Alvaro Campo
Alvaro Campo
Alvaro Campo
obra completa
fernando pessoa
edição de
jerónimo pizarro · antonio cardiello
colaboração
jorge uribe · filipa freitas
coordenador da colecção
jerónimo pizarro
LISBOA
tinta-da-china
m m xi v
índice
• 9
apresentação
poesia
© Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, 2014 1. poemas • 31
2. post-scriptum • 329
Título: Obra Completa anexos • 351
Autor: Álvaro de Campos
Edição: Tinta‑da‑china
Capa e projeto gráfico: Tinta‑da‑china prosa
1. publicada em vida • 401
www.tintadachina.pt
2. notas para a recordação do meu mestre caeiro • 451
Todos os direitos desta edição 3. não publicada • 489
reservados à Tinta‑da‑china
Rua Francisco Ferrer, n.º 6-A 4. entrevista • 519
1500-461 Lisboa 5. correspondência • 531
Tels.: 21 726 90 28/9
E‑mail: [email protected] 6. prefácios • 553
[email protected] 7. outros textos • 563
1.ª edição: Setembro de 2014
anexos • 569
isbn 978‑989‑671‑232-7
depósito legal n.º 380559/14
notas • 595
ordem topográfica das cotas • 719
índice dos primeiros versos • 723
índice onomástico • 737
bibliografia • 741
notas biográficas • 747
apresentação
jer ón imo piz ar r o
an ton io car diello
Álvaro de Campos tem sido o centro de longas batalhas campais e
essas guerras, amplamente inúteis, relegaram para segundo plano
os seus poemas, sem os quais a moderna poesia portuguesa seria
impensável, e atrasaram a publicação da sua prosa, que saiu pela pri‑
meira vez apenas em 2012, quase 70 anos após o aparecimento dos
102 poemas reunidos em Poesias (1944). O presente volume, a pri‑
meira edição de um Álvaro de Campos Completo, ou da sua Obra Com‑
pleta, não pretende tomar parte dessas guerras campais – embora
proponha, por exemplo, uma nova organização interna das grandes
odes –, preferindo trazer para primeiro plano os textos atribuídos ou
atribuíveis a este heterónimo, convidando assim à sua leitura total.
As querelas continuarão, porque cada editor propõe uma selecção
textual – e há os textos que claramente são e os textos que poderão ser
de Campos (cf. os Anexos) –, mas o importante é ler Pessoa com uma
visão de conjunto. Este volume vem oferecer, precisamente, a pos‑
sibilidade de ler a obra integral de Campos – à excepção de alguns
textos que considerámos «Clearly non‑Campos» – e de articular
o «Livro de Versos», que Pessoa projectou intitular «Intervallos»,
com o «Livro de Prosa», que designaria de «Episodios» a. Campos,
uma das «ficções de interludio» criadas por Pessoa – sendo as outras
Alberto Caeiro e Ricardo Reis –, é o autor desses intervalos, que são
os seus poemas, nomeadamente depois da fase das grandes odes,
obra c om pleta 11
e desses episódios, que são os seus textos em prosa, por vezes con‑ mandado para a Escocia estudar engenharia, primeiro mechanica e
siderados como acidentes do destino. Como introdução aos livros depois naval.» a No retrato que podemos considerar mais positivo,
de Campos, Pessoa parece ter‑nos legado a seguinte nota, em jeito Campos é o Engenheiro Naval e Poeta Futurista da época das revistas
de epígrafe: «Alvaro de Campos é o personagem de uma peça; o que Orpheu e Portugal Futurista, que com vinte e tal anos ficou conhecido
falta é a peça.» a pela «Ode Marítima» e o «Ultimatum». E é o autor, entre outras, de
duas cartas provocatórias: uma, não enviada, para Marinetti; outra,
* dirigida ao director d’A Capital, que gerou uma polémica pública,
embora o jornal só dela tenha reproduzido umas poucas linhas.
De Campos existem muitos retratos, visto que tanto Pessoa como os Mas Campos é também o eu lírico de «Tabacaria» e outros poemas,
seus críticos têm sentido a necessidade de lhe conferir uma mínima o protagonista de um longo e desencantado «Canto de mim mesmo»,
densidade ficcional. Pessoa fê‑lo em diversos momentos, quer num o herói de uma «apotheose ás avessas» (71), de onde se depreende um
folheto de 1915 de Frederico Reis sobre a Escola de Lisboa (porque retrato bem menos triunfal. Enquanto na carta de 13 de Janeiro de 1935
Campos, inicialmente, não teria nascido em Tavira), em que Campos Pessoa escreve: «Sou, de facto, um nacionalista mystico, um sebastia‑
«é o que os futuristas quiseram ser, e mais alguma cousa»; quer na nista racional. Mas sou, àparte isso, e até em contradicção com isso,
«Tábua Bibliográfica» de 1928, em que se lê que «Alvaro de Cam‑ muitas outras coisas» (Eu Sou Uma Antologia, 2013, p. 641), confir‑
pos, nascido em 1890 […] isolou o lado por assim dizer emotivo mando assim a sua posição patriótica – a do autor de Mensagem –, mas
[na orientação de Caeiro], a que chamou ‘sensacionista’» e produziu frisando ser contraditório e diverso; Campos, em «Tabacaria», declara:
– «ligando‑o a influências diversas, em que predomina, ainda que «Não sou nada. | Nunca serei nada. | Não posso querer ser nada. | Àparte
abaixo da de Caeiro, a de Walt Whitman» – «diversas composições, isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo» (43). Enquanto Pes‑
em geral de índole escandalosa e irritante, sobretudo para Fernando soa assume ser «alguém», mas insiste em ser «muitas outras coisas»,
Pessoa, que, em todo o caso, não tem remédio senão faze‑las e publicá Campos afirma não ser nada, mas ter em si todos os sonhos do mundo.
‑las, por mais que dellas discorde» b; quer na famosa carta de 13 de E o que é isso que Campos assegura não ser? A pergunta é retórica,
Janeiro de 1935, em que se encontra a descrição mais completa, e aqui mas é‑o num sentido técnico. Repare‑se que a frase inicial não é «Eu
sinteticamente relembrada: «Alvaro de Campos nasceu em Tavira, no sou nada», que seria uma afirmação, mas «Não sou nada», que é uma
dia 15 de Outubro de 1890 […] é engenheiro naval (por Glasgow) […] dupla negação; e que este tipo de estrutura dá origem a uma possível
é alto (1m, 75 de altura – mais 2 cm. do que eu), magro e um pouco inferência: se não é nada, então é tudo? A inferência não é necessária –
tendente a curvar‑se […] [é] entre branco e moreno, typo vagamente pode‑se não ser nada sem ser tudo –, mas é reforçada porque «àparte
de judeu portuguez, cabello, porém, liso e normalmente apartado ao isso» – e é sempre «àparte isso» – Campos declara ter em si todos os
lado, monoculo […] teve uma educação vulgar de lyceu; depois foi sonhos do mundo, tal como afirma ser um «irmão em Universo» de
a Ver o fac‑símile deste apontamento em Prosa de Álvaro de Campos (2012, p. 27). Convém lem‑
brar que Pessoa escrevia «Alvaro» sem acento. a Todas as citações deste parágrafo provêm do livro Eu Sou Uma Antologia (2013, pp. 436, 638
b Mantém‑se a ortografia da revista Presença («faze‑las» sem acento, por exemplo). ‑639, 648‑649).
30 álvar o de c a m p o s
Tão pouco heraldica a vida! 1
[c. 1914]
Tão sem thronos e ouropeis quotidianos!
Tão de si propria ôca, tão do sentir-se despida,
Afogae-me, ó ruido da acção, no som dos vossos oceanos!
obra c om pleta 33
2 [T RE Z SONETOS ] a Mas amo aquillo, mesmo assim… Sei eu
[c. 1915]
Porque o amo? Não importa nada… Adeante!
I.
Quando ólho para mim não me percebo. Isto de sensações só vale a pena
Tenho tanto a mania de sentir Se a gente se não põe a olhar para ellas.
Que me extravio ás vezes ao sahir 25 Nenhuma d’ellas em mim é serena…
Das proprias sensações que eu recebo.
De resto, nada em mim é certo e está
5 O ar que respiro, este licôr que bebo De accordo comsigo proprio… As horas bellas
Pertencem ao meu modo de existir, São as dos outros, ou as que não ha. a
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo. III b
Olha, Daisy: quando eu morrer tu has de
Nem nunca, propriamente, reparei 30 Dizer aos meus amigos ahi de Londres,
10 Se na verdade sinto o que sinto. Eu Embora não o sintas, que tu escondes
Serei tal qual pareço em mim? serei A grande dôr da minha morte. Irás de
Tal qual me julgo verdadeiramente? Londres p’ra York, onde nasceste (dizes…
Mesmo ante as sensações sou um pouco atheu, Que eu nada que tu digas acredito),
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente. b 35 Contar áquelle pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,
II.
15 A Praça da Figueira de manhã, Embora não o saibas, que morri…
Quando o dia é de sol (como acontece Mesmo elle, a quem eu tanto julguei amar,
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece, Nada se importará… Depois vae dar
Embora seja uma memoria vã.
a Segue-se esta informação: «Londres (uns cinco mezes antes do Opiario) Outubro 1913».
Ha tanta coisa mais interessante b Destes «Trez sonetos» — assim referidos em 48C-26r, 48-29r e 144Y-62v —, este, o terceiro,
20 Que aquelle logar logico e plebeu! foi publicado com o título «Soneto já antigo» na revista Contemporanea, n.º 6, Lisboa, Dezembro
de 1922, p. 121. Pessoa projectou, por volta de 1917 e com hesitação, dedicar o primeiro soneto a
Raul de Campos (144Y-62v) e o terceiro a Daisy M., esclarecendo, por baixo, «M.» ser «Mason»
a Assim intitulado no documento 48C-26, sob o título «Autoscopia», que reuniria «Trez (144Y-62v). Noutro esquema anterior (48C-26r), equacionou dedicar os três poemas a «Fernando
sonetos», «Opiario» e «Carnaval», por esta ordem. Pessôa», com o acento circunflexo que abandonaria em 1916. Com o título «Soneto já antigo», tam‑
b Segue-se uma datação fictícia: «Lisboa, (uns seis a sete mezes antes do Opiario) Agosto 1913». bém foi encimado o soneto ii em dois testemunhos dactilografados (16A-23r e 23v).
5 Esta gente é egual, eu sou diverso – Dormir, despir-me d’este mundo ultraje,
Mesmo entre os poetas não me acceitariam. 10 Como quem despe um dominó roubado
Ás vezes nem sequer ponho isto em verso – Despir a alma postiça como a um traje
E o que digo, elles nunca assim diriam. ◊
Que pouca gente a muita gente aqui! Tenho náusea carnal do meu destino.
10 Estou cansado, com cerebro e cansaço. Quasi me cança me cançar. E vou,
Vejo isto, e fico, extremamente aqui, 15 Anónimo, ◊ menino,
Sósinho com o tempo e com o spaço. Por meu ser fora à busca de quem sou.
Sou maior ou menor? Com mãos e pés a Decidimos não incluir uns versos lacunares, em fase de rascunho e de difícil leitura (64-75),
que costumam formar parte da série de fragmentos de «Carnaval». Têm um interesse documental e
E bocca fallo e mexo-me no mundo. muitas das leituras propostas até à data são altamente conjecturais.
a Note-se que a primeira parte desta proclamação está em verso; a segunda, em prosa. Daí
termos retirado os avanços de linha na primeira secção, seguindo o testemunho manuscrito no
caderno 144U (cf. Sensacionismo e Outros Ismos, 2009, pp. 246-273).
a) Em politica: O dominio apenas do individuo ou dos individuos Mas qual o Methodo, o feitio da operação collectiva que ha de or‑
que sejam os mais habeis Realizadores de Medias, desapparecendo ganizar, nos homens do futuro, esses resultados? Qual o Methodo
por completo o conceito de que a qualquer individuo é licito ter opi‑ operatorio inicial?
niões sobre politica (como sobre qualquer outra cousa), pois que só O Methodo sabe‑o só a geração por quem grito por quem o cio da
pode ter opiniões o que fôr Media. Europa se roça contra as paredes!
b) Em arte: Abolição do conceito de Expressão, substituido por Se eu soubesse o Methodo, seria eu‑proprio toda essa geração!
o de Entre‑Expressão. Só o que tiver a consciencia plena de estar Mas eu só vejo o Caminho; não sei onde elle vae ter.
exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que fôr Media por‑ Em todo o caso proclamo a necessidade da vinda da Humanidade
tanto) pode ter alcance. dos Engenheiros!
c) Em philosophia: Substituição do conceito de Philosophia por Faço mais: garanto absolutamente a vinda da Humanidade dos En‑
o de Sciencia, visto a Sciencia ser a Media concreta entre as opi‑ genheiros!
a De dois textos de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa publicou em vida – «Ultimatum»,
«Apontamentos para uma esthetica não‑aristotelica» – conserva-se um vasto material preparató‑
rio e circundante. Decidimos incluir uma selecção desse material depois de cada um desses textos
e remeter para as notas finais correspondentes alguns escritos mais antigos e inacabados.
o autor
Fernando Pessoa (1888 ‑1935) é hoje o «heterónimos», reservando a designação
principal elo literário de Portugal com de «ortónimo» para si próprio. Director
o mundo. A sua obra em verso e em prosa e colaborador de várias revistas literárias,
é a mais plural que se possa imaginar, pois autor do Livro do Desassossego e, no dia
tem múltiplas facetas, materializa inú‑ ‑a‑dia, «correspondente estrangeiro em
meros interesses e representa um autên‑ casas comerciais», Pessoa deixou uma obra
tico património colectivo: do autor, das universal em três línguas que continua a
diversas figuras autorais inventadas por ser editada e estudada desde que escreveu,
ele e dos leitores. Algumas dessas per‑ antes de morrer, em Lisboa, «I know not
sonagens, Alberto Caeiro, Ricardo Reis what to‑morrow will bring» [«Não sei o
e Álvaro de Campos, Pessoa denominou que o amanhã trará»].
o co‑autor
Descrito como Engenheiro Naval por Tinha algo de dandy, de Fradique, de flâ‑
Glasgow, embora não concluísse o curso neur, leu Blake, Whitman e Nietzsche, entre
(«fui sempre um mau estudante», dirá), outros. Certo dia, num passeio ao Ribatejo,
Álvaro de Campos nasceu em 1890 e ficou conheceu Alberto Caeiro, encontro epifâ‑
órfão muito cedo. Embarcou para o Oriente nico a partir do qual Campos tomou Caeiro
com 23 anos e tornou‑se opiómano, como como seu mestre. Enquanto poeta, Álvaro
Camilo Pessanha. Pertence, explica, «a de Campos deixou um livro inédito, intitu‑
um genero de portuguêses | Que depois lado Arco de Triunfo, e muitos poemas sol‑
de estar a India descoberta | ficaram sem tos, entre o quais «Tabacaria»; enquanto
trabalho». Viveu em inactividade, embora prosador, escreveu uma série de textos de
circule o boato de que desempenhou o intervenção e as «Notas para a Recordação
cargo de Director das Obras Públicas de do Meu Mestre Caeiro», das quais a revista
Bragança, até ser expulso por nada fazer. Presença deu a conhecer cinco, em 1931.