade é gerar descon-
se realiza por meio de operações de conden- forto e arrepio no leitor, como no caso das
sação e deslocamento entre várias obras de obras das irmãs Brontë, Poe, Doyle e Steven-
Hoffmann e a sua história pessoal. son. Mesmo que o romancista parta de uma
Destacamos também que a lógica de Reik ideia simples, como uma boneca, o leitor é
é frágil se observamos a frustração amorosa capaz de sentir uma sensação que evoca suas
com Stella porque ela é a quarta mulher com ansiedades de castração vividas na infância.
quem Hoffmann se decepciona, ainda que Um grande t(r)emor é sentido, em especial
ela não deixe de guardar semelhanças com as quando o leitor chega às frases finais do con-
amadas de outros contos, nos quais persona- to. É assim que, mesmo aquilo que é mais
gens paternais fantasmagóricos sempre in- familiar, promove a sensação de estranheza.
tercedem para proibir Hoffmann de se reali- Mas afinal, porque Freud (1919) citou Les
zar amorosamente. Seria o caso de emprestar Contes d’Hoffmann? Primeiramente, o am-
de Schneiderman a questão do Ideal do Eu e biente cultural envolvido pelo horror gótico
supor que a mulher amada é sempre uma va- sem dúvida influenciou o início de sua prá-
riante da mãe – e não somente Olímpia, como tica clínica – em especial, a hipnose, método
Reik sugere. Nesse sentido, o pai sempre im- que Freud usou após seguir a trilha científi-
põe uma proibição. Os contos de Giulietta e ca aprendida em Paris, diga-se de passagem,
Olímpia, em especial, sustentam essa análi- antes de morar no endereço do Ringtheater.
se porque são os únicos em que Hoffmann Por um lado, a temática de Les Contes d’Hof-
estava comprometido com uma mulher fmann está diretamente relacionada com o
com quem vivia sua vida burguesa modesta. início de sua prática, a qual ele acaba aban-
No ato de Antonia, sua frustração amoro- donando em prol da associação livre. Por
sa se deve justamente à ligação a uma amada outro, pensamos que sua experiência clínica
a qual ele é incapaz de convencer a viver a não o abandonou por completo ao longo dos
vida prometida a uma Madame Bovary – a cerca de 40 anos entre a estreia da ópera de
retórica do Dr. Miracle é mais eficaz. No Ato Offenbach e a publicação de Das Unheimli-
de Antonia, Hoffmann, ainda que não realize che. Por exemplo, quando Freud (1919) fala
sua própria fantasia incestuosa, falha em im- do mau-olhado, é difícil não pensar na ópera
pedir a manifestação da transgressão inter- de Offenbach (Reik, 1949).
dita pelas leis de parentesco – falha similar à No seu Prefácio, James Strachey (1955) se
que se aplica a Dona Anna, exigindo que um assume incapaz de datar quando Freud ini-
convidado de pedra, tal como um Drácula ciou sua escrita sobre o tema. Talvez seja um
na porta de seu castelo, aplique o seu casti- excesso de especulação propor que o germe
go. Em Sófocles (1883, 1265-1284), Édipo para Das Unheimliche (Freud, 1919) esteja na
sofre a perda da mulher amada, porque ela vivência pessoal de Freud com o incêndio no
é a mãe, e a Édipo não é devido amá-la com Ringtheater. Contudo, notamos que há algo
o pênis. Ao descobrir sua identidade, ele fere de estranho com Les Contes d’Hoffmann,
os seus olhos. Com Hoffmann, notamos que mas por uma razão musicológica.
FREUD, S. The Interpretation of Dreams. The Comple- HOFFMANN, E. T. A. The Serapion Brethren [1819].
te and Definitive Text Translated and edited by James Translation: A. Ewing. London: George Bell & Sons,
Strachey (1899). New York: Basic Books, 2010. 1892, vol. II.
FREUD, S. Vorlesungen zur einführung in die psychoa- HÖßLER, K. II. Hoffmanns Gestalten in Offenbachs
nalyse. Zweiter teil: Vorlesung V-XV (Der Traum). Oper. Jahrbuch der Psychoanalyse. Stuttgart, v. 23, n.
Leipzig und Wien: Hugo Heller, 1916. 275-287, 1988.
GREVE, G.; HÖßLER, K. Von den Erzählungen E.T. HUFFMANN, R. S. Les Contes d’Hoffmann: Unity of
A. Hoffmanns zu J. Offenbachs Oper: Hoffmanns Dramatic Form in the Libretto. Studies in Romanti-
Erzählungen“. Psychoanalytische Überlegungen zu cism. Baltimore, v. 15, n. 1, p. 97-117, 1976.
Dichtung und Musik. Jahrbuch der Psychoanalyse,
Stuttgart, v. 23, p. 261-274. 1988. JENTSCH, E. Zur Psychologie des Unheimlichen.
Psychiatrisch-Neurologische Wochenschrift. Halle, v. 8,
HADLOCK, H. Mad Loves: Women and Music in Of- n. 22, p. 195-198. 1906a.
fenbach’s Les Contes d’Hoffmann. Princeton: Prince-
ton University Press, 2016. JENTSCH, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen.
Psychiatrisch-Neurologische Wochenschrift. Halle, v. 8,
HADLOCK, H. Return of the repressed: The prima n. 23, p. 203-205. 1906b.
donna from Hoffmann’s Tales to Offenbach’s Con-
tes. Cambridge Opera Journal, Cambridge, v. 6, n. JONES, E. Sigmund Freud Life and Work: The Young
3, p. 221-243. 1994. DOI: https://doi.org/10.1017/ Freud 1856-1900. v. I. London: The Hogarth Press,
S0954586700004316. 1972.
KAYE, M.; KECK, J.-C. Les Contes d’Hoffmann. Criti- Österreich/FISA filmstandort austria/ORF Film/
cal edition. Mainz: Schott Music, 2013. Fernseh-Abkommen/freibeuter film/Filmladen.
Disponível em: https://vimeo.com/ondemand/
KOPITZ, K. M. Beethovens »Elise« Elisabeth Röckel houseofatonement.
Neue Aspekte zur Entstehung und Überlieferung des
Klavierstücks WoO 59. Die Tonkunst. Weimar, v. 9, n. TAYLOR, R. Music and Mystery: Thoughts on the
1, p. 48-57. 2015. Unity of the Work of E. T. A. Hoffmann. The Journal
of English and Germanic Philology, Champaign, v. 75,
OFFENBACH, J. La Bélle Hélène. Opéra bouffe en 3 n. 4, p. 477-491, out. 1976.
actes. Paris: Heugel, 1865?
VIRGIL. The Æneid of Virgil. Trad. de T. C. Williams.
OFFENBACH, J. Les Fées du Rhin (Die Rheinnixen), Boston: Houghton Mifflin Company; Cambridge: The
Klavierauszug [1864]. Mainz: Schott Music, 2007. Riverside Press Cambridge, 1908.
OFFENBACH, J; BARBIER, J. 1907. Les Contes d’Hof- VON KRAFFT-EBING, R. Psychopathia Sexualis.
fmann [1881]. 5. ed. Paris: Choudens. Eine Klinisch-Forensische Studie. Stuttgart: Ferdi-
nand Enke, 1886.
OFFENBACH, J; SARDOU, V. Le Roi Carotte. Opéra
-bouffe-féerie en 4 Actes 18 Tableaux. Paris: Choudens, Recebido em: 12/10/2020
1872. Aprovado em: 20/11/2020