Auspícios e Rituais de Adivinhação Na Roma Antiga
Auspícios e Rituais de Adivinhação Na Roma Antiga
Auspícios e Rituais de Adivinhação Na Roma Antiga
ABSTRACT: The text intends to introduce a specific public divination practice: the auspice, during the last two centuries of the
Roman Republic and the beginning of the Empires (second and first century B.C.) aiming to understand its role in roman society at
this time.
Introdução
Você já leu seu horóscopo hoje no jornal? Apesar de vivermos num mundo dominado pela
racionalidade e pelo cientificismo, o interesse humano em pretender saber o que lhe pode reservar o
futuro ainda se mantém com bastante constância como se observa em qualquer jornal ou revista, seja
popular ou não, em programas de rádio e em revistas televisivas. Mesmo expressando incredulidade,
desconfiança e/ou concordando com as críticas às práticas divinatórias, consideradas como um saber
falso e repudiado pela razão, as pessoas continuam a buscá-las. É a coluna do horóscopo, são as cartas,
é o I Ching, é o Tarô, são as pedras das Runas; é o jogo dos búzios, é a interpretação dos sonhos, são as
linhas da palma da mão, é a bola de cristal, são os números, é a borra de café, enfim proliferam
atualmente uma infinidade de práticas. A adivinhação seria então parte da natureza humana? Para
Raymond Bloch (1985: 7), sim: “Perdido na imensidão de um mundo que não é de sua medida, o homem
busca multiplicar os pontos de apoio nos quais possa se agarrar.” Portanto, não devemos olhar com
estranheza nem com preconceito ao nos debruçarmos sobre este fenômeno na Antigüidade.
Nas sociedades antigas, a adivinhação era um meio privilegiado de contato entre o homem e a
divindade e, especificamente, na sociedade romana, inseria-se no esforço em manter a pax deourum, ou
seja, a paz com os deuses, que garantia o bem-estar da comunidade, sem a qual a cidade não podia
seguir o seu destino. Era, portanto, parte integrante do mundo da religião cívica, da qual inclusive se
constituía num importante ramo. Desenvolveu-se como um sistema preciso e complexo que governava a
vida da comunidade. Enquanto na Grécia Antiga a adivinhação dedutiva e intuitiva inspirada ao homem
diretamente por uma divindade, mediante sonhos ou num estado de êxtase, era mais comum, tal como o
Oráculo de Delfos; em Roma, predominou a adivinhação indutiva ou baseada em sinais, considerados,
mais do que anúncios do futuro, manifestações – geralmente encolerizadas – da vontade das divindades,
que deviam ser apaziguadas com rituais expiatórios para restaurar a pax deorum. Atribuía-se à vontade
divina a capacidade de poder modificar a ordem natural para manifestar a sua presença e expressar o que
queriam. Os romanos eram cautelosos em relação aos oráculos e profecias que escapavam às altas
autoridades do Estado, a tal ponto que, dentro de Roma, não havia templos oraculares, apesar de
existirem no resto da Itália (por exemplo, o templo da Fortuna Primigenia em Preneste). Buscavam
conservar sua liberdade de ação graças a uma sutil disposição de ânimo em relação aos sinais divinos. A
adivinhação em Roma tornou-se uma técnica humana, consciente e precisa, que revelava o acordo dos
deuses com o consultante através de uma consulta empírica e direta com as divindades. Esta consulta
divina assemelhava-se à consulta aos magistrados: uma questão precisa era respondida afirmativa ou
negativamente sendo organizada sob a direção autoritária dos magistrados. Neste aspecto, revela-se o
espírito prático, organizador e zeloso do romano em garantir a vida do cidadão e da cidade e em
conservar o favor divino sem comprometer o desenvolvimento normal e necessário de toda atividade.
Estabeleceram-se assim rituais respeitando rigorosamente a tradição, condizente como uma das
características do paganismo romano: a “ortopráxis”, ou seja, a execução correta dos ritos prescritos
(SCHEID, 1998: 20).
Dentre as diversas práticas divinatórias romanas, havia:
Omnia: Presságios que se escutavam ao acaso, sendo considerados uma advertência enviada pelos
deuses para guiar os homens. Sua interpretação interessava ao indivíduo e à sua vida diária. Cabia à
inteligência e à sensibilidade do indivíduo inferi-los. O indivíduo podia dar voz e vida ao que se
anunciava se declarava que os aceitava: omen accipere. Mas, também poderia recusá-lo caso fosse
funesto – omen excecrari, abominari – ou ainda transformar o seu sentido por meio de palavras
adequadas que modificassem o seu valor. Assim, conservava-se a liberdade de ação do homem
concomitantemente à preocupação em respeitar os deuses.
Auspicia: Presságios que se relacionavam à vista. Sua interpretação interessava ao indivíduo e,
principalmente, ao Estado, pois o respeito ao direito augural era condição primordial para a
Publicado em: BUSTAMANTE, R. M. da C. Auspícios e rituais de adivinhação na Roma Antiga. Cadernos de Centro
de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA). Niterói, v. 1, p. 149-163, 2008.
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legitimidade de toda a iniciativa política, tanto na paz como na guerra. A etimologia da palavra
auspício advém da junção dos termos latinos avi (aves) e spicium (observação). Assim, em seu sentido
restrito, constituiu-se na observação de aves pelos áugures, que inferiam os sinais dados pelas aves
(categoria da ave, seu vôo, seu comportamento e seu canto) e serviam como conselheiros dos
magistrados nos problemas auspiciais. Entretanto, em seu sentido, mais amplo auspício aplicava-se
também a uma manifestação divina através de qualquer fenômeno visual significativo (por exemplo,
presságios ameaçadores, denominados de auspicia ex diris) ou acontecimentos que extrapolassem a
norma, tais como: problemas no desenrolar de uma cerimônia, fenômenos naturais surpreendentes e
catástrofes naturais. A partir de algum grau de gravidade e raridade, todo sinal se transforma em
prodígio. Sendo um acontecimento contra a natureza, ou seja, uma anomalia das leis da natureza,
expressava a ruptura da paz que a cidade mantém com deuses. Era pois uma advertência que devia
ser interpretada para apaziguar a cólera divina. Para isso, as autoridades superiores do Estado
contavam com um arsenal de medidas propiciatórias e expiatórias visando a saúde do Estado. Os
prodígios podiam ser classificados de ostentum, portentum, monstrum ou miraculum. Os dois primeiros
referiam-se à sua função de sinal, os dois últimos relacionavam-se a qualquer particularidade de um
ser vivo, sendo que o terceiro implicava numa idéia de advertência e o quarto, de admiração. Eram
classificados de acordo com sua natureza em: inanimados (auspicia ex coelo, ou seja, da esfera
celeste: astros, eclipses solar e lunar, parahélio e paraselene, meteoritos, cometas, trovão, relâmpago,
chuva de cinza, pedra e sangue; esfera terrestre: rios de sangue, estátuas com suor e lágrimas,
terremotos, tremores) e animados (auspicia ex quadrupedibus, referentes ao comportamento estranho
de animais quadrúpedes; auspicia ex avibus concernentes ao vôo das aves; auspicia ex tripudiis ou
pullaria relativos ao comportamento das galinhas sagradas; aves ou roedores em lugares
consagrados; deformações em humanos e animais).
Em vista das limitações de espaço para este texto e da importância dos auspícios para a antiga
sociedade romana, optou-se por privilegiar a prática divinatória do auspicium em seu sentido literal, ou
seja, como ornitomancia: adivinhação baseada na observação nos pássaros, atentando para o seu
aspecto ritual e sua interpretação e inserindo-a na sociedade romana dos séculos II e I a.C. Este período é
bem documentado em termos das práticas divinatórias devido, sobretudo, ao tratado ciceroniano em
forma de diálogo intitulado Sobre a adivinhação, no qual o autor apresenta uma seleção de opiniões
eruditas sobre este tipo de prática.
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Conta a tradição que uma mulher idosa e de aspecto misterioso propôs a um dos reis etruscos de Roma vender-lhe nove livros
de profecia. Era a Sibila de Cumas, profetiza grega um tanto mitológica da colônia helênica da Magna Grécia que, distintamente
da pitonisa do oráculo de Apolo em Delfos, não estava presa a um santuário oracular e possuía uma vida errante. O rei etrusco
não aceitou o alto preço pedido pela coleção de profecias. A Sibila então queimou três livros e depois outros três e continuou
cobrando o mesmo preço inicial pelos que sobraram. Diante da selvagem obstinação e aconselhado pelos áugures, o rei comprou
os últimos três livros e a misteriosa anciã desapareceu. Os livros foram guardados num cofre de pedra no subterrâneo do templo
de Júpiter Capitolino sob os cuidados dos duoviri sacris faciundis. Em 85 a.C., um incêndio no Capitólio destruiu a coleção e
foram enviadas missões a diferentes partes da Itália, Grécia e da Ásia Menor, onde se dizia que se conservavam as profecias
sibilinas, para reconstituir a coleção agora com nove livros. Augusto fez com que esta coleção reconstituída fosse conservada no
templo de Apolo palatino e passou a ser consultada somente a pedido dos imperadores, perdurando até o final do paganismo.
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Conclusão
A analisarmos as práticas religiosas das sociedades antigas, é preciso evitar preconceitos e
anacronismos que desvirtuam o seu significado para estas sociedades. Convém considerar a religião
romana em seu contexto histórico, buscando compreender que um dos princípios fundamentais que
condicionava a atitude religiosa dos romanos era sua relação com a relação com a comunidade. Assim
como em outras práticas religiosas, a adivinhação romana caracterizou-se pela observância de rituais que
seguiam regras e casuística rígidas, ou seja, estavam conforme a “ortopráxis”, constitutiva da teologia
cívica que dava visibilidade ao compromisso dos romanos com os deuses e garantia o bem-estar da
comunidade, sem a qual a cidade não podia seguir o seu destino. Neste contexto, entende-se portanto a
importância concedida aos auspícios pela sociedade romana.
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