Santa Morte e Outras Histórias

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Copyright © 2022 by Coletivo de Escritores Brasiguayos Ore Rohai

Copyright do texto © 2022 by Vladimir Borges de Silveira, Manoel Rodrigues &


Henrique dos Santos Mosciaro

Todos os direitos reservados.

Grafia conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

ORGANIZAÇÃO
Vladimir Borges de Silveira
REVISÃO
Manoel Rodrigues
DIAGRAMAÇÃO
Henrique dos S. Mosciaro
CAPA
Henrique dos S. Mosciaro
Imagens da Capa
Canva

2022
Esta edição possui todos os direitos reservados a
Coletivo de Escritores Brasiguayos Ore Rohai
[email protected]
tumblr.com/ore-rohai
wattpad.com/user/OreRohai
Sumário

Hóstia embebida em vinho


Santificados
Santa Morte
Onça
Convite para jantar
Valsa
Na próxima esquina
Cegueira
Rogo-lhe esta praga
Trem
Autores
Sobre o Coletivo
À morte, por matar.
E às pessoas que por creer que morrer é algo tenebroso, lhes dedico estes contos de
terror — quem sabe assim vocês saibam o que é terror de verdade.
Aviso ao leitor
Os seguintes contos exploram diversos tópicos que podem ser sensíveis para
alguns leitores.
Tratam-se de obras de ficção, qualquer mera coincidência com a
realidade não passa disso: de uma — infeliz — coincidência.
Recomenda-se discrição ao leitor, e sempre reforço que caso se sinta
desconfortável a leitura pode — e deve — ser interrompida.
No demais, aproveite sua leitura.

Abraços sombrios,

Meninos do Ore Rohai


Hóstia embebida em vinho

O padre João seguiu todos os ritos da missa, corretamente.

Quando se aproximou da hora da comunhão, ele ergueu a hóstia


consagrada, partiu-a em duas partes desiguais, embebedou no vinho e a
pôs na boca.

Ele engoliu a hóstia, e imediatamente começou a tossir sangue. Todos


os fiéis estavam em pasmos, trataria-se de um milagre?

Enquanto alguns estavam espantados, o padre continuava a tossir


sangue, ele estava ficando com a pele mais arroxeada. Estava ficando sem
ar.

Ele morreu ali mesmo, no altar. Outro padre foi chamado para dar uma
bênção extraordinária e suspender a missa — era a primeira vez que isso
acontecia na igreja.

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A ambulância foi chamada, e levou o corpo do padre ao legista, que
deu causa da morte: o seu pulmão estava cheio de sangue, tendo sido
perfurado de dentro para fora com duas lâminas de tamanhos diferentes.

A polícia investigou e chamou todos os presentes que falaram que a


única coisa que ele fez foi comungar com a hóstia que ele havia partido.

O legista ficou com as lâminas sob sua mesa por um bom tempo, ele
as deixou lado a lado em sua bancada. Ao levantar-se para beber água, as
lâminas, em sua mesa, transformaram-se em uma hóstia embebida em
vinho tinto.

Quando retornou, o legista procurou nas câmeras do circuito interno


quem havia mexido nas lâminas, e, ao ver a gravação, um vulto preto passa
o braço no ar acima das lâminas e elas se transformam nas duas metades
desiguais de uma hóstia embebida em vinho.

— Vladimir

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Santificados

Eu ressuscitei sem pedir. Foi aterrorizante.

A sensação de respirar de novo e descobrir que estou preso dentro de


um caixão foi desesperadora, ainda mais se eu considerar que é um caixão
de vidro entupido de formol dentro de uma igreja escura e vazia.

Quando me encontraram, eu tinha pouco ar para respirar dentro


daquela maldita caixa de vidro.

Revi minha mãe, minha avó, meu pai, todos ao meu redor haviam
envelhecido, já eu… havia permanecido o mesmo, nem meu corpo chegou a
apodrecer por conta do exagero do formol dentro daquela prisão de vidro.

Depois de alguns dias, me enviaram para longe de casa.

Do outro lado do oceano, para uma cidadezinha estranha. Muito


acolhedora a população, mas eu não me sentia bem tendo que estar

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naquela situação — odiava ser o centro das atenções, odiava que tivessem
começado a me canonizar e odiava ter ressuscitado.

Em meio a uma das missas, um garoto emburrado se vira para mim e


me dá um sorriso de canto de boca. Ele até então não tinha me conhecido, e
ele parecia simpático — mesmo que em sua expressão corporal
demonstrasse falta de vontade de estar naquele lugar.

Ao final da missa eu decidi ir cumprimentá-lo, mas os coroinhas e o


padre chamaram mais algumas pessoas para se aproximar de mim antes
que eu chegasse perto dele.

Quando as pessoas se dispersaram, ele havia sumido.

Sai da igreja, chateado por ter perdido a chance de conhecer alguém


que fosse diferente do resto das pessoas que estão naquele meio, até que
escuto uma voz por trás de mim.

— Deve ser difícil ser tão famoso assim — viro-me em direção a voz e
vejo que é o mesmo garoto.

— Um tanto quanto complicado, as pessoas se esquecem de que eu


sou humano também.

— Quer conhecer um lugar legal dessa igreja? — ele me perguntou.

Assenti com a cabeça e me deixei ser conduzido por ele para o interior
do salão da igreja, ali tem uma porta com escadas que levam para baixo da
igreja.

Entrei ali e ele acendeu a luz.

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Olhei para ele, seus olhos castanhos claro brilhavam com aquela luz.
Em um movimento rápido, ele veio próximo a mim e me deu um abraço.

Só Deus sabe o quanto eu precisava daquele abraço, antes de que ele


pudesse falar algo para mim, a porta da sala se abriu e só escuto o padre
brigando com o garoto.

— Desta vez não terás espaço nesta igreja, satanás! — o padre veio
correndo com uma faca na mão.

O garoto se jogou no chão — me levando junto —, e próximo a onde


caímos havia um pedaço de madeira, que ele usou para derrubar o padre.

Ele e o padre começaram a brigar, o menino estava tentando desviar


da faca. A ira tomou conta de meu corpo, peguei aquele pedaço de madeira
e desacordei o padre.

Quando ele caiu, inconsciente, no chão. Nós dois levantamos e


começamos a correr em direção à porta, mas ela se trancou sozinha.

O padre se levantou, com a voz rouca, e nos jurou de morte.


Amedrontados, a única coisa que fizemos foi nos encolhermos no chão, de
mãos dadas e olhos fechados, esperando pelo pior.

Escutamos um barulho de corpo sendo derrubado.

Quando abrimos os olhos, o espírito do padre João — ele era o padre


anterior, mas acabou morrendo em uma missa durante a comunhão — está
ali, segurando uma faca ensanguentada em suas mãos.

Ele nos olhou, nos abençoou — como se fossemos um casal —, e


desapareceu em nossa frente.

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Saímos correndo dali, foi só quando estávamos bem longe que
paramos para respirar em uma esquina. Senti um frio na espinha e ao me
virar de costas eu o vejo vindo em nossa direção.

Aquele padre maníaco ainda corria atrás de nós dois, o garoto estava
com muito medo. Nós continuamos a correr o máximo que podíamos.

Paramos em frente à capela do cemitério. Decidimos nos esconder ali


dentro até a poeira baixar.

Passamos a noite naquela capela, foi a última vez que nos


encontraram na cidade. Um fazendeiro veio velar um familiar que tinha
falecido e nos ofereceu carona, nunca mais fomos vistos na cidade.

Aos poucos fomos nos conhecendo, o menino se chamava Antônio.


Ele me chamava por Chico — meu nome é Francisco —, e aos poucos
fomos nos enturmando.

Minha família constantemente me ligava, e os pais dele nos faziam


visitas semanais. O fazendeiro que nos ajudou deixou que ficássemos
morando com ele somente sob uma condição: que ensinássemos os filhos
dele a ler e a escrever.

E assim foi feito, e nossa vida seguiu normalmente por meses, até que
uma certa noite o espírito de padre João nos visitou.

— Receio que aquele que chamam de padre veio lhes visitar — ele
estava falando daquele maníaco —, não saiam de casa sob hipótese
alguma, me entenderam?

O fazendeiro ouviu o espírito falar conosco e tomou uma decisão que


jamais pensou que tomaria.

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Quando se aproximou da meia-noite, ele nos puxou para fora,
esperando a procissão que iria passar na frente da fazenda. Dito e feito, o
padre assim que nos viu, incorporou aquele estado bestial que ninguém
conseguiu explicar.

Quando ele partiu para cima de nós, o senhor pegou uma espingarda e
atirou contra o padre no peito e na cabeça.

Dois tiros, e o corpo daquele homem — se é que ainda lhe restava


alguma humanidade — entra em combustão.

No dia seguinte, o corpo havia sumido, mas o padre João estava nos
esperando por ali.

— Agora vocês não mais precisarão se esconder dele. Vivam suas


vidas como merecem ser vividas — disse-nos antes de desaparecer.

Foi um último mês de vida muito bom, Antônio me pediu em namoro.


Mas nós dois morremos baleados quando o vizinho nos viu juntos debaixo
do pé de manga.

Seu Lair e seus filhos prometeram que justiça seria feita, e que
ninguém mais iria morrer de morte matada naquelas terras. E no fim das
contas acabou acontecendo conosco aquilo que nós menos queríamos que
acontecesse: nós viramos santos.

Um casal de santos, os santos dos livros.

Pelo menos desta vez, eu sentia que toda essa santificação era pela
coisa certa.

— Manoel

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Santa Morte

Ele era mau.

Muito mau.

Ele veio até mim e puxou meu cabelo, pôs a mão em minha boca e
mandou eu ficar em silêncio, ao me arrastar para dentro de um beco escuro.

Ele começou a me tocar em partes que eu não queria que ele


chegasse perto. Ele pôs a mão dentro de minha calcinha e disse que iria me
matar se eu fizesse algum barulho que chamasse a atenção.

Começou a abrir o zíper de sua calça, mas antes que colocasse seu
pênis para fora algo o atingiu na cabeça.

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Uma mulher de preto o desacordou, e, com a foice que carregava,
cortou seu pescoço. Uma poça de sangue se formou no chão, manchando
meu sapato, e um carro polícia parou na frente do beco.

Fomos levadas até a polícia, durante o trajeto a mulher de preto só


disse uma única palavra.

“Peça a quem te proteja para que você saia dessa” foi o que ela me
disse ao colocar sua mão branca em meu ombro.

— E só disso que você se lembra?

— Sim senhor, só disso que eu me lembro — respondi ao policial.

— Muito bem, senhorita… Nathalia — diz ele olhando para minha


identidade —, você teve muita sorte de que alguém lhe protegeu hoje. O
homem que abusou de você tinha antecedente por estupro e violência
doméstica. Pode ir para casa e descansar, vamos te mandar de viatura para
que chegue em segurança até sua casa.

— Mas e quanto a mulher de preto?

— Foi liberada há alguns minutos.

Quando saio da delegacia, vejo-a sentada debaixo de uma árvore em


frente ao portão do cemitério.

Ela me cumprimenta, e sorri.

Me aproximo dela, para agradecê-la, mas um policial chega perto de


mim e me chama.

— Senhorita Nathalia, vou te levar até sua casa.

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— Claro — aceno com a cabeça e me despeço da mulher de preto, até
que o policial ao meu lado diz em voz alta algo que parecia uma prece.

— Ó Santa Morte, agora que te vi, proteja-me até o fim, proteja-me até
quando eu tiver de partir.

— O que é isso? — pergunto-o assim que entramos no carro.

— Agora que eu vi a Santa Morte, é a minha forma de pedir proteção a


ela — ele me responde, passando o cinto.

O carro começa a andar e me leva até minha casa.

Nunca mais vi a mulher de preto de novo, quando ontem, durante a


investida de um homem maluco, pedi a sua proteção.

Ó Santa Morte, agora que te vi, proteja-me até o fim, proteja-me até
quando eu tiver de partir.

Eu fui esfaqueada na esquina de casa. Me socorreram e me levaram


até o hospital.

Quando acordei, vi ela sentada próxima a meu leito. Ela me deu sua
mão e começou a andar comigo, quando vejo uma equipe médica correndo
até a minha cama.

Viro-me para trás e vejo um doutor puxando o lençol e olhando para o


relógio.

— Desculpe por vir tão tarde, Nathalia — ela me disse.

— Do que você está falando? — pergunto e ela esboça um sorriso no


rosto.

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— Desculpe por não te proteger quando você precisou.

— Mas agora eu me sinto bem mais segura perto de você — dei-lhe


um abraço apertado.

Ela foi recíproca e me abraçou também, e quando nos afastamos ela


me deu um beijo.

Sempre me falaram do doce beijo da morte, mas que iria imaginar que
é um beijo tão caloroso — e verdadeiramente é um beijo doce.

Desde que morri, sempre acompanhei a Morte em suas andanças pela


terra, e todo homem que fizesse mal a alguém, seja quem fosse, poderia ter
certeza que a mulher ruiva de preto — com a benção da Santa Morte — viria
lhe visitar mais tarde para matá-lo.

— Vladimir

17
Onça

Ela era bem imprevisível.

Era uma mulher linda, tinha um corpo divino. Sempre que passava por
perto — quase — todos os homens, e mulheres, perdiam os sentidos.

Ela os atraía para longe de onde estavam, levava os outros até sua
toca onde iria terminar com sua próxima vítima.

Um certo dia, um homem caiu em seus encantos. Ela o levou até o


interior da mata, até sua toca — como sempre fez.

Assim que entraram na toca, ela se revelou. Se transformou em uma


onça.

Ela saltou sobre o homem, ele tentou ao máximo puxar a arma que
estava em sua cintura, mas só conseguiu quando ela já havia cravado seus
dentes em seu pescoço.

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Ele até chegou a pegar na arma, mas nesse momento a Onça arranca
o seu pescoço, e a arma cai no chão ao lado de seu corpo.

A poça de seu sangue coloriu a grama com um tom avermelhado por


onde a Onça arrastava o corpo do homem. Ela levou até a sua cova, onde
tinham diversos restos mortais de outras pessoas que ela encontrou a noite
no bar.

Curiosamente, todos os mortos estavam envolvidos em crimes


ambientais e arquitetando desfazer da reserva ambiental onde fica a Toca
da Onça. Não fizeram mais nenhuma tentativa de violar o território da Onça
desde a morte deste último homem, pelo visto ela deixou o seu recado.

— Manoel

19
Convite para jantar

A noite estava tranquila. As estrelas brilhavam sob o céu noturno, a lua


cheia encantava todos aqueles que se dignavam de a observar.

Renata olhou para mim e deu um sorriso.

— Nada poderia estragar esta noite, meu amor — ela se aproxima de


mim e me beija.

Levamos a janta até a mesa, os convidados estavam a nossa espera.

— Desculpem-nos a demora — disse-lhes, ao colocar a assadeira com


a carne no centro da mesa.

Eles começaram a servir.

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Degustaram bem da carne, de sua textura macia e seu cheiro do
molho. O gosto bem realçado da carne, com um leve toque de veneno de
rato no fundo…

Eles começaram a se sentir mal, começou com ânsia e vômito, se


queixaram de dor abdominal.

— Camila, meu bem, nossos convidados não estão se sentindo muito


bem — Renata me passa uma máscara com respirador. Todas as portas da
sala estavam trancadas, a única aberta era a da cozinha.

Renata pegou uma lata com gás de mostarda dentro da cozinha,


esperou que eu entrasse e jogou a lata aberta na sala de jantar.

Foi uma experiência excepcional beber uma taça de vinho ao som dos
gritos de nossas famílias.

— Um brinde a nós — Renata ergueu sua taça em minha direção.

— E às nossas famílias — ergo minha taça próximo a de Renata —,


que Deus as tenha.

— E que o diabo lhes carregue — ela completa e brindamos a morte


de nossos familiares.

Após o tilintar das taças de vidro escuto o silêncio de nossos


convidados. Fomos conferir o que tinha acontecido para que aquela sinfonia
caótica de gritos fosse interrompida de forma tão abrupta.

Hoje fez muito frio, e aqueles que um dia foram nossos pais agora
serviam de combustível para a lareira que nos aqueceu naquela noite fria.

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Eles mesmo disseram que queriam jantar comigo e meu futuro
cônjuge, mas reagiram tão mal quando conheceram a Renata.

Mas fico feliz que eles tenham aceitado nosso convite para jantar.

— Henrique

22
Valsa

— É um evento um tanto quanto requintado, não acha? — viro-me a ele,


encarando-o em seus olhos vermelhos.

— De fato — o diabo deu de ombros.

Ele tomou minha mão e me puxou para próximo de sua cintura, mal
sabia eu onde estava sendo levado.

Em passos sincronizados, e lentamente, fui conduzido pelos passos de


satanás até onde ele queria me levar — para longe do inferno.

Tolo como sou, fiz uma aposta com um anjo: se eu dançasse valsa
com Lúcifer, eu deveria não pisar em seus dedos, e que seria levado ao
paraíso.

Começamos a dançar, vagarosamente, sendo observados por diversos


anjos. Era a primeira vez em anos que Lúcifer retornava ao céu, e estava
sendo observado a cada passo que dava naquele lugar.

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— Confie em mim — ele sussurra a mim para que eu tenha calma,
mas acontece que nenhum de nós dois estávamos calmos naquela hora. —
Vamos devagar e, a medida que você sentir confiança, nós aumentamos o
ritmo do passo.

— Tudo bem — dou de ombros, não há muito o que eu possa fazer.

— Você está linda esta noite.

— Obrigada — dou-lhe um sorriso, era a primeira vez que me


disseram que eu estava linda.

Demônios e anjos são criaturas psicológicas, que nos conhecem


melhor do que nos conhecemos. Tanto de um lado, quanto do outro, existe
enganação, a diferença é que demônios contam verdades mentirosas, já os
anjos contam mentiras verdadeiras.

Se eu realmente estava linda, isso já não me era discutível, ele me


chamou de linda e isso para mim já bastava.

— Lúcifer — um anjo nos abordou — posso te roubar seu belo


companheiro?

— Claro — ele assente com a cabeça.

O anjo dança bem, não posso negar, mas ele foi mentiroso — mesmo
tendo me elogiado.

Enquanto valsava, desembainhei sua adaga de bronze e enfiei-a em


sua barriga. Todos no salão estavam surpresos, mas Lúcifer estava rindo.

— Você nunca será bem-vindo aqui — bradou outro anjo para mim
enquanto eu corria até os braços de Lúcifer.

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— Eu nunca aceitaria estar aqui — lhes respondi ao pisar no pé do
diabo com força.

— Gosto da sua atitude, garota — Lúcifer me conduz até a saída do


céu para podermos ir ao inferno. Pelo menos lá eu sei o quão bem recebida
eu seria.

— Henrique

25
Na próxima esquina

Eu não sabia o que me aguardava quando virei aquela esquina.

Eu vi alguém, mas não tinha certeza de quem era. A pessoa estava de


preto, ofegante, com um corpo aos seus pés e uma faca ensanguentada.

Todos os meus instintos falavam uma única coisa: corra.

Quando comecei a recuar andando para trás, aquela pessoa começou


a correr atrás de mim.

— Espere! — gritava para mim.

Eu bati contra um muro.

Aquela pessoa chegou cada vez mais perto de mim, com a mão
tremendo. Peguei a faca e cravei em sua barriga.

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Assim que caiu no chão, vi quem me perseguiu com uma faca.

Era eu mesmo.

Alguém passou e me viu com um corpo no chão e segurando uma faca.

Comecei a ir atrás, mas a pessoa começou a dar para trás.

— Espere! — gritei.

Quando estava encurralando-a, vi o terror em seu rosto assim como


ela viu o terror no meu. Eu estava frente a mim, novamente.

A última coisa de que me lembro antes de cair é de ter sido


apunhalado na barriga. Antes de fechar os olhos pela última vez, o vi correr
até a esquina e gritar:

— Espere!

— Vladimir

27
Cegueira

Eu não estava pronto.

Ele tinha me sequestrado, me amarrado, e agora cá estou eu… preso


nesta mesa com dor naquilo que um dia foi meu olho esquerdo.

Me surpreendeu a falta de destreza dele na hora de — literalmente —


introduzir em mim uma colher e arrancar meu olho. Ele só não contava que
na mesa que ele tinha me colocado em cima tinha uma faca…

Foi, até que de certa forma, fácil de me soltar e meter a faca em seus
olhos. Agora ele estava cego, mas não viveu por muito tempo para contar
sua história.

Sob sua mesa estavam algumas anotações de partes do corpo que ele
deveria arrancar de suas vítimas enquanto vivo, não sei que espécie de
ritual doentio ele iria fazer comigo — e certamente não ia deixar que ele
fizesse mal a mais alguém.

Peguei meu olho de vidro de volta e coloquei delicadamente no buraco


daquilo que um dia foi meu olho.

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Ele não sabia que eu tinha um olho de vidro. Acho que no final das
contas quem era o cego mesmo era ele.

Uns dias depois descobri que ele queria criar um homem, bem no
estilo cientista maluco, mas fiz questão de deixar algo naquilo que deveria
ser o seu “homem”: banhei-o no sangue de seu criador já morto.

— Vladimir

29
Rogo-lhe esta praga

— Ela te rogou uma praga! Disse que o diabo iria vir te levar! — Foi o que
minha mãe bradou aos prantos quando minha vó morreu.

Não entendia bem aquilo que ela quis me dizer com “ela te rogou uma
praga”, mas parecia não ser coisa boa…

Fiquei dias em claro tentando entender o que seria a tal praga que
minha avó me tinha rogado, isso sumiu conforme os meses passaram, até
que ontem aconteceu algo…

Eu morri. Com um tiro no peito.

Irônico, porque foi ela quem me deu um tiro no peito.

Mas o mais diferente de tudo foi o fato de que ela estava morta há 4
meses e ela me deu um tiro no peito.

Aquela velha me odiava por ter matado o meu avô do coração quando
ele me viu beijando meu ex-namorado na escola.

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Ela morreu uma semana depois, provavelmente de tristeza por ele…

Hoje, quatro meses após a sua morte, ela me matou. A praga então
me fez sentido: satanás iria vir me buscar, e sua promessa se cumpriu.

— Manoel

31
Trem

Era um trem bem antigo, mas dava para o gasto.

Já tinha sido um completo custo chegar até aqui, o sentimento de


aflição levemente se esvai…

Mas mal sabia eu que isto por pouco me duraria.

O trem se prepara para sair da estação, em tão pouco tempo eu já


sairia rumo à Bolívia — pelo menos era o que eu pretendia.

Ao chegar em Corumbá, senti aquele temor enorme. Era meu penúltimo


obstáculo, e, francamente, não sabia quanto tempo a mais eu teria no Brasil
sem ser preso.

Da cidade pantaneira, fui rumo à fronteira boliviana. Ali me esperava o


trem que me tiraria desta terra.

Antes de subir no trem havia alguns cartões postais a venda na


estação. Preenchi um para mandar até minha família.

32
Pedi ao taxista que levasse até o correios para que fosse enviado para
o Brasil, o paguei e subi no trem.

O trem começou a se movimentar, e eu apenas pude observar a


paisagem na janela até cair no sono…

Dormi tranquilamente, até ser abruptamente acordado.

Acordei com o coração acelerado, algo pesado havia batido contra o


chão do trem. Olhei para o corredor e notei que era uma pessoa que havia
caído, e ela estava sendo levantada por dois policiais brasileiros.

Me escondi, temendo pela minha vida — se eles me vissem, eu estaria


morto.

Um dos oficiais veio até onde eu estava sentado, pegou meus


pertences e levou junto para o homem que havia desmaiado. Olhei de novo
para aquela pessoa e ela estava muito estranha…

Estava vestida igual a mim, tinha o mesmo corte de cabelo que eu, e
— quando pude ver seu rosto — era igual a mim.

Os policiais estavam levando o corpo até o vagão de cargas.

Fechei os olhos, pensei estar tendo um pesadelo.

Acordei.

Estava onde haviam me deixado: no vagão de cargas do trem.

Me aproximei do corpo. Ele se mexeu e me encarou de volta, senti


uma forte dor de cabeça.

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Estava no chão, onde o corpo estava antes. Ele havia sumido de
minha vista.

Um dos policiais voltou e me encontrou acordado.

— Sorte sua que eu estive cuidando dos teus passos — respondeu


uma voz feminina vestida de policial. Ela era uma mulher ruiva, jovem e com
um semblante de cansaço.

— Por que diz isso? — pergunto, desorientado.

— Porque eu os matei — ela me responde em uma completa


naturalidade —, agora trate de não mandar um cartão postal tão óbvio para
sua família, ou receio de que você receberá uma visita deles e depois a
Morte virá lhe buscar…

A voz dela se esvaiu. Tudo rodava ao meu redor.

Desmaiei.

Acordei sentado no meu banco do trem, e, logo assim que olho para a
janela, vejo as estrelas do cruzeiro.

Era um sinal. Eu estava vivo.

Mas eu não saberia por quanto tempo mais…

— Henrique

34
Autores

Vladimir Borges de Silveira

— Sou filho do caos da mente de outro ser que é tão sombrio quanto
eu, mas que não se atreveu a vivenciar minha essência escura da forma que
deveria. Minha luta contra o mundo pauta-se em escrever suas injustiças em
forma de atrocidades que levantem uma reflexão moral acerca do que
realmente é correto.

Defunto escritor, Vladimir Borges de Silveira é aquele que assume,


escreve e assina todos os seus pensamentos sombrios na maior
naturalidade.

Manoel Rodrigues

— Poeta desde sempre, escritor ao acaso — é como os meninos me


dizem.

Chaqueño, brasiguayo, incurável romântico. Manoel Rodrigues é um


poeta muito fã de música tradicional paraguaia e adora as poesias do
Manoel de Barros.
Henrique dos S. Mosciaro

— Escritor de AUs de Twitter e de fanfics, as vezes a originalidade


ataca e algumas histórias originais — as vezes poesia — nascem dos
cantos mais profundos, e rasos, da mente deste jovem que se atreve a
escrever.

Pantaneiro, brasiguayo e sonhador. Henrique dos S. Mosciaro é um


escritor independente, fã de Sherlock Holmes, que adora cachorrinhos, ler
livros de fantasia, estudar linguística e escrever.

Sobre o Coletivo
Em outubro de 2022, Henrique, Vladimir e Manu fundaram o Coletivo
de Escritores Brasiguayos Ore Rohai, com a intenção de trazer visibilidade a
novos autores brasiguayos, assim como fomentar a literatura paraguaya e
regional sul-matogrossense.

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