Para Alem Da Beleza - Ami Ideas

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Para

Além da Beleza
– Para Além de Um Rosto, Existe Um Coração. –




Damien acreditava na Beleza externa como o maior cartão de visita, mas o amor lhe ensinou que não
existe no mundo Beleza maior do que alguém te amar exatamente como és.

Ami Ideas
Dedicatória

Para Rosa Alexandrina que encontrou essa história algures perdida entre os demais livros do Wattpad e o
amou de todo coração.
Agradecimentos

Rosa Alexandrina obrigada por acreditar em mim desde o princípio. Line Vieira e Erica Bibi que
leram e releram vezes sem conta para que o Ebook tivesse uma qualidade boa. Às Amietes que ajudam
todos os dias com apoio verbal e sempre estão prontas para me estender a mão. Neide Amâncio, Júlia
Granado, Eliete Araújo, Michele, Winney e todas as meninas do Esquadrão que estão dia e noite do meu
lado.
A todos que estão aqui e me acompanham nessa jornada.

AVISO

PAdB1 - Esse livro foi escrito em português de Portugal com algumas influências do acordo
ortográfico e palavras adaptadas para o brasileiro em respeito a muitas de minhas leitoras que são desse
país.
PAdB2- Essa história é uma SÉRIE, mas que pode ser lida individualmente sem comprometer a
compreensão, pois são independentes. Pelo que este é o Livro 1 e possui o livro 2 aqui na Amazon onde
poderão acompanhar a história de outro casal. Por isso peço aos leitores que compreendam que algumas
situações podem não ser explicadas ou reveladas, deixando para o livro 2.
PAdB3 – Este Ebook é uma nova versão diferente da que foi publicada pela primeira vez em
2016. Pelo que aconselho a todos que já leram antes, a se aventurarem desde o princípio. Deguste da leitura
por inteiro, não vão se arrepender.
PAdB4 - O mundo é complicado. A vida é complicada. O ser humano vai sempre correr atrás de
percepções. Muitas delas podem nunca chegar a descobrir. Meus personagens são mundanos, não são
perfeitos. Eles erram e acertam o momento todo.
Eu também sou mundana.
Leiam com toda atenção, está tudo criptografado nas entrelinhas. Em frases e nuances.
Boa Leitura!
Índice
Dedicatória
Agradecimentos
AVISO
PRÓLOGO
Beleza Perdida, A
Monstro Du Camp, O
Contrato de Casamento, O
Revolta de Emma, A
Primeiro Confronto, O
Tentativa de Mudança, A
Porta de Esperança, A
Despertar de Darcelle, O
Vida Sem Máscaras, A
Retrato, O
Festa de Noivado, A
Desaguar de Sentimentos, O
Porta Fechada, A
Transbordar da Paixão, O
Natureza do Amor, A
Encontro com o Passado, O
Vida e Seus Dilemas, A
Jantar Com Os Johnson, O
Incondicional Forma de Amar, A
Segredo Exposto, O
Escolha Difícil, A
Le Cuisinier (Extra)
Tempo de Libertar, O
Tempo de Libertar, O
Part 2
Felicidade Em Si, A
Para Além da Beleza
(Final)
Epílogo
Bónus
Depois da Beleza
Outros trabalhos da autora na Amazon:
PRÓLOGO

A Beleza é uma tirania de curta duração"

Verão, 2006

ERA a primeira vez que via uma corrida de cavalos, seus olhos escuros
como a noite brilhavam iguais estrelas e acompanhavam cada detalhe. O Turfe
era um desporto muito tradicional, pois envolvia o treino dos animais, a
competição e as apostas.
Quando seus pais disseram que tinham conseguido bilhetes para assistir
àquele evento, seu coração tinha disparado de alegria, diferente da sua prima
Jamie sentada ao seu lado e que soltava um e outro muxoxo repetidos para exalar
sua indignação por estar num hipódromo naquela tarde de sábado, quando
preferia ficar a estudar para entrar numa faculdade de medicina.
Darcelle era magra, com os cabelos crespos entrançados e um rosto
simples e harmonioso, mas não era nada que chamasse atenção, diferente da sua
prima cuja beleza saltava aos olhos de qualquer um, embora muitos afirmassem
que se não fosse dona de um corpo cheio, pudesse ser mais bonita.
O hipódromo Beauchamp era constituído por pistas de corridas e alguns
pavilhões. As bancadas bem organizadas estavam cheias e as pessoas
empolgadas urravam a cada volta que os cavalos davam. Aquela pista em
especial era em volta fechada com curvas, com um circuito fechado de um
percurso de 2000 metros e continha obstáculos a serem transpostos.
Estavam a assistir o último páreo – como era chamada cada corrida, e já
tinham feito alguns intervalos por conta das apostas dos sócios, simpatizantes e
investidores. Era um evento especial por destacar o Grande Prémio que era
disputado com calendários tradicionalmente definidos.
O locutor cuja voz ecoava pela arena já tinha anunciado partida, todos
estavam curiosos para ver quem seria o grande vencedor, à medida que os
jóqueis dominavam montados em suas corridas a galope. Tony, pai de Darcelle,
saltou no lugar quando o cavalo Beauchamp traçou a meta em primeiro lugar,
estava tão empolgado como a filha. O herdeiro dos cavalos Beauchamp mais
uma vez tinha provado a razão de fazer parte da família, sempre determinado e
numa forma implacável.
— Incrível! — Tony estava radiante com o seu chapéu para proteger os
raios do sol alto que irradiava o céu azul opalino. Riu com a filha adolescente
que também estava em pé à aplaudir com entusiasmo. Sua mulher Amabel e sua
sobrinha Jamie – de quem cuidavam desde sempre, continuavam sentadas e
mortalmente aborrecidas por não verem nenhuma graça naquilo.
Darcelle ainda estava em pé quando os prémios foram entregues, um
jovem loiro recebia a taça dourada. Era muito alto, com um rosto muito bonito e
só pela forma como se mexia dava para perceber que exalava um certo poder.
Era certo que merecia ter vencido aquela competição.
— Vamos embora. — Jamie estava impaciente, porque tinha a certeza de
que mesmo que conseguisse a bolsa de estudos para fazer a sua faculdade de
medicina no Hospital Central de Belmore, não conseguiria se manter lá sozinha
até porque os tios não tinham as melhores condições financeiras. Então precisava
esperar Darcelle concluir o ensino médio para deixarem San Luis Obispo e
procurarem emprego e casa, na maior cidade do país, a fim de poder juntar
dinheiro suficiente para conseguir fazer o curso dos seus sonhos.
— Eu quero um autógrafo. — Darcelle decidiu naquele momento,
pensava que tinha de ter uma lembrança daquele momento. As saídas com seus
pais eram escassas, os dois trabalhavam muito e mal tinham tempo para estarem
presentes, e ela gostava de guardar cada memória de tudo o que estimava.
Amabel suava e balançava a própria mão para procurar algum ar fresco,
mesmo assim não deixou de menear a cabeça quando a filha saiu das bancadas e
desceu os degraus em direcção a entrada principal para onde os jóqueis seguiam,
mas rapidamente foi quase esmagada pela multidão que se movia de um lado
para o outro.
Tony assobiou alto e ainda em risadas, colocou a mão no bolso e retirou
de lá um pequeno cartão e acenou para o ar. Darcelle estava ofegante quando
voltou para perto deles, pequenas gotículas de suor brilhavam na sua testa. Não
entendia o que o pai queria dizer com aquele gesto.
— Isso te dá o acesso de trinta minutos no clube jóquei. Meu patrão me
deu, mas como era uma espécie de buffet privado, não iria para lá sem vocês. —
Justificou com um sorriso que fazia seus olhos pequenos quase se transformarem
numa única linha. — Vai buscar o teu autógrafo!
A adolescente saltou no lugar e segurou aquele cartão como alguém que
segura a própria vida. Quando metia uma coisa na cabeça era quase impossível
de a fazer mudar de ideias, por isso sua família a foi esperar no carro que estava
no parque do Hipódromo enquanto ela foi até ao clube que ficava num dos
pavilhões.
Vestia umas calças jeans surradas, uma blusa de alças que se colava no
seu tronco magro e umas sandálias douradas simples, o que chamou a atenção do
porteiro quando ela lhe mostrou o cartão, porém sua entrada foi permitida para o
interior do grande salão. Uma recepção tinha sido feita e tinha longas mesas com
comidas e bebidas variadas. As pessoas conversavam com certo requinte, o
assunto geral era quase o mesmo, sobre quem tinha vencido nas apostas e os
elogios aos participantes.
Darcelle estava deslumbrada, sua cabeça levantada para cima a apreciar o
tecto alto com pinturas muito parecidas à das igrejas, com anjos e querubins
rodeados por panos esvoaçantes na cintura. Um pouco distante estava o jovem
loiro, vencedor do campeonato e parado junto a uma mesa perto de outras
pessoas.
Era ainda mais bonito de perto, com lábios cheios e uns ombros largos
que davam uma elegância natural. Ela não era tímida de jeito algum, por isso
quase correu até perto deles e esboçou um sorriso de dentes brancos e certos,
quando se aproximou.
— Boa tarde. Desculpem a intromissão. — Pediu e o pequeno grupo se
silenciou, curiosos pela súbita abelhudice. Uma jovem loira estava de
sobrancelhas levantadas, outro moreno de cabelos bagunçados parecia ter
interesse em ouvi-la. Outros jogadores também faziam parte, todos atléticos e
menores de vinte e cinco anos. — Foi a primeira vez que vi um Turfe. Fiquei
admirada e quero muito dar os parabéns pela vitória e pedir um autógrafo.
O loiro deixou escapar um riso nada simpático dos seus lábios bonitos,
chegou a revirar os olhos e demonstrou toda impaciência do mundo. Olhou-a de
cima a baixo a respirar uma certa incredulidade, franziu o sobrolho em total
arrogância e sequer se mexeu no lugar.
Darcelle ainda nem tinha tirado a pequena agenda da sua bolsa de pano,
pois não era burra e nem foi preciso muito para perceber que tinha sido
desprezada, uma vez que o campeão lhe virou a cara e voltou a conversar com os
acompanhantes ignorando-a por completo. Nem tinha sido necessário abrir a
boca para lhe depositar tamanho desprezo.
— Me desculpe, mas eu falei com você. — Estava nervosa quando o
questionou, suas mãos tinham ficado frias, ainda mais ao vê-lo voltar o rosto
preguiçosamente e estreitar os frios olhos azuis.
— E foi claro que não intenciono responder. — Ele disse e revelou a voz
inexpressiva.
— A isso se chamaria educação. — Darcelle retorquiu, sua entonação
saiu um pouco trémula.
— Não a vou gastar com um estranho. Agora se me der licença. — Ele
voltou o rosto novamente, ainda de nariz levemente plissado como se a
estranhasse.
Um clima tenso se tinha transformado pelo lugar, mas ninguém disse
nada por parecer estarem acostumados com aquele tipo de situações. Darcelle
ergueu o queixo antes de dar meia volta e sair dali, mas nunca de cabeça baixa.
Era um homem bonito sim, mas de coração feio!
Beleza Perdida, A

"Não há Beleza que substitua o charme de carregar com classe as suas
imperfeições"

D
AMIEN saiu do banho, se observando pelo espelho e concordando
consigo mesmo o quanto era belo, dono de um rosto angular e de uns matadores
olhos azuis, seus traços podiam-se orgulhosamente se atrever a chamar de
perfeitos e era isso que o deixava ainda mais de ego inflado.
Para além de rico e herdeiro da maior empresa de criação de cavalos,
possuía uma vida repleta de luxo, entre festas famosas e amigos cujos
sobrenomes eram conhecidos por todos os lados. Não podia querer mais da sua
vida, agora formado pela universidade militar, estava no auge da sua carreira ao
lado do pai. Com a sua família perfeita, tudo o que precisava era de aproveitar o
máximo. Nunca passava um mês sem viajar para algum país exótico ou deixava
de se apresentar perante os canais televisivos sempre com algo por dizer. Seu
sorriso arrogante era uma marca registada no rosto esbelto, assim como o corpo
alto e bem formado fazia jus aos ternos caros e feitos sob medida.
— Parabéns, campeão! — Bianca surgiu com um sorriso perfeito. Estava
em êxtase quando o abraçou por trás com cuidado para não amassar a roupa que
muito bem se encaixava no corpo de proporções de causar inveja. Ele possuía
uma massa muscular muito bem trabalhada e não era magro, pelo contrário, suas
pernas grossas eram definidas e notáveis, assim como os braços fortese cheios de
contornos visíveis mesmo por baixo do casaco preto.
— Todos os anos, Bia. Quando chegar aos trinta terei uma coleção de
troféus nunca antes vista. Nem podem afirmar que sou privilegiado por ser o
dono de tudo, afinal deixei-os há uma distância invejável. — Afirmou com
precisão. Seus cabelos loiros estavam todos penteados para trás, quase a tocar a
gola da camisa. Os fios eram muito claros, brilhantes como ouro puro e macios
como a seda.
Era um jovem muito competitivo, na Academia Militar que frequentou se
gabava sempre por ser o melhor e detestava perder ou ficar atrás de quem fosse.
A verdade é que Damien não era tão caloroso como se fazia parecer naquele
instante com Bianca. Muitos sorriam na sua presença e o criticavam pelas costas,
pois era conhecido por ser convencido, arrogante e esnobe. Sempre preocupado
com a beleza acima de qualquer coisa, e apreciava as mulheres que estavam
dentro dos seus padrões.
— Quanto a isso não restam dúvidas. — Ela tinha uma voz adenóide,
mas nada que estragasse sua beleza surreal. Era branca como a cal, tinha longos
cachos dourados e lábios tatuados de vermelho a condizer com o vestido de gala
que muito bem encaixava no seu corpo magro. Usava um grande anel de
brilhantes para se afirmar como noiva dele, o que queria dizer que seria a futura
senhora Beauchamp. — Já tentei telefonar para o Dash duas vezes e não atende.
Damien se mostrou indiferente, na verdade estava com um
pressentimento desconfortante naquela noite.
— Deve estar chateado por causa da fã intrometida. Não compreende que
estou farto e não sou obrigado a falar com quem não gosto. Nem sei como
deixam entrar aquele tipo de gente no clube. — Se afastou dos braços dela e
andou até as prateleiras de vidro embutidas na parede. Usou um de seus
perfumes caros e preencheu o quarto do hotel de San Luis Obispo com o seu
cheiro penetrante. — Era feia, desengonçada e muito mal vestida. Não vejo a
hora de voltar para Belmore, esta cidade está cheia de pessoas de nível baixo.
Em nenhum momento se preocupou em elogiar a noiva que estava parada
a olhá-lo terminar de se aprumar, completamente imerso em sua própria vaidade.
Os sapatos italianos brilhavam por baixo das calças de corte sob medida, tudo
nele gritava luxo e poder.
— Então vamos nos adiantar e depois o Dash nos encontra na festa? —
Bianca tentou disfarçar a vontade que tinha de chamar atenção pelo noivo não
dar importância pela ausência daquele que talvez era o amigo mais autêntico que
podia ter.
Apesar de Christian Dash ser muito atrevido, aquela amizade tinha
começado nos tempos do ensino médio. Chris era filho de grandes médicos
renomados, ainda assim, era a irreverência em pessoa. Sempre com sua língua
afiada e roupas simples, em nada se parecia ao herdeiro da Beauchamp.
— Certo. — Damien agora dava atenção aos punhos de ouro que
encaixava no casaco com todo cuidado. Não parecia muito empolgado como na
maioria das vezes, pois normalmente iria se discorrer sem parar sobre a sua
vitória marcante e de como todos iam para a festa apenas para vê-lo e oferecer
patrocínios milionários.
— Alguma coisa? — Bianca se afastou até a cama grande coberta por
lençóis macios e brancos. Calçou os sapatos pretos de veludo com fivela cheia
de brilhantes, que tão bem combinava com o seu vestido, e esperou pela
resposta.
— Não, nada. — Respondeu ao se encarar no espelho mais uma vez,
apreciando a perfeição do próprio reflexo. Depois levou seus pertences em cima
de uma consola perto da porta do banheiro e se aproximou da noiva para lhe
estender o braço.
Sua mãe dizia que era muito novo para ter firmado compromisso tão
cedo, mas ele estava decidido a isso. Tinha certeza de nunca encontrar uma
mulher tão graciosa e dentro dos padrões como a sua companheira, sem contar
que ele prezava muito as características que a acompanhavam: Bonita, de boa
família e conhecida na sociedade.
— Eu te amo. — Bianca disse quando ficou em pé e se esticou para o
beijar nos lábios de um jeito provocante e sedutor. — Você me ama?
Damien deixou um sorriso misterioso desenhar seu rosto, era estranho
afirmar aquilo para outras pessoas, nunca tinha dito inclusive para os seus pais
que sempre lhe deram tudo e o trataram com todo o carinho e amor que uma
família podia dar. A verdade é que nunca antes se importara em amar nenhuma
delas desde que elas o amassem como se não houvesse um amanhã. Com Bianca
era um pouco diferente, pois pela primeira vez tinha um pouco de noção do que
eram os sentimentos embora não abrisse mão da sua lista do que era uma mulher
que devia estar ao seu lado. Ela era filha de pais bem cotados na sociedade e
tinha estudado na universidade de Birmingham. Por sua vez, Christian Dash
mantinha o posto de melhor amigo por nunca poupá-lo em críticas e o desafiar
sem medo nenhum.
Quase salvo pelo gongo, o celular vibrou com força e ele se afastou para
atender sua mãe. Giovana estava preocupada, não tolerava atrasos ainda mais em
assuntos que eram de seu interesse como por exemplo exibir o filho exemplar à
toda sociedade. A Beauchamp estava a realizar uma gala para o campeão de
Turfe e também iam aproveitar para anunciar a todos que o herdeiro seria o novo
administrador da empresa.
— Temos que ir. Ainda falta uma hora de viagem até Belmore. — Olhou
para o relógio de pulso. Um Tag Heuer Classic comprado num leilão entre
pessoas com muito dinheiro.
Bianca procurou seu xale, telefonou para a recepção para que fossem
levar as malas e depois lhe deu a mão. Saíram em silêncio pelo corredor circular
pintado de uma cor creme, entraram no elevador de estilo antigo com um
ascensorista que os levou para o andar térreo.
Aguardaram que as malas fossem colocadas no carro, aproveitaram para
serem fotografados no hall do grande hotel Sotto de San Luis Obispo e só então
saíram para a noite serena repleta de estrelas no manto escuro que os cobria por
cima.
— Minha vontade era passar a noite aqui e não ir para essa festa —
confessou quando o manobrista trouxe o carro desportivo. Esperou que lhes
abrissem as portas, sentou-se no lugar do condutor e colocou o cinto depois de
retirar uma gorjeta gorda para dar ao homem.
— Hoje é uma noite muito importante. Um passo muito grande na sua
vida e só coisas boas aconteceram desde manhã. — Bianca estava empolgada
demais, sabia ter tirado a sorte grande ao ter conquistado aquele homem. Suas
amigas morriam de inveja, seus familiares não viam a hora de ela subir ao altar e
se transformar na senhora Beauchamp. — Estou aqui com você.
— Eu sei. — Afirmou e tinha certeza daquilo.
Saiu a dirigir sem pressa pelas ruas da cidade que ficava a uma hora da
capital. Bianca tinha uma mão na perna dele e a outra procurava as músicas pelo
leitor de som. As luzes dos postes de energia iluminavam a rua adjacente a
estação de comboio, não havia muita agitação, nem muitos caminhos que seguir
para poder entrar na auto-estrada principal da SLA1.
— Posso saber no que pensas? — Ela perguntou após alguns minutos.
Olhava-o de esguelha, adorava aquele rosto angular de queixo forte, olhos
amendoados rasgados no final e azuis tão claros que pareciam um lugar
paradisíaco. Seu nariz era longo e recto e os lábios um pouco cheios chamavam
para um beijo avassalador.
— No futuro, Bia. Os meus pais pretendem se mudar para o haras aqui
em San Luis Obispo, o que quer dizer que vou ficar com a mansão Beauchamp
só para mim. Não pretendo ter filhos agora, é muito cedo, mas acredito que os
nossos seriam perfeitos. — Não sabia como dizer de outra forma que pretendia
que a noiva se mudasse, tampouco deixava mostrar que não suportava a solidão.
Queria ser rodeado e então contemplado.
Demoraram cerca de quarenta e cinco minutos para entrar na grande
ponte que se erguia em sua construção magnífica apinhada de luzes e de carros
que circulavam sem cessar e que passava por cima do mar Atlântico.
— Vamos conseguir chegar a tempo. — Damien observou a olhar para as
horas. Em quinze minutos estariam no centro de Belmore e prontos para uma
noite memorável cheia de alegria e emoção.
— Damien! — Bianca deu um berro ao ouvir o som estridente de uma
buzina e luzes gigantes que derrapava naquela direcção. Cruzou os braços junto
ao rosto e fechou os olhos num pânico completo.
Ele sequer teve muito tempo para raciocinar, o terror se apossou do seu
corpo másculo ao ver um caminhão que escorregava sem freios e levava tudo o
que vinha na frente. Buzinas apitavam sem parar, gritos altos se espalhavam e se
misturavam ao som do carro que tocava Apologize de Timberland e One
Republic.
Os olhos azuis se abriram ao perceber que se virasse o volante para a
direita, Bianca seria completamente afectada, mas se voltasse para a esquerda
então era ele quem sofreria mais com o embate, no entanto se não fizesse nada
então os dois bateriam de frente.
A decisão foi tomada quase alguns instantes antes de sentir o impacto,
sentiu seu rosto ser dilacerado, mas não ficou muito tempo acordado para poder
descrever a dor agonizante que o acompanhou.
Sangue. Horror.
[...]
Um espelho foi colocado a sua frente, o momento era de maior
expectativa. Damien estava quieto, de rosto inchado e envolto em faixas por toda
cabeça, braço e mão. Seus pais estavam parados num canto, observavam em
silêncio e estavam abraçados. Chris, o seu melhor amigo, estava mais próximo,
tinha trocado o curso de medicina pelo de psicologia, mas estava por dentro de
todos procedimentos realizados até então.
Damien tinha passado muito tempo desacordado, era uma emoção grande
vê-lo mover os olhos e reconhecer cada um que estava ali, mesmo que sua boca
de lábios secos não dissesse nada. Os remédios aplicados eram muito fortes,
tinha passado por cirurgias e ainda espelhava certa confusão no rosto de quem
não sabia quanto tempo tinha ficado fora da realidade.
Encarou o espelho com atenção, o assistente do cirurgião plástico o
segurava com uma mão e parecia ter um ar frio demais, o que fez o paciente
engolir em seco enquanto o médico retirava as faixas que antes cobriam o seu
rosto. Foi um momento carregado de tensão, todos pareciam ter se esquecido de
respirar e apenas arregalavam os olhos a medida que mais do rosto do herdeiro
Beauchamp era revelada.
— Meu Deus! — Giovana exclamou e perdeu forças nas pernas, sendo
amparada pelo marido que era tão alto e forte como o filho. Ela escondeu o rosto
no peito dele, o pranto escapou de seus lábios e negou várias vezes com a
cabeça.
Igor, o pai de Chris e dono da clínica Dash & Dash teve que chamar uma
enfermeira para levar a mulher dali para fora e tentou olhar para o seu filho, mas
este estava com os olhos verdes perdidos no amigo.
Damien estava sério quando encarou o próprio reflexo, o coração reduziu
o ritmo e até riu baixo. Negou com um gesto da cabeça, não era ele naquele
espelho. Olhou para todos a sua volta a procura de respostas e então o seu estar
se modificou, pois não estava diante de um pesadelo.
— Não... — Abjurou num tom rouco e sofrido. — Não. — Puxou aquele
espelho das mãos do assistente e o atirou ao chão num gesto único, ignorando a
dor que sentiu no braço por conta da agulha.
— Damien... Eu sou o doutor Hassan, o meu assistente Daniel Winter.
Hoje em dia temos várias formas de tentar reverter o seu estado. Não se
preocupe. — O homem era um indiano baixo e tentava acalmar o paciente, pois
os batimentos cardíacos pareceram acelerar no quadro dos equipamentos
electrónicos.
— Quero sair daqui! — Olhou para o pai numa falsa acusação. — O
que... O que se passa? — Não conseguia raciocinar no que tinha visto. Seu rosto
parcialmente desfigurado em carne viva e completamente irreconhecível ao que
era antes.
Christian estava com os olhos tristes, tentou pedir em silêncio para que se
acalmasse, mas foi em vão. Damien estava agitado, os nervos o tinham
dominado por completo e tinha apertado os olhos como se daquela forma
pudesse esconder o reflexo guardado em sua memória.
Arrancou o tubo de soro preso em seu braço bom, porque o outro ainda
estava enfaixado. Tentou se levantar daquela cama confortável da clínica de
luxo, queria esmagar aquele espelho até não restar nada que pudesse voltar a
exibir o seu rosto. Não se reconhecia naquela cara feia, não podia ser verdade e
não suportaria aquilo.
— Eu prefiro a morte. — Repetiu várias vezes para o pai quando
enfermeiros entraram para o segurar e tentar estabilizá-lo. — Prefiro. A. Morte!
— Vamos, é melhor saírem. — Igor Dash tratou de dizer para Jacques
Beauchamp e para Christian. — Vamos sedá-lo.
Mas pelos olhos do herdeiro Beauchamp, não dava apenas para ver sua
sufocante agonia, e sim o desejo de não querer mais viver Para Além da Beleza.
Monstro Du Camp, O

"Só quem se esforça em ver além do que as aparências mostram, merece
contemplar sua Beleza interior."

CHRISTIAN foi visitar o amigo pela milésima vez nos dois meses que
se seguiram desde que este acordou e percebeu a total falta de alegria no rosto
obstruído. Colocou flores no jarro que estava em cima da cabeceira e se sentou
numa das cadeiras junto à cama. O herdeiro Beauchamp tinha passado por mais
duas intervenções no rosto.
— Bianca? — A primeira pergunta de Damien pesava num remorso que
não lhe competia. A culpa não tinha sido dele, e sim do camionista bêbado que
perdera o controlo na estrada. Não era também a primeira vez que perguntava
por ela nos últimos tempos, sabia que tinha tido um braço e uma perna partida,
nada que as sessões de fisioterapia pagas pelos Beauchamp não tratassem de
agilizar melhorias significativas e rápidas.
— Bom dia, Damien. Como está? — Chris não se fez de rogado ao
chamar de forma irónica a atenção para a falta de tacto do seu melhor amigo. Até
porque este estava a passar por um momento muito difícil, mas não parecia ter
razões para esquecer a educação.
— Para que flores? Eu ainda não morri. — Havia uma pequena
esperança no fundo dos olhos cor de céu de Damien. A promessa de
reconstituição facial ainda batia em seu peito, esperava que o dinheiro pudesse
comprar sua Beleza de volta. Seus pais não mediam esforços para pagar
pesquisadores que estavam em busca das mais altas técnicas avançadas.
— Sarcasmo a essa hora, Beauchamp? Quando eu for ao seu enterro
levarei tudo menos flores. Alguma garrafa de vodka, talvez — respondeu em
completo desalinho. Tentava parecer normal, mas lá no fundo uma parte de si
também estava machucada.
— Quero que seja administrador em meu lugar. Meu pai precisa de
alguém de confiança e eu não poderei fazê-lo. — A voz de Damien saiu quase
muda, escondia a tristeza que tinha sentado no seu coração. Não podia deixar de
pensar que num minuto estava a caminho de um futuro promissor e no outro, o
destino teria rido de sua cara.
— Isso até você sair daqui. Ainda tem duas pernas, dois braços, metade
de um rosto e um cérebro inteiro — redarguiu tentando tirar certa piada daquela
desgraça. O jovem Dash não sabia ser diferente.
— Não pretendo voltar. Estou contratando você!
— Deixa disso, idiota! Por que não iria voltar? A Beauchamp é sua vida.
Ou pretende seguir a carreira militar?
— Christian. — Desta vez sua voz ríspida soou com seriedade. — Não
tenho coragem de voltar. Fará isso por mim ou posso contratar outro?
Ele demorou a responder, pois sabia o quanto o amigo podia ser exigente.
— Por enquanto tudo bem. Depois revemos isso, pode ser assim? —
Sugeriu com calma e paciência. Os dois pareciam ter crescido muito nos últimos
meses após o acidente.
— E a Bianca? — Quis saber. O orgulho não aceitava ser engolido. Ela
nunca tinha ido visitá-lo.
— Eu estou aqui. Certo?
Viu Damien concordar com a cabeça num silêncio resignado. Era tudo,
menos burro para entender o que tinha acontecido. Até por que nenhum dos que
julgava seus amigos tinham colocado um pé ali, a não ser o jovem sentado a sua
frente.
— Preciso que você seja o meu rosto e a minha voz. Pelo menos até tudo
se minimizar — pediu e tentava segurar o choro que insistia em morar na sua
garganta.
— Está certo.
[...]
Inverno, 2007
Enquanto olhava para a máscara em suas mãos trémulas, podia sentir o
coração endurecer, proibindo qualquer gota de escorrer por seus orbes. Não sabia
direito o que lhe causava tanta dor, se o facto do Doutor Igor Dash ter dito que a
pele da parte danificada do seu rosto tinha ficado muito fina e imprópria para
mais intervenções cirúrgicas, ou se olhar para as fotografias que estavam no seu
quarto do Haras Beauchamp que ficava afastado da cidade e onde tinha passado
os últimos meses desde que saiu do hospital.
Aquelas imagens tinham sido tiradas por ele, apaixonado desde sempre
por fotografias, tinha toda uma coleção detalhada de máquinas profissionais que
captaram os melhores momentos de sua vida. Viagens, festas, e momentos
românticos com Bianca que aparecia em várias. Alegre e sorridente, a exalar um
amor que provavelmente nunca existiu. Damien dizia por dentro que, talvez, ela
ainda estivesse traumatizada, afinal de contas era sua noiva e eles iriam se casar.
Mas então, por que razão Bianca nunca mais tinha atendido suas chamadas ou se
dignara a responder suas mensagens?
Já tinha passado mais de um ano.
— Senhor Beauchamp? — A governanta da casa tinha visto aquele
menino crescer. E tanto ela como todos os outros empregados jamais tinham
torcido o rosto por vê-lo deformado, pelo contrário, tinha sido Damien quem
lhes tinha virado às costas há muito tempo quando deixou de ser uma criança
inocente e descobriu o homem arrogante dentro de si.
— O que quer? — Rosnou, sem se dignar a olhá-la. Observava com
atenção a imagem de Michael, seu outro amigo que era o Quaterback da equipe
de futebol de sucesso, pois este tinha sido o primeiro a desprezá-lo quando o viu
alguns meses atrás.
Da primeira vez que saiu de casa, Damien chegou a cogitar que as
pessoas seriam razoáveis devido ao acidente, porém teria se enganado
prontamente. Nenhum de seus conhecidos foi agradável o suficiente para
estarem perto dele por conta daquela parte do rosto medonha e nem se deram ao
trabalho de disfarçar. Não o suportavam de modo algum, ainda mais com uma
aparência tão repugnante.
Era por essa razão que segurava a máscara branca em suas grandes mãos
como se segurasse a própria vida. Talvez, assim, conseguisse voltar a estar em
sociedade e a conviver com as pessoas novamente, enquanto aceitava que não
tinha volta para a nova condição na qual se encontrava. Podia imaginar as piadas
maldosas que se espalhavam sem alguma compaixão, principalmente quando
suas fotografias com a nova aparência encheram a internet e os noticiários
principais por todos os cantos do mundo. Tinha sido difícil resgatar e proibir que
qualquer imagem sua fosse veiculada, e por sorte, sua mãe com a grande
influência do nome da família conseguiu reparar aquele dano crucial para a
sanidade do único filho.
— O senhor Christian Dash chegou. — A governanta estava habituada
aos ataques amargos vindos dele, porém se tinha enganado ao pensar que o
acidente poderia trazer algum traço de humildade. Pelo contrário, estava pior.
Um verdadeiro monstro. — Suas malas estão prontas.
— Vá! — Ordenou com frieza. Queria ficar sozinho para se despedir
daquele lugar. Jamais voltaria a colocar os pés ali, não quando lhe trazia tantas
lembranças que precisavam ser esquecidas. Principalmente agora que estava de
luto.
Soltou um suspiro ao rodar nos calcanhares a analisar o quarto outrora
caloroso, mas não se demorou a sair dali. Antes de descer as escadas, encaixou a
máscara no lado esquerdo e finalmente deixou a casa até atravessar a pequena
ponte que o levava para o pátio principal. Não olhou para os cavalos que tanto
amava e nem para nada que lhe remetesse ao pai, apenas se fixou em Chris que
estava sentado de cara emburrada dentro de um Ferrari vermelho onde os
empregados da casa guardavam as malas de Damien.
— Fantasma da Ópera é você? — O jovem Dash indagou. Já era
esperado que fizesse alguma gracinha, sempre camuflava suas dores escondidas
com humor, não faria diferente com o loiro. Na verdade, era o único que insistia
em estar presente, mesmo na crise de depressão e mau humor que passaram a
fazer ainda mais parte do seu amigo.
Damien falava escassamente e aos poucos sentia a amargura tomar conta
de si. Toda sua alegria pela beleza da vida lhe tinha sido brutalmente tirada sem
dó ou piedade e isso só o afectou mais na morte recente do pai. Era exatamente
por esse motivo que deixava o haras e se mudava para a Mansão Du Camp que
ficava bem no centro da cidade. Precisava tomar as rédeas das empresas da
família.
— E a Giovana? — Perguntou pela mãe, se recostando no banco do
carro. Os ânimos entre os dois não tinham sido os melhores. — Quero que lhe dê
a parte dela da herança.
Chris balançou a cabeça. Era incrível como um acidente tinha vindo para
transformar tudo de um jeito que julgou ser irreversível.
— Irá trabalhar comigo na empresa?
— Não. Ficarei na mansão, sozinho. Teremos telefones e computadores
para comunicar. Espero que continue a administrar a empresa como tem feito.
— Ficarás escondido por trás dos muros da mansão? Então para que essa
máscara fajuta? — O amigo nem podia acreditar no que ouvia, pois não
concordava que este se escondesse por algo tão mesquinho como um rosto.
— Para que não tenha de me olhar ao espelho — respondeu com toda
sinceridade e apoiou o cotovelo na janela e a mão no queixo.
— Você está vivo, Damien.
— Mas sou um monstro.
[…]
— O que está fazendo? — Giovana quase gritou ao adentrar a grande
sala de estar onde o filho estava parado a beber. Era toda revestida de madeira, o
chão brilhante parecia alérgico ao pó e os grandes candelabros iluminavam o
espaço de maneira tímida. As longas cortinas pesadas ajudavam na criação do
ambiente sombrio, principalmente pelo frio, e da lareira apagada, que se fazia
sentir.
— Não é de sua conta! — Parecia tenso enquanto olhava pela janela da
mansão e via uma jovem que corria até ao carro. Prestou atenção quando o xale
voou de seu pescoço e ondulou pelo ar até ir se prender a uma das inúmeras
árvores que cerceavam a propriedade.
— Quando vai parar com isso? — A mãe questionou. Parecia cansada
demais e a infelicidade se refletia na ausência do brilho dos grandes olhos azuis.
— Passaram quatro anos desde o maldito acidente, meu filho, até quando irá se
punir assim?
Como sempre não respondeu. Apenas apertou o copo na mão pálida e
continuou quieto, apreciando a vida lá fora apenas pelas janelas da mansão.
Sequer os empregados ousavam cruzar com o famoso Monstro Du Camp – como
ficou rapidamente conhecido.
— Giovana, por favor, pare. — Mesmo em calmaria, Damien sabia soar
ruim pela maneira como pronunciava as palavras, regadas de uma frieza
constante. Era uma pessoa amarga e aquilo deixava sua mãe desesperada.
— Eu tentei de tudo. — Ela disse. — Trouxe os melhores psicólogos,
acompanhei todas as sessões. Tentei me unir a você para superar o luto, o trauma
e tudo. Não sei se pensa que não me atinge quando se comporta assim, mas não
posso suportar esse desfile de mulheres que tenta comprar para que se tornem
suas futuras mulheres!
Damien não disse nada, voltando a beber o líquido branco enquanto
assistia o carro se afastar para longe dos terrenos daquela mansão. Mais uma
noiva perfeita que tanto almejava e que fugia a sete pés após algum tempo de
convivência com ele.
— É abominável! E não sei o que, ou a quem quer provar com tudo isso!
Que mesmo tendo essa aparência e de ter ficado sem amigos e ter sido
desprezado, consegue se casar com alguém a altura? Não se compram
sentimentos e acredite em mim quando lhe digo que não é por causa de seu rosto
que estão indo embora. — A mãe fez uma pausa e o olhou ressentida. — É o seu
carácter... Ou a falta dele.
A ignorou como habitual. Era fácil dizer que tinha de superar, que já
tinha passado muito tempo e era hora de reagir. Todos são peritos em seguir em
frente quando a ferida é na alma do outro, mas Damien não a tinha só por dentro,
estava por fora. De cada fez que puxava a máscara de seu rosto e se encarava no
espelho. Como poderia fingir que tudo já tinha terminado?
— Não quero conversar.
— Não se compra amor, Damien. — O tom da senhora Beauchamp foi
duro desta vez, perdendo toda a amabilidade e tacto com o qual o vinha
presenteando mesmo sem receber nada em troca. O amor de mãe podia ser
incondicional, mas toda e qualquer paciência tinha limite. — Está se vestindo
perfeitamente desse Monstro como todos o chamam. Ninguém é perfeito!
Ela se calou num susto quando o viu arremessar o copo que trazia na mão
de encontro a janela que se estilhaçou pela força. Engoliu em seco e balançou a
cabeça, um quanto decepcionada, e então se afastou dali em passos firmes e
decididos. Não ficaria para ver o filho se enterrar naquela melancolia eterna.
Pelo menos Giovana sabia que a vida é de quem se atreve a viver.
Naquela noite, depois de muito tempo e após assistir mais uma mulher
deixar os muros de sua mansão, Damien não parecia arrasado de todo até porque
aprendera a camuflar o que sentia. Salve as visitas de Chris, estava habituado a
passar muito tempo sozinho, perdido no trabalho que era um dos seus maiores
veículos de distracção. Contudo, se atreveu a ousar e gritou pelo motorista
Étienne que o viesse levar.
Não se lembrava mais da sensação de sentir o ar lá de fora tocar a metade
sã de seu rosto ou de escutar com tamanha precisão os animais nocturnos que
emitiam sons altos entre a floresta. Dentro do carro, sempre calado, observou a
cidade que parecia ter mudado nos últimos anos. Tanto que quando o motorista
lhe perguntou para onde ir, o único sítio de Belmore de qual realmente se
lembrava era o Hotel Sotto.
Ficou parado por trinta minutos do lado de fora, via as pessoas que
entravam e saíam com longos casacos e quase sempre apressados. O quanto
sentira saudades de tudo aquilo? Podia ouvir as palavras da mãe ecoarem de
fundo quando ajustou a máscara em seu rosto, sabia que chamaria a atenção, mas
nunca era demais tentar. Saiu do carro a exalar toda a riqueza que o competia, o
terno caro feito sob medida se encaixava no corpo alto e forte, os sapatos
italianos reluziam e o relógio se destacava no pulso, assim como o perfume.
Damien se arrependeu no minuto em que atravessou as portarias e todos
os rostos se voltaram para si, mas já não poderia fugir. Seu ego não permitia isso.
Atravessou o hall de entrada e rumou até ao grande bar na parte de trás. As
paredes pintadas de um laranja torrado davam um calor necessário assim que
percebeu os cochichos e os dedos que o apontavam.
— Ridículo. — Ouviu alguma voz perdida no meio das pessoas que
conversavam e bebiam dentro do espaço requintado. As mesas estavam
preenchidas, viu alguns amigos de antigamente que lhe viraram a cara.
Não era possível que todos o desprezassem apenas por ter metade da face
destruída. Antes só estavam ao seu redor porque pelo menos não era incómodo
como agora, embora sempre tivesse sido um ser intragável. Agora sabia disso
mais do que ninguém.
— Damien! — Bianca sorriu em amarelo quando quase se esbarrou nele.
Estava com o cabelo num penteado lateral bonito. A maquilhagem realçava a
Beleza marcante, lábios pintados de vermelho e o corpo que melhorou com o
tempo estava coberto por um vestido elegante em tom salmão. Michael estava ao
seu lado com a mão ao redor de sua cintura.
— Bianca. Michael. — Beauchamp teve que ser forte quando esboçou
um sorriso que chegou a ser invisível, acenou para os dois e andou apressado até
ao bar. Seu coração quase não batia, mas seus olhos juraram apagar aquela
imagem de sua mente.
Quão cruel o destino poderia ser?
— Uísque. Duplo. Seco. — Pediu em pausas para a jovem que estava por
trás do balcão. Era uma mulher ao seu ver bastante feia, pele pálida quase
translúcida e um nariz longo demais.
— É para já. — Ela usava o uniforme do hotel, preto e branco, e foi
eficiente em atendê-lo, pousando a garrafa mesmo na sua frente depois de encher
o copo de vidro. — Noite difícil?
Ele apenas virou a bebida que queimou sua garganta lhe dando ordem
silenciosa para voltar a encher. Não se dando ao trabalho de encarar duas vezes a
única pessoa estranha que lhe tinha dirigido a palavra em tanto tempo. Ainda
achava os outros inferiores e indignos de sua companhia, deveria ser por isso que
a lei da atração funcionava perfeitamente no seu caso.
E bebeu toda noite, sabendo que alguns monstros são reais e vivem
dentro dos seres humanos, e às vezes, eles vencem!
Contrato de Casamento, O

“Palavras são contratos. Preste atenção no que anda assinando.”

2016, Outono

CHRISTIAN esparramou o jornal Tempo por cima da grande mesa de


mogno. Letras garrafais mostravam o escândalo que pintara todas as notícias da
última semana que passou. Várias fotos de Damien tinham viralizado pela
segunda vez em dez anos.
— Você não acha estranho? — Perguntou. Os cabelos bagunçados faziam
o melhor amigo torcer o nariz, assim como as roupas informais de camiseta preta
e calças jeans rasgadas no joelhos, completando com um ténis de marca.
— Por que deveria? — Damien retorquiu. Estava sentado com a mão
apoiada no queixo e o terno impecável se encaixava no corpo atlético. Fazer
ginástica tinha sido uma das únicas formas de manter o corpo cansado o
suficiente para dormir profundamente durante a noite. Sem pesadelos que lhe
levavam anos atrás quando aquele caminhão se embateu contra seu carro.
Chris pigarreou, irritado demais para conseguir falar. Respirou fundo,
puxando todo ar para seus pulmões e apoiando as duas mãos por cima da
superfície emadeirada.
Seus olhos verdes fitaram os azuis vazios de brilho.
— Não parece sinistro que depois daquelas fotografias, simplesmente
apareça alguém disposto a ter uma relação com você? Lembra de todas aquelas
mulheres que viram o seu rosto e fugiram como se não houvesse amanhã? —
Christian coçou o queixo, alguns pontos negros picavam pela barba por fazer.
Não gostava nada daquela situação, pois tinha participado de todos os noivados
mal feitos e tinha se regozijado quando viu o amigo finalmente desistir daquilo
que achava uma idiotice.
Damien não gostava de lembrar. Fazia tempo que a solidão tinha sido sua
melhor companhia, pois nenhuma mulher que achava digna estava disposta a
aturá-lo nem por seus milhões que só se multiplicavam a cada dia. Então não
podia reclamar agora que uma apareceu na sua porta aceitando uma proposta que
tinha sido colocada no jornal há muito tempo. Emma era como as belas mulheres
com quem estava acostumado a sair nos seus tempos de glória. Uma jovem alta,
com pernas longas, cabelo pintado de loiro em cachos que imitavam molas e um
sorriso intelectual, fazia parecer ser quase impossível se interessar por alguém
como ele agora que mais uma vez as fotos da sua condição tinham vazado. Não
que as pessoas já não soubessem a razão pela qual tinha se confinado ao
isolamento dentro dos muros da sua mansão, mas ter o seu rosto espalhado pelas
redes sociais e nas notícias de todo mundo, tinha sido doloroso como nunca
pensou, afinal tentou se livrar dos holofotes por muito tempo. Sua última
assistente particular o traiu vendendo a própria dignidade em troca de milhares.
Milhares que ele poderia dar.
— Quando vai a um restaurante, pergunta ao camarão se gosta de você
ou simplesmente o come? — Beauchamp indagou, o tom amargo era patente em
cada palavra. — Não procuro amor, Dash. Quero uma companheira, uma mãe
para um possível filho e se alguém está disposto a isso em troca de dinheiro, eu
realmente não me importo.
O amigo balançou a cabeça.
— Sabe o trabalho que tive para comprar todas as imagens e proibir o
uso em qualquer lugar? — Bufou. — Bom, se ela já viu o pior e mesmo assim se
dignou a vir, não terá uma surpresa como todas as outras. — Engoliu em seco
com a situação. Não era a primeira e mesmo assim nunca se habituava. Não
conseguia convencer o amigo de estar a oferecer muito mais para o que poderia
ter.
— Ela nunca verá o meu rosto de perto.
— Que sortuda! — Chris pigarreou e se afastou da mesa, pisando com
força até se aproximar da porta. — Vou fazer as honras, afinal recebo um salário
tão gordo por ser administrador que sou obrigado a fazer serviços extras de
psicólogo, intermediário, amigo pessoal e escrever um livro de técnicas especiais
para lidar com um feio mal-humorado.
Christian era o mais baixo e dois anos mais novo que Damien. Tinha um
cabelo muito preto, desalinhado e uns olhos verdes divertidos. Nunca mais se
afastou do amigo, nem quando este o tinha exigido que assim o fizesse. Emma
viu uma das portas da sala abrir, estivera tão absorta em seus pensamentos que
quase esqueceu a razão de estar ali. Se levantou num salto, o rosto singelo
poderia ser comparado a uma flor de primavera, e ele não deixou de pensar que
em breve murcharia.
— Prazer, sou Christian Dash. Falamos por telefone e pelo correio
eletrónico. — Deu dois beijos no rosto da jovem a fim de deixá-la mais
sossegada. Nunca fora adepto de nenhuma formalidade. — Espero que tenha
lido e compreendido cada termo, ainda assim traremos o nosso advogado,
Conrad Miller, e ele a poderá explicar algo caso tenha alguma dúvida.
— Eu compreendi tudo, senhor Dash. Estudei advocacia.
— Ah... certo! Por favor, apenas Chris. Senhor está no céu.
— Se me tratar só por Emma. — Sorriu em agradecimento por deixá-la
mais à vontade. Os olhos não paravam quietos, observavam cada canto da sala
daquela enorme mansão. Estava claro que a decoração tinha sido feita por uma
mulher de afinado bom gosto, provavelmente a matriarca dos Beauchamp, mas
algo chamou sua atenção no meio dos vasos chineses e das tapeçarias turcas, a
Matrioska – bonecas russas que formavam fileiras em prateleiras.
Ele se aproximou mais perto da jovem bonita, mordendo os lábios pela
pergunta que viria a seguir. Era sempre aquela parte em que julgavam mais fácil,
pois sequer imaginavam a pessoa difícil com quem teriam de lidar. Desceu as
mãos para os bolsos e levantou os ombros para o alto.
— Viu as fotos?
— Vi.
Christian engoliu em seco e confirmou com a cabeça, o ar de malandro
não combinava com o sério ao qual tentava transmitir naquele momento. Como
explicar para ela o facto de não ser apenas a aparência exterior o mau?
— Damien é um homem um pouco difícil. Talvez muito. Muito mesmo.
— Pigarreou. — Acredito que com o tempo possa ser mais agradável. — Não
iria se estender mais. Não era pago para fazer aquilo e nem que fosse! Era contra
os casamentos por contrato que o amigo insistia em fazer como se fosse a mesma
praticidade para comer um camarão. Suspirou.
— Eu percebo... Chris. Sei que devo viver aqui até vermos se nós nos
adaptamos um ao outro e para nos conhecermos melhor. Estou ciente de ter de
lidar com alguém habituado a solidão. — Não ia mencionar a palavra desprezo e
muito menos deformação. — Estou aqui para tentar.
— Certo. Certo. — Achava que ia gostar de Emma, quantos anos teria?
Vinte e seis? Parecia estar bem decidida, pois em nenhum momento pestanejou.
— Tome a liberdade de contratar uma Assistente Pessoal que faça de tudo um
pouco. O senhor Beauchamp não gosta da casa cheia e também não a quer
atarefada com certos afazeres.
A porta abriu-se de forma impaciente e Damien se apresentou com a
máscara a cobrir metade do rosto. Não suportava o olhar de pena e horror
quando viam pela primeira vez sua parte deformada. Não queria passar por
aquilo novamente, não diante de tamanha beldade angelical. A parte boa do rosto
era saudável, mostrava olhos azuis intensos e o cabelo loiro bem cortado.
— Damien. — Emma se levantou com delicadeza, o sorriso ensaiado
bem estampado no seu rosto. Não tinha ido até ali para falhar, não quando o
futuro promissor se apresentava em suas mãos. Pretendia em breve afirmar que a
pobreza seria um passado distante.
— Senhor Beauchamp. — Repetiram os dois homens, Chris estava ciente
da formalidade exigida pelo dono da casa e se sentiu mal por ver o rosto pálido
da jovem corar.
— Perdão, senhor Beauchamp. Sou a Emma Charlton. — Estendeu a
pequena mão para o cumprimentar, e Damien demorou a receber o aperto de
mão feminino, analisando se a jovem era tal como nas fotografias. Encontrou os
olhos dela com atenção, procurando algum rastro de algo errado. Não encontrou.
— O senhor Dash lhe falou de convivermos para ver se nos ajustamos,
mas antes terá três semanas para me convencer de que vale a pena e não é apenas
um corpo. Se passar esse período, então veremos se o contrato valerá a pena. —
O modo como falava era calmo, sem se dignar a mover muito os lábios
mostrando toda sua superioridade. Viu a possível noiva engolir em seco.
Damien se colocava a si mesmo como um troféu! “Qualquer homem rico
seria belo”, lhe disse o pai certa vez após o acidente. Muitas iguais àquela
teriam aparecido na sua porta atrás de fortuna e nenhuma teria aguentado o
suficiente para se manter ali.
— São proibidos objetos eletrónicos diante de minha presença, a qual
também não terá muito para desfrutar. Pode andar pela mansão como quiser, mas
não entrará no meu quarto. Os momentos íntimos serão feitos no seu. —
Começou por enumerar. — Não fale alto demais, não suporto. Música só ao
volume mínimo, nada de festas e amigas por aqui. Precisa se vestir bem, estar
sempre impecável e adornada de joias. A assistente de comunicação e imagem
entrará em contato. Evite estar atarefada, não a quero cansada. Contrate alguém a
sua escolha para fazer tudo por você. — Falou de uma só vez. — Da minha parte
é tudo... por ora. — Concluiu. A voz sem emoção nenhuma e o ar sério.
Emma olhou para o jovem Dash em busca de auxílio, começando
finalmente a perceber por que aquele homem era chamado de Monstro. Viu seu
possível futuro marido se afastar e desaparecer pela mesma porta de onde viera,
sem nenhum calor ou palavras de conforto.
— Deixe-me apresentar a casa. Estamos sem governanta, o meu amigo a
espantou, obviamente. — Se era para ajudar a melhorar o clima, Chris apenas
piorou, pois as sobrancelhas dela subiram para o alto. — Fale mais de si.
— Bom, eu tenho uma irmã e um sobrinho. Vivemos no Broom e... —
Enquanto seguia em passadas calmas e sincronizadas, Damien estava do outro
lado a ouvir tudo com atenção. Pensava que, talvez, sua vida fosse finalmente
mudar.
E estava certo.
Só não era da forma que imaginava!
[…]
Por vezes, Darcelle tinha saudades de quando era adolescente e vivia
com os seus pais sem nenhuma preocupação, senão estudar e ser feliz. Pensava
com nostalgia como a ida para Belmore a tinha feito perceber que sua vivência
era bastante limitada, e ver os meninos de quem cuidou por tanto tempo como
babá, irem embora para um colégio interno, a tinha feito ficar quase sem
propósito.
O que faria agora?
Não podia ficar sem emprego, porque sua prima estudava medicina e
tinha muitas despesas com a faculdade, principalmente quando era Jamie que
possuía tantos sonhos, tanta determinação e sabia exatamente o que queria de
seu futuro. Diferente dela que se encontrava um quanto perdida, mas jamais
desistia, não fosse isso ou não estaria agora no meio do Jornal Tempo varrendo o
chão e servindo cafés só para não ficar sem fazer nada.
Os Wright tinham sentido pena da babá e para não deixá-la sem emprego,
se dispuseram a inventar alguma coisa que pudesse fazer na sede do maior jornal
do país. Tinham tido certos problemas depois que as imagens do Monstro Du
Camp teriam sido espalhadas e enfrentavam processos que estavam custando
caro aos cofres da empresa. Darcelle sabia que como alguns, iria ser cortada da
equipe de trabalhadores, e se martirizava por sequer ter visto as fotografias da
antiga lenda do Turfe.
— Senhorita Johnson venha comigo. — Lorenzo não só era um jovem
bonito de cabelos escuros e olhos pretos, como também era primogénito do dono
do jornal e namorado de sua prima há dois anos.
Mas Darcelle não gostava dele.
— Sim senhor. — Acatou se levantando com rapidez e o seguiu pelos
corredores agitados onde vários telefones tocavam, editores falavam aos gritos e
digitavam rápido nos seus computadores. Era um local que ela não conseguia se
encaixar de modo algum.
— Por favor, sente-se. — Entraram na sala do Editor Chefe, posição que
ocupava sem ter ainda a competência certa para o lugar. E a mesa desarrumada
era uma consequência disso, pois só se via luvas de futebol e revistas de
Quadrinhos. — Sabe que está aqui porque sua prima implorou, não sabe?
— Como esquecer se faz questão de me lembrar disso todos os dias? —
Ela levantou a sobrancelha, não sabia ficar calada quanto tinha algo a dizer. —
Imagino também que vai me despedir.
— E vou. — Lorenzo continuou em pé porque ela não se sentou. O
olhava com aqueles olhos acusadores de sempre. — Mas não a posso prejudicar,
porque isso afectaria Jamie.
— E se importa? — Darcelle voltou a questionar. — Até onde eu me
recordo, faz algum tempo que não liga para ela.
— Darci... — Passou a mão pelos cabelos, impaciente. — Sabe bem
como as coisas andam complicadas por aqui. Meu pai está em cima de mim e
você também o conhece bem, sabe como era exigente em relação a seus
cuidados com meus irmãos.
— É por isso que sente vergonha de assumir a Jamie.
Lorenzo estreitou os olhos e endireitou as costas. Nunca tinha se dado
bem com aquela jovem a sua frente que não mordia a língua quando pretendia
dizer alguma coisa. Se inclinou para abrir uma gaveta cheia de pacotes de doces
e procurou um cartão lá de dentro.
— Emma Charlton está procurando uma assistente particular. Ela é
minha conhecida. Apenas diga que vem da parte de William Solis e o emprego é
seu. Ele me está fazendo um favor.
Darcelle recebeu o cartão em sua mão, um pouco encardido, e levantou
os olhos. Conhecia William, era um jornalista muito melhor que ele.
— Obrigada.
— Boa sorte.
Ela assentiu com a cabeça e deixou a sala em passos lentos se
perguntando se estaria a altura de fazer aquele trabalho, mas também não tinha
medo de arriscar e por isso foi até aos armários do banheiro dos empregados
para buscar sua grande bolsa e tirar de lá o telefone antigo.
Teve que telefonar três vezes até uma voz simpática atender.
— Charlton!
— Bom dia, senhorita Charlton, aqui é Darcelle Johnson. O senhor Solis
teria me indicado para preencher uma vaga para assistente pessoal.
— Ah, que ótimo. Já perdi três nos últimos meses e o meu casamento é
para Maio. Quando pode vir?
— Quando a senhorita quiser?
— Então venha agora, por favor. Suba um táxi e será pago aqui na
Mansão Beauchamp.
Darcelle esbugalhou os olhos, sem acreditar na facilidade com que
nomes certos abriam portas. A mulher do outro lado da linha sequer tinha
hesitado só por causa de uma referência.
— Estou a caminho! — Um sorriso se atreveu a espreitar o rosto dela.
Despediu de alguns colegas e saiu a caminhar para fora dali sem olhar para trás.
Nunca tinha gostado daquele ambiente de competitividade acirrada onde uns
pisavam os outros apenas para estar por cima.
Não pertencia àquele lugar. Seu coração era paz, bondade, empatia e
altruísmo. Qualidades que a sua prima afirmava serem em demasia para um
mundo tão cruel como aquele.
Apanhou o táxi e mandou uma mensagem para avisar Jamie do novo
trabalho. Estava até um pouco empolgada e nem aquele inverno doloroso que
mesmo no início já amargava suas entranhas, serviu para tirar a alegria de seus
olhos, estes que duplicaram de tamanho ao avistar os portões da enorme mansão
de muros de pedra bastante altos como se de uma fortaleza se tratasse. Os
enormes pinheiros corriam ao seu lado e a fonte de mármore a jorrar água em
frente da porta principal, agraciou seus olhos.
Um jovem magro e alto, veio pagar o táxi e abriu a porta para ela sair.
Tinha cabelos curtos e uma barba a preencher o rosto. Usava um terno e camisa
branca.
— Prrazer, sou o Étienne. — O sotaque francês era marcante. — Antes
erra motorrista e agorra estou fazendo trrabalho de morrdomo também. —
Reclamou enquanto a conduzia escadas acima para dentro da casa tão fria quanto
o lado de fora. Darcelle estava tão curiosa que se decepcionou por apenas
encontrar luxo e nada de um conforto caseiro.
— Prazer, Étienne. Sou a Darcelle — respondeu e apertou o casaco na
parte frontal. — Meu nome também é francês.
— Perrcebi. — A conduziu até uma porta e bateu a porta antes de abrir e
deixar Darcelle entrar.
— Obrigada, Étienne. Pode ir. — Emma se levantou, abriu os braços para
receber a nova funcionária e lhe deu dois beijos no rosto. Ignorando o motorista
que saiu da sala e fechou a porta ainda a resmungar. — Por favor, sente-se.
A Johnson não podia esconder a admiração pela recepção calorosa e se
aconchegou num sofá ao lado da loira. Pelo menos aquela sala era aconchegante,
a lareira estava acesa e tinha um conjunto de porcelana com um bule com chá.
Ela adorava chá.
— Então, estou desesperada por uma nova assistente. Faz três meses que
estou nessa casa e contratei três que se foram embora. Meu futuro marido não
quer que eu faça nada e preciso de alguém para arrumar minhas roupas, cuidar
da minha agenda e me acompanhar para certos lugares. Entre mais coisas. —
Fez uma pausa para servir uma xícara da bebida quente e entregou para Darcelle.
— De verdade?
— Eu assinei um contrato. — Emma baixou ligeiramente os olhos. — Às
vezes a vida nos leva a certas coisas, não me julgue. — Ele é uma pessoa muito
difícil, não sei como consegui suportar até aqui. — Soltou um suspiro. — Mas
você terá muitos benefícios: o triplo do salário mínimo, seguro de vida, subsídios
de transporte e alimentação, e assistência médica. Tudo pago por nós. Irá viajar
comigo também.
— Parece bom demais para ser verdade.
— É necessário por conta de algumas agruras que irá passar. — Um
sorriso triste trespassou os lábios pintados de um batom discreto. — Vou precisar
de muita ajuda para o casamento e de uma amiga também. Passo muito tempo
aqui sozinha.
— Farei o meu melhor. Prometo, senhorita Charlton.
— Emma entre nós. Na frente dele use o senhorita. — Olhou para
Johnson com atenção. Não era uma jovem bonita de todo, mas inspirava
confiança. E se tinha sido recomendada por William, então não restavam
dúvidas. Pensar nele a fez corar ligeiramente. — Duvido que se cruzem muito, é
só evitar a ala oeste da mansão. E tem um porém, deverá dormir aqui e só ir para
casa uma vez por semana.
Darcelle mordeu o lábio. Não tinha muito que reclamar, porque Jamie
passava a maior parte na residência do hospital central ou quando estava em casa
ficava com a cabeça enfiada nos livros. Ainda assim, gostava muito do seu
pequeno quarto e do calor da sua casa.
— Posso fazer um telefonema antes para a minha prima?
— Claro. Fique à vontade.
— Obrigada. Com licença. — Ela se levantou e procurou o celular na
bolsa. Preferiu deixar a sala para ter a sua privacidade e caminhou o suficiente
para ter a certeza de que não estava a ser ouvida. A prima não atendeu. Podia
estar a participar de alguma aula, e então deixou uma mensagem para que lhe
ligasse de volta logo que pudesse.
Damien passava a maior parte do tempo no escritório, o qual mais se
parecia a uma biblioteca gigante, tinha até escadas para um primeiro andar. Dali,
com o seu computador de última geração, conseguia controlar todo o seu
negócio de criação de Cavalos de raças puras. Uma herança de família a qual
conseguia expandir com sua astúcia e determinação. Incluindo todos os mil e
quinhentos cavalos pertencentes a família Real eram de criação Beauchamp.
Fechou o cenho ao ouvir uma voz desconhecida ressoar do lado de fora,
se sentindo incomodado. Emma sabia que não devia se aproximar dali quando
estava a trabalhar e a comandar os escritórios, fazendas e mais infindáveis
funcionários. Levantou-se num salto, abrindo a porta e se deparando com uma
completa estranha. Era negra como a noite e estava curvada junto a um dos
cantos da parede a falar ao telefone.
— O que vêm a ser isto? — Inquiriu. — Emma? EMMA! — Chamou.
A jovem deu um grito e se assustou, escondendo o telefone no bolso do
seu casaco e virou-se para encarar o homem com máscara no rosto. Tinha ouvido
falar muito dele, porém nunca imaginou avistar o Monstro Du Camp tão de
repente.
— Desculpe, eu sou a Darcelle. A senhorita Charlton... — Não
completou, pois a cara de desprezo era cortante. — Eu não sabia que esta era a
ala oeste. Fui contratada agora e...
— Então está despedida! — Damien deu meia volta ainda a murmurar.
Sequer sabia como uma pessoa podia ter todo aquele cabelo virado para o ar. —
Também não percebo o que uma pessoa como você está fazendo aqui.
Darcelle arqueou o sobrolho escuro e bem delineado e sem se dar conta
caminhou atrás de Beauchamp.
— Como eu? Desculpe, mas não percebi o que quis dizer com isso.
O homem se virou de rompante e os dois quase se chocaram. Johnson
recuou ainda desconfortável, abriu a boca para falar.
— Pode me levar a mal, mas nunca tive pessoas como você a trabalhar
dentro de minha casa.
— Eu também nunca trabalhei para uma pessoa como você.
Ao ouvir a resposta, ele se estacou. Sabia que as pessoas falavam por trás
sobre a sua aparência, sobre a máscara e tudo mais. Mas na sua presença todos
tentavam ser os mais delicados possíveis, escolhendo as palavras e os momentos
certos. Era a primeira vez que algum desconhecido se referia ao seu aspecto tão
diretamente.
Damien pigarreou.
— Eu não escolhi ser assim. — Pela primeira vez estava tenso.
— Pois, nem eu!
Revolta de Emma, A

"A Beleza começa no momento em que você decide ser você mesmo."

— N EM acredito que estou sobrevivendo! O senhor Beauchamp é


bastante insuportável. — Emma não mencionou para a irmã o dia em que teve
que se deitar com ele pela primeira vez. Os toques sem sentimentos a deixaram
mal disposta, pois não havia paixão ou alguma química. Sequer ele pareceu tão
empolgado, não fossem as necessidades físicas talvez nem a teria tocado. Tinha
sido uma noite longa demais, mesmo não podendo negar que era um bom
amante, todo o resto pareceu tão duvidoso. Por sorte jamais tinha removido a
maldita máscara ou então teria sido o cúmulo de tudo aquilo.
— Você está linda, isso é o que importa. Olha só esse vestido
maravilhoso! — Joanne Charlton era a mais velha, solteira e tinha um filho
pequeno. E a menos bonita também, sua pele pálida e seu nariz alongado se
destacavam em seu semblante amargo. — O casamento é daqui a poucos meses,
não pense mais em inutilidades.
— Maio, ele escolheu Maio. — Emma rodopiou diante do espelho e
sentiu dor ao apreciar o belo vestido branco de seda cheio de brilhantes e renda.
Não era com Damien que desejava se casar.
— Precisa de o conquistar, tê-lo em suas mãos. Se continuar se
comportando desse jeito, não valerá de nada.
— Eu sei, só que quando não se gosta de alguém, tudo parece ainda mais
complicado.
— É por um bem maior, não se esqueça! Estamos juntas nisso... E se eu
estivesse no padrão requerido, teria ido lá em seu lugar. — A mais velha lhe deu
um beijo no rosto e as duas se abraçaram.
Eram muito diferentes, Joanne tinha cabelos castanhos e olhos escuros.
Costumavam perguntar para os pais como é que tinham feito uma cria tão bela e
a outra tão sem graça, pois como sempre, a beleza era o que a maioria das
pessoas tinha mais em conta.
— O sexo com ele é gélido, tal como um iceberg a entrar na minha... —
Não completou, pois ouviram o barulho das escadas. O coração de Emma
palpitou. — É o William?
A resposta não demorou a chegar assim que o jornalista entrou e abraçou
a sua amante. Estavam na casa de Joanne, longe dos olhos azuis infelizes de
Damien. Aquele era o único momento que os dois tinham para estar juntos.
— Você está incrível! Mal posso esperar para quando se separar daquele
Monstro e poder subir no altar com outro vestido enquanto sorri para mim. —
Solis era um jovem cuja carreira ascendia no Jornal Tempo. Alto, de cabelos
escuros e olhos rasgados.
— Que horror. Emma ainda nem se casou com o senhor Beauchamp e
vocês já estão nos anos do divórcio. — Queixou Joanne que pareceu
incomodada pela presença do namorado da irmã. Virou o rosto para apreciar as
várias caixas em cima da cama. — Foi você que indicou a moça negra para
trabalhar na mansão? Seria a quarta em poucos meses.
— Sim. É uma jovem simples demais, sem beleza alguma. Trabalhava
com os filhos do meu patrão, mas agora eles foram para um internato e então ela
estava fazendo horas extras limpando no Jornal. Sabe como são esses negrinhos,
aposto que fará de tudo para segurar o trabalho. Suportam qualquer coisa para
alimentar a família gigante. — William ironizou e enlaçou os braços na cintura
da amante antes de a beijar ali mesmo, ignorando a presença da irmã mais velha.
Emma se mostrou preocupada e apertou os lábios antes de se afastar do
abraço do seu amado. Baixou os olhos sem coragem de falar o que pretendia e
suspirou fundo antes de abrir a boca.
— Damien a despediu no mesmo dia que chegou para a entrevista. E eu
até tinha gostado tanto dela — revelou sem esconder o mau estar só de se
lembrar da cara do noivo após ser confrontado por Darcelle. Nunca o tinha visto
tão zangado e sentia arrepios lamberem sua espinha só de imaginar aquele
cenário. — Foi uma situação desconfortante.
Emma percebeu a fúria no rosto de William que a encarou quase sem
pestanejar. O viu se afastar para a varanda do quarto e acender um cigarro
enquanto via o filho de Joanne brincar lá em baixo no jardim.
— Lamento — pediu. Sabia que nenhum homem iria aceitar vê-la se
casar com outro, mas que mesmo assim, ele entendeu todos os motivos. E agora
que lhe tinha pedido só um favor, ela não conseguira cumprir.
— Tem noção do que me diz? A Darcelle é prima da amiga do editor
chefe. Penso que tem um caso, mas Lorenzo não admite. E vai ficar
decepcionado comigo e você bem sabe que preciso de uma promoção no jornal
Tempo. — Tragou o cigarro com força, não escondendo a irritação. — Resolve
isso, Emma. Pelo amor de Deus.
— Não é como se tivesse fé suficiente para isso. A moça afrontou
Damien! Ninguém o afronta — justificou a vê-lo deitar a cinza para um grande
cinzeiro junto a um vaso de barro. Viu William se afastar chateado e sair da
varanda, indo embora em passos furiosos.
Um truque baixo para a desestabilizar!
— Não sei por que insiste em ficar com esse homem medíocre. —
Joanne meneou a cabeça quando a irmã retornou ao quarto chorosa após o
amante ter saído e batido com a porta.
— Me ajude apenas a tirar o vestido.
— O que você vai fazer?
A Charlton mais nova não respondeu, apenas se desfez da roupa que
usaria no dia mais infeliz da sua vida, colocou um dos vestidos polidos e saiu
dali até ao carro onde Étienne a esperava a escutar Hip-Hop.
— Está tudo bem senhorrita? — Perguntou a baixar o volume do som
que soava estridente e estranhou o rosto torcido da bela loira. Todos sabiam que
a noiva do patrão era dócil e sorridente, era raro vê-la daquele jeito.
— Vamos para a Mansão.
— Às suas ordens!
Ela trincava os lábios rosados enquanto especulava sob o súbito
comportamento de William, estava claro que era melhor amigo do editor chefe
do Jornal Tempo, e que queria uma promoção urgente e para isso precisava
escovar Lorenzo de todas as formas possível. Só não aceitava que tivesse
preferido ir embora sem estar com ela na única vez que podiam se encontrar
durante a semana. Tudo isso a deixava ainda mais frustrada do que o percurso
longo do Broom até ao centro da cidade cheias de ruas agitadas que a levaram
até a afastada Mansão Beauchamp.
Emma sentia um arrepio só de passar as grandes portas e atravessar os
corredores sem vida repletos de obras luxuosas e decorações pomposas que de
nada serviam se não havia felicidade. Respirou fundo antes de bater na porta de
Damien, este que trabalhava no seu escritório na ala oeste.
— Entre! — Bramiu. Só o tom seco foi o suficiente para mostrar como
era vazio de afecto. — O que quer?
— Falar com você — respondeu e fechou a porta atrás de si,
demonstrando que não iria a lado nenhum. Uniu as mãos no colo e levantou o
queixo para mostrar firmeza mesmo que o coração batesse com tanta força que
poderia pular pelo peito a fora.
— Depois, estou ocupado agora. — Voltou a se concentrar no trabalho
que fazia no seu computador, ignorando-a, pelo menos até ouvir a voz exaltada
de sua noiva.
— O senhor Beauchamp passa todo dia trancado nesta sala, não sabe
como passo os meus dias e mesmo assim interfere quando encontro alguém
disposto a trabalhar comigo. Já perdi quatro assistentes no último trimestre. —
Foi a primeira vez que se ouviu alguma discussão naquela mansão.
— E?
— E a senhorita Johnson era a pessoa certa e qualificada para o trabalho
de me acompanhar. Dinâmica e inteligente, e confesso que gostei dela.
— E quem é essa? — O tom de voz dele era ainda mais incómodo.
Toldado de desprezo.
— A última que o senhor Beauchamp despediu. — Emma achava idiotice
toda aquela formalidade para um homem que mergulhava entre as suas pernas.
Não deixou de se considerar uma boneca de luxo.
— Têm melhores nas agências — garantiu Damien, de forma impaciente
e com uma mão pousada junto da mesa do escritório e a outra a massajar a
têmpora do lado livre da máscara. Se sentia ainda mais irritado por ser abordado
por algo que julgava irrelevante.
— Acredito que eu possa saber o que é o melhor para mim. A Darcelle e
eu nos entendemos. Não posso aguentar que tome sempre decisões que só o
satisfazem quando me ferem diretamente, não é possível que o senhor seja
sempre tão intolerante! — A jovem Charlton tinha o rosto vermelho como um
tomate, nunca antes se dirigira ao futuro marido daquela forma. Aliás, poucas
vezes se davam ao luxo de conversar.
Damien pela primeira vez se mostrou surpreso, talvez um pouco
encantado pelo atrevimento dela, pois nunca antes se tinha arriscado a desafiá-lo.
E, isso era algo interessante quando o conseguiam atingir.
— Se vou ser a senhora desta casa, é hora de poder tomar algumas
decisões. Quero Darcelle de volta. — Emma prosseguiu. — Quero a Darcelle de
volta!
— Devo criar uma hashtag? — Ele ironizou e baixou os olhos azuis para
a tela do seu computador. O maxilar estava retesado. — Fale com o senhor Dash
para resolver esse assunto. Agora vá!
— Obrigada. — Ela sorriu, mas não foi para ele, e sim porque estava
ansiosa por contar para William que tinha conseguido reverter aquela situação.
Primeiro Confronto, O

"A Beleza das pessoas está na capacidade de amar e encontrar no
próximo a continuidade do seu ser."

DARCELLE tinha pensado que o trabalho na mansão Beauchamp fosse


ser horrível, mas se enganou redondamente. Organizar a agenda de Emma era a
coisa mais simples, até porque não era muito exigente e pedia coisas fáceis de
encontrar. Só tinha um dia por semana em que ia sozinha para a casa da irmã e
longe dos olhos da assistente pessoal que ficava a cuidar de outros assuntos.
As duas conversavam bastante, principalmente sobre o casamento de
luxo que iria cobrir duas páginas da revista ELLA, cuja dona era uma crítica dos
famosos e estava sempre de olho a cada detalhe. Suas palavras eram lei e
ditavam o que era o bom gosto. Havia muita coisa a ser feita e Darci odiava
quando Joanne estava por perto. A irmã da noiva era tão arrogante e se
comportava como a dona de tudo.
A melhor parte, além de ter se cruzado muito pouco com Damien
naquelas últimas semanas, era o maravilhoso campo que ficava nos terrenos da
mansão junto de uma cavalariça onde ela costumava passar tempo de qualidade
com Étienne. Normalmente se encontravam na pausa da tarde e iam ver o grande
cavalo dourado e brilhante digno de um filme de princesas.
— Parrece que está se aguentando bem. Jurro que fiz aposta com os
outrros empregados. — O motorista estava sempre de língua afiada. Passava a
mão pelo cavalo Puro-Sangue Inglês e olhava sempre para cima para se certificar
que as nuvens gordas e cinzentas não iam começar a descarregar por cima de sua
cabeça.
— Eu trabalho somente com a senhorita Charlton e ela é um amor de
pessoa. — Darcelle se encostou na cerca e estendeu a mão para o animal. O
achava tão bonito e imaginou como seria montar em um e sair correndo pelo
campo.
— Eu não dirria isso.
— Como assim? — O cabelo crespo e volumoso estava na altura dos
ombros e os olhos escuros já tinham estudado Étienne antes. De início era
sempre aborrecido, mas depois se mostrou uma companhia agradável.
Principalmente quando todos os empregados iam embora e ela ficava sozinha
dentro da enorme mansão fria. Já tinha cansado de passear pelos inúmeros
cómodos muito bem decorados, mas que ninguém entrava lá para os aproveitar.
Se ao menos soubesse tocar um instrumento musical, a sala de música seria seu
passatempo predilecto.
A verdade é que ela não tinha nenhum talento. Não como Jamie que
possuía mãos de fada e tudo o que tocava virava ouro. Fosse papel ou alimento,
a prima conseguia aprimorar qualquer coisa. Dançava, cantava, cozinhava e
muito mais. Era como se tivessem tirado todos os talentos de uma para dar
exclusivamente a outra. E, por isso, Darcelle não tinha nenhum sonho intrínseco.
Apenas levava a vida antes que esta terminasse.
— Defina boa pessoa. — Ele exigiu. Tinha sobrancelhas tão grossas que
eram o destaque maior no rosto. Usava um chapéu curto e quadrado e um
uniforme azul e vermelho. Exigência da irmã mais velha da patroa. Até Darci
vestia uma bata branca.
— Alguém que não é perfeito, mas teme pelo próximo. Educado,
simpático sem ser falso, que não se acha superior a ninguém e faz o melhor pela
sua vida sem interferir na do outro.
— Crriança inteligente! — Exclamou e torceu os lábios. — Agorra me
explique se casar com um homem enquanto fica com o outrro, se isso também é
ser uma boa pessoa.
— Não diga isso! — Darcelle se doeu. — Tem provas?
— Não prreciso. — Étienne balançou os ombros e voltou a se concentrar
no cavalo. — Naqueles dias que sai sozinha e vai parra a casa da irrmã, então
um rapaz entra lá logo em seguida. Semprre!
Os olhos dela pareceram ficar tristes. Tinha uma ideia muito equivocada
sobre um relacionamento, acreditava que deveriam ser perfeitos e se possível
para toda a vida. Ou que pelos menos as pessoas deviam lutar por isso.
— Eu não suporto traições e isso me deixa triste, mas não é fácil gostar
do senhor Beauchamp... — Não estava a defender, mas não podia ser assim tão
imparcial. — Ele é frio, distante e grosso. Emma volta sempre triste da sala dele.
Por que não o deixa?
Étienne riu.
— Ingénua! — Se afastou a andar, pois tinha de preparar o carro uma vez
que nunca sabia quando iriam precisar e tinha que estar disponível a qualquer
momento. Darcelle se deixou ficar ali mais um tempo, pensativa, pois acreditava
que duas pessoas deveriam se casar por amor ou pelo menos para tentar se amar.
Olhou para cima onde ficava a torre oeste, não se espantou ao ver
Damien na janela olhando para o horizonte pardacento, pois era quase como um
ritual. Todos comentavam como ele nunca atravessava a porta e que aquela era a
única forma que se dignava a apreciar o mundo cá fora. Há quanto tempo não
montava um cavalo ou sentia o gramado em seus pés? Ela não podia deixar de
lamentar aquela forma de vida por mais que fosse um homem tão ruim, pois
todos mereciam um pouco de amor que fosse.
Percebeu quando os olhos frios encontraram os seus, e ele fechou as
cortinas de imediato, bloqueando qualquer contato possível mesmo que fosse à
distância. Johnson soltou um suspiro e fez o percurso de volta até a mansão onde
os empregados conversavam aos sussurros e estavam inclusive proibidos de rir.
— Aí está você. — Emma disse quando a viu entrar no grande quarto
cujo guarda-roupa ocupava a maior parede. — Que roupa acha que devo usar
para o evento de hoje de noite? O Chris virá me buscar às seis.
— O azul é bonito sem ser ousado diferente do branco que tem o busto
rendado e quase transparente. — Darcelle aconselhou. — É bom chamar a
atenção com classe e não por exposição. E ficará bem com um casaco, por conta
do frio.
— Sempre com uma boa resposta! — Emma pousou o vestido azul de
veludo por cima da cama redonda. — Escolha uns sapatos e as joias por mim,
preciso tomar um banho demorado. Vou ficar algumas horas na banheira.
— Emma? — A assistente sabia que não deveria se intrometer na vida
alheia, mas não conseguia deixar de questionar. — Convidou o senhor
Beauchamp para ir com você?
A risada que a loira deu foi até engraçada. Era como se acabasse de ouvir
algum absurdo.
— Acha mesmo que ele ia querer ir?
— Perguntou?
— Para quê? — Deu de ombros. — Já imaginou ele com aquela máscara
como se estivéssemos num baile? É um evento de caridade de luxo. Eu e o Chris
iremos representar o Damien.
— E como será no vosso casamento? Vai tirar a máscara?
— Eu nunca o vi sem máscara, pelo menos não de perto. Nas fotografias
era um pouco desagradável e sinceramente não quero que isso seja o centro das
atenções.
— Mas então o seu casamento nesse caso não irá parecer um baile de
máscaras?
A jovem Charlton a fitou e respirou pesadamente, ficando sem palavras.
— Gosta dele? — Darcelle perguntou. As duas já tinham passado noites
a conversar sobre livros, filmes e sobre o amor verdadeiro. Emma sempre se
mostrava emocionada e muito passional.
— É complicado. — Foi breve.
— Mas podia gostar e quem sabe torná-lo numa pessoa que podia querer
melhorar por causa de um amor — sugeriu sem ser invasiva e a encarou com
atenção, vendo nos bonitos olhos um brilho daquilo que talvez pudesse ser o
amor, mas não dirigido ao Monstro Du Camp.
— Vou tomar o meu banho. Tire uma folga esta noite e volte pela manhã,
sim?
— Está bem.
Quando ficou sozinha no quarto, tratou de arrumar tudo o que era preciso
e rever a agenda do dia seguinte. Não podia esconder que estava ansiosa por ir
para casa e ver sua prima, queria saber o que tinha aprontado naqueles dias que
não se encontraram. Emma regressou uma hora depois, a profissionais em
maquilhagem e penteado já tinham chegado para a aprontar, e ela não parou de
falar um segundo sobre suas expectativas para a Gala Beneficente.
No princípio da noite, Christian Dash a veio buscar, Emma estava
deslumbrante quando se despediu da assistente e saiu do quarto. Darcelle
guardou algumas coisas no lugar, não gostava de desarrumações. Não deixou de
reparar em como a loira sequer se foi se despedir do noivo, mas preferiu não
pensar naquilo e se limitou a descer até ao térreo onde ficava o seu quarto e
colocou a bolsa de pano por cima do ombro, pronta para ir embora.
[...]
Damien se encostou à janela observando a limusina se afastar para lá dos
portões da mansão. Christian e Emma iam a uma gala beneficente da mais alta
sociedade para representar os Beauchamp. Não deixava de pensar como seria se
seu pai estivesse vivo, talvez ficasse decepcionado pela covardia dele em se
esconder, tal como a mãe que voltara para França fazia tempo, sem se dignar a
conversar com o filho a não ser o necessário e isso incluía um cheque gordo
mensalmente além da parte a qual recebera da herança. Sabia também que seu
melhor amigo detestava aquele tipo de eventos e estava irritado por ter se
transformado no seu rosto e não fazer outra coisa senão representá-lo em quase
tudo.
A noite não era das melhores, o céu estava nublado e os raios que o
iluminavam traziam a mensagem da chuva. O solitário andou até ao enorme bar
da sala de estar e se serviu de uma dose de uísque, voltando para perto da janela.
Sair para a vida social era um tabu para si, mas por dentro sabia que mesmo
rodeado por Emma e Chris, ainda continuava só. A noiva não o amava de todo e
fingir que não se importava era bem melhor do que se dar ao luxo de poder
sofrer por alguém. Já tinha sido difícil superar Bianca uma vez e não precisava
de outro amor.
Viu-a ir toda feliz e maravilhosa em seu vestido caro, sequer o insistira
para que os acompanhasse, mostrando que estava claramente satisfeita por levar
o jovem Dash em seu lugar. Damien passou a mão pelo rosto livre, só se desfazia
da máscara quando estava completamente sozinho, andar com ela lá fora era
bastante desconfortável pelos olhares mistos de curiosidade ou desprezo.
— O senhor alguma vez já experimentou sair?
Ele saltou ao ouvir a voz da assistente e se afligiu por não estar a usar a
máscara, por isso encobriu mais o rosto entre as longas cortinas vermelhas, sem
se virar. O que aquela atrevida ainda estava ali a fazer àquela hora? Já não
deveria ter partido? Pois deixou claro para Emma horas antes que queria a
mansão vazia.
— Isso não é da sua conta. — Foi duro, afinal como ousava questioná-lo
quando tinha ordens diretas para não se dirigir à sua pessoa? Ao que parecia não
tinha aprendido nada na vez que a mandou embora. Darcelle já trabalhava na
mansão a algumas semanas desde que voltou, seu trabalho corria melhor do que
o esperado, cuidava de coisas pessoais da noiva e tratava daquilo que lhe era
pedido. E nesse tempo, não mais se atrevera a abrir a boca na sua presença, até
agora, naquela noite fria.
— Já pensou que o estranho é aquilo que nós não estamos habituados a
ver? Se parasse de se esconder, todos já estariam familiarizados com o seu rosto.
— Às vezes a boca era mais rápida que a razão. Várias vezes foi alertada para
evitar qualquer confronto com ele, mas ao passar da sala para ir para casa e vê-lo
ali sozinho, a vontade lhe concedeu outra coisa.
— Não tenho conversas com estranhos e muito menos com os
empregados. — Bebeu o gole no escuro, o ardor da bebida lhe queimava a
garganta. Para receber dinheiro da sua empresa não se incomodavam, mas para
passar um convite em seu nome, se transformava no Monstro Du Camp.
— Desculpe a intromissão, senhor Beauchamp. Só pensei que...
— Não é paga para pensar coisas a meu respeito — interrompeu sem
hesitar, a mão apertava o copo de uísque com força. Quem aquela jovem pensava
que era? Damien tinha visitado os melhores cirurgiões e psicólogos, já tinha
escutado toda a ladainha possível naqueles dez anos. Isolar-se foi a melhor
solução, pois poupava a si e aos outros. — A língua estirada deve ser problema
de família, bem que Chris me avisou — murmurou.
— Como?
— Nada. Pode ir!
Darcelle ia dar um passo para se ir embora, contudo, a figura triste de
Damien junto a janela a olhar para o nada e a beber, apertou-lhe o coração.
Quando a mãe de Jamie começara a abusar de substâncias duvidosas, muitas
vezes tinha visto o tio naquela situação. Um ser vivo com a alma morta.
— Quer que lhe faça algo antes? Uma sanduíche ou coloco uma música?
Damien não respondeu, manteve-se quieto mostrando que a pretendia
ignorar e agradeceu quando ouviu os passos da assistente se afastarem para
longe da sala de estar. Terminou o seu copo observando as primeiras gotas de
chuva baterem na janela, mal se lembrava do que era frequentar uma festa. Tinha
aguentado até ali, talvez quando casasse e tivesse herdeiros então pudesse
dedicar seu sentimento para as crianças. Esvaziou o copo minutos depois e
voltou para o bar para o reabastecer, quando de repente a luz da sala de estar foi
acesa.
Darcelle trazia uma bolsa de pano pendurada no ombro esquerdo e na
mão um prato de sanduíche de queijo e tomate, pois sabia que ele sempre pedia a
cozinheira para preparar e que parecia gostar muito. O coração bateu com força
ao encontrar o Monstro Du Camp a encará-la sem máscara, o lado direito
completamente obstruído por cicatrizes. Houve um silêncio ensurdecedor na sala
onde apenas se ouviu o barulho do trovão e logo a seguir o som da chuva a cair
forte.
Uma vez, Jamie vasculhou na internet as fotografias do famoso patrão da
prima, tendo encontrado apenas as antigas, um jovem belo e com tudo para ser o
que quisesse. As outras que revelavam o rosto atual tinham sido compradas na
totalidade e proibidas de circulação na mídia. A curiosidade das Johnson era
grande, mas agora a assistente talvez preferisse nunca ter visto.
— Ainda acha que devo ir para a festa? — Era suposto Damien gritar e
mandá-la embora no segundo a seguir, irritado pela teimosia e intromissão, mas
o choque e a vergonha o tinham feito se proteger de outra forma. Ainda se
lembrava de como Emma não suportava nem a ideia de vê-lo daquele jeito. — É
fácil dar lições moralistas e discursos encorajadores. Olhe bem para mim, as
pessoas torcem o rosto quando encontram a verdade por trás da máscara. Para
onde vou sair se os convites pararam de chegar?
Darcelle ainda se encontrava calada, o coração palpitava como nunca e a
mão com o prato estremeceu. Tudo naquele homem parecia certo e perfeito no
exterior, porém aquela parte do rosto era aterradora. Ainda assim, em nenhum
momento baixou os olhos.
Ele riu ironicamente, a respiração acelerada por ter estado exposto diante
de uma estranha. Não gostava de se sentir naquela situação, mas não havia volta
a dar e o sarcasmo se tornou sua melhor arma de defesa.
— O que vai dizer agora? Ah! Deixe adivinhar: Que sente muito —
declarou num tom cheio de aspereza e zombaria. — Eu não quero a sua pena.
— Mas eu não sinto muito e nem tenho pena do senhor Beauchamp. —
Finalmente colocou o prato sobre a mesa de centro entre os sofás e ganhou
coragem para caminhar até junto da janela, onde agora se encontrava Damien a
apreciar a chuva. — Acho que a sua cara coincide com a sua alma.
Pela primeira vez, Beauchamp encarou melhor o rosto de Darcelle: Viu
como era fino, com lábios bem desenhados e um nariz médio, o cabelo crespo
volumoso ia até aos ombros e não tinha nenhuma maquilhagem além de um
batom discreto. Não era bonita como Emma, mas tinha feições marcantes.
— Quando a pessoa é má, por muito bonita que seja, se torna
desagradável a presença. E quando é feia, se for muito boa, passamos a apreciá-
la. O senhor se escondeu por trás da sua máscara temendo a pena das pessoas e
fechando os muros para não sofrer. — Darci deixou os pensamentos fluírem em
forma de palavras.
Ele tinha o rosto novamente escondido entre as cortinas, deixando a parte
boa do lado da assistente. Levou o copo a boca estalando a língua ao ingerir o
líquido.
— Pensa que eu não tentei de tudo?
— Penso que sempre foi arrogante e que passou a odiar a si mesmo,
deixando de aceitar conviver com os outros e a sua nova condição. Por essa
razão os convites pararam de chegar e as pessoas se afastaram. Deve ter estado
tão concentrado na sua própria dor que não terá enxergado a dos outros. —
Estava a falar demais, sabia disso, mas sentia necessidade de lhe dizer o que
pensava. Em tão pouco tempo conseguira observar a relação dos noivos e lhe
parecia tão fria e sem vida. Beauchamp era tão sério e pouco amoroso, muitas
vezes ríspido com a futura noiva, o que levantava a questão sobre a razão de
mesmo assim, Emma parecer sempre tão feliz. Talvez Étienne tivesse razão.
— E qual seria o seu conselho, senhorita Johnson? — O sarcasmo estava
carregado na voz e os olhos azuis não a encaravam de todo.
Foi uma questão no mínimo estranha, pois até há bem pouco tempo não
parecia se importar com o que tinha para dizer. Darcelle tossicou.
— Que tente ser feliz, senhor Beauchamp. Saia para o seu jardim, vá até
a sua empresa, chame os seus amigos, leve a senhorita Charlton para sair. Deixe
que se habituem a vê-lo para além da máscara.
Damien riu de desgosto quando se lembrou das crianças que gritaram ao
vê-lo certa vez no centro comercial e de quando foi convidado a se retirar de um
restaurante Gourmet por causa dos outros clientes. Tinha tentado se habituar no
passado, e isso estava fora de questão no presente.
— Sempre vai ter quem não goste. — Ela pareceu ler seus pensamentos.
Deu de ombros com todo o descaso. — Não é preciso ser bonito ou feio para
isso acontecer, basta estar vivo. Então para que se privar?
Não esperou se despedir para se afastar de perto do patrão, apagando a
luz no percurso. Nunca pensou ganhar coragem para falar todas aquelas coisas,
mas se sentia melhor agora que tinha dito o que pensava.
— Agora vai me ensinar como viver?
— Não. — Ela respondeu. — Porque a vida é só uma, mas posso tentar
mostrar como pode aproveitá-la melhor.
— Senhorita Johnson.
Darcelle prendeu a respiração quando parou na porta.
— Senhor Beauchamp?
— Peça ao Étienne que a leve para casa.
— Obrigada!
Tentativa de Mudança, A

"Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba."

DARCELLE tinha passado a noite de folga sozinha na sua casa antes de


regressar para a mansão, por mais que apreciasse o conforto de estar na sua cama
e poder circular a vontade pelo espaço pequeno, também sentia falta de Jamie
que não apareceu. O curso de medicina realmente ocupava muito tempo, mas
não podia deixar de querer vê-la e conversar, afinal tinha sido sua única amiga
até então.
No entanto, apesar da desconfiança que tinha por Emma em relação ao
Monstro Beauchamp, não podia negar que entre as duas havia o princípio do que
podia se revelar um prelúdio de uma amizade. Ela não agia como sua patroa de
todo, pelo contrário, as duas se demoravam em conversas interessantes e
debatiam sem se exaltar.
— Você é muito sonhadora. — Charlton disse a passar o último retoque
de batom nos lábios finos. Aquela afirmação chegava até a ser um quanto
contraditória, pois era ela quem estava com os olhos longínquos para lá do
planeta terra. Volta e meia murmura canções e sorria ao espelho.
— E por que não ser? — Darci tinha acabado de ler toda a agenda para o
dia seguinte, pois aquele era o dia que a loira saía sozinha para a casa da irmã
mais velha.
— Porque nós já noivamos. — Emma exibiu o bonito anel com uma
pedra solitária brilhante.
— Mas não fizeram nenhuma festa. — Largou o caderno de capa de
couro e se prostrou por trás da mesma, arranjando um fio de cabelo fora do
lugar. — Não seria bom fazer uma festa oficial antes do casamento? Seria uma
maneira de formalizarem a união diante de todos.
— Hmmm... — A outra ponderou. Gostava de festas e de ser a rainha das
mesmas. — Pode não ser uma má ideia. Falarei com Damien e com a minha
irmã.
Darcelle sorriu, sua ideia completamente equivocada era a de que os
noivos pudessem se aproximar em momentos como aquele. Convívios
aconchegantes onde teriam que andar de mãos dadas e dançar no meio do salão
de festas.
— Quero ajudar em tudo o que puder. — Darci garantiu e os olhos
brilharam. Não conseguia não gostar dela, por isso queria que fosse feliz em seu
casamento. A todo custo.
— Agora tenho que ir. — A futura senhora Beauchamp se levantou. O
vestido de mangas compridas e as botas se encaixavam no seu corpo esbelto.
Colocou um longo casaco por cima e levou seus pertences.
— Quer que chame o Étienne? — A assistente se aprontou. Trajava umas
calças jeans e a bata branca por cima da blusa de mangas compridas. As roupas
eram quase sempre as mesmas, fazendo Emma anotar mentalmente que a deveria
levar para as compras.
— Não precisa. — Emma mostrou chaves de um carro. — Desde que o
Chris fugiu da Gala e me deixou sozinha esperando por Étienne, decidi que era
hora de ter um veículo.
— Oh... — Johnson percebeu que o motorista teria se demorado para ir
buscar a patroa porque a tinha ido deixar primeiro no Broom, e com aquela
chuva intensa o trânsito não tinha colaborado. — Até logo, nesse caso.
— Um beijo.
Emma saiu do quarto, o coração palpitava sem parar dentro do peito, a
ansiedade por estar com William era maior que tudo. Étienne apenas tinha
preparado o Mercedes Benz, novo em folha, que estava do lado de fora da
mansão.
— Bom dia. — Ele saudou abrindo a porta do condutor, e ela não gostou
muito do olhar acirrado que este lhe dirigiu.
— Obrigada — agradeceu, se ajustou no carro enquanto ele fechava a
porta e logo saiu a dirigir para longe daqueles muros frios. Enquanto dirigia,
entendia que nada justificava seu comportamento e não negava para si que fazia
aquilo por interesse, mas também tinha feito uma promessa para sua irmã, esta
que ajudou a ela e William quando mais precisaram. Havia mais coisas em jogo
do que mostrava e o peso só não era maior porque Damien não se importava.
O noivo não ria com ela, só falava sobre assuntos de cultura geral e o que
acontecia pelo mundo. Não tinham mesmos gostos musicais, e passavam longos
serões a ler livros distintos. Os beijos eram sem nenhuma paixão, o sexo era isso
mesmo, apenas sexo. E ele parecia satisfeito por isso. Para que complicar?
Chegou na antiga casa onde vivia com a irmã e saltou do carro um
quanto eufórica. A primeira coisa que fez foi abraçar o sobrinho que a beijou
com tanto amor ainda na porta e os dois entraram. Joanne arrumava a mochila do
menino e lhe deitou um olhar curioso quando esta pousou as chaves por cima da
ilha da cozinha.
— Pode usar. — Emma disse.
— Bom dia para você também. — A Charlton mais velha fez uma careta
quando a irmã lhe deu um beijo no rosto e um abraço apertado. Admirava toda
aquela vivacidade. — Vamos, querido, estamos atrasados. — Chamou o filho.
— A Darcelle sugeriu uma festa oficial do noivado antes do casamento.
O que acha?
— Não é uma má ideia. Na verdade, acho bem que a sociedade tenha o
reflexo da vossa união antes da cerimónia final. — Teve que concordar e se
aproximou da mais nova.
— Tome. — Emma abriu a bolsa e tirou de lá um cheque. — Espero que
possamos nos livrar disso o quanto antes.
— Darei um jeito. — Joanne se irritou quando a porta foi aberta sem
bater e William entrou todo apressado. A pele muito bronzeada se destacava com
o cabelo escuro. — Estou indo.
— Até logo. — A irmã despediu de bochechas rosadas, e acenou para o
sobrinho que logo seguiu a mãe, antes de se atirar para os braços do amado.
Joanne entrou no Mercedes Benz todo clássico e antes de sair enviou uma
mensagem de texto, recebendo a resposta logo em seguida. As primeiras gotas
de chuva começaram a cair quando deixou o filho na creche. O rapaz sempre
chorava como se fosse a primeira vez, deveria agradecer por já não terem de
subir o transporte público desde que Emma passara pelos critérios de Damien.
Estacionou o Mercedes Benz em frente a uma pastelaria no alto da
cidade. O carro tinha sido presente de Beauchamp para a irmã, Emma tinha
reclamado, porque Christian Dash a abandonara na Gala Beneficente e tivera que
esperar o motorista ir até ao subúrbio deixar a empregada e só depois ir buscar a
futura senhora Beauchamp.
Estava a par de tudo.
Ainda assim temia que a irmã colocasse tudo a perder caso Beauchamp
desconfiasse de algo e pedia para que tivesse muito cuidado. Aquele amor por
William se ouvia por toda casa mal se trancavam no quarto entre gemidos e
gritos desconfortáveis.
— Olá, Jo. — A porta do carro se abriu e uma figura entrou, comia um
pastel de natas e sorria de ponta a ponta tal como o gato de Cheschire. —
Servida?
— Não. Não pretendo demorar — respondeu com desprezo, abriu o
porta-luvas e tirou de lá um cheque assinado ao portador.
— Beauchamp, uau! Isso eleva a fasquia.
— Esse vai ser o último como combinado. Pelo menos até ao casamento
de Emma.
— Não se preocupem. O vosso segredo está bem guardado comigo. —
Riu com muito divertimento e saiu do carro, deixando um pastel de natas para
trás.
[...]
Normalmente a reunião semanal sobre o balanço das empresas, os
relatórios e atas entre mais, eram apresentadas por Christian ao amigo, mas pela
primeira vez naquela manhã nublada, Damien parecia distante.
— Que bicho te mordeu? — Dash quis saber, afastou as pastas de
trabalho para o lado e passou a tamborilar os dedos na mesa de mogno. Estava
impaciente, com um curativo na testa e os lábios arroxeados.
— Você deixou minha noiva sozinha na Gala beneficente e aparece assim
todo aleijado — observou, a voz sempre plena e amarga, chegava a ser uma
marca registada.
— Então agradeça, imagine se o acidente tivesse acontecido com o seu
camarão ao meu lado? — Retorquiu se mexendo no lugar cheio de dor e ignorou
o olhar crítico do amigo.
— A Emma parece uma garota interessante, nestes últimos meses não
pareceu se quebrar ao todo. Está a ser diferente de todas outras que puseram cá
os pés, ela sabe lidar comigo — confessou com o olhar irrequieto dentro dos
orbes. Tinha remoído as palavras da assistente pessoal, não que não tivesse
escutado coisas iguais antes, mas não daquela forma.
— E o que pretende? Fazer um jantar maravilhoso à luz de velas para
relembrar o amor perdido no inferno sombrio que é o seu coração? — Chris
tinha a cabeça inclinada para o lado, numa forma direta de demonstrar a sua
incredulidade.
— Talvez. — Damien soergueu ligeiramente os ombros. E sentiu sua
face queimar quando ouviu o amigo rir as gargalhadas. Respirou fundo. — Não
entendi a piada, Dash.
— Esquece. — Levantou-se da confortável cadeira de couro e se
espreguiçou na frente do amigo, arrancando uma expressão de desaprovação
deste. — Tenho que ir jantar com os meus pais hoje. A mesma ladainha de
sempre! Perguntas sobre eu administrar a Beauchamp ao invés da Dash & Dash.
Percebe?
— E é só isso que te deixa assim? — Com as mãos pousadas sobre a
mesa e os dedos entrelaçados, o herdeiro Beauchamp parecia um aristocrata
devido a postura.
— O facto de quererem que me case e que tenha uma namorada.
Christian! Você tem trinta e um anos, devia arranjar alguém! — Imitou a voz da
própria mãe e girou os olhos. Isso, sem contar ter de explicar sobre o acidente.
— E eles não têm razão? — Perguntou a dada altura.
— Não. — O psicólogo negou de todo. — Sabia que a prima da sua
assistente é estudante de medicina? Ontem fui parar no hospital central, olha a
ironia, e foi a tal que me atendeu.
— A tal? — Damien estreitou os olhos. — Uma piada que o herdeiro da
maior clínica do país tenha ido parar num hospital público.
Chris deu de ombros. Estava incomodado.
— Não é nada disso que está pensando. Só como me espantei por vê-la lá
e percebi que por muito aberto que possa ser, o preconceito ainda está enraizado
dentro de nós e é preciso combatê-lo todos os dias — explicou, mas não contou
do debate amargo que tivera com Jamie e como isso ficou a remoer na sua
cabeça. Era uma mulher direta e forte demais.
O Monstro Du Camp queria dizer que sentia existir algo mais para além
disso, só não sabia bem o quê. Limitou-se a assinar os documentos com vagar.
— Você não sabe conversar! — Dash bufou e se levantou a carregar os
dossiers de forma desajeita que fez Damien torcer o nariz. Principalmente por
ver o administrador da sua empresa com calças jeans, um casaco de couro e
tênis. — Até mais.
— Adeus.
Quando ficou sozinho no seu grande escritório todo amadeirado cheio de
livros, longas cortinas pesadas que quase impediam a luz de entrar e chão
acarpetado, se dignou pela primeira vez a pensar como seria se tentasse abrir as
portas do seu coração para alguém. Se levantou no seu terno cinzento impecável,
verificou a máscara encaixada no seu rosto e saiu dali em passos certos sem
pressa alguma, caminhando pelos corredores silenciosos e frios.
Enquanto cuidava da nova colecção de roupa que Emma tinha pedido
para um famoso estilista, Darcelle percebeu o movimento estranho na porta do
quarto e viu o Monstro Du Camp agitado naquele dia, parecia em conflito
consigo mesmo e a rondou três vezes antes de se aproximar.
— Posso ajudar? — Ela perguntou com um sorriso simpático no rosto,
algo que não recebeu de volta. Se perguntava se ele teria alguma dificuldade
para curvar os lábios ou talvez o facto de ter estado tantos anos sério tinha feito
com que tivesse desaprendido a sorrir.
— Quero ter um jantar com a senhorita Charlton esta noite e não sei por
onde começar. — Finalmente conseguiu dizer o que o afligia. Ficou mais irritado
ao ver o brilho dos olhos escuros, e sim, ele a tinha escutado só não ia dizer isso
em voz alta.
Darcelle deixou as roupas e catálogos em cima da cama grande coberta
por colchas brancas com fios dourados e procurou sua agenda que estava sempre
à mão. Tirou de lá uma caneta e pensou que a noiva ficaria feliz por ver algum
avanço por parte daquele homem difícil.
— Flores? Posso falar com o cozinheiro para preparar algum cardápio
em especial?
— Tanto faz! — Ele estava impaciente. — Apenas cuide de tudo!
— Vou agora mesmo marcar um cabeleireiro para se senhorita Charlton e
pedir aos empregados que preparem a sala de jantar.
— Você também é uma empregada. — Deixou aquilo claro. — Não está
fazendo nada mais do que o seu trabalho e não quero que pense que tem alguma
proximidade só por causa da conversa que tivemos da última vez.
— Claro. — Darcelle não pareceu abalada por escutar tais palavras. —
Sei bem o meu lugar, senhor Beauchamp, e torço que ache o seu no meio disso
tudo.
Ele piscou.
— Cuide do seu que eu cuidarei do meu — concluiu e se retirou do
quarto em passos lentos, mas firmes.
A Johnson era sincera demais e isso já lhe tinha custado algumas coisas,
também era ingénua quanto ao mundo real e em matéria de sentimentos, nunca
tinha namorado ou se apaixonado por alguém e por isso não compreendia certas
coisas. Por que tinham sempre de complicar quando ser verdadeiro era a melhor
forma de viver?
— Senhor Beauchamp? — O seguiu para fora do quarto e o viu parar no
corredor sem se virar. Respirou fundo. — Quer que o ajude com o que vestir?
— Eu sei vestir. — Continuou de costas, mostrando que não se daria ao
trabalho de se virar só para a encarar.
— Poderíamos tentar algo novo? — Darcelle estava ansiosa por vê-lo
diferente do comum, até porque não compreendia por que razão se vestia
daquele jeito se nem tirava um pé fora de casa.
— Não se espalhe demais, senhorita Johnson. — Ele a advertiu, mesmo
assim continuou parado no lugar, um pouco curioso pelo que a assistente tinha
para sugerir.
— Podia ir mais descontraído.
Damien girou o pescoço o suficiente para a encarar por cima do ombro.
— Descontraído? — Repetiu de cenho franzido. Não se lembrava da
última vez que se permitira relaxar. Aquele jantar podia ser diferente se quisesse.
Ponderou. — Venha.
Darcelle apertou os lábios para não sorrir e caminhou rápido para o poder
alcançar. Os dedos de suas mãos estavam inquietos por ter a oportunidade de
acreditar que um dia aquele homem voltaria a ser feliz. O seguiu escadas acima
até ao quarto dele e hesitou antes de atravessar as portas francesas por onde este
passou.
O quarto era maior que a casa onde morava com a prima. A cama era
enorme com pilares que iam até ao alto. Tinha uma pequena sala, uma varanda
com mesa para refeição e um piano que se destacava em toda aquela decoração
de tão preto e brilhante que era. Havia tantas portas que Darcelle nem sabia para
onde levavam.
— Ali. — Ele apontou para uma delas e analisou cada movimento da
assistente que não escondeu o espanto ao encontrar um quarto só de roupas.
— Eu poderia viver aqui dentro! — Exclamou ao passar pelos cabideiros
e se estacou ao encontrar uma prateleira só com máscaras. O sorriso dela morreu
nos lábios.
— Mas não vive. — Damien estava incomodado. No seu quarto só a
senhora da limpeza é que entrava. — Agora ande logo, não tenho o dia todo.
— Pois bem. — A praticidade dela e como não se afectava com sua
rispidez, o intrigava, por isso a observou pelo canto do olho enquanto se mexia
de um lado para o outro, encontrando uma facilidade em escolher as peças de
roupa. Foi inevitável não se lembrar de Bianca que sempre gostou de lhe sugerir
o que vestir. — O que acha?
Damien gostou por Darcelle não ter sido tão radical na mudança.
Segurava uma camisa com um bonito padrão azul axadrezado e calças caqui
cremes. Pendeu a cabeça e deixou um leve balançar dos ombros.
— E a máscara?
— O que fez?
— Podia retirar. Já não está na hora da mulher que vai se casar com o
senhor, vê-lo exatamente como é?
Ele levantou as sobrancelhas e soltou um esgar.
— Pode ir terminar os seus afazeres — concluiu.
— Sim senhor.
A Johnson respirou fundo e saiu dali, não sem antes lamentar pela
nostalgia que pairava por todo aquele gigante espaço. Desceu e terminou de
organizar todo o quarto esplendoroso de Emma e que causaria inveja a qualquer
mulher. Tinha dezenas de peças de marca, prateleiras cheias de perfumes e
sapatos, um homem que parecia querer agradá-la mesmo que fosse rude na
maioria das vezes. Só precisava descongelar aquele coração dele para serem
felizes.
O resto do dia coordenou com os colegas como podiam organizar aquele
jantar para ser especial e também falou com Emma pelo telefone, avisando-a
para chegar mais cedo. Depois terminou de organizar a agenda desta que ia dar
uma entrevista num canal televisivo famoso e tratou de fazer uma lista de
possíveis convidados para a festa de noivado.
Era de noite quando finalmente conseguiu tomar um banho no quarto do
andar térreo e tirar a bendita bata branca. Ainda esperava que Emma a chamasse
para ajudá-la em alguma coisa, pois não a vira chegar. Mesmo assim, acreditava
que àquela altura os pombinhos já estariam a jantar e por isso se assustou quando
ouviu um estardalhaço vindo da sala de jantar.
Lá fora a chuva era açoitada pelo vento e pensou que alguma coisa
tivesse caído caso uma janela tivesse ficado aberta. Correu para lá, subindo os
degraus dois a dois e a arquejar.
Encontrou Damien ofegante, tinha atirado um jarro de porcelana para o
chão junto com tulipas vermelhas. Usava a roupa escolhida e que lhe assentava
tão bem, lhe dando um ar mais jovial e menos taciturno. Seu perfume era mais
intenso que as flores espalhadas, e o seu cabelo bem arrumado destacava o rosto
obstruído que estava sem a máscara.
— Senhor Beauchamp? — Chamou e se agachou para recolher os cacos
de vidro e reunir as flores. O olhar inquisidor estava patente no rosto da jovem
assistente.
— Pode arrumar tudo, leve a comida, faça o que quiser... Mas tire tudo
da minha frente! — Passou a mão pelos cabelos loiros e a raiva parecia encher o
peito do jovem herdeiro.
— A senhorita Charlton não vem?
— Não respondo a suas questões. Faça o que lhe digo — ordenou. A voz
falhou uma ou duas vezes, inconformado pela situação. Quis atribuir a culpa a
ela por ter-lhe dito coisas nas quais não acreditava, quis também colocar a
cabeça na pia e ficar por lá.
Darcelle saiu para deitar o lixo e se sentiu culpada. Podia ouvir a voz de
Étienne gritando "Ingénua"na sua cabeça. Se deixou ficar um pouco distante,
observando a chuva pela janela da cozinha e pensou em telefonar para Emma,
mas sequer encontrou forças para o fazer. Naquele momento tomou uma decisão,
e com sua determinação inabalável subiu de volta até a sala de jantar. Ela era
daquelas que caía, mas levantava e nunca desistia até atingir a meta.
O chefe estava sentado em silêncio e brincava com sua taça de vinho, o
olhar tão distante que nem se apercebeu quando a assistente se sentou.
— Eu janto com o senhor.
Beauchamp levantou o rosto e uniu o sobrolho um quanto incrédulo. Riu
da própria desgraça e meneou a cabeça.
— Não janto com os meus empregados.
— Meu horário de trabalho já acabou, neste momento sou apenas
Darcelle.
Era atrevida a moça! Parecia firme e decidida no que fazer. Nunca antes
nenhum empregado seu se dignara a chegar perto, quanto mais impor a presença
diante dele.
— Eu não quero a sua pena! — Bravejou, a cabeça baixa fazia os cabelos
cobrirem o rosto sem máscara.
— Mas eu não tenho pena — afirmou sem hesitar. — A chuva lá fora não
está muito boa e o senhor me deu toda esta comida. Podia ir para casa, mas a
minha prima foi jantar com o namorado. Somos dois solitários.
— Não me compare a si! — Damien se levantou da mesa, dando as
costas, habituado a se esconder de tudo e de todos. Se nem ele conseguia se
olhar, imagina os outros.
— Por quê?
— Você tem escolha, senhorita Johnson. Pode estar com uma companhia
quando quiser. — Rosnou e virou-se de frente para a jovem. Os cabelos loiros
sedosos ondularam com o movimento.
— O senhor também tem. Estou oferecendo a minha companhia neste
momento.
O Monstro Du Camp engoliu em seco se questionando: Como podia
Darcelle estar tão serena diante daquela situação.
Porta de Esperança, A

"Uma pessoa aprende a amar não quando encontra a pessoa perfeita,
mas quando aprende a crer na perfeição de uma pessoa imperfeita."

DAMIEN se dignou a sentar de frente para a empregada, os olhos azuis


fulminantes perscrutaram com toda a atenção possível a figura, a seu ver,
pretensiosa. Apoiou a mão de forma instintiva na parte obstruída, a cobrindo.
Não estava habituado a ficar tanto tempo exposto daquela forma diante de
alguém.
― O que pretende? ― Havia certa confusão em seu rosto imperfeito, o
deixando ainda mais desagradável de ser visto de tão perto.
Darcelle colocou o guardanapo de linho em seu colo, sabendo com
exatidão estar a cruzar um risco indevido, afinal era petulância da sua parte agir
de tal maneira diante do próprio empregador.
― De momento, apenas jantar. ― Espreitou os olhos para um prato
requintado, cheio de pequenas entradas de diferentes tipos para a degustação. ―
O que é isso?
O Monstro Du Camp bateu com a mão na mesa, assustando a sua
companhia com sucesso. Lá fora o céu trovejava sem parar, uma chuva nada
simpática tanto quanto o seu próprio humor.
― Percebe que tal situação me é desconfortável, senhorita Johnson. Não
pretendo desfrutar de sua companhia e farei o possível para relevar o
acontecimento desta noite. Agora vou-me retirar e pedir para que...
― Eu quero ajudá-lo. ― Decidiu jogar as peças de uma só vez, uma
tentativa fraca de o manter junto a mesa. Ingeriu um pedaço de bolacha salgada
com uma substância escura e de textura esquisita. Estranhou.
― Isso é caviar ― respondeu num ato impensado e procurou afastar a
cadeira para trás, dando sinais claros de querer se levantar, não sem antes encher
a taça de vinho. Pensava em ir beber algures, longe do alcance de quem fosse. ―
Eu não quero ajuda. Não me lembro de ter pedido por isso e estou cansado de
soar meio repetitivo.
A assistente pessoal engoliu em seco ao perceber o tom amargurado
vindo daquela voz, não era por ela, e sim como uma alma afetada por uma
bomba tóxica que o corroía por inteiro. Procurou palavras para se explicar.
― Eu quero ajudá-lo a conquistar a senhorita Charlton, a encontrar a
felicidade novamente ― disse sem hesitar, a voz beirava a um certo desespero
como se o momento dependesse daquilo. No pouco tempo em que trabalhara ali,
Darcelle via como os dias decorriam na vida daquele homem e se questionava a
razão de expressar tanta infelicidade em tudo o que fazia. Como poderia alguém
viver de tal forma? Igual a uma carcaça sem conteúdo ou um robô sem um
coração verdadeiro.
― Não sei se percebeu, mas Emma Charlton é minha futura mulher. Não
preciso de a conquistar. ― Damien pestanejou sem acreditar quando viu Johnson
cuspir o caviar no guardanapo e a fazer uma cara de nojo.
― Ter concordado em preparar este jantar revela a certeza nas suas
pretensões, senhor Beauchamp. Tudo o que penso que precisa é de alguém que
lhe diga como fazer.
― Poderia ajudar não se metendo onde não é chamada, por exemplo.
Não sei que tipo de confiança tem para tomar esse tipo de liberdade, ainda mais
sobre minha vida pessoal. Não falarei sobre ela com você e muito menos
necessito de sua ajuda ― repetiu a última parte cheia de ênfase e desta vez se
levantou com precisão. A inquietação nos seus olhos era visível.
Seria assim tão claro que a bela Charlton jamais quereria nada mais dele
do que apenas dinheiro? E se isso não o incomodava antes, por que agora parecia
como um ninho de abelhas em seu estômago?
― Estamos preparando uma festa de noivado, senhor Beauchamp.
Podemos fazer com que seja real. ― Darcelle não sabia os termos daquela união,
mas estava ciente do quão era esquisito. Emma nunca mostrava estar contente ao
lado dele e parecia contar as horas para ir embora ou estar longe do futuro
marido. Era suposto ela estar ali, mas preferia passar tempo junto da irmã e do
sobrinho, deixando o noivo sozinho. Apesar de ele parecer não se importar, a
assistente viu naquela noite pela primeira vez, a decepção dentro dos olhos azuis
e se sentiu na obrigação de fazer algo para remediar; visto ter sido ela a sugerir
aquela ideia.
― Espero que aproveite o jantar e que tenha o resto da noite para pensar
na forma como se dirige a mim. ― Foi tudo o que Damien disse antes de se
retirar da sala de jantar, percorrendo os corredores pouco iluminados a passos
largos até ao seu quarto. A solidão costumeira lhe pareceu imensa, gostava de
estar só ou se tinha habituado àquilo?
Bebeu seu copo de vinho sentado na poltrona junto a lareira, remoía as
palavras da assistente em seu consciente. Emma Charlton era diferente de todas
que ali tinham passado, parecia serena, preparada para fazer o que tinha de ser
feito. Não forçava e nem remediava, como se estivesse sempre no meio da
questão. Ainda assim, nos últimos dias quem mais o intrigava era a jovem
Johnson, cheia de personalidade e decidida nas palavras! Nunca antes conheceu
uma mulher igual. Na presença da assistente, não precisava fingir e nem usar
suas máscaras, tal como quando estava com Christian. Bastava ser o que era na
realidade, sem hesitações. Algo não tão fácil de se ter diante da futura esposa.
Darcelle emanava ali um poder estranho e até curioso para si. Foi isso
que o fez levantar uma hora depois e descer as escadas até ao andar térreo sem
rumo certo, até se dar conta de ter ido parar no único quarto térreo onde antes
dormia o mordomo da mansão. Ia bater a porta, mas estava mal fechada e cedeu
com facilidade, revelando a visão da assistente sentada na cama grande apenas
com um robe azul e o telefone junto a orelha.
Os olhares se encontraram.
― Eu...
― Senhor Beauchamp, espere! ― Deixou o telefone e correu até a porta,
curiosa pela presença de Damien ali. Era a última coisa que podia esperar. ―
Precisa de alguma coisa?
O silêncio de uma resposta que nunca veio foi absorvido pelo grito do
trovão. O quarto todo foi iluminado por luzes vindas de fora e a mansão pareceu
estremecer. Aquele rosto meio deformado ajudava a completar o que seria um
excelente filme de terror.
― Não era nada. Não se preocupe, vá descansar. ― Deu meia volta sem
deixar que ela respondesse. Sentia-se como um tolo por ir até ali sem saber
sequer o que dizer. A verdade era mesmo essa: Não sabia.
— Eu pensei em algo. — Tratou de dizer quando percebeu que o orgulho
morava dentro dele. — Pode levar a senhorita Charlton para uma viagem de fim-
de-semana, algo romântico e paradisíaco. Acredito que isso possa ser um
momento íntimo para vos aproximar.
Damien estreitou os olhos, analisava aquela hipótese com certa cautela.
Fazia tempo que não viajava e não queria estar numa praia exposto. Contudo não
parecia ser uma má ideia.
— Eu não saio de casa. — A lembrou, falando quase entre dentes.
— O que o impede? — Não que Darci não soubesse, mas não via sentido
em se privar por tão pouco. — Pode começar agora.
— Por que se importa assim tanto? — Beauchamp libertou a pergunta.
Não compreendia a razão para tamanha insistência.
— Eu vejo que a maioria das pessoas segue sua vida e não se preocupa
com os outros. Hoje em dia é mais normal não se importar, as pessoas estão tão
acostumadas ao mundo egoísta que qualquer acto de estima se torna numa
desconfiança. Se cada ser humano neste planeta se importasse tanto com o seu
próximo quanto se importa consigo mesmo, talvez estivéssemos num mundo
diferente. — Justificou e suas palavras saíram quase sem pausas pelo medo de
perder o fio de pensamento.
— Isso é uma utopia, senhorita Johnson.
— E não é bela a utopia, senhor Beauchamp?
— E o que chamaria de belo?
— Belo é tudo aquilo que nós nos dispusermos a amar.
Damien mordeu a língua. Ela parecia ter respostas preparadas para tudo o
que ousasse questionar e por isso apenas se dignou a concordar com a cabeça,
num silêncio interrompido pelas trovoadas lá fora.
— Trate de tudo para a viagem. Você irá também, não quero a Emma
ocupada com coisas simples. — Decidiu e se afastou de volta para o seu quarto
em passadas cheias de estilo que muito combinavam com o porte atlético.
Pela primeira vez em muito tempo, estava disposto a tentar.
Na manhã seguinte Darcelle acordou cedo e estava radiante. Trançou o
cabelo depois do banho e se vestiu para ir trabalhar. Cumprimentou Étienne que
estava sentado na copa a tomar o café da manhã e o fez companhia ao se deliciar
da comida saborosa que a cozinheira tinha preparado.
— Foi uma noite longa e tanto. — O motorista salientou.
— A chuva estava aterradora. — Ela teve que concordar, ainda mais por
aquela mansão ser tão fria. Lá fora ainda se via os sinais da noite anterior, os
pingos enfeitavam as grandes janelas e o céu continuava cinzento. — Se pudesse
me aconselhar um lugar bonito para passar um final de semana, qual seria?
— Você não tem dinheirro parra ir — zombou dela sem hesitar,
bebericando o leite quente e comendo um pedaço de bolo.
— Ah! — Darcelle soltou um esgar. — Não é para mim.
— O senhor Beauchamp possui ilhas, por que não entrra em contato com
uma de suas agências de viagens? — Perspicaz como sempre, Étienne não
demorava a encontrar soluções práticas.
— Farei isso. Obrigada — agradeceu. Por vezes se esquecia que aquelas
pessoas tinham tanto dinheiro. — E sua família?
— O que fez? — A olhou de soslaio, mas deixou a língua fora ao
perceber o olhar dela. — Todos na Frrança. Vim em busca do país dos sonhos e
cá estou dirigindo um Bentley Mulsanne.
— Bem, é um sonho.
Os dois desataram a rir, mas não se demoraram e cada um foi tratar dos
seus afazeres. Darcelle tentou telefonar para Jamie, sem sucesso, então deixou
mensagens de texto para que esta lhe dissesse ao menos como estava. Quando
subiu para o quarto de Emma, se espantou ao encontrá-la junto de Joanne.
— Não sabe bater? — A morena a fulminou com os olhos e suas narinas
dilataram.
— Desculpe, não sabia que já estavam de volta — pediu quase sem graça
e endireitou os ombros. — A Emma não voltou ontem.
— Senhorita Charlton para você. — Joanne tratou de a corrigir e se
irritou quando a irmã levantou a mão para a impedir.
— Eu prefiro que me chame de Emma. — Advertiu e se levantou. — A
chuva forte não me deixou regressar. Já expliquei para Damien.
— Entendo. Podia ter avisado, preparamos uma surpresa para você. — A
assistente tentou não parecer tão acusativa, uma vez que a outra não lhe devia
justificações.
— Meu celular estava fora de área. — A loira deixou a intrujice soar tão
óbvia que suas bochechas coraram. Não gostava ter de mentir para alguém que
era inteligente o suficiente para a desvendar.
— Surpresa? — Joanne se levantou.
— O senhor Beauchamp a esperou para um jantar romântico. Não sei o
que podia querer dizer depois. — Darcelle observou como as duas irmãs se
entreolharam.
— Foi você que falou da festa do noivado para ele? — Emma perguntou.
— Sim. Não sabia que...
— Não. Fez muito bem. — Emma a relaxou. — Mas... E sobre essa
viagem? Foi ideia sua? — Não estava confortável de todo e isso se notava nas
suas feições.
— O que importa? — Joanne a cortou. — Eu acho bem que o conquiste
de uma vez por todas e se ele está disposto, melhor ainda. Agora vamos, temos
muita coisa para fazer.
As três passaram a tarde a tratar de tudo para a festa do noivado na
mansão e tinham muitos lugares por visitar e compras por fazer. Os convites do
casamento para Maio também tinham sido entregues, mas teriam decidido
anunciar o noivado publicamente, afinal se tratava de um dos maiores herdeiros
do país. Durante os restantes dias em que cuidou também da viagem, Darcelle
não viu o Monstro Du Camp, mas conseguiu reservar tudo sem deixar de
perceber o quanto Emma não gostava da ideia.
Quando foi para casa um dia antes da viagem, se despediu de Étienne
com quem fazia uma nova amizade interessante, e não deixou de reparar num
belo Porsche vermelho estacionado em frente ao pequeno prédio onde morava.
Subiu as escadas, intrigada, pois sabia que nenhum dos vizinhos tinha condições
de comprar um veículo que custava mais do que a própria casa. Abriu a porta e
finalmente viu a prima que estava sentada na mesa da sala enfurnada numa
montanha volumosa de livros e de cadernos.
Sequer levantou o rosto para a cumprimentar.
― Boa noite! ― Darcelle deixou a bolsa e o casaco no cabideiro, foi até
a cozinha para preparar um chocolate quente. Precisava aquecer o seu corpo. ―
Eu liguei para você toda semana.
― Não sei se esqueceu, mas eu sou uma aluna de medicina.
― Que mau humor! O que você tem? Ainda zangada comigo pelo que
falei do Lorenzo?
Jamie parou de escrever e levantou os olhos escuros para a prima. Muita
gente de tanto as ver juntas, pensavam que fossem irmãs, apesar das diferenças
gritantes entre as duas. Respirou fundo.
― Estou estudando, tenho exame para a semana.
― Quer ir a festa de noivado do Beauchamp? Talvez fosse bom para
espairecer um pouco. Parece que está precisando! ― Convidou e serviu o
chocolate para a xícara, caminhando até se sentar junto da prima. ― Os exames
vão até o final da semana que vem, não?
― Não tenho vontade.
Darcelle estranhou as respostas evasivas e como conhecia a peça decidiu
usar de outras formas para obrigar a estudante a contar o que tinha acontecido.
― Eu realmente não queria estar lá sozinha e a senhorita Charlton já
disse que posso levar companhia. Por favor! Recebi um bónus, podemos
comprar uma roupa nova.
― Darci minha querida, não sei se ainda não entendeu que estou
tentando estudar. ― Levantou os livros na altura da cara, uma forma óbvia de
fazer a teimosa perceber. Mas foi em vão.
― Você viu o carro que está parado lá em baixo? Será que alguém...
― É meu! ― Jamie não hesitou em responder. A voz pareceu ainda mais
amargurada ao dizer tal coisa. Sentiu a mão da prima baixar o livro para lhe
encarar.
― Como? ― Admirou. ― Foi o Lorenzo?
― Não. Eu e o Lorenzo terminamos, está bem?
— Terminaram? — Quase se permitiu festejar, mas achou indevido. — O
que aconteceu?
— Traí ele.
— Traiu? Não! Com quem? Por que não me conta tudo? — Darcelle
estava de olhos abertos, pois não acreditava que a prima fosse capaz daquilo sem
ao menos ter uma justificação. Alguma coisa grave tinha acontecido para Jamie
chegar àquele extremo, e vindo de Lorenzo, não era de se estranhar. — Foi essa
pessoa que lhe deu o carro?
— Por favor, chega de perguntas! ― A prima levantou da mesa e reuniu
alguns livros no braço, rumando para o quarto ainda de mau humor. Darcelle
tinha certeza que alguma coisa estava a acontecer com sua prima, mas se limitou
a ficar quieta no seu canto.
Nem sequer teve tempo de avisar que ia viajar durante o fim de semana,
então deixou um bilhete colado na geleira.
[…]
― [...] Nunca uma mulher negou algo meu. Nunca. Quem ela pensa que
é?
Os dois amigos experimentavam ternos para o noivado que se
aproximava. A marca era famosa pelos trajes e os costureiros acertavam tudo
para que o corte ficasse perfeito.
― Alguém que não se deixa iludir por bens materiais? ― Retorquiu
Damien, cujo rosto apresentava uma máscara branca a cobrir apenas o lado
direito. Era incapaz de receber quem fosse com a realidade desagradável a
mostra.
― Só quis agradá-la. ― Christian justificou, passou a mão pelos cabelos
desarrumados. Parecia furioso.
― Tentou com flores?
― Que forreta, Damien. E eu não a quero conquistar, só quis dar uma
ajuda ― garantiu, virava o pescoço de um lado para o outro a apreciar a silhueta
do corpo dentro do terno. Não gostava daquelas roupas formais, mas não ia
contradizer o amigo.
― Se pelo que me diz, essa... Jamie for tão tempestuosa como a prima,
então você deu um tiro no escuro. ― A cor azul da roupa evidenciava os olhos
do herdeiro Beauchamp. O traje feito a medida confirmava ter sido criado
exclusivamente para si.
― Como a prima? ― Dash pestanejou. ― Você tem tido contato com a
sua assistente pessoal?
O loiro ficou quieto com a pergunta feita e dispensou os costureiros
retirando o casaco, ficando apenas de camisa formal.
― É normal, ela trabalha para mim. ― Respondeu sem se estender muito
nos detalhes e caminhou até ao interfone, chamando por Étienne.
― Não foi isso que eu quis dizer. ― O psicólogo retrucou, mas não
obteve resposta, apenas encarou o seu amigo se preparar para sair do quarto. —
Agora coloco em dúvida a questão de levá-la convosco nessa viagem de fim de
semana.
— Ela é nossa assistente pessoal! — Damien exclamou.
— Vão fazer algum tipo de bacanal? Festinha depravada? Porque se for
isso também quero ir.
— Deixa de parvoíces. — Os olhos azuis escureceram. — Até breve.
Chris nem abriu a boca para responder. Estava aborrecido demais com o
facto de ter dado um Porsche Cayenne para aquela ingrata que lhe atirou com as
chaves na cara.
Damien tentava não parecer nervoso por deixar os muros de sua mansão
depois de tanto tempo, respirou fundo e colocou a mão no bolso de dentro do
casaco. Ali estava uma pequena caixa com o anel que pertenceu a sua avó
paterna e que seu pai teria dado para sua mãe Giovana. Agora estava com ele
para poder oferecer a sua futura esposa, mesmo assim tinha comprado outro para
Emma usar, mas agora com aquela viagem e tudo o que podia acontecer, quem
sabe se finalmente não ia encontrar a merecedora da belíssima joia da família
Beauchamp?
Soltou um suspiro a abrir a porta da mansão, naquele sábado frio.
Estreitou os olhos ao experienciar os fracos raios solares no seu rosto e os baixou
para ver Darcelle e Emma que o aguardavam do lado de fora do carro, enquanto
conversavam animadamente. E não soube decifrar de que lado é que uma
estranha esperança o absorveu.
Despertar de Darcelle, O

"O tempo desmascara as aparências, expões as mentiras e revela o
caráter."

NENHUMA das duas alguma vez tinha viajado de helicóptero, mas


enquanto Emma se mostrava indiferente ao frio que sentia na barriga apenas para
se manter a altura do Monstro Du Camp, se apresentando madura demais para a
sua idade ao conversar com muita coerência e explanando seus pontos de vista
com precisão sobre assuntos desinteressantes e se revelando altamente treinada
para ser a esposa perfeita, coisa que se transformava quando estava longe do
noivo e abandonava aquela postura politicamente correta; Darcelle, por sua vez,
estava deslumbrada! A adrenalina chegava a ser surreal e estava estampada na
maneira como abria os olhos e a boca constantemente, soltando pequenos
gritinhos e sorrindo sempre para Damien por ver como este se entrosava com a
futura mulher.
E era isso que mais chamava a atenção dele, as expressões espontâneas e
verdadeiras que se destacavam no rosto simples que a cada dia se mostrava mais
interessante do que alguma vez previu. Várias vezes se perdia no próprio fio de
pensamento e se descobria interessado no que quer que Darcelle estivesse a ver
que fazia os olhos dela brilharam como nunca antes. Não percebia que para ele
era apenas um helicóptero, mas para outras pessoas como ela, era a viagem de
uma vida inteira. Nem o assunto sobre o Turfe que era um dos seus mais
favoritos lhe pareceu tão agradável do que experienciar a emoção pelos olhos
escuros dela.
A ilha paradisíaca era grande, com várias instâncias turísticas de luxo no
meio da areia branca. A água tão azul e cristalina era bastante convidativa, assim
como as lanchas para passeios em alto-mar e as festas requintadas. Darcelle
tinha preparado algumas atividades para os futuros noivos, diferentes da sua,
pois queria que tivessem mais tempo para se entrosar. Tinha feito tudo com
muita descrição, procurando horários e espaços isolados, pois sabia que não
podia constranger Beauchamp de forma alguma, o expondo a multidões que o
olhariam com toda uma possível estranheza. Nada poderia estragar aquele final
de semana miraculoso, pois depois de tanto tempo ele finalmente se dignara a
sair da mansão.
Damien tentava não parecer incomodado, usava a máscara lateral e tratou
de sair do heliponto rapidamente para entrar no grande Jeep verde militar,
evitando qualquer olhar inquisitivo por andar assim, fosse dos trabalhadores ou
de desconhecidos que poderiam passar por ali a qualquer momento. Seu pé fora
de casa podia virar notícia nacional e enquanto arrumavam as malas na
bagageira e as duas mulheres se acomodavam no banco de trás, não deixou de
pensar se não havia sido estupidez concordar com tudo aquilo. Sem contar que a
temperatura fria em Belmore contrastava com o calor que se fazia sentir naquela
ilha e ele já não se lembrava de apanhar tanto sol daquele jeito.
— Está tudo bem? — Emma pousou uma mão no seu ombro de uma
forma até gentil, mas a retirou tão rápido quanto veio.
— Sim. — Ele foi breve na resposta e ordenou para que o motorista
ligasse o ar fresco do carro, melhorando assim o percurso que fizeram até o lado
mais reservado na ilha, distante de onde a maioria dos turistas costumavam ficar.
— A viagem foi satisfatória senhorita Johnson?
— Eu adorei, senhor Beauchamp. Foi assustadoramente bom! — Ela
respondeu e abriu uma pequena garrafa de água que tinha na parte de trás, bebeu
um gole. — Não achou, senhorita Charlton?
— Sim... — Emma se recostou. Olhou da assistente para o noivo e
levantou o sobrolho se perguntando por dentro o que tinha perdido? Afinal não
era segredo para ninguém que ele não se dignava a falar com os empregados.
Logo que o carro parou diante do estabelecimento turístico, os três
desceram para a recepção que era toda emadeirada com abajures compridos e
mobílias brancas. Quadros que mostravam o mundo marinho, coqueiros de
madeiras enfeitavam os cantos e conchas e búzios faziam parte da bela
decoração.
— Como assim dois quartos? — Emma se mostrou confusa quando lhes
foram entregues as chaves e o empregado do resort se dignou a acompanhá-los
até aos belíssimos bungalows que estavam virados para o mar azul límpido e
calmo.
— Você será minha mulher, queria dormir sozinha? — Damien fez a
pergunta parecer casual, mas por dentro se roía, afinal Emma não sabia que a
tentava conquistar. Queria criar um sentimento entre os dois, porém foi
completamente distraído quando viu Darcelle interceptar pelo caminho feito de
areia batida, um jovem esbelto com a pele branca bastante bronzeada e um
cabelo preto e corrido.
— William Solis? — A assistente se admirou por vê-lo ali. Era uma
grande coincidência! Ainda mais depois de nunca mais sequer se terem cruzado
novamente desde que ela deixara de limpar no Jornal Tempo.
— Olá... Darcelle, certo? — Olhou desconfortável para a amante que
baixou os olhos imediatamente. — Eu vim produzir uma matéria para o jornal.
— Justificou sem nem ao menos alguém perguntar, fazendo Emma corar
imediatamente.
— Ah, que bom. — Darcelle sorriu sem graça. — Já deve conhecer a
senhorita Charlton, afinal foi você que me apresentou. E o senhor Beauchamp.
— É um prazer! — Solis esticou a mão e Damien demorou para a
apertar, sentia algo de incómodo vindo dele. Olhou para a funcionária como se
esta tivesse como justificar por que se cruzavam com algum jornalista naquele
lado mais isolado da ilha.
— É amigo do namorado da minha prima, a Jamie. Quis dizer... Ex
namorado. — Justificou e não lhe passou despercebida a forma como Emma e
William se olharam de olhos bem arregalados após escutar sua primeira
afirmação. Compreendeu logo que Lorenzo deveria mentir sobre sua prima e
agradeceu por já não estarem juntos. — Então um bom trabalho.
— Obrigado. Adeus! — O jornalista se apressou em sair do caminho e
seguiu deixando-os para trás. Sequer pareceu surpreso por ver o Monstro Du
Camp bem na sua frente, algo que com certeza renderia milhares de jornais
vendidos num único dia.
— Se precisarem de qualquer coisa é só avisar. Estarei por aqui. —
Darcelle advertiu com as mãos no colo e acenou para o casal que entrou numa
casa de madeira de um andar e que era maior que a sua. Por alguns minutos
desejou acompanhá-los, havia uma absurda necessidade de descobrir ainda mais
sobre o Damien que parecia querer emergir por cima da sua má fama.
Ela entrou no seu bungalow, ficando admirada por todo quarto de luxo.
Tudo bem arrumado, com lençóis e toalhas brancas e uma vista de tirar o fôlego
para a piscina natural que ficava por detrás da instância e a outra janela para o
mar que ficava na parte de frente. Também tinha uma pequena varanda de
madeira com cadeiras e uma rede de descanso. Trocou de roupa, levou um livro
na sua sacola e antes de sair para o seu passeio, aguardou o carro que veio buscar
o casal sair e então passou pelo quarto deles para arrumar as peças de roupa que
iriam vestir e se certificar que não seriam incomodados por nenhum
inconveniente como chamadas urgentes ou correios eletrónicos.
Johnson tinha reservado um almoço numa lancha em alto-mar, uma tarde
de mergulhos a dois e uma travessia de cavalos pela piscina natural que os
conduziria para um jantar incrível onde as mesas ficavam dentro da água com
velas flutuantes e comida do bom e do melhor, tudo para que Emma e Damien
tivessem momentos mágicos e inesquecíveis. Não costumava ser invejosa de
todo e se sentiu mal por desejar estar no lugar da outra. Também queria que ele
pudesse se livrar daquela máscara e ser livre por completo, sem medo dos
olhares maldosos.
Darcelle almoçou sozinha e como não gostava muito de nadar no mar
sem companhia, preferiu ficar a beira da piscina a ler o seu livro. Bebeu um
cocktail de frutas e depois passeou por ali perto. Não queria estar longe caso
precisassem dela, mas isso não aconteceu e sequer seu telefone tocou. Apanhou
um dos carros turísticos que a levou a pequena vila onde assistiu a um grupo
musical que tocava na praia, depois se juntou a um grupo de turistas para jogar
voleibol e no fim da tarde voltou para tomar banho e se trocar para o jantar.
Tudo parecia correr bem e se sentiu feliz por isso, mas por dentro ansiava
que Damien dissesse alguma coisa. Queria ouvir a voz cheia de calmaria e poder
mirar naqueles olhos tão azuis como safiras. As cicatrizes a tinham assustado
pela primeira vez, agora apenas faziam parte do rosto de um homem amargo.
Não era errado pensar assim do próprio empregador? Afinal não o queria ver
feliz e casado com uma mulher que amasse e que o amasse de volta?
Suspirou fundo e terminou de se vestir. O lugar era maravilhoso, porém
não compreendia a razão de ter ido com eles. Os empregados da instância
arrumavam tudo e nenhum dos dois parecia ter alguma coisa para ordenar.
Darcelle deixou o sol desaparecer no céu e voltou para a vila ou então morreria
de tédio, comeu com um grupo de finalistas de faculdade e acabou por concordar
em ir a uma festa tropical qualquer. Agora que estava ali, precisava se divertir ou
então morreria de agonia. Queria saber se o dia tinha corrido bem para os noivos,
mas ninguém sequer lhe dava um sinal de vida. Então tentou dançar algumas
músicas, mas não era boa como Jamie a acompanhar as melodias, por isso
acabou por ir beber um suco natural e fresco enquanto se apoiava no balcão e
balançava a cabeça ao som agitado. A maioria das pessoas já se encontrava um
pouco bêbada, pulavam e gritavam sem parar e a distraiam com facilidade, mas
logo sua atenção foi roubada ao ver William Solis descer as escadas de madeira
cheio de pressa e o brilho de fios loiros se fez notar ao seu lado tão rápido
quanto, mas Darcelle não conseguiu identificar.
Se afastou do balcão rodeado de tochas acesas e se demorou ao pagar a
sua bebida, mas correu atrás com suas sandálias e o vestido simples, percorrendo
as ruas estreitas e bonitas onde várias festas e atracções interessantes
aconteciam. Arfou ao se dar conta que o tinha perdido de vista, mas não queria
acreditar naquilo que seus olhos poderiam ter notado, até porque não possuía a
certeza de nada. Não gostou da sensação que morou em seu peito e se apressou
em pegar um carro que a levaria de volta até ao resort onde estavam hospedados.
As mãos estavam frias quando chegou, sabia que não podia bater na porta do
casal, correndo riscos de os interromper, mas travou ao sair do veículo e avistou
Damien sentado na areia branca em frente a uma das várias fogueiras que se
espalhavam pela ilha.
A lua lá no alto brilhava, mas ele bebia uma garrafa pelo gargalo, um
gole atrás do outro, e estava completamente sozinho.
— Senhor Beauchamp! — Exclamou ao se aproximar depois de tirar as
sandálias e atravessar a areia. O vestido dela era leve e de alças, assim como o
perfume barato que se espalhava pelo leve ar que circulava. Era magra e de
estatura média, sem a voluptuosidade da prima.
— Ah, você! — Ele não a encarou duas vezes, apenas estava com as
maçãs do rosto ruborizadas. Balançou a cabeça. — Não precisa ficar!
— Onde está a senhorita Charlton? — Teve que perguntar para afastar
todo o incómodo preso em seu peito e se sentiu muito triste quando Damien riu
de um jeito sarcástico. Agachou ao lado dele e levou as mãos para cobrir a
própria boca.
— Não está. Ela nunca está e sabe por quê? — Perguntou e desta vez
voltou o rosto parcialmente coberto pela máscara para a encarar. — Porque não
querer estar por perto é uma mensagem.
— O que aconteceu?
— A Emma reclamou do sol, da comida, tinha medo dos cavalos, de
mergulhar e não queria jantar com os pés dentro da água. Também estava com
dor de cabeça para ir a uma festa privada no barco. — Levantou o copo ao ar e
simulou um brinde fantasma. — Então foi descansar.
— Oh, céus! Planeei tudo errado, deveria ter pensado em alguma coisa
mais sofisticada. Eu queria algo romântico, mas...
— Claro que não, senhorita Johnson. — A cortou prontamente. — Eu já
gostei de alguém certa vez e não importava qual fosse o lugar, desde que fosse
com aquela pessoa que então tudo estava perfeito. — Deu outro gole e em
seguida pousou a garrafa de whisky quase no fim. — Eu é que me iludi com suas
palavras de quem tem sonhos de contos de fadas. O meu casamento é um
contrato e assim deve permanecer.
— Não! — Ela negou. — Se já soube o que era gostar uma vez, por que
iria se contentar com tão pouco?
— Porque não quero e nem vou correr riscos.
— Pois corra riscos na sua vida. Se tudo correr bem, poderá liderar e se
correr mal, poderá guiar. O que importa é não se limitar, o mundo tem biliões de
pessoas e se correu mal com um punhado delas, pode correr bem com a seguinte.
Não desista!
Damien prendeu os lábios, toda aquela ladainha começava a irritá-lo. Era
bom ter sonhos, mas acordar para a realidade podia ser crucial.
— Isso tudo, foi uma falha! — Afirmou com certo pesar e então se
levantou, abandonando-a em seguida. Mais uma vez Darcelle se ressentiu por
vê-lo daquele jeito, doía nela de um jeito que não saberia explicar e tentou
procurar formas de reparar o seu feito, mas não encontrou.
Também se levantou e caminhou em passos lentos pela beira da praia. A
água fria molhava seus pés e as estrelas cintilavam lá no alto. Quem é que não
quereria um homem disposto a melhorar em prol de uma relação saudável, só
porque tinha um rosto parcialmente deformado? Era estranho, porque mesmo
com toda a rudeza, Darcelle só o queria confortar. Contudo, era uma completa
leiga no amor e como tentar ajudar os outros se nunca tinha vivido algo
parecido?
Quando subiu em direcção ao quarto, percebeu que Damien estava do
lado de fora do seu bungalow, sentado no degrau de madeira.
— Emma não está aqui. — Estava sério quando disse e aquela
informação a açoitou de um jeito que quase a desequilibrou.
— Deve ter ido apanhar ar, visto que estava com dor de cabeça. — A
assistente tentou encontrar alguma justificação. — Ou foi a sua procura, quem
sabe para se desculpar por hoje.
— Teria ligado para o meu telefone. — Ele foi irónico ao carregar no tom
óbvio da sua afirmação.
— Quereria lhe fazer uma surpresa?
— Ou garantir que não nos encontrássemos quando fosse para dormir?
— Sentia sua autoestima balançar em pedaços dentro do seu peito. Não porque
morria de amores por Emma, e sim porque tinha tido a ousadia de tentar por algo
que não valia a pena.
— Eu lhe faço companhia. — Darcelle se sentou no degrau ao lado dele.
Permaneceram quietos, ouvindo a noite e as ondas mar que contava suas
histórias antes de morrer na areia. Estavam tão perto um do outro, seus braços
quase se tocavam e as respirações seguiam o mesmo ritmo.
— O senhor Beauchamp tem razão. — A assistente acabou por quebrar o
silêncio que os envolvia. Engoliu em seco. — Eu vejo o mundo com outros
olhos, toda a minha vida esperei e acreditei num grande amor. Li romances e
assisti filmes maravilhosos, não que eu não saiba que na vida real é diferente,
mas o que me incomoda é o facto de todos aceitarem tão pouco nesse quesito.
— Seu mundo é belo, mas também precisa ver Para Além da Beleza.
— Eu já compreendi. Me perdoe por fazê-lo passar por tudo isto, não se
pode tentar agradar ao outro constantemente se isso for uma agressão a nós
mesmos.
— Não precisa se desculpar. É bom ter a certeza de que não sou digno de
receber amor, não quando nunca o plantei.
— Pelo menos desta vez tentou, senhor Beauchamp. Talvez não seja
ainda a época da colheita.
Damien a olhou de soslaio e deixou um sorriso fraco destinado à ela, pois
era satisfatório ver como era sempre tão optimista. Ficaram novamente em
silêncio a observar o céu pintado de pontos brilhantes, e era madrugada quando
Emma apareceu completamente feliz, daquele jeito que a assistente a via quando
estava longe do futuro marido.
— O que fazem aqui? — Se espantou quando os viu levantar e o sorriso
morreu em seus lábios. Sua tez empalideceu e engoliu saliva várias vezes.
— Estávamos a esperando. Onde esteve? — Damien tinha uma ruga
amarrada na testa e estava furioso.
— Saí para espairecer.
— E a sua dor de cabeça? — A voz rude dele a questionou.
— Passou.
— E por que não me chamou? — Ele continuava a perguntar, mas
Darcelle decidiu se afastar para não ver a briga entre os seus patrões. Andou
devagar ainda a ouvir as vozes exaltadas e foi tomada por uma fúria em seu
peito.
Voltou a passos largos.
— A senhorita Emma deveria estar contente por se casar com um homem
que está disposto a partilhar muito mais do que um simples contrato com
benefícios. O senhor Beauchamp pode não ser o mais bonito, mas é só um rosto
e ainda não teve tempo de vasculhar o que está lá por trás desse homem que está
se esforçando para que haja o melhor entre vocês, mais do que dinheiro e uma
companhia fria. Em pouco tempo já o pude conhecer melhor que a senhorita, só
porque achei válido. Vejo que não tem interesse nenhum, e mesmo assim,
continua. O que me dá pena, porque isso faz com que toda sua beleza e
inteligência se transformem em algo completamente fútil! — Darcelle mais uma
vez deixou a emoção a dominar e explodiu tudo o que pensava. Depois do que
julgava ter visto no bar, perdeu a razão e mesmo sabendo que era totalmente
errado, acabou por não se conter. — A senhorita Charlton sempre reclama sobre
o quanto o senhor Beauchamp é rude e mau humorado, mas sempre que há
algum indício de mudança, então foge. É porque somos tão bons a julgar os
outros que nunca tentamos compreender ou aceitar as mudanças sem ter que
mencionar o passado. E por isso ficamos estagnados.
Emma a encarou incrédula e com as narinas dilatadas como se tivesse
presenciado um ultraje.
— Vá para o seu quarto, senhorita Johnson. — Damien cortou o clima
pesado com suas palavras calmas, mas não a olhou sequer uma vez.
Ela sentiu uma facada no peito e baixou os olhos antes de dar meia volta
e sair dali quase a correr. Seu coração batia com a vergonha do seu atrevimento e
mal conseguiu dormir, se revirando entre os lençóis até o dia surgir. Decidiu ir
embora no domingo logo pela manhã, mal tinha comido e não queria enfrentar
aqueles dois naquele momento.
Voltou para casa num ferryboat que levava os turistas e depois apanhou
um táxi até a sua casa. Não era covarde, ia enfrentá-los na manhã seguinte, mas
só queria poder respirar fundo. Muitas vezes sua mãe avisava-a para ter cuidado
com o que dizia, pois desde criança sempre fora frontal demais. Algo que em
algumas situações poderia ser desfavorável e aquela era uma delas, no entanto
não se arrependia, alguém precisava elucidar Emma. A Johnson achava Damien
belo quando baixava as guardas e tentava lutar contra a parte feia que estava no
seu interior, e não sabia explicar por que só de o imaginar sentia algum aperto no
coração.
Passou o dia a limpar e arrumar a casa para se distrair, cuidou da roupa e
tentou cozinhar, nunca era tão bem sucedida quanto Jamie e por isso optou por
um prato simples que não precisasse de muito para ficar bom. Com aquele
trabalho tinha pensado em juntar algum dinheiro para voltar a estudar, o único
problema é que não sabia se queria continuar com Literatura. Ela até gostava,
mas não era sua paixão.
Agora duvidava que ainda fosse trabalhar com Emma, não depois do que
tinha dito e feito. Por muito que conversassem abertamente sobre muita coisa,
sabia ter extrapolado os limites e também não queria mais compactuar com toda
aquela farsa.
Acabou por adormecer na sala a assistir mais uma de suas séries
favoritas. Tinha em vão esperado a prima para jantar e era agora acordada pelo
som da campainha. Se dirigiu até a porta com um ar preocupado, quem seria
àquela hora?
― Étienne! ― Exclamou. ― Aconteceu alguma coisa?
― Senhorrita Johnson? Desculpe pela horra. ― O motorista parecia um
pouco afoito. ― O Senhor Beauchamp pediu para chamá-la. Ele está lá em
baixo, no carro.
A assistente arregalou os olhos sem poder acreditar e um turbilhão de
sensações invadiu o seu peito.
O que Damien queria?
Vida Sem Máscaras, A

"Ao longo do teu caminho conhecerás, todos os dias, milhões de
máscaras e pouquíssimos rostos."

EMMA demorou a acordar na manhã seguinte, fosse pelo cansaço ou


pelo medo de encarar o noivo com quem não tinha falado desde que se foram
deitar naquela madrugada. Se arrumou sozinha, observando que já passavam do
meio-dia e deixou o bungalow só uma hora depois, adiando o confronto que
sabia que se seguiria.
Se assustou ao cruzar com William pelo caminho e olhou para os lados,
correndo para trás de outras pequenas casas que estavam por ali. Por sorte, quase
todas estavam vazias, pois eram poucas as pessoas que gostavam de se hospedar
tão distante da vila.
— Ficou louco? — Perguntou de olhos arregalados. Suas mãos estavam
geladas, mas seu coração batia com muita força dentro do peito. Passou a língua
pelos lábios, era verdade que odiava todo aquele calor.
— E não devia? Não estou suportando mais essa vida que estamos
levando, ainda mais depois do que me contou ontem de noite! — A voz de Solis
era muito galanteadora, até porque agora costumava cobrir muitas das notícias
que eram passadas pelo canal televisivo do Jornal Tempo. A promoção tanto
esperada.
— Shhh. — Emma o calou, pousando a mão por cima dos lábios do
amado. — Não quero falar sobre isso agora, porque nem faço ideia de como
resolver.
— Resolver? — Ele se mostrou indignado. — A questão é simples, eu te
amo e você me ama. Só estamos aqui porque a louca da sua irmã insiste com
tudo isso sem se importar com o que pode causar. Não aguento mais sequer
imaginar você dormindo com aquele...
— Não temos dormido juntos nos últimos tempos. Damien anda...
Estranho — comentou, não porque se ressentisse de todo, mas eram claras as
mudanças no seu comportamento. Ter saído da mansão para viajar era uma
delas. — E nós devemos isso para Joanne.
— Não devemos nada, Emma. Ela é sua irmã e nos ajudou porque lhe
competia, mas já chega desse sacrifício idiota! — Praguejou, seu rosto ficava
mais marcado quando se mostrava irritado. — Acabe com isso logo.
— Não posso. — Ela segurou as lágrimas que agora saíam facilmente. —
Não posso.
Emma se afastou com dor no coração por saber que o amado tinha a sua
razão, mas tinha feito uma promessa e a iria cumprir até onde pudesse. Andou
pelo caminho de areia batida e soltou um longo suspiro ao entrar para o
restaurante que estava climatizado. Avistou Damien sentado numa mesa no canto
sozinho e pelo prato vazio, já tinha almoçado. O estômago dela se embrulhou.
— Boa tarde.
— Boa tarde, senhorita Charlton — respondeu, e ela não soube do que
mais sentiu medo, se do olhar vazio ou da voz mais calma que o mar sereno que
se apresentava do lado de fora. — Sente-se.
— E... — Olhou para os lados. — A Darcelle?
— Recebi a informação de que a senhorita Johnson partiu esta manhã
logo muito cedo.
— Partiu? — Pestanejou. — Sem ao menos falar comigo? Será que ficou
com medo depois do que aconteceu?
— Medo? — Damien teria rido. — Das várias formas que usaria para a
definir, medo jamais figuraria essa lista.
Emma pigarreou, mas foram interrompidos pelo servente que trouxe o
cardápio.
— Só quero uma água com gás — informou e percebeu os olhos azuis
que a fitaram quando o trabalhador se afastou. — Estou sem apetite.
— Pois bem, acredito que podemos ter uma conversa antes de voltarmos
para casa. — Até parecia uma sugestão pela forma como Beauchamp empregou
as palavras, mas era uma afirmação.
— Senhor Beauchamp. — Ela tratou de começar numa táctica de defesa
antes de um possível ataque. — Pretendo ser a mais sincera possível e a verdade
é que não o amo. Eu tento encontrar alguma coisa em comum e somos
verdadeiros pólos opostos, então o que me resta fazer é seguir aquilo que prefere
como me foi dito desde o início. Contudo, se me permitir outra oportunidade
depois da nossa festa de noivado, gostava realmente de me aproximar mais e me
afeiçoar a sua pessoa.
Damien permaneceu calado quando trouxeram a água da noiva e a
assistiu beber com muita sede.
— A senhorita pensa que a amo? — Indagou em descrença. —
Provavelmente isso está longe de acontecer.
O sobrolho dela se arqueou para o alto.
— É uma jovem bonita e que desperta algum interesse, nada mais que
isso. Eu estava satisfeito com cada um no seu canto, até ao momento em que
acreditei que talvez a pudesse ofertar algo mais do que um casamento tão frio.
Desmitificando o meu egoísmo, corri riscos os quais não me arrependo. A
questão é se vale a pena ou se pretende continuar como estávamos?
— Não quero viver um casamento insípido, de forma alguma. Se não for
por amor que seja por pelo menos uma bela amizade. — Emma estendeu a mão
para tocar nas dele que estavam repousadas por cima da mesa. Naquele
momento se lamentou por si e por William, mas precisava facilitar a própria vida
se queria manter aquele contracto.
Damien retirou as mãos com frieza.
— Vá arrumar suas coisas porque não tem mais assistente. — Olhou para
o relógio. — Precisamos partir.
— Irá despedir a Darcelle?
Os olhos azuis escureceram.
— Senhorita Charlton, o que a faz acreditar que a senhorita Johnson
ainda quererá trabalhar para si? — Tão duro quanto podia ser, espetou facas
afiadas e invisíveis na jugular da noiva que se levantou após pedir licença e saiu
deixando-o para trás. Beauchamp a acompanhou com atenção, seus passos muito
comedidos e as roupas de luxo não a completavam por completo. Tal como nele,
faltava vida em Emma. Os dois juntos não passavam de uma profusão de
frialdade.
Ela foi para o quarto, pela primeira vez arrumou a mala de ambos e
aguardou que o noivo chegasse junto do Jeep que os levou até ao heliponto. A
viagem de regresso foi feita em silêncio, Damien ficou a observar o céu pela
janela e Emma dormitou mais um pouco.
Logo que chegaram em Belmore, o frio lhes trouxe para a realidade, e
foram direto para a mansão. Se separaram cada um no seu quarto, e ele tomou
um longo banho e se demorou a vestir, se dando conta de não ter nenhum
interesse em jantar com a noiva. Sentia a casa mais vazia do que antes, parou
para observar a caixa com a relíquia da família, sabendo de imediato que não o
daria para Emma no dia da festa. Talvez com o tempo, quando sentisse que
estavam de alguma forma mais conectados.
A verdade é que fazia tempo que não se colocava assim a pensar
profundamente na sua própria vida, talvez acostumado pela rotina dos últimos
anos, mas não restavam dúvidas que aquela viagem lhe tinha aberto os olhos
para sua forma de viver!
Ele saiu do quarto e desceu as escadas, chamando por Étienne.
[...]
Houve um minuto de silêncio enquanto Darcelle parecia processar a
informação. O motorista a encarava com um ar preocupado, se perguntando o
que teria aquela jovem feito até conseguir que o senhor Beauchamp abandonasse
a mansão. Ele nunca fazia isso para ir a casa de alguém. Era praticamente
impossível.
— Parrece que não é tão ingénua como pensei. — Étienne não resistiu a
alfinetar, mesmo vendo o quanto a colega parecia preocupada. — Me ensina esse
trruque que posso tentar fazer com que o Monstrro aumente meu salárrio.
— Estou nervosa. — Darcelle se afastou da porta, fechou o casaco e
calçou os sapatos, saiu um tanto reticente com o coração a ecoar como se fosse o
ritmo de tambores africanos.
— Então é porque aprrontou alguma coisa. — Ele decidiu, estava parado
a observá-la circular de um lado para o outro, até se dignar a sair e trancar a
porta.
— Posso ter falado um pouco mais do que devia. — A garganta dela
secou imediatamente, a medida em que descia as escadas mal iluminadas e os
degraus partidos, até ver o Bentley Mulsanne prateado com os vidros escuros e a
destoar com o resto da rua com toda a sua elegância e luxo.
— Espere. — Ela pediu do lado de fora, seus lábios estavam pálidos. Não
se lembrava de ficar tão atordoada daquele jeito só por receber uma visita. —
Sobre a senhorita Charlton... Eu penso que a vi com...
— É um jovem alto, pele bronzeada e cabelo prreto. Um pouco bonito.
— Étienne não prendeu a língua, até porque não era o seu forte. Não esperou
para ver a cara de choque dela e correu para abrir a porta do veículo, mas se
afastou para longe do carro logo após a fechar lá dentro, deixando os dois a sós.
— Senhor Beauchamp, eu... não estava a espera. — Johnson disse após
entrar e se sentar, agradeceu mentalmente pelo calor do interior do veículo, tanto
quanto pelo conforto dos bancos revestidos em couro. Nem parecia que há
poucas horas estavam numa praia maravilhosa e cheia de sol para agora estarem
na realidade daquele inverno.
— Eu sei que não, senhorita Johnson — respondeu prontamente. Na
verdade nem ele esperava fazer tal coisa. Engoliu em seco, pois conseguia sentir
o cheiro a chocolate que exalava da sua boca. Os olhos azuis se prenderam no
contorno dos lábios que quase imitavam um coração. E eram tão carnudos e
delicados. — Boa noite.
— Me desculpe, boa noite. Quer subir? — Convidou mesmo sabendo a
resposta, ainda assim sabia ser seu dever demonstrar cortesia. Era aquela a
educação que os pais a tinham dado.
— Não. Não. — Damien despertou do transe e levantou os olhos para os
fixar nos olhos escuros. Eram pretos e brilhantes como a noite, mal se podia
distinguir a pupila da íris. Se descobriu nervoso. — Sei que já é tarde, mas... —
Como encontrar as palavras certas sem parecer um desesperado? — Eu queria
trocar algumas palavras consigo e não me valia esperar pelo amanhã.
— Veio me despedir pessoalmente? Por favor, se foi pelo que disse a
senhorita Charlton, não precisa de gastar seu tempo a vir...
— Shhh! Se recomponha, senhorita Johnson. Não viria aqui para isso!
Christian Dash trata da parte dessas burocracias — garantiu com um pouco de
impaciência na voz e passou a mexer a perna continuamente, apenas para não
estar quieto. — Eu tenho escutado cada palavra que me diz e acredite ou não, já
ouvi milhares de vezes as mesmas coisas e vezes sem conta.
A assistente o olhava de cenho unido na própria confusão, os olhos
inquietos dentro dos orbes não pareciam querer sossegar. Virou o torso de modo
a ficar quase de frente tornando a proximidade deles, mais intensa, como se de
tal forma pudesse ouvir com atenção cada palavra que lhe era dita.
— [...] Entretanto, a forma como você as diz tem um certo... — Não
queria usar a palavra poder, por isso se demorou na busca para achar a certa. —
Impacto! E nos últimos tempos me encontro a repensar em cada coisa com certa
cautela.
— Só digo o que penso. — Ela se defendeu.
— Eu sei, eu sei. É por isso que estou aqui. Preciso lhe fazer algumas
perguntas e peço para que seja sincera. — Damien permaneceu calado e vendo
que Darcelle aguardava, então prosseguiu. — A senhorita acha que sou uma
pessoa infeliz?
— Primeiro gostava que parasse de me chamar de senhorita, caso queira
ter uma conversa comigo. Sei que prefere a formalidade, mas nesse caso peço
que me trate apenas por Johnson.
O Monstro Du Camp assentiu mesmo sem querer. Tirar a senhorita e
deixar apenas o sobrenome parecia algo completamente tolerável.
— E sim, eu acho que é uma pessoa infeliz.
— Por que razão? O facto de eu não estar sempre a cantarolar ou a
saltitar não me faz alguém propriamente infeliz, sen... Johnson.
— Uma pessoa que vive confinada na sua mansão, que se esconde por
trás de uma máscara e contrata uma esposa sem nem se importar em amar e ser
amado. É essa a possível definição de uma possível felicidade?
— E quando isso foi sinónimo de infelicidade? Já pensou que têm
pessoas que apenas gostam de estilos de vida diferentes? Ou que não almejam
certas coisas comuns desejadas por todos os outros?
— Falando de si, a mim parece que se acomodou a sua condição. Que
não acredita no amor e acha que esse é o modo de vida perfeito apenas para não
correr o risco de sofrer caso dê errado. — Darcelle encarava a máscara a cobrir
parcialmente o rosto do homem a sua frente. — É um homem jovem. Acha
mesmo que ninguém o pode amar devido a sua aparência? Se não mostrar o seu
lado bom interior, aquilo que realmente pode ser, como pessoas que desejam
algo mais do que dinheiro podem se aproximar?
— E o que acha que devo fazer? Passar a rir para qualquer um que cruze
o meu caminho apenas para que gostem de mim ou para que não sintam nojo? —
Damien perdeu a calma.
— Primeiro tire essa máscara! — Ela fez menção de mover as mãos, mas
ele as segurou a meio do trajeto. Se encararam por alguns instantes, um sentia a
textura diferente da pele do outro. — Tire a máscara.
Os carros passavam do lado de fora, as luzes dos faróis os iluminavam
por alguns segundos antes de voltar a escuridão do interior do carro. Beauchamp
largou as mãos de Darcelle e permitiu que lhe tirasse a máscara. Prendeu a
respiração por alguns segundos.
— Se alguém não gostar de você pela sua cara, sua pele ou nível, então
essa pessoa não merece ser seu amigo ou amado. Quem sentir nojo e se afastar, é
porque não vale a pena. Quem gostar do senhor, estará do seu lado
independentemente do que for — afirmou num murmúrio vago e passou os
dedos finos no lado deformado do rosto. — O senhor tem saúde e dinheiro, já
viu apenas o que falta? A felicidade.
Damien fechou os olhos ao sentir o toque, um movimento instintivo.
Ficou sem palavras por alguns segundos, não sabia o que dizer.
— Acorde e vá trabalhar na sua empresa, depois almoce em algum
restaurante, faça uma corrida. Tem tanto dinheiro pode viajar mais, sair para a
noite. Deixe que o fotografem e que vejam que está de bem com a vida. Dê as
caras nos projetos beneficentes. Viva, senhor Beauchamp. Apenas viva!
— Sem máscaras.
— Sem máscaras.
Abriu os olhos azuis para observar Darcelle mais uma vez. Todos ao seu
redor pareciam conformados com a máscara em seu rosto, nunca lhe tinham dito
para viver sem ela.
— Você é feliz, Johnson?
A pergunta encontrou a assistente de surpresa e baixou a mão de repente,
como se só tivesse se dado conta do que fazia naquele instante.
— Nunca vivi uma grande paixão, mas fui criada com muito amor. Tenho
um bom emprego ou tinha, podia ajudar a pagar a casa. — Olhou para o
apartamento por cima do ombro, através da janela e voltou a encará-lo. — E
tenho uma prima chata de quem gosto muito.
— Eu sei, o Dash lhe deu um carro e pelos vistos ela não ficou muito
satisfeita, não é?
A assistente arregalou os olhos pela surpresa e o Monstro Du Camp
percebeu o erro que tinha cometido. Recostou-se melhor no carro.
— Vou promover você, Johnson. Não quero que fique a tratar das
mesquinhices da senhorita Charlton. Sequer imaginava que vivia aqui. — Olhou
ao redor para os prédios mal pintados e a estrada esburacada. — Vai trabalhar na
Beauchamp.
— Como? Não posso crer!
— É sábia demais para ser tão mal aproveitada.
Ela cobriu a boca com as mãos espantada pela felicidade que a acometeu,
contudo não evitou pensar no assunto sobre a prima. Como é que Christian Dash
tivera a liberdade de a oferecer um carro? Não ia perguntar para não expor
Damien, mas esperava que Jamie se dignasse a contar.
— Muito obrigada, senhor Beauchamp. Eu não sei como agradecer. —
Ela estava muito feliz, ia finalmente ter a oportunidade de criar uma carreira
mais administrativa e de trabalhar numa das maiores empresas do país. Ao
mesmo tempo sentiu uma pequena tristeza por não voltar a ter Damien por perto.
Estaria ele a afastá-la? E por que se sentia daquele jeito?
— Seja feliz. — Ele respondeu.
— E sobre a senhorita Charlton eu queria pedir desculpas pelo que falei.
Não deveria ter me intrometido daquele jeito. Fui imprudente. — Sabia bem que
em parte tivera razão, mas não lhe competia ser justiceira de um casal.
— Não se preocupe. Nós tivemos uma conversa diferente e foi graças ao
que disse. — Não deixou detalhes para ela, mas Emma tinha prometido que
iriam tentar. O único problema é que estranhamente ele não tinha ficado muito
feliz com isso.
[...]
Damien chegou à mansão completamente eufórico e não sabia dizer a
verdadeira razão daquilo. Tomou outro banho para aliviar a tensão e se demorou
em frente ao espelho, pela primeira vez enfrentava com muita atenção o seu
rosto desfigurado pelo acidente. Era horrível, mas a forma como Darcelle o tinha
tocado com tanta subtileza ainda lhe varria a mente e era como se pudesse sentir
o toque de seus dedos ali em suas Cicatrizes.
Tinha visto luz dentro daqueles olhos escuros e relembrar a alegria dela
quando soube que iria trabalhar na Beauchamp fazia com que ficasse
estranhamente feliz. As pessoas sabiam dar valor a coisas que eram pequenas no
seu ponto de vista e isso o fazia perceber que nem tudo naquele seu próprio
mundo cheio de preconceito estava perdido. Fazia algum tempo que a presença
de Darcelle o agraciava como um certo conforto que não mais se lembrava de
ter. Ela era genuína em tudo e as palavras despejavam sabedoria que muitas
mulheres daquela idade não tinham.
Vestiu o seu pijama sem pressa e se deitou na cama, cansado pela viagem
curta e se permitiu pensar como seriam os dias agora que a funcionária estaria
distante. A presença dela se tinha tornado um hábito no seu quotidiano daquela
casa solitária, os empregados nunca se aproximavam, pelo menos não com toda
aquela impetuosidade.
Sentiria a falta dela?
Levantou da cama, andou até ao grande piano preto e se lembrou de
como era tocar nele. Teria perdido a prática? E andar de cavalo com o vento a
beijar sua cara, quão bom podia ser desfrutar daquela sensação?
Depois do noivado, Emma tinha prometido estar menos ausente e que
estaria disposta para tentarem criar algum laço mais profundo para uma possível
futura relação verdadeira. Finalmente ele então poderia voltar a amar e a ser
amado?
Era dela que queria um amor?
— Senhor Beauchamp? — Emma entrou de rompante após bater duas
vezes, mas não aguardou a autorização porque tinha decidido fazer uma surpresa
e o encontrar no quarto dele. Segurava uma bandeja com um bule de chá e outro
de leite. Usava apenas uma camisola, mostrando o interesse em agradar, mas
quando este se virou teve que segurar as próprias mãos que estremeceram. —
Desculpe.
Damien viu como os olhos dela esquivaram do seu rosto sem máscara,
percebeu como a noiva empalideceu e o nariz se contorceu ao de leve, mesmo
que tentasse evitar.
— Vá se deitar, senhorita Charlton. — Não houve nenhum pesar na voz
calma ou vergonha. — Não a quero em minha cama esta noite.
Emma acenou com a cabeça sem se atrever a olhar duas vezes. A imagem
do rosto maculado a apanhou tão desprevenida quando podia prever, mas a frase
que se formou nos lábios dele foram ainda mais impactantes. Não esperava ser
dispensada daquele jeito e sem sentir a raiva sempre latente.
— Boa noite. — Se despediu e saiu apressada, fechando a porta com
força.
Damien voltou para a cama e se deitou de lado, imerso em seus
pensamentos, acreditava que era apenas a amizade que não dispensava em
Darcelle, senão não seguiria com o noivado e o casamento marcado de ânimo
leve. Nunca tinha deixado ninguém de fora se aproximar tanto, seria essa a
justificação para o coração que batia acelerado? A possibilidade de enfim ser
aceite novamente e não mais visto como um Monstro que pagava para ter
alguém? A verdade é que nunca tinha sido boa pessoa antes e agora se via em
êxtase por ter visto a alegria nos olhos daquela jovem tão simples e diferente de
tudo o que já tinha conhecido até então.
Foi nela que pensou quando adormeceu.
Retrato, O

"Nada torna um rosto mais impenetrável do que a máscara da bondade."

N
— [...] ÃO precisava ter ido embora, Darcelle. — Emma disse pelo
telefone, encostada num pilar comprido com desenhos abstratos feitos à mão. —
Poderíamos apenas conversar.
— Eu não sabia como olhar para você, e não, não foi pelo que eu disse
na ilha. — Fez uma pausa demorada. — Eu vi você com o William Solis numa
festa num bar na vila.
O rosto de Charlton enrubesceu de imediato e ficou sem saber o que
dizer por muitos segundos.
— Não sei como lhe explicar sobre isso.
— Não irei me intrometer na sua vida, mesmo que ache errado.
Agradeço por não mentir.
— Acima de qualquer coisa lhe desejo o bem do fundo do coração, não
sou uma pessoa má por conta de atitudes erradas. Fiquei feliz de saber que está
trabalhando na Beauchamp e lhe desejo a maior sorte do mundo.
— Obrigada — agradeceu. — Desejo o mesmo para você.
— Eu... Eu não tive nenhuma amiga antes. Faço questão que venha ao
noivado, até porque foi ideia sua. Não me julgue, por favor. — Apertou o
celular. — Ficaria muito feliz de ver alguém que realmente se preocupa com
todos ao seu redor, fazendo parte desse dia.
— Eu não sei... Seria uma farsa a qual não tenho vontade de
testemunhar.
— O Damien também ficaria feliz. Ele a tem em maior estima. — Emma
apelou. — E é só uma festa no final das contas. Nós os dois chegamos a um
entendimento quanto ao nosso casamento. Venha, por favor.
— Tudo bem, Emma. Agora tenho que ir trabalhar, as coisas estão
complicadas por aqui e estou aprendendo o máximo que posso.
— Então até no sábado, Darcelle. Adeus. — Desligou a chamada com
um sorriso verdadeiro nos lábios. Apesar de tudo, tinha um apreço pela ex-
assistente, principalmente por ser tão genuína.
Joanne se aproximou de cenho arqueado.
— O que está fazendo parada? Temos muito trabalho aqui! — Rosnou,
impaciente.
As duas estavam no grande salão de festas da mansão Beauchamp,
apreciavam os últimos retoques para a festa de noivado no sábado seguinte. A
decoração luxuosa mais parecia um casamento pelas incontáveis flores, carpete
vermelho e uma pista de dança personalizada. Os empregados andavam de um
lado para o outro sem parar e as Charlton tomavam nota do que estava certo ou
errado.
— Foi uma má altura para você ter perdido a assistente pessoal, aquela
negrinha era bem eficiente — comentou a mais velha, atenta nos vasos de
porcelana que eram colocados estrategicamente nas mesas. — Cuidado para não
partir!
— A Darcelle deixou tudo pronto antes de partir. Ela virá para a festa —
respondeu Emma, um quanto impaciente. Tinha passado duas noites seguidas na
mansão e sem ver William. Seu coração apertava por ter que fingir interesse
numa maldita relação indesejada. O combinado tinha sido diferente e agora era
obrigada a fazer outro papel que não estava muito disposta e nem o noivo
parecia estar.
— E por que ela faria isso? — Joanne uniu o sobrolho muito bem feito,
os olhos castanhos pareciam cansados.
— Porque eu sou boa pessoa, irmãzinha. Se tivesse o teu feitio, nem
imagino! — Provocou enquanto observava a montagem da mesa principal dos
noivos e as câmaras de filmar montadas por um grupo do Jornal Tempo. Não
quis contar que estava numa tentativa desnecessária de se redimir pelo que
fizera, até porque sua irmã ia ter um surto se soubesse que tinha levado William
com ela para a instância turística. — E já tinha dito que ela poderia trazer uma
companhia.
Joanne revirou os olhos negando com a cabeça severamente, ainda assim
não protestou, eram apenas duas pessoas em cem convidados. Era suposto ser
um número maior, mas Damien teria proibido estritamente.
— Veja se não mete os pés pelas mãos, Emma. Eu fiz um sacrifício por
você certa vez e isso me pesa até hoje. — Cobrou diretamente e viu quando a
belíssima irmã mais nova parou de andar para a encarar.
— Estamos juntas nisso, eu já disse, Jo! Eu sei muito bem o que fez por
mim, serei grata para sempre. Eu e o Will.
— É bom, mesmo! — Rosnou Joanne e caminhou a passos largos até
tirar uma caixa de brindes da mão de um carregador que a levava sem cuidado.
Só depois de gritar com o homem é que voltou para perto da irmã. — E a sua
menstruação, já veio?
Emma esbugalhou os olhos azuis e sua face ficou igual um tomate.
— Que absurdo, está controlado o meu ciclo? Você não é minha mãe,
Joanne.
— Você já me falou que Damien Beauchamp usa proteção, agora quanto
ao William eu duvido muito. Não deite tudo a perder, Emma.
— Pare, por favor! Não sou nenhuma criança — resmungou e saiu a
caminhar para longe da outra, sentia o coração a bater dentro do próprio peito.
[...]
Darcelle estava como um autêntico peixe fora da água.
Os primeiros dois dias na Beauchamp tinham sido um pouco
complicados, pois todo mundo parecia ter seu próprio ritmo e já saber o que
fazer, então a deixavam meio de lado, lhe pedindo para tirar cópias e ir buscar
cafés e rosquinhas de vez em quando. Christian Dash tinha sido simpático e lhe
instruíra o quanto podia, mas a sua carga de trabalho era superior a qualquer
uma, sendo o administrador da empresa e responsável pelos recursos humanos.
Também não conseguira falar com Jamie, esta vivia escondida entre o
hospital e o próprio quarto, continuando a subir o transporte público e deixando
o belíssimo carro lá em baixo parado. Só não o roubavam pelo sistema avançado
do alarme bem visível a qualquer um. Dash realmente era um homem prevenido.
Darcelle assinara o contrato de trabalho com regalias inimagináveis.
Quem poderia dizer que o Monstro Du Camp dava condições tão favoráveis a
seus empregadores? Era de se esperar a quantidade de sorrisos dos trabalhadores
daquela empresa. Jamie de certeza saberia se impor naquele sítio, com toda a
inteligência e eficiência, de certeza já estaria debatendo algum assunto com um
dos colegas.
— Ei, você. — A mulher da recepção surgiu na porta da sala destinada à
Darcelle. — Me falaram que é a senhora das cópias.
Johnson uniu o sobrolho, ainda não tinham-lhe designado nenhuma
função concreta, pelo que se limitara a organizar sua sala, conhecer os
departamentos, os responsáveis e requisitar material necessário, entre outras
coisas básicas.
— O que me espanta é a senhora ter subido até aqui para pedir cópias —
redarguiu de forma pouco simpática e encarou a recepcionista com a igual cara
de poucos amigos. — É o seguinte, eu ajudo o pessoal quando estou lá em baixo
ou nos seus departamentos. Nunca ninguém subiu até aqui para pedir cópias e
muito menos essa função me foi atribuída.
— Ficar sentada para receber um salário gordo no fim do mês não faz
sentido. Eu tenho impressos de visitantes para tirar cópias e mandar para o
departamento de segurança, mas também tenho que receber as pessoas na
entrada. Não é justo sofrer enquanto tem você aqui apenas sentada.
— Então pode tirar as cópias que eu fico na recepção até você acabar. —
Johnson tinha pensado numa resposta ainda menos agradável, mas não lhe
parecia correto comprar briga tão cedo com os novos colegas. Ela queria ser o
mais neutro possível para não ser esmagada naquela corrida de elefantes.
Sabia bem que o que Rupert lhe dizia era o que se comentava pelos
corredores e ainda não entendia para que Damien iria lhe pagar tanto dinheiro.
Não havia nenhuma explicação e sequer se tinham visto ou falado depois da
última vez.
— Ora, que engraçado. Você tem mais cara de se dar bem com as cópias
e...
— Acha que eu ia dar uma sala inteira para alguém cuja função é tirar
cópias, senhora Rupert?
As duas mulheres se assustaram com a súbita voz e encontraram Damien
Beauchamp parado no corredor com um terno de três peças e um ar de poucos
amigos. O cabelo loiro parecia estar molhado e bem penteado para trás e os
olhos azuis eram como o fundo de uma praia paradisíaca.
Não usava máscara.
— Senhor Beauchamp! — A recepcionista estremeceu dos pés a cabeça,
tentando segurar o espanto por ver as cicatrizes daquele rosto tão expostas. Os
olhos encontraram os próprios pés naquele instante.
— A senhorita Johnson é minha Assessora e responsável por toda a parte
do trabalho que me compete. É você, quem deve tirar cópias para ela. — Ele a
advertiu com a voz rude, deu meia volta e adentrou na porta mesmo em frente da
sala de Darcelle.
O coração da jovem Johnson falhou uma batida e não esperou Rupert sair
da sua frente para seguir o loiro sala a dentro. Bateu a porta e ouviu um "entre"
quase surdo. O encontrou sentado na grande e confortável cadeira com o olhar
um pouco perdido, as cortinas do escritório ainda estavam corridas, mas dava
para identificar a grande mesa, um mini balcão com copos e bebidas diferentes.
Um quadro enorme e belo que revelava um belíssimo garanhão, dois
computadores portáteis de última geração, uma grande tela curve pendurada no
alto e uma estante com algumas edições raras de livros. O chão era acarpetado e
mesmo estando tudo limpo, dava para ver que não era ocupado já há algum
tempo.
— Assessora? Eu não tenho formação para isso — declarou Darcelle sem
se dar ao trabalho de esconder tal facto. Seu interior estava um misto de emoções
por o ver ali, por perceber que seu coração batia mais do que devia e por temer
não estar a altura do que lhe era incumbido.
— Mas é inteligente, irá aprender tudo o que nós tivermos para ensinar.
A Beauchamp sempre investe na formação de seus trabalhadores. — Levantou o
rosto e coçou as têmporas. Fazia alguns dias que não se viam e Johnson sentia
uma alegria para lá do normal agora. — Você sempre prega o dom da sua
palavra comigo, agora é a sua vez de arriscar e viver. E eu vou exigir isso de
você.
Ela engoliu em seco, ainda estava de pé com as mãos juntas no colo e um
bombardeamento interno pior que Hiroxima. Sentiu as mãos começarem a
transpirar.
— Farei o possível para estar a altura, senhor Beauchamp. — Afirmou a
acenar com a cabeça em concordância. Damien pela primeira vez sorriu para
Darcelle, um sorriso sincero e bonito. Se fosse possível, o coração dela teria
parado de bater naquele instante. — Como... foi?
— Três caras assustadas no elevador, uma onda de espanto na
administração, sorrisos desconfortáveis e olhares para o chão. — Damien deu de
ombros num falso gesto de pouca importância. — Não deve ser fácil olhar para
mim.
— É um processo — admitiu com precisão e caminhou até as janelas
para abrir as cortinas automáticas, estas deslizaram de par em par com lentidão.
— Meu passatempo favorito era a fotografia. — A súbita confissão
chamou a atenção da nova assessora de Beauchamp. — Eu adorava a beleza, as
coisas bonitas. O meu rosto era... — Não conseguiu completar. — Ganhei
concursos de fotografias, viajei para os lugares mais belos com modelos
maravilhosas. — Engoliu em seco. — Agora nem consigo me olhar direito no
espelho.
Darcelle voltou até Damien e se permitiu sentar diante dele. Pousou os
braços em cima da secretária e prendeu a respiração antes de a soltar.
— Eu seria mentirosa se dissesse que suas cicatrizes não são horríveis,
senhor Beauchamp. Elas realmente são. Mas o senhor... é belo quando é frágil,
belo quando sorri para mim, belo quando tira a capa dura e deixa o coração falar.
Passei poucos dias aqui e só vi trabalhadores felizes. — Um momento de
compaixão se apoderou do ensejo e o Monstro Du Camp pareceu segurar outro
sorriso que insistia em escapar.
— Onde estava todo este tempo, Johnson?
— Provavelmente amadurecendo o suficiente para poder lhe dizer isso
hoje. E sabe de uma coisa? Tem toda razão, eu vou ser uma boa Assessora. —
Levantou-se da cadeira cheia de força para iniciar com suas funções. — Vamos a
isso, senhor Beauchamp!
— Damien. Eu quero que me chame Damien. Tudo bem, Darcelle?
Era a primeira vez que pronunciava o seu nome e a voz forte parecia ter
sido feita apenas para aquilo. Ela cobriu a boca com a mão num gesto lento e
impaciente.
— Tudo bem, Damien. Tudo bem. — Ela sentiu o sorriso verdadeiro que
saiu de seus lábios e teve vontade de dizer tantas coisas, mas foram
interrompidos pelo telefone que começou a tocar na mesa dele.
Darcelle se retirou ainda a sentir as mãos frias e voltou para a sua sala
ainda com o coração fora do lugar. Era normal se sentir assim só por vê-lo? Nem
sabia como enquadrar aquele sentimento, sendo que não se lembrava de alguma
vez ter passado por aquilo. Na adolescência todas as meninas da sua idade
tinham alguma paixão e viviam em cima de nuvens cor-de-rosa o tempo todo.
Ela costumava se sentir mal por ser diferente, a verdade é que nenhum rapaz a
tinha despertado nenhum interesse. Sua prima Jamie tinha beijado alguns
meninos e saído com outros antes de se render e se entregar aos braços de
Lorenzo, e várias vezes Darcelle costumava cobiçar como o dito amor podia
fazer as pessoas se sentirem.
Houve momentos que pesquisara sobre pessoas arromânticas e depois
por assexuais, porque nunca tivera o desejo de ter qualquer tipo de romance ou
de relações sexuais, nada parecia despertá-la e isso a tinha angustiado por muito
tempo. Até agora. Devia admitir que Damien causava sensações inexplicáveis e
que era muito errado porque estava pronto para noivar com outra mulher.
— É verdade que o Fantasma da Ópera está aqui sem a máscara? É nesse
momento que a Christine Daaé foge... Mas você ainda está aqui! — Christian
roubou seus pensamentos e entrou todo divertido como sempre. Sua vestimenta
consistia numa única peça formal que era o casaco por cima do pólo e das calças
jeans.
— O que quer dizer com isso? — Darcelle pestanejou.
— Deixe para lá. — Dash lhe piscou o olho. — Queria saber o que está
por trás dessa mudança toda, não é normal. Tentei tirá-lo de casa por anos!
Darcelle riu e teve vontade de dizer que o que ela queria saber era sobre a
estranha aproximação entre ele e sua prima, mas se conteve.
— O Damien está aqui sim — respondeu um quanto descontraída e nem
reparou nos olhos verdes que se esbugalharam ao ouvir a resposta.
— É Damien agora, hum. — Esboçou um sorriso. — Você com essa cara
de quem não mata nem uma mosca parece que está derrotando alguns
monstros... Du Camp.
Era atrevido! Ela riu quase sem graça se sentindo despida pelos olhos
espertos, se limitou a anunciar a presença de Dash e o acompanhou até a porta da
sala. Depois se concentrou no trabalho, era tudo um pouco complicado de se
entender e por isso começou a tirar notas e a telefonar para alguns colegas que
podiam ajudar. Ser Assessora significava ter que responder pela empresa na
ausência dele. A prova do quanto confiava e apostava nela.
Damien recebeu mais dois administradores de outras sucursais e no fim
tiveram uma reunião geral, onde ele afirmava a sua volta como presidente na
empresa e que não iria ficar mais a trabalhar a partir de casa. Algumas pessoas o
olhavam com curiosidade e outras tentavam segurar o incómodo que era ver o
rosto a descoberto.
No final do dia, Darcelle demorou mais tempo a sair porque estava
mergulhada no trabalho, tinha aprendido mais naquele dia sobre cavalos e
gestão, do que em toda sua vida. Gostava de estar ali, mesmo que não fosse sua
maior paixão.
— Ainda por aqui? — Damien se admirou quando saiu da sala, carregava
sua mala e o casaco pendurado em seu braço.
— Já estou de saída, apenas queria aproveitar para aprender mais —
respondeu e sentiu o cansaço que pesava em seus ombros.
— Terá todo tempo do mundo, não se apresse. As formações começam
semana que vem e verá como tudo ficará ainda mais fácil. — As palavras saíam
de seus lábios com tanta gentileza que nem pareciam vindas dele.
— Obrigada. — Acabou por desligar o seu computador.
— Quer que eu a leve para casa? — Olhou para o relógio, mas de
momento não se importou.
— Não se preocupe. Eu pego o carro colectivo dos trabalhadores da
Beauchamp. — Se levantou e organizou as suas coisas com vagar, mas quando
girou os olhos percebeu que ele ainda estava parado a olhá-la completamente
distraído.
— Então... Até amanhã. — Uma sombra correu os olhos azuis como se
tivesse feito um esforço para dizer aquilo.
— Está ansioso pelo seu noivado? — Aquela pergunta escapou de sua
boca.
— Sim. — Ele mentiu. Na verdade queria dizer que nem tanto. — Vejo
você lá?
— A Emma faz questão... — Darci quase ficou sem graça ao constatar
que seria dolorido assistir àquele noivado. Como olharia para a loira sabendo
tudo o que sentia? Mas sentir não era crime, pois não?
Beauchamp acenou com a cabeça, sua boca se abriu, mas as palavras se
perderam pelo caminho, então se preparou para sair.
— Espere. — Ela pediu, dando pequenos passos até se aproximar. —
Tem seu telefone?
— Sim — respondeu um tanto intrigado.
— Então venha comigo.
— Para onde?
— Já vai ver.
Johnson caminhou até ao corredor, parando diante das portas metálicas
do elevador e esperou pelo presidente da Beauchamp a seguir. Entraram em
silêncio quando este chegou e subiram apenas um andar que era o último. Saíram
para o terraço enorme que abrigava um heliponto do outro lado. O chão era
cimentado e tinham pilares que separavam algumas secções.
Ela andou até ao muro pintado de branco com uma barra vermelha no
centro. Apoiou as duas mãos e apreciou a vista brilhante que se estendia sem
fim. Damien parou ao seu lado.
— E então?
— Tire uma fotografia.
Ele piscou ao mesmo tempo que franziu.
— Leve seu celular e tire uma fotografia. O que lhe impede de continuar
a fazer aquilo que mais ama? Há tanta beleza pelo mundo a fora. — Ela abriu os
braços a sentir a brisa que beijava seu rosto, mas desejando que fossem certos
lábios.
Damien colocou a mão no bolso das calças de pano vincadas e tirou o
aparelho de última geração. Era verdade, por que parara de fotografar só porque
perdeu aquilo que acreditava ser sua pulcritude? Desbloqueou o celular e
procurou a câmara, abrindo-a para a majestosa cidade de Belmore, banhada pelo
mar e com uma grande ponte erguida lá no alto que a conectava com outras
cidades. Porém, nada lhe era mais belo, por isso mudou a sua posição e tirou a
primeira fotografia depois de dez anos.
O rosto de Darcelle. Este que se sobressaía em relação ao manto escuro
da noite, principalmente pelo turbante amarrado e pela roupa africana, junto dos
brincos grandes.
— O que está fazendo? — Ela perguntou sobressaltada. — Pare!
— Tirando fotografias... — O dedo dele não parava de clicar no centro
da tela comprida, fazendo a luz da câmara brilhar vezes seguidas.
— Fico horrível nas fotos. — Tentou lhe arrancar o aparelho da mão, mas
foi em vão, pois ele era mais alto e só levantou o braço para cima, obrigando-a a
dar pulos no mesmo lugar.
— Eu já tinha dito que era ótimo no que fazia. Não devo ter perdido a
prática. — O sorriso estava esticado no rosto dele, nem as cicatrizes
conseguiram fazer com que ficasse menos bonito.
— Não faça isso! — Darci ainda pulava para segurar a mão dele, porque
o dedo ainda parecia acertar o centro da tela e mais imagens eram tiradas. —
Pare!
— Sossegue, Darcelle. É a sua vez de remover as máscaras.
Ela então parou e respirou fundo, se deixando eternizar naquilo que seria
o retrato de um dos momentos mais importantes que passavam juntos. As bocas
podiam não dizer, mas os olhos não mentiam e falavam a mesma língua.
— Darcelle... — O telefone começou a tocar no mesmo instante e ele
apertou os olhos antes de soltar um impropério. — É a Giovana.
— Eu também preciso ir antes que perca o transporte colectivo. Até
amanhã. — Se despediu e correu mais do que as pernas podiam permitir, pois
sabia muito bem do que fugia. Por que a ideia de ter apenas uma amizade a
corroía tanto mesmo sabendo que se tratava de um homem comprometido?
Aquele noivado certamente viria provar o quão disposta estava a suportar
a bomba que ameaçava explodir dentro de sua alma.
Festa de Noivado, A

"Amor é aquela festa surpresa que você realmente não sabe quando vai
acontecer."

Emma estava linda naquela tarde de sábado, o vestido discreto cor de


pérola encaixava no seu corpo elegante, tinha alças finas e chegava até aos
calcanhares. Um longo lenço de seda sentava sobre seus ombros e descia pelas
costas até ao chão de forma elegante. Acabava de ficar pronta para ir receber os
convidados que já se faziam presentes no salão de festas e aguardava Damien
sentada numa poltrona que ficava no quarto dele. O observava pelo canto do
olho, ele se arrumava e acertava a gravata azul escura. Era estranho como
parecia ceder aos seus avanços de estreitar a relação, mas não do modo esperado,
pelo contrário, quanto mais perto parecia mais distante se tornava.
— Estou pronto. — Sentiu que a noiva o encarava e levou a pequena
caixa com um anel caro para a guardar dentro do bolso do casaco de tecido fino.
Giovana tinha deixado com o filho o anel de noivado que o falecido marido lhe
dera, mas Damien não estava pronto para se desfazer dele.
— E a máscara? — Emma se levantou com um sorriso singelo. O cabelo
estava mais brilhante e preso na nuca, adornado por ganchos de camafeu e
brilhantes. Parecia uma autêntica princesa dos filmes, mas a sua fera não iria se
transformar num belo príncipe, pelo menos não fisicamente.
— Máscara? — Damien não pareceu perceber e se virou para ela. —
Tem vergonha de mim?
— Não. Claro que não, que absurdo. Mas as pessoas...
— As pessoas não deveriam se acostumar a minha realidade?
Charlton absorveu a saliva da garganta com dificuldade. Ele está
pensando em ir a nossa festa assim?
— No escritório é diferente, mas aqui... alguns convidados não estão
acostumados e podem...
— Então eles podem comer e beber as minhas custas, desfrutar do meu
salão e sorrir para os repórteres, mas não podem suportar ver o meu rosto
deformado, senhorita Charlton? — Interpelou de forma rude, os olhos
tremelicavam sem parar encarando a futura mulher, possível mãe de seus filhos e
senhora Beauchamp.
Tal constatação lhe pareceu tão errada.
— Não é isso, não me entenda mal. — Ela sempre mantinha a calma em
todos os momentos. — Só pensei... Não quereria passar por alguma situação
desagradável na festa que é para estarmos bem e felizes. As pessoas sabem ser
cruéis.
— Não precisa justificar. — O Monstro Du Camp apanhou a sua máscara
na gaveta, se sentindo um verdadeiro Fantasma da Ópera – como Chris o
chamava, ao cobrir metade do rosto. Um incómodo se abateu no coração quando
viu Emma sorrir com alívio e lhe estender a mão, a qual não recebeu.
Tinha passado tantos anos se escondendo que agora que se viu de rosto
livre no meio das pessoas, não estava mais confortável com a ideia de se cobrir,
só queria poder ser ele sem mais nenhumas reservas.
Abriu a porta, deixando-a passar na frente e a seguiu, descendo as
escadarias até ao grande salão de festas. A pontualidade era algo notável, pois a
maioria dos convidados já se encontravam no recinto, a música era tocada ao
vivo por um grupo famoso e os serventes muito bem trajados já circulavam com
entradas e bebidas. Os olhos azuis encontraram Darcelle que usava um vestido
novo, era fácil de constatar, visto que costumava repetir a maior parte das suas
roupas. Era todo vermelho de veludo com um corte a revelar os ombros de forma
simples, mas sensual. Ela conversava qualquer coisa com Joanne enquanto
aguardava a prima que tinha se esgueirado para o banheiro.
— E o seu sobrinho? — Ele perguntou enquanto acenava com a cabeça
para as pessoas que os cumprimentavam com sorrisos cheios de uma alegria
falsa. Muitos estavam ali para ter o que contar depois.
— Er... Minha irmã preferiu não trazê-lo. Não têm crianças aqui. —
Emma foi breve e se apressou a beijar duas conhecidas no rosto, agradecendo os
elogios de forma prática antes de continuar a seguir o noivo.
— Damien? — Darci não escondeu o espanto ao vê-lo com o rosto
coberto pela metade. Pestanejou sem compreender e o ar alegre se desvaneceu
da sua cara.
— Como assim, Damien, querida? Quem lhe deu essas intimidades? —
Joanne a repreendeu, usava um tailleur impecável, azul-escuro e a maquilhagem
dava outro toque ao rosto pouco bonito.
— Eu dei. Boa tarde — Beauchamp respondeu com uma expressão
assombrosa e sequer se deu ao trabalho de olhar duas vezes para Darcelle,
apenas seguiu sempre em frente.
— Obrigada por vir. Não ligue, está indisposto, para variar. — Emma
abraçou-a num aperto rápido, pois foi puxada pela irmã para seguirem Damien
que não parecia estar muito receptivo a ninguém que ousava abordá-lo.
Johnson ainda tinha a boca aberta e sentiu uma pontada de dor ao vê-lo
se afastar sem olhar para trás, era como se fugisse da possibilidade de ela o
questionar. Não gostou daquilo e sentiu sua garganta formar uma bola difícil de
engolir.
— É sinistro olhar assim para o homem cuja festa de noivado você é que
deu ideia e até ajudou a organizar. — A voz de Jamie surgiu atrás de si, acabava
de voltar do banheiro. Conseguia ler a tristeza na cara da prima.
— O que quer dizer com isso? — Virou-se com o cenho unido e tentava
a todo custo disfarçar a decepção espelhada nos olhos escuros.
— A forma como olha para o senhor Beauchamp, Darci.
— Não percebo. — Darcelle desviou o olhar para longe dos olhos da
prima, demonstrando insegurança. Percebia sim, porque estava claro como um
cristal e por isso tratou de trocar de assunto. — Você ainda não me contou onde
passou a noite e que mancha vermelha é essa no seu pescoço.
Jamie olhou para longe avistando Christian Dash empolgado a conversar
com convidados de renome, e admirou a forma como ele estava sempre tão a
vontade e bem-disposto como se a vida fosse uma lufada de ar fresco.
— Posso garantir uma coisa, não é Lorenzo Wright.
— E por falar no diabo — murmurou Darcelle apontando para o
jornalista que cobria o noivado mais esperado do ano. Quando parava de
entrevistar os convidados, então ficava junto de William Solis.
— Ouvi que aquele subiu de cargo recentemente. — Jamie comentou. —
Eu já o vi antes...
— É verdade. — Darcelle voltou a sentir o estômago revirado, ainda
mais porque William olhava para Emma com tanta veneração. Lhe pareceu tudo
tão injusto e não compreendeu por que faziam aquilo. — Mas então por que não
me conta as coisas, Jamie?
— Porque você é muito inocente. Agora vamos para a mesa. — A
estudante de medicina puxou a prima pela mão, tentando animá-la e só por isso
não reclamou por as terem colocado bem no fundo do salão.
O bufê foi servido à uma da tarde, com direito a ementas e pratos
preparados ao gosto dos convidados. O salão estava cheio de pessoas distintas e
ricas, conversavam e bebericavam, cada um a desfilar sua própria elegância. Um
cantor conhecido subiu ao palco para uma hora de música soul e alguns
conhecidos próximos se uniam para comentar sobre situações engraçadas,
especialmente trabalhadores de alto escalão da Beauchamp e suas filiais
espalhadas por todo mundo.
Todos pareciam se divertir, menos Damien que estava sentado na mesa
principal sempre com o ar soturno, falava uma ou duas palavras e se mantinha
no mesmo lugar, compenetrado em esperar o tempo passar. Por sua vez, Emma
distribuía sorrisos maravilhosos e demonstrava ser a anfitriã perfeita,
constantemente sob a supervisão da irmã para que permanecesse longe de
William.
Quando a tarde deu lugar a noite, a festa ganhou outro tom: Luzes suaves
acenderam pelas flores na mesa e a música se tornou mais agitada. As pessoas
bebiam e conversavam mais descontraidamente, tomando conta da pista de
dança e deixando as mesas mais vazias.
O monstro Du Camp se levantou um tanto impaciente, dava para ver a
irritação nos seus olhos. Não quisera dar entrevistas, nem ser filmado ou
fotografado, algo complicado por se tratar da festa do seu noivado. Deixou o
salão indignado, farto daquelas pessoas superficiais que só o toleravam quando
se escondia por trás da máscara. Caminhou com pressa até ao seu escritório da
mansão que ficava na ala oeste, respirando fundo ao se encontrar sozinho.
A porta abriu-se logo a seguir e ele soltou uma imprecação.
— Estou decepcionada com você. O que foi que...
— Quem foi que lhe deu esse direito de tentar mudar minha vida,
Johnson? Quando vai parar de me perseguir e cuidar da sua própria vida? —
Berrou contra Darcelle, mas não era com ela que estava zangado, e sim consigo
mesmo. A respiração estava afoita e o rosto vermelho indicava o quanto estava
próximo de explodir.
— Eu...
— Você por um acaso é feliz? Não, pois não? Poderia usar essa força
toda para ter um relacionamento, por exemplo. — Encolheu os ombros. —
Arranja um namorado, um cão, um gato. E apenas me deixe em paz.
O lábio de baixo de Darcelle tremeu com força, viu Damien servir uma
de suas bebidas e sorver com avidez. Ela deu meia volta e saiu deixando-o
sozinho, não sem antes bater a porta com força. Ele se atirou para a cadeira, a
caixa com o anel ainda o incomodava dentro do bolso. Não restavam dúvidas
que jamais o daria a Emma, por isso o retirou do casaco e pousou por cima da
mesa do escritório.
— Merda! — Praguejou ao sentir culpa pelo que tinha dito a única
mulher que o estimulava a ser quem era. Ver aquele rosto magoado, doeu mais
em si e largou o copo, se levantando no mesmo instante para ir atrás e explicar
que tinha descarregado a frustração na pessoa errada.
A porta abriu-se novamente.
— Eu não vou me relacionar só para passar o tempo ou para me divertir
ou ter uma companhia. Eu acredito no amor. Sim, eu sei que pode parecer piroso
ou da idade da pedra, mas quando eu tiver alguém vai ser por amor e nada mais
— falou de uma só vez para não perder o fio de pensamento e cerrou o punho
das mãos com força.
Os olhos azuis brilharam no escuro e um suspiro preencheu o espaço.
— Então, Damien, vamos começar de novo! Tire essa máscara e eu o
acompanho até ao salão. Se Emma Charlton quiser se casar consigo, não irá se
importar com a sua aparência. O resto não passa disso mesmo, resto.
Damien ainda se demorou em silêncio, seus olhos se inquietaram sem
saber em que parte do corpo dela pousar, pois a queriam contemplar por inteiro.
Um novo sentimento ocupava seu coração naquele momento, tantas coisas
correram com exactidão e a resposta que mais fingia não ver estava mesmo
diante de si. As palavras dela lhe davam força, tal como um moinho rendido ao
vento forte, então tirou a máscara devagar e a jogou ao chão.
— Não deveria ter gritado com você. — Acabou por dizer quando seguiu
com Darcelle para fora do escritório. — Me desculpe.
— Posso tolerar isso uma vez, sei que deve estar com as emoções em
alta, mas da próxima será a última — advertiu e sentiu seu peito palpitar por ver
como ele cedia as suas exigências. Era tão fácil entre os dois, como se – por mais
cliché que fosse parecer – já se conhecessem de outras vidas.
— Não haverá a próxima vez. Prometo. — A voz dele parecia embebida
em ternura e caminhava ao seu lado sem desviar o olhar do rosto bonito. Adorou
ver o penteado que tinha feito com o volumoso cabelo crespo, a maquilhagem
quase invisível que morava na face simples. Tudo parecia ser perfeito demais.
Quando chegaram no salão as pessoas foram se apercebendo pouco a
pouco da ausência da máscara. As reações foram mistas! Alguns olhares,
queixos virados na direção do Monstro Du Camp, cochichos aos ouvidos e
expressões retorcidas. Mas nada pareceu incomodar Damien que se sentia
estranhamente blindado à toda aversão possível.
— Dance comigo, Darcelle. — A voz dele pareceu quase irreal e a jovem
Johnson demorou alguns segundos para perceber. Os olhos azuis a apreciaram
por inteiro, desta vez no meio de toda aquela gente, e reconheceram diante da
luz, o quanto estava bonita naquele vestido vermelho, no entanto a parte mais
bela dela era o que vinha de dentro, emanava como o aroma das flores durante a
primavera.
— O quê?
— Vamos dançar — afirmou com a cabeça e toda a certeza do mundo.
Segurou a mão escura e pequena, sentindo o atrito inegável, e a puxou até ao
centro da pista.
Os murmúrios se espalharam por todos lugares, enquanto Damien
colocava uma mão ao redor da cintura fina e a outra permanecia unida à dela.
Ignorando as fotografias que começaram a ser tiradas sem parar.
— As pessoas estão a olhar, por que faz isso? — A Johnson parecia estar
sem graça por ser o alvo da atenção dos demais e quase tropeçou sob os próprios
pés. Os dois tinham os olhos fixos, um no outro, como se só se vissem pela
primeira vez naquele momento.
— Não saberei dizer agora. — Foi sincero. — Apenas quando entramos,
tive muita vontade de dançar e era com você.
A música os embalou em movimentos suaves e ritmados, giravam
devagar de um lado para o outro, sem descolar os olhares tão profundos e cheios
de significados. Se para todos os outros, alguma coisa estava errada, para eles
não havia nada mais certo do que estarem juntos naquela dança.
Jamie assistia a cena de boca aberta, mas conseguia entender com
facilidade o que estava a acontecer naquele momento. As vozes comentavam e
apontavam, mas aqueles dois pareciam estar em algum lugar que não fosse
aquela pista cujas luzes os iluminavam de forma mágica. Damien sequer tinha
dançado com Emma, mas com a sua prima parecia se sentir em casa em seus
braços.
— Hum. Hum! — Christian pigarreou por trás e a estudante de medicina
olhou por cima do ombro para o encontrar. — Não vai me conceder a honra de
uma dança?
— Não.
— Que fria!
— Deixe de parvoíces, Dash. Eu não sei dançar.
— Deixe você de ter inveja da sua prima e levanta sua bunda grande da
cadeira. — Dash provocou. — Eu ensino. Ou não me diga que só sabe mexer
direito quando...
— Tolo! — Ela se levantou a tentar prender um sorriso e deu a mão a
Christian. O calor que lhe correu nas veias apenas pelo toque lhe deu a certeza
de algo que nenhum dos dois podia negar.
Lorenzo pestanejou quando viu o rebelde Dash dançar com sua ex-
namorada e cogitou na veracidade das palavras da mesma sobre o ter traído.
Uma raiva encheu o peito, deixando de prestar atenção na novidade da noite que
dançava mesmo ao lado.
As primas se olharam no meio da pista e trocaram sorrisos cúmplices, o
suficiente para dizer em silêncio tudo o que sabiam sentir. As luzes rodopiavam
pela pista de dança, o som era maravilhoso e as duas estavam vestidas de
vermelho para matar. Chris fazia Jamie rir sem parar, dançando quase sem
nenhum jeito e acabando por ser conduzido por ela. Damien era mais sério, mas
não piscou uma vez sequer enquanto encarava a verdadeira beldade que sorria
em seus braços.
— Oh, meu Deus! O que é aquilo? — Joanne deixou cair a taça de vinho
branco ao chão e se irritou quando viu a irmã ao longe a conversar com William
Solis. Detestava aqueles dois por serem tão idiotas e não medirem as
consequências que tudo aquilo poderia acarretar.
Andou até a irmã e a puxou pelo braço.
— O que foi?
— Como o que foi, Emma? Seu noivo está dançando com outra bem ali
no meio da pista. Uma empregada! E em frente dos convidados! — Bufou
completamente indignada.
A loira se voltou para ver e piscou várias vezes como se aquela imagem
pudesse desaparecer a qualquer momento. Uniu as sobrancelhas e prendeu a
respiração.
— Está sem máscara! — Exclamou e também reparou no sorriso que ele
vestia no rosto. Isso apenas incomodou seu ego, mas também elucidou sua
mente. — Não posso impedi-lo de dançar, Jo.
Joanne gargalhou.
— É claro que pode e deve. É a estrela da festa e toda a atenção devia ser
voltada só para você. Pelo amor! — Quase iria explodir no lugar, era mais velha
e menos cega. Havia alguma coisa de importante a acontecer e que ninguém
tinha descoberto a tempo.
William estava quieto sem dizer uma palavra, não estava feliz por ver a
mulher da sua vida noivar com outro e tudo o que mais queria era que as irmãs
desistissem daquele absurdo. Por isso não escondeu o sorriso por ver a cena que
era motivo de tanto destaque.
Joanne respirou fundo, ameaçando os fotógrafos com os olhos, não
queria que aquilo se espalhasse pelas notícias a fora, se bem que podia apostar
uma unha que os convidados iriam relatar para todos os conhecidos e afins.
Empurrou a irmã com o ombro, fazendo esta soltar um suspiro resignado e
caminhar em direção ao casal com um meio sorriso forçado pela confusão.
— Senhor Beauchamp, poderia me explicar o que vem a ser isso? — A
voz falhou. Não gostava daquela situação, mas não queria provocar a ira da irmã
e por isso tentou segurar o melhor ar que conseguiu.
Damien pareceu acordar de algum momento mágico, parou de dançar
quando a ouviu, mas demorou a soltar-se de perto de Darcelle, esta que por sua
vez parecia preocupada com a situação, porém estaria pronta para falar se lhe
conviesse.
— Posso.
Ele disse.
Desaguar de Sentimentos, O

“A pior ilusão não é aquela em que os outros te iludem, e sim aquela em
que você mesmo se ilude.”

EM nenhum momento Damien vacilou, embora tenha parado de dançar,


o seu corpo ainda permanecia colado ao de Darcelle. Podia sentir as mãos suaves
contra as suas e um calor quase palpável que emanava dela diretamente para
dentro do seu peito, o deixando completamente inebriado como se quando a
soltasse pudesse perder o próprio chão.
— São duas pessoas a dançar, como bem pode ver, parece que todo o
salão está fazendo o mesmo — respondeu de cenho unido, com uma
naturalidade que espantou os demais que estavam mais próximos. A voz seca e
sem emoção nenhuma quando se dirigia àquela que seria sua futura mulher.
Emma até teria concordado com a cabeça, mas Joanne veio a voar como
uma flecha, cruzando o salão até a pista e a segurando pelo braço. Mostrando
que estava ao lado dela em todos os momentos para a instruir caso fosse
necessário.
— Estou proibido de dançar? — Pela forma serena como Damien
perguntou, o rosto da noiva ficou igual a um tomate maduro, embora os olhos
tenham descido para o momento que Darci tentou se soltar das mãos grandes,
mas que ele não permitiu.
— Desculpe senhor Beauchamp, sem querer me intrometer, mas é que
deveria dançar primeiro com a noiva antes dos convidados. — Joanne falou num
tom tão cordial que em nada combinava com a verdadeira mulher rude. Seus
olhos se mostravam entrecerrados enquanto analisava a cena que decorria.
— E você é? — Beauchamp perguntou a olhando de cima.
Joanne abriu a boca se mostrando mais do que indignada, ainda mais por
ser a irmã da noiva, e ele se atrever a não a reconhecer de modo algum. As
narinas se dilataram a mostrar toda a irritação, forçou uma vénia e com
delicadeza puxou Emma, tirando-a de cena e a empurrou para fora do salão de
festas.
Lá fora a noite trazia o pouco que restava do frio, nuvens ocultavam a
lua, mostrando uma futura chuva, mas nem a temperatura serviu para arrefecer
os ânimos das Charlton.
— Você viu o que aquele Monstro fez? Dançar com a assistente antes
mesmo de te convidar? E na frente de todo mundo! — A mais velha bufou,
andando de um lado para outro, pisando a relva do jardim. Observou de lado
quando a loira colocou a mão na barriga como se toda a indisposição estivesse
alojada ali. Teve que respirar fundo várias vezes.
— Foi só uma dança.
— Emma, o que foi que você não viu? Aquela empregada saiu com
Damien e quando voltaram ele estava sem máscara. Não sei que influências é
que ela tem, mas uma dança deveria ser o menor de nossos problemas neste
momento — sussurrou Joanne com os olhos castanhos bem abertos. — Não
passa de uma subalterna, mas o melhor é mudarmos de foco.
— O que é que você também não vê? — A loira se impacientou. —
Damien sequer te reconheceu, isso deve ser porque mal se importa comigo e
com o que me rodeia!
— Ainda vai a tempo, precisa se aproximar de Damien, conquiste sua
amizade e não apenas um futuro marido por contrato. Você é mais esperta do que
parece, e se a Darcelle tem acesso ao Monstro, você também tem que ter.
— Pelo amor, minha irmã. Aquele homem é inacessível para mim!
— Se recomponha! — Quase arrancou os cabelos. — Faça com que seja
acessível! Ah… Eu estou vendo que não está interessada, mas vai voltar lá e…
— Se calou quando viram uma figura de formas avantajadas se aproximar num
vestido vermelho muito parecido ao da nova assessora de Beauchamp.
— Hum. Hum — Jamie apareceu do lado de fora, os olhos estreitos
atentos nas Charlton. — Acho melhor entrarem, o Christian anunciou o brinde.
— Claro! — Emma se virou num passo rápido, a cobrir o corpo com os
próprios braços pálidos, para se proteger do ar fresco.
— Eu a conheço? — A estudante de medicina analisou a noiva com
atenção e pestanejou. — Seu rosto não me é estranho!
— Mas o seu é estranho para nós. Agora com licença! — Joanne
interveio como sempre, apoiando a mão no ombro da irmã, a conduzindo para
dentro do salão de festas. Johnson fez uma careta e só mordeu a língua por se
tratar de pessoas a quem sua prima provavelmente não quereria faltar com o
respeito. Mas ela queria e muito!
O noivado pareceu correr como esperado, a tensão criada pela súbita
dança aos poucos foi dissipando. O divertido e forçado brinde aos noivos feito
por Christian serviu para levantar os ânimos, e todos aproveitaram ao máximo a
festa que se seguiu pela restante noite a dentro. Damien se manteve sentado,
disse algumas palavras no ouvido da noiva e se certificou que a caixa com o anel
de sua família ainda estava dentro do casaco.
Darcelle não costumava beber, mas os olhares que lhe eram dirigidos e a
tensão que se seguiu quando Emma abandonou subitamente a festa, fez com que
aceitasse alguns cocktails com sabor de fruta, enquanto se mantinha sentada na
mesa sem conseguir desviar os olhos dos azuis que muitas vezes a encontraram
naquela noite. Jamie tinha sumido do nada e, ao que parecia, o jovem Dash
parecia usufruir da mesma magia do desaparecer.
Étienne se aproximou com curiosidade quando a maioria dos convidados
começou a ir embora. As mãos dentro dos bolsos mostravam uma casualidade
que não combinava com os olhos atrevidos.
— Vai ficar parra ajudar a arrumar as mesas? — Perguntou olhando para
o relógio de pulso. — É que já fui dispensado.
— Eu… Só estava esperando para ver se precisariam de alguma coisa —
justificou quase sem graça e mordeu o lábio inferior.
— Ah! Ainda trrabalha aqui! — O motorista ironizou só para a
provocar, pois adorava ver como a amiga ficava sem graça nenhuma.
— Algum problema? — A voz de Damien fez o jovem francês saltar no
lugar e sorrir em amarelo quando se virou para encarar de perto o patrão. Não
tinha bebido nada para conseguir analisar o rosto cheio de cicatrizes tão de perto,
mesmo assim não fez nenhuma expressão errada.
— Só estava perrguntando para a Dar… senhorrita Johnson se querria
que a levasse.
— Pode ir, Étienne. — O dispensou com rapidez, e o motorista se afastou
com um aceno, quase ao mesmo tempo em que ela se levantava.
— Na verdade acho melhor eu ir — disse.
Ao longe dava para ouvir o barulho dos arrumadores que limpavam e
organizavam o que restava da festa na mansão. Não queria ainda acreditar que
esperava por alguma coisa no fim da festa de um noivado alheio. Quase não se
reconhecia.
— Na verdade… Pode ficar dormindo aqui para não ter que percorrer
uma longa distância. — Ele pareceu um pouco retraído ao sugerir aquela ideia.
— Fique no seu antigo quarto.
— Ah… — Sua mente lhe disse para negar. — Está certo.
Os lábios dele se arquearam ao de leve.
— Tenha uma boa noite, então.
— Obrigada, para você também. — A Johnson se afastou a passear a
mão pelos cabelos sem necessidade, pois estavam todos devidamente presos.
Tudo o que mais queria era silenciar a própria mente que gritava contra ela, à
chamando a razão.
Entrou no seu quarto antigo que lhe pareceu tão grande, agradeceu por
dentro pela lareira estar acesa, e decidiu tomar um banho para aliviar os
músculos e tirar o cansaço do dia espalhado pelo corpo. Desfez o penteado e os
cabelos volumosos correram livre beijando seus ombros. Logo que terminou, se
enrolou num roupão e em seguida entrou na confortável cama, com a certeza de
que não ia conseguir adormecer.
Afinal, o que estava fazendo ali?
A bebida consumida a traiu quando a levou para um sono não esperado,
mas não demorou a despertar poucas horas depois com um barulho alto vindo do
corredor. Saiu da cama assustada, lá fora uma chuva fina caía, e assim que abriu
a porta para o corredor sentiu o ar frio que invadiu o seu quarto.
— Damien? — Agachou-se com prontidão para o ajudar a apanhar os
cacos da garrafa e do copo partidos no chão. — O que está fazendo? — Olhou
para os lados com a respiração descompassada. — E a senhorita Charlton?
Beauchamp riu baixo e deu de ombros, mostrando sua falta de interesse
na última questão. Apenas levantou os olhos azuis brilhantes e tentou levantar o
corpo, se desequilibrando no processo.
— Você está bêbado — constatou Darcelle, abandonando os cacos de
vidro e se dispôs a segurar o corpo maior e mais alto. Encaminhou-o para o
quarto, agradecendo pelo calor da lareira aconchegar os corpos, e o deitou na
cama. — Eu vou buscar uma aspirina e chamar a senhorita Charlton.
— Não vá. — A mão dele agarrou o braço fino com leveza e o dedo
polegar acariciou a textura da pele negra. — Por favor, fique aqui.
— Não é a melhor das condições para me pedir isso — replicou com
retidão, embora o arrepio que sentiu no corpo pelo toque inesperado, a
denunciasse.
— A sua imagem não sai de minha cabeça. Você estava nos meus braços
e o seu sorriso era tão sincero… — ignorou o que Darcelle disse e com os olhos
fixos no teto, deixou as palavras escorrerem de seus lábios. — Você merece
alguém muito melhor, mas muito. Nem imagina o quanto é maravilhosa, não…
— Por favor, pare! — Johnson tentou se afastar, embora sem ter feito o
verdadeiro esforço, mas não conseguiu se soltar da mão masculina. Não queria
falar daquele assunto, temia o dia em que pareceria frágil e sensível por
sentimentos os quais não sabia classificar. Desejava ter permanecido num canto
recôndito, sem ter sido notada. — Hoje foi o seu noivado, a senhorita Charlton…
— Emma não está aqui, Darci. — Beauchamp levantou o torso e ficou
sentado junto dela. Subiu a mão para acariciar o rosto de traços femininos e
bonito se bem apreciado. O hálito a uísque era intenso, mas ainda assim,
agradável. — Quando acordo e durmo, você é a primeira a permear meus
pensamentos. Anseio cada segundo por voltar a vê-la.
Darcelle permaneceu de lábios cerrados, se perguntando se ainda estaria
a sonhar. Seria provável acordar pela manhã e descobrir que Beauchamp nunca
esteve ali.
— Se não partilhar de meus sentimentos, eu compreenderei. Não sou
alguém fácil de gostar, mas eu precisava dizer como me sinto. É novo, é ousado!
— Isso é errado… — Ela balbuciou, amaldiçoando seu coração que
dançava freneticamente em seu peito.
Damien encostou a testa junto da dela, os narizes quase se roçavam e a
respiração quente e agitada era sentida por ambos os lados. Lá fora a chuva caía
trazendo o inconfundível cheiro de terra molhada, e o crepitar da lareira foi
testemunha dos segundos que pareceram eternos antes dos lábios finalmente se
juntarem. Foi um beijo rápido, inesperado e cheio de ansiedade.
Johnson foi a primeira a se afastar e levantou da cama, assustada e
confusa.
— Não posso permitir. Não posso. — A voz estava trémula e o coração
palpitante. — O noivado, a senhorita Charlton e todo o resto. Não sou traidora,
não farei isso!
— Pare de falar de Emma, já disse que ela não está mais aqui. Tudo foi
um erro! Esse noivado, esse contrato. — Ele também se levantou atrás dela, mas
cambaleou mais uma vez, sendo amparado pela segunda vez pelos braços
macios.
— Você não está bem, o álcool o deixa assim. Amanhã tudo será
diferente. — Obrigou-o a deitar na cama, mas Damien a segurou com força,
puxando-a para que se deitasse do seu lado.
— Fique aqui… pelo menos até eu dormir — pediu e abriu o braço para
contornar o pescoço e o ombro de Darcelle, a puxando para o próprio peito. O
coração batia, estava agitado.
Ninguém disse mais nada, apenas se ouvia as respirações aceleradas que
breve se tornaram serenas. Era suposto ela partir e deixá-lo, mas o calor do
abraço a conduziu para outras dimensões.
Não só pelos raios solares que irradiavam o quarto, mas também porque
os dois sentiram a estranha sensação de estarem a ser analisados, um desconforto
sem medida que os obrigou a despertar. Primeiro o susto ao descobrir que
adormeceram juntos e depois pela figura da senhora parada na porta.
Era alta e elegante, com o cabelo loiro platinado num corte moderno e
um vestido caro até aos joelhos. Apesar das rugas na cara, era fácil perceber
pelos olhos azuis fulminantes, quem ela era. Trazia um jornal na mão.
— Pensei que tivesse aprendido a identificar golpistas desde que perdeu
a metade da cara, Damien. — A voz era rude e o sotaque francês acentuado.
— Mãe? — Ele pestanejou, tinha a cabeça a latejar e a boca seca.
Tentava recordar com eficácia os acontecimentos da madrugada, agradecendo
por ambos estarem vestidos como prova de não ter feito nada de errado. —
Quem lhe deu a autorização para entrar nesta casa?
— Vim verificar esse maldito noivado de perto, mas cheguei um pouco
tarde. Não sem antes receber a nova edição da Tempo. — Atirou o jornal para os
dois, e dava para ver as letras garrafais do título: CHARLTON VS JOHNSON –
Uma disputa pelo sobrenome Beauchamp.
Darcelle levou a mão à boca e soltou um grunhido, suas feições se
contraíram e desceu da cama num desespero. Não era assim como pensava ser
vista, ainda mais por aquela estúpida notícia tinha sido publicada especialmente
por Lorenzo Wright.
— Eu vou matar aquele…
— E você menina! — A senhora deu dois passos para frente a fim de
averiguar melhor de perto. — Eu sei o que está tentando fazer. Vai ser a
diferente, aquela que não tem repulsa pelo rosto assustador, aquela que o
encoraja, que não quer o nosso dinheiro e só tem amor para dar. Eu conheço esse
truque!
— Eu não vou responder apenas para não ser mal criada — Darcelle
redarguiu com firmeza e sentiu uma raiva interna por não explodir.
— Esse truque a senhora mesma usou para o meu pai, pois não? — Ele
se colocou a frente dela, como se a quisesse proteger de algo muito perigoso. —
E o dinheiro é meu.
— Nunca cooperei com essas atitudes, casamentos por contratos,
comprar mulheres para o amarem! Por isso fui embora por tanto desprezo por
participar dessas situações ridículas. — Como sempre Giovana o acusou, os
olhos em descrença espreitavam por trás da jovem.
— Não deveria ter voltado. Essa casa é minha, a vida é minha e eu quero
vê-la bem longe de tudo, como sempre esteve. — O Monstro Du Camp
caminhou em direção a porta e a abriu até ao limite. — A Giovana não estava
aqui quando eu precisei, agora é tarde demais para a sua ajuda. Se não sair em
cinco minutos, chamarei o segurança. O mesmo que corre o risco de perder
emprego por tê-la deixado entrar.
— Damien, ela é sua mãe! — Exclamou Darcelle, boa demais para saber
guardar rancores. Já tinha vivido uma situação parecida com àquela, a mãe de
Jamie também não era flor que se cheirava e a prima sempre a tratava com
rudeza, magoada pelos anos de sua ausência.
— Eu não disse que não era, só que quero que a Giovana se vá embora.
Agora. — A resposta demonstrou todo o nervosismo e a urgência de não querer
olhar na cara de sua progenitora. Havia ódio nas palavras, e Johnson não gostou
de o identificar.
— Meu filho pode ser um idiota, mas eu não sou. Conheço mulheres da
sua espécie. — Insistiu em frisar e não escondeu a admiração ao ver a jovem
revirar os olhos, demonstrando um certo descaso.
— A senhora pode ser tão céptica no quesito de não acreditar que alguém
possa realmente amar o seu filho por causa do rosto. Se eu o amo? Acho que
seria cedo para dizer isso, mas eu gosto de Damien e muito. Isso deve estar
escrito na minha testa, qualquer um com a sua idade ou experiência já deveria
identificar isso com muita facilidade! — Respondeu e desta vez sua voz não
falhou nem um segundo, ignorando o peso das próprias palavras e o rosto atónito
dos dois receptores.
— Até quando? — Giovana perguntou e ainda se demorou a encarar a
jovem à sua frente, analisando-a com toda atenção, antes de dar meia volta e sair
do quarto deixando os dois a sós.
O rosto de Beauchamp estava ruborizado e os olhos azuis fixavam a sua
assessora.
— O que foi que você disse? — Ele indagou, mas não era como se não
tivesse escutado pela primeira vez.
— Que eu realmente gosto de você. E eu penso que sabe disso. — Foi
sincera.
Damien ficou inerte.
Porta Fechada, A

“As portas irão se abrir quando você estiver preparado para passar por
elas.”

DARCELLE enxergou toda incredulidade nos olhos azuis, viu o medo,


a hesitação e até certa curiosidade, contudo nada era maior que aquele ponto de
interrogação perdido no olhar. Pensou em algo para reforçar as próprias palavras,
mas não encontrou nada que pudesse adicionar, se sentia exposta, como se
tivesse uma ferida aberta no meio da testa. Aguardou com pacatez, não poucos
segundos, vários minutos. Era como se várias coisas corressem na mente de
Damien, passado, presente e futuro. Um turbilhão de sensações
incompreensíveis até então.
— Me desculpe. — Ele disse e finalmente baixou os olhos, deu meia
volta e saiu do quarto, batendo a porta no percurso.
Ela ficou sem acreditar no ato feito, assistiu a porta se fechar como um
grandioso não e sentiu uma estranha dor ter varrido toda sua espinha,
fragilizando até sua alma. Teria entendido mal as palavras dele na noite anterior?
Teria sido precipitada, atrevida? Como esconder os sentimentos quando
acreditava que partilhasse do mesmo?
Quis ir atrás como sempre, exigir uma explicação para aquilo e abusar de
todos argumentos possíveis para obter uma justificação plausível sobre tal
atitude. Não conseguiu, apenas sentiu o corpo escorregar até ao chão e todas as
habituais forças se perderem. Então era aquilo que Jamie sentia quando Lorenzo
a magoava? Darcelle sempre fora tão firme e nunca havia experimentado até
então o que era o sentimento por um homem, por isso não imaginava a
proporção destruidora de uma rejeição.
Os olhos ficaram embaciados e tudo à sua frente pareceu tremer como
um lago sereno maculado pelo tilintar de uma pequena pedra, e então, algo tão
puro e cristalino rolou pelo seu rosto, uma seguiu a outra, como uma torrente
para exilar energias negativas.
Demorou a procurar forças para se mover e lutar contra a ridícula
sensação decadente a qual se encontrava. Passou as mãos pelo rosto, varrendo as
lágrimas que abriam caminho em linhas pelo seu pescoço ese levantou num
único salto. Quase se odiou por ter dormido ali, sequer se deu ao trabalho de
tomar um banho, apenas lavou o rosto e colocou o vestido vermelho, apanhando
os sapatos numa mão e sua bolsa na outra.
Abriu a porta enquanto tentava segurar o queixo erguido, um sentimento
ambíguo se destacou no paladar ao encontrar os corredores vazios, sem ainda
saber se estava ou não feliz por Damien não estar por ali.
— A noite foi boa?
Darci saltou no lugar ao dar de cara com Étienne que estava parado em
frente ao carro do lado de fora da mansão. Apreciava as próprias unhas e se tinha
livrado do uniforme ao qual antes foi obrigado a vestir. As roupas informais
mostravam o quanto era jovem.
— Bom dia.
— Estava esperrando você. — O francês abriu a porta de trás, mas ela
caminhou devagar, os pés reclamavam por estar em contato com o chão frio, e se
sentou no lugar ao lado do condutor. — Bom…
Estar dentro daquele carro luxuoso a carregava de volta para o conforto
dos braços de Beauchamp. E, de momento, só queria poder esquecer tudo o que
tinha sido dito. A sensação de dor no peito era constrangedora demais, pois não
sabia lidar com ela.
— Oiça… — Étienne começou por dizer. — Prromete aumentar meu
salárrio depois que virar a senhora Beauchamp?
— Pare com isso.
Ele então reparou no rosto singelo que exalava informações em tempo
real de um estado de espírito pardacento. Balançou a cabeça.
— Está magoada. — Constatou ao dirigir para longe dos muros altos da
mansão. — Uma musiquinha da felicidade parra alegrrar?
A Johnson até chegou a rir e concordou com a cabeça, se deixando
embalar por uma melodia qualquer que inundou o veículo. Ainda podia escutar o
motorista murmurar algumas coisas em francês, e mesmo sem compreender,
estava claro que praguejava sem parar.
— Somos uns amigos estrranhos, não somos? — Étienne perguntou
quando desceu pela estrada que levava ao Broom. As ruas muito se diferiam do
luxo que era o centro de Belmore. Os prédios mal pintados e as ruas esburacadas
se destacavam logo de início.
Ela teve que concordar.
— Somos sim.
— Um dia eu conheci essa francesa marravilhosa, ela cantava num bar e
tinha uns olhos grrandes sedutores. Fiquei logo encantando, só a querria de
todas as forrmas e coloquei todas as vontades dela em prrimeiro lugar. Até que
um dia a Fleur me trrocou por outrro qualquer. Eu fui me lamentar feito um
mendigo parra tê-la de volta, mas ela fechou a porrta na minha cara.
— Sinto muito… — Darcelle o encarou de lado, mas não encontrou
nenhum traço de tristeza no rosto jovial. — Você deve ter ficado muito
magoado!
— Eu não guarrdo mágoas. Guardo nomes!
Ela riu alto e o bateu no ombro.
— Estou brrincado, mas oiça, se prrender a mágoas é como se prrender
a um processo de infelicidade. E você não quer ser infeliz, pois não?
— Não.
— Boa garrota! Agorra pode descer.
Quando chegou a sua pequena casa, tinha o cabelo natural desgrenhado e
um olhar abatido. Atirou os sapatos para um canto qualquer, mas se estacou ao
ver Jamie que estava curvada sobre o sofá, tinha uma ferida aberta nos lábios e
os braços todos ralados em machucados expostos. A mão direita tremia a medida
em que cosia um profundo corte na perna grossa e sequer olhou para a prima, a
vergonha cobria o rosto da estudante.
— O que aconteceu? — Darcelle esqueceu de suas próprias dores ao
avistar o estado precário que a outra se encontrava. O Kit médico estava aberto e
várias bolas de algodão ensanguentadas estavam num amontoado no chão. — O
Lorenzo fez alguma coisa? O senhor Dash?
— Não, claro que não — negou veemente, deixando claro a
impossibilidade de um deles fazer algo violento contra ela. — Fui assaltada,
roubaram meu carro.
Mentia.
Jamie mentia tão mal quanto dois mais dois fosse igual a três. Estava
certo que nenhum daqueles homens tinha feito algo, mas existia outra história
por trás da contada.
— Me ajude, me passa o curativo e traz a caixa de remédios — pediu, a
voz estava devastada e isso também fez Darcelle se sentir um lixo. Quis abraçar
a prima e chorar, mas sabia que ela não ia querer isso.
— Por que não foi ao hospital? Não percebo. — Questionou enquanto
fazia o que lhe era pedido, também trouxe um copo com água, ajudou a fazer os
curativos e limpou a sujidade do chão.
— Eu sou médica… ou quase.
A assessora de Beauchamp não gostava daquele jeito fechado da sua
prima, era como um rochedo intransponível sempre a procura de alguma defesa
contra a vida e não parecia querer mudar. Limitou-se a arranjar algo para Jamie
comer e beber e um cobertor para que esta pudesse descansar no sofá, não
parecia em condições de se deslocar até ao quarto.
— Por muito que você prefira não falar sobre suas coisas, eu quero que
esteja a par do que acontece comigo. — Darcelle já tinha trocado de roupa e
estava numa pequena poltrona, com um prato no colo e sem muita vontade de
comer. Ouviu a outra a pigarrear qualquer coisa dentro do cobertor. — Eu tenho
esse sentimento… não sei se é amor, mas é muito forte. Talvez tenha sido muito
atrevida, mas me declarei e simplesmente Damien fechou a porta na minha cara.
— Não seja tonta, pequena. O senhor Beauchamp não deve estar
acostumado a ter pessoas que gostem dele com aquela aparência, estava certo de
nunca vir a encontrar o amor. Você parecia a própria noiva desejada, nunca vi
um olhar mais sincero do que aquele que te deu quando dançavam no noivado.
— As palavras de Jamie soaram como verdadeiros bálsamos para o coração
recém ferido.
— O que faço?
— Espera. Os homens, Darci, às vezes precisam de um tempo para
assimilar as coisas. São fracos demais.
— Por que não me contou sobre Christian Dash?
— Por vergonha.
— Promete que nunca mais vai ter vergonha de me falar as coisas?
— Prometo.
— Estamos juntas em tudo. Agora…
— … E Sempre.
Darcelle tentou comer um pouco, mas desistiu e pousou o prato por cima
da mesa. Olhava para a prima que ainda estava de olhos abertos a encarar o teto
mal pintado por causa de uma infiltração qualquer.
— Você sabe, Jamie… Que eu sempre te admirei muito. Sempre te tive
como um exemplo a ser seguido, você era e é a minha heroína.
— Eu? — Ela riu, puxando os lençóis para mais perto do rosto. — Se eu
pudesse, seria igualzinha a você. Alegre, boa e altruísta demais.
— Na escola quando implicavam comigo, era você que ia me defender e
colocar todos no lugar. Quando ficava doente, era você que preparava as sopas e
fazia de enfermeira, brincando comigo para nunca me sentir aborrecida. Quando
ficava sem roupa, era você que as remendava e as transformava em algo novo.
— Darcelle soltou um suspiro. — Sempre que fecho os olhos para o passado,
você está lá por mim. O que fiz por você? Quando é que já ficou doente que não
me lembro? Quando teve uma briga? Nunca. Sempre tão forte.
— Quando ficava triste, Darci, era você que me recebia com um abraço
verdadeiro. Que lia histórias para que eu parasse de estudar tanto e pudesse ser
uma menina com um pouco de lazer. Que me dava conselhos certos mesmo sem
se aperceber. Que ao invés de ficar chateada quando eu lhe dava uma resposta
torta, ficava pronta para me aceitar. Exatamente como sou. — Ela virou o
pescoço. — Eu admiro você.
— Sinto que poderia fazer mais e ser tão determinada como você.
— Você já é. Somos todos diferentes e temos propósitos diferentes nesta
vida. Não estar lutando para ser cirurgiã, não quer dizer que o que está fazendo
seja inválido. Você é única no meio de tantos outros iguais a mim, acredite e
verá.
Darcelle sorriu e piscou para espantar as lágrimas. Eram raras vezes que
Jamie se dignava a conversar sobre assuntos tão profundos. Soltou um suspiro
aliviado sabendo não dever se diminuir tanto pelo que era.
— Darci?
— Hum?
— Mantenha as portas abertas.
— E você, Jamie? Por que suas portas estão fechadas?
A prima deixou um curto sorriso.
— Tranquei as portas para poder apreciar a vista pelas janelas.
[…]
A semana na Beauchamp começou cheia de expectativas para a Johnson,
ansiava por ver Damien entrar na sala a frente e poder vê-lo ou falar, mas isso
não aconteceu. Recebia ordens através do senhor Dash e trabalhava diretamente
com ele ou com outros responsáveis por outras áreas.
Não haviam trocado telefonemas ou mensagens. Nada que pudesse
clarificar como as coisas seriam dali em diante depois de tudo o que tinha sido
dito, mesmo assim, pela primeira vez se permitiu ser um pouco orgulhosa e não
correr atrás para o questionar, até porque a porta tinha sido fechada na sua cara e
não o contrário.
— Er… Darcelle, será que eu podia ter uma palavrinha com você? —
Parado junto a porta, o administrador da empresa parecia novo demais e perdido
naquele meio. Só a sua competência o salvava.
— Claro, está tudo bem? Fiz algo errado? — Olhou para o relógio
manual pendurado no alto da porta, indicava o fim de mais um dia de trabalho.
Ainda assim, não sentia vontade de ir para casa, era como se estar ali a pusesse
mais perto daquele que a tinha rejeitado.
— De errado? Não. Quanto ao trabalho só recebo elogios sobre você. —
Chris andou um pouco mais e fechou a porta com cuidado. Os olhos verdes
contrastavam com o cabelo irremediavelmente desalinhado. — Sei que não é o
local, mas a sua prima… o que aconteceu com ela? É que o carro que eu lhe dei
não foi roubado, foi trocado num beco de viciados.
A assessora levantou os olhos num ato rápido e crítico, fazendo Dash
perceber que era algo bem pior do que poderia imaginar.
— Ah… — Se lembrou do estado deplorável da prima. — É a minha tia.
A mãe de Jamie é dependente química e deve estar aqui na cidade! — A voz
quase saiu chorosa, entendendo tudo com uma rapidez inimaginável. Estremeceu
por todo corpo e sentiu a garganta ficar seca. — Ela apareceu toda ferida, deve
ter tentado salvar a mãe de alguma coisa.
— Por que ela não fala comigo? — Dash gritou sem se conter e bateu
com o punho fechado por cima da mesa da assessora que arregalou os olhos —
Desculpe, Darcelle.
— Tudo bem, compreendo. Mas saiba que a Jamie nem comigo fala.
Vamos precisar de sua ajuda, se ela estiver sendo vítima de alguma chantagem,
pode ser muito perigoso.
Christian não disse mais nada, apenas abandonou a sala da assessora de
Beauchamp mais rápido que as pernas poderiam permitir. A jovem também não
se fez de rogada, desligou os eletrónicos e usou o seu casaco antes de apagar a
luz do lugar, descendo o elevador de forma impaciente. O coração palpitava
contra o peito.
— Senhorrita Johnson! — Étienne a interceptou na saída do enorme
edifício, inclusive Rupert, a recepcionista, não deixou de curvar o pescoço para
assistir o que quer que fosse. — Por favor, venha comigo.
Ela estranhou, mas não teve tempo sequer de reclamar, apenas engoliu
saliva para molhar a garganta e não demorou a confirmar as suas suspeitas. O
Bentley Mulsanne estava parado em toda sua opulência.
— Você é muito imporrtante, pequena ingénua. — O francês murmurou
quase entre dentes. — Não se deixe intimidar por nada, oui?
— Oui. — Darcelle concordou com a cabeça e respirou fundo antes de
ver o jovem motorista abrir a porta com elegância.
— Senhor Beauchamp — disse assim que entrou no carro, tentou parecer
a mais séria possível, mas a felicidade interna por o ver depois de alguns dias,
parecia querer se descontrolar. Não era suposto estar ainda dolente?
— Boa noite, Darcelle. — Não a encarou de imediato. — Preciso lhe
falar.
— Eu não posso agora, preciso ajudar minha prima. O senhor Dash foi
atrás dela e…
— Aposto que o Chris trata disso melhor que você. — Damien fez um
sinal com a mão logo que Étienne entrou no lugar do condutor, as portas do carro
se trancaram e o carro começou a ganhar velocidade.
— Não tem o direito de aparecer assim do nada e decidir sobre o que
pretendo fazer ou não. — A mágoa não demorou a se fazer presente,
surpreendendo inclusive a interlocutora pelo tom acusatório que era visível na
sua voz.
O Monstro Du Camp estava calmo, seu lado deformado estava mais
encostado à janela. Os cabelos loiros estavam bem organizados para trás e,
aquela fragrância masculina era inebriante. Darcelle não tinha como descrever a
sensação de o ter por perto, pois se sentia zangada e feliz ao mesmo tempo.
— Me deixe falar algumas coisas e depois a levarei até sua prima —
pediu. Embora o tom da voz soasse calmo, as mãos frias indicavam um mundo
cheio de tantas outras coisas que não sabia qualificar.
Ela trincou os dentes com força, unindo os lábios numa linha reta como
se quisesse proibir o próprio linguajar de sair para fora.
— Pois fale.
— Não aqui.
Queria perguntar aonde, mas preferiu ficar calada com o olhar distante
para o movimento da cidade. O que lhe diria Beauchamp? Estaria preparada para
o que vinha pela frente?
— Acha que deveria concordar em esperar depois do que…
— Acho que poderia apenas me escutar. — Damien finalmente se dignou
a fitar o olhar azul, que se iluminou, no rosto dela.
— Certo. — Ela desviou o olhar. Eram muitas perguntas, só por isso se
permitiu relaxar durante a viagem que se seguiu.
Transbordar da Paixão, O

“Não se inquiete tanto pelo seu passado. Você não vive mais lá.”

O Bentley Mulsanne parou quase por baixo da grande ponte da cidade,


em frente ao mar. Dali dava para ver a paisagem bonita cheia de luzes e prédios
altos com reclames em outdoors gigantescos.
— Obrigado, pode ir agora. — Damien dispensou Étienne, lhe dando
algum dinheiro para que pudesse apanhar um táxi para casa.
— Se prrecisar de alguma coisa é só chamar senhor Beauchamp. — O
motorista disse na sua voz quase cavernal, mas os olhos esgazeados se
direccionaram para a amiga que parecia absorta demais. — Tenham uma boa
noite.
— Obrigada. — A voz quase esbaforida o agradeceu, o vendo seguir pelo
caminho cimentado repleto de belos coqueiros que adornavam o local um pouco
movimentado. Em seguida, Damien encaminhou Darcelle para um dos vários
bancos de pedra onde se podia ouvir o barulho do mar e os carros que passavam
e buzinavam lá em cima.
Um casal passou a exercitar os corpos numa corrida, quando olharam
para os dois ali sentados, a mulher indiana não resistiu a comentar qualquer coisa
na sua língua materna, sem deixar de dar a entender mesmo num outro idioma,
exatamente o que falava. Alguma crítica veiculada no rosto esplendoroso que se
desviou logo que pode.
— Para que me trouxe aqui? — A assessora chamou sua atenção,
ignorando o que a outra mulher poderia ter dito. Não queria que Damien se
concentrasse naquilo agora.
Ele respirou fundo e virou o corpo para frente, sentando-se com uma
perna de cada lado do banco, algo nada formal vindo dele. Chegava a parecer um
daqueles adolescentes no seu primeiro encontro amoroso. Os cabelos loiros eram
desarrumados pelo vento que parecia vindo das ondas do mar, lhe conferindo um
ar quase rebelde.
— Sei que pensa que gosta de mim… Shhh, espere. — Colocou um dedo
nos lábios carnudos assim que viu estes se abrirem para protestar. — Eu nunca
fui uma pessoa agradável. A verdade é que os meus amigos não se afastaram de
mim só por causa do acidente, eu é que nunca tive muitos. Era rico, esnobe e
arrogante. Desfilava a minha beleza e inteligência por todo lado. Namorava
mulheres que talvez não me amassem ou eu não as amasse, mas isso nunca foi
importante, desde que estivessem nos padrões: Tinha que ser bonita, de boa
família e conhecida na sociedade.
Os olhos de Darcelle pareciam ouvir mais que os próprios ouvidos, pois
tinham-se transformado em duas esferas dilatadas, embora ainda assim, escuros
como o belíssimo manto que os cobria lá no alto.
— Na Academia Militar eu era o melhor, sempre atento a cumprir tudo
com certeza de estar sempre na frente. Não me misturava com os que achava
inferiores a mim. Se fiquei amigo de Chris, foi porque sempre me desafiou e
dizia as coisas na minha cara, sem medo. A verdade é que o resto me odiava, e
eu não me importava! Era Damien Jacqes Beauchamp!
As ondas do mar estavam serenas, e o Monstro Du Camp segurou as
mãos escuras e delicadas, sentindo o próprio coração batendo no ato.
— Provavelmente eu nunca teria olhado para você, Darcelle. Se não
tivesse acontecido isto. — Apontou para o rosto. — Ia achar que era inferior,
longe dos padrões certos, sequer lhe daria a oportunidade de me dirigir a palavra.
A pessoa de quem você gosta não existe e por isso eu fechei a porta naquele dia.
Me senti uma fraude se não lhe contasse isso.
— Ninguém é perfeito.
— Me diga algo que tenha feito de errado nesta vida? — Riu baixo,
sequer imaginando possível que ela pudesse fazer coisas desacertadas.
— Eu pedia para Jamie fazer trabalhos para mim da escola e dizia que
era eu. Ah! E roubava as canetas da minha mãe. E mentia para meu pai que
precisava comprar livros para escola enquanto ia comprar romances e
almanaques.
Desta vez Damien riu com veracidade, os olhos se afinando no processo.
Negou com a cabeça e passou uma mão no rosto da amada.
— Alguma vez alguém lhe odiou por ser quem era? — Ele perguntou
num tom tão baixo, se permitindo engolir as palavras que pesavam agora em sua
garganta. A vergonha que sentia por ter sido durante muito tempo um corpo
perfeito e mais do que vazio.
— O ódio é uma mão de duas vias. Tanto amarga quem sente e a quem é
dirigido. — Fez uma pausa, mas não desviou o olhar. — Eu conheci você antes.
Damien pestanejou. A expressão do seu rosto foi como se tivesse levado
uma pancada no meio da testa que o fez recuar.
— A mim?
— Eu era ainda uma adolescente e fui lhe pedir um autógrafo quando
ganhou seu último troféu de Turfe. Você estava com seus amigos e não só foi
rude, como mal me olhou duas vezes. Me desprezando tal como um cão
sarnento. Lembra?
— No clube jóquei… — Ponderou e a palidez em seu rosto serviu para
replicar toda a tristeza que o consumiu. — Eu…
— Eu só queria um autógrafo. Sempre vivi numa bolha protegida pela
minha família e foi a primeira vez que tive contato com uma pessoa tão… —
Hesitou por uns segundos e então desviou o rosto. — Tão má.
— Você se lembrava disso o tempo todo? — Perguntou, dando a entender
que mal tinha memórias exactas de tal situação que agora lhe era muito
desconfortável.
— Sim.
— E mesmo assim… Mesmo assim foi generosa comigo.
— Talvez seja uma tola… Mas como dizem, cada um dá aquilo que tem
para oferecer. E eu não saberia ser diferente quando toda minha alma grita para
ser boa.
Os olhos azuis não só se mostravam indignados de uma maneira
subversiva, como o dono destes parecia se afogar um pouco mais na sua própria
inexorabilidade. Desviou o rosto para o mar, imaginando que lá estariam as
respostas de tudo o que o povoava até então.
— Durante toda essa semana que passei distante de você, não conseguia
deixar de imaginar a razão de ter a oportunidade de experimentar o amor de
alguém que toda vida foi oposta a mim. Se é que já paguei em todos os castigos
que a mim foram prometidos, Darcelle, como aceitar então algo tão puro e bom?
— Soltou um suspiro, mas as mãos grandes procuraram apertar as dela. — Serei
merecedor?
— Todos fazemos por merecer.
— Acredita então que essa é a oportunidade que tenho de me transformar
por completo, bebendo de toda sua natureza regada de tanto amor? Não serei
egoísta ao querer aceitar uma pessoa que mereceria muito mais do que um
homem como eu?
— Eu sou pobre, nem tão bonita e muito simples. Contudo, acredita que
a meio de tão pouca oferta que possuo, um homem como você está abaixo
daquilo que mereço?
— Para mim é a mais afortunada que pude conhecer até agora. E a mais
bela também. — Afirmou e sentiu um furor crescente em seu peito amplo que
parecia estar adormecido no tempo até então. — O meu passado ainda me é mais
pesado que estar agrilhoado no fundo do mar.
— Não estamos falando do passado, e sim do presente. Quem é Damien
Beauchamp agora?
— Alguém que nunca experimentou do verdadeiro amor e que teme
falhar agora que finalmente o encontrou. Serei um homem justo para você?
— A isso, esperamos o futuro responder.
Ele se levantou e lhe estendeu a mão, agarrando-a para junto de si e a
conduziu pela areia da praia. Os corpos próximos se interligavam numa aura
notável de pura paixão, medo e ansiedade. As peles conversavam em toques
ocasionais a medida que iam se roçando.
Pararam quase perto de um dos grandes pilares de ferro que sustentavam
a construção rodoviária. Ele mordeu os lábios, inquieto, sentindo de perto o
motor dos carros que corriam de um lado para o outro.
— O acidente foi nesta ponte. Nunca tinha voltado aqui antes. —
Levantou a cabeça para olhar para cima e soltou um suspiro profundo. — O
caminhão vinha descontrolado na minha direção, outros veículos vinham atrás.
Se eu virasse o meu carro todo para a direita, a minha companheira seria afetada,
se eu virasse para a esquerda… seria eu. Ou então batíamos de frente.
— Você virou para a esquerda… — Um mar cobriu os olhos da Johnson
ao compreender tudo de uma só vez, e se inclinou para o abraçar, mas este a
segurou pelos ombros, impedindo-a com firmeza.
— Sei que por trás todos acreditam que eu mereço o que aconteceu, às
vezes até eu penso nisso. Hoje eu aprendi a ver Para Além da Beleza. Nunca
gostei de ninguém como gosto de você. Nunca. Chega até a doer.
Desta vez as lágrimas caíram como uma torrencial em dia de tempestade,
Darcelle não conseguiu segurar, o coração parou de bater por um milésimo de
segundo e depois retornara a um ritmo tão forte quanto um grupo de índios a
pedir por chuva.
— O que quer saber? — Ela questionou, lambendo o sabor salgado dos
próprios lábios. — Se o vou recusar por causa daquilo que você era?
— Quero saber se está disposta a trilhar o caminho difícil que temos pela
frente. As pessoas vão nos medir, vão especular, vão fazer da nossa vida um
inferno até que aceitem que estamos juntos. Você vai perder sua privacidade, sua
vida será exposta do princípio ao fim. Vai haver uma perseguição incansável, e
eu não quero submetê-la a isso se não estiver certa.
— Esqueceu como eu sou, Damien? Esqueceu?
— Não. É exatamente por isso que meu coração quer você.
Beauchamp se inclinou para a beijar nos lábios, desta vez sem pressa
nenhuma. Primeiro lhe deu pequenos estalos, antes de se deixar mergulhar
naquela boca carnuda e macia, que não só aqueceu seu peito como adocicou toda
sua alma. Darci parecia meio hesitante no início, mas breve se deixou embalar e
acompanhar com facilidade os lábios intensos que lhe dedicavam todo um
sentimento incalculável.
— Não voltará a fechar a porta na minha cara? — Perguntou entre os
lábios que a encantavam. Quando poderia imaginar que se derreteria nos braços
de um homem daquele jeito?
— As minhas portas estarão sempre abertas para você.
No meio da agitação da cidade e do mar, no meio do mundo inteiro, um
silêncio ensurdecedor fez-se ouvir naquele exato momento. O início de um novo
amor.
[…]
O que chamou a atenção de Darcelle não foi só a maravilhosa
propriedade moderna feita de madeira, e sim o incrível haras com um enorme
campo verde e sadio, destinado a criação dos cavalos de raça pura. Parecia não
ter fim, e os grandes estábulos dentro do território exibiam os inúmeros cavalos
existentes.
Damien estacionou o carro numa das garagens privadas e insistiu para
abrir a porta para que a companheira descesse. A curiosidade para ver a
coudelaria era gigantesca, mas o ar frio e o ambiente noturno não ajudava em
muito, e por isso percorreram as escadarias de madeira e uma pequena ponte até
dentro da casa.
— Senhor Beauchamp! — A governanta estava ainda mais velha do que
poderia se lembrar. Os cabelos todos prateados e os olhos com rugas profundas
nos cantos, indicavam o tempo que tinha passado desde que se tinha ido embora
dali com uma máscara no rosto.
— Nena. — A forma como o loiro se dirigiu a mulher que lhes abriu a
porta, fez com que toda tristeza se esvaísse no mesmo instante. Lhe trazendo a
lembrança do menino pequeno que corria pelos gramados do haras sem se
importar com os privilégios que a vida lhe tinha preparado. — Quero que
conheça a Darcelle.
— Seja muito bem-vinda, sou a Helena. Entrem logo, está frio. — A
governanta hesitou em se aproximar do jovem Beauchamp, mas recebeu de bom
grado o abraço que Darci lhe deu. — Não esperava recebê-lo. — Na verdade
tinha esperado por muito tempo, até que desistiu.
— Espero não atrapalhar na sua rotina.
— Jamais! Seu quarto está pronto como sempre. — Helena entrelaçou os
dedos. Os olhos brilhavam de pura emoção, ainda mais por vê-lo sem a maldita
máscara. Teve que segurar a curiosidade.
Johnson apreciou a mobília antiga que ajudava no espetáculo da
decoração, vários quadros com cavalos belos e de porte estavam dispostos em
todas as paredes possíveis. A cozinheira e um dos cuidadores também os vieram
receber, sempre simpáticos e alegres por verem o patrão ali novamente após dez
anos. Nenhum dos empregados pareceu assustado ou horrorizado pelo rosto
descoberto, muito pelo contrário, estavam todos empenhados em preparar o
quarto e o jantar para que ficassem confortáveis.
— Tem preferência por alguma coisa? — A cozinheira era uma mulher
ao redor dos quarenta anos, testa alta e traços fortes. Usava um avental branco e
sorriu para o casal.
— Qualquer coisa está boa. — Darcelle não queria incomodar de forma
alguma. Já era tarde da noite, pois a viagem de Belmore para San Luis Obispo
era um pouco demorada.
— Por isso está tão magrinha! — Helena exclamou meneando a cabeça,
e os acompanhou pelas longas escadas de madeira reluzente até ao andar de
cima.
Assim que cruzaram a porta do quarto onde iam ficar, Darcelle percebeu
imediatamente que aquela era a casa de infância do herdeiro. O quarto tinha
lençóis novos, mas os troféus pendurados nas prateleiras, as fotos da escola com
colegas e em festas e viagens, estavam coladas num grande quadro. Luvas de
futebol e um chapéu militar estavam pendurados junto ao grande guarda-roupa
cujas portas eram de espelho. Livros juvenis e antigos DVD’s variados
ocupavam a prateleira de baixo.
— Fique à vontade. Eu vou tomar um banho. — O maxilar dele estava
rígido, e se dirigiu a porta ao lado sem olhar para o passado que cobria todo
quarto. Por outro lado, Johnson não conseguiu se segurar, apreciando em
primeiro as fotografias e viu naquelas memórias um homem que não conhecia.
Um belo rapaz loiro e feliz, em festas, viagens, jogos e desafios. Com grupos de
amigos, uma bela loira que aparecia na maioria das fotografias ao seu lado, entre
milhares de situações que jamais poderia imaginar.
O quão doloroso fora ter sido arrancado daquela vida para um realidade
isolada e desprezada?
— Essa era a Bianca, minha ex-namorada.
Assustou-se por ouvir a voz dele tão próximo. Perdera a noção do tempo
apenas apreciando as inúmeras imagens e o rosto intacto não mais existente, e
sequer se dera conta do retorno de Damien.
— Esse aqui era o Michael, o Quarterback da nossa equipe. Se casaram e
têm dois filhos. — Não havia ressentimento na voz, muito pelo contrário, o tom
representava uma nulidade.
— Também vou tomar um banho. — Esgueirou-se de perto do corpo
molhado apenas coberto por um roupão e saiu para apreciar a água do chuveiro.
Tinha sido um dia cansativo, e estar ali dentro do que representava um passado
do homem que gostava a fazia sentir uma estranha nostalgia. Demorou a se
enxugar e usar outro roupão ali pendurado. Eram todos de veludo, com um
grande B e o desenho de um cavalo, bordados.
Quando voltou ao quarto, uma mesa de rodas trazia comida quente e
bebida, Damien estava sentado na cama com o controle na mão e a televisão
ligada. Parecia tão sossegado como nunca antes.
— Te esperei para jantar — disse e se levantou para sentar junto à cama.
Sentiu um calor quando ela se sentou ao seu lado com um sorriso meio tímido e
um ar cansado.
— Obrigada. Estou faminta! — Tentou parecer relaxada, mas a verdade é
que um terramoto ocupava toda sua barriga por dentro e destruía as fundações do
seu coração.
— Bem-vinda ao meu passado. Cresci toda a vida aqui, minha família
inteira praticou o Hipismo como um desporto principal. Realizávamos torneios,
desfiles de cavalos e sequer imagina quantos potros eu já trouxe ao mundo. —
Contava com um ar sonhador, enquanto servia as batatas cozidas e o molho de
carne fumegante.
— Nunca montei um cavalo — confessou timidamente e aguardou que
ele se servisse para começarem a comer. Achou irónico a assessora da maior
empresa de criação de cavalos do mundo não ter sequer chegado perto de um.
— Pela manhã é só escolher, eu te ensino.
— E Jamie? E a senhorita Charlton? — Lembrou-se de repente e sentiu
um grande peso de consciência por estar ali, feliz, sabendo que aquelas duas
mulheres podiam experimentar de um sabor amargo da vida.
— Sua prima está bem e com Dash. Deve ser bom para que se entendam.
— Comeu um pedaço de brócolis que a companheira afastou do prato, numa
naturalidade que nenhum dos dois se apercebeu. — Preferia não falar de Emma
por agora.
— Eu preferia falar. — Insistiu e pousou o garfo se virando para o olhar
de frente. Ouviu mais um suspiro exasperado, acompanhado do cicio dos ramos
das árvores lá fora. Damien largou os talheres e coçou a nuca.
— Eu vou falar com ela quando voltarmos, prefiro que seja pessoalmente
e não por intermediários. Está certo?
— Eu queria estar presente, não porque duvido de você, e sim para não
me sentir covarde por não ter dado a cara. Como se eu tivesse ido à mansão para
roubar o noivo e…
— É melhor não. — Cortou-lhe sem receio. — A senhorita Charlton
assinou um contrato e o mesmo terá de ser desfeito em trâmites legais. Não terá
o coração partido, pois não partilhava de nenhum sentimento, e será indenizada
acima de tudo.
— Como pode afirmar a existência de um sentimento ou não, da parte
dela? — Perguntou só para ouvir os pensamentos dele.
— Não foi você que me ensinou que quem gosta não se preocupa apenas
com o exterior? — Rebateu cheio de pirraça e voltou a atenção para o jantar. —
Sem contar que eu sei que a senhorita Charlton tinha um interesse amoroso.
Darcelle quase se engasgou, não querendo dar a entender que também
tinha conhecimento para não se mostrar cúmplice de tudo aquilo. Bebeu um
longo gole de água, sabendo estar sendo analisada atentamente.
— Não se preocupe. Não era de sua conta se intrometer. — A acalmou
com toda calma do mundo e voltou a se concentrar na refeição saborosa.
Quando terminaram, deixaram a mesa de rodas no corredor e entraram
para dentro da cama quente e confortável, muito próximos um do outro.
Assistiram um programa qualquer pela televisão a cabo, fingindo manter
interesse naquilo por uma hora inteira, até Beauchamp ganhar coragem para se
virar para o lado e beijar Darcelle nos lábios. Explorou os lábios devagar, com
toda lentidão em conhecer cada textura e canto daquele novo sabor
desconhecido, era quente e molhado, e parecia acender diretamente o coração.
— Que método contraceptivo você usa?
Johnson recuou ao ouvir o murmúrio sair no meio do beijo, os olhos
pestanejaram e sentiu o rosto queimar em brasas de carvão por causa da pergunta
tão direta. Quase pulou no lugar, mas a leveza com a qual havia sido feita, não a
deixou se desassossegar.
— Nunca precisei de nenhum. — Usou o ar mais natural que encontrou
no fundo de sua timidez profunda.
Viu o rosto do homem se contorcer numa admiração inquieta, os olhos
azuis se estreitaram antes de uma luz invisível se acender no cimo de sua cabeça.
— Quando me disse que nunca namorou, isso incluía que… nunca fez
sexo? — Perguntou, os orbes azuis se abriram como dois berlindes assim que
viram a resposta positiva que ela fez com a cabeça.
Não porque Darcelle fosse puritana de todo, apenas nunca tinha sentido
nenhuma vontade com ninguém antes.
— Céus. Eu não tenho nenhuma proteção aqui comigo — admitiu,
pensou sair para comprar, mas estavam muito distantes da próxima loja de
conveniências. Estivera tão imerso nos novos sentimentos que se esquecera
completamente disso. — Está no período fértil?
— Não. Mas e as doenças?
— Eu vi os seus exames feitos para a Beauchamp. Sei que é
completamente saudável, quer que eu lhe mostre meus exames? Tenho arquivado
no correio eletrónico, posso usar o celular e… — Damien calou-se de repente, o
rosto ficando vermelho. — Me desculpe, Darci. Perdão, eu sequer perguntei se
você quer que nós… Eu entendo se for cedo. Não queria…
— Se acalme. Somos dois adultos. — Segurou a mão dele, entrelaçando
os dedos numa tentativa falha de lhe transmitir uma calmaria que nem ela
possuía. — E eu quero sim.
— É melhor não. Vem aqui, deite em meu peito. Quero que esteja
preparada. — Puxou-a para junto de si, mas sentiu quando houve resistência da
outra parte.
— Me prepare, então. — Darci ganhou coragem e levou as mãos ao nó
do roupão dele, o desfazendo com delicadeza.
Se era para ser, ao menos que fosse com aquele que a fazia transbordar
de tanta paixão.
Natureza do Amor, A

“A natureza nos oferece felicidade através de lugares magníficos, é
preciso apenas parar e olhar.”

O corpo masculino estremeceu quando ficou desnudo, revelando as


cicatrizes que desciam pelo pescoço abaixo, exibindo a pele do lado direito num
verdadeiro manto de reminiscência. Havia dor no olhar azul.
— Eu não quero que me veja assim.
— As piores cicatrizes são as da alma e do coração, aquelas que mesmo
invisíveis a olho nu, parecerem sarar por fora, mas por dentro ainda estão abertas
como nunca. Deixe-me ser o bálsamo para todas suas dores. — À medida que
falava, primeiro depositou um beijo no rosto deformado e depois desceu devagar
pelo pescoço, trilhando um caminho de selinhos por toda extensão restante
marcada.
— Darcelle… — Gemeu baixo, sentindo o corpo se arrepiar por inteiro e
o âmago bater descompassado. Não se lembrava quanto tempo fazia que não era
tocado daquele jeito tão íntimo e tão a descoberto. Por um instante se sentiu
como um adolescente na sua primeira vez, esta que mal se recordava, mas tinha
certeza que jamais esqueceria aquele exato momento.
As bocas se encontraram com avidez, as respirações ofegantes alteravam
entre os sons molhados das línguas ágeis. Damien percebia como ela estava
tímida, procurando mostrar um à vontade que não lhe competia, pois tremia a
meio do beijo, sem conseguir segurar toda a emoção mesclada ao receio que a
invadia.
Também lhe abriu o roupão, o tirando num processo lento, cruzando o
olhar azul no rosto dela de modo a passar toda uma segurança. Estava excitado
não só por descobrir o corpo mais bonito que vira até então, mas por perceber
que faria amor pela primeira vez.
— Deite-se — pediu num tom brando, agarrando sua nuca e a colocando
estendida por cima do colchão macio. Os olhos tão escuros o encaravam com um
brilho único, não paravam quietos, e ficaram envergonhados quando ele a tocou
nos seios pequenos.
A beijou mais uma vez nos lábios, desceu pelo queixo e passou a língua
pelo pescoço, sorvendo o gosto da pele escura que tão bem lhe sabia. Foi ele
quem gemeu primeiro ao experimentar os mamilos que se arrepiaram, mas os
olhos azuis se ergueram para ver o rosto dela. Darcelle tinha uma expressão de
surpresa, seus lábios entre abertos deixavam escapar pequenos sopros
comedidos, sem conseguir segurar os olhos que se fechavam de cada vez que
sentia a língua brincar em seus seios.
— Feche os olhos. Se permita sentir. — Damien mordiscava ao de leve,
as mãos passeando pela cintura estreita e escorregando para acariciar as pernas
aveludadas. Era demais como podia ouvir o próprio coração bater só de a ter ali,
toda entregue às suas carícias apaixonadas.
Darcelle finalmente cedeu após ouvir a voz melodiosa, mas não
conseguiu prender um grito quando o sentiu descer até ao meio de suas pernas.
Todo corpo se arrepiou quando a língua intumescida a tocou no íntimo, lhe
causando novas sensações que nunca antes sabia ser possível de experienciar.
Apertou os lençóis entre seus dedos, deixando a vergonha por não conseguir
conter os gemidos que escapavam de sua boca de forma involuntária e o fogo
que a consumiu enquanto Damien a levava até um novo nível de sensibilidades,
fez com que se contorcesse.
O que era tudo aquilo? Só sabia que queria e precisava mais. A boca
quente beijava sua intimidade e a língua brincava dentro do seu canal
inexplorado. Levantou uma mão para agarrar os fios loiros, pois achava que iria
parar de respirar a qualquer altura. Ofegou quando o viu se afastar e subir até a
altura do seu rosto, demorou a perceber que ele correspondia ao sorriso que
estava estampado em seu próprio rosto, antes de a beijar mais uma vez e a tocar
com a mão, deixando-a a ponto de ebulição.
Darcelle também queria tocá-lo, mas temia não fazer de maneira certa,
limitou a explorar o peito largo e forte que parecia ditar que a protegeria de
qualquer coisa. Se segurou aos braços fortes, gemendo contra a boca quente que
sorvia seus lábios com tamanho desespero. Damien conduziu a pequena mão
trémula para o seu membro, ensinando-a como tocá-lo e lhe dedicou outro
sorriso ao ver como ela parecia espantada quando sentiu a textura dura e grossa
coberta por veias palpitantes.
Subiu para cima dela, afastando suas pernas enquanto fazia florescer
beijos em seus ombros, permitindo que não se assustasse ao sentir a glande que
roçava no seu centro molhado, sem pressa de a invadir, mesmo que sua excitação
já estivesse ao rubro. Ainda assim, Darcelle tremia quando o sentiu penetrar
muito devagar, sua entrada se alargando para o receber e sua mente absorta na
expectativa que a aplacava. Tentou não reclamar da estranha dor que a invadiu
quando algo dentro de si pareceu quebrar, apenas cravou as unhas nas costas
másculas em forma de protesto, mas em nenhum momento recuou e passou a
apreciar o estranho desconforto do membro dentro de si.
— Você está bem? — A voz arrastada perguntou junto a seu ouvido e as
mãos voltaram a tocar seus seios, despertando seus mamilos que pareciam estar
diretamente ligados ao seu baixo-ventre que formigou.
— Não poderia estar melhor… — respondeu e não mentia, ali em baixo
dele, o sentindo dentro de si, era a perfeição do sentimento novo que a envolvia.
Fechou os olhos quando o sentiu se mover para frente e para trás, e procurou
pelos lábios dele para confirmar que tudo aquilo era realidade. Ela era sua de
todo coração e pela forma como os olhos azuis se mostravam claros a meio dos
gemidos descompassados, soube que Damien também era apenas seu.
— Eu estou muito, muito apaixonado por você, minha Darcelle —
confessou a meio das investidas, unindo os dedos dela entre os seus, entrando e
saindo com um vigor como se pudesse se fundir à ela. Senti-la não só era
maravilhoso como era a certeza da descoberta do desabrochar de um amor sem
fim.
— E você, Damien — ofegou. — É agora o homem mais belo com quem
tive o prazer de me cruzar nessa vida.
Ele parou os movimentos por alguns segundos, a olhando com tamanha
admiração, pois sabia bem o que a beleza significava para Darcelle. Esqueceu de
todas as suas imperfeições visíveis, pois enquanto fosse belo para ela, então não
se importava com o resto do mundo.
[…]
Darcelle se assustou ao acordar, demorando a reconhecer o quarto onde
estava, até que o sorriso cobriu seu rosto, sentindo no corpo dorido a emoção da
noite anterior. Dormira nos braços quentes, a sentir o peito subir e descer
devagarinho contra sua cabeça e a respiração quente que escapava dos lábios
entreabertos do seu amado.
Estava sozinha agora, com o café da manhã em cima da mesa de rodas e
uma rosa vermelha junto de um bilhete.

“Você estava dormindo tão bem que não tive coragem para acordá-la.
Saiba, Darcelle, eu me deitaria ao seu lado pela manhã inteira, mas a
euforia que dominava o meu peito não me deixou quieto, pois ansiava por voltar
a ver o mundo por meus novos olhos.
Desfrute do seu café da manhã e depois me encontre junto ao campo de
treinos.
Espero ansioso por vê-la.
D. Beauchamp.”

Ela se sentiu idiota por sorrir sozinha só por ler um bilhete, o releu vezes
sem conta, encontrando a felicidade traduzida em escrita. Comeu devagar,
saboreando os bolos caseiros deliciosos e o suco de fruta natural, ingeriu ainda
um iogurte e frutas secas. Estava com uma fome de leão como nunca tivera
antes, por isso ainda devorou o pão quente e o queijo tradicional da cidade,
bebeu um chá maravilhoso. Agradeceu por Damien não estar ali e ver o quanto
parecia uma esfomeada.
Só depois é que se levantou para ir ao banheiro, caminhou com um certo
desconforto, abriu a água morna e tomou um banho, sentindo algum ardor ao
lavar sua intimidade. Viu sangue e se assustou! Nada que Jamie já não tivesse
explicado vezes sem conta ou que não tivesse lido na internet, mas ainda assim
pareceu aterrorizante e correu para cama com o objetivo de limpar qualquer
resquício daquela mancha vermelha.
Procurou uma roupa dele para vestir, optando por umas calças de
moletom e uma camiseta com escritas que diziam “Eu sou o Campeão”. Saiu do
quarto e desceu meio perdida, apreciando cada detalhe que não vira na noite
anterior, se perguntando como seria crescer naquela casa, solitário ou divertido?
Os pensamentos foram cortados quando a Helena surgiu.
— Bom dia. — A saudou de uma forma radiante, a qual foi
correspondida.
— Espero que tenha descansado bem. — A governanta também parecia
feliz. — Precisa que lhe faça alguma coisa?
— Estou bem obrigada. O… Damien?
— Eu a levo até lá. — A senhora lhe estendeu o braço como uma mãe e a
conduziu em direção a saída, parando no hall para abrir um armário de onde
tirou um xale quente. — Está um pouco fresco.
— Obrigada.
— Não. — A mulher se demorou a apertar o braço dela antes de abrir a
porta. — Eu é que agradeço.
A Johnson engoliu a emoção a seco, apertando os lábios e acenou com a
cabeça. As duas saíram para o dia esbelto que se espalhava do lado de fora e que
não se comparava à noite anterior. Havia vida por todos lugares, mais
trabalhadores circulavam em seus afazeres, ao longe se via os visitantes que
corriam a cavalo pelos campos esverdeados.
Conversaram mais um pouco, enquanto Helena a conduzia até aos
famosos campos de treinos. A governanta se despediu logo depois, mas vários
empregados tinham parado para ver o patrão que montava um belo cavalo preto
de pelagem macia e brilhante com uma cauda e uma crina longa e esbelta.
Exalava virilidade de um animal feroz que não gostava de ser comandado se não
fosse por alguém que o saberia dominar, e isso Damien fazia com tanta
facilidade que quase pareceria um centauro com a parte de baixo do garanhão
acoplada ao seu corpo.
Ela ficou deslumbrada ao vê-lo correr e ultrapassar os obstáculos, lhe
lembrando o campeão que uma vez assistira anos antes nas pistas de corrida do
hipódromo Beauchamp. E ficou feliz por constatar que agora ele só tinha uma
coisa em comum com aquele outro jovem arrogante: O talento. Era realmente
bom no que fazia, os aplausos entusiastas vieram despertá-la, pois até então
estava hipnotizada.
— Darci. — Damien fez o cavalo parar com facilidade, o domando com
certa perícia. Desceu com um sorriso, o equipamento lhe dava um ar mais
galante que o habitual, e veio a caminhar até ela com as botas que faziam as
pernas grossas parecerem um quanto arqueadas. — Dormiu bem? — Retirou o
capacete de equitação, deixando os fios loiros esvoaçarem.
— Muito, mais do que seria possível — respondeu sem conseguir segurar
o sorriso nos lábios e aceitou o beijo na boca que lhe foi dado sem nenhuma
cerimónia.
— Isso é muito bom, não quero que fique desconfortável. — Segurou na
mão dela, a puxando até perto do animal que pouco se movimentava, a ponto de
parecer ter uma ética militar. — É um puro Mustang e faz parte do pequeno
grupo que temos criado aqui na coudelaria.
— É lindo. — Ela julgava que teria medo, mas na verdade não resistiu a
acariciar e sentir a textura do equino. Ficou maravilhada.
— É uma égua e não tem nome. Quer sugerir um?
— Chame de Darcelle.
— Por que daria seu nome ao cavalo?
— Porque Darcelle significa escuro. Acho que combina.
— Assim será. Vamos dar um passeio?
Johnson concordou, sentia mil borboletas voarem dentro do seu
estômago. Aceitou a ajuda para se equipar e depois montar no cavalo grande.
Junto dela subiu Damien, a abraçando para segurar as rédeas e começaram a
passear pela propriedade gigantesca, enquanto a voz masculina ia mostrando
lugares e explicando tudo o que via. Os olhares os seguiram por onde passavam,
alguns tiravam fotografias quando o reconheciam, mas ele não parecia se
importar com nada daquilo, senão em vê-la feliz e deslumbrada pela natureza
belíssima que os rodeada.
Demoraram uma manhã a assistir a Equipa Beauchamp de hipismo, a ver
os treinos infantis, assistiram ao nascimento de um potro e entraram numa área
exclusiva onde se criavam póneis. Tinham parado para descansar junto ao rio
que cortava as terras verdejantes e de onde se viam mais cavalos de diferentes
colorações a correrem livres e alegres.
— Mandou preparar tudo isso? — Darcelle se espantou ao ver uma
grande toalha quadriculada estendida na relva macia, com muitas almofadas
confortáveis e um grande cesto com comidas e bebidas. Parecia uma tela pintada
pela forma como se enquadrava naquela paisagem excepcional.
— Não, Darci. Aposto que se materializou bem aqui — provocou com
gosto, se sentando do lado dela e abrindo uma garrafa de vinho tinto.
Ela soltou um impropério que o espantou, arrancando uma risada dos
dois.
— Você gosta desse lugar? — Perguntou, lhe servindo uma taça a qual a
Johnson se negou, optando por um suco de laranja.
— Eu cresci aqui em San Luis Obispo e você também, duas vidas
paralelas que provavelmente nunca iriam se cruzar. Eu sempre quis percorrer o
hipódromo Beauchamp, parecia algo tão inalcançável do lado de fora. Montar os
cavalos, entrar no haras. Era tudo um sonho que ficou para trás. — Darcelle
estava com os braços virados para trás e as palmas das mãos apoiadas no chão.
Olhava para o céu azul e os pássaros que desciam para rasar o rio e voltar a
subir.
— E agora está aqui… — Beauchamp a acariciou ao de leve, segurando
o calor que irrompeu seu corpo.
— Já pensou em voltar aos campeonatos?
— Não… Sou apenas empresário agora.
— Então pense nisso. Sua carreira terminou muito rápido e
abruptamente, aposto que ainda tinha muitas glórias por onde percorrer.
— O Turfe de dez anos atrás não é o mesmo que agora.
— Mas ainda existe, e ser Jóquei sempre foi o seu talento nato, mais do
que gerir a Beauchamp.
Damien ponderou, os olhos se perderam para algumas lembranças. Os
gritos dos fãs, o champanhe jogado pelos ares e suas mãos segurando taças
douradas. Só naquela altura tinha feito milhões em corridas.
— Vou pensar nisso. — Concluiu já a sentir o sabor da vitória na sua
boca como um vício nunca saciado. Já podia se lembrar das dietas espartanas,
treinos cansativos e muita disciplina.
— Tenho de ligar para Jamie — disse a Johnson pulando no lugar por
não se ter lembrado daquele detalhe antes, procurou o celular no bolso de suas
calças, mas se deu conta que provavelmente o teria deixado no quarto.
Damien lhe entregou o seu celular e a viu discar o número em de cor,
então se concentrou nas frutas e nas carnes defumadas que ali estavam, apenas
para lhe dar certa privacidade.
— Alô, Jamie?
— Darcelle? Onde você está?
— Estou com o Damien. Nós… — Olhou para o loiro que parecia até
interessado no pedaço de pão. Sorriu. — Eu te conto detalhes quando voltar.
— Dormiram juntos? — Questionou a voz curiosa do outro lado da linha
e ouviu o riso tímido como uma resposta positiva. — Você não sabe o que
aconteceu… o Christian me…
Houve um som estranho, sons pesados de pés que corriam pelo chão,
gritos e insultos do outro lado da linha. Até que a voz de Dash surgiu ofegante e
divertida.
— Oi, Darci. Tudo bem? A sua prima está ótima como se fosse um leão
domado. Não se preocupe, ok? — Falou a rir e a voz de Jamie do outro lado
parecia pronta para comê-lo vivo. — Um beijo e fiquem bem.
O atrevido desligou, e ela ficou a olhar para o telefone incrédula, sem
saber o que tinha acontecido.
— O Christian é louco! — Exclamou. — Não me deixou falar direito
com a Jamie.
— Louco deveria ser o nome próprio dele — acrescentou com toda
calmaria e lhe deu de comer na boca. — Não se incomode. Pode telefonar para a
sua prima depois.
Darci concordou e passou a se concentrar na refeição muito saborosa. Ele
bebeu um pouco do vinho e a escutou contar algumas coisas interessantes sobre
a família Johnson. Depois ficaram um momento calados, apenas sendo
agraciados pela natureza que os abraçava em toda sua excelência.
Apreciar tudo ao redor, lado a lado, fazia com que se tornasse
duplamente mais interessante.
— Eu poderia viver aqui para sempre. Deve ter sido difícil ficar longe
daqui por tantos anos, não?
— Você viveria aqui? — De tudo o que ela lhe disse, a única coisa de
importante que captou foi aquela possibilidade. — No meio do campo e cavalos?
— A natureza é a única que tem tanto a oferecer sem nunca nos julgar. —
Fechou os olhos quando a mão grande tocou em seu rosto, a puxando para um
beijo mais carinhoso.
— Damien… — Ela se afastou. — E sobre a Emma?
Ele teria revirado os olhos, mas se aquietou.
— Eu pedi ao Christian para adiantar o assunto e marcar uma reunião
para segunda-feira às 10:00 horas com Emma Charlton no escritório — contou
mais como se fosse um dever. Bem dentro, sabia que se não fosse pela mulher a
sua frente, jamais perderia seu tempo a se justificar para a ex noiva.
— Me sinto tão mal por isso — confessou novamente, estava com os
olhos serenos.
— Não sinta. — A envolveu num abraço acolhedor, jurando em silêncio
nunca mais permitir que fosse infeliz.
A deitou por cima das almofadas, beijando os lábios carnudos sem
esconder a impaciência que o corroía por dentro, se despindo e a despindo no
processo.
— O que está fazendo? — Darcelle se agarrou ao corpo nu que a
carregou, tentou espernear, sem sucesso e apenas gritou quando entraram nas
águas geladas do rio. Ela praguejou! — Está frio!
— Eu te aqueço. — Damien garantiu, lhe dando beijos demorados na
curva do pescoço, ansioso por fazê-la sua mais uma vez, e agora com a natureza
como testemunha do momento intenso o qual viviam.
Encontro com o Passado, O

“Corpo bonito é aquele que tem gente feliz dentro dele.”

JOANNE chegou cansada no final do dia de sábado, o trabalho no hotel


desgastava mais do que poderia aguentar, com turnos e horários fora de mão.
Respirou aliviada quando viu Emma sozinha com o seu filho, pelo menos não
estava enfurnada nos braços do amante.
— Mãe! — O rapaz correu para abraçá-la ainda na porta, ajudando-a
com as sacolas de compras e correndo para cozinha a fim de espreitar o que
poderia ter lá dentro para ele.
— Jo, hoje o senhor Dash esteve por aqui. — O olhar da bela loira não
parecia dos melhores, mas no fundo não era como se estivesse triste também. —
O contrato foi desfeito! Não vai haver casamento e nem mais nada.
— Como? Culpa sua. Se não andasse aí a esfregar-se com William de um
lado para o outro, e se preocupasse em conquistá-lo, nada disso teria acontecido.
Precisamos reverter isso, Emma. Não pode ser! — O rosto branco ficou
impávido, como se lhe tivesse dito que o mundo ia terminar nos próximos cinco
minutos.
— Tem um cheque pela quebra de contrato. Um cheque gordo, Jo.
Podemos comprar uma casa, melhorar de vida e eu posso finalmente ficar com o
homem que eu amo — justificou mostrando o papel com o número cheio de
zeros. Segurou a barriga de leve, não querendo confirmar o que a irmã já sabia.
— Você prometeu. — Os lábios de Joanne estremeceram. — Depois de
tudo o que eu fiz por você e pelo Will? Eu paguei sua universidade, ajudei o seu
namorado em tudo o que pude. Me matei de trabalhar por todos nós, enquanto os
dois tinham do melhor.
— Você me transformou naquilo que achava que Beauchamp se
interessaria. E é minha irmã. Eu sei que nos ajudou, que o William estaria na
sarjeta se não fosse por sua causa, que eu teria tido um filho e não um diploma.
Que eu e meu namorado não seríamos nada sem você. Eu sei. — Sublinhou
carregando no tom das últimas palavras e voltou a segurar o cheque. — Aqui
está a nossa recompensa. Vamos seguir em frente! Eu não suportava o homem
com quem ia casar, me metia repulsa. Tudo o que quero agora é ser feliz, formar
família com Will e com vocês.
Joanne se sentou no braço do sofá castanho, tinha a respiração
entrecortada e os olhos não paravam de pestanejar.
— Não é pelo dinheiro, você sabe melhor do que ninguém. O objetivo
era Damien Beauchamp pagar pelo que me fez, se apaixonar por você e ser
destruído por isso, tal como eu fui. Foi tudo o que te pedi. — Levantou os olhos
castanhos para encarar Emma que mais se parecia com uma boneca de
porcelana. — Sabe o quanto pago para proteger o meu segredo. A chantagem
daquela vaca. E mesmo assim…? Eram só alguns anos, Emma, o suficiente para
aquele Monstro ficar no chão. E nós tínhamos um acordo!
A Charlton mais bela se ajoelhou em frente a irmã, segurando as pernas
desta e olhando para a figura a sua frente, agora com um verdadeiro pesar.
— Sinto muito. Eu fracassei em seguir certas instruções, mas não fui eu
que terminei com esse noivado ridículo. Eu tentei, Joanne. Agora é a sua vez de
parar com segredos e enfrentar o Monstro.
— Como pode dizer isso? Lembra do que passamos? Damien merece
sofrer! — Gritou quase descontrolada e escondeu as mãos no rosto para não
revelar as lágrimas. Chorou num soluço profundo antes de tentar se recompor. —
Não era só pelo dinheiro. Não era.
— O senhor Dash marcou uma reunião comigo na segunda-feira às 10:00
horas. Eu não vou, tenho uma consulta no médico e agora que tenho dinheiro
vou mudar de hospital. Não podia usar cartões Beauchamp para ir às consultas
de obstetrícia.
— A sua menstruação não veio mesmo?
— E desta vez, graças a você como sempre, eu vou poder ter. — Emma
deu um beijo na testa da outra e saiu da sala.
[…]
— Estou exausta! — Darcelle reclamou. Tinham andado a pé por vários
pontos interessantes da cidade, e por duas vezes cruzaram a rua onde seus pais
viviam, mas ela não se atrevera a ir lá com Damien, mesmo que sentisse muitas
saudades deles.
— Mas já? — O loiro estava energético, seus olhos pareciam o de uma
criança em pleno parque de diversões. Estava redescobrindo o mundo
novamente, fazia muito tempo que não circulava pelos lugares, ainda mais pelas
próprias pernas. — Ali costumava ser uma pastelaria, lembra? Faziam bolos de
leite incríveis, a Giovana sempre trazia para casa.
— Você ficou muito tempo confinado e deve ter os pneus novos. —
Darci pigarreou. — Os meus estão velhos e muito gastos de tanto que andei
nesta vida.
Damien atravessou a estrada pouco movimentada, curioso para ver no
que se tinha transformado o lugar que lhe trazia doces memórias de infância. Era
um café livraria e tinha algum movimento. Os olhos azuis correram os livros na
vitrine, mas logo sentiu o cheiro de Darcelle que se lhe ajuntou.
— Quer descansar seus pneus desgastados? — Perguntou num tom um
pouco divertido, seu rosto parcialmente deformado reflectia no enorme vidro à
sua frente que vinha escrito “Café com Letras”.
— Duas formas de aquecer o coração. Café e livros. — Ela concordou,
sorrindo por vê-lo dar passadas energéticas para dentro do estabelecimento, mas
franziu ao vê-lo se estacar ainda na entrada e quase se embateu contra o homem
alto.
— O que foi?
— Nada. — Havia uma certa tensão naquela resposta, o qual Darci não
demorou a compreender assim que rodou a vista pelo lugar aconchegante com
uma lareira no canto, pequenas mesas redondas com mosaicos na base, cadeiras
pequenas de madeira com almofadas e vitrais no alto das paredes com estantes
embutidas e cheias de livros.
Apesar de só tê-los visto nas fotografias, não foi muito difícil reconhecer
Bianca e Michael que estavam sentados. Ele estava gordo demais, nada se
comparava ao jovem atlético que um dia tinha sido um dos melhores
Quaterbacks da equipa de futebol nacional, e era bonito embora as expressões
faciais não fossem nada amigáveis. Apertava o jornal enquanto falava num tom
alto contra o rosto da mulher que estava sentada, grávida e de olhos chorosos.
— Quer ir para outro lugar? — A Johnson sussurrou.
— Não. — Ele se negou, trincando os dentes. No entanto, a pequena mão
escura que se entrelaçou à sua, passando toda uma confiança, lhe fez ter a
certeza de que não precisava mais temer ser apunhalado pelas costas. Nela podia
confiar.
Beauchamp apertou a mão dela, caminhando quase sem pressa e
afastando a cadeira para Darci sentar, assim que se aproximaram de uma mesa
vazia. Sentou-se de frente para ela, depositando um beijo nas mãos e depois
esperou que fossem atendidos.
— […] E essa cara? Se quer um maldito motivo para chorar, me avisa
que te dou uma bofetada para ver se ganha juízo. — Michael não estava
propriamente perto, mas o tom de voz se fazia ouvir por toda livraria café. — Eu
avisei que não queria vir para este fim de mundo, mas insistiu nessa porcaria de
fim de semana à dois e agora fica fazendo essa cara de…
Damien e Darcelle se olharam um quanto espantados.
— […] Por favor, Michael… Está todo mundo olhando… — Bianca
ainda possuía a voz melodiosa, e pelo comportamento submisso parecia que
ainda se importava mais com as aparências do que com o seu amor-próprio.
— Que se danem! Estou farto de você! — Michael a segurou pelo braço
com força, e Beauchamp se levantou no mesmo momento, fazendo-se notar no
meio do espaço. Darci cobriu a boca num gesto lento com a mão.
Os três se encararam durante muito tempo, revivendo o passado, o
quanto eram amigos ou pelo menos assim fingiam. As festas, viagens, momentos
inesquecíveis e tantas outras coisas. Talvez, o que poderia ter sido se não
tivessem deixado Beauchamp para trás, recluso como o Monstro que era.
— Ah, vamos embora! — O ex-amigo gritou com a mulher, saindo logo
em seguida e sem possuir coragem suficiente para ficar ali de frente para quem
um dia o tinha ajudado a se elevar para o mundo das celebridades.
Bianca limpou o rosto com rapidez, abriu a carteira para deixar o
dinheiro do café e se levantou em toda uma classe que já não lhe competia,
abandonando o lugar atrás do parceiro. Damien soltou um suspiro, voltando a se
sentar e encarou Darcelle que parecia chocada com toda aquela situação.
— O que dizer? — Foi ela quem quebrou o silêncio depois de um tempo.
O servente trouxe os cafés e o jornal do dia.
— Que o relacionamento deles está durando muito tempo?
— Relacionamento? Ele é abusivo! — Darcelle exclamou. — É
impossível que ela não esteja pensando que deveria ter ficado com você e
tentado extrair o melhor que havia dentro da sua alma.
— Mas que bom que ela não ficou, não é? — Os olhos dele brilharam.
— Parece ruim o que vou dizer, mas que bom que não ficou.
Os dois riram e se aproximaram para se beijar nos lábios, depois beberam
os cafés, e Darcelle se levantou para ir escolher um livro e se demorou, mas
quando voltou encontrou o rosto de Beauchamp contorcido novamente enquanto
lia o jornal.
— Algum problema? — Ela perguntou, sentando-se e o olhou com
desconfiança quando este escondeu o jornal.
— Nada que mereça a nossa atenção — garantiu e soltou um suspiro ao
ver os olhos escuros que o fitavam. — De verdade! Para que vamos ocupar
nossas cabeças com coisas desnecessárias?
— Estão falando alguma coisa sobre nós?
— E vão continuar. — Ele enrolou o jornal. — Mas hoje é domingo, o
nosso último dia aqui, e pretendo aproveitar da melhor forma.
— Tudo bem — concordou, até porque não pretendia se aborrecer. — E
sobre a… Bianca?
— O que eu posso fazer? Telefonar a dizer para deixar o casamento?
Chamar a polícia? — Deixou a ironia se notar mais do que gostaria, pois não
gostava de mostrar que ainda tinha algo de rude em si, o qual tentava trabalhar
diariamente.
— Ela escolheu o mais bonito pensando que fugia do Monstro. E agora
não passam de pessoas bonitas e infelizes. — Girou a cabeça para o lado e deu
de ombros, voltando sua a concentração para o livro.
Passaram pelo menos uma hora ali sentados, até Beauchamp decidir que
não queria mais perder o resto do dia e comprou o livro para que ela pudesse ler
depois. Darcelle reclamou, não queria andar mais, e então chamaram um táxi
que lhes levou para o haras. O sol fraco brilhava no céu coberto por nuvens
brancas e o ar fresco os abraçou assim que atravessaram a ponte de madeira.
— O que quer fazer?
— Não sei, talvez andar um pouco mais de cavalo para aperfeiçoar? —
Ela respondeu, segurando o livro novo com todo cuidado.
— Pode andar mais vezes, temos cavalos na mansão e também pode vir
aqui sempre que quiser. — Damien lhe deu o braço, puxando-a para perto de si.
Gritos de crianças ecoavam vindo do haras e por um momento se sentiu com
curiosidade de experimentar a paternidade.
— O que mais eu posso fazer, senhor Beauchamp?
— Pode dormir comigo esta noite e só ir para casa pela manhã.
— Jura?
O rosto dele corou ligeiramente quando a encarou e deu de cara com uma
expressão cheia de malícia. Balançou a cabeça em negativo.
— Eu só… Não quero ficar sozinho de novo. — Ele percebeu que ainda
havia um vazio muito grande dentro de si, aquela carência que poderia sufocar
quem amava. — Antes que pense nela, sua prima está com o Dash.
— Ele gosta mesmo dela? — Mostrou mais preocupação do que
curiosidade.
— Chris era um autêntico mulherengo, bom, nunca mais o ouvi falar de
nenhuma outra mulher que não seja a Jamie. Ela está metendo ele no lugar.
— Nós, as Johnson, somos boas nisso.
— Está ficando convencida?
— Essa possibilidade o assusta?
Damien a agarrou pela cintura e encostou a testa contra a dela. Meneou a
cabeça.
— Eu gosto que esteja saindo da sua concha. — Lhe deu um beijo no
nariz e em seguida a puxou pela mão em direção aos estábulos.
Os dois passearam a maior parte do dia, só pararam quando a governanta
os chamou para comerem qualquer coisa antes de se prepararem para a viagem.
Darci se despediu de todos os empregados, sem esconder a tristeza por deixar o
lugar. Entrou no carro e se sentou ao lado de Damien, mas assim que começaram
a se afastar, seus olhos fixaram o espelho até o haras deixar de ser visível.
— Que nostalgia… — Murmurou e deixou escapar um longo suspiro
exasperado, se recostando melhor no banco confortável.
— Voltaremos em breve — garantiu, observando como ela se tinha
encaixado naquele lugar. Não conseguiu evitar pensar que Emma não iria gostar
de nada daquilo.
— Há tanto trabalho por fazer amanhã. — Mesmo cansada, Darcelle
demonstrava todo o desejo de colocar as mãos para funcionar. Não via a hora de
começar os cursos na empresa.
— Quer contratar uma assistente pessoal?
Ela teria ficado zangada, mas não conseguiu prender a risada.
— Para fazer o quê? Organizar meus cinco pares de calças e uma dúzia
de blusas e casacos?
— Isso é por enquanto.
— Não quero ser sua Cinderela.
— Claro que não. Se eu sou o Monstro, então você é a minha Bela.
Darcelle ficou um tempo pensativa, enquanto seguiam a viagem, o dia
deu lugar a noite e percebeu naquela vez como ele ficou tenso enquanto
atravessavam a grande ponte.
— Você não é um Monstro.
Damien apenas moveu a cabeça num aceno, concentrado demais nos
carros que iam e vinham. As mãos apertavam o volante do carro e os lábios
estreitados.
— Acidentes acontecem em qualquer lugar. — Ela apertou o ombro dele
e depois fez um carinho na coxa firme e grossa.
— Eu sei — afirmou. — Não tenho receio por mim, e sim por você.
— Por mim? Não estamos os dois no mesmo carro? — Johnson se sentou
melhor para o encarar.
— Estamos.
— E então?
— Mas eu ainda tenho a outra face para dar por você.
[…]
Darcelle estava radiante quando entrou no seu apartamento na manhã de
segunda-feira. Cantarolava alguma música e dançou no lugar enquanto deixava a
bolsa em cima da mesa e exalava o perfume masculino de Damien. Parou ao ver
Jamie sentada no sofá a tomar um pote grande de sorvete àquela hora. Ergueu o
sobrolho.
— Está tudo bem? — Perguntou, a encarando de lado, principalmente
pela forma como metia uma colher atrás da outra, engolindo e fazendo careta por
ficar com a boca gelada.
— Sim. — Passou a língua pelos lábios. — Estou com alguma pressa —
justificou.
— Quando é que você não está? — Darci caminhou e se sentou na
mesinha de centro, de frente para a prima que parou de degustar com um sorriso
amarelo.
— Mas para você eu tenho um tempinho — afirmou, largando o pote ao
lado, mas os olhos acompanharam o próprio gesto como se não acreditassem
naquela atitude.
— Continue — disse, movendo o queixo num gesto para frente.
— Bom… — Jamie não se fez de rogada e voltou a tomar o sorvete.
— Então… O que aconteceu com seu carro?
— Bem… — Engoliu o conteúdo que estava na boca. — A Alda
apareceu por aqui. Precisava de dinheiro.
— E por que não me contou?
— Estou contando agora! — Ela exclamou. Detestava ser interrogada. —
Foi uma confusão, tive que trocar o carro por ela e depois o Dash apareceu lá e
resolveu tudo. Está tudo bem agora, Alda está na clínica fazendo tratamento para
a sua dependência química.
— E precisa de alguma coisa? Posso pedir um adiantamento para a
Beauchamp e…
— Não se preocupe. — A prima lambeu a colher. — Como disse, está
tudo bem.
— O senhor Dash está pagando? Desde quando você aceita isso?
— Você conhece o Christian? Digo… conhece mesmo? Acha que ele dá
alguma margem para negar o que quer que seja? — Se irritou por ser
questionada sem o devido conhecimento de causa.
— Você ama ele, Jamie?
— Amar? — Gargalhou. — Esquece isso, antes me conte sobre sua
transa. Foi bom? Ele foi carinhoso? Porque se não foi, vou lá e…
— Pare. — Darcelle riu e sentiu as bochechas queimarem. — Foi
estranho de início, mas depois… Depois foi perfeito. O Damien é…
— Ah! Está apaixonada. — Jamie riu da cara dela e se levantou em
seguida, fez uma cara feia e segurou a barriga.
— Tudo bem?
— Acho que exagerei! — Ela apontou para o sorvete, correu para o
banheiro e se demorou, deixando a prima preocupada demais.
Quando saiu já estava de banho tomado e com o rosto bonito de quem
não tinha acontecido nada. Foi se vestir no seu quarto, e Darcelle acabou por ir
fazer o mesmo, pois teria que ir trabalhar em seguida. Arranjou o cabelo, fez
algumas tranças de lado e usou um vestido simples e um longo casaco por cima.
— Preparei algo para você comer no caminho. — Jamie se mexia de um
lado para o outro, olhando para o relógio. — Ainda tenho que ir visitar a Alda e
depois correr para o hospital.
Darci abriu a boca para dizer algo, mas foi interrompida com o som da
campainha estridente. Viu a prima pousar as lancheiras e correr para abrir.
— Olá meu amor. Não tivemos como avisar! — Amabel Johnson deu um
beijo na testa da sobrinha, arrastando as malas para dentro, marcando o território
como seu.
— Eu disse para avisar. — O tio Tony parecia mais relaxado, era alto,
antigo jogador de basquete profissional e usava uma barba salpicada de fios
brancos. — Onde está a Darci?
— Pai? Mãe? — Esta surgiu no campo de visão deles, com a roupa
elegante que pareceu surpreender os recém-chegados. — O que aconteceu?
— Viemos visitar as nossas queridas, algum problema? — A mãe
respondeu, era magra e baixa, com um corpo atlético incrível para a sua idade.
— Parece que esta casa precisa de uma limpeza completa.
— Tia Amabel, eu conheço a senhora, jamais sai de casa para nada e
agora aparece assim? Deve ter algo — afirmou Jamie, desconfiada, enquanto
arrumava seus livros e tirava a bata branca do secador. — Não foi por causa da
minha mãe, pois não? Por favor, digam que não.
— Ela está preocupada com os rumores que correm na cidade e que saem
nos jornais e revistas todos os dias — confessou o senhor Tony, e recebeu uma
forte cotovelada da mulher. — Soubemos que esteve na nossa cidade, filha. Com
o herdeiro Beauchamp.
— Tony! — Amabel vociferou e se fez de despercebida por alguns
segundos.
— Desculpem, não tive tempo para fazer uma visita a vocês. — Darcelle
baixou os olhos, fazia tempo que não os via.
— Então é verdade que vocês estão dando o golpe a milionários? Foi isso
que vos ensinei? Todo bairro está comentando sobre as notícias que correm.
Aquele jornal Tempo parece preparado para difamar vocês duas. — A senhora
Johnson se dignou a falar, parecia um pouco decepcionada.
— Lorenzo! — As primas falaram ao mesmo tempo e trocaram olhares
de concordância.
— O pior é você, Darci. — Amabel andou até perto da filha querida e lhe
fez alguns carinhos no rosto, sem deixar aquele olhar de desaprovação. —
Aquele homem é horrível, deformado. Vai mesmo ficar com ele só por dinheiro?
Não precisa. Você é tão jovem!
— Mãe! — O terror saiu da boca de Darcelle sem hesitar e sentiu uma
pontada de dor ao ouvir o que poderiam pensar sobre si e na forma como a
própria mãe se referiu ao homem que gostava. Pegou na sua bolsa. — Acredita
mesmo que é só por isso?
— Também não sei como pode pensar isso de nossa filha, querida. — O
marido meneou a cabeça, se afastando delas para conversar com a sobrinha
sobre onde Alda estaria internada para ir fazer uma visita.
— Não é isso, é que…
— Eu vou sair, falamos depois! — A nova assessora da Beauchamp saiu
da casa de coração dorido e não deixou de bater a porta em resposta a sua
indignação. Sentiu os orbes arderem, mas não ia se deixar abater por
comentários ridículos.
Não sabia ainda que aquele era apenas um dos obstáculos que iria ter que
percorrer.
Vida e Seus Dilemas, A

“O dilema deste século é ter vontade de acreditar no amor e não poder
confiar mais nas pessoas.”

PARA a sua surpresa Étienne ainda a esperava do lado de fora do


pequeno edifício, não sabia que tinha ficado ali todo aquele tempo enquanto
conversava com Jamie e depois se preparava para ir trabalhar.
— Por que ainda está aqui? — Perguntou ao entrar no banco da frente do
carro de luxo, sem deixar de imaginar o que a mãe diria se a visse naquele
momento.
— Porrque eu sou seu fiel escrravo agorra. — Ele riu quando os olhos
dela reviraram. — Orrdens superriores do senhor Beauchamp.
— Não era preciso. — Bufou, colocando o cinto e soltando um suspiro.
— Estou acostumada a ir sozinha.
— Então se desacostume. — O motorista ligou o carro e começou a
dirigir. — Além de Assessora agorra é a dona do corração do senhor
Beauchamp. Quem dirria, não? Quem dirria.
Darcelle não disse nada, apenas se encostou à janela, observando o dia
frio que fazia do lado de fora. Era complicado se sentir feliz e triste ao mesmo
tempo, um misto de sentimentos que a faziam ficar confusa, ainda mais
percebendo que se a mãe acreditava em tal absurdo, quiçá os outros.
— O que foi? Está aborrecida por quê? — Étienne sabia que era raro vê-
la fechada numa concha daquele jeito. Normalmente era tão otimista e pronta
para desbravar o mundo tal como uma criança que aprendeu a andar.
— Você também acredita que estou com Damien por dinheiro?
— Oh, minha querrida. Sabe quantas noivas já subirram nestes carros de
luxo nestes anos todos? Tantas e tantas, mas nenhuma alguma vez me fez essa
perrgunta. E sabe por quê? Porque sabiam exatamente que a razão de estarrem
com o senhor Beauchamp era essa. — Ele a beliscou no braço, arrancando um
protesto divertido da jovem Johnson. — Olhe parra mim.
Ela trincou os dentes e soltou um suspiro quando finalmente o enfrentou.
— Deixe as pessoas falarrem, até porque se bem me lembrro você nunca
foi de se inquietar com os outrros! Quem te deixou ficar assim?
— Minha mãe disse que eu era uma pessoa horrível por ficar com um
homem deformado por interesse. Logo ela?
— Às vezes as pessoas falam sem filtrar, não é? Ela deve imaginar o
quanto você é simples e pensar que talvez agarrou uma oporrtunidade. Não
fique aborrecida, apenas fale com ela. — Lhe piscou o olho. — E limpe a bunda
com aquele jorrnal ridículo!
Ela riu alto.
— Obrigada.
— Musiquinha da felicidade? — Étienne colocou o som a funcionar e
dirigiu até a empresa enquanto cantarolava sem parar.
Apertou o casaco assim que saiu do carro após se despedir e quando
entrou na Beauchamp reparou em Rupert sentada na recepção. Usava um par de
óculos escuros e sequer disse algo desagradável como habitual – na verdade
parecia estranhamente distante. Subiu o elevador, cumprimentando alguns
colegas pelo percurso, mas a cabeça ainda voava para as palavras que ouvira em
casa.
— Darcelle! — Damien a chamou assim que a viu, lhe dedicando um
sorriso e olhou para os lados antes de roubar um beijo atrevido.
— Bom dia. — Darci tentou disfarçar, mas o olhar dele leu-a com vagar.
— Está tudo bem? — Perguntou, preocupado. O terno cinzento se
destacava no corpo atlético e o cabelo parecia ter sido penteado com muito
afinco naquela manhã. Só o perfume maravilhoso preenchia a sala toda.
— Claro. Pronta para o trabalho! — Ela recebeu as pastas que estavam
nas mãos dele.
— Certo. — Damien ficou um pouco pensativo, mas tratou de pedir
obrigações administrativas para serem feitas naquela manhã antes do horário
para uma reunião que teriam. Ela se sentou logo em seguida, mergulhando no
trabalho para esquecer o que lhe magoava. E sequer se deu conta do tempo
passar e de como estava quieta e muito imersa no que fazia.
— Algum problema, Darci? — A voz calma e sensual de Beauchamp a
fez despertar. Pousou um café na mesa e um pacote de bolachas. — Trouxe para
você.
— Não precisava. Tem quem faça isso.
— Precisava sim. — Estava exasperado com aquela súbita distância. —
Você não me parece bem.
— Não acho que devemos falar sobre isso aqui — respondeu de forma
evasiva, mas de olhos baixos.
— Pode falar. — Puxou uma cadeira com encosto alto e rodas, e se
sentou a sua frente. Estava visivelmente preocupado.
— Os meus pais chegaram hoje e estão lá em casa. — Deu de ombros. —
Minha mãe diz que todos falam que eu só estou com você por dinheiro. A Tempo
publicou uma foto nossa quando estávamos no haras.
— Ah… Eu li isso no jornal quando estávamos no café livraria, mas
pensei que tivéssemos compreendido sobre essa parte.
— É que minha mãe disse coisas horríveis sobre nós e isso me afectou
especialmente por ter vindo dela. Ela realmente acha que só estou com você por
interesse e que não preciso me prestar a isso.
Damien abriu a boca e voltou a fechar. Sua expressão estava indecifrável
quando se recostou melhor na cadeira e apoiou as duas mãos unidas por baixo do
queixo.
— Acho que os seus pais deveriam me conhecer para poderem saber a
razão de realmente estarmos juntos.
— Ainda é cedo, não acha? — Não que ela não quisesse lá no fundo, mas
só não queria pressionar de forma nenhuma. — Nós mal começamos o nosso
relacionamento.
— Eu noivei e ia casar com uma estranha em pouco tempo. Acha que
terei algum problema em conhecer seus pais? — Esticou a mão e segurou a dela
que era menor, obrigando-a a cruzar o olhar escuro no seu. — Marque um jantar
com eles para esta noite.
Antes que pudesse responder, a figura amargurada de Joanne Charlton
surgiu na entrada, a tempo de apanhar a cena do toque entre os dois. Pigarreou,
aclarando a garganta.
— Bom dia.
— Senhorita Charlton. — Damien levantou-se e adquiriu um imediato ar
sério. Não esperava ver a irmã mais velha de Emma ali. — Por favor me
acompanhe.
Entraram na sala e o ar mais feliz do Monstro Du Camp não passou
despercebido pela mulher ali presente. Aceitou o café que foi servido com
eficácia, e depois estavam os dois a sós, olho no olho.
— Não contava que viesse a senhorita. Pensei poder esclarecer para sua
irmã os motivos de minha decisão. A incompatibilidade era a primeira delas,
entre outras mais que penso não serem destinadas à sua pessoa. — Tão direto
como uma flecha, Beauchamp não parecia hesitar em pronunciar as palavras
frias e calculadas.
— Nunca vai se lembrar de mim, não é mesmo? — A pergunta de Joanne
foi estranha e fez o rosto dele se contorcer numa inquisição.
— Não percebo.
— 31 De Janeiro de 2006. Era inverno, seu aniversário, uma festa no
meio de semana. Todos meninos ricos e conhecidos foram convidados, e eu, uma
idiota com uma bolsa de estudo para uma das melhores universidades fui para lá
com uma de minhas colegas. Ela sabia que eu era apaixonada por você, o
homem mais belo que já tinha visto na vida. O melhor Jóquei que existia. Então
as brincadeiras foram feitas, Michael e Bianca falaram que você me esperava na
piscina e quando cheguei lá… você me humilhou, riu de mim e falou que eu era
feia e sem graça. — A medida em que relatava o sucedido, a Charlton parecia se
lembrar daquele dia como uma ferida nunca sarada, tal e qual Darcelle o
explicara no fim de semana sobre as dele.
— E o que quer que eu faça, senhorita Charlton? Eu era um jovem
mimado e irresponsável. Como quer que eu me lembre disso? Ou como acha que
devo me redimir? — Damien estava um quanto tenso, procurando nas memórias
algo que o levasse até aquele passado. Quantas vezes tinham feito brincadeiras
como aquelas com tantas outras meninas que o desejavam?
— A história não termina aí. Uns meses depois você sofreu o acidente,
tudo mudou e eu pensei… quem sabe se agora que ele percebe o que é ser feio e
sem graça possa ter mais consideração pelos outros? E poucos anos depois
voltamos a nos encontrar… Ali estava Damien Beauchamp, sozinho no bar de
hotel onde eu ainda estagiava na altura e a usar uma máscara! — Ela prendeu o
maxilar com força, marcando o rosto oval e expressando toda raiva que sentia.
— Nós conversámos. Você bebeu demais e dormiu comigo.
Desta vez as feições dele não disfarçaram o choque. O sobrolho unido
demonstrava quase a descrença no que ouvia e negou com a cabeça.
— Quando acordei já não estava mais na cama. Então dois meses se
passaram e eu tive que ir a sua trás, liguei e fiz de tudo. E nunca tive um retorno,
então acabei por contatar a sua mãe. Ela me deu algum dinheiro que na altura
parecia muito, assinei um contrato e me apresentou uma enfermeira, garantindo
que se eu não tirasse a criança, iria ter que pagar o triplo do valor recebido.
Aliás, que pago até hoje como garantia para a enfermeira não contar que o bebé
nasceu. É um rapaz.
Damien estava calado como se nunca antes tivesse aprendido a falar, os
olhos semicerrados se apagaram como o mar coberto por nuvens cinzentas. Sua
tez empalideceu e sentiu os membros enregelarem.
— Se isso é verdade, existiam muitas maneiras de me avisar — redarguiu
quase em surdina. As palavras pesavam em sua boca.
— Quando você mandou dizer que não conhecia nenhuma Joanne
Charlton, eu decidi que nunca conheceria o Giovani.
— E mesmo assim deu o nome da minha mãe! — Constatou um quanto
frívolo. — E ainda por cima deixou a sua irmã dormir na minha cama? Não
entendo.
— Eu queria me vingar de você, Beauchamp. Queria que se apaixonasse
por Emma para depois sofrer todo o desprezo que sofri. A dor de ser rejeitado
por quem gostamos! Guardei meu segredo até ao fim, mas agora vejo que a
vingança já foi feita há tempos quando aquele camião desfigurou sua cara.
— Você é maluca!
— Eu sofri, tive que trabalhar em dois empregos para sustentar meu filho
e minha irmã. Não havia condições, mas ainda assim lutei por todos nós.
Passamos fome, privações, mas nunca desisti de querer lhe fazer beber do
próprio veneno. Emma era aquela dentro do seu padrão de beleza, não achou
estranho alguém aparecer assim do nada quando todas outras fugiam?
— A sua luta foi um mérito seu, mas sofreu porque quis e por orgulho. —
Damien bateu com a mão na mesa perdendo a compostura habitual. Respirou
fundo, lembrando-se das palavras de Christian Dash no dia que conheceram a
candidata “ideal”. Riu baixo. — Deve parar de assistir novelas. Isso é a vida real
e sabe o que isso implica?
A Charlton se levantou da cadeira, o ar completamente angustiado. Era
como se tirasse todo um peso de anos sobre si. Contudo, a vingança parecia não
estar feita.
— Que eu vou fazer de tudo para que o Giovani o despreze, que tenha
nojo de você. A partir do momento que sabe que é pai, o bichinho de um
sentimento crescerá no seu peito. Mas eu vou destruir cada sensação de
felicidade que possa vir a ter. — Ela afirmou arrumando a saia formal com as
mãos. — Pensa que será todo feliz agora que acredita que já não é mais um
Monstro? Pois bem, você não passará de um Príncipe Enganado.
— Não me obrigue a ter que esmagá-la em tribunal, sabe que sou capaz
disso.
— Veremos, senhor Beauchamp. Veremos! — Joanne lhe deitou um
olhar amargo, mostrando que nada a demoveria em fazê-lo pagar pelo infortúnio
ocorrido anos atrás. Pisava o chão com força quando lhe deu as costas, mas antes
de sair, parou diante de Darcelle dilatando as narinas como um verdadeiro
dragão.
— Tenha um bom dia. — A Assessora foi educada, mas tudo o que
recebeu foi um olhar altivo e as costas da mulher que saiu a andar sem pressa
para fora dali. Sempre soube que a irmã de Emma tinha um coração de pedra,
porém era a primeira vez que a via tão revestida de ódio.
Darcelle se levantou e parou diante da porta aberta, vendo Damien com
um ar fantasmagórico com as mãos cobrindo o rosto. Pensou em deixá-lo
sozinho e fechar a porta, mas a tensão que morava no ambiente era pesado
demais.
— Muito difícil?
— Er… — Ele abriu a boca e pousou as mãos por cima da mesa. —
Hum… É uma situação delicada. Já teve a sensação de que quanto mais avança,
mais obstáculos surgem?
— E todos sabem como vencer obstáculos, não é mesmo? Enfrentando-
os. — Ela sentiu muita vontade de o abraçar para que se livrasse daquele aspeto
desconfortante, mas limitou-se a parar no mesmo lugar. Aquele dia estava sendo
difícil para os dois. — Reunião daqui a meia hora e depois vou a formação.
— Cancele a reunião. — Ele se levantou, sabendo que não tinha
condições para trabalhar depois do que tinha escutado. Tinha que procurar
Giovana a todo custo, mas antes precisava de falar com Christian.
— Quer que eu cancele o jantar também?
— Não. — Se aproximou e a envolveu em seus braços. — Me informe as
horas por mensagem.
— Até logo. — A jovem Johnson disfarçou a melancolia que sabia que
sentiria quando estivesse sozinha e apenas retribuiu o beijo rápido que Damien
lhe deu antes de sair dali. Então respirou fundo, voltou para a sua mesa e tratou
de remarcar a reunião e enviar correios electrónicos, fazer algumas chamadas
para as secretárias de departamentos e cuidar de outras coisas que estavam na
sua agenda.
Quando saiu para a formação já era depois do almoço, mas estava sem
apetite e aproveitou para travar a batalha com aquilo que a incomodava e que
tinha tentado evitar. Telefonou para a mãe.
— Meu bem… Como você está? Vi que saiu de casa zangada. Seu pai
ficou enchendo a minha cabeça, mas saiba que…
— Eu não gostei do que você disse, mamãe. E isso me deixou magoada
durante uma manhã inteira. Apesar de estarmos longe de vocês, eu e Jamie
fomos muito bem-educadas e dinheiro nenhum nos compraria. — Soltou tudo o
que estava preso em sua garganta. — A senhora apenas chegou acusando e em
momento algum se mostrou preocupada em olhar nos meus olhos e ver o quanto
estou apaixonada.
Amabel se calou por uns segundos.
— Eu realmente eduquei vocês, mas ninguém sabe as transformações
que ocorrem. As situações e as oportunidades mudam muita coisa, e era essa a
minha maior preocupação, o deslumbramento do dinheiro e do que a vida fácil
pode dar. Lamento se a ofendi, mas me explique, que razões há para se
apaixonar por um homem como aquele? E nem estou falando apenas do rosto.
— Irá compreender, mamãe. Quero que venham jantar connosco hoje às
sete da noite. — Ela descia às escadas a apertar o telefone, sentindo uma revolta
crescer dentro de si. Finalmente compreendia que cada um julgava as coisas à
sua própria maneira e que eram na maioria relutantes em primeiro ver pelo lado
bom.
— Eu aceito que queira defender seu relacionamento e estou de acordo
com isso, minha filha. Avisarei seu pai e estaremos preparados. — Amabel era
direta em suas palavras. — Mas quero lhe dizer para colocar os pés assentes na
terra, Darci. Esse rapaz nunca foi boa pessoa antes e não tardará a partir seu
coração. Ainda assim, lhe darei o benefício da dúvida. Só por você, pois não
esqueço como você saiu triste daquele clube Jóquei. Não esqueço!
— Até logo. — Desligou a chamada e parou alguns segundos para
refletir aquelas palavras duras. De repente sentiu que foi alvo de olhares quando
cruzou os corredores em direção ao centro de treinamento. Telefonou para Jamie
que demorou uma eternidade para atender. — Alô?
— Diz.
— Pode ir nos buscar em casa para jantar hoje com meus pais e Damien,
você também está convidada. É às sete da noite.
— Jantar? Pode ser num restaurante de mariscos? Estou com muito
desejo de comer uma lagosta enorme e… — Se calou.
— Desejo?
— Vou buscá-los sim. Mais alguma coisa?
Darcelle franziu, apertando a pasta com o computador portátil.
— Não ficou chateada com o que minha mãe falou hoje de manhã?
— Por acaso você é interesseira, Darci?
— Não.
— E então? Não ligue. — Prática como sempre, parecia estar sempre
despreocupada com o resto do mundo e conectada apenas nos seus interesses. —
Preciso desligar agora. Sabe que estamos juntas em tudo. Agora…
— … E sempre.
Darcelle estava descobrindo o mundo e as pessoas na sua verdadeira
essência. Era como se a redoma de plástico onde vivia tivesse estourado e agora
nada mais a pudesse proteger. Era insano saber que tinha que lidar com tantas
questões e que por mais bons conselhos que sempre tivera na ponta de sua
língua, ela não saberia como se proteger de levar uma bofetada da vida. Estavam
todos muito a frente no quesito experiência, muitos já carregavam suas bagagens
invisíveis que eram pesadas. E não podia dizer o mesmo da sua pessoa. Se sentia
como aquelas bobas dos filmes clichés.
Jantar Com Os Johnson, O

“Família são as pessoas que estão sempre preocupadas com você.”

ANTES de entrar para a sala, enviou uma mensagem de texto para


Damien a informar a hora do jantar, se sentido intrigada pelo estado que o vira
partir. E durante a formação também sentiu a mesma distância em relação aos
outros, por muito inteligente que fosse, havia linguagens técnicas e expressões
que desconhecia. A maioria dos colegas já tinham trabalhado em outras
empresas, tinham se formado ou começado muito cedo a obter experiência
profissional. Quase todos estavam interagindo, debatendo e oferecendo soluções
certeiras para todas as situações que os dois formadores apresentavam, mas
Darcelle se sentiu anos-luz atrás. Afinal, se tinha ido ali para aprender, por que
tinha a sensação de que quase todos já sabiam demais? Então ela fez o que
melhor sabia. Escutou.
Era final do dia quando saiu exausta da empresa. Estava um pouco
desanimada, mas se aquilo ia durar alguns meses, então sabia que era questão de
tempo até encontrar o ritmo e compreender todos aqueles gráficos absurdos. Se
estacou ao ver Étienne que logo jogou fora o cigarro assim que a viu e lhe sorriu
em amarelo.
— Você aqui de novo? — Darcelle levantou o sobrolho.
— Até parrece que não gosta.
— Isso me incomoda bastante — resmungou. — Ter um motorista e
parecer uma dessas mulheres ricas.
— Se lhe incomoda então a gente pode trrocar. Entre parra o volante e
eu vou bem relaxado no banco de trás. O que acha? — O motorista ironizou a
demonstrar uma certa impaciência. — Não dá, não é? Então se sente logo e
aprroveite a vida boa.
Darci levou a mão a cabeça quando se acomodou. Irritada. Mas não era
culpa dele, pelo contrário, sabia que não ter que sofrer horas sendo apertada nos
transportes públicos era o melhor que poderia ter.
— Eu estou perdendo a cabeça hoje. — Se confessou quando o carro
começou a andar. — E por favor nada de suas musiquinhas.
— Ingrrata.
— Para onde estamos indo? Eu tenho um jantar e preciso me arrumar.
— Se já sabe a resposta por que perrgunta? Orrdens superriores.
Johnson bufou alto, mas estava cansada demais para adicionar um item a
mais na sua lista do dia. Se deixou ficar quieta por todo longo percurso até a
mansão Beauchamp. E logo que chegaram, subiu os degraus até ao quarto de
Damien, não só estava muito ansiosa por vê-lo como precisava de ter a certeza
que estava tudo bem. Parou ao ouvir uma melodia suave e encostou o ouvido por
trás da porta. Podia ouvir teclas aleatórias do piano que ficava ali dentro do
quarto e que mesmo assim pareciam tentar formar uma melodia.
Entrou devagar e o encontrou sentado a experimentar aqui e ali com os
dedos.
— Não sabia que você tocava.
— Nunca fui muito bom pianista. Não como a Giovana que tanto tentou
me ensinar.
O quarto principal da mansão Beauchamp era quase do tamanho do andar
de baixo, com compartimentos separados e uma varanda muito comprida.
Darcelle entrou e se aproximou dele, depois ajustou a gola da camisa social junto
do casaco de algodão que Damien vestia. Estava num traje semi informal,
diferente dos habituais dias, e embora raramente o tivesse visto assim, o olhar
azul parecia distante.
— Alguma coisa se passa, o que aconteceu? — Ela insistiu naquela
questão. Desde que Joanne deixara a empresa, o rosto dele se tinha transformado
numa rocha forte e impenetrável.
— Ansiedade? — Sugeriu e inclinou um pouco o corpo para beijar a
amada nos lábios, se demorando no procedimento. Tomou-a em seus braços,
apertando com força num desejo cego de trespassar seus corpos e uni-los num
só.
— A minha mãe pode falar demais, mas verá com os próprios olhos o
quanto gostamos um do outro. — Tentou passar algum conforto, estranhando o
súbito receio, pois conhecia-o e sabia que muito pouco se intimidava.
— Vai correr tudo bem. Deixa só ver você. — Afastou-a de perto com
delicadeza e analisou seu rosto. — Parece cansada.
— Um pouco perdida… Mas também sei que às vezes é preciso se perder
para poder se encontrar, certo?
— Você irá encontrar seu caminho. Tenho a certeza disso. — Damien se
levantou e lhe estendeu a mão. — Venha comigo.
— Por que disse a Étienne para me trazer até aqui, sabe que precisava
trocar de roupa e tomar um banho. Sem contar que estou muito desconfortável
por ter um motorista agora e… — Ela se calou ao vê-lo abrir uma das várias
portas e abriu a boca num O perfeito junto dos olhos que se esbugalharam.
Eram um grande quarto de roupas, com várias peças de vestuário
feminino, sapatos, acessórios e tantas coisas que Darcelle julgou estar numa loja.
Estava tudo muito bem organizado em fileiras e penduradas em cabideiros que
preenchiam quase todo o espaço. Também tinham espelhos compridos e bancos
de veludo.
— Passou o dia inteiro fazendo isso?
— Paguei quem fizesse. E por favor, não me venha com discursos
politicamente correctos. Apenas aceite.
Ela se virou de frente para Beauchamp e engoliu em seco. Não sabia
muito bem como lidar com tudo aquilo e ao mesmo tempo temia ser fiel demais
a seus princípios quando tudo aquilo não passava de bens materiais, e o gesto
dele em se importar era o que mais contava. Escolheu não dizer nada e o beijou
com amor, deixando que seus lábios se expressassem por si só.
— Preciso tomar um banho ou vamos nos atrasar. — Darcelle se afastou
logo que percebeu que se empolgavam demais. Procurou a bolsa para avisar a
prima que iria encontrá-los lá.
— Claro.
Ela deixou o quarto até ao banheiro e encontrou um vestido pendurado e
coberto por uma película de plástico. Sorriu, percebendo o quanto Damien a
queria agradar, e procurou uma touca para proteger os cabelos antes de entrar
para o chuveiro, onde lavou o seu corpo das impurezas do dia. Quando terminou,
agradeceu pelo penteado que tinha feito naquela manhã ainda estar intacto,
apenas escovou os fios volumosos, começou a se vestir e calçou os sapatos,
gostando do resultado. Só faltava passar nos lábios o brilho que estava na sua
bolsa.
Damien estava sentado na cama e assobiou num elogio assim que a viu
surgir toda maravilhosa dentro do longo e elegante vestido azul-escuro. Ficou
levemente corado.
— Que bonito, não me diga que foi seu namorado que escolheu?
Darcelle riu alto e com os olhos a brilhar, rodopiou devagar, se exibindo
para ele.
— O meu namorado tem bom gosto, não é? — Respondeu ainda com
divertimento. Não sabia quando é que Damien tivera tempo para tratar de tudo
aquilo, mas se deslumbrara ao ver o tecido fino e a forma como lhe assentava no
corpo magro. A verdade é que tinha gostado muito.
— A cor é para condizer com a minha camisa.
— É, eu reparei. Não conhecia esse seu lado tão atento em detalhes de
casal.
— Nem eu, Darci. Nem eu.
Riram em cumplicidade e saíram do quarto de braços dados, deixando a
mansão até ao estacionamento onde Étienne os esperava com um ar
entusiasmado. Fazia tempo que não via o patrão assim, aliás, pensava que iria
morrer sem ver.
O restaurante ficava no centro de todo comércio da classe alta, era todo
de vidro com uma vista incrível numa varanda para uma piscina rasa que parecia
cair ao mar lá em baixo, dependendo da distância do ângulo de vista, a ilusão de
óptica parecia unir as águas. As mesas tinham pequenos candelabros que
pareciam flutuar, e um grupo tocava música conhecida ao vivo, criando um
ambiente agradável.
Jamie trouxera os tios, os encaminhando até a mesa onde estava o mais
novo casal. Parecia nervosa como se estivesse no lugar da prima e bebeu um
aperitivo ainda na entrada para aliviar o estômago embrulhado.
— Senhor e senhora Johnson. — Damien se levantou assim que se
aproximaram, apertando a mão ao patriarca, e recebendo dois beijos de Jamie e
um aceno estranho de Amabel. — Prazer, Damien Beauchamp.
— E existe quem não o conheça, rapaz? Pode tratar por Tony. — O
senhor era mais descontraído, sempre com um sorriso de ponta a ponta e um
punhado de anedotas sem graça para contar.
— Amabel. — A mãe disse, o tom seco e os olhos fugidios para não
encarar o rosto do genro. Mordeu o canto da bochecha, forçando o sorriso e a dar
uma falsa atenção a carta de vinhos.

— Eu trabalhei nos armazéns do hipódromo. Aliás, quem em San Luis
Obispo não trabalhou para a sua família? — Tony começou por puxar conversa,
sempre à vontade e de olhos divertidos. — Me aposentei, mas continuo a assistir
os jogos sem pagar.
— Pagavam um salário miserável. — Amabel não se fez de rogada,
embora estivesse com os olhos concentrados na ementa em suas mãos. — Tantos
anos de trabalho para tão pouco.
— É interessante falar sobre isso. Muitas coisas têm mudado. — Damien
garantiu, sabendo que a prioridade das suas empresas nos últimos tempos sempre
tinha sido dar o melhor aos trabalhadores.
— Só agora... — A senhora Johnson foi dura, seus lábios estavam
apertados.
— Veja pelo lado bom tia, a Darci agora trabalha lá. — Jamie estava
comendo as diversas entradas que estavam na mesa. O apetite parecia aumentar
a cada dia.
Tony voltou a conversar sobre corrida de cavalos, entrando na área de
jogos e apostas, e sobre a razão das vitórias e perdas da Beauchamp, ganhando a
atenção do genro que breve se empolgou a discorrer sobre aquele assunto. As
mulheres iniciaram uma discussão sobre cabelo, algo que breve se tornou
desagradável.
— Eu e Jamie estamos abraçando o crespo, mãe — repetiu pela terceira
vez, um quanto aborrecida por sempre terem de tocar naquele assunto.
— Da última vez que alisei, metade caiu. Agora estou recomeçando a
criar — afirmou Jamie que tinha o cabelo curto com alguns caracóis. Aquele
corte acompanhava muito bem o rosto bonito e delicado da estudante de
medicina.
— O facto de eu alisar, não me faz menos ou mais negra que vocês. Só
acho que daria menos trabalho e ficariam ainda mais bonitas! — Insistiu
Amabel, os olhos cor de mel apreciavam o penteado natural na cabeça da filha,
mas imaginavam também o trabalho que tinha sido.
— Cada um usa o cabelo como gosta, não é pelo cabelo que se diminui
as batalhas diárias pelo reconhecimento negro. E ponto final. — Darcelle quis
terminar o assunto por ali, não era essa a razão pela qual se tinham unido
naquele jantar.
— Eu gosto do cabelo de Darci, assim. — Damien elogiou.
— Mas é claro, ela também parece que gosta do senhor assim. — A
senhora Johnson respondeu com frieza, a amargura no tom de voz deixava claro
um desgosto na relação. Com tantos negros lindos e bem-sucedidos, era o que
pensava por dentro.
— Mãe! — Darcelle levantou a voz mais do que gostaria e lhe deitou um
olhar mortal.
— O que é? Só estou falando a verdade.
— Eu concordo, senhora Johnson. — Beauchamp travou a linha do
maxilar, mas também se manteve calmo. — Eu gosto muito da sua filha,
exatamente por isso. Porque ela gosta de mim assim. — Apontou para o próprio
rosto, deixando todos que ali estavam muito constrangidos.
— Ela contou como a humilhou uma vez no seu clube quando foi lhe
pedir um autógrafo? — A sogra o inspeccionava com muita atenção.
— Sim, contou. Uma vergonha de minha parte. — Ele não escondia
como aquilo o deixava entristecido em parte, mas Amabel não conseguiu segurar
um curto sorriso de aprovação pela atitude do Monstro Beauchamp.
— Águas passadas. — Tony disse e contou uma piada sem graça que
todos riram só para aliviar o clima.
Logo em seguida pediram bebidas e os pratos principais para comer.
Todos participando ativamente de uma conversa banal, menos Amabel que fingia
não querer cooperar com nada apenas para não se mostrar de fácil acesso, mas
ouvia tudo com atenção. Por sua vez, Damien até parecia bastante a vontade para
contar sua trajetória de vida, mostrava o interesse em agradar, relatando
incidentes na infância e ouvindo as histórias que o patriarca tinha para contar
sobre as duas primas e como eram espertas e traquinas.
— Boa noite a todos. Não fui convidado, mas decidi aparecer. Não me
desculpem. — Christian empurrou a cadeira de Jamie para o lado e puxou uma
de outra mesa para se meter entre ela e a tia. — Senhora belíssima, tenho o
prazer de a conhecer. Christian Dash.
Amabel sorriu com gosto e aceitou o beijo na mão que o atrevido lhe
deu. Em seguida o psicólogo cumprimentou a todos na mesa e virou para sorrir
com provocação para o seu alvo favorito.
— Reunião de família, e eu tenho o direito de fazer parte ou não? —
Chris perguntou em alto e bom-tom, arrancando um olhar petrificado de Jamie.
— Claro, você é como um irmão para o Damien — replicou a estudante
de medicina com astúcia, abrindo os lábios num riso nervoso e segurou a sua
taça de vinho, mas esta foi retirada prontamente de sua mão.
— Eu vim aqui chantagear você. Me desculpem o momento, mas é o
seguinte…
— Christian! — Jamie se exaltou, batendo com as mãos na mesa e
encarando o olhar ameaçador do homem com quem secretamente compartilhava
momentos tórridos.
— Existe, ou não existe? — Dash perguntou entre dentes, sem se
importar com os olhos virados para eles. Jamie sabia que se aquele metediço
ousasse expor as suspeitas ali, então, seria alvo de mais críticas e insistências. O
melhor era resolver o problema a dois.
— Sim. Existe. Existe e pronto, acabou! — Levantou-se da mesa às
pressas, correndo em direção ao banheiro. O coração batia sem parar e sua boca
não parava de soltar impropérios contra Chris.
— O que existe? — Damien perguntou ao melhor amigo, não percebendo
aquela súbita mudança de clima que se instalara na mesa. Chris primeiro olhou
para os restantes e só então deu de ombros.
— Uma vaga na Dash e Dash para fazer residência e que foi oferecida
por aquele que se diz meu pai. — O psicólogo levou a taça de vinho de Jamie e
bebeu, começando a puxar conversa sobre outros assuntos.
Darcelle se levantou logo a seguir, intrigada, e percebendo que o jantar
com os Johnson estava longe de ser perfeito. Entrou no banheiro em pânico.
— O que se passa? — Perguntou, preocupada. Tinha os olhos muito
abertos e se apressou em limpar as lágrimas da prima com as próprias mãos. —
Pare de ser orgulhosa. O Chris explicou sobre existir a vaga para você na Dash
& Dash, não é preciso essa reação.
— Foi isso que ele disse? Desculpe, eu nem sei porque estou chorando.
Christian me deixa com os nervos a flor da pele. — Jamie se esquivou das mãos
escuras e procurou lavar o rosto com água fria. — Está tudo bem agora, vamos
voltar.
— Tem certeza?
— Claro.
Quando voltaram, Christian já tinha tomado a atenção de todos,
arrancava gargalhadas e exclamações dos Johnson. Um talento natural para
entreter, enquanto por sua vez, Damien não conseguia acompanhar o ritmo
principalmente pelo pensamento estar distante e ligado a revelação de Joanne.
No fim da noite todos se encontravam do lado de fora do restaurante e se
despediam a meio de conversas intermináveis. Havia sempre mais alguma coisa
para dizer.
— Fico feliz que Darcelle tenha encontrado um rapaz como você. Espero
que nunca a faça sofrer — disse Tony, apertando a mão do genro e lhe dando
algumas palmadas nas costas.
— Não é que eu tenha algo realmente contra, mas eu sou mãe, e espero o
melhor para minha filha. — Amabel decidiu se expor, mas sem ser amarga ou
fria. — Sou muito exigente.
— Tenho a certeza de estar a altura. Eu vou cuidar bem dela — garantiu
Damien sem receio algum, abraçado a namorada.
Depois de muita discussão entre Chris e Jamie sobre quem iria dirigir o
carro dela, todos se despediram, e Étienne levou o casal para a mansão
Beauchamp.
— Penso que correu bem — comentou Darcelle após o banho, correndo
para estar nos braços quentes e confortáveis do namorado.
— Só preciso subornar sua mãe e fica tudo certo. — Ele brincou,
também estava de banho tomado e tentava se abstrair de toda a preocupação
recente. A tomou em seus braços, beijando-a em seguida com muito fulgor e
enterrando as mãos grandes nos longos fios crespos. Adorava tudo nela, o sabor
de seus lábios e o cheiro que o envolvia. Podia sentir o coração bater enquanto
acariciava o corpo tão perfeito, de curvas que se escondiam por baixo dos
tecidos e o calor que o chamava entre as pernas.
Ele a tocou com urgência, mostrando como seus dedos eram ágeis ao
brincar com os pontos mais sensíveis e se deliciou quando ela fez o mesmo,
brincando com seu membro e o deixando muito mais excitado. Aos poucos se
conheciam mais e a intimidade melhorava a medida. Damien ficou impaciente e
se colocou no meio dela, beijando os seios pequenos e fazendo as mãos correrem
por toda extensão da pele que se arrepiava enquanto era inteiramente preenchida.
E quando se amavam daquele jeito tão forte, tudo parecia não existir a não ser os
gemidos abafados e a ardência do choque dos corpos, num movimento lento e
ritmado. O Monstro Du Camp parecia nunca ter pressa, sempre fazendo
perguntas e se guiando nas reações de seu rosto ou de seus gemidos até tentar
arrancar o primeiro orgasmo da mulher amada. Conseguiu.
O corpo entrou em espasmos e fez Darcelle rir sem parar, não
acreditando na sensação até então desconhecida. Quis repetir.
[…]
Damien deixou-a adormecer em seus braços, a preocupação gritante
roubava o seu sono. Tentou por várias vezes fechar os olhos, sem sucesso. Era
como se o bicho invisível da curiosidade lhe picasse sem parar.
— Para onde você vai? — A voz ensonada de Darci se fez presente
quando sentiu o corpo quente a abandonar.
— Descanse. — Deu um beijo na testa dela. — Não demoro.
Sabia não ser certo esconder o que fosse da namorada, mas não queria
preocupá-la com aquele assunto sem ter a certeza de que o que Joanne falara era
verdade. Vestiu qualquer roupa ao acaso, cobrindo tudo com um casaco
comprido, e logo deixou o quarto, descendo as escadas com pressa e saindo
pelas portas traseiras da mansão. Encontrou o Jeep junto dos outros carros e o
dirigiu pelos bairros semi desertos da cidade.
Ligou para o amigo em viva voz.
— Alô, Damien. Alguma coisa aconteceu? — Ao falar, Christian parecia
estar um pouco bêbado, mas nem assim deixou de se mostrar preocupado.
— É preciso que investigue Joanne Charlton para mim. Pague o que for
preciso. Máxima discrição e urgência — pediu, sem se estender mais em
pormenores. — E encontre a Giovana que parece estar fugindo de mim.
— Primeiro eu era metade do seu rosto, depois seu entregador de
recados e agora Sherlock Holmes? Elementar, meu caro Watson.
— É de máxima importância.
— Tudo bem — concluiu e desligou.
Nem o ar condicionado salvava o suor presente na testa, estava colado ao
cabelo e os olhos azuis se demoraram a encarar a casa onde moravam as
Charlton. Demorou um bom tempo antes de descer do carro e passar pelo jardim.
Bateu a porta com força.
— Senhor Beauchamp! — Emma exclamou, assustada por o ver ali.
Fechou o roupão com força para esconder a roupa de dormir e ficou vermelha
quando William surgiu atrás.
— O que se passa? — O jornalista perguntou, engolindo em seco ao ver
o Monstro Du Camp.
— Vou entrar. — Damien não pediu, avisou e passou pela ex-noiva que
soltou um grito.
— O que quer aqui?
O intruso andou pela casa, espreitando compartimentos em busca de um
quarto, mas não foi preciso muito, pois Joanne surgiu preocupada, e assim que o
avistou ficou ainda mais fantasmagórica possível.
— Mamãe que barulho é esse? — A criança surgiu com um choramingo,
coçando os olhos com um punho fechado.
— Giovani, vá para o seu quarto! — A mãe gritou com o filho inocente,
revelando o desespero crescente dentro dela. Contudo, não foi o suficiente para
parar o possível pai do menino. Este quase se materializou ali, encontrando um
rosto que respondia a todas suas perguntas.
Giovani era loiro e possuía cachos no cabelo, com as bochechas rosadas
e uns grandes olhos azuis da cor do céu. Sorriu para o estranho, e um arrepio
passou por todo corpo másculo de Beauchamp ao ver o gesto.
— O senhor já não tem mais nada com essa família, não pode chegar
aqui entrando desse jeito! — William decidiu se impor, o tom zangado era
visível.
— Estou de saída! — Damien declarou com a voz embargada, dando
meia volta e fugindo para longe em passos rápidos. A cabeça girava sem parar e
a respiração era ofegante.
A verdade é que não sabia o que fazer caso confirmasse a paternidade, e
descobrira que a megera da Joanne sempre tinha razão, pois foi só colocar os
olhos no rapaz, que a semente de um sentimento maior que tudo brotou em seu
peito.
O que diria Darcelle? Sabia que com as dificuldades que se avizinhavam,
certamente poderia correr o risco de perder um dos dois.
Incondicional Forma de Amar, A

“O amor fraterno é o maior poder que habita o coração de um ser
humano.”

DAMIEN não tinha contado os dias que se passaram.


Tudo lhe parecia tão perto e tão distante, simultaneamente, e só se dava
conta que as horas passavam quando chegava a hora de dormir e de acordar.
Contudo, em nenhum momento esqueceu o rosto bonito de Giovani e de como
sorrira para si, o reconhecendo mesmo sem saber. E aquilo estava tão entalado
em sua garganta que muitas vezes tinha dificuldade para respirar. Principalmente
por estar sendo um fraco, protelando o confronto com Joanne, e sabia que esta
esperava qualquer jogada próxima que viria do seu lado.
Mas ele estava parado.
Parado no medo que sentia de ser rejeitado, no receio de contar para
Darcelle que tinha um filho com aquela mulher, de receber a confirmação cabal
logo que fizesse o teste de DNA. Eram tantos receios que só se permitia sossegar
quando estava nos braços da amada, beijando seus lábios e fazendo amor. As
longas conversas que tinham na cama eram quase uma lufada de ar fresco em
suas preocupações, pois adorava se debruçar na descoberta de mais coisas sobre
ela que a cada dia se revelava uma caixinha de surpresas.
Mesmo assim, não conseguia tirar aquele menino de seus pensamentos, e
era por isso que se encontrava em frente do jardim de infância, só queria vê-lo
mais uma vez e nem conseguia lutar contra isso. Fez um sinal para que Étienne
destrancasse as portas do carro luxuoso.
— Me espere aqui — ordenou, saindo com vagar e fechando o botão do
casaco do terno. Fingia não perceber os olhares curiosos do motorista para não
dar intimidades e andou pelo chão de cimento, empurrou o portão e entrou para a
casa simples com um quintal gigantesco cheio de brinquedos para crianças.
— Em que lhe posso ser útil? — Uma jovem simpática logo se
aproximou. Tinha grandes olhos cor de chocolate, o cabelo preso por um elástico
e usava um uniforme azulado.
— Bom dia, eu gostaria de ver o Giovani… Presumo que seja Charlton?
— E quem é?
— Sou o Damien B…
— Eu sei quem é, senhor Beauchamp. — Ela o cortou sem ser rude. Na
placa presa no bolso da camisa poderia se ler Sofia. — Perguntava quem é para o
menino?
— Um amigo da família.
— Certo. — A jovem presumiu que, talvez, mesmo depois da notícia do
rompimento do noivado que saiu em todas as revistas e no jornal Tempo, aquele
homem ainda tivesse alguma proximidade com a criança. — Me acompanhe.
— Obrigado — agradeceu não só pela simpatia, como por saber que não
seria autorizado se ele não fosse um homem rico e conhecido. Em qualquer outra
situação, teriam dificultado.
— Giovani! — Sofia entrou numa das pequenas salas cheia de papéis e
tintas, crianças diferentes que nunca estavam quietas, e Damien jamais teria tido
coragem de espreitar lá para dentro se fosse uns meses atrás.
O menino loiro levantou a cabeça, era um pouco gordo e muito bonito.
Parecia um querubim pelos cabelos cheios de cachos e as bochechas rosadas.
Sorriu, mostrando os dentes separados assim que o viu.
— Vem aqui. — Ela chamou com a mão, e o menino se levantou um
quanto curioso, andando lentamente para fora da sala. — Este senhor veio ver
você.
— Para me levar para casa? — Questionou, olhando para ele de uma
forma esperançada.
— Como você está? — Damien se agachou para ficar a altura dele.
— Com dor de rabiga, mas não me deixaram ficar dormindo. —
Queixou e apertou a barriga.
— Não está nada. — Sofia meneou a cabeça. — Sempre inventa algo e
chora quando é para vir aqui. Tantos anos e nada mudou.
— Pode me deixar cinco minutos com ele? — O Monstro Du Camp
pediu, a mão parada a meio do trajeto como se temesse se queimar ao tocá-lo.
— Claro, mas não se demore ou a minha superiora pode me penalizar.
Estou abrindo uma excepção para o senhor. — Sofia pediu e entrou para colocar
ordem na sala que fazia barulho. A educadora ainda não tinha chegado.
— Sua barriga está doendo muito? — Ele perguntou para Giovani que
acenou em positivo. — Sabia que se eu soprar, ela para de doer?
— E o que é que o senhor iria sobrar?
— Soprar. — Corrigiu com um sorriso e inclinou o rosto para frente. —
Assim. — Abriu os lábios rosados e deixou o ar escapar. — Passou?
— Já não está doendo nadinha. Agora vamos para casa?
Beauchamp gargalhou.
— Ainda não. — Finalmente acariciou o rosto dele. — Mas prometo que
volto em breve.
— Minha mamãe disse que greve não é boa coisa.
— Eu volto em pouco tempo.
— Quanto dura pouco tempo?
— O mais rápido que for possível. — Lhe deu um beijo no rosto e ficou
consternado. Não podia deixar de pensar que tinha perdido vê-lo dar o primeiro
passo, trocar suas fraldas e ouvi-lo chamar papai. Talvez aquilo tivesse
transformado sua vida e teria levado alegria para dentro das muralhas de sua
mansão. Ou o teria rejeitado como fez com tantas pessoas? Não acreditava na
segunda opção, senão nunca teria comprado mulheres para formar uma família.
— Antes que eu vá pode fazer uma coisa?
— O que é? — Giovani o olhou desconfiado, sua mãe sempre dizia para
tomar cuidado com estranhos, mas aquele homem lhe era estranhamente
familiar.
Damien colocou a mão dentro do casaco e tirou de lá um pequeno kit, o
abriu e puxou algo igual a um cotonete de algodão. O aproximou dos lábios dele.
— Abra a boca.
— Vai doer?
— Nem um pouco. Prometo. — Também estava surpreso pelo tacto que
demonstrava com crianças. Nunca antes tivera que lidar com nenhuma, mas era
como se já soubesse o que fazer. O menino abriu a pequena boca avermelhada, e
ele passou o objeto no interior da bochecha, com rapidez, voltando a guardá-lo
com todo cuidado. — Pronto.
— E pra que é?
— Em breve você irá saber. Sim?
— Tudo bem. — Giovani aceitou outro beijo e corou.
— Adeus. — Damien enterrou o dedo nos cabelos, parando para ver o
menino correr para entrar na sala com um sorriso, e só então saiu apressado. Seu
coração era espremido dentro de seu peito e estava tão pálido como se tivessem
drenado todo sangue de seu corpo. Não sabia como já poderia amar tanto aquela
criança até então desconhecida.
— Está tudo bem, senhor Beauchamp? — Étienne perguntou quando este
se acomodou no banco de trás.
— Pode ir — ordenou com ar sério e olhou para o relógio.
— Sim senhor. — O motorista começou a dirigir, já sabendo a rota que
os levaria mais rápido até a empresa. — Aquela crreche não é onde estuda o
sobrrinho da senhorrita Charlton?
— E qual é a sua preocupação? — Beauchamp encarou o retrovisor, seus
olhos azulados eram frios.
— Nenhuma.
— Ótimo.
Seguiram em silêncio até chegar ao destino, e Damien cumprimentou
alguns colaboradores antes de ir direto para uma reunião com Christian Dash.
Havia muito trabalho a ser feito e tentou se concentrar ao máximo para tratar de
tudo sem ser traído pelos pensamentos.
O último dia da semana foi corrido para todos na empresa Beauchamp,
especialmente para Johnson cuja formação se tornava cada dia mais intensa e
desafiadora. O facto de trabalhar com o namorado ainda não tinha afetado em
nada até então, tirando os olhares acusatórios dos demais que os viam sair para
almoçar ou ir para casa juntos.
— Ex-Fantasma da Ópera? — Dash lhe telefonou no final do
expediente. — Encontrei sua malvada mãe e finalmente se dispôs a ter uma
conversa com você. Em meia hora estará aqui. Quer que prepare dois cães de
guarda?
— Obrigado. Ficarei a espera. — Foi breve como sempre e ouviu duas
batidas na porta. — Até logo.
— Estou indo ter com Jamie, nos encontramos mais tarde? — Darcelle
entrou na sala de Damien para se despedir. Não lhe passava despercebido o
quanto estava estranho, sempre apreensivo e fechado dentro de uma concha. —
Podíamos sair para dançar? Só dancei com você uma vez no seu noivado com
outra.
— Me desculpe, meu bem, mas estou exausto. Amanhã devo acordar
cedo. — Levantou-se para ir até perto dela, viu o olhar desiludido no seu rosto.
— Quer sair amanhã?
— Tanto faz — respondeu numa fraca tentativa de esconder o
aborrecimento. Sabia que estava com o herdeiro de um património que dava
muito trabalho para cuidar, mas também precisava de um namorado mais
normal. Recebeu o beijo rápido.
— Eu estive pensando que você poderia se mudar para a mansão, uma
vez que dorme comigo todas as noites — acrescentou. Parecia algo a qual
pretendia falar há bastante tempo só pela forma como expeliu as palavras.
— E a Jamie? Não é do meu agrado deixá-la sozinha.
— Há uma pequena falta de egoísmo em sua pessoa, e isso às vezes pode
ser necessário. — Damien segurou nas mãos, mas sentiu que ela estava distante.
— Já pensou que a sua prima sabe se cuidar e que vocês não vão ficar juntas
para sempre? Não pensa em se casar, ter filhos e sua própria casa?
Darcelle suspirou.
— Eu convidaria a Jamie a se mudar com você, mas do jeito que ela é,
sou capaz de levar um tiro no peito antes de terminar a oferta.
Darcelle sorriu ao ouvir sobre sua amada quase irmã. Era verdade que
não aceitaria.
— Eu só não queria deixá-la agora. Jamie está estranha… os humores
alteram a toda hora, chora muito — comentou de forma distraída, pois vê-la
vulnerável tinha mexido com seu coração.
— Já pensou que talvez ela possa estar… grávida? — Damien depositou
outro beijo estalado nos lábios de uma surpreendida Johnson e voltou a sentar
atrás de sua grande mesa.
— Como assim? Sabe de alguma coisa? Fale! — O desespero tomou
conta da voz e os olhos ganharam um brilho incrível. Podia aquilo ser verdade?
Darcelle bufou de raiva, sem saber se acreditava ou não naquela possibilidade e
não sabia se ficava feliz ou triste pela descoberta, pois Jamie tinha prometido
não esconder mais nada.
— Eu só dei uma dica. Acho melhor falar com ela. — Piscou o olho com
charme, deixando-a ainda mais impaciente. Olhou para o relógio de pulso. — Eu
vou ter mais uma reunião agora. Depois preciso conversar com você.
— O que quer conversar? — A concentração tinha ido embora,
sobrepondo-se a ideia de estar a crescer uma criança no ventre daquela teimosa.
— Posso adiantar a primeira coisa agora. — Pousou os braços sob a
mesa, a camisa dobrada até ao cotovelo revelava um deles tão cicatrizado quanto
o rosto, mas não parecia incomodado, pelo menos na presença dela. — Qual é o
seu sonho? Eu fiquei me perguntando isso porque todas as pessoas que eu
conheço sempre falam sobre algum. Quero saber qual é a sua perspectiva de
vida, a sua ambição. O que você gostaria de fazer em especial, Darcelle?
— Como assim? — Parou para pensar. Não conseguia se lembrar de nada
naquele momento.
— Quando você estudava, qual carreira pensava em seguir? Que área de
trabalho? Em que empresa? — Ele examinou os olhos escuros, pareciam dançar
em busca de uma resposta. — O que agradaria você como uma profissão de
futuro? Qualquer coisa. Me fale.
— Eu… bem. Nunca tinha pensado nisso. — Engoliu em seco, um pouco
envergonhada. Nunca foi uma mulher de grandes sonhos, queria apenas ter um
salário bom e uma vida confortável. Não era como Jamie que sempre teve seus
planos traçados, e desde criança sabia que queria ser uma grande cirurgiã.
Diferente dela que sempre quis ser tanta coisa ao longo do tempo, professora,
bailarina, cantora, astronauta e por aí em diante. Darcelle às vezes julgava não
ter nenhum dom em especial ou ambição. — Por que essa pergunta?
— Quero ajudar você a se realizar. Ter seu próprio negócio, gerir sua
empresa ou loja, ou o que quiser fazer — respondeu com clareza. — Precisa
terminar seu curso ou começar um outro. Pense nisso.
— Tudo bem. — Ela concordou e sorriu um quanto embaraçada. —
Obrigada. Mas…E a segunda coisa?
— Falo com você depois. — O semblante do Monstro Du Camp ficou
sombrio.
Despediram-se, e ela saiu dali com mil e uma ideias na cabeça,
apanhando o elevador junto dos colegas que conversavam. Dois deles da
tesouraria pararam de falar assim que a viram entrar.
— Tenha um bom fim de semana, senhora Beauchamp. — Ironizou o
mais alto. Era ruivo, e todos ali sabiam o quanto aspirava ao cargo de diretor
financeiro.
— É Johnson — corrigiu de forma azeda, sabendo bem o que os dois
queriam insinuar só pelos risos zombeteiros. — Mas será Beauchamp em breve!
Não soube de onde veio tal resposta, contudo já tinha disparado elevador
à fora, ciente das más bocas falarem sobre o relacionamento improvável entre os
dois. Procurou as chaves do Jeep que o companheiro insistiu para que ela usasse,
e não podia negar que até sentia falta de Étienne, mas se espantou ao encontrar
Giovana parada em frente ao carro preto.
Engoliu em seco.
— Darcelle? Como está? — Sempre a exalar charme e confiança a
mulher estendeu a mão para a jovem desconfiada. — Poderia ter uma palavra
rápida com você? Vim falar com Damien e… — Viu a admiração nos olhos
escuros à sua frente. — Parece que ele não lhe disse, contudo, gostaria de cinco
minutinhos do seu tempo.
— Senhora Beauchamp — cumprimentou. — Quer entrar no edifício e
conversar em alguma sala?
— Não é preciso. Pode ser aqui no… seu carro. — O tom que usou para
pronunciar as últimas palavras foi indescritível. Darcelle pensou em se justificar,
no entanto preferiu acenar em confirmação e desarmar o alarme do carro. As
duas entraram, e o espaço de repente pareceu pequeno na presença daquela
magnífica mulher. — Serei breve.
— Fique a vontade.
— Sei que como todos, deve pensar mal de mim, deve me julgar e me
achar a pior mãe do mundo. Damien julga que eu o abandonei por não conseguir
olhar a cara deformada, mas toda história tem dois lados. — Começou a falar
com o ar sério.
— Mas a senhora me julgou assim que me viu naquele dia no quarto com
o seu filho.
As duas se encararam.
— Quando o acidente aconteceu foi um desastre não só na vida dele,
como na de todos. Meu marido ficou desnorteado e eu me sentia culpada por não
ter conseguido proteger a pessoa que mais amava de um destino infortúnio. As
cirurgias foram um desgaste, uma faca cravada na nossa esperança. Não tinha
conserto. — Os olhos azuis ficaram molhados com o relato unido a lembrança.
— As pessoas tinham pena de nós. Damien desistiu da vida, se isolou de tudo e
todos. A namorada com a qual o maldito acidente aconteceu foi embora de vez.
Ele nunca se recuperou.
«Quando meu marido morreu, eu estava sozinha, destruída, acabada e
sem forças para lutar contra aquela máscara ridícula e os noivados arranjados
com mulheres que não suportavam olhar para ele. Ainda assim, isso não era o
pior. O feitio horrível, as palavras ácidas, o olhar amargo…
É fácil simplesmente dizer que fui embora e o deixei para trás. Eu sei que
como mãe deveria ter suportado até ao fim. É por isso que existem biliões de
pessoas no mundo, porque são diferentes. A única forma que encontrei de me
proteger foi indo embora.»
— Não entendo a razão de me contar tudo isso. — Darcelle pareceu
desconfortável, os olhos preferiam acompanhar o movimento da rua do que
encarar a mãe do namorado.
— Eu não sou uma pessoa boa, mas também não sou má. Sou um ser
humano, com defeitos e virtudes. Sei o quanto Damien pode ter raiva de mim,
mas só Deus sabe o quanto sofri. Fui egoísta sim, mas quem pode me condenar
se nunca esteve em meu lugar?
— Eu não tenho como lhe dar nenhuma absolvição, senhora Beauchamp.
E não é a mim que deve tentar convencer.
— O Christian sempre esteve do lado do amigo mesmo quando não o
suportava. E agora vem você desmontar todas as muralhas que ele ergueu com
essa facilidade? Deve ser muito poderosa para penetrar um coração que estava
tão amargurado. Não sei se realmente o ama, mas acredito que a solução para
tudo possa mesmo ser o amor. E o meu é incondicional.
— Ainda não sei onde pretende chegar. — A postura rígida da jovem
demonstrava toda tensão do seu corpo.
— Sei que a ofendi no outro dia. Sempre fui dura e imprudente nas
palavras, e coloquei sempre Damien num pedestal acima de qualquer outro. Ver
uma mulher negra, claramente de poucas posses, em seus braços, e um dia após
o dito noivado, foi no mínimo chocante. — Foi sincera. — Mas depois eu fui
para o hotel refletir. A forma como ele te abraçava naquela cama, o rosto
desfigurado pela primeira vez estava sereno. A forma como você o defendeu
cheia de garra. Sou uma mulher vivida como você bem disse naquele dia, e devo
reconhecer que talvez o vosso sentimento seja verdadeiro. Não sei se importa,
mas quero que saiba que podem contar comigo.
Giovana não esperou a resposta de Darcelle e saiu do carro com toda a
sua elegância, caminhando como um felino com um pé na frente do outro até
dentro do grande edifício.
Segredo Exposto, O

“Infelizmente, a vida também é feita de espinhos. Basta saber onde pegá-
los para não se machucar.”

GIOVANNA parou na recepção.


— Senhora Beauchamp, o seu filho está a sua espera. — Rupert sorriu
como a etiqueta mandava, mas recebeu uma cara amarrada como resposta.
— Não me parece que esteja sol aqui dentro. Não é de bom-tom que
receba os clientes de óculos escuros, Arminda Rupert. — Implacável como
sempre, a mulher que trajava um luxuoso terno vermelho, pousou a sua bolsa de
marca em cima do grande balcão.
— Perdão, senhora. É que estou com uma alergia e não achei que…
— Nesse caso fique em casa. — Cortou com frieza. — Tire os óculos
para eu avaliar. Vamos lá Rupert, esqueceu que fui enfermeira?
A recepcionista tinha o coração a bater tão alto que quase se ouvia do
lado de fora. Num movimento lento e constrangido, retirou os óculos escuros,
revelando um olho fechado e com uma grande mancha roxa ao redor.
— E agora? Vai dizer que se bateu contra uma porta? — A senhora
meneou a cabeça e saiu a caminhar em direção ao elevador. Não era capaz de
entender a razão de algumas mulheres se submeterem àquilo.
— Não senhora. Foi apenas uma briga.
— Será apenas uma briga quando for parar na morgue?
Rupert apertou os lábios e começou a olhar para os papéis, mostrando
que não queria discorrer sobre aquele assunto. Giovana meneou a cabeça,
carregou a bolsa e subiu pelo elevador ainda indignada. Não podia esquecer
como Jacques Beauchamp a tratava como uma flor.
Encontrou o Monstro Du Camp concentrado no computador, não
levantou os olhos duas vezes para encará-la, embora conseguisse sentir os
movimentos todos da sua mãe. Esta se serviu de café e sentou na cadeira em
frente do filho.
— Não posso imaginar a urgência com a qual insistiu para que viesse até
aqui — decidiu iniciar a conversa, vendo que o filho não falava nada.
— Joanne Charlton me procurou e diz que tem um filho meu, o mesmo
que a senhora mandou abortar. Confere? Se me mentir saiba que o resultado do
teste de DNA sairá em breve. — Foi direto ao ponto. A voz branda saía sempre
cheia de charme, mesmo quando estava zangado.
— Você não conseguia se amar nem a si próprio, imagina uma criança?
Não queria falar com aquela mulher por nada desse mundo, quanto mais ter um
filho dela? Apenas fui prática em resolver esse assunto e evitar mais
aborrecimentos para o seu lado. — Não negou, muito pelo contrário, parecia
certa da sua atitude.
— Parece que o assunto foi mal resolvido. Eu vi a criança com os meus
olhos e é igual a mim quando tinha aquela idade. Até o buraco no queixo e as
covinhas na bochecha quando ri. Tudo.
Giovana empalideceu.
— Estou tão surpresa quanto. Joanne me disse que tinha abortado com
sucesso e nunca me pediu nada todos estes anos. Parecia decidida a esquecer
você e tudo.
— Agora essa criança não sai da minha cabeça, e essa mulher afirmou
que vai fazer da minha vida um inferno antes de permitir que me aproxime dele.
O Giovani por sinal. — Pela primeira vez viu a mãe perder toda a compostura
dura e séria. — Meu relacionamento com Darcelle mal começou. Se aquela
mulher foi capaz de enviar a pobre da irmã para se deitar comigo em busca de
vingança, o que mais será capaz de fazer?
— Quer que eu diga que a culpa disso tudo foi minha, Damien? Talvez
tenha sido bom conhecer essa criança agora que mostrou ser uma pessoa melhor.
— Bebeu o café com uma delicadeza absoluta, sequer o batom rosa manchava a
borda da xícara.
— Meu Deus! E a senhora nem pestaneja.
— O que quer que eu faça agora que o segredo foi exposto? Quer gritar?
Grite. — Se impacientou. — Eu só estou cansada de todos esses jogos e do
passado que nos mina. Já pensou que agora é a hora de fazermos tudo correto?
— O que a excelência sugere?
Giovana revirou os olhos. Era difícil lidar com o filho.
— Passamos uma borracha por cima de tudo isso. Você encontrou o amor
agora, eu estou aqui e tem um filho. Qual é a razão de criar tanto atrito se tudo
indica que chegou a hora de ser apenas feliz?
Damien cruzou os braços, fitando-a amargamente, mas sua mãe estava
mais calma que um lago sereno. Soltou um suspiro.
— Acha que pode sair de minha vida e voltar quando bem entender?
— Acho que posso tentar consertar meus erros, assim como você
consertou os seus. — Era boa com as palavras e isso lhe fez lembrar Darcelle,
um pequeno reflexo do complexo de Édipo, talvez.
O celular de última geração vibrou, mostrando a fotografia de Christian
Dash na tela. O amigo atendeu, irritado.
— Alô?
— Ligue a televisão no canal 5, agora Damien.
— Não posso ver televisão, Christian! Estou ocupado.
— É melhor ligar. Lorenzo Wright acaba de estrear um programa
televisivo, e adivinha quem é a primeira convidada? Joanne.
Damien procurou o controlo remoto perdido nas gavetas por falta de uso,
muito antes de desligar o celular. Ligando-a logo em seguida.
Lorenzo era conhecido pelo jornal Tempo e ultimamente por ser o
principal pivô das notícias relacionadas às primas Johnson. O que não parecia
encaixar era a relação que poderia ter para chegar até às irmãs Charlton.
[…]
— Por que me olha com essa cara? Você está assim desde que chegou —
indagou Jamie sentindo-se incomodada. As duas estavam sentadas no mesmo
sofá, conversavam mais sobre Darcelle que era quem mais parecia disposta em
contar suas coisas.
Os pais tinham saído para ir visitar Alda, a mãe de Jamie que estava
internada.
— É que você já comeu quase um frango inteiro, duas laranjas, um
chocolate e agora um pacote de batata frita.
A estudante de medicina arregalou os olhos, afastando o pacote para
longe de suas mãos. Sorriu com vergonha e coçou a cabeça sem saber o que
dizer.
— Sabia que Lorenzo conseguiu um programa exclusivo? Tudo as nossas
custas, quero só ver o que o idiota vai apresentar. — Desviou o assunto e
procurou o comando para mudar de canal. Darci quis reclamar, mas o rosto da
irmã de Emma na televisão, roubou toda sua atenção.
— O que ela está fazendo aí?
— Sabe de onde eu conheço aquela que ia casar com Damien? Pois, eu
lembrei. Ela tinha um namorado que era o melhor amigo de Lorenzo. Já os vi
juntos algumas vezes.

— Seja bem-vinda ao Pipoca Quente, Joanne. Agradecemos a sua
presença e por ser uma mulher corajosa o suficiente para dar as caras na
televisão para falar de um assunto tão delicado. — A câmara fechou o plano
para o rosto aparentemente triste da Charlton, mas a voz do entrevistador
continuou a ser ouvida. — Todos sabem que Damien Beauchamp apareceu com
outra namorada pouco tempo depois de ter rompido o noivado. O mais
impactante não foi a traição vergonhosa contra a bela Emma, irmã da nossa
convidada, e sim a história inacreditável por trás de tudo.
— Eu nunca tinha contado nada para a minha irmã, mas não aguentava
viver sufocada, e assim que ela soube, se separou de Damien. Essa é a verdade,
ele só ficou com a empregada para esconder que tinha sido abandonado.
— E por que ele fez isso? — Lorenzo tinha uma voz enfática, criando um
derradeiro espetáculo dramático ao passar uma caixa com lenço de papel para a
convidada limpar o rosto.
— Damien Beauchamp teve um filho comigo, o Giovani, de cinco anos.
Nunca quis assumir e sempre me desprezou por eu não ser tão bonita, ou estar
nos padrões aceitáveis. Fingiu não me conhecer todo este tempo no qual sofri
e…
Jamie desligou a televisão no minuto seguinte, a mão de unhas muito
bem-feitas chegava a tremer.
— Liga isso de volta. Liga!
— É tudo uma mentira para ganhar audiência. O Lorenzo quer me atingir
e por isso vai provocar a todos que mais amo…não chore!
— Ligue a televisão de volta, Jamie. Quero ouvir o que essa mulher tem
para dizer.
— Melhor ouvir o que seu namorado tem para dizer!
Jamie se levantou do sofá e foi desligar a ficha da corrente elétrica. A
prima levantou e começou a andar de um lado para o outro, pensava em mil
coisas, sem querer acreditar que o namorado tinha conhecimento daquilo. Só
podia ser mentira. As pessoas estavam fazendo qualquer coisa por um minuto de
fama.
— Não fique assim, Darci. — Se aproximou para abraçá-la, mesmo que
detestasse abraços, odiava ainda mais ver o estado em que a outra se encontrava.
— Como não? — Indagou. — Por que ele não me contou?
— Talvez porque não sabe. Não teria motivos para esconder, pois não?
— Jamie tentou encontrar uma razão plausível e secou as lágrimas que caíam
pelo rosto de Darcelle com os polegares. — Vamos se acalme.
Ela foi até a cozinha e preparou um chá quente para dar para a prima que
mal conseguia dominar a respiração. Tentou em vão obrigá-la a tomar, e
permaneceram caladas durante muito tempo mergulhadas nos próprios
pensamentos.
A campainha tocou alto quase meia hora depois, e as duas se
entreolharam. Darcelle correu até a porta, os olhos pareciam queimar por dentro.
Damien entrou na casa, olhando para a televisão e depois para uma Jamie que
logo saiu da sala sem hesitar.
— Você viu? — Ele questionou.
— É verdade?
— Eu não tenho certeza. Estou esperando pelo resultado do DNA.
A decepção cobriu os olhos escuros de forma tão certa que o coração dele
falhou uma batida. Soube logo que tinha cometido um erro.
— Você já sabia?
— Era essa a segunda coisa que eu queria falar com você. — O
desespero estava estampado no rosto disforme. Sentiu uma dor quando ela se
afastou com frieza e a seguiu até ao sofá se sentando ao seu lado. — Eu posso
explicar.
— Tentarei ser o mais razoável possível.
— A forma como Joanne contou não é a verdadeira. Não sabia da criança
até aquele dia em que ela apareceu no escritório, pensei que quisesse conversar
sobre Emma, mas na verdade era para falar sobre o Giovani.
Ela logo compreendeu por que ficou tão estranho desde então. Balançou
a cabeça.
— Sequer me lembrava dela, tudo aconteceu numa noite que me atrevi a
sair e bebi demais. Joanne era obcecada por mim desde muito tempo e jurou se
vingar porque depois de tudo nunca mais a quis ver. — Soltou um suspiro. —
Por isso enviou a Emma. Eu fui ver o menino duas vezes, e realmente é a minha
cara.
Quando Damien continuou a contar tudo nos mínimos detalhes, desta vez
sem esconder nenhuma parte daquele segredo que o tinha feito perder noites,
Darcelle estava em silêncio, processando cada palavra com cuidado, sem
demonstrar nenhuma reação visível no seu rosto.
— Eu sei que o nosso namoro é recente, percebo a sua forma habituada
de pensar e estar sozinho, mas em algum momento você pensou em mim? —
Perguntou. As mãos estavam ao redor da xícara de chá ainda cheia, embora fria.
— Eu não soube como agir, fiquei assustado e confuso. Não tinha certeza
de nada e por isso… — Se calou. — Não houve sequer um segundo que não
pensei em você.
— Todo esse tempo e nem uma palavra sobre o assunto? Sequer cogitou
na ideia de compartilhar comigo para que pudesse ajudar? Nós podíamos ter
passado por tudo isso juntos. — A voz se alterou por uns instantes. — Como é
que quer viver comigo se não confia em mim?
— Eu confio, mais do que tudo. Você é a única certeza na minha vida.
— A única não. Existe um filho agora, uma vida. E eu tive que saber
disso pela televisão.
— Eu ia contar hoje. Só precisava estar seguro, não queria aborrecer com
especulações que poderiam ser infundadas ou resultados de uma mulher maluca.
A forma como ela o encarava revelava toda a tristeza presente, não
parecia querer acreditar naquelas justificações infindáveis.
— Eu percebo o que diz. Juro que percebo — afirmou sem pestanejar. —
Mas um relacionamento é a base de confiança. Um companheiro tem que ser
aquele para quem deseja contar tudo o que incomoda.
— Eu preciso de você, das suas palavras e do seu conforto. — Esticou a
mão para acariciar a dela e sentiu uma pontada no coração quando a viu se
esquivar do carinho.
— Eu estou magoada. Não posso obrigá-lo a contar o que não quer ou só
quando lhe convém, mas me senti desprezada.
— Eu jamais a desprezaria. Pretendo processar Joanne por difamação e
procurar essa enfermeira que cooperou com isso — tartamudeou. — Só não
quero que seja motivo para estarmos zangados. É muita coisa a acontecer ao
mesmo tempo e preciso que esteja ao meu lado.
— Processar? — Repetiu um tanto incrédula e meneou a cabeça num
gesto claro de negação. — Eu vou dar um conselho: Se passaram quase seis
anos. Joanne é uma mulher rejeitada com um filho que não conhece o pai, com
uma irmã linda e feliz no relacionamento, e toda essa raiva vai sobrar para você.
O que precisa agora não é de se vingar e sim de se retratar. Não volte a ser o
homem horrível que era apenas para massajar seu próprio ego.
Aquilo atingiu Damien como uma bala certa no meio da testa. Os olhos
azuis escureceram por um momento e se afastou para recostar o corpo no sofá.
— Eu não fiz nada e eu é que sou o culpado? O meu filho não merece a
mãe que tem. É falsa e mesquinha, capaz de usar a própria irmã num ato ridículo
de vingança.
— Damien, você quer pagar sangue com sangue? Tem uma criança
inocente no meio dessa guerra de adultos. O que Joanne quer não é mais que sua
atenção. Já experimentou sentar e falar com ela por bem? Se abrir e explicar o
seu lado e pedir…
— Pedir?
— Sim, pedir — reforçou com firmeza. — Para esquecerem o passado e
tentarem um novo recomeço? Você é uma pessoa diferente agora e pode fazer
com que ela também seja.
Beauchamp passou a mão pelos cabelos num gesto involuntário que
revelava sua impaciência. Parecia em nenhum momento ter cogitado tal ideia, já
tendo chamado advogados e todos os seus conhecidos da justiça. Mordeu o lábio
com força.
— Foi ela que guardou um segredo desse porte. E não sou nenhum
psicólogo para curar os traumas daquela mulher, não merece essa consideração.
— Eu também não era sua psicóloga! — Rebateu e o atingiu mais uma
vez.
— Você é boa demais, compreendo o seu ponto de vista, mas não vejo
razão alguma para perder meu tempo com Joanne.
— Uma única razão: Seu filho. Querendo ou não, o Giovani ama e
precisa de sua mãe. Foi ela quem cuidou dele com todo amor e atenção, e esse
menino não tem culpa de nada disso.
— Eu quero que esteja comigo, Darcelle. As suas palavras são sempre
sábias e apaziguadoras… Onde aprendeu tanto? — A voz aflita por pouco não
beirou ao desespero. — Me perdoe. Eu errei, mas foi impensado e nunca com o
desejo de te magoar.
Darcelle permaneceu calada, os olhos decidiram olhar para o líquido
escuro dentro da xícara. Engoliu em seco.
— Vamos para casa. — Ele pediu, não iria se perdoar se perdesse a
pessoa de quem gostava por um erro tão estúpido.
— Eu preciso pensar. — A resposta foi sincera. Por mais que
compreendesse, não saberia fingir que não estava triste. — Vou passar a noite
aqui.
— Então eu fico com você.
— Não. Por favor. — Johnson se levantou num salto, sem conseguir
olhar para o namorado e caminhou até a porta, abrindo-a. — Nos vemos amanhã.
Demorou algum tempo até o herdeiro Beauchamp se levantar da cadeira,
tinha a cara ruborizada e um ar completamente arrasado. Compreendeu que a
companheira precisava de tempo e por isso não insistiu mais, apenas beijou a
testa dela antes de sair porta a fora.
Logo que se encontrou sozinha a primeira coisa que fez foi voltar a ligar
a televisão e se sentar no sofá. O programa Pipoca Quente ainda passava, mas o
foco era outros famosos e brincadeiras para ganhar dinheiro. Teve que afirmar
para si que apesar de tudo, Lorenzo levava jeito para o entretenimento.
— Não tive como não ouvir e penso que você foi um pouco dura. — Ali
estava Jamie, pronta para sair para o hospital. Estava parada diante da prima com
um ar acusador.
— Eu sei que as pessoas são diferentes e que cada um tem a sua maneira
de agir mediante as coisas, mas não gosto de confiar em quem não confia em
mim. Se dizem gostar de mim e se estão sempre a par do que se passa comigo,
deviam se sentir confortáveis o suficiente para partilhar seus problemas. —
Devolveu o olhar acusador numa tonalidade ainda mais forte. — Você prometeu
não guardar segredos.
— Não estávamos falando de mim. — Jamie riu de nervoso.
— Você e o Damien são as pessoas que nunca deveriam fazer isso. E
uma gravidez é algo a ser compartilhado com sua melhor amiga. Para além de
primas sempre pensei que nossa amizade fosse a melhor do mundo.
— Não contei porque não importa. Eu vou abortar. Não faça esse olhar,
Darci. Foi por isso que não contei. Não quero ser crucificada!
— Poderia ter se protegido.
— Há coisas que simplesmente acontecem. — A estudante de medicina
mais uma vez foi fria. — Não quero trazer essa criança ao mundo para ter uma
família separada como a que eu tive. Você percebe melhor do que ninguém o
meu sofrimento, e de acordo com a medicina sequer é uma pessoa. Ainda é
apenas um conjunto de células.
— Se o que tanto quer é uma família, por que não a forma com o
Christian?
Jamie riu numa gargalhada divertida e viu a confusão no rosto da prima.
— Chris não é o príncipe Damien Jacques Beauchamp. Aquele psicólogo
de meia tigela é um solteiro bem condecorado e não quer perder o trono tão
cedo. Acha mesmo que ia querer brincar de casinhas comigo?
— Você está se subestimando, Jamie. Já perguntou para ele?
— O quê?
— Se ele quer ficar com você, digo, de verdade.
— Eu não vou perguntar nada, porque nem eu quero. Estou bem assim.
— Mentiu, e na sua cabeça soou a voz de Dash lhe dizendo na cara que mentia
muito mal. Soltou um suspiro exasperado. — Christian já deixou bem claro que
não quer nenhuma relação séria.
— Tenho a certeza que gosta muito de você. Damien comentou que
desde que está com você, nunca mais foi visto com nenhuma outra mulher.
— Nós temos concepções diferentes. O meu mundo não é recheado de
bondade como o seu, infelizmente.
— Ele quer?
— O quê?
— O bebé. Se ele quiser, dê para ele criar.
— Eu sei que muitos acreditam que é a coisa mais simples do mundo,
mas juro que se o Chris pudesse carregar a barriga, eu deixava.
— Ele ama você. Se não disse, vai dizer.
— Eu… estou atrasada. — Se apressou como sempre, com medo de
ouvir algo que pudesse criar uma esperança indesejada. — Te vejo mais tarde.
Escolha Difícil, A

“Todas as escolhas têm perdas. Há escolhas que são como portas que só
abrimos uma vez na vida.”

PARA quem gostava de estar sozinho dentro das paredes da sua


mansão, nunca antes lhe pareceu tão grande aquele lugar. Bebeu alguns uísques
para relaxar o corpo, e ao se deitar o sono veio em formato de pesadelos.
Primeiro o acidente, tão nítido e horrível como no próprio dia. Depois os risos
das pessoas e por fim via Darcelle ir embora para longe dos seus braços e para
sempre.
Despertou com o coração a bater, o suor molhava os lençóis e mais uma
vez desejou não estar só e não ter a cara naquele estado. Pegou o celular e viu
que tinha dormido até bastante, tentou ligar para a sua amada, mas não teve
sucesso. Optou por ir trabalhar, tomando um banho rápido e chamando por
Étienne para o levar até a Beauchamp.
Logo que chegou foi invadido por uma série de repórteres, fotografavam
e filmavam seu rosto, algo que há bem pouco tempo era quase impossível. Ouviu
a chuva de perguntas, mas ignorou, caminhando firme e rodeado por seguranças
até dentro da empresa. Estranhou a ausência de Rupert, pois esta costumava
trabalhar nos sábados até o meio-dia. E estava sempre lá como um acessório
obrigatório na porta de entrada, encontrou outra no seu lugar.
— Bom dia senhor Beauchamp. A senhora Rupert teve um imprevisto.
— A jovem falava devagar, com um gesto amável, diferente do mau humorado
da habitual recepcionista.
— Obrigado, Marina. Por favor marque um almoço com Joanne
Charlton, em meu nome — ordenou. Tinha tomado aquela decisão, ia tentar
resolver as coisas sem abusar do seu poder e da força do sobrenome que
carregava.
Aproveitou para ter uma reunião com o sindicato logo de início, uma
com os trabalhadores braçais, e teve mais duas conferências online com
compradores gigantes. As vezes se perguntava se não teria sido ingrato por
reclamar de uma deformidade apenas, em relação a tudo o que tinha. Nada na
vida acontecia por acaso e ter encontrado Darcelle era a prova disso.
A hora do almoço pediu o motorista para deixá-lo no restaurante e ir
buscar Joanne à casa. Era um sítio simples e agradável, Marina parecia ser uma
pessoa sem muitas complicações e tinha percebido exatamente o que precisava.
Era discreto o suficiente para não chamar a atenção dos demais, pois pela forma
como Lorenzo o atacava em todo lado, as pessoas pareciam ter-se recordado da
existência do Monstro Du Camp.
Pediu uma garrafa de vinho branco, ostras e Sushi, e se dignou a livrar-se
de toda a ansiedade dos últimos dias. Tudo o que queria era terminar aquele
almoço e correr para estar com Darcelle.
— Eu só vim aqui para dizer que se pensa em fazer ameaças, está muito
enganado! Eu não tenho medo, a mídia está do meu lado. O júri vai ser
pressionado pelo público e…
— Se acalme, senhorita Charlton. E uma boa tarde para você também —
murmurou de olhos estreitos. Não queria se arrepender de ter tomado aquela
decisão. — Sente-se.
O servente veio ajudar a puxar a cadeira para a mulher, abriu o
guardanapo de pano e serviu o vinho.
— O que você quer? Que eu retire o que disse na televisão? Pode
esquecer.
— Eu quero pedir desculpa, Joanne. — O rosto dela empalideceu em
descrença ao ouvir algo impossível da boca de Damien. — Eu errei com você,
minha mãe e essa enfermeira também. Mas você também errou! Mesmo assim,
não estou aqui para criticar ninguém, e sim para falar abertamente. Eu trouxe
duas opções e você pode escolher ouvir ou partir.
— Pode falar. — Charlton fingiu não ter importância, contudo, os olhos
castanhos demonstravam uma curiosidade acima de qualquer coisa.
— A primeira opção é que podemos os dois continuar a ter esse
comportamento infantil, vamos ao tribunal e nos darão dias em que cada pai
poderá estar com a criança. Você continuará zangada e a falar mal de mim para o
Giovani, e eu irei arranjar provas sobre isso e meter uma queixa. Percebe?
Estaremos numa guerra sem fim. — A postura de Beauchamp pouco se alterava,
os cabelos loiros estavam bem arranjados e o perfume exalava masculinidade.
Podia não ter a cara perfeita, mas possuía muito charme. — A segunda opção é
que podemos esquecer tudo. Passar uma borracha e recomeçar como adultos que
somos. Todos temos direito de uma segunda oportunidade, mas essa criança não
tem culpa de nada. Merece ter pais que se entendam e se respeitem e as duas
famílias unidas para o seu próprio bem. Acredito que ama o Giovani e quer o
melhor para ele, e isso, eu também quero.
— E se eu por ventura concordasse com a segunda opção? — Joanne
estava ferida e sua mão tremia ao segurar a taça de vinho, não queria demonstrar
fraqueza. Não depois de tudo.
— E vou dar uma casa para vocês, um carro, dinheiro mensal e pagarei
todas as despesas que tiverem. Não vou exigir entrar na vida dele assim da noite
para o dia, quero que tudo aconteça sem pressa. Até porque eu também estou
com certo medo. — Baixou a cabeça para esconder o sorriso espontâneo pela sua
confissão. — Mas quero acabar com essa guerra.
— E a… Darcelle? — A pergunta foi feita de forma ácida.
— Ela é minha namorada.
— Vai dar irmãos mulatos para meu filho? — Ela riu com desgosto.
— A minha vida pessoal não é de seu interesse. — Foi mais rude do que
gostaria. Ela estreitou os olhos.
— Eu posso aceitar tudo isso, mas tem uma condição.
— Qual?
— Não quero sua namorada perto do meu filho. Percebeu? Não quero.
Damien levantou a cabeça para encarar melhor aquela que seria a
possível mãe de seu filho. Podia perceber a razão de não ter-se encantado por ela
em nenhum momento da sua vida. Respirou fundo.
— Isso seria impossível, Joanne.
— Agora eu vou dar duas opções: Ou segue o caminho mais fácil para ter
o seu filho perto, num ambiente saudável e com os pais que se entendem para o
próprio bem dele. Ou vamos pelo difícil mesmo! O tribunal, as brigas constantes
e a certeza do Giovani saber que o pai escolheu a namorada ao invés dele. A
decisão é sua.
— Isso é um absurdo, senhorita Charlton!
Assistiu a irmã mais velha de Emma se levantar com um rosto cheio de
convicção.
— Tudo depende de você, senhor Beauchamp.
[…]
Os dois amigos estavam no apartamento de Christian, bebiam uma
garrafa de vodka enquanto conversavam sentados a apreciar a imensa vista lá em
baixo.
— Não leve a mal o que vou dizer, mas um filho sempre é filho.
Ninguém sabe o seu futuro amanhã com a Darcelle para poder hipotecar algo tão
sensível. Essa decisão não é fácil, com tudo lutar com Joanne pode ser pior para
o Giovani. Devo confessar que a vaca deu um golpe baixo. Está em saias justas,
meu amigo monstrinho. O melhor a fazer é falar com a sua namorada —
aconselhou, embora soubesse que o amigo não precisasse de ser dito aquilo.
Estava claro. — A criança não conhece nenhuma família para além da mãe, se de
alguma forma pensar que você quer o mal da pessoa que mais ama, pode criar
uma aversão a você.
— Eu não quero mal de Joanne, muito pelo contrário. Não sei a razão de
ela estar a dificultar tudo! — Bufou, a raiva estava patente na sua voz.
— Isso, eu sei. A verdade é que, essa mulher passou muito tempo
acreditando que o culpado da sua infelicidade era você, e não quer assistir sua
alegria enquanto ela mesmo continua na amargura.
— Estou de mãos atadas, não sei o que fazer. Por um lado o desejo de
conhecer o meu filho é maior que tudo. Toma conta de mim. E por outro não
posso fazer isso magoando a mulher que amo.
— Ama?
— Eu disse isso?
— Disse.
Damien bebeu o seu copo, sentindo o ardor lhe correr a garganta, ainda
assim nem o sabor forte da bebida parecia se igualar ao sufoco do coração.
Quando é que tudo tinha mudado? Passara de um infeliz isolado a um homem
com duas possibilidades gigantes de estar em paz e satisfeito.
— E como vai ficar a sua história com Jamie? — Trocou de assunto, não
só para se permitir estar alguns segundos longe do problema, como para dar
espaço para o administrador da sua empresa se abrir.
— Mulher complicada, até parece que todas decidiram se juntar para
encher o nosso saco. Repare, eu quero assumir essa criança, dar tudo e
acompanhar os dois para sempre. — Os cabelos bagunçados de Christian
voavam com o leve vento da janela aberta, pela primeira vez, os olhos verdes
não pareciam zombeteiros.
— Parece que estamos na mesma situação. Experimentando a
paternidade juntos.
— É, mas seu filho já nasceu.
— Por que não fica com ela? Não precisam se casar, mas assume uma
relação e cuida dos dois, talvez seja só isso que Jamie precise. Um porto seguro.
Você não gosta dela?
— Gosto sim. Gosto de Jamie, gosto de você, gosto de chocolate e gosto
de estar solteiro. Não quero ninguém a controlar as horas que chego a casa. —
Encheu mais o copo, revelando toda sua frustração.
— Então talvez não esteja preparado para ser pai. Se seu filho nascer vai
tomar mais conta da sua solteirice do que uma namorada.
— Mas não vai controlar com quem faço sexo ou não — rebateu com a
voz alterada, parecia ter chegado a algum ponto sensível que não queria ser
ultrapassado. Viu os olhos azuis fixarem seu rosto e logo de antemão soube o
que Beauchamp ia dizer. Mordeu a língua.
— Lola traiu você. Não implica que todas farão o mesmo. Algum dia vai
ter que acreditar em relações novamente.
— Isso fala o homem que já teve mais noivas do que a idade permite.
Quem te viu e quem te vê! — Estava ácido como nunca, irritado com ele
mesmo. — Onde foi o Damien mal-humorado? Parece que a Sininho te deitou
algum pó de fada nessa cabeça.
— Você sempre me deu conselhos, e confesso ter aprendido muito com
Darcelle, então permita-me dizer uma coisa. — Estava ainda mais sério que
quando chegara ao apartamento do celibatário. — Um dia um homem com mais
coragem vai chegar em Jamie e lhe dar todo o conforto, segurança e amor. O lar
e família que necessita para abandonar os traumas do próprio pai. Vai amá-la e
querer acordar com ela todas manhãs.
— Onde quer chegar com isso?
— Saber se você conseguirá suportar ver outro homem a dar tudo o que
poderia ter-lhe dado.
Dash se levantou num salto, o corpo atlético sem camisa revelava a
excelente forma física, o completo oposto daquela que carregava um filho seu.
— Acho que os dois temos problemas o suficiente para resolver. — Chris
se esquivou, algo que não estava habituado a fazer, mas pela primeira vez na
vida estava num sentimento dúbio e sem certezas do que esperar para o seu
futuro. — É melhor ir atrás da sua namorada.
— Eu vou! — Damien deixou o copo vazio em cima da mesa e se
levantou, olhando para o amigo com um olhar perdido para o horizonte. —
Fique bem, Chris.
O murmúrio em resposta foi o suficiente para ter a certeza das suas
palavras terem afetado o psicólogo. Deixou o apartamento decidido em seguir
para casa das Johnson e pelo caminho comprou um buquê de rosas vermelhas
bem grande e bonito.
Ao chegar no pequeno prédio velho, parou para pensar como a
companheira nunca tinha pedido nada e que tinha vontade de lhe dar tudo.
Queria tirá-la daquele bairro e fazer dela a mulher que merecia ser. Tocou a
campainha ainda a ouvir risos e ficou encabulado ao ver Amabel abrir a porta
nos seus trajes simples.
— Boa noite — cumprimentou, sentindo-se ser avaliado mais uma vez, e
então a senhora sorriu para ele.
— Entre. Vou já buscar um vaso — disse num tom neutro, mas não de
amargura como da última vez.
Na sala Tony assistia a um jogo de futebol, enquanto Darcelle fazia
biscoitos de leite, todos bem enrolados e estendidos numa travessa coberta de
farinha.
— São para você. — Ele estendeu as flores.
— Obrigada. — O recebeu com um beijo inesperado e tal ato só
contribuiu para a dor no peito multiplicar por tê-la magoado.
— Aqui está o jarro! — A senhora Johnson entrou outra vez, toda bem
arranjada e a arrastar uns chinelos tão pequenos que pareciam pertencer a uma
criança. — Sabia que minha filha nunca soube cozinhar? Sempre tentou, mas
nunca deu certo.
— Só pode sair ao pai. — Tony decidiu comentar em puro deleite. — Só
sei preparar chá.
— Pai! — A filha reclamou envergonhada e olhou para o tabuleiro em
busca de aprovação. Beauchamp ia dizer que teriam três cozinheiros, mas o
sorriso empolgado da namorada lhe fez permanecer calado. — Decidi aprender a
cozinhar. Quero entrar para uma escola de culinária.
— Por sua vez, Jamie pega num ovo e faz parecer que é lasanha. Mãos
de fada tem aquela menina — comentou a mãe, concentrada em colocar as
maravilhosas rosas dentro da água.
— Será que eu poderia roubar a vossa filha? — Pediu quase sem jeito,
ansioso por estar a sós com a amada.
— Já roubou faz tempo não é, não sei se nossa autorização conta muito!
— Mais uma vez Tony decidiu brincar, arrancando risos de todos.
Darcelle o encaminhou até ao quarto, era todo branco com uma cama de
solteiro e um pequeno guarda-roupa. Bem ao lado, um saco cama estava
dobrado, e alguns sapatos estavam organizados no chão.
— Meus pais têm ficado no quarto de Jamie, tem uma cama maior. Nós
ficamos aqui e aquela safada ainda ronca. Pobre Chris! — Por uns segundos se
sentiu mal pelo olhar surpreso que Beauchamp pareceu dar ao lugar. — Quer ver
minhas fotografias? Fui chefe de torcida, enquanto Jamie ganhava o primeiro
lugar do concurso de ciência!
— Sua prima parece ter uma grande necessidade de sempre estar
provando algo — declarou e se sentou na cama que rangeu com o peso. Assistiu
Darcelle tirar uma caixa grande e algumas fotografias dos tempos de aula.
— Não quer ser um fracasso como julga que os pais foram. Sempre foi a
melhor em tudo — justificou e passou a mostrar as imagens da sua adolescência
sempre do lado da prima. Riram de algumas coisas e debateram sobre outras.
Quando terminaram estavam os dois deitados na cama pequena, tão perto
um do outro que pareciam poder se juntar em um só.
— Por quê? — A profunda masculina voz se fez ouvir.
— O quê?
— Eu sou rico, posso dar o que você quiser. Não precisa estar neste
quarto.
— Você é rico, Damien. Eu não sou. Essa é a minha realidade, e tenho
muito orgulho de pagar para que seja meu.
— Não é isso.
— O que é então? — A respiração acelerada da jovem mostrou certa
indignação.
Não respondeu, deixou o barulho da rua lá em baixo falar por si. Dos
gritos dos vizinhos, dos carros com volume alto, das crianças a brincarem no
meio da rua.
— Falei com Joanne. Ela concorda em não dificultar o processo, desde
que você nunca chegue perto de Giovani.
Desta vez foi Darcelle quem ficou calada, a ouvir a agitação do mundo lá
fora, enquanto o seu coração se desfazia em pedaços.
— Eu escolhi seguir o caminho mais difícil. O menino agora é uma
criança, mas algum dia vai ser homem o suficiente para compreender tudo o que
a mãe fez.
— Não.
Os dois se levantaram ao mesmo tempo, a escuridão começava a tomar
conta do lugar e se olharam como estranhos.
— Não quero ser a razão de um dia o seu filho te acusar de o ter
preterido.
— Isso são possibilidades. Não temos como saber se…
— Damien! — Johnson pareceu chateada. — Se pode ir pelo caminho
mais fácil, não faz sentido seguir o caminho contrário. É seu filho, sangue do seu
sangue.
— Mas eu não quero perder você, Darci.
— Não fale em perder, quando vai ganhar. O amor incondicional de uma
criança que lhe chamará de pai e que deve ser a sua prioridade. Giovani não tem
culpa da mãe que tem, não seja outro parente que não valha a pena.
— Então o que faremos? Você aceitará esperar enquanto eu conquisto o
menino? Eu nunca a deixarei sentir que está sendo posta de lado, eu juro.
Podemos estar juntos enquanto arranjo uma solução para o bem de todos.
— Damien… — Segurou o rosto num gesto suave, acariciando as
cicatrizes e os lábios, e por um momento sentiu uma dor tão forte que pensou ter
morrido. — Não posso aceitar estar com um homem cujo filho não poderei
chegar perto. Eu quero fazer parte dessa nova etapa da sua vida, aprender a amá-
lo, conhecer essa criança tal como aprendi a conhecer você.
— Não percebo…
— Mas também — continuou. — Não posso continuar com você
sabendo que posso estar a hipotecar a possibilidade de escolher o caminho que é
melhor para o Giovani. Os pais sem entrarem em confusões, exporem o menino
a situações desgastantes. Eu não posso.
— Não percebe que é isso que Joanne exatamente quer? Separar-nos para
que eu sinta a dor de estar longe da pessoa que eu amo, tal como aconteceu com
ela? Vamos deixar ela vencer?
Damien a agarrou em seus braços com tanta força como se a pudesse
partir ao meio, não queria deixá-la escapar, não conseguiria.
— Eu amo você, Darcelle. Vou lutar sempre por nós dois.
As lágrimas corriam límpidas pelo rosto negro. Era um problema maior
do que os dois poderiam comportar.
— O que faremos? — A voz chorosa perguntou.
Le Cuisinier (Extra)

“Porque você só consegue, se tentar.”

— DAREMOS um tempo.
Damien não acreditou que ouvia aquilo vindo dos lábios que tanto
adorava e se retesou, pestanejando várias vezes e engolindo a falta de orgulho
que queria protestar e dizer que não. Era a primeira vez que sentia muita dor ao
ser praticamente deixado por uma mulher.
— Sabe que tempo não existe. — Ele falou, calmo e cheio de dúvidas
que vieram acampar em sua mente. — Isso será o nosso fim.
— Não. Não será. — Darcelle relaxou os ombros e decidiu encarar o
olhar azul que pesava como se estivesse sentado em cima de seu corpo magro.
— Vamos apenas percorrer a vida como se estivéssemos em realidades
alternativas, lado a lado. É tempo de eu me descobrir como pessoa e não posso
estar apoiada em você.
— Não está.
— É tempo de você conhecer seu filho, saber os hábitos e gastar seu
tempo livre ao lado dele, se entender com sua mãe e tentar conviver com Joanne.
São novas prioridades.
— Ter um filho não significa que estou morto.
— Eu vou aproveitar para me conhecer, lembra que me perguntou se
tinha algum dom? Acho que é hora de descobrir isso. Lidar com o mundo real e
compreender que a vida é muito mais do que ficar sempre dependente de você e
de Jamie.
Ele se levantou com a mão na boca, seu semblante apoplético revelava o
quanto a indignação tinha tomado conta de seu corpo. Estava lívido, quase
doente ao ouvir aquelas palavras. Temia que Darcelle voasse demais e
percebesse que existiam homens muito mais interessantes.
— Tudo bem. — Acabou por concordar, seu orgulho estava ferido.
Queria dizer que esperava que ela lutasse ao seu lado e não que desejava partir.
— Eu esperarei o tempo que for.
— É só um tempo.
— E se eu disser que não?
— Você precisa ir. — Ela não segurou as lágrimas e deixou escapar um
soluço. — É pelo bem de seu filho, por favor. Vá.
O Monstro Beauchamp balançou a cabeça com rapidez, se sentindo um
fraco por não conseguir olhar dentro daqueles olhos escuros. Despediu quase em
surdina antes de se retirar do quarto pequeno, acenando para os pais de Darcelle
que logo compreenderam que algo estava errado, e saiu dali sem querer olhar
para trás.
Ela saiu um pouco cabisbaixa, deu de ombros para o rosto dos pais que
pareciam um quanto chocados e voltou para a pequena bancada da cozinha onde
estava o seu tabuleiro com biscoitos e colocou a primeira fornada para assar.
Amabel a encarava escandalizada, esperava que dissesse ou contasse algo, mas a
filha permaneceu concentrada no que fazia.
— Você deveria tentar entrar nessa escola. Olha só. — Tony como
sempre gostava de aliviar as tensões e apontou para uma publicidade que
passava na televisão.
— O Le Cuisinier… — Os olhos de Darci brilharam ao ver o famoso
Chef Abayomi que falava sobre a melhor escola de culinária do país e sobre as
poucas vagas restantes para um curso exclusivo.
— Isso. Por que não tenta? — A mãe sugeriu e ficou empolgada.
Principalmente por ver o homem alto e negro com ar sério que falava
diretamente para a câmara. Sacudiu a mão contra o peito para afastar um calor
que era interno.
— Eu vi isso, Amabel. — Tony disse, e os dois gargalharam numa
cumplicidade que não passava nem com os anos.
— Por que não? — Darcelle murmurou mais para si, cogitando tal ideia e
pela primeira vez na vida, sentiu um aperto em seu peito. Por que não?
A resposta veio em formato da primeira fornalha de biscoitos que tinham
queimado rápido demais e cozido de pouco. Riu de si mesma, como ousar
acreditar no sonho de frequentar o Le Cuisinier se não sabia acertar nem a
temperatura do forno?
[…]
Ela deu um passo em frente, nervosa. Esfregou as mãos – uma na outra –
mesmo que a temperatura fosse quente naquele dia. Seus olhos estavam
esbugalhados, brilhavam de uma alegria desconhecida. Andou de um lado para o
outro no passeio, mas respirou fundo e empurrou com as duas mãos as portas
que a conduziriam ao Le Cuisinier.
Lá dentro era enorme, cheio de portas e escadarias, tal como uma
verdadeira sala. Também tinham laboratórios, uma grande horta no quintal que ia
de uma ponta à outra, e várias despensas maiores que supermercados. Tudo isso,
Darcelle vira na internet, mas estar ali dentro a fazia sentir borboletas no
estômago.
— Bom dia.
O recepcionista a olhou.
— Bom dia. — Era um jovem alto e esguio, de pele escura e uns olhos
pintados com lápis preto. O lenço estava enrolado no pescoço longo e a encarou
de cima abaixo com atenção. — Em que lhe posso ajudar?
— Er… Eu queria me inscrever para o curso.
— Só temos uma vaga. Está frequentando faculdade de gastronomia,
trabalha em restauração ou… — Ele se calou ao ver o sorriso amarelo. —
Hmmm… Sabe que a classe é avançada, não sabe?
— Estou aqui porque quero — respondeu, num tom altivo sem ser rude.
Tinha aprendido a falar daquele jeito com a pessoa que estava em falta no seu
coração.
— Sabe que o curso é de quase treze meses e custam vinte e cinco mil
dólares, irá fazer exames muito rigorosos para receber o certificado final, o
melhor aluno fará um estágio obrigatório de dezoito semanas no restaurante
África. — Ele falava com calma, sua voz era fina e esbanjava sensualidade. — O
Le Cuisinier não equivale a uma universidade, porém o curso inclui um
programa onde o aluno acumula créditos e consegue se formar na maior
universidade de gastronomia do país.
— Vinte e cinco mil dólares anuais?
— Não. A cada semestre e mais a taxa do exame.
Darcelle engoliu em seco, não tinha tanto dinheiro.
— Eu quero me inscrever.
— Se não passar o primeiro semestre não poderá continuar depois. Aqui
só permanecem os melhores.
— Se não conseguir passar, então tentarei de novo.
O jovem lhe sorriu de lado, gostando de ouvir aquilo e lhe piscou o olho.
Lhe estendeu um Tablet para que pudesse preencher seus dados pessoais, pediu
os documentos de identificação para fazer Scan e no final o cartão de crédito.
— Segunda-feira às dezoito, então. Passe para levar seu cartão de
estudante e seja muito bem-vinda ao Le Cuisinier.
— Muito obrigada.
Antes de arrumar seus pertences na bolsa, parou para observar aquele
espaço imponente e girou nos calcanhares, sentindo uma alegria imensa por ter
dado um passo tão importante na sua vida. Pela primeira vez sentia que queria
algo por sua vontade intrínseca e estava disposta a ir até ao fim.
Quando saiu, dava pulos no lugar. Uma parte do coração dolorido parecia
ter sido preenchido, e por enquanto, aquilo lhe bastava. Correu apenas um pouco
antes de se esbarrar com Étienne que trazia as mãos dentro do bolso das calças e
um ar indignado.
— Não recebo mais ordens superiores.
— Você me abandonou, amiguinha, e no meio de duas megerras. A
Charlton feiosa se mudou parra lá até a casa nova ficar prronta. A brruxa da
senhorra Beauchamp também. Estão me matando, por que me deixou?
— A Joanne se mudou para a mansão?
— Está com o menino. Só esse parra alegrrar meus dias.
Darcelle inventou um sorriso. Fazia dias que não falava com Damien, e
sequer o via na empresa, pois tinha decidido voltar a trabalhar a partir do
escritório da mansão. Não podia negar que sentia saudades, mas precisava seguir
como tinha dito.
— Eles estão se dando bem?
— O senhor Beauchamp e o Gio? Marravilhosamente, feitos um parra o
outrro — Afirmou e pela primeira vez lhe abriu os braços. — Só falta você.
Ela o abraçou com afinco, podia sentir-se em casa quando estava perto de
Étienne. Fechou os olhos por um tempo.
— Fico muito feliz que tudo esteja dando certo. Foi sempre o que mais
quis, uma harmonia ente pai e filho. E que Joanne trouxesse sossego por algum
tempo. Só isso. — Se afastou para o encarar e lhe sorriu. — Não vai me chamar
de ingénua?
— E que mal há nisso? As pessoas estão tão acostumadas a lidar com
seres humanos ruins que começam a desdenhar de uma pessoa que tenha bom
coração. Chamam de boba e sem grraça.
— Foi preciso conviver com Giovana e Joanne para chegar a essa
conclusão?
Ele riu alto.
— Não. — Negou com a cabeça. — Foi prreciso conviver com você,
agora venha que lhe darei uma carona. Não comprreendo por que devolveu o
Jeep.
— Musiquinha da felicidade? Hoje me sinto feliz.
— Às suas ordens. Sempre!
Johnson entrou no Bentley Mulsanne luxuoso cujo cheiro e conforto lhe
remetiam à Damien. Os lábios se curvaram para cima, mas se deixou ficar quieta
enquanto o motorista começava a dirigir.
— Como me achou aqui?
— Porrque sou seu anjo da guarrda, Darcelle. Nunca reparrou que só
você me vê? — Bradou e assobiou ao ritmo da música animada que tocava
dentro do carro. Depois riu. — Sua mãe me contou.
— Ahh… — Mordeu o lábio inferior, mas se deixou ficar. Lembrando
que tinha muita coisa para fazer logo que chegasse à empresa e que precisava
estudar mais sobre culinária e encomendar alguns livros. Se sentia empolgada,
ouvia Étienne tagarelar sem parar reclamando das novas moradas da mansão e
riu muito todo trajeto, até perceber que pararam diante de um jardim.
— Olhe…
Darcelle espalmou as duas mãos na janela, seus olhos se aqueceram ao
avistar Damien que corria pela relva com Giovani que gargalhava com os
cabelos a voarem. Ficavam tão bonitos os dois e possuíam uma química única. O
coração dela aqueceu.
— Na mansão tem tanto espaço. Por que vieram aqui?
— Parra ser algo naturral parra o menino. Não quer que crresça cercado
de muralhas. Gio semprre fez isso antes, não há por que mudar.
— É lindo.
Ela imaginou uma pintura que estava ali com eles e sentiu isso com todo
seu coração, quase que projectando um futuro. Seus olhos se encheram de
lágrimas, mas seus lábios estavam abertos de felicidade.
— Convenhamos que o rapaz prrecisa fazer uma dieta.
— Deixe de maldade!
Naquele momento, Damien parou de correr e passou a bola para Giovani
que foi atrás de braços abertos. Seu rosto virou como um íman e, mesmo que os
vidros do carro fossem escuros, ela sentiu que os olhos a viam. Se assustou no
lugar.
— Vamos embora — pediu.
— Tudo bem. Tudo bem…
[…]
— Darcelle? Darcelle?
Não era a primeira vez que Jamie se prostrava na sua frente, chamando-a
para que a escutasse, sem sucesso. A prima estava embrulhada com pilhas de
livros e tirava rápidas anotações para um caderno.
— Darci!
— Estou estudando, Jamie. Não vê?
— Ah! — A prima bateu com a mão por cima da mesa. — Quando eu
estava me preparando para o exame de medicina, você vivia me enchendo o
saco.
— Então já que sabe como é, deveria respeitar!
— Não… Ainda falta muito tempo para seu exame. Só está nesse curso
há uns dias.
— Jamie. O Le Cuisinier é coisa muito séria e não como na televisão. O
Chef Abayomi é implacável e estou apavorada. Todos ali estão habituados a lidar
com cozinha e alimentos, como sempre, menos eu. Estou estudando — Afirmou,
mas não havia tristeza nas palavras e nos olhos, e sim um brilho desafiador de
quem estava empolgada com tudo aquilo.
A prima se inclinou até perto dela e lhe disse algo no ouvido.
— O quê? Jura? — Darcelle esqueceu o que fazia e pulou no lugar. Feliz
demais pelo que tinha acabado de escutar. — Não posso crer! O Chris já sabe?
— Não. Também fiquei espantada. Não sei ao certo, fiquei tão confusa.
— Ainda vai…? Pense direito, Jamie.
As duas se olharam e se abraçaram com força, se apertando num amor
infinito que as cobria desde pequenas. Certas coisas não necessitavam de
respostas.
— Darci, eu quero que tudo dê certo para você. Sua felicidade é a minha
felicidade.
— Sua felicidade é a minha felicidade.
— Estamos juntas. Agora…
— … E sempre.
Tempo de Libertar, O

“ […] O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem?” –
Trava-línguas.

O que era o tempo?


É o que determina os momentos, os períodos, as épocas, as horas, os dias,
as semanas, os séculos etc. Mas e no amor? Poderia ser medido de igual
maneira? Como é suportar estar longe de quem amamos quando o nosso coração
parece gritar por essa pessoa? Como continuar os dias e sufocar todo o
sentimento que insiste em brotar de dentro da própria alma? Como?
Eles tinham dado um tempo. Um tempo em algo que mal tinha
começado. Um tempo para organizarem as suas vidas, definirem o certo e o
errado.
Darcelle continuou a trabalhar na Beauchamp, realizando suas tarefas
mais perto de Christian Dash, e por sua vez, Damien voltou a trabalhar a partir
de casa, enviando informações e tudo o que competia a empresa através de
terceiros.
Cumpriam o combinado.
— É preciso uma carta assinada da empresa para poder remeter os papéis
no banco e ter o empréstimo aprovado. Com o contrato sem prazo e o salário que
ganho, posso pagar a hipoteca da casa, meu curso, e ser descontada pelo banco
todos os meses. — A assessora apresentava o envelope com os documentos ao
administrador. Estavam na grande sala de Dash, a mesma onde Jamie certa vez
tinha ido devolver as chaves do carro, sem sucesso.
— Se vocês permitissem, eu poderia comprar essa casa com facilidade —
afirmou, mesmo imaginando que a reação daquela Johnson seria igual à da outra,
e não demorou a ver o rosto indignado. — Pois bem.
Usou a mão esquerda para assinar os papéis com rapidez e logo em
seguida carimbar com o grande B que representava a empresa. Passou os dedos
no cabelo bagunçado.
— Obrigada.
— Não tem nada que agradecer, Darci. Não estou fazendo nada de mais.
Por alguma razão também sou responsável pela área de Recursos Humanos, e se
minha assinatura é válida para o processo, não faço mais que minha obrigação
— respondeu sem esconder a leve irritação. Tinha os olhos cansados e tristes.
— Você vai lá hoje? — Não resistiu a perguntar, não tinha como não o
fazer. E pelo olhar verde e triste, sabia ao que ela se referia.
— Assistir a um assassinato? Não. Eu nunca mais quero olhar na cara da
sua prima. — Estava zangado, o rosto bonito com a barba por fazer, nunca
pareceu tão abatido.
— Eu compreendo ambos lados. Não sou contra e nem a favor ao aborto.
Não concordo que uma mulher seja obrigada a ter um filho quando não quer,
mas também sei que o bebé não tem culpa de nada. — Decidiu dizer o que
pensava de tudo aquilo sem rodeios. — Acho que Jamie iria precisar de força
nesse momento.
— Eu dei toda força do mundo, Darci. Ela não quis, mas isso, eu não
consigo. Peço desculpa. — Virou a cara para outro lado, mostrando que a
conversa chegara ao fim. Parecia estar num sofrimento intenso.
— Você já disse que a ama?
Christian riu.
— Eu a amo?
— Não sabe que a ama? — Darcelle subiu um sorriso. — Se ajudar, ela
ama você.
— Mas está tirando um filho meu.
— Sinto muito. Mesmo assim, não contrariou as minhas palavras, o que
significa uma única coisa. Deixaria de amá-la se ela não tiver um filho seu? —
Foi tudo o que Darcelle disse antes de sair.
Não queria chegar atrasada ao curso de culinária que decidira se
inscrever, e que até agora, estava a sair-se muito bem. Estava mais inclinada para
os doces, era verdade, os seus bolos e cremes sempre ganhavam mais destaque.
Desceu o elevador, nos últimos tempos tinha feito amizade com os colegas, por
duas vezes saíra para um bar mesmo perto da Beauchamp, onde se reuniam para
conversar e relaxar dos dias cansativos de trabalho.
— Você vem hoje, Darci? Vai ter karaoke — Uma das colegas do
terceiro andar perguntou, estava no departamento jurídico da empresa e fazia o
mestrado em direito. Era alta com os cabelos cheios de caracóis e com uma pele
que parecia sempre bronzeada.
— Hoje tenho prova no curso de culinária, Clara. Se eu sair a tempo, eu
passo — respondeu.
Amabel tinha aconselhado a filha a se divertir mais, com vinte e seis
anos, deveria estar a aproveitar a vida, conhecer pessoas e não ficar em casa a
sofrer. E por muito estranho que era, desde que começara a explorar a vida
social, o sofrimento diário pela falta de Damien parecia acalmar.
— Qualquer dia vai ter que nos convidar e cozinhar para a gente! —
Jeoff riu de orelha à orelha. Era albino, os olhos claros nunca estavam quietos no
lugar. E o cheiro do perfume incrível que usava, parecia se colar a tudo por onde
passava.
Despediram-se no hall de entrada, e Johnson seguiu para os lavabos
femininos, a fim de prender melhor o cabelo e se livrar dos acessórios antes de ir
à aula. A cozinha tinha sido uma descoberta fascinante, ajudava-a a conhecer
melhor os sentimentos e transportava os mesmos para a comida. Uma paixão
recente e indescritível.
Ouviu um lamento vindo de uma das cabines e em seguida Rupert saiu
com os olhos cheios de lágrimas. Uma mancha de sangue cobria a blusa.
— O que aconteceu? — Largou os pertences em cima dos lavabos e
correu para ampará-la.
— Os pontos da minha ferida soltaram. — Parecia destroçada. As marcas
escuras debaixo dos olhos amargos eram visíveis.
— Você precisa ir para o hospital.
— Não. Não posso — negou veemente, o desespero estava patente na
voz. — Querem denunciar o meu marido, mesmo que eu afirme que não fez
nada.
— Todos sabem que ele faz, Rupert. Não sei como…
— Vocês deveriam se meter nas vossas vidas! — Rosnou num clamor de
dor e se apoiou nas bancadas. Sequer parecia a mesma mulher irritante de
sempre. — Eu tenho três filhos, não quero que cresçam com a imagem da mãe
que mandou o pai para a cadeia.
— Se tiverem mãe até lá. — A resposta de Johnson fez a expressão da
recepcionista se transformar e encará-la como uma inimiga. — Se você tem tanta
preocupação com os seus filhos, imagina eles crescerem nas mãos de um
agressor, quando já estiver morta.
As duas se olharam, enquanto Darcelle despia o casaco e cobria Rupert
para esconder o sangue.
— Eu vou levar você ao hospital onde minha prima trabalha, ela é
médica, poderá ajudar. Antes falarei com Marina para ficar em seu lugar —
começou por dizer. — Irei também informar aos recursos humanos para que lhe
dêem uma licença para poder se recuperar. E uma denúncia anónima, quer queira
quer não.
— Por que razão faria isso? Não tem o direito.
— Olha, nós não somos amigas. Você pode até me odiar por isso, mas eu
me odiaria muito mais se assistisse tudo isso acontecer de camarote. É minha
obrigação como mulher, ainda mais como ser humano, em ajudá-la. A omissão
também é uma forma de crime.
Rupert não consentiu, mas também aceitou ser conduzida para fora do
grande edifício até ao Jeep e aguardou quieta, até a colega voltar alguns minutos
depois. Johnson ligou o carro e começou a conduzir em direção ao hospital
central.
— É verdade que vocês estão separados?
Os cochichos nos corredores eram demasiados, o Jornal Tempo e O
Pipoca Quente não mediam as especulações da rápida relação e da recém
separação. Havia um completo desconforto na vida de Darcelle, tanto pela
perseguição inicial dos paparazzi como as questões sobre Giovani Beauchamp.
O DNA tinha dado positivo há algum tempo, mas só de ver as fotografias da
criança estava tudo claro como a água. Era preciso dar mais tempo para pai e
filho se conhecerem, para as famílias se juntarem. E infelizmente ela não podia
fazer parte disso.
— É. — Não quis mentir, nem esconder. Podia muito bem ter-se
esquivado, inventado que era só um período, qualquer coisa. Ainda assim sentiu
necessidade de dizer a verdade em voz alta. — Estamos separados.
— Pode não acreditar, mas eu estava torcendo por vocês. Clara estudou
direito com Emma Charlton e diz que a megera sempre teve um namorado. —
Rupert se contorceu no banco do carro.
— Isso não importa mais. Chegamos!
Importava sim. Sentia saudades de Damien como nunca pensara vir a
sentir por alguém. Às vezes se perguntava como era possível o peito doer tanto
por causa de um sentimento.
Não encontrou Jamie, tinha ido a sala de pequenas cirurgias há alguns
minutos. E saber aquilo deixou o coração dela, partido. Procurou por uma das
residentes e encontrou Rosa que era amiga da prima, deixando a recepcionista ao
cuidado da mesma, não sem antes explicar tudo direito. Não queria se meter na
vida alheia, mas não hesitou quando soube que podia fazer a denúncia a partir do
gabinete contra o abuso sexual e violência da mulher que tinha no hospital.
Rupert lhe pediu um dia para resolver tudo pessoalmente, e foi tudo o que
Johnson cedeu.
Quando chegou ao Le Cuisinier, a prova já ia a meio, os colegas estavam
avançados na confecção dos pratos exigidos e já tinham preenchido as perguntas
teóricas. O professor era Antoine Abayomi, um negro nigeriano que crescera na
Itália e já tinha conquistado duas Estrelas Michelin. Era alto e forte, com o
cabelo sempre bem cortados e um olhar de poucos amigos.
— Desculpa o atraso, eu tive um imprevisto e… — No mesmo momento
em que se justificava lavava as mãos e usava o avental e a toca.
Lutava todos os dias para permanecer naquela escola de culinária e as
mensalidades eram caríssimas. Não podia desperdiçar a sorte que era estar ali,
mas não podia ficar de braços cruzados a assistir Rupert sofrer, sem poder
ajudar.
— Estamos a meio da prova, senhorita Johnson. Acho melhor aproveitar
o tempo que lhe resta ao invés de perder mais na justificação! — Sempre de
postura reta, o Chef de cozinha passava pelas grandes bancas de alumínio
inoxidável e verificava a atenção dada às execuções do prato.
Darcelle tentou tudo, mas nem as duas horas das três restantes foram
suficientes para conseguir terminar a prova. Estava cansada e pela primeira vez
se sentia derrotada. Viu todos saírem da cozinha gigante, alguns satisfeitos
outros nem por isso, e sentou no banco para verificar o seu prato não terminado.
— Menina! O tempo acabou — Antoine surgiu a sua frente, os olhos
claros contrastavam magicamente com a sua tez escura. Estava sempre com as
mãos atrás das costas.
— Será que posso repetir a prova? — Falou mais para si própria do que
para ele.
— Você não deveria estar no Le Cuisinier. Esta turma é de pessoas que já
trabalham com culinária há muito tempo, pessoas com dons e habilidades para se
tornarem grandes chefes de cozinha. É uma mera aprendiza e vais ser comida
viva nesta escola. — Abayomi foi direto e não pareceu se abalar ao ver a
decepção nos olhos da aluna. — Contudo, eu vejo que se agarrou a essa ideia
como nunca. E vou oferecer um estágio no meu restaurante, três meses, a tempo
inteiro. Se você se sair bem eu a contrato e ensino tudo o que puder, e só então
voltará a fazer o curso nesta escola.
— Como? — A ideia acendeu uma paixão no peito de Darcelle, criando
uma ansiedade indistinta e confirmando a sua verdadeira vontade de aprender
mais sobre culinária. O sorriso morreu nos lábios. — Mas eu trabalho…
— Essa é a sua paixão ou não? — O Chef se afastou para ir tirar o
avental e o chapéu, revelando as roupas impecáveis por baixo. Sempre se vestia
de preto, era magro e com umas pernas bem torneadas. — Não costumo dar
muito tempo para pensar, sabe quantos aqui dariam a cabeça para trabalhar
comigo e no meu restaurante? É uma oportunidade única, e terá de saber se essa
é a sua paixão ou não, senhorita Johnson.
— Posso dizer algo amanhã? — Pediu, estava confusa com a
possibilidade de entrar num novo mundo completamente desconhecido e muito
desejado. Estremeceu.
— Se me oferecer uma bebida, posso ponderar essa hipótese. — Pela
primeira vez viu Antoine, sorrir.
— Gosta de karaoke? — Sugeriu quase num ato impensável. A ideia de
estar próxima de um ídolo da cozinha lhe pareceu surreal.
— Pode ser.
— Ótimo. Eu só preciso telefonar à minha prima. Quero saber se está
tudo bem. — Darcelle foi-se lavar e trocar a roupa, para depois tentar falar com
Jamie.
[…]
A decisão de dar um tempo não foi sua, nunca seria. Damien sabia ser
preciso, mas não conseguia concordar.
Após o resultado do DNA confirmar a paternidade e o processo para o
reconhecimento paterno a fim de dar o sobrenome Beauchamp à Giovani, pode
perceber como sua vida foi engolida numa nova rotina. Os trâmites legais
decorreram com uma pressa nunca vista, mas não foi isso que o absorveu, e sim
a aproximação perante a criança.
Conhecer o filho foi uma experiência única, não saberia descrever
quando a desconfiança da criança passou para uma familiaridade inabalável.
Quando não estava a trabalhar na mansão, saía para buscar Giovani na escola,
passeavam, conversavam e brincavam juntos. Coisa que nunca teria sido capaz
de fazer se não tivesse conhecido Darcelle. Não era mais uma pessoa magoada
com Deus e com o destino. Sentia ter aceitado sua condição e aprendera a viver
daquele jeito.
Nas aulas de hipismo, Joanne parecia se mostrar receosa ao ver Gio em
cima dos cavalos, mas a alegria do mesmo demonstrava que tinha nascido um
verdadeiro Beauchamp. A avó Giovana também participava da nova etapa de
Damien, acompanhando sempre o neto para todos os lados e fingia não ver a
tristeza nos olhos azuis quando o pequeno não estava por perto. Aquele olhar de
saudade.
Charlton facilitara tudo desde que tivera certeza do afastamento de
Darcelle, parecia ter um ar mais leve, embora os olhos castanhos não perdessem
o brilho atento em tudo.
— É esquisito a sua irmã se casar em tão pouco tempo, logo depois de
meu filho ter terminado o noivado — comentou Giovana. Estavam sentados no
salão de chá e assistiam o menino aprender a tocar piano com a nova educadora.
Uma senhora de idade, a mesma que tentou ensinar Damien.
— O seu filho também teve uma namorada logo a seguir. Creio que as
pessoas se apaixonam — ripostou Joanne, comia trufas de chocolate com um
deleite óbvio.
— E estaria com ela até agora caso não o tivesse chantageado. —
Giovana parecia uma verdadeira leoa, sempre ciente de atacar a presa. Não
sorria, mas os lábios comprimidos numa linha reta não demonstravam nunca a
sua posição.
— Acho que Giovani deve ter a atenção completa do pai. Foram cinco
anos sem o conhecer, e distrações não seriam boas. Pelo menos nos próximos
anos. — Limpou os lábios com os guardanapos de linho, virando o pescoço para
sorrir para o filho que estava concentrado junto da professora.
— E eu acho que deveria ter um desassossego da mãe. Passou muito
tempo colada ao menino, já pensou em seguir com sua vida? Viajar? Arranjar
um namorado? — A matriarca usava sempre o tom de sugestão, nunca era clara
em seus diálogos. E fazia de propósito.
— Quem sabe? — Joanne por sua vez era igualmente perspicaz. — De
momento minha prioridade é meu filho.
Tinha mudado para a mansão Beauchamp por algum tempo até a nova
casa estar pronta, de igual modo a Damien poder ter mais acesso ao filho em
tempo integral.
— Tem a noção de meu filho nunca vir a amá-la, não tem? — Giovana
foi de uma sinceridade crua e viu uma sombra cobrir o olhar da mulher à sua
frente. Desta vez sorriu de leve.
— Eu não quero o amor dele. — Joanne se levantou de peito erguido. —
Com licença.
Damien tinha sido esperto em convocar a mãe para estar na mansão
durante a estadia de Charlton. As duas lobas pareciam saber se enfrentar.
A irmã de Emma saiu às pressas, procurando nos bolsos o maço de
cigarros e correu pela porta da cozinha para fumar. Andava nervosa sem saber a
razão, uma vez que tinha conseguido exatamente o que queria. Tentou acender
por três vezes, mas o isqueiro não parecia ter vida.
— Posso ajudar? — A voz grossa de Étienne fez com que ela desse um
susto e virasse o rosto para ver o homem providenciar lume e acender um cigarro
nos lábios carnudos.
— Espero que não comente nada! — Ela disse no seu jeito autoritário e
aceitou o lume para acender o seu. Puxou um trago e logo sentiu a nicotina
correr de forma elétrica pelas veias. Suspirou fundo.
— Jamais, senhorrita Charlton. Fique a vontade.
— Não é você que me diz se fico ou não a vontade. Não passa de um
motorista e deve se colocar em seu lugar! — Quase berrou de olhos bem abertos
e sentiu a mão tremer pela abstinência dos últimos dias. Nunca conseguia largar
o vício.
— Desculpe. Desculpe. — Étienne riu e tal feito causou uma irritação na
mãe de Giovani. — A senhorrita está semprre tão sozinha, se precisar
converrsar não hesite. Sou um bom ouvinte.
— Com você? Por favor me poupe. — Tragou o cigarro com força e
expeliu o fumo para cima. Batendo com o pé contra o chão. — Agora vá!
Desapareça.
O motorista assentiu, se afastando para longe em passos lentos.
[…]
O monstro Du Camp sabia que a mulher que amava era forte o suficiente
para não ficar em casa a lamentar pelo fim da relação. Christian contou que era
hábito os trabalhadores saírem aos finais do dia para o bar perto da empresa e
desfrutarem de comida rápida, música ao vivo e karaoke. Damien nunca seria
capaz de cantar de forma tão exposta, mas soubera que junto dos novos amigos,
Darcelle subia ao palco para interpretar vários artistas conhecidos.
Sabia que ela era uma pessoa extrovertida e de acesso fácil, o que nunca
pensou era que talvez estivesse estado a reprimir esse seu lado vigente, pois
nunca antes a imaginara com amigos e a ter um maior envolvimento social.
Aquilo o deixava com ciúmes, principalmente por não estar fazendo parte
daquela nova etapa da vida dela.
Saiu da mansão sem despedir, inventou que ia buscar alguma coisa no
escritório, quando na verdade precisava ver a amada para acalmar seu coração.
Não havia dia e nenhum momento que não pensava em Darci, sofria como
jamais pensara, e procurava a todo custo poder tê-la de volta sem ter que perder
Giovani. Mesmo depois de as coisas estarem a correr bem, Joanne deixava bem
claro o poder de influência que tinha pelo filho e que podia terminar com aquela
felicidade num piscar de olhos.
Estacionou o carro do lado de fora do bar, vendo a agitação animada das
pessoas. Jamais pensou em estar num lugar como aquele, apinhado de gente,
com um barulho ensurdecedor e um lugar apertado. Cheirava a fritos e álcool,
contudo, todos os rostos diferentes pareciam estar a divertir-se e felizes.
Conseguiu identificar Jeoff, Clara e mais quatro dos seus trabalhadores,
riam e falavam alto ao mesmo tempo em que viravam a tequila para a boca.
Darcelle estava mais para o lado, em pé, e conversava com um homem alto e
cheio de estilo. Pareceram muito próximos como se partilhassem de alguma
coisa em comum.
Beauchamp sentiu seu coração ferver.
Tempo de Libertar, O
Part 2

“ […] E o tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo
quanto tempo o tempo tem.” – Trava-línguas.

OS olhos azulados tremeram sem parar, não acreditando na forma leve


e suave a qual Darcelle parecia se encontrar. Sorria e falava tão descontraída e
nem parecia a mesma mulher chorosa em seus braços enquanto insistia para que
se fosse embora pelo bem de Giovani. Damien nunca quisera estar longe da
amada, no entanto começava a ter certas dúvidas sobre os sentimentos dela.
— Tire essa cara queimada do caminho! — Um homem meio bêbado o
empurrou para poder passar, visto estar no meio do corredor e a bloquear a
passagem. Os risos das pessoas ao redor, despertou-o de suas divagações,
sentindo a dor pela provocação e se afastando para longe de quem o pudesse ver.
Deixou o bar e a confusão para trás, correndo em direção ao carro e só
parou ao ver o reflexo nos vidros escuros, o rosto feio e estragado, para sempre
causaria repulsa. Sem Darcelle, nada mais parecia fazer sentido. Estava
dependente do seu amor para continuar a ter forças, pois ela o amava como
realmente era.
— Damien?
Virou tão rápido e num instinto levou a mão ao rosto, se escondendo dos
olhos escuros que o encaravam confusos.
— O que faz aqui? — Johnson perguntou. Usava o cabelo natural num
afro belíssimo, destacando suas feições suaves.
— Eu… eu só queria ver você, mas já estava de saída. — Ficou
envergonhado, a vista procurava qualquer ponto na testa dela para não ter de
encontrar aquele olhar inquisidor.
— Por um momento pensei que fosse uma loucura minha, mas decidi vir
averiguar. — Trazia uma garrafa de cerveja na mão e um ar relaxado. Damien
não deixou de se lembrar que ela não bebia.
— Eu falei que estava de saída. — Não conseguiu segurar o tom
magoado e muito menos os pensamentos persistentes que corriam na sua cabeça.
Queria carregá-la consigo para longe daquela felicidade sem a sua presença.
— Por que não entra?
— Darcelle! — Beauchamp quase rosnou. — Eu sinceramente não sei
como pode estar assim, numa boa, quando eu sofro todos os dias sem você.
Viu o peito feminino subir e descer num profundo suspiro. Baixou a
cabeça.
— O facto de não estar deitada numa cama mergulhada em lágrimas não
quer dizer que não esteja sofrendo. Se acha que deveria hipotecar a minha vida
só para provar a dor que me consome, pode tirar isso da cabeça — respondeu,
sempre firme e decidida.
— Não vim aqui exigir nada, apenas queria vê-la. Pode voltar para a
conversa com seus amigos, não tem nada para me justificar. Você é… livre. —
Custou dizer aquelas palavras, sabia estar a ser um completo idiota, mas não
conseguia fingir não ter ciúmes.
— Tudo bem. — A forma calma como as palavras foram proferidas, fez
os olhos de Beauchamp se arregalarem numa chama de desilusão.
— Então é isso? Simples assim? — Não podia acreditar naquilo, chegou
a rir de desgosto. Passou a mão nos cabelos loiros.
— Não é simples assim! Estamos numa encruzilhada, eu já disse e
reafirmo que não quero ser o pivô de um possível problema que possa ter com o
Giovani. Se abrir mão dele para ficar comigo, eu nunca ficarei com você, pois
amanhã poderá fazer o mesmo com um filho nosso. — Pela primeira vez
Darcelle pareceu perder a calma e gritou com Damien. — O que acha que é um
filho? Filho é quem devemos amar acima de qualquer coisa, acima de qualquer
pessoa.
— Mas não é questão nenhuma para duas pessoas ficarem separadas
quando se amam. Eu posso ter as duas coisas! — Bradou.
— Hipotecando a oportunidade da criança ter uma relação saudável entre
os dois parentes? Eu sei que isso é muito comum nos dias de hoje, mas não
posso fazer parte. Me perdoe. — Explicou pela milésima vez. Não entendia a
razão dele sempre fazer parecer que a culpa de estarem separados era sua.
Pigarreou.
— Darcelle está tudo bem aqui? — Abayomi saiu do bar, igualmente
com uma garrafa. Parou há poucos metros de distância e analisou de um para
outro.
— Está sim. Boa noite! — Damien escondeu o rosto junto ao ombro. As
mãos tremiam quando procurava as chaves do carro de luxo e entrou tão rápido
quanto partiu daquele lugar.
A jovem tinha todo o corpo a tremer quando viu a viatura se afastar, o
coração pulsava com força e fechou os olhos com alento a fim de apertar toda
tortura. Nem sempre conseguiria ser forte para poder ser justa com os seus
princípios.
— Agora sei de onde sua cara é familiar. A namorada do Monstro Du
Camp — comentou, se aproximando mais da possível futura trabalhadora.
— Ele não é um monstro — sublinhou entre dentes, ainda a tentar buscar
ar para se recompor. — É o homem que eu amo.
— Se o ama, então o que está fazendo aqui? — Questionou, flexionando
a voz. — Sabe, Johnson, ninguém pode ser correto o tempo todo. Esse mundo é
de quem arrisca sem medo de um futuro. Se você atirar um pássaro pela janela,
não espere que ele não voe.
Darci levantou a visão em direção ao Chef famoso, parecia certo nas
palavras.
[…]
Christian olhava para o amigo sem o conseguir reconhecer. Damien tinha
barba de dias por fazer, os olhos cansados e um ar de poucos amigos. Assinava
os papéis sem ver o que estava escrito e os lábios pálidos indicavam a pouca
falta de alimentação.
— A senhorita Johnson pediu demissão, tem um estágio de três meses
numa cozinha de um restaurante chamado África. — Parecia meio irónico ao
dizer aquilo, estendendo a pasta de arquivos da funcionária. — Vai cumprir o
mês de aviso prévio.
— Deixe-a ir — balbuciou entre dentes. Sequer se dignara a encarar o
melhor amigo, fingindo estar atento nos balancetes apresentados na tela do
computador. — Deixe-a ir, Dash. Não precisa cumprir nada.
— Eu realmente entendo a Darcelle, não na parte de deixar a maior
empresa do país para trabalhar num restaurante, e sim sobre Giovani. Ela não
quer carregar o peso de um dia, você ou o seu filho a acusarem de algo. Hoje
está tudo bonito, muito amor, mas e amanhã? Quem sabe as cobranças? É um
fardo pesado demais. — Chris deu o seu parecer sem pestanejar. Sempre fora
curto e direto.
— Obrigada pela opinião, mas não foi pedida. — O semblante de
Beauchamp estava sombrio e pesado. Espelhava sofrimento.
— Contudo não quero ver vocês assim nesse estado. É penoso! Ela está
magra como um palito de dente, daqui a pouco será usada como espeto no
restaurante onde vai trabalhar. — Christian brincou e riu sozinho, não tendo
arrancado nada do amigo. — Eu pensei e pensei, e cheguei a uma solução.
— Com tanto trabalho que existe na empresa, é com minha vida que
pretende se ocupar, Dash? — Continuava intransponível, mas o psicólogo era
muito astuto para se preocupar com a má disposição dele.
— Como é que se resolvem as coisas com pessoas chantagistas, Damien?
— Andava de um lado para o outro, com um ar muito sério a imitar um
advogado piroso. — Eu vou resolver com aquela vaca da Charlton, você vai ver
só.
— O que pensa fazer? — Damien desta vez mostrou interesse nas
palavras do outro. Parou inclusive de digitar no computador, encarando pela
primeira vez o rosto divertido de Chris.
— Vou fazer um blefe. — Bateu com as mãos na grande mesa de mogno
e riu as gargalhadas. — Uma chantagem para uma chantagista.
Explicou com atenção toda a conversa bem arquitetada, e após ouvir,
Damien percebeu que seu melhor amigo era mesmo maquiavélico.
[…]
A nova casa de Joanne Charlton era num bairro de classe alta e
residencial. Era grande com quatro quartos, uma piscina bem na frente do jardim
verde e esplendoroso. Dash estacionou o carro de dois lugares bem atrás do
camião de entregas e de óculos escuros adentrou na casa da mãe do afilhado.
— Tio Chris! — Giovani correu para abraçar suas pernas assim que o
viu, estava feliz.
— Não me lembro de ter enviado algum convite para visitas — anuiu
Joanne entrando com um sorriso meia boca e segurou o filho pelo braço para
desgrudar das pernas do intruso.
— Já devia conhecer a peça, sabe bem que sou atrevido! — Dito isto, se
autorizou a entrar na casa, onde uma empresa contratada de coração discutia
pormenores entre si. Viu a cara da má anfitriã ficar vermelha como um tomate e
riu.
— A que se deve a honra? — Alfinetou com as mãos na cintura e pediu
ao Gio para que saísse dali.
— Nem vai oferecer uma água? Café? Que malvada. — Continuou a
provocar enquanto abria uma pasta preta com o logo grande da Beauchamp e o
cavalo. — Ouvi que sua irmã está de barriga, pelas contas era suposto ser de
Damien. Já imaginou? As duas irmãs golpistas sortudas.
— Eu não vou ouvir desaforos na minha casa, senhor Dash. Diga logo a
que veio ou retire-se, porque tenho mais que fazer — vociferou como só Joanne
sabia fazer, as sobrancelhas estavam levantadas em indignação.
— Casa de Giovani, você quer dizer. — Corrigiu um quanto azedo. —
Por favor, assine aqui.
— E o que é isso? — Recebeu a pasta e viu os vários papéis nele contido.
Passou uma vista rápida de olhos.
— A verdade é que toda essa história de filho tem saído muito cara para
Damien. Ele até simpatiza com o menino, mas não tem aquele amor assim tão
forte ainda. — Gesticulava preguiçosamente enquanto explicava como se fosse a
uma criança de quatro anos. — Você não quer o menino perto de Darcelle, e ele
não quer abrir mão da namorada, certo? Então pronto. Giovani é todo seu.
— Como? — Joanne quase mordeu a língua e sentiu um fio de suor
escorrer nas suas costas. Riu para fingir a preocupação. — O que vou explicar
para o meu filho? Gio agora sabe que tem um pai.
— Senhorita Charlton, isso é um problema seu. Pelo que sei, você deixou
bem claro em como ia falar mal do pai para ele. Faça isso. — Encolheu os
ombros. — Um dia esse menino vai crescer e vai ter a oportunidade de ouvir a
outra versão da história.
— Que o pai escolheu uma vagabunda ao invés do filho?
— Não. Que a mãe escolheu isolar o filho por conta de uma namorada do
pai. E a única vagabunda aqui é…
— Quanta hipocrisia! — Deu uma tapa forte no rosto do administrador
da Beauchamp e logo levou as mãos a boca, num notável surto.
— Não vou devolver porque não bato em mulher. Mas vou sugerir o
nome de um colega psiquiatra, devia dar um salto por lá — sugeriu com uma
calma e paciência jamais vista. — Assine.
A irmã de Emma estava a ofegar sem parar, os olhos pareciam incrédulos
por alguns minutos.
— Não era isso que queria? Beauchamp escolheu Darcelle, pode ficar
com a sua criança. Pronto. Todo mundo feliz. Fale mal o quanto quiser que mais
ninguém se importa! Todos meses as contas estarão pagas e receberá pensão. O
que seria melhor? Agora pode ter o Gio só para você! — Dash sabia provocar
muito bem, instigando-a de forma incrível, a querer contrariar a decisão.
Ela pegou a pasta e rasgou todas as folhas ali dentro, numa raiva quase
tresloucada com as lágrimas a caírem de seu rosto. Christian suspirou.
— Fora daqui! Você e aquele seu amigo de merda!
— Nem queria ficar. — Ele lhe piscou o olho e saiu dando risadas só
para provocar, até porque felicidade era seu mais novo estado de espírito. —
Mas saiba que é tempo de se libertar, senhorita Charlton!
Naquela mesma noite, Joanne deixou o filho aos cuidados da irmã e de
William, e chamou Étienne para conduzi-la até ao restaurante África. Ouvira
dizer que Darcelle começara o estágio naquele lugar há alguns dias, e queria
cercá-la no fim do expediente. Aguardou no carro com o motorista, enquanto o
restaurante deixava os últimos clientes saírem, e depois os trabalhadores
seguiam um por um para fora do recinto. Era mais requintado do que pensava,
pelo que se dizia pelas vozes, era preciso duas semanas de antecedência para
obter uma reserva.
— Vou lá. — Decidiu ao ver que nunca mais via aquela que considerava
sua inimiga sair. — Não precisa esperar, Étienne. Pode ir, a conversa vai ser
longa.
Charlton não ia deixar aquela mulher sair vitoriosa naquilo, não podia
aceitar ter perdido assim tão facilmente. Queria acusá-la de destruir uma família,
colocar o peso na consciência.
— Estamos fechados. — Abayomi disse assim que viu a figura entrar.
Parecia meio perdida, como se procurasse por alguém.
— Boa noite. Procuro por Darcelle Johnson! — Disse. Estava tensa só
pela forma como mordia os lábios. O Chef reparou naquilo.
— Johnson está de folga hoje. Você deve ser a Joanne — supôs, se
lembrando da descrição dada pela nova amiga.
— Falaram de mim? — A mãe de Gio não escondeu a admiração e com a
mão no pescoço pálido, se aproximou ainda mais de Antoine.
— Darci tem sido uma grande amiga, e eu para ela. Por isso, gostava de
falar com você, por tudo o que ouvi dizer, penso que a sua parte da história possa
ser de igual relevância. — Andou cheio de estilo até a uma prateleira cheia de
vinhos, escolhendo o mais saboroso e se apressou em abri-lo.
— E por que razão o senhor faria isso?
— Antoine Abayomi. — Apresentou e lhe entregou a taça com o vinho,
percebendo o olhar desconfiado da mulher. Puxou duas cadeiras e uma tábua de
acepipes. — Não estou aqui para julgá-la. Vi o estado como entrou aqui e
gostava de fazer perceber que a sua maior inimiga é você.
Joanne hesitou por uns segundos, arfava. Por fim concordou com a
cabeça, a forma como o Chef se dirigia a si, era calorosa e séria. Parecia
transmitir uma certa confiança.
— Tudo bem. — Aceitou e pousou a bolsa na cadeira ao lado
Felicidade Em Si, A

“Não importa o que você decidiu. O que importa é que isso te faça feliz.”

O primeiro gole desceu pela garganta, ajudando a libertar a secura antes


ali presente. O corpo também precisou relaxar, uma vez que os nervos tinham
tomado conta de tudo em si. Os olhos claros do Chef de cozinha a encaravam
sem decoro, parecia despir até a sua alma e ver o coração podre cheio de vermes.
— Não entendo o interesse em ouvir tudo o que lhe contei. — Não vira o
tempo passar, nem sabia dizer de onde vinha o à vontade em falar tudo o que a
magoava para um completo desconhecido. E o mais esquisito era que se sentia
bem agora, pois o homem não parecia em nenhum momento a julgar.
— Se o lobo mau soubesse falar e escrever, não teríamos apenas a versão
da Capuchinho Vermelho. — Abayomi estava sério, os dedos brincavam com a
sua taça de vinho, ainda intacta. — Darcelle tem sido uma boa amiga para mim,
e você está atrapalhando a felicidade dela. Mas não é sobre isso que lhe quero
falar.
— O que é então? — Levantou uma sobrancelha de maneira lenta.
— É sobre você. Durante o pouco tempo em que ouvi todo o problema,
creio que sempre foi mal entendida. Julgada e condenada, e nunca ninguém
parou para lhe dar um abraço e dizer que tudo vai ficar bem. Ama seu filho?
— É claro que amo, mas que pergunta! — Parecia desconfortável na
cadeira, sempre se mexendo um quanto inquieta e deixando o vinho escorregar
goela abaixo de segundos em segundos.
— O que seria o amor? Não é abrir mão dos nossos próprios sentimentos
em prole daqueles que amamos? — Encheu mais a taça de Joanne, e também
bebeu do seu vinho. — Se ama seu filho, deixe-o ser feliz com o pai, porque se o
pai não for feliz, também não conseguirá deixar de olhar para a criança e saber
que em parte foi por ela. E o menino não tem culpa! Você está criando tudo isso,
e sabe que mais? Sem necessidade.
— Isso porque não foi com você!
— Eu tenho dois filhos. A mãe me deixou porque eu a traí, e eles
cresceram a ouvir isso sobre mim, da boca dela. Que eu não prestava e era um
canalha. — Recostou o corpo definido na cadeira, os braços fortes e delineados
mostrava as horas que passava no ginásio. — Ela não mentiu, estava falando a
verdade, mas acabou por mesmo sem querer, privar os meus filhos de estarem
comigo. Eles me odiavam pelo que tinha feito com a mãe, e até posso entender,
mas eram simples crianças. Hoje os meninos passam tempo comigo e lamentam
por ter misturado os assuntos.
— Eu não preciso de toda essa moral. Não mesmo!
— Veja bem, quantos anos tem? Trinta e dois, e três? Passou toda vida
arquitetando uma vingança descabida quando poderia ter feito mil e uma coisas.
Aproveite agora que já não tem preocupação nenhuma, viva! Durma com um
homem… há quanto tempo não sente o calor de um…
— Por favor, senhor Abayomi! — O rosto dela corou visivelmente e
baixou os olhos castanhos para a travessa com os acepipes que lhe pareceram
deliciosos. Forçou a saliva pela garganta abaixo.
— A vida é urgente, um dia vai acordar velha com artrite e vai se
perguntar o que fez. Não mais se preocupe com Beauchamp ou com Johnson,
deixe eles e se foque em si, você também merece. — Sentiu quando a mão
grande e quente, segurou seu queixo para obrigá-la a olhar para si. — Aos olhos
de muitos você pode ser a mais bela de todas. Então pare de olhar para trás e
fique atenta com o que pode estar na sua frente. E também encontre a felicidade
em si.
Joanne afastou-se do toque, meio constrangida e com um certo calor a
percorrer o corpo esguio. Levou a mão ao cabelo para certificar que estava preso
e ergueu o queixo para frente.
— Devo ir para casa. — Decidiu a se levantar e sentiu as pernas falharem
no movimento. Preferiu atribuir a culpa ao vinho.
— Está de carro? Posso levá-la? — Antoine se levantou, oferecendo-se.
— Não se preocupe. Eu chamo um táxi. — Fugiu como o diabo foge da
cruz, agarrando sua bolsa com força, mal se lembrando do que fora ali fazer.
— Pense no que lhe disse, Joanne…
— Senhorita Charlton — corrigiu.
— Pense apenas no tempo que está perdendo com toda essa estupidez, o
que passou, passou. Limpe seu coração e siga atrás de sua felicidade.
Ela assentiu com a cabeça sem nem mesmo ter ideia sobre o que
concordava, apenas despediu com um aceno rápido e saiu a tropeçar sobre os
próprios Louboutin. Correu para fora do África, entrando no primeiro táxi que
viu, para depois conseguir voltar a respirar assim que se viu bem distante de
Abayomi.
Quando chegou a casa reparou nas horas tardias, Emma estava sentada a
ver um programa de TV qualquer. E virou o pescoço para observar a afogueada
Joanne.
— Está tudo bem? O que se passou? — Ficou preocupada com o visível
desconcerto da irmã. Raramente a via assim.
— Fui falar com sua ex-empregada, mas dei de cara com um cozinheiro
intrometido — resumiu de forma breve, atirando a bolsa para cima de uma mesa
de apoio e rumando à cozinha para beber um copo com água. Sentiu que a bela
irmã lhe seguia. — Onde está Gio?
— William o colocou para dormir. Está treinando para ser pai. —
Esboçou um sorriso discreto, e pela primeira vez Joanne conseguiu perceber a
felicidade da mais nova. Namoravam há tanto tempo e estiveram sempre ali
junto dela, era mais de que certo que deveriam seguir suas vidas.
— Desculpe se em algum momento eu obriguei você a fazer o que não
queria. Eu…
— Não se preocupe. Você é como uma mãe para mim, tudo o que quero é
que fique bem. O Giovani também. — Emma foi carinhosa e por fim deu um
abraço forte na mais velha, se demorando ali por um tempo. — Você fez tudo
por nós, Jo. Só temos a lhe agradecer, tanto eu quanto o Will.
— Nunca deveria ter mandado minha pequena para os braços daquele…
— Por um momento sua voz embargou, demonstrando que ia chorar. — Estou
tão cansada, Emma.
— Só quero que seja feliz, de verdade. — Quando se afastou do abraço
olhou bem na cara da outra, e sorriu. — Esse cozinheiro é que deixou você assim
corada?
— Nada disso, Emma, pelo amor. Ele é negro! — Virou as costas com a
mão no peito e pousou a mão em cima dos balcões de mármore escuro.
— Deve ser bem lindo e gostoso, porque do jeito que você está tremendo
não é normal! — Retrucou cheia de graça, se divertindo por vê-la naquele
estado. Não se lembrava de alguma vez Joanne parecer tão susceptível.
— Ah por favor! — Resmungou e saiu dali a fingir uma irritação que não
sentia. Foi direto para o quarto. Andou de um lado para o outro, tentou tomar um
banho para relaxar e foi deitar ainda com o aquecimento incrível por todo corpo.
[…]
O ambiente no restaurante de luxo era muito intenso quando estavam na
cozinha e a casa estava cheia. Abayomi gritava e criava todo um momento de
estresse e algum receio nos trabalhadores. Quando tudo terminava e recebiam os
elogios, a maioria deles percebia a razão de tamanha pressão e se encontravam
satisfeitos ao fim do dia.
Darcelle não acreditou quando viu Joanne entrar naquela tarde, era
verdade que o Chef contou sobre a conversa, mas ver a mulher fria caminhar
decidida sob os sapatos caros, a fez recuar. Pensou que não era com ela que
queria falar.
— Johnson. — Joanne não lhe perguntou se tinha tempo ou algo de
género, apenas parou diante dela, seu queixo erguido para o alto. — Não pense
que seremos amigas ou algo do género, mas percebi que há coisas que não posso
continuar fazendo pelo bem do meu filho.
— Senhorita Charlton, se não tivesse percebido isso, então não estaria
sendo a boa mãe que sempre foi para o Giovani.
— Não vim aqui falar sobre o que sou ou fui, e sim dizer que… —
Trincou os dentes, aquilo era difícil para si. — Não vou mais impedir que
conheça e se aproxime do meu filho.
Joanne queria dizer mais coisas, que não tinha ganhado nada com aquilo,
pelo contrário. Ainda mais desprezo da parte de Beauchamp e olhares críticos
por toda parte onde ia. Estava cansada que aquela jovem na sua frente fosse
sempre considerada a altruísta.
— Saiba que terei o maior prazer em conhecer o Giovani. — Darcelle
sentia a festividade crescer em seu estômago. Quase quis sair dali correndo, mas
o olhar do Chef de cozinha era acirrado.
— Senhor Abayomi? — Joanne aproveitou a deixa.
— Por favor. — O homem vestido de Chef parecia ficar ainda mais
sensual, tendo obrigado a visitante a desviar o encontro dos seus olhos claros e
sensuais.
— Também vim a trabalho e portanto serei breve. Vou fazer uma
recepção para apresentar a minha nova casa para alguns amigos, um almoço no
jardim, e queria contratar os seus serviços. — Quando Antoine sorriu revelando
os dentes brancos como chicletes, um arrepio cobriu a espinha dela, se sentindo
maluca por alguns instantes.
— Eu cobro caríssimo, minha senhora, como bem pode ver este lugar
está sempre cheio, e preciso de um bom motivo para me deslocar. — Cruzou os
braços, com a cabeça virada para baixo para poder olhar para ela.
— Faça o seu preço, dinheiro não é problema — respondeu de uma
maneira desafiante.
— Por favor, me acompanhe até a minha sala.
Charlton passou reto por Darcelle, ignorando-a como se não a
conhecesse mais – esquecendo sua existência – e seguiu pelo corredor pintado
em tons encarnados, até uma sala não muito grande, com móveis simples e bem
enquadrados, e uma janela coberta por persianas.
— Prefiro tratar de negócios longe dos olhos dos meus trabalhadores,
aceita alguma coisa para beber? — Perguntou enquanto se abria os botões do
Dolmã e afastava a cadeira para a cliente se sentar.
— Pode ser breve? — Ela permaneceu em pé.
— Está bonita — elogiou ao ver o novo corte até ao pescoço que
realçava os olhos castanhos e lhe conferia um ar mais jovial. A amargura parecia
aos poucos desaparecer do rosto feminino.
— Obrigada. — Jurou para si mesma que estava a ser solícita devido a
educação e não que sentia um bando de gnomos malandros correrem dentro da
sua barriga.
— Podemos nos sentar para decidir qual Menu eu devo preparar?
— Pode ser qualquer um à sua escolha, devo confiar no seu bom gosto.
Eu agora preciso ir! — A pressa imediata a denunciou tal como conchas debaixo
de um mar cristalino. Sentiu quando a mão máscula a impediu de sair porta a
fora, virando-a de frente.
— Para o que realmente veio, senhora Charlton? — Abayomi arqueou o
sobrolho, sentindo como o corpo pálido estremecia pela proximidade. — O que
mais quer para além de que eu cozinhe para seu almoço?
— Eu… er… Nada. Nada! — A última palavra foi pronunciada de forma
mais certa.
— Então tudo bem — concordou e soltou o braço da mulher, mas sem
sair de perto. Joanne não conseguia parar de observar Antoine tão perto de si e
não se esquivou quando os lábios carnudos tocaram os seus, aquecendo a alma
fria e o coração vazio. Uma química bem desconcertante para Charlton, que não
conseguia lidar corretamente com a situação, deixando-se levar pela boca cheia
de avidez e as mãos ásperas e atrevidas. Há quanto tempo não era tocada daquele
jeito, por um homem que demonstrasse todo o desejo em desbravar suas
fronteiras.
O Chef tinha um beijo lento e firme, a conduzia com maestria como se
ensinasse uma criança a se equilibrar numa bicicleta. Deixou as mãos brincarem
no seu pescoço e descerem para os seios tão pequenos que desapareciam quando
a palma se fechava neles. Os mamilos enrijeceram automaticamente, sentia mil
sensações desconhecidas trilharem pelos toques de um estranho. Era tal como
uma manteiga derretida e perdeu a compostura quando sentiu uma mão invadir o
interior da calcinha. Estava molhada como nunca e nem saberia dizer como
chegara tão depressa a tal estado.
— Por trás dessa mulher toda arranjada, afinal sempre tem uma fogosa
— murmurou entre os lábios rosados e sorriu ao puxar a leve renda com força,
rasgando-a sem rodeios. Com facilidade a carregou até em cima da mesa de
secretária e desfez o cinto da calça social. Sorria de lado ao perceber a vergonha
na cara dela, mas em nenhum momento parou.
Abriu os botões da blusa e desceu a boca atrevida no bico dos seios,
passeando a língua e se demorando na brincadeira. Podia ouvi-la gemer baixo, as
palavras perdidas dentro da própria boca. Afinal sempre havia um jeito de calar a
fera. Abayomi desceu a mão para a entrada, e em pouco tempo a boca tomou o
mesmo rumo, beijou a intimidade com toda volúpia e introduziu a língua cálida e
experiente, arrancando gritos desesperados de Joanne. Quando ergueu o corpo
para estar quase a altura dela, seu membro estava duro e apontava para o teto,
por isso procurou nas gavetas pelo preservativo, e se preparou para invadir o
interior quente e apertado. Foi um pouco difícil no início, mas com cuidado e
insistência sentiu as unhas lhe arranharem os braços quando o membro foi de
encontro ao limite.
Antoine começou a movimentar o corpo viril em contraste com o suave e
aveludado da nova mulher ali entregue, por um momento não lhe pareceu a
mesma amargurada que passara dias antes no seu restaurante, e sim uma nova
pessoa disposta para a vida. A cada movimento de vai e vem o prazer era
acentuado, e os beijos acompanhavam o ritmo excitante. Não tinham muita
pressa por isso transaram por um bom tempo.
Quando saíram do escritório, Charlton estava despenteada e sem a roupa
interior. Tinha o rosto corado e mal conseguia caminhar direito. A blusa tinha
alguns botões perdidos e, por isso, levara a bolsa de marca para junto do peito a
fim de esconder.
— Senhorita Charlton — chamou Darcelle se aproximando com o seu
casaco na mão e lhe estendeu como se percebesse a necessidade da outra mulher.
Viu Joanne engolir em seco, parecia lutar contra algum demónio interior.
— Obrigada. — Aceitou e não demorou a vestir a peça feminina por
cima da blusa. — Eu mando Étienne devolver amanhã.
— Tudo bem. — A futura cozinheira concordou, acenando com a cabeça
e se afastando em passos lentos.
— Darcelle! — Ouviu a voz altiva a chamar, e virou-se para encarar a
irmã de Emma. — Se você for uma má madrasta, eu te mato.
— Não serei. — Garantiu sem segurar um sorriso. — Não serei.
[…]
Jamie estacionou o carro em frente à mansão Beauchamp, e olhou para a
prima que parecia ter uma pedra gigante acoplada às costas, tamanho ar
carregado nos olhos escuros.
— Estou com medo. — Darcelle não escondeu, estalava os dedos a
mostrar os nervos.
— É que você foi muito dura, Darci. Sequer lutou por ele ou procurou
uma forma alternativa de arranjar outra solução. — Jamie não poupou as críticas.
— Damien foi atrás, disse que amava você. A senhorita simplesmente colocou
barreiras e a vida seguiu numa boa.
— Você não tem muita moral para me criticar — respondeu efusiva, se
mostrando magoada por ouvir aquilo.
— Não estamos falando de mim. — A prima deixou claro antes que
começassem com as mesmas discussões de sempre. — Vá, desça!
— Sabe bem o quanto eu sofri.
— Eu sei, mas vai falar isso para ele. Vai logo que eu tenho de ir visitar a
minha progenitora no hospital.
— A convivência com Dash é notável. Adeus — despediu e lhe piscou
um olho, antes de sair do carro com o coração a bater sem parar. Caminhou pelos
caminhos conhecidos, mas foi interceptada por Étienne que usava umas roupas
de marca e tinha todo um novo aspeto diferente que não lhe passou
despercebido.
— Chegando de carona? Quem dirria! É prreciso ser muito ingénua para
devolver um Jeep. — Ele brincou apertando a bochecha dela.
— Também senti a sua falta — respondeu, estava nervosa e os ombros
rijos demonstravam toda uma tensão.
— Por que demorrou tanto tempo? O senhor Beauchamp é tão
aborrecido, nem imagina. Nada de musiquinha da felicidade. — O motorista a
acompanhou até chegar a porta e lhe piscou o olho.
— Ele está? — Estalou os dedos das mãos.
— Parra você aposto que sim. Vai lá pequena. — Levantou o punho num
gesto que indicava força e esperou até que tocasse a campainha da casa muito
familiar.
— Obrigada. — Darci agradeceu, mas em retorno o viu soltar um
muxoxo enquanto se afastava para longe a cantarolar alguma coisa. Giovana
abriu a porta e os lábios pintados de batom cor de pele formaram uma curva para
cima ao identificar a jovem amada de seu filho.
— Por favor, entre.
— Obrigada.
Johnson sentiu um tremor ao encontrar Damien sentado na poltrona
vitoriana, tinha a perna cruzada e segurava um licor na mão direita. A mãe dele
os deixou a sós logo em seguida, saindo a passos largos para longe dali.
— Não parece surpreendido em me ver — iniciou a conversa ainda
parada diante do amado. O peito sangrava por dentro e reclamava pelo seu amor.
— Deveria? — Questionou. O maxilar rijo demonstrava o esforço para
não mostrar certa tristeza latente. Os olhos azuis por sua vez sequer
pestanejaram ao fixar a silhueta dela.
— Eu sei que eu fui dura, sim. Não queria entrar no meio de uma
turbulência, fui fraca e abandonei você quando mais precisava. — Atirou todas
as culpas para si própria e suspirou num lamento. — Me perdoa. Eu realmente
não soube gerir a situação, foi um empecilho forte e não quero que pense que
vou sair voando nos próximos obstáculos.
— E o que quer que eu pense? — Continuava com a expressão firme,
mas sem revelar o que lhe ocorria na cabeça.
— Que não sou perfeita, tenho meus medos e falhas e preciso de alguém
que me ajude a superar isso. — Deu dois passos para frente a fim de se
aproximar mais. — Me perdoa?
— Você fez o que achou certo, não tenho porque a perdoar. Foi correta
com você própria acima de tudo, e sim, isso doeu muito, mas eu compreendo. —
Falava devagar, sem deixar o manto frio e invisível cair do seu rosto. — É uma
mulher decidida e forte, tenho a certeza que irá vencer na vida. Qualquer homem
quereria estar ao seu lado.
— Eu quero estar do seu. O que posso fazer para provar isso? Merda! Fui
tão má para nós dois. — Houve uma admiração repentina no rosto de Damien ao
ouvir o palavrão proferido por Darcelle. O convívio com Abayomi era visível.
— Não se preocupe. Venha até aqui — convidou-a a sentar em seu colo,
e assim que estavam perto, Darci pousou a cabeça no ombro dele.
— Eu amo você.
— Eu também.
Encostou o nariz gelado no pescoço cicatrizado, arrancando um arrepio
do corpo de Beauchamp, e foi subindo até estar perto dos lábios apetecidos. Não
demoraram a unir as bocas sem esconder a ansiedade. A ausência tinha sido
dura, mas agora, ali um nos braços do outro, nada mais parecia ter importância.
Era tudo passado.
O beijo era molhado e lento, sem pressa de terminar a demonstração do
sentimento. Uma lágrima rolou pela face dela, exibindo o alívio que era tudo ter
terminado.
— Vamos para o quarto — Johnson sussurrou. — Tive tantas saudades.
— Já vamos, por ora, fique aqui nos meus braços. Preciso abraçá-la para
ter a certeza que é de verdade. — Desta vez, Damien sorriu.
Estavam felizes.
Para Além da Beleza
(Final)

“Viver não é deixar o tempo passar. Viver é desfrutar da Beleza de todos
os instantes com a maior intensidade.”

O grande espelho ocupava a maior parte da parede em frente a banheira


do quarto de banho. Darcelle se observava nua, seus contornos delicados sem
muitas protuberâncias e seus membros longos e magros. Por um momento sentiu
vergonha do próprio corpo, lembrando dos vistosos seios grandes da prima os
quais tanto cobiçava.
— Relaxe — sussurrou com o hálito quente bem perto do pescoço dela.
— Você me ensinou a aceitar como eu era. Agora é hora de conhecer o seu
próprio corpo. E apreciá-lo tanto quanto eu me deleito.
— Não pode ser de forma convencional? — Até a voz estava com
vergonha de sair.
— Não — replicou de forma sensual, roçando os lábios finos contra a
pele escura que logo se arrepiou. Segurou a mão dela e a conduziu até ao meio
das pernas, incitando-a a se tocar.
— Pare com isso, eu assim não consigo! — Darcelle fechou os olhos e
mordeu o lábio inferior com força, se sentiu ainda pior quando o ouvir rir numa
gargalhada gostosa. Damien não tirou a mão, mas fez ele mesmo os movimentos
por cima da entrada, ensinando-a a conhecer a textura do próprio sexo.
— Se você não se conhecer também, não vai poder nos ajudar muito —
explicou com calma, beijando-a pelo pescoço sem pressa e sentindo os pelos se
eriçarem. Ela sentiu quando o próprio dedo escorregou para dentro, comandado
de início pela mão do amado, e depois por si mesma, esquecendo a vergonha. —
Abra os olhos.
Quando abriu, sentiu suas bochechas queimarem ao estar refletida diante
do espelho, a tocar-se para o seu homem. Este que por sua vez segurava agora os
seios pequenos e apreciava as preliminares pela primeira vez conduzidas pela
tímida Darci. Esta que gemeu sem conseguir parar de se explorar, e o corpo se
contorceu ao sentir os lábios quentes brincarem em seus seios e as mãos
masculinas apertarem sua bunda.
— Damien — chamou por ele. Não conseguia mais ficar de olhos abertos
e a fricção do dedo parecia aumentar a medida em que o calor consumia todo
corpo. Gritou quando uma forte corrente de espasmos surgiu no seu interior e
apoiou as mãos nos ombros másculos, sentindo as pernas perderem força.
— Muito bem, Darci — murmurou Beauchamp cheio de um atrevimento
nunca antes visto e a beijou devagar nos lábios, agarrando-a pela cintura
apertando o corpo contra o seu que estava entumecido diante da recente
exibição. — Agora me toque.
Ainda mal tinha recobrado da última explosão de prazer e cambaleou um
pouco antes de segurar o grande membro entre as mãos, analisando-o, sempre
como se fosse a primeira vez. Das outras vezes era sempre ele quem tomava as
rédeas da situação, ensinando-lhe algumas coisas e ditando outras. Agora
pareciam avançar para outra etapa, onde deixava de ser apenas a tímida mulher e
se transformava em uma mais fogosa.
Acariciou o membro rijo, subindo e descendo a mão por todo o
comprimento. Conseguia sentir as rugas e veias pulsantes, e aproveitava do pré-
gozo para lubrificar os movimentos. A pouca experiência parecia bastante
atrativa para Damien, pois grunhia baixo e tinha o rosto todo corado.
— Pare… — pediu com um certo sorriso e sem querer acabar com a
brincadeira tão já. E voltou a concentrar-se no corpo de ébano, beijando todas as
partes e se demorando a provar o líquido expelido pelo recém orgasmo. Ouviu a
voz dela vibrar quando a boca se alojou ali, parecia um receptor ávido pelos seus
toques tal era a rapidez com que se excitava.
Damien empurrou a namorada até esta ficar de cara contra o espelho, e
levantou as mãos dela para que se apoiasse no objeto refletor. Com os joelhos
afastou as pernas para cada lado, e por trás demorou a introduzir-se dentro dela,
primeiro brincou de esfregar na entrada da vulva e sorriu ao captar a ansiedade
de Darci que rebolava discretamente de encontro a si. Não conseguiu segurar por
muito tempo e lentamente foi penetrando o espaço apertado, suspirando no
processo ao sentir o latejar dela quando flexionava o interior involuntariamente.
Enquanto os corpos se movimentavam freneticamente, ambos se olhavam pelo
espelho, conseguiam ver cada movimento e cada expressão feita pelo mais
intenso deleite carnal.
[…]
O jardim da casa de Joanne estava todo decorado com panos brancos e
amarelos, e vasos de flores. Uma tenda tinha sido estendida e climatizada, pois o
verão se fazia presente e o sol picava lá no alto.
— Então quando vão viajar? — Jamie comia uma bruschetta atrás da
outra e o cabelo curto começava a crescer, estragando o corte da moda e
deixando um monte de caracóis em torno da cabeça.
— Assim que o resultado dos exames saírem. Gostava de começar a
faculdade de gastronomia o próximo ano — respondeu Darcelle que tinha
Giovani sentado no colo, este por sua vez muito entretido com um pedaço de
frango grelhado.
— Vamos ter uma Chef de cozinha na família! — Jamie se mostrou
empolgada. Também estava de férias e tinha passado de ano no seu curso de
medicina. Era de se esperar que em breve terminasse o curso com honras.
— Pode crer. — Riu em resposta enquanto viam os vários convidados a
conversar distraidamente com roupas frescas e bebidas na mão. — Está mesmo
tudo bem?
— Está sim. Prometo, Darci. Estamos juntas agora…
— …E sempre. — Completou tal como um mantra proferido para
assegurar a realidade. — Estou ansiosa por ir conhecer essa Ilha Quilalea em
Moçambique. Vi pela internet e parece um paraíso.
— Vão ser umas férias bem merecidas, não é pequeno? — Jamie deu um
beijo no rosto do pequeno Giovani que riu para ela em retribuição. Acariciou o
rosto dela com a mão cheia de gordura.
— Quero ir de férias! — Disse, empolgado.
— Vem cá, e como Damien reagiu quando soube que Emma o traía com
aquele amigo de Lorenzo? — Cochichou baixo, assim que a prima pousou o
enteado no chão, afinal com quase seis anos já era um bom entendedor das
conversas.
— Damien descobriu que estava sendo enganado, só isso. Mas aceita que
estar com alguém só por estar não é a melhor das saídas. O certo é amar —
redarguiu enquanto procurava o namorado no meio da multidão e o encontrou
junto da mãe e dos irmãos Dash.
Joanne passou como um furacão junto de Constance e a puxou pelo braço
até fora da tenda. Tinha os olhos a arder.
— O que foi? — A irmã de Chris era bem alta e tinha um sorriso
debochado. — Não gostou de me ver?
— Não depois de tudo o que você me fez! Eu confiei em você para não
contar sobre o meu filho a ninguém — vociferou, se esquecendo da calmaria dos
últimos dias.
— Todo segredo tem um preço. A Senhora Beauchamp confiou em mim
para fazer o seu aborto, e eu depois tive que mentir para a mãe do melhor amigo
do meu irmão que tudo tinha sido feito! — Constance riu e deu de ombros. —
Sabe bem que os meus pais não me dão nada, e o salário miserável que recebo
de enfermeira não serve de nada. Se não fosse pelo Christian e por você…
— Ah, mas quero que saía da minha casa agora, ou conto para todo
mundo que você me extorquia! — Ameaçou com os olhos raiados de raiva.
— Calma Jo. Estamos quites, eu levei uma bronca e descrença por parte
de Giovana, e se isso fosse ao alto eu podia perder minha licença. Quanto a você
só saiu a ganhar pelos vistos, devia ter feito antes.
— Atrevida!
— Oi, o que se passa aqui? — O jovem Dash se aproximou com um copo
na mão. Olhou de uma para outra, curioso.
— Nada! — As duas responderam em uníssono, e a irmã deste saiu
disparada para longe dos dois. Joanne também parecia ferver como nunca.
— Vamos lá, hoje é dia de alegria. Pensei que aquele seu namorado
cozinheiro estivesse a ajudá-la a ser mais animada — observou Chris apontando
com a cabeça para onde uma equipe de Abayomi trabalhava sem cessar.
— Vai cuidar da sua vida! Olha ali a sua fofinha comilona — provocou
Joanne revirando os olhos e saiu a andar para ir receber os convidados que
chegavam.
— Afinal só precisa começar a transar para cuspir bem esse fogo de
dragão não é? — Chris gritou em alto e bom tom, chamando a atenção dos que
estavam por perto, inclusive Antoine que arregalou os olhos em descrença para o
jovem atrevido.
Rupert entrou meio sorridente e meio tímida com os três filhos,
cumprimentou a anfitriã que foi obrigada a sorrir mesmo sem querer, já se
arrependendo de ter deixado que convidassem outras pessoas, mas antes que
pudesse reclamar, sentiu o olhar firme de Abayomi e sorriu para ele,
envergonhada, como se temesse que este pudesse ler seus pensamentos. Por isso
fez um esforço e ofereceu uma bebida a recepcionista e sucos de fruta para os
filhos.
— Que bom que veio! — Darcelle veio até ela sorridente e lhe deu um
abraço. — Como você está. Olá! — Cumprimentou aos meninos. Eles
responderam alegremente e o mais novo não demorou a se conectar à Giovani,
pois partilhavam da mesma idade. Os dois foram brincar lá fora no parque do
restante jardim.
— Estou melhor. É bom poder dormir em paz e a saber que aquele… está
longe da minha família. — Rupert se permitiu ter um novo brilho nos olhos, sem
aquele ar irritante e azedo que costumava envergar.
— Você foi muito forte, Arminda. E o bom é que tomou a decisão
sozinha! — Elogiou Jamie apoiando a mão no ombro da mulher. Ela e a sua
colega Rosa tinham ajudado Rupert a seguir em frente e denunciar o marido no
departamento destinado a violência doméstica do hospital.
— Uau… reunião entre amigas e me deixam de parte? — Constance se
intrometeu, desfilando sua beleza no pequeno grupo de mulheres. — A
cunhadinha, a cozinheira e você é? Ah Rupert, a recepcionista. Interessante.
— O quê? — Arminda questionou, de cenho unido no centro da testa.
— Nunca tinha reparado em você sem estar trombuda, querida. Fica
melhor com essa cara! — Constance redarguiu cheia de graça, mostrando a
certeza do sobrenome Dash.
Antes de o almoço ser servido, Joanne falou um pouco agradecendo a
presença de todos, lamentando a ausência de Emma e William, sem dizer que a
verdadeira razão era a vergonha de se cruzar com os Beauchamp, e elogiou a
eficiência dos serviços do Restaurante África. Ainda sentia no fundo um
resquício de dor, mas sabia que era uma questão de tempo até superar os
episódios passados.
Desta vez Damien e Darcelle dançaram juntos sem medos e sem receios,
se envolvendo nos braços um do outro com todo amor e determinação de um
futuro em conjunto, cheios de fé, alegria e devoção.
— Ainda estou lhe devendo uma dança a sério — murmurou no seu
ouvido, ouvindo aplausos distantes quando outros pares se juntaram a pista.
Damien beijou-a devagar, completamente embevecido.
— Eu estou satisfeita com esta. — Darcelle suspirou entre os lábios dele,
sorrindo verdadeiramente.
Porque não existiria no mundo beleza maior, do que amar alguém
exatamente como essa pessoa é.
Epílogo

O barco de luxo reduziu a sua velocidade e parou no meio do mar de


águas azul-turquesa. O calor era exorbitante para os dois, podiam sentir como a
pele ficava quente e os raios iluminavam diretamente seus corações. Giovana
estava sentada numa parte coberta, junto de uma mesa recheada de bebidas e
comidas, as lentes dos óculos escuros refletiam o rosto do neto que olhava
empolgado para o pai e para a namorada – de quem gostava muito – vestirem o
equipamento profissional para mergulhar. A avó tinha um sorriso curioso no
rosto, parecia esconder algo, principalmente quando encontrava os olhos azuis
de seu filho que estava nervoso.
— Avó… — Gio chamou, inquieto. Segurava uma máquina profissional,
pois estava aprendendo a paixão do pai que não parava de fotografar todos os
lugares onde tinham visitado até agora. — Vão fazer como os peixes para poder
ficar debaixo da água?
— Não. — Ela riu. — Tem uma máscara que os vai ajudar a respirar.
— Mesmo molhados ainda vão transpirar?
Ela riu alto e passou a mão pelo cabelo dele que correu até a borda, a
tempo de vê-los se jogarem de costas direto para o mar. Ficou deslumbrado ao
ver como foram desaparecendo lá para o fundo, e Damien ainda contemplou o
rosto do seu filho que estremecia lá no alto, antes de encontrar o de Darcelle que
parecia nervosa.
Os corais eram de uma beleza única, colorida e impactante. A fauna
marinha não conseguia assustá-la mais, por causa de algumas espécies distintas,
do que encantá-la. Sua vontade de falar se mostrava nas bolhas que subiam para
o alto, emocionada demais para conseguir descrever tudo o que seus olhos
registavam.
A pequena câmara que estava no topo da cabeça de Beauchamp, não era
apenas para gravar todo o mundo marinho que os cercava, e sim aquilo que
escondia na sua mão e fazia o coração bater junto dos ouvidos. Batendo os pés
de frente para ela, a segurou no lugar para que prestasse atenção, e só então,
revelou a belíssima joia que um dia pertenceu às mulheres de sua família.
Era de um valor antigo notável, o grande solitário parecia absorver todas
as cores ao seu redor, mas muito antes que Darcelle pudesse se emocionar, o anel
escapou das mãos dele e sucumbiu ao mar. Ela teria rido pela cara de pânico que
o namorado fez ao mergulhar atrás da peça, mas ao mesmo tempo que estava
preocupada, não podia disfarçar o aperto da emoção que estava em seu peito pela
maravilhosa forma de ser pedida em casamento.
Não eram precisas palavras para demonstrar o quanto era amada. Um
maravilhoso gesto acoplado ao desespero que Damien teve para recuperar o anel
num momento tão importante como aquele. Silencioso, mas mais forte que
qualquer outro que um dia pudesse prever.
Talvez, não pudesse transpirar ali dentro como Giovani perguntara, mas
sabia que as águas daquele mar eram tão salgadas quanto seriam suas lágrimas
de felicidade para o resto de sua vida.
[…]
Os dedos finos passeavam pelo lado de rosto cicatrizado e desciam pelo
pescoço, como um hábito comum e habitual, gostava de apreciar as imperfeições
eternas só para ter a certeza de que as amaria para sempre. Mas o que era o
sempre? Para Darcelle a definição mais correta era o tempo o qual passávamos
junto das pessoas que nos querem bem, podia ser um dia, dez anos, cem. O
sempre era a lembrança de um certo acontecimento eternizado nas nossas
memórias.
— Quando será a minha mulher? — Os olhos azuis se abriram, revelando
que o dono deles não estava a dormir, sentindo cada toque delicado nas marcas
das quais não sentiria mais vergonha.
— Eu pensei que já fosse — respondeu como sempre num tom divertido,
ignorando o cabelo emaranhado e bagunçado e ainda mais a sua aparência
desleixada ao acordar. Dividir um relacionamento tinha dessas partes, não se
importar com aquela cueca velha ou com uns pés feios, se conheciam de todas as
formas e se amavam assim.
— Não pela conservatória — justificou mesmo sem precisar, ainda assim
sentia a necessidade de expressar aquelas palavras em voz alta.
— Quanto tempo é que você me dará? — Perguntou num ronronado a
imitar um gato, e não deixou de copiar o sorriso formado nos lábios masculinos.
— A faculdade de gastronomia? — Ele retorquiu, embirrado, e os olhos
se estreitaram, mas sem esconder a admiração pela persistência de Darci querer
se formar e conseguir seu próprio valor antes de se tornar na senhora
Beauchamp. — Parece muito tempo.
— Diz o homem que já noivou mais vezes que a idade permite! —
Repetiu uma das respostas que Christian muito usava para provocar Damien, no
entanto vindo da boca dela arrancou uma gargalhada divertida e meio ensonada
do seu homem.
— É justo — concordou a engolir em seco e levantou uma mão para
acariciar o rosto simples e ao seu ver o mais bonito da face da terra. — Acho que
aguento quatro anos.
— Namorar é bom, já diz a minha mãe. — Decidida como nunca, mesmo
a contra gosto, de momento parecia o certo a fazer. — Quero poder usar o meu
anel de diamantes por muito tempo.
A mão esquerda revelava um anel de ouro branco com uma pedra
cintilante e valiosa. Darcelle relembrava como o pedido fora feito na instância
turística onde tinham passado as férias, debaixo das águas cristalinas e entre os
corais. O anel se escapara das mãos de Damien, e tiveram que nadar fundo para
o encontrar. Agora parecia ter mais valor assim.
De volta à mansão, os dois tentavam se adaptar numa nova vida conjunta,
aprendiam a dividir espaço e a respeitar os momentos sociais de cada um. Não
era difícil, mas de vez em quando surgiam algumas brigas banais. Amabel
Johnson garantira que seria sempre assim e que o segredo de uma relação
duradoura seria sempre a paciência e o respeito.
— Vou preparar qualquer coisa para comer — decidiu ao descer da cama
e um bocejo escapou de seus lábios carnudos. Domingo era sempre o dia em que
passavam mais tempo na cama sem pressa de encontrar o mundo lá fora.
— Pelo menos o seu patrão me salvou de comer apenas biscoitos! — Ele
provocou, a voz rouca ainda exibia os resquícios da ressaca causada pela noite
anterior. Tinham saído para se divertir e voltado para casa pela madrugada.
Johnson tirou a língua de fora em resposta, vestindo o robe e deixou o
quarto sorridente. Percorreu as escadas sentindo o silêncio do lugar enorme, se
perguntando como é que Beauchamp tinha vivido isolado naquele lugar.
Abriu a porta da cozinha e um barulho chamou a sua atenção! Giovana
deixara cair um vaso pelo susto e as mãos apressadas correram para arranjar os
cabelos e a blusa. Por sua vez, Étienne parecia envergonhado o suficiente, mas a
mancha do batom em seus lábios, levou Darci a se perguntar quem mais usaria o
cosmético àquela hora da manhã. Olhou para os dois visivelmente embaraçados.
— Darcelle! — A sogra tentou sorrir e deu as costas para apanhar o que
restava do vaso partido. — Não pensei vê-la acordada tão cedo dada a hora a
qual chegaram.
A voz tremia como nunca, e Étienne se pudesse cavaria um buraco para
se meter dentro.
— Não é nada do que a senhorrita está pensando — adiantou o
motorista, recebendo em troca um olhar fulminante da amante.
— Desculpem! — A jovem quis rir da situação, mas se sentia
verdadeiramente mal por tê-los descoberto de tal forma, correu para fechar a
porta e subiu às escadas com pressa de volta ao quarto. O coração pulava dentro
do peito, junto da ansiedade de relatar o ocorrido ao namorado. — Damien, você
não vai…
— Shhh.
Com um ar fantasmagórico segurava o controlo remoto e apontava para a
televisão. De início foi difícil perceber as imagens que corriam na tela, mas não
demorou a sentir todo um tremor lhe passar pelo peito ao ver as imagens
chocantes de um carro a ser resgatado das águas. Se já era pequeno por ser de
dois lugares, a imagem do mesmo amassado pelo choque contra a ponte de
cimento, o tornava ainda mais assustador.
Uma repórter falava em direção à câmara, enquanto por trás mostravam o
resultado do acidente:

“As notícias são chocantes: O carro de Christian Dash, de trinta e um
anos acaba de ser retirado das águas, ainda sem nenhuma informação do corpo.
As testemunhas oculares afirmam que o veículo terá perdido a direção, embatido
contra o muro e caído nas águas. Até este momento se desconhece o que terá
causado tal acontecimento fatídico, mas ouviremos então o relato de um
condutor que seguia atrás…”

— Oh não! — Darcelle não quis acreditar.
Bónus


Estima-se que na população em geral, 15% a 20% das mulheres não
conseguem engravidar.
Este conto assume que acima de qualquer concepção do que muitos
leitores podem afirmar como um final realmente feliz, existem mulheres no
mundo que sofrem com problemas de infertilidade. E, por muito que um livro
deva entreter, também deve representar.
Então endereço este conto para todas mulheres que não puderam carregar
um filho no ventre, mas que os carregam nos corações.

Depois da Beleza

“Não habitou meu ventre, mas mergulhou nas entranhas de minha alma.”

Há algum tempo, seria impossível que Damien Beauchamp cogitasse


sequer em andar pelas ruas da cidade, passeando de mãos nos bolsos e sentindo
o ar fresco da primavera que sacudia seus cabelos claros como a luz do sol que
brilhava no alto do céu opalino.
Podia parecer uma rotina tão simples, ou um hábito mais comum, mas a
verdade é que para quem tinha vivido dez anos fechado dentro dos muros da sua
mansão, e apenas saía com uma máscara em seu rosto; Poder sair assim era um
milagre.
Damien tinha o rosto parcialmente desfigurado de uma maneira grotesca
e assustadora, pois metade da cara tinha a pele lisa, branca e bonita beirando
quase a perfeição e a outra desconcertava qualquer um. Tinha escondido sua
realidade por muito tempo, até conhecer Darcelle Johnson, a mulher que fazia
seu coração dançar sapateado a um nível profissional, e com ela aprendeu que
suas cicatrizes não eram mais do que o sinal de que era um sobrevivente. Um
vencedor.
Para ela, o jovem Beauchamp tinha conseguido se desviar da morte, e em
vida continuava são e salvo. Com ela tinha aprendido mais do que alguma vez
imaginara e uma das coisas que mais o tinham marcado, é como as pessoas
podem amar e ser amadas Para Além da Beleza, porque para além de um
simples rosto, existe um coração.
— Damien?
Os olhos azuis se voltaram para encontrar uma figura que há muito tinha
esquecido. Sua antiga namorada Bianca. Ela estivera presente no dia do fatídico
acidente e foi para protegê-la que ele tinha escolhido o seu lado para o embate
grave que dilacerou metade da sua face.
— Bia — respondeu com certa calma, sem deixar de analisá-la de cima
abaixo. Estava com o cabelo preso no alto da cabeça e duas crianças num
carrinho de empurrar. Era branca, com o corpo um pouco mais cheio agora, mas
continuava bonita. — Como vai?
— Bem e obrigada. E você?
— Também. Seus filhos?
— Sim. O Gui e a Stephanie. — Sorriu quase sem graça, enquanto
tentava desviar os olhos para não o olhar de frente. Para a sorte dela só tinha
partido alguns membros no acidente, mas que logo sararam com facilidade. Não
tinha nenhuma marca tão profunda.
— Muito bom. Fico feliz. — Foi sincero e agachou para brincar com as
crianças que se animaram.
— Soube que está noivo. Parabéns. — Havia algo mais do que isso por
dizer. Uma única coisa que tinha ficado presa em seu coração durante tantos
anos. — Damien eu…
— Tudo bem, Bia. — Preferia não ouvir.
— Sinto muito por nunca mais ter ido te ver. Simplesmente não
conseguia, eu… Lamento bastante. — Foi mais sincera que conseguiu e os olhos
se encheram de lágrimas de vergonha. Fazia parte do grupo que tinha-se afastado
após ver como o herdeiro Beauchamp tinha ficado tão monstruoso.
— O que importa é eu que estou feliz agora. Mesmo Depois de a minha
Beleza ter-se esvaído. Eu descobri a importância do amor-próprio e que se eu
não me amava como era, não era justo pedir para que os outros o fizessem.
Passei por momentos horríveis, mas no final… No final tudo valeu a pena —
concluiu com um meio sorriso, dando o dedo para o menino rechonchudo apertar
com força, sorrindo e babando sem parar.
— Você tem filhos? — Ela perguntou e sua voz saiu mais do que
embargada.
— Um rapaz. O Gio — respondeu com certo pesar, amava o seu filho
mais que tudo, mas ter outros com a sua amada estava completamente fora de
questão. Por isso aquele passeio daquela manhã era diferente, pois Darcelle tinha
recebido os exames médicos que mostravam que não poderia ser mãe.
Um choque grande para os dois, e Darci sempre tinha sido tão boa e
altruísta, cheia de virtudes e ensinamentos por passar, não podia fazer sentido
que fosse castigada daquela maneira.
— Até um dia. — Damien se afastou, com um meio sorriso que
demonstrava que não guardava mágoas, pelo contrário. — Te desejo tudo de
bom.
Bianca concordou com a cabeça e ficou a vê-lo afastar-se em passos
lentos e compassados. Seu corpo alto e forte, e a forma como se mexia com as
mãos nos bolsos, exalando o quanto a situação financeira não fazia parte da sua
lista de problemas, mas o que ninguém sabia, era que ele acabava de tomar uma
decisão, uma que iria mudar tudo.
Só queria encontrar o seu “felizes para sempre.”
[…]
— […] Jamie me escuta pelo amor. Eu já disse que estou bem e não
quero mais passar por mais procedimentos e intervenções. — Darcelle falava ao
telefone com sua prima que parecia estar furiosa. — Não, não estou desistindo.
Pelo contrário, estou aceitando tudo aquilo que não posso mudar.
Damien abriu a porta de casa e logo sentiu o cheiro maravilhoso que a
estudante de Gastronomia se dispunha a preparar assim que voltava do
restaurante que tinha sido construído apenas para ela. Não era a mais bonita, mas
sua pele escura e sua cara comum apenas serviam como capa para o que
realmente havia de mais esbelto em toda aquela jovem mulher: O coração
generoso e a alma pura.
— Eu só acho que muita esperança também traz certo desgaste e decidi
parar com tudo isso. Pelo menos por um tempo… — Ela ouviu a resposta do
outro lado da linha, ao mesmo tempo em que recebia o beijo do seu namorado.
— Depois falamos, beijos.
— Eu acho que não devemos desistir. Você me ensinou a ser sempre
perseverante. — Beauchamp mordeu uma maçã vermelha, sentindo o suco doce
da fruta molhar seus lábios rosados, ao mesmo tempo em que os olhos se
concentravam nela. Podia dizer o que quisesse, mas sabia muito bem que ela
estava sofrendo demais.
— Na vida temos também que saber quando devemos parar.
Principalmente quando é algo que nos fere ardentemente. É preciso respirar
fundo e recuar. Uma batalha não se vence só na conquista, por vezes a derrota
nos ajuda a perceber outras coisas e a ser mais fortes — retrucou se aproximando
dele e colocou suas mãos nos ombros largos. — Eu estou cansada.
— Eu também, mas sinto que não posso cruzar os braços e aceitar.
— Veja… Nós podemos contratar uma barriga de aluguer, seus
espermatozóides funcionam bem, e…
— Não. — Negou prontamente com a voz grave. — Já tive um filho em
que praticamente mais fui um doador do que um pai. Não posso fazer isso de
novo. Preciso dar mais do que esperma para alguém carregar em sua barriga.
— Entenda que não aguento mais tentar e ver minha esperança ser
esquartejada de cada vez que sinto o sangue escorrer por minhas pernas, e você
tendo que limpar o que seria seu filho comigo. Não suporto a cara de pena dos
médicos de cada vez que entramos naquela clínica. Detesto ver minha prima
estudando sem parar uma área que não é sua, apenas para encontrar respostas. —
Se afastou dele e levou as mãos para o rosto, sentindo a dor em seu coração. —
Já passou muito tempo, eu preciso de seguir em frente. Por favor.
Damien a recolheu em seus braços e deixou que Darcelle chorasse em
soluços, exteriorizando todas suas dores profundas que marcariam sua alma mais
do que cicatrizes visíveis.
— A comida vai queimar. — Se soltou do conforto e limpou o rosto no
avental, voltando para a bancada ainda meio perdida no que pretendia fazer ali.
— Vamos adoptar. — Damien disse com a voz embargada e sentiu o
fulminar dos olhos em si.
— Você ia querer?
— Claro. Por que não? — Coçou o cabelo loiro. — Você não quer?
Ela sorriu e acenou com a cabeça, confirmando em silêncio aquilo que
seu coração insistia em gritar.
[…]
— Por favor, por aqui. — A Assistente Social os conduziu pela
instituição, enquanto falava num ritmo brando sobre o serviço de adopção. Nada
que já não estivessem a par, pois tiveram de passar por todo processo, desde
atestar a idoneidade de ambos, passar a avaliação para a verificação de
disposição necessária para se tornarem pais, até a fase de formação. — Nós
cruzamos algumas características com algumas crianças, mas também
deixaremos que criem laços afetivos com outras que sejam da vossa escolha.
Tudo ao seu tempo, sem pressa, e então vamos passar para a fase de convivência
com crianças.
Darcelle apertou a mão do noivo e sentiu uma emoção varrer seu peito
quando foram passeando pelo pátio, salas de aula e até aos berçários. Havia ali
dezenas de crianças e bebés que precisavam de carinho e atenção, de conforto de
um lar e de uma família. Então por que a fazia se sentir tão mal?
— Não posso — disse virando o rosto.
— O quê? — Damien se admirou. — Como assim não pode?
— Eu não sei como pode ser justo ter mães que abandonam os filhos,
enquanto algumas de nós não conseguimos conceber. — Havia uma mistura de
raiva e dor nas suas palavras. — Agora não consigo estar aqui como se estivesse
numa loja a ver qual será a melhor aquisição. Não posso. Todas precisam do meu
amor, não consigo escolher apenas uma. É tão injusto!
— Darcelle…
— Desculpa. — Soltou a mão dele e as levantou para o alto num gesto
claro de resistência. — Desculpa.
Riu de si mesma e em seguida deu meia volta e caminhou em passos
pesados para fora dali. Estava zangada com a vida.
[…]
Estava deitada na cama e conseguia ouvir a voz de Beauchamp que
falava com sua prima do lado de fora.
— Primeiro ela trabalhou no restaurante como uma condenada, dia e
noite sem descansar. E depois se deitou na cama, mal come e só dorme. Já tentei
de tudo, não sei mais o que fazer. Não posso ver a mulher que eu amo nesse
estado. — Estava desesperado. — Ela me ajudou tanto e agora…
Jamie abriu a porta e torceu o rosto ao sentir como estava abafado ali
dentro. Andou em passos lentos e abriu as cortinas deixando a luz do dia entrar e
então abriu as janelas para o ar circular.
— Lembra da nossa frase? — Perguntou e sentou com todo cuidado
junto da cama grande e confortável. — Estamos juntas em tudo. Agora e…
— …Sempre.
— Você me ensinou a nunca me fechar e falar tudo sem esconder nada.
— Apoiou a mão no dorso do corpo coberto pelo lençol.
— Me culpo por olhar para você e sentir inveja — confessou tão baixo
que quase não se ouviu, mas serviu para tirar a cabeça de dentro e encarar a
barriga proeminente de Jamie. — Eu não quero ser essa pessoa que vê você
grávida pela segunda vez e se ressente. Quero ficar feliz com isso.
— Darci… Você é humana e tem sentimentos. — Jamie colocou o dedo
por baixo do queixo. — Existe muita Beleza para Além de filhos. Tenho certeza
que vai encontrar.
— Ser titia. — Brincou e até conseguiu rir. Mudou a posição do corpo e
deitou a cabeça na barriga da prima tentando escutar a vida que crescia ali
dentro. — Queria tanto poder sentir essa sensação.
— Vais sentir outras. Várias sensações e descobrir que ser mãe é muito
mais do que carregar dentro da sua barriga. Confia em mim?
Darcelle levantou os olhos de maneira curiosa.
— O Chris quase enlouquece, mas estou trabalhando com a ONU e
ajudando num campo de refugiados, com trabalhos médicos e ofertas de
suprimentos medicinais. Ajudar os outros faz tão bem e ver aquela gente sorrir
por um copo de água ou uma vacina, tem me feito muito bem. — Acariciou o
rosto da prima. — Você vai melhorar.
Darcelle não compreendeu no que a prima podia estar a precisar como
terapia para estar bem, e estranhou um pouco, mas não perguntou. Não naquele
momento, a conhecia o suficiente para saber que ia falar quando achasse melhor.
[…]
Os refugiados vinham de uma aldeia africana que tinha sido dizimada por
guerras tribais, e Darcelle passou a doar alimentação e a ajudar nos serviços de
cozinha sempre que podia. Conversava com mulheres que tinham sido mutiladas
e que perderam toda família, assim como com homens que nunca mais poderiam
voltar para casa. Pessoas que tinham cheirado a morte e que sobreviveram no
meio da fome, do caos e de sem saber se voltariam a abrir os olhos no dia
seguinte. A maioria desnutrida e doentes, mas que sorriam sempre quando a
viam se aproximar com um prato de comida ou um abraço simples.
A Johnson mais nova entendeu o que a prima queria dizer. As pessoas ali
viam Beleza nas pequenas coisas, mesmo depois que a vida lhes tinha sido tão
cruel, nunca desistiam de agradecer por estarem ali. Porque às vezes o ser
humano tem tudo a sua mercê e mesmo assim reclama quando uma coisa corre
mal, ofuscando tudo o que está antes ou Depois.
— Eu fui tão ingrata… — Disse no final de mais um dia de cozinha e
Damien a olhou sem compreender. — Temos o Gio, e tenho você, Jamie e os
meus sobrinhos. Meus pais e uma vida maravilhosa.
— Você estava sofrendo. Era um direito seu. — Segurou na mão escura
que fazia contraste com a sua pele pálida e apertou-a com carinho.
— Eu sei que não se compara… mas veja o que toda essa gente passou?
Viu a criança que chegou há dias? — Perguntou com certo pesar e sorriu,
mostrando os dentes grandes e brancos. — Foi enterrada viva e sobreviveu cinco
dias sem água e comida. Isso é um milagre. Lhe chamaram N’weti, e sabe o que
isso significa?
— Não.
— Lua.
— Está aprendendo língua Bantu?
— Algumas palavras, eu ensino algumas coisas e eles me ensinam
outras. — Aceitou o beijo apaixonado que lhe foi dado, e depois seguiram entre
tendas até chegarem onde repousava uma criança tão magra que até se via os
ossos do seu pequeno esqueleto. Respirava com a ajuda de equipamentos e era
alimentada da mesma forma. Era escura, pequena demais e muito frágil, mas
assim que Darcelle se aproximou para segurar a sua mãozinha, se admirou
quando esta apertou o dedo dela com força e sem o largar.
— Vejo uma guerreira. — Damien parou ao lado dela e deixou um
carinho em seu rosto sofrido. — Será tão forte como sua mãe.
Darcelle levantou os olhos cheios de lágrimas para o noivo.
— Você quer?
— Claro. E você?
Os dois se abraçaram com força e riram pelo entendimento trocado.
Porque não existiria no mundo Beleza maior, do que amar as pessoas não só
pelas suas coragens e bravuras, mas pelos seus defeitos e o desejo de superação.

Ami Ideas

* Leiam as considerações da Autora

* Considerações da Autora

Por favor, avaliem o livro. É MUITO importante. Ajuda o autor a se destacar e não custa nada.
O livro 2 conta a história de Christian Dash e Jamie Johnson e se chama Uma Nova Cor. Existirá
sim uma diferença pequena em relação a escrita deste livro, pois houve uma evolução enquanto autora e por
isso optei por reescrever Para Além da Beleza antes de trazê-lo para a Amazon. A série Cicatrizes conta
histórias individuais, por isso podem ser lidas em separado.
Nesta nova versão, muitos leitores pediram que a Darcelle tivesse filhos para ter o almejado final
feliz. Sei que para muitos tudo se resume a isso, mas acreditem quando digo que eles estão felizes, e que
recebi relatos de mulheres na mesma situação e que enviaram relatos belíssimos de suas experiências e
agradecimentos por serem representadas por uma personagem tão incrível. Não sou uma autora de
previsibilidades. Estejam sempre atentos para aquilo que escrevo. Todos os meus clichés serão
reinventados. Então se não estiver preparado para levar um banho de água fria, não, o meu livro não é para
você.
Por isso decidi compartilhar convosco algum de meus pensamentos como ser humano:
Em 2016 decidi regressar timidamente ao mundo da escrita. Após 4 anos em que decidi largar
esse sonho. Para Além da Beleza era apenas um experimento, mas dezenas de leitoras apareceram depois
que a Rosa deu as caras, e só foram crescendo desde então. Assim como eu.
Se quer saber tudo o que aconteceu com Chris e Jamie, então siga para ler: Uma Nova Cor.
Muito obrigada.
#ApoieOSeuautor


Ami Ideas é uma autora africana, de Moçambique e que possui 29 Maios. Geminiana, descobriu o
prazer pela leitura aos 4 Maios, idade que aprendeu a escrever e ler. O primeiro livro que leu foi a saga “Os
Cinco”, livro de aventuras que a transportou para um mundo mágico e viciante, obrigando sua mãe a
oferecer tantos outros livros sobre tantas outras histórias. Aos 12 Maios descobriu que poderia escrever e foi
aí que começou o seu amor pela escrita.
Em 2010 descobriu que podia partilhar suas histórias com mais pessoas no mundo, tendo
publicado em diversas plataformas online e conhecido dezenas de pessoas diferentes.
Quero agradecer em especial as minhas Desgramadas que acompanharam o processo desta
criação e sempre me ajudaram em tudo o que foi possível para que a obra pudesse acontecer.
As restantes meninas do Esquadrão Ami Ideas (Luzivania, Eveline, Winney, Michele, Emily,
Lauelise) que me ajudam diariamente na divulgação dos meus livros e iluminam os meus dias com as
conversas hilariantes. O meu muito obrigada.
Espero que todos leitores tenham gostado desta experiência.
Obrigada.
Outros trabalhos da autora na Amazon:

Uma Nova Cor


Mr. Perfect
Limites - Quando o Amor se Sobrepões Às Barreiras

Interligados - Proibido Para Mim

Glacial - O Golpe do Ano


Guns N' Cigarettes - Perigoso e Fatal
Something About Ocean - Coração Frio

[email protected]
Table of Contents
Dedicatória
Agradecimentos
AVISO
PRÓLOGO
Beleza Perdida, A
Monstro Du Camp, O
Contrato de Casamento, O
Revolta de Emma, A
Primeiro Confronto, O
Tentativa de Mudança, A
Porta de Esperança, A
Despertar de Darcelle, O
Vida Sem Máscaras, A
Retrato, O
Festa de Noivado, A
Desaguar de Sentimentos, O
Porta Fechada, A
Transbordar da Paixão, O
Natureza do Amor, A
Encontro com o Passado, O
Vida e Seus Dilemas, A
Jantar Com Os Johnson, O
Incondicional Forma de Amar, A
Segredo Exposto, O
Escolha Difícil, A
Le Cuisinier (Extra)
Tempo de Libertar, O
Tempo de Libertar, O
Part 2
Felicidade Em Si, A
Para Além da Beleza
(Final)
Epílogo
Bónus
Depois da Beleza
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