Crianças Selvagens - Danielle.2
Crianças Selvagens - Danielle.2
Crianças Selvagens - Danielle.2
“A família já vivia naquela casa alugada e arruinada há quase três anos quando alguém
viu pela primeira vez um rosto de criança à janela. Uma menina pálida, de olhos
escuros, levantara um cobertor sujo que cobria a janela partida e espreitara para fora,
recordou um vizinho. Toda a gente conhecia a mulher que vivia na casa com o
namorado e dois filhos adultos. Mas nunca tinham visto lá uma criança. A menina
parecia não ter mais do que 5 ou 6 anos. Era magra, demasiado magra. A cara parecia
chupada, os olhos sumidos. A criança olhou fixamente para a praça cheia de sol e
depois desapareceu. (…)
Pouco antes do meio dia de 13 de julho de 2005, um carro da polícia de Plant City
estacionou diante da janela partida. (…) O investigador Mark Holste estava há 18 anos
na corporação quando foi enviado, junto com um colega, à casa situada na Old Sydney
Road para intervir numa investigação de abuso infantil. Encontrou um carro estacionado
em frente. A porta do condutor estava aberta e, dobrada sobre o volante, uma mulher
soluçava. Era uma investigadora de Departamento de Crianças e Famílias da Florida.
“Inacreditável”, disse ela a Holste, “o pior que vi até hoje”.
Os agentes passaram pela porta da frente e entraram numa sala pequena. “Já estive em
salas onde cadáveres se decompunham ia para uma semana e o cheiro nunca havia
sido tão mau”, disse Holste mais tarde. “Não tenho palavras para descrever o que vi.
Urina e excrementos de cães, gatos e humanos estavam espalhados pelas paredes e
pela carpete. Tudo era humidade e putrefação”. Cortinas esfarrapadas, amareladas pelo
fumo dos cigarros, pendiam de varões de metal retorcidos. (…) O lixo cobria um divã
cheio de nódoas. O chão, as paredes e até o teto pareciam mover-se debaixo de legiões
de baratas em fuga. “O som era como se caminhássemos sobre cascas de ovos”, disse o
investigador. “Estavam nas luzes, na mobília, até dentro do congelador!” Enquanto
Holste olhava à sua volta, uma mulher corpulenta de bata desbotada veio perguntar o
que se passava. Sim, vivia ali. Sim, eram os dois filhos dela que estavam na sala. A
filha? Sim, tinha uma filha...
O polícia passou por ela e entrou num vestíbulo estreito. Abriu uma porta que dava para
um espaço do tamanho de um closet. Perscrutou a escuridão. Aos seus pés, alguma
coisa se mexeu. Primeiro viu os olhos da rapariga: escuros e grandes, não fixavam nem
pestanejavam. Não olhava para ele, antes através dele. Estava deitada no chão, sobre um
colchão roto e cheio de mofo, enroscada de lado, as longas pernas dobradas e
encostadas ao peito escanzelado. As costelas e clavículas eram salientes. Um braço
delgado escondia-lhe a cara. Tinha o cabelo escuro desgrenhado e cheio de piolhos.
Picadas de insetos, erupções cutâneas e feridas salpicavam-lhe a pele. Embora parecesse
ter idade para andar na escola, estava nua – exceptuando uma fralda ensopada.
“Quando me baixei para a levantar, ela guinchou. Parecia que estava a pegar num
bebé”, disse Holste. “Deitei-a sobre o meu ombro e aquela fralda começou a pingar-
me na perna”. A rapariga não oferecia resistência. Holste perguntou-lhe como se
chamava, mas ela parecia não ouvir. Procurou algo para a vestir, mas apenas encontrou
roupa enrodilhada e manchada de fezes. Tentou descobrir um brinquedo, uma boneca,
um peluche. “Mas os únicos que encontrei estavam cobertos de larvas e baratas”.
Engolindo a cólera, aproximou-se da mãe. Como podia deixar que isto acontecesse? “A
declaração da mãe foi: Estou a fazer o melhor que posso”, contou o investigador. “Eu
disse-lhe: O melhor que pode é péssimo!” (…) O agente levou a rapariga através do
hall mal iluminado (…) e lembra-se de ter dito ao colega “Se esta criança não for já
para um hospital, não conseguirá sobreviver”.
O nome dela, tinha dito a mãe, era Danielle. Tinha quase sete anos de idade. Pesava
vinte e um quilos. Estava malnutrida e anémica. Na unidade pediátrica de cuidados
intensivos tentaram alimentá-la, mas ela não sabia mastigar nem engolir alimentos
sólidos. Puseram-na a soro e deixaram-na beber por um biberão. Deram-lhe banho,
limparam-lhe as feridas do rosto, trataram-lhe das unhas partidas. Tiveram de lhe cortar
o cabelo emaranhado antes de a poderem livrar dos piolhos.
Encolhida num berço de grande formato, Danielle enroscou-se como um bicho da
batata, depois contorceu-se, furiosa, pontapeou e estrebuchou. Para se aclamar, bateu
com os pés e chupou os dedos da mão. Não olhava ninguém nos olhos. Não reagia ao
calor e ao frio, nem à dor. A inserção da agulha do soro não suscitou qualquer reação.
Nunca chorava. Com uma enfermeira a segurá-la pela mão, mantinha-se de pé ou
andava de lado nas pontas dos pés, como um caranguejo. Não sabia falar nem abanar a
cabeça para dizer sim ou não. De vez em quando, gemia.
Kathleen Armstrong, diretora de Psicologia Pediátrica na Faculdade de Medicina na
Universidade do Sul da Florida, foi a primeira psicóloga de Danielle. Disse que as
análises clínicas, os exames ao cérebro à visão e ao ouvido, bem como as análises
genéticas não tinham encontrado qualquer anomalia na criança. Não era surda, não era
autista, não tinha afeções físicas, como paralisia cerebral ou distrofia muscular. O
cenário em casa, aliado à sua condição quase comatosa, levou os médicos a acreditar
que nunca tinha recebido cuidados para além de uma alimentação precária. Era frágil e
bela, mas o que quer que seja que faz de alguém um ser humano, parecia estar em falta.
Armstrong designou a doença da criança como “autismo ambiental”. Danielle tinha sido
privada de interação durante tanto tempo que se havia retirado para dentro de si própria.
O que era mais estranho, segundo Armstrong, era a sua falta de interesse pelas pessoas
ou por qualquer coisa. “Não havia qualquer luz nos seus olhos, nenhuma reação,
nenhum reconhecimento... Víamos uma menina que nem sequer reagia a abraços ou ao
carinho. Mesmo uma criança com o autismo mais grave reage a isso”.
As autoridades descobriram a mais rara e a mais estranha das criaturas: uma criança
selvagem. O nome não é um diagnóstico. Vem de relatos históricos – alguns de ficção,
outros verdadeiros – de crianças criadas por animais e, portanto, não expostas aos
cuidados humanos. Meninos lobo e meninas pássaro, Tarzan, Mogli do “Livro da
Selva”. Diz-se que durante o Sagrado Império Romano, Frederico II entregou um grupo
de bebés a freiras para que tomassem conta deles, mas sem nunca lhes falarem.
Acreditava que os bebés acabariam por revelar a verdadeira linguagem de Deus. Em vez
disso, morreram por falta de interação. Depois houve o caso do menino selvagem de
Aveyron, que vagueava pelos bosques perto de Paris, no séc. XIX, nu e a expressar-se
por grunhidos. Tinha cerca de doze anos. Um médico e professor albergou-o e deu-lhe o
nome de Victor. Tentou socializá-lo e ensiná-lo a falar. Passados alguns anos, desistiu e
entregou-o a uma instituição.
“Os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro”, garante
Armstrong, a psicóloga que examinou Danielle. “Essas primeiras ligações, mais do que
quaisquer outras, ajudam o cérebro a sistematizar-se e proporcionam às crianças
experiência para confiar, para desenvolver a linguagem, para comunicar. Elas
necessitam deste sistema para se relacionarem com o mundo”. (…) O caso mais
recente de uma criança selvagem aconteceu na Califórnia, em 1970. Uma rapariga a
quem os terapeutas chamaram Genie viveu amarrada a uma cadeira com um bacio até
aos treze anos. Tal como o menino selvagem, Genie foi estudada em hospitais e
laboratórios. Tinha cerca de 20 anos quando os médicos se aperceberam de que nunca
iria falar nem nunca seria capaz de cuidar de si própria. Foi entregue a uma instituição,
isolada do mundo, dependente.
O caso de Danielle suscitou interrogações inquietantes a todos os que tentaram ajudar.
Que espécie de mãe poderia assistir impávida, ano após ano, enquanto a filha definhava
na sua própria sujidade, faminta e gatinhando, cheia de percevejos? Os vizinhos, as
autoridades – onde estavam? “É espantoso como no séc. XXI se pode ainda deixar uma
criança num quarto como uma ratazana”, disse Tracy Sheehan, tutora de Danielle
perante a lei e agora juíza num tribunal de comarca. “Sem comida, sem ninguém para
falar com ela ou ler-lhe uma história. Nem sequer sabe usar as mãos. Como é que esta
criança podia ser tão invisível?”
Mas as interrogações mais prementes eram sobre o seu futuro. Quando Danielle foi
descoberta tinha menos 6 anos que o menino selvagem ou que Genie, o que dava
esperança de que pudesse ainda ser socializada. Muitos dos que lhe prestaram
assistência esperaram que ela pudesse ganhar uma identidade. Provavelmente, perdera a
possibilidade de aprender a falar, mas talvez viesse a compreender a linguagem, a
comunicar por outros meios. Contudo, os médicos não tinham grandes ambições para
ela. “A minha esperança era que fosse capaz de dormir toda a noite, deixar de usar
fraldas e alimentar-se sozinha”, confessou Armstrong. Danielle passou seis semanas no
Hospital. A seguir, a juíza Martha Cook, que presidiu à audiência sobre a sua tutela,
decidiu que seria colocada numa família de acolhimento e que a mãe biológica – sob
investigação por acusação de abuso infantil – não teria autorização para a visitar.
Danielle acabou por ser colocada num lar em Land O’Lakes. Tinha uma cama com
lençóis e uma almofada, roupas e comida e pelo menos alguém para lhe mudar as
fraldas. Em outubro de 2005, duas semanas depois de fazer 7 anos, foi à escola pela
primeira vez. Foi colocada numa classe de educação especial na Sanders Elementary.
“O seu comportamento era diferente de qualquer criança que eu vira até então”,
afirmou Kevin O’Keefe, o seu primeiro professor. “Se punham comida algures perto
dela, agarrava-a com as mãos e metia-a na boca como um bebé”, explicou. “Tinha
muitas cenas de grande agitação, gritando, agitando os braços descontrolados,
enrolando-se na posição fetal. Enroscava-se dentro de um roupeiro apenas para se
isolar das pessoas. Não sabia subir para um escorrega nem andar de baloiço. Não
queria que lhe tocassem”. Foi preciso um ano para aceitar que a acalmassem.
No Dia de Ação de Graças de 2006 – ano e meio depois de Danielle entrar para o lar -, a
sua assistente social estava a pensar em encontrar-lhe uma casa em que ficasse em
permanência: um orfanato, um lar ou uma clínica de acolhimento. Mas a criança
precisava de mais do que isso. “Em toda a minha carreira de assistência infantil, não
me lembro de uma criança como Danielle”, afirmou Luane Panack, diretora executiva
da Comissão Infantil do condado de Hillsborough. Mas nesse outono, Panacek decidiu
incluir Danille na Galeria do Coração – uma série de fotografias apresentando crianças
disponíveis para adoção (só em Hillborough há 600). A Comissão Infantil distribuiu as
fotografias em centros comerciais e na internet. Quem, interrogou-se Panacek, poderia
escolher uma criança de 8 anos que ainda usava fraldas, não sabia o seu nome e podia
nunca vir a falar ou a deixar que a abraçassem?
(…) Bernie e Diane Lierow lembram-se de ficar em silêncio no parque de jogos de
Tampa, confusos. Tinham feito uma viagem de carro de três horas desde casa, em Fort
Myers Beach, na esperança de encontrarem uma criança num evento destinado a
descobrir famílias de acolhimento.
Bernie, de 48, trabalha na recuperação de casas. Diane, de 45, faz limpezas. Têm quatro
filhos crescidos de anteriores casamentos e um em conjunto. Diane não podia ter mais
filhos e Bernie sempre desejara uma filha. Por isso, quando William tinha 9 anos,
decidiram-se pala adoção. A sua nova filha deveria ser mais nova que William,
disseram aos serviços de adoção. Mas teria de já não usar fraldas e de ser capaz de
comer sozinha. Não queriam uma criança que pudesse magoar o filho ou que fosse
profundamente deficiente e incapaz de tomar conta de si. (…) Bernie e Diane são
pessoas humildes que preferem fazer um piquenique no terraço a comer fora. Saem para
trabalhar, visitam vizinhos, passeiam os cães. Para eles, férias é ficar em casa com a
família. Tinham o que queriam. Exceto uma filha. “Danielle era tudo o que nós não
queríamos”, confessou Bernie. Mas não conseguiram esquecer aqueles olhos sofridos
que tinham visto numa fotografia. No fim de semana da Páscoa de 2007, levaram-na
para casa. Deveria ser um segundo nascimento, um batismo na família.
“Foi um desastre”, relatou depois Bernie. Deram-lhe uma boneca; ela arrancou-lhe as
mãos com os dentes. Levaram-na à praia; ela gritou e não quis pôr os pés na areia.
Regressaram à sua nova casa e ela ia de quarto em quarto chorando. Não conseguia tirar
o papel estanhado dos ovos da Páscoa, por isso comia também o papel. Quando lhe
tentavam lavar os dentes ou escovar o cabelo, dava pontapés e esbracejava. Na cama,
não adormecia, apenas se deitava de costas e rolava para um lado e para o outro durante
horas. Levantava-se de repente durante a noite e, andando de lado e em bicos de pés, ia
até à cozinha e abria o congelador. “Não tirava nada. Suponho que só queria ter a
certeza de que a comida continuava lá”, diz Bernie. Com o passar do tempo, a nova
família de Danielle aprendeu a lidar com ela, a pensar nela como sua filha. (…) Em
outubro de 2007, Bernie e Diane adotaram oficialmente Danielle. Chamam-lhe Dani.
Um ano depois de estar com a sua nova família, Dani (…) cresceu e duplicou de peso,
tem aulas de terapia física e ocupacional, vai à igreja, ao centro comercial e ao
supermercado. Bernie e Diane inscreveram-na nas aulas de terapia da fala e na
equitação. Diane conta os pequenos avanços para se convencer de que as coisas vão
melhorando lentamente. Que importância tem que Dani roube comida dos tabuleiros
dos outros no McDonald’s? Pelo menos é capaz de comer sozinha… Que importância
tem que ela, de manhã, vá quatro vezes à casa de banho? Finalmente deixou de usar
fraldas. Todos os dias da semana, durante meia hora, a terapeuta da fala, Leslie
Goldenberg, tenta ensinar Dani a falar. Senta-a em frente de um espelho na escola
primária de Bonita Springs e mostra-lhe como deve franzir os lábios para fazer sons ao
soprar. Dani consegue apenas imitar o movimento. Mas em muitos aspetos já
ultrapassou as expetativas da professora, e não apenas nas questões da fala. Parece estar
a aprender a ouvir e compreende comandos simples. (…) Consegue estar sentada a uma
mesa durante cinco minutos seguidos e já se serve da compota com uma colher. Está a
aprender a premir botões numa placa de fala, a usar símbolos quando quer um livro ou
está irritada. Começa a aprender que é normal uma pessoa zangar-se: podemos lidar
com esses sentimentos sem morder as mãos.
Quando o irmão, William, lhe faz cócegas, ela parece falar, como se libertasse alguma
coisa do seu subconsciente porque está demasiado distraída para o impedir. O irmão
ouviu-a dizer “Pára!” e “Não!” Acha até que a ouviu dizer o nome dele. “Ter um
irmão um ano mais velho é algo importantíssimo para o seu desenvolvimento”, explica
a sua professora. “Ela tem alguém com quem praticar a linguagem, alguém que a ouve.
Mesmo os bebés surdos balbuciam”, diz Goldenberg. “Mas se ninguém reage, eles
param”. William não se importa que ela não ande na bicicleta nem jogue ao
Monopólio. “Eu levo-a no meu jipe de brincar e ela toca a buzina”, diz ele que, a
princípio, nem podia acreditar que Dani nunca tivesse comido um gelado. Ensinou-lhe o
jogo do cuco, ajudou-a a amassar plasticina. Mostrou-lhe que é seguro caminhar na
areia e divertido soprar bolas de sabão e que não há mal em chorar quando te magoas,
há sempre alguém que aparece. Ensinou-lhe a abrir um presente e a mergulhar batatas
fritas em ketchup.
William estava habituado a ser filho único. Agora é Dani quem tem a maior parte da
atenção dos pais. “Precisa mais deles do que eu”, assume com simplicidade. Deu-lhe
os seus brinquedos, até deixou o seu quarto para ela poder dormir no andar de cima. Os
pais pintaram as velhas paredes de cor-de-rosa e encheram o roupeiro com vestidos.
Mas ainda hoje Dani não quer dormir numa cama. Bernie comprou-lhe uma cama baixa,
de rodas, para que ela possa sair e ficar ao nível do chão. Diane descobriu um pirilampo
de peluche para que Dani nunca mais se sinta sozinha na escuridão.
Danielle está hoje melhor do que alguém podia esperar. Aprendeu a olhar para as
pessoas e a deixar-se agarrar. Já sabe mastigar. Sabe nadar. É alta e loura. Sabe que o
seu nome é Dani. No seu novo quarto, tem uma janela e pode olhar lá para fora. Quando
quer ver o exterior, só tem de erguer os braços, porque os pais estão mesmo atrás dela à
espera de lhe pegar ao colo.
Reportagem de Lane Degregory (texto) e Melissa Lyttle (Fotografias)
in Semanário Expresso, 20.06.2009 (texto adaptado)