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CAPA

1 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CRÁTILO
Revista Discente de Estudos Linguísticos e Literários
Centro Universitário de Patos de Minas

2 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


UNIPAM | Centro Universitário de Patos de Minas

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Adriana de Lanna Malta Tredezini

Diretora de Graduação
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Coordenador do Núcleo de Editoria e Publicações


Geovane Fernandes Caixeta

A Revista Crátilo é um periódico acadêmico e científico, editado semestralmente,


destinado à publicação de artigos, ensaios, resenhas, entrevistas e relatos de experiência
de alunos dos cursos de Letras ou áreas afins, que estejam em nível de graduação,
especialização, ou que sejam recém-graduados.

3 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CRÁTILO
Revista Discente de Estudos Linguísticos e Literários
Centro Universitário de Patos de Minas

ISSN 1984-0705
Volume 15, número 1, jan./jun. 2022
Patos de Minas: Crátilo, UNIPAM, v. 15, n. 1, jan./jun. de 2022: 1-175

Centro Universitário de Patos de Minas

Núcleo de Editoria e Publicações

4 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Crátilo © Revista do Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo
E-mail: [email protected]

Editor responsável
Geovane Fernandes Caixeta

Conselho Editorial Interno


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Geovane Fernandes Caixeta (UNIPAM)
Gisele Carvalho de Araújo Caixeta (UNIPAM)
Mônica Soares de Araújo Guimarães (UNIPAM)

Conselho Consultivo
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Teresa Cristina Wachowicz (Universidade Federal do Paraná)

Revisão
Geovane Fernandes Caixeta
Gisele Carvalho Araújo Caixeta
Rejane Maria Magalhães Melo

Diagramação e Formatação
Lorrany Lima Silva

5 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Sumário

Machado de Assis: um manipulador de interjeições......................................................... 08


Mateus Tavares Costa
Geovane Fernandes Caixeta

Ler ou não ler os clássicos: eis a questão............................................................................... 24


Monallisa Cristina da Silva
Carolina da Cunha Reedijk

Análises e reflexões sobre a elaboração de enunciados de atividades e tarefas nas aulas


de Língua Portuguesa.............................................................................................................. 38
Kleissiely de Castro
Bianca de Souza Gomes
Amanda Gazola Tartuci

Estratégias de leitura no Ensino Médio: ressignificando a interpretação de texto....... 51


Joyce Kéren Siqueira
Carolina da Cunha Reedijk

O gênero textual tirinha: uma sequência didática balizada por mediadores


tecnológicos............................................................................................................................... 69
César Morais Rosa
Adriene Sttéfane Silva

Combate ao racismo por meio da leitura de autoras negras............................................. 88


Geovanna Francesca da Silva Araújo
Mônica Soares de Araújo Guimarães
Luís André Nepomuceno

Entre canais humanos e muralhas lisas: as transformações da urbe no poema Cidade


física, de Dora Vasconcellos................................................................................................. 104
Deivide Almeida Ávila
Ozana Sacramento

Reflexões sobre língua(gem) neutra no português brasileiro........................................ 113


Lorrany Lima Silva
Elizene Sebastiana de Oliveira Nunes

O combate ao preconceito linguístico: a trajetória de uma proposta............................. 134


Íris Fernanda Mendes Dias
Maria Alice Mota
Welber Nobre dos Santos

6 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O letramento na constituição do leitor científico.............................................................. 149
André Henrique de Marafigo
Matheus Gabriel da Silva Boff
Rosana Mara Koerner

Breve revisão da literatura acerca da produção escrita em língua inglesa por alunos da
Educação Básica...................................................................................................................... 165
Mônica Soares de Araújo Guimarães

7 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 08-23, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Machado de Assis: um manipulador de interjeições

Machado de Assis: a manipulator of interjections

MATEUS TAVARES COSTA


Graduado em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

GEOVANE FERNANDES CAIXETA


Professor orientador - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: Neste artigo, objetivou-se comprovar a tese de que Machado de Assis, no livro Memórias
póstumas de Brás Cubas, é um manipulador de interjeições. Para isso, buscou-se em Candido (1976),
Rosenfeld (1976) e Brait (1985) a caracterização de personagens literárias e em Caixeta (2005, 2015)
a compreensão do fenômeno interjeição. Foram rastreadas e classificadas as manifestações
interjetivas proferidas por quatro personagens das Memórias: Brás Cubas narrador, Brás Cubas
personagem, Dona Eusébia e Virgília. Percebeu-se que, de fato, Machado de Assis, nas Memórias,
manipula as interjeições, por meio das quais é possível perceber como cada personagem se
comporta emocional e emotivamente, social e psicologicamente. Por fim, detectou-se também,
nas Memórias, a presença de manifestações interjetivas gráficas, algo ainda não documentado.
Palavras-chave: Interjeição. Interjeição gráfica. Machado de Assis.

Abstract: In this article, the objective was to prove the thesis that Machado de Assis, in the book
Memórias Póstumas de Brás Cubas, is a manipulator of interjections. For this, Candido (1976),
Rosenfeld (1976), and Brait (1985) sought the characterization of literary characters, and Caixeta
(2005, 2015) an understanding of the phenomenon of interjection. The interjective manifestations
given by four characters from Memórias were tracked and classified: Brás Cubas narrator, Brás
Cubas character, Dona Eusébia and Virgília. It was noticed that, in fact, Machado de Assis, in the
Memórias, manipulates interjections, through which it is possible to perceive how each character
behaves emotionally and emotionally, socially and psychologically. Finally, the presence of visual
interjective manifestations was also detected, in the Memórias, something not yet documented.
Keywords: Interjection. Graphical interjection. Machado de Assis.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi lançado, em 1880, em formato


de folhetim; em 1881 foi publicado no formato de livro. O tempo não apagou – e talvez
jamais apague – essas Memórias, já que elas, na literatura brasileira, cristalizaram-se como
referência literária. O autor delas, Machado de Assis, consagrou-se como um dos mais
importantes escritores de língua portuguesa. O conjunto de sua obra revela facetas de
um escritor genial – e essa sua genialidade caracteriza-se, sobretudo, pelo fato de que
não se esgotaram as possiblidades de leitura do “bruxo” e de suas feitiçarias.

8 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

Independentemente de, hoje, ser esse gênio um “autor defunto”, suas Memórias estão
vivas e, notável e provisoriamente, (in)decifráveis. Portanto, as Memórias são um
clássico.
Memórias é um romance que foi – e é – alvo de muitos estudos, os quais focam
a ironia, o fantástico e a liberdade formal, entre outros temas. É uma narrativa não linear,
em que a presença de comentários periféricos, caracterizados por ironias, é não só para
os leitores, mas também para os críticos, o centro de interesse pela dimensão e
contemporaneidade. No romance em questão, Brás Cubas, narrador e protagonista,
decide, após sua morte, contar suas memórias. Como morto, ou como um “defunto
autor”, revela sua ironia e sua causticidade em relação a uma sociedade cujas instituições
se fundam na hipocrisia. O próprio defunto autor, Brás Cubas, disse que escreveu a obra
com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair
desse conúbio” (ASSIS, [1881] 1992, p. 16). Temas como casamento, adultério,
comportamentos individuais e sociais são alvos do parecer rude e mordaz de Machado
de Assis, travestido de Brás Cubas. Desse modo, as personagens são de interesse deste
trabalho.
Há mais de oito décadas, na edição de 18 de junho de 1939 do Diário de Notícias,
do Rio de Janeiro, Astrogildo Pereira assim se expressou em relação à crítica a Machado
de Assis: “[...] nenhum outro escriptor brasileiro, em nenhum tempo, foi tão falado, tão
manuseado, tão esquadrinhado quanto Machado de Assis actualmente.” (PEREIRA,
1939, p. 17). Essa citação sinaliza que sempre há “novas perspectivas” de estudos acerca
de Machado de Assis e de sua obra. Conforme Pereira (1939, p. 17) em outra passagem
de seu texto, “Ha muito mysterio ainda em Machado de Assis. Mysterio fascinante, que
attrahe e enfeitiça deliciosamente os decifradores”.
Considerando a atualidade da “fala” de Astrogildo Pereira, o objetivo deste
artigo é apresentar argumentos favoráveis à tese de que Machado de Assis, no romance
Memórias póstumas de Brás Cubas, é um manipular de interjeições. Para isso, num primeiro
momento, foram abordadas (i) a construção de personagens literárias, e os autores
selecionados foram Candido (1976), Brait (1985) e Rosenfael (1976) e (ii) a semioticidade
das manifestações interjetivas, e os autores selecionados foram Caixeta (2005, 2015) e
Gonçalves (2002). Num segundo momento, foram feitas, subsidiando-se nos dois passos
anteriores, a identificação e a análise das manifestações interjetivas presentes nas
Memórias. A interseção desses momentos forneceu os argumentos para a sustentação da
tese.
Machado de Assis, ao utilizar-se de um narrador irreverente, galhofeiro e
farsola, mostra sua capacidade de lidar com uma infinidade de usos da língua(gem),
principalmente com o fenômeno interjetivo. Nas Memórias, esse fenômeno parece ser
uma ferramenta conduzida pelo escritor para, nas entrelinhas de seu texto, mostrar
quem são as suas personagens do ponto de vista emocional, emotivo, social e
psicológico. O perfil de cada personagem não se reduz a uma descrição física; na
composição de cada perfil, Machado de Assis recorre a uma semioticidade advinda do
uso de interjeições para sinalizar aos leitores como as personagens se comportam,
emocional e emotivamente, social e psicologicamente, com elas mesmas, com seus
interlocutores, com o assunto ou com a situação comunicativa. Machado de Assis não
descreve exaustivamente suas personagens; ele sugere atitudes e comportamentos delas

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MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

– as interjeições proferidas por elas são um recurso para a montagem dos perfis
pretendidos ou sugeridos.
Nas Memórias, há uma constelação de personagens, como Brás Cubas (narrador
e protagonista), Sabina (irmã de Brás Cubas), Cotrim (cunhado), Bento (pai), Virgília
(noiva, amante), Quincas Borba (amigo), Marcela (primeiro amor), Lobo Neves (esposo
de Virgília) e Dona Eusébia (amiga da família de Brás Cubas). Neste artigo, em função
das delimitações de espaço, foram analisadas apenas as manifestações interjetivas de
quatro personagens: Brás Cubas narrador, Brás Cubas personagem, Dona Eusébia e
Virgília. Apesar dessa restrição no conjunto de personagens que povoam as Memórias,
deve-se salientar que as demais são de grande importância na narrativa.
Inexistem estudos acerca das manifestações interjetivas nas obras de Machado
de Assis. Como nas Memórias há um imenso uso de interjeições, torna-se pertinente uma
análise delas, considerando-as como estratégias do escritor para contribuir para a
composição emocional, emotiva, social e psicológica de suas personagens. Desse modo,
espera-se que este estudo subsidie pesquisas futuras em que as personagens possam ser
examinadas semioticamente: basta levar em consideração que as interjeições, ao serem
proferidas, reverberam nos/pelos corpos, presentificando, (in)diretamente, um modo
singular de se estar numa situação comunicativa, emocional e emotivamente, social e
psicologicamente.

2 O ESCRITOR E AS PERSONAGENS LITERÁRIAS

Machado de Assis “acostumou-se a olhar por trás das máscaras sociais, a fim
de revelar o jogo das relações socais, de compreender a natureza humana, focalizando
personagens com penetrante espírito de análise” (CAMPEDELLI, 1999, p. 188). Para essa
autora, “[...] nos indivíduos existem sempre intenções supostas para objetivos reais. É
disso que resultam os atos, os quais se dirigem sempre para a satisfação pessoal de quem
os pratica” (p. 188). As Memórias são, desse modo, um macrocosmo de personagens.
Para José Candido (1976, p. 54), a personagem de um romance “representa a
possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de
identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enrêdo e as idéias, e os
torna vivos”. José Candido estabelece uma comparação entre personagens e pessoas do
cotidiano. Para o teórico,

[...] na vida, estabelecemos uma interpretação de cada


pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua
diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-
ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso,
menos variável, que é a lógica da personagem. A nossa
interpretação dos sêres vivos é mais fluida, variando de
acordo com o tempo ou as condições da conduta. No
romance, podemos variar relativamente a nossa
interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu,
desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre,
delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu
modo-de-ser. (CANDIDO, 1976, p. 58-59).

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MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

Esse posicionamento de José Candido sustenta o que se defende neste artigo: o


escritor Machado de Assis, ao colocar na boca de suas personagens inúmeras
interjeições, estaria sinalizando para os leitores sutilezas emocionais, emotivas, sociais e
psicológicas dessas mesmas personagens; desse modo, é exigido do leitor uma
capacidade de ler as potencialidades semióticas das manifestações interjetivas. Segundo
Candido, a linha de coerência das personagens é, no romance, fixada para sempre pelo
escritor. “E isto não quer dizer que seja menos profunda; mas que a sua profundidade é
um universo cujos dados estão todos à mostra, foram pré-estabelecidos pelo seu criador,
que os selecionou e limitou em busca de lógica” (CANDIDO, 1976, p. 59). Para finalizar
sua argumentação acerca dessa linha de coerência dos personagens de um romance,
Candido (1976, p. 59) afirma:

Graças aos recursos de caracterização (isto é, os elementos


que o romancista utiliza para descrever e definir a
personagem, de maneira a que ela possa dar a impressão
de vida, configurando-se ante o leitor), graças a tais
recursos, o romancista é capaz de dar a impressão de um
ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza; mas
nós apreendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a
personagem como um todo coeso ante a nossa
imaginação. Portanto, a compreensão que nos vem do
romance, sendo estabelecida de uma vez por todas, é
muito mais precisa do que a que nos vem da existência.
Daí podermos dizer que a personagem é mais lógica,
embora não mais simples, do que o ser vivo.

No livro A personagem, Beth Brait (1985) analisa a concepção das personagens.


Essa autora (1985, p. 52) assim se expressa:

Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam


num mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios
oferecidos por um código a fim de engendrar suas
criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou
imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das
mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres
só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que
torne tangível a sua presença e sensíveis os seus
movimentos.

Se o texto é o produto final dessa espécie de bruxaria, ele é o único dado


concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistência à
sua criação e estimular as reações do leitor. Nesse sentido, é possível detectar numa
narrativa as formas encontradas pelo escritor para caracterizar as personagens. Candido
(1976) e Brait (1985) deixam entrever que o escritor, na construção de personagens, é um
exímio manipulador de estratégias. O escritor é capaz de delinear, na composição das
personagens, uma “curva de existência” delas por meio de uma “caracterização

11 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

linguístico-literária”. No entanto, essa construção de personagens admite leituras


diversas. Nas Memórias, por exemplo, Machado de Assis, por meio de Brás Cubas, não
se restringe, na caracterização das personagens, a uma exposição exaustiva de traços
físicos e comportamentais.
Segundo Cardoso (2001), a personagem é um elemento intratextual, o que
significa que ela é uma construção interna à narrativa. As personagens são fictícias, mas
têm forma própria de existir (BRAIT, 1985). As personagens se movimentam e se fazem
coerentes nos limites do texto. O autor é o criador delas, integrando-as ao ambiente
físico, social, cultural, psicológico. O design de uma personagem é o resultado, portanto,
de semioses que corroboram a intenção do autor na configuração desse ser ficcional:
composição física e psicológica, cenário, comportamentos sociais e culturais, entre outros
elementos dessas semioses. Segundo Rosenfeld (1976), as personagens são seres
puramente intencionais e projetadas por orações – nessa perspectiva, as personagens são
criações de linguagem e se circunscrevem nos limites dessa mesma linguagem – criações
e circunscrições, ambas esquematizadas pelo autor. Cabe aos leitores, no seu tempo, dar
vida às personagens, tornando-as elementos extratextuais. Nesse viés, Machado de
Assis, um ser psicossocial, é um designer de personagens coerentes dentro da ficção
narrativa, dentro da linguagem.
Para Rosenfeld (1976), as personagens de um romance são, física e
psiquicamente, configurações esquemáticas. A sagacidade do escritor, na feitura
esquemática das personagens, encontra-se também numa caracterização indireta deles.
Como exemplo disso, os leitores podem perceber que as personagens das Memórias
(re)agem emocional, emotiva, social e psicologicamente em relação a elas mesmas, aos
seus interlocutores ou à situação sociocomunicativa. Nem Machado de Assis nem Brás
Cubas narrador descrevem metalinguisticamente as reações emotivas e emocionais
abruptas de seus personagens. Os leitores são dirigidos a esta leitura: as manifestações
interjetivas são, assim, uma das estratégias sinalizadoras do comportamento das
personagens.
As concepções de Candido (1976), de Brait (1985), de Cardoso (2001) e de
Rosenfeld (1976) a respeito da construção, composição e esquematização de
personagens, somadas às de Caixeta (2005, 2015) a respeito das manifestações
interjetivas (o que será tratado na seção seguinte) e de como distribuí-las numa
classificação operacional, subsidiam teoricamente o que se defende neste artigo:
Machado de Assis, nas Memórias, é um manipulador de interjeições.

3 INTERJEIÇÕES COMO REAÇÕES ATITUDINAIS

Para Caixeta (2005), interjeição é uma manifestação de caráter


emotivo/expressivo que não é descrita metalinguisticamente pelo falante, como <eu
estou surpreso, vou reagir abruptamente> ou <não estou (tão) surpreso, não vou reagir
abruptamente>; é presentificada, com maior ou menor envolvimento, atitudinalmente
pelo falante diante de diferentes “objetos”, quais sejam, o (inter)locutor, a mensagem e a
situação. Na perspectiva de Caixeta (2005, 2015), as interjeições são dêiticas na medida
em que sempre sinalizam o estado de emoção presentificado por que passa o falante em
relação a algo que lhe é externo, ou seja, são sempre uma reação.

12 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

Caixeta (2015) afirma que as interjeições colorem, expressiva, emocional e


emotivamente, as trocas comunicacionais e singularizam o falante (no caso das Memórias,
as personagens) como sujeitos de intenções e/ou atitudes valorativas. Na escrita de
Memórias, proliferam-se interjeições, que, por serem um fenômeno semioticamente
expressivo, sinalizam a sagacidade de Machado de Assis na esquematização de suas
personagens. Ao leitor de Memórias é exigida, portanto, esta habilidade: não restringir a
compreensão das personagens ao que é descrito, mas ao que é vivido e presentificado
pelas personagens no momento mesmo do dizer interjetivo por elas mesmas.
Para demonstrar a operacionalidade dessa noção de interjeição, Caixeta (2005)
cria o conceito de rede interjetiva, que é uma denominação referente ao envolvimento
emocional ou emotivo com esses “objetos” – esse envolvimento se dá pela manifestação
de, pelo menos, uma interjeição. Segundo Caixeta (2005), se o falante reage emocional e
emotivamente com todos os “objetos” da rede interjetiva, o grau de envolvimento é
elevado. Numa reação com menos elementos, menor grau de envolvimento.
Considerando a noção de rede interjetiva, Caixeta (2015) afirma que uma interjeição “não
é uma palavra, mas um enunciado, que se inscreve semioticamente como parte de uma
situação sociocomunicativa” (p. 175).
Caixeta (2015) propõe a seguinte divisão: interjeições emocionais e interjeições
emotivas. As emocionais são não intencionais e presentificadas, ou seja, o sujeito vive
um estado emocional no momento mesmo de proferi-las. Já as emotivas são intencionais
e descritivas, uma vez que o sujeito interjetivo explicita metalinguisticamente o próprio
estado emotivo. Essas interjeições emotivas são subdivididas em volitivas, cognitivas,
persuasivas e formulaicas. O detalhamento dos cinco tipos é apresentado a seguir.
As interjeições emocionais são as que manifestam vividamente uma emoção do
enunciador. “O componente que subjaz às interjeições emocionais é Eu sinto algo”
(CAIXETA, 2015, p. 168). Ainda de acordo com o autor, essas interjeições são a própria
emoção em ato, daí seu caráter vívido. São não experienciais (CAIXETA, 2015) –
“experienciais” diz respeito àquilo que é vivido, que faz parte da experiência de vida de
cada um. Dizer que as interjeições são “não experienciais” significa dizer que elas são
manifestações emocionais presentificadas e vividas reativa e provisoriamente numa
dada situação.
As interjeições volitivas exprimem desejo futuro do próprio enunciador, algo
que se pressupõe ainda não alcançado ou ocorrido. “O componente que subjaz às
interjeições volitivas é Eu (não) quero algo” (CAIXETA, 2015, p. 184). Esse grupo de
interjeições requer, metalinguisticamente, a descrição do desejo do sujeito interjetivo.
Essa classificação abarca as interjeições que exprimem pedido de proteção ou auxílio.
Dessa forma, são experienciais (CAIXETA, 2015).
As interjeições cognitivas são as que expressam o pensamento do enunciador.
“O componente que subjaz às interjeições cognitivas é Eu penso algo” (CAIXETA, 2015,
p. 176). São capazes de sinalizar uma relação entre uma observação e uma reflexão, e são
pouco ou nada performativas, embora sua ausência interfira no fluxo conversacional ou
na progressão textual. Desse modo, são experienciais (CAIXETA, 2015).
As interjeições persuasivas são as enunciadas com o objetivo “de levar a crer ou
a aceitar, de determinar a vontade de, de convencer e induzir. O componente que subjaz
às manifestações interjetivas persuasivas é Eu (não) quero que você faça isso” (CAIXETA,

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MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

2015, 192). Embora sejam da ordem do emotivo, essas interjeições voltam-se para um
destinatário, com valor conativo, de forma que verbos no imperativo geralmente
compõem essas manifestações. Por meio dessas interjeições, o enunciador sinaliza sua
intenção em relação ao interlocutor. Estão circunscritas em um modelo social que
subordina a relação enunciador-destinatário. São também experienciais.
Por fim, as interjeições formulaicas são as que correspondem à manifestação de
um ritual. “O componente que subjaz às interjeições formulaicas é Eu devo seguir algo”
(CAIXETA, 2015, p. 199). Ainda de acordo com o autor, a emissão dessas interjeições
“chama mais atenção por serem fórmulas sociais de interação do que por serem
necessariamente uma reação emotiva particularizante do falante interjetivo” (CAIXETA,
2015, p. 205). Essas fórmulas sociais são gestos, atitudes e comportamentos exigidos em
determinadas situações, como cumprimentar ou despedir-se de alguém numa dada
circunstância social. São, assim, experienciais.
As inúmeras manifestações interjetivas presentes nas Memórias, distribuídas em
conformidade com a classificação proposta por Caixeta (2015), podem sinalizar atributos
não só emocionais repentinos, mas também comportamentais dos personagens.
Manifestações interjetivas como “Jesus!”, “Cruz, diabo!”, “Céus!”, “Coitadinha!”, “Ah,
meu Deus! meu Deus!”, “Valha-me Deus!”, “Ah, brejeiro! ah! brejeiro!”, “Magnífica!”,
“Viva o passado!”, entre várias outras presentes nas Memórias, são indícios de como as
personagens reagem em dadas situações sociocomunicativas.
A proposta de Caixeta (2015) está sintetizada no quadro a seguir.

Quadro 1: Tipos de interjeições, estado mental e reação promovida


Tipos de interjeições Estado mental Reação promovida
Emocional e não
Interjeições emocionais Eu sinto algo.
experiencial
Cognitivas Eu penso algo.
Interjeições Persuasivas Eu (não) quero que você faça algo.
Emotiva e experiencial
emotivas Volitivas Eu (não) quero algo.
Formulaicas Eu devo seguir algo.
Fonte: elaborado pelos autores, 2021.

No quadro a seguir, são apresentadas manifestações interjetivas transcritas das


Memórias, para demonstrar o estado mental contextualizado de cada um dos tipos de
interjeições.

Quadro 2: Tipos de interjeições, exemplos e estado mental contextualizado


Estado mental
Tipos de interjeições Exemplos
contextualizado
“Rejeitei o primeiro alvitre, que era Eu sinto algo.
simplesmente absurdo, e
encaminhei-me para Virgília, que lá Eu estou surpreso, porque
Emocional
estava sentada e calada. Céus! Era esperava que Virgília
outra vez a fresca, a juvenil, a florida estivesse doente, mas a vejo
Virgília” (ASSIS, [1881] 1992, p. 73). saudável.

14 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

Eu penso algo.
“– Não se esqueça de Dona Plácida.
Vá vê-la algumas vezes. Coitada! Foi
Eu penso que Dona Plácida é
Cognitiva ontem despedir-se de nós; chorou
uma “coitada”, porque a
muito, disse que eu não a veria
nossa ausência a deixará
mais...” (ASSIS, [1881] 1992, p. 141).
chateada.
Viram-me ir umas nove ou dez Eu (não) quero que você faça
pessoas, entre elas três senhoras, algo.
minha irmã Sabina, casada com
Persuasiva Cotrim, – a filha, um lírio do vale, – Eu quero (ordenho) que os
e... Tenham paciência! daqui a pouco leitores tenham paciência,
lhes direi quem era a terceira porque daqui a pouco direi o
senhora” (ASSIS, [1881] 1992, p. 17). nome da terceira senhora.
Emotiva “O que eu quero dizer não é que
esteja agora mais velho do que
quando comecei a escrever o livro. A Eu (não) quero algo.
morte não envelhece. Quero dizer,
Volitiva sim, que em cada fase da narração da Eu quero que Deus me
minha vida experimento a sensação socorra, porque preciso
correspondente. Valha-me Deus! é explicar tudo para os leitores.
preciso explicar tudo” (ASSIS, [1881]
1992, p. 160).
Eu devo seguir algo.
“– Não quero saber onde mora,
atalhou Quincas Borba. [...]. Agora,
Formulaica Eu devo seguir as
adeus; vejo que está impaciente.
convenções sociais, por isso
– Adeus!” (ASSIS, [1881] 1992, p. 92).
digo “adeus”.
Fonte: elaborado pelos autores, 2021.

Os exemplos selecionados para compor o Quadro 2 mostram que as


manifestações interjetivas são reações aos elementos da rede interjetiva, tomados
isoladamente ou em conjunto. Desse modo, são elas dêiticas por excelência: indicam, de
modo vívido e presentificado, o estado de emoções em que se encontra o falante no
momento mesmo de proferi-las. Machado de Assis, na esquematização de suas
personagens, recorreria ao fenômeno interjeição para salientar, nas entrelinhas, o perfil
emocional, emotivo, social e psicológico de suas personagens nas Memórias.

4 MACHADO DE ASSIS COMO MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

Para apresentar argumentos favoráveis à tese de que Machado de Assis, nas


Memórias, é um manipular de interjeições, foram necessários alguns passos, já descritos.
A identificação das manifestações interjetivas para a composição do corpus foi feita com
base em Caixeta (2005, 2015). Nas duas obras, Caixeta salienta que a intenção (emocional
ou emotiva) do falante ao proferir interjeições se sobrepõe a forma que elas possam ter.
Enfim, para Caixeta as manifestações interjetivas são de natureza pragmática.
Após o levantamento das manifestações interjetivas nas Memórias, foram
selecionadas, para a presente análise, as proferidas por Brás Cubas (narrador e

15 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

personagem), por Dona Eusébia e por Virgília. Ao todo, foram identificadas 167
manifestações interjetivas proferidas por essas quatro personagens. Os enunciados
dúbios, cuja natureza interjetiva é questionável, não foram levados em consideração. Os
tipos proferidos pelos personagens selecionados assim como os percentuais, encontram-
se na tabela a seguir.

Tabela 1: Percentagem de manifestações interjetivas proferidas


pelas personagens selecionadas
Interjeições emotivas
Interjeições
Interjeições Interjeições Interjeições Interjeições Total
emocionais
cognitivas volitivas persuasivas formulaicas
Brás Cubas 112
16 (14,29%) 75 (66,96%) 7 (6,25%) 7 (6,25%) 7 (6,25%)
narrador (67,07%)
Brás Cubas 24
6 (25%) 9 (37,5%) – 8 (33,34%) 1 (4,16%)
Personagem (14,37%)
Dona 9
4 (44,45%) 3 (33%) 1 (11,11%) 1 (11,11%) –
Eusébia (5,39%)
22
Virgília 11 (50%) 6 (27,27%) 2 (9,09%) – 3 (13,64%)
(13,17%)
167
Total 37 (22,16%) 93 (55,69%) 10 (5,99%) 16 (9,58%) 11 (6,58%)
(100%)
Fonte: dados da pesquisa, 2021.

Com base nos dados levantados, pode-se perceber que Brás Cubas narrador
profere, em sua maioria, interjeições emocionais e cognitivas – respectivamente 14,29%
e 66,96% do total de interjeições proferidas por ele. A seguir, são apresentadas
manifestações interjetivas proferidas por Brás Cubas narrador, analisadas com base nos
Quadro 1 e 2, apresentados anteriormente.

(01) Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da


minha observação, mas desculpou-se dizendo que a
veracidade absoluta era incompatível com um estado
social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter
à custa de embaçadelas recíprocas... Ah! lembra-me
agora: chamava-se Jacó Tavares. (ASSIS, [1881] 1992, p.
118).

(02) Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a


piedade, que me desarmava ante a candura da pequena,
e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma
mulher coxa! (ASSIS, [1881] 1992, p. 67).

No fragmento (01), Brás Cubas narrador faz a emissão de uma interjeição


emocional: é um sentimento de surpresa diante do fato de ter se lembrado do nome da
outra personagem, uma vez que, dois parágrafos antes deste em que se encontra a
manifestação interjetiva em análise, o narrador confessa: “o homem mais probo que
conheci em minha vida foi um certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares, não me recorda

16 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

bem o nome” (ASSIS, [1881] 1992, p. 118). Assim, manifesta-se um sujeito emocional, que
vive a emoção no momento mesmo de proferir a interjeição “Ah!”. Brás Cubas está
envolvido, emocionalmente, com ele mesmo e com a própria mensagem (conteúdo) do
seu dizer. Está implícito, na emissão dessa interjeição, o estado mental contextualizado
<eu estou surpreso por ter me lembrado do nome do Jacó Tavares>.
Já no fragmento (02), Brás Cubas narrador profere uma interjeição cognitiva
tendo em vista a surpresa de uma voz sair-lhe por dois motivos: a ternura que sentia por
Eugênia, ainda que ela tivesse uma deficiência física, e o medo de amá-la e afeiçoar-se a
ela devido à deficiência física dela. Brás Cubas narrador, na manifestação da interjeição
assinalada, revela-se envolvido emotiva e cognitivamente com o conteúdo de seu dizer.
Desse modo, pode-se perceber que Brás Cubas narrador é um sujeito interjetivamente
emocional e cognitivo, na medida em que deixa transparecer, no texto, suas emoções
(sustos, anuências repentinas etc.) e suas opiniões e juízos de valor, ao comentar, de
maneira interjetiva, aquilo que o rodeia. Ao emitir a interjeição cognitiva assinalada no
fragmento (02), Brás Cubas narrador deixa entrever o estado mental contextualizado <eu
penso que uma mulher coxa pode despertar sentimentos dúbios>.
Quando se observa a Tabela 1, nota-se que as manifestações interjetivas de Brás
Cubas personagem são, em sua maioria, cognitivas e persuasivas – respectivamente
37,5% e 33,34% do total de interjeições emitidas por ele. Embora Brás Cubas personagem
e Brás Cubas narrador sejam a mesma pessoa, mas sujeitos distintos, separados pela
morte – o livro inicia-se justamente com o óbito do autor –, as manifestações interjetivas
predominantemente emitidas são distintas. Assim, o narrador não permanece com as
características do personagem. Dentre as manifestações interjetivas emocionais, embora
não sejam maioria, merece destaque esse borbotão interjetivo:

(03) .................
.................
..............!..
..!..............
................!
(ASSIS, [1881] 1992, p. 86).

Como no fragmento selecionado há três sinais exclamativos e não há como


identificar o conteúdo proposicional, opta-se por afirmar que são manifestações
interjetivas aos borbotões: uma série encadeada de interjeições proferidas por uma
mesma personagem. Para Caixeta (2015), o falante, ao proferir interjeições aos borbotões,
encontra-se num “êxtase interjetivo”. Essa série de interjeições do fragmento (03) só é
possível no campo da escrita, já que são gráficas. Parece serem manifestações interjetivas
emocionais não experienciais, o que significa dizer que o sujeito interjetivo vive abrupta
e provisoriamente as emoções sentidas. Machado de Assis utiliza-se dos recursos do
universo gráfico (da escrita) para sinalizar uma emoção vivida, presentificada por Brás
Cubas personagem. O Capítulo LV – O velho diálogo de Adão e Eva, do qual foi retirado o
fragmento (03), é inteiramente gráfico, com exceção das rubricas sinalizadores de quem
é o turno: ou de Brás Cubas, ou de Virgília. Se na tradição é dito que as interjeições são
palavra-frase, as manifestações interjetivas presentes no Capítulo LV criam uma

17 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

atmosfera textual de sedução – quem sabe, de “pecado original”. Machado de Assis, por
meio das interjeições gráficas criadas por ele mesmo – não há como Brás Cubas proferir
interjeições gráficas – envolve Brás Cubas num atmosfera emocional. De fato, não há
como apresentar o(s) estado(s) mental(is) para as interjeições gráficas do fragmento (03).
O que se pode afirmar é que há, nesse capítulo, numa perspectiva intertextual, semioses
interjetivas (e literárias) para o “velho diálogo de Adão e Eva”.
Essas interjeições gráficas são uma peculiaridade de Machado de Assis nas
Memórias. Tal recurso parece ser, na literatura brasileira, inovador: primeiro porque
Machado de Assis utiliza-se apenas de sinais gráficos para compor um capítulo do livro;
segundo porque é impensável, numa narrativa escrita, a ausência de palavras no
desenrolar de uma cena. Deve-se salientar que nem todos os turnos do Capítulo LV são
marcados por tom exclamativo; somente os marcados devem ser considerados
interjetivos. Esse capítulo das Memórias indica que Machado de Assis é um escritor de
recursos semióticos sofisticados. Nesse sentido, pode-se dizer que é um metaescritor:
põe em evidência uma “reflexão” sobre o funcionamento da linguagem, o que pode ser
percebido principalmente no uso singular de interjeições gráficas.
Quanto a outras manifestações, destacam-se as seguintes:

(04) Sentei-a [Sabina] ao pé de mim, falei-lhe do marido, da


filha, dos negócios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava
linda como os amores. O marido viria mostrar-ma, se eu
consentisse.
– Ora essa! irei eu mesmo vê-la. (ASSIS, [1881] 1992, p.
111).

(05) – Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para
te não molestar? Vem cá, chiquito, não sejas assim
desconfiado comigo... Amei a outro; que importa, se
acabou? Um dia, quando nos separarmos...
– Não digas isso! bradei eu. (ASSIS, [1881] 1992, p. 43).

A interjeição presente no fragmento (04), proferida por Brás Cubas personagem,


é do tipo cognitiva, uma vez que deixa entrever uma reação de espanto diante do que
foi dito por sua irmã, Sabina, como se fosse desonroso pedir que o marido dela viesse
trazer a filha para vê-lo: ele mesmo, Brás, iria até ela – embora a sobrinha entre na sala
em que estavam, instantes depois. Assim, a personagem emite experencialmente um
juízo de valor, no qual subjaz o julgamento complexo <eu penso que seria uma desonra
exigir que sua filha viesse me ver, ao invés de eu ir vê-la>. Brás Cubas personagem
revela-se, ao proferir a interjeição assinalada anteriormente, um sujeito que julga
emotiva e experencialmente a situação na qual se encontra inserido.
Já no fragmento (05), tem-se uma manifestação interjetiva do tipo persuasiva.
Brás Cubas personagem brada, exigindo que a outra personagem não falasse sobre a
separação dos dois. A emotividade de Brás Cubas personagem, nessa ocorrência
interjetiva, é de natureza experiencial. Na interlocução, intermediada pela manifestação
interjetiva assinalada no fragmento (05), está implícito o julgamento complexo <eu quero

18 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

que você, Marcela, não me diga o que se passou com você quando se separou de seu
amante anterior>.
Quanto à Dona Eusébia, percebe-se que profere, em sua maioria, manifestações
interjetivas emocionais – 44,45% do total de interjeições emitidas por ela. No fragmento
transcrito a seguir, percebem-se manifestações interjetivas diversas proferidas por Dona
Eusébia.

(06) Creio que chegou a cingir-me com o seu par de braços


robustos. Fez-me sentar ao pé de si, na varanda, entre
muitas exclamações de contentamento:
– Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um
homenzarrão! E bonito! Qual! (ASSIS, [1881] 1992, p. 61).

O fragmento (06) evidencia que Dona Eusébia é uma personagem de “muitas


exclamações”. Pode-se dizer que ela se encontra, nesse fragmento, em “êxtase
interjetivo”. As ocorrências interjetivas, no fragmento, são uma sequência de
manifestações interjetivas de naturezas diferentes: “Ora (,o Brasinho)!” e “Qual!” são
emocionais, ao passo que “Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E
bonito!” são uma sequência de interjeições cognitivas. Este fragmento ilustra o que
Caixeta (2015, p. 206) chama de “complexo interjetivo”, fenômeno no qual “há
sinalização de mais de um estado mental corrente do falante”.
Assim, por meio do complexo interjetivo, Machado de Assis colore emocional
e emotivamente o fragmento, a fim de presentificar a emoção de Dona Eusébia: surpresa
diante de Brás Cubas, não mais um menino, mas um homem, e avaliação emotiva ao
dizer “Um homem!”, “Um homenzarrão!” e “E bonito!”. A sucessão de várias
interjeições proferidas aos borbotões confere um tom dramático à cena. Dona Eusébia
vive, no momento mesmo de se manifestar emocional e emotivamente, um êxtase
interjetivo. O estado mental contextualizado para as interjeições emocionais proferidas
por Dona Eusébia, no fragmento (06) é <estou me sentindo surpresa com a mudança de
Brás Cubas>. Já o estado mental contextualizado para as manifestações interjetivas
cognitivas, no fragmento em análise, é <eu penso que Brás Cubas hoje é um homem
adulto e bonito>.
Outro fragmento que merece destaque é o seguinte:

(07) Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma


borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e
começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. D.
Eusébia deu um grito, levantou-se, praguejou umas
palavras soltas: – T'esconjuro!... Sai, diabo!... Virgem
Nossa Senhora!... (ASSIS, [1881] 1992, p. 62).

Percebe-se, nesse fragmento (07), por meio do complexo interjetivo, uma


coloração emocional e emotiva pretendida pelo escritor – considerando que o narrador
seja controlado pelo escritor –, uma vez que ele afirma que Dona Eusébia “deu um grito”
e “praguejou”. No fragmento, notam-se ocorrências interjetivas de naturezas distintas:
“T'esconjuro!...” é uma interjeição volitiva; “Sai, diabo!...”, persuasiva; e “Virgem Nossa

19 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

Senhora!...”. O estado mental contextualizado para a primeira ocorrência é <Eu desejo à


borboleta algum mal>; para a segunda é <Eu ordeno à borboleta que ela saia>; para a
terceira é <Eu me sinto incomodada com tudo isso>.
Quanto à Virgília, 50% das manifestações interjetivas proferidas por ela são
emocionais: estamos diante de uma personagem absolutamente dada a emoções vívidas.
Os fragmentos a seguir ilustram as manifestações interjetivas proferidas por Virgília.

(08) Inclinei-me para ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe


os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o
perigo; o terror apaziguou-a.
— Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não deixo
meu filho; se o levar, estou certa de que ele me irá buscar
ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quiser,
ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus! meu Deus! (ASSIS,
[1881] 1992, p. 97).
(09) . . . . . ! (ASSIS, [1881] 1992, p. 86).

A sucessão de manifestações interjetivas no fragmento (08) é do tipo emocional,


pois há uma descarga emocional presentificada por parte da personagem. Percebe-se um
relevo expressivo encabeçado pela manifestação interjetiva “Ah!” seguida pela repetição
interjetiva “meu Deus!”. São manifestações emocionais proferidas aos borbotões, o que
fornece à situação (e ao texto) uma coloração emocional. O estado mental
contextualizado desse êxtase interjetivo do fragmento (08) é <Eu me sinto perturbada
com a situação em que nos encontramos>. Embora esse êxtase interjetivo encontra-se
num turno dialogal, a emoção nele ou por ele sugerida não se direciona ao interlocutor
Brás Cubas narrador/personagem – Virgília se deixa expor emocionalmente após o
conteúdo de sua fala, ao contrário de, por exemplo, de Brás Cubas personagem e de
Dona Eusébia, que se manifestam interjetivamente na transição de turnos.
Já no fragmento (09), tem-se, assim como no fragmento (03), de Brás Cubas
personagem, uma interjeição gráfica do tipo emocional, transcrita também do Capítulo
LV. A ausência de palavras, neste capítulo, exige do leitor um (possível) protagonismo,
já que ele deve “construir” o diálogo entre Brás Cubas e Virgília. Essa “construção” seria
guiada pelo título “O velho diálogo de Adão e Eva”, como já mencionado. Dessa forma,
Machado de Assis, colore emocionalmente o capítulo, imprimindo nele dramaticidade
singular. As manifestações interjetivas, devido ao seu poder de encapsulação emocional
e emotiva, são um instrumento para a criação de uma ambiência expressiva vívida.
Nesse Capítulo LV, marcadamente interjetivo, Machado de Assis denuncia-se a si mesmo
como um manipulador de interjeições; de emoções, portanto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, analisou-se o fenômeno interjetivo em uma das mais


importantes obras da Literatura Brasileira: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis. Para isso, utilizou-se da classificação proposta por Caixeta (2015):
manifestações interjetivas emocionais e emotivas (volitivas, cognitivas, persuasivas e
formulaicas).

20 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MATEUS TAVARES COSTA | GEOVANE FERNANDES CAIXETA

Foram identificadas as manifestações interjetivas proferidas por quatro


personagens – Brás Cubas narrador, Brás Cubas personagem, Dona Eusébia e Virgília.
Foi identificado um total de 167 manifestações, das quais 130 eram do tipo emotivas; isso
permite concluir que, na maioria das vezes, essas personagens manifestam-se de forma
emotivamente experiencial, na medida em que proferem aquilo que vivem: juízos de
valor, ordens, desejos ou comportamentos sociais.
Analisando as manifestações interjetivas identificadas, percebeu-se:

● Brás Cubas narrador é uma personagem emocional e emotivamente cognitiva


nas suas reações com os elementos da rede interjetiva, pois deixa transparecer
suas emoções (sustos, anuências, ironias etc.) e suas opiniões e juízos de valor.
É a mais interjetiva das personagens (emite 67,07% das manifestações
interjetivas selecionadas) – isso porque, em primeiro lugar, detém o turno na
maior parte do tempo; em segundo lugar, é um defunto autor, o que faz com
que ele não precise ter receio de se manifestar subjetivamente, por mais
mordazes que sejam seus posicionamentos (66,96% de suas manifestações
interjetivas são cognitivas). Além disso, profere poucas interjeições do tipo
volitivas, persuasivas e formulaicas, pois, por ser um defunto autor, já não
manifesta interjetivamente seus desejos e ordens, e já não está subordinado a
regras sociais.

● Brás Cubas personagem é uma personagem emotivamente cognitiva e


persuasiva nas suas reações com os elementos da rede interjetiva. Machado de
Assis faz com que o personagem deixe transparecer, por meio das
manifestações interjetivas, as opiniões e ordens. O fato de as manifestações
interjetivas persuasivas serem recorrentes nas falas dessa personagem é algo
que o próprio autor, travestido de narrador, deixa transparecer no Capítulo XI,
em que afirma que Brás era um “menino diabo” (ASSIS, [1881] 1992, p. 32), e
que chegava a fazer de cavalo um dos escravos, revelando-se uma criança dada
à pirraça e às peraltagens, ou seja, um sujeito imperativo.

● Dona Eusébia se caracteriza pela emissão de interjeições de tipos diversos. A


maioria de suas manifestações interjetivas, 44,45% das por ela proferidas, é do
tipo emocional e, em muitos casos, essa emissão é feita aos borbotões. Dona
Eusébia comumente se encontra num “êxtase interjetivo”. Dessa forma, Dona
Eusébia manifesta-se, predominantemente, como uma personagem emocional.
Sua caracterização é feita por Machado de Assis como sendo alguém de “muitas
exclamações de contentamento”; de um “alvoroço, um prazer tão sincero”
(ASSIS, [1881] 1992, p. 61). O fato de ela não proferir nenhuma interjeição
formulaica revela que não está muito preocupada com padrões e
comportamentos sociais.

● Virgília é uma personagem emotivamente emocional – 50% de suas


manifestações interjetivas são emocionais, deixando transparecer, na grande
maioria das vezes, o que ela está sentindo. Merece destaque o Capítulo LV – O

21 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MACHADO DE ASSIS: UM MANIPULADOR DE INTERJEIÇÕES

velho diálogo de Adão e Eva, no qual Virgília e Brás não proferem nenhuma
palavra, ficando a cargo do leitor preencher as lacunas deixadas por Machado
de Assis. Outro detalhe importante é que essa personagem, amiúde, profere as
mesmas manifestações interjetivas, o que reforça sua conduta social
(forçosamente) retilínea. Virgília, ao proferir interjeições formulaicas (13,64%
das proferidas por ela), revela-se uma personagem que se preocupa com
padrões e comportamentos sociais, diferentemente de Dona Eusébia. O fato de
Virgília ser casada com Lobo Neves, um homem de carreira política e vida
pública, pode fazer com que ela intensifique essa preocupação.

Por meio deste trabalho, identificou-se a existência de manifestações interjetivas


gráficas: manifestações de ordem emocional que não são expressas lexicalmente, mas
apenas graficamente. Não é possível descrever o conteúdo proposicional dessas
interjeições gráficas; é possível reconhecer nelas a habilidade de Machado de Assis para
manipular recursos semióticos diversos a fim de instaurar (ou sugerir) semioses
imprevisíveis. Essas interjeições gráficas revelam, por excelência, a habilidade de
Machado de Assis de criar semioses diversas e inusitadas.
Segundo Rosenfeld (1976), o autor, por meio de recursos diversos, torna as
personagens inesgotáveis e insondáveis. Não seria as manifestações interjetivas
proferidas pelas personagens, nas Memórias, um desses recursos capazes (i) de colorir,
expressiva, emocional e emotivamente, as trocas comunicacionais (ou entre as
personagens, ou entre o narrador e o leitor) e (ii) de singularizar, social e
psicologicamente, o falante interjetivo. Talvez a configuração esquemática de que fala
Rosenfeld (1976) seja rígida apenas na produção da narrativa. Caberia ao leitor perceber
que as manifestações interjetivas presentes nas Memórias são uma possibilidade de
buscar o inesgotável e o insondável das personagens.
As ocorrências de interjeições nas Memórias têm a mesma origem: Machado de
Assis. Esse escritor manipula cada enunciado interjetivo a ser proferido pelas
personagens, as quais, assim manipuladas, deixam transparecer, de maneira abrupta e
vívida, ora uma emoção, ora um desejo, ora um pensamento, ora uma ordem, ora um
comportamento social. Nas Memórias, Machado de Assis oferece ao leitor, por meio das
interjeições proferidas pelas personagens, a possibilidade de contribuir para a
montagem dos perfis das personagens. No desenrolar da narrativa, a personagem só
profere o que o “bruxo” selecionou em seu “caldeirão” a fim de fazer a magia acontecer;
na recepção da narrativa, o leitor, ao deparar-se com as manifestações interjetivas, pode
ir além da configuração esquemática – pode perceber que o falante interjetivo (no caso,
as personagens de Memórias) é um sujeito da imprevisibilidade no uso da língua(gem).
. . . . . .! . . . . . .?! . . . . . .! . . . . . .?!

REFERÊNCIAS

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2008.

BRAIT, Beth. A personagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985.

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conceito teórico: abrangências e convívios nocionais. 2011. 418 p. Tese (Doutorado em
Línguas e Literaturas Modernas), Universidade de Coimbra, 2011.

23 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 24-37, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Ler ou não ler os clássicos: eis a questão

To read or not to read the classics: that is the question

MONALLISA CRISTINA DA SILVA


Graduada em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

CAROLINA DA CUNHA REEDIJK


Professora orientadora - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: Estudos recentes apontam, de forma geral, uma recusa, por parte dos jovens estudantes,
dos cânones da literatura. Por que essa rejeição existe? Este trabalho buscou responder a esse
questionamento, problematizando a forma como a Literatura Clássica é normalmente trabalhada
no contexto escolar e buscando alternativas de metodologias diferentes para a leitura dos
clássicos, com vistas a minimizar a rejeição normalmente tida pelo alunado. A pesquisa foi
desenvolvida a partir de leituras de livros, artigos e documentos que discutem o tema, sendo
reafirmada a existência de falhas no modo como a Literatura Clássica é trabalhada no contexto
escolar. A partir disso, pautando-se em buscas de trabalhos já publicados, foram apresentadas
sugestões de metodologias para o trabalho com a Literatura Clássica com o intuito de aproximar
os estudantes da leitura do cânone.
Palavras-chave: Cânone. Ensino. Escola. Literatura.

Abstract: Recent researches point to, generally, refusing the literature canon by students. Why
does the rejection of that type of literature occur? This work tries to answer the question,
problematizing the way Classical Literature is usually presented in the school context and
searching for alternatives of different methodologies for the reading of classics, willing to
minimize the rejection by the young readers. The research was developed by reading books,
articles, and documents that discussed the theme and reaffirmed the presence of flaws in how
Classical Literature is worked on in the school context. From this, and based on research of
already published works, suggestions of methodologies for the approach with Classic Literature
were presented, with the intention of bringing students closer to reading the canon.
Keywords: Canon. Teaching. School. Literature.

1 INTRODUÇÃO

Italo Calvino (2007, p. 9), em seu livro Por que ler os clássicos, propõe quatorze
definições para o que seja o clássico. Uma delas é: “os clássicos são aqueles livros dos
quais, em geral, se ouve dizer: - Estou relendo... - e nunca - Estou lendo... -”. Nota-se que
isso ocorre com mais frequência na considerada idade madura, não sendo muito comum
na juventude, apesar de ser nesse período que ocorre o primeiro contato com essas obras.

24 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

É de se esperar que esse primeiro encontro se dê no ambiente escolar, pressupondo a


obrigatoriedade que o colégio tem de apresentar a Literatura Clássica aos seus alunos.
O acesso à Literatura constitui um direito, o que, também, justifica o seu
aparecimento na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse documento cita
exemplos de textos literários que devem ser trabalhados no Ensino Fundamental e
Médio e dentre eles é mencionado o clássico (no que diz respeito ao cânone) (BRASIL,
2018). Infere-se, portanto, que seja obrigatória a apresentação do repertório cultural
literário aos educandos.
Não obstante a essa obrigatoriedade, é debatido o fato de as escolas tentarem
impor Literatura Clássica antes da hora e/ou de forma, julgada, incorreta, aos alunos.
Isso pode ser visto como fator contribuinte para a formação de não leitores, o que, em
geral, leva a afirmações de que os jovens não gostam de ler e de que os jovens estão lendo
menos nos últimos tempos, as quais precisam ser analisadas em outros vieses.
Algumas pesquisas realizadas por Souza (2020) e por Brito et al (2014)
esclarecem que o fato não é que os jovens não possuem mais o hábito de leitura, eles
leem, mas leem aquilo que a eles interessam, e muitas vezes não é aquilo que as escolas
lhes oferecem. Dessa maneira, o que fica perceptivo para Souza (2020, p. 4) é que existe
mais uma resistência a alguns tipos de leitura do que a sua redução ou falta.
A partir dessas colocações, o que se observa é que, apesar de as escolas
reconhecerem o dever de apresentar o legado cultural literário aos seus discentes, estes,
por sua vez, nem sempre recebem bem a Literatura Clássica. Nesse contexto é que
surgem as questões orientadoras deste estudo: de que decorre essa rejeição, por parte do
alunado, à Literatura Clássica? Como ela pode ser minimizada? Que metodologias
podem ser adotadas?
Assim, o objetivo geral deste trabalho foi problematizar a forma como a
Literatura Clássica é normalmente trabalhada no contexto escolar, buscando alternativas
de metodologias diferentes para a leitura dos clássicos, com vistas a minimizar a rejeição
normalmente tida pelo alunado.
Para tanto, apresentaram-se razões para que se deva trabalhar a Literatura
Clássica e, ao mesmo tempo, razões para o cânone ser criticado e, por vezes, rejeitado.
Essas discussões foram acrescidas de outras que evidenciam como normalmente
acontece o trabalho com a Literatura Clássica, o que contribui para a prevalência do
preconceito de que os jovens não leem e mostram a necessidade de adoção de novas
formas metodológicas para o estudo dos clássicos.
Acredita-se que, para que o aluno se identifique e consiga trabalhar com as
obras canônicas, deve existir um trabalho bem planejado desde os anos iniciais do Ensino
Fundamental. É importante que, inicialmente, seja trabalhado o incentivo à leitura e que
sejam apresentadas leituras mais simplificadas, que vão ao encontro dos gostos dos
alunos, a fim de contribuir para a prática processual e contínua da leitura. Assim,
posteriormente, os estudantes estarão mais preparados para explorar o campo em que
estão presentes obras mais rebuscadas, sem que se vejam diante de um intransponível
obstáculo ao seu aprendizado. Dessa forma, o estímulo causado pelo professor, a
apresentação de não obrigatoriedade da leitura e a apresentação das obras clássicas
mediante as adaptações, portanto, uma nova metodologia, possibilitará ao estudante
uma melhor compreensão das obras canônicas, assim como a percepção de que a

25 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

Literatura Clássica é um agente colaborador para o seu crescimento intelectual e


humanístico.
Nesse contexto, o estudo mostra-se relevante por investigar como o trabalho
com os clássicos acontece na escola, tendo em vista que os documentos oficiais
estabelecem a necessidade de se trabalharem os clássicos durante o período escolar.
Assim, a busca por novas formas metodológicas para o trabalho com o cânone é dessa
forma justificada, visto que a maneira de se focar e de se trabalhar com o cânone tem
efeitos no desenvolvimento da leitura, assim como no gosto por ela. Além disso, este
estudo mostra-se como uma oportunidade de aprofundamento de estudos nessa área,
visto que a autora é graduanda em Letras e, futuramente, estará apta a atuar de forma
adequada no contexto do trabalho com a Literatura em sala de aula.
Para a construção das reflexões empreendidas neste estudo, pautou-se num
caminho metodológico baseado em estudos bibliográficos e webliográficos, com
levantamento de artigos, livros e documentos que discutem a temática. Partiu-se do
levantamento do significado do que seja o clássico e sua aplicação na realidade escolar.
Depois, apresentaram-se e discutiram-se documentos que regulamentam a
obrigatoriedade do trabalho com o cânone e que direcionam as ações por parte dos
sujeitos envolvidos. Num segundo momento da pesquisa, foram apresentadas novas
formas metodológicas para o trabalho com a Literatura Clássica em sala de aula,
partindo de um compilado de trabalhos já publicados que mostraram práticas exitosas.

2 O QUE É O CLÁSSICO?

“Clássico”, segundo o dicionário online ([s. d.], [s. p.]), pode possuir vários
significados. Suas significâncias encontram espaços nas áreas literárias, artísticas,
populares, esportistas etc. De acordo com as classes gramaticais, a palavra se classifica
como um adjetivo ou como um substantivo masculino. Sua etimologia advém do latim
classicus, “de primeira classe”. Eis aqui alguns significados disponibilizados:

● “[Literatura] Relativo à Antiguidade greco-latina ou aos grandes autores e à


arte dos séculos XVI a XVIII: as línguas clássicas; o teatro clássico; a arquitetura
clássica”.
● “[Artes] Considerado como um exemplo em belas-artes”.
● “[Popular] Que se reconhece como uma situação consagrada: seu atraso já
clássico na empresa”.
● “De natureza habitual; corrente, corriqueiro: tomamos o clássico cafezinho”.
● “[Esporte] Jogo entre equipes de dois clubes importantes”.

Apesar de ser importante compreender a origem da palavra em estudo, seus


significados e classificações, essas definições do que seria o clássico não são suficientes
para se entender tudo o que esse termo tende a abarcar, especificamente, no campo
literário. Italo Calvino (2007), como dito na seção introdutora deste trabalho, aponta
quatorze definições diferentes para o clássico, certificando-nos de que o termo é,
realmente, muito amplo. Na sequência, é apresentado um resumo com alguns
apontamentos de diferentes autores.

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MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

Calvino (2007) pontua que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer
aquilo que tinha para dizer” (p. 11), portanto, cada leitura trará uma nova descoberta
diferente da anterior; “um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem
de discursos críticos sobre si [...]” (p. 12), dessa forma, ele tem a capacidade de nos
ensinar algo e de formar leitores críticos; “é clássico aquilo que persiste como rumor
mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (p. 15), assim, o clássico tem o
poder de perpassar o tempo se mantendo sempre atual; “[...] os clássicos servem para
entender quem somos e aonde chegamos [...]” (p. 16), desse modo, ele é capaz de fazer
com que compreendamos acerca da condição humana ao longo da história,
oportunizando o conhecimento de gerações passadas.
Corroborando as definições de Calvino, Ana Maria Machado (2002, p. 15) relata
que “clássico não é livro antigo e fora de moda. É livro eterno que não sai de moda”. Em
outras palavras, os clássicos são atemporais. Podem sim constituir seu linguajar
ultrapassado, mas o tema constituinte ultrapassa qualquer barreira atemporal
dialogando com questões profundas e universais.
Thomas Eliot (1945, p. 78 apud RODRIGUES, 2016, p. 64) indica que “um
clássico só pode aparecer quando uma civilização estiver madura, quando uma língua e
uma literatura estiverem maduras [...]”. Nesse mesmo viés, Marinês P. Rodrigues (2016,
p. 65) explica que “os clássicos se originam a partir de uma civilização que comprovou
sua maturidade, tanto no aspecto cultural quanto linguístico, no momento em que se
manifestam as condições necessárias para seu surgimento”.
Apesar de tudo que foi exposto, ainda ficam os questionamentos: que obra
possui qualidade e qual não? Quais livros são dignos de leitura? Nessa perspectiva,
Machado de Assis, Shakespeare, Aluísio de Azevedo, Homero, Chaucer e Graciliano
Ramos podem ser considerados clássicos, pois são suas diferenças que fazem com que
se tornem tão especiais.
Muitas obras, dos autores citados, fizeram sucesso na época em que foram
lançadas, mas ainda ganham destaques nos dias atuais, perpassando por diferentes
gerações. Cada um dos autores citados, de diferentes modos, nos fornece dados
históricos e culturais que são essenciais para nossa formação humana e acadêmica.
Machado de Assis, por exemplo, em Dom Casmurro, trabalha, mesmo que
inconscientemente (ou não), o papel da mulher naquela época. Aluísio de Azevedo, em
O Cortiço, retrata a escravidão e problemas sociais vividos na época. Os Contos de
Cantuária, escritos por Geoffrey Chaucer, expõem como as pessoas viviam em suas
diversas camadas sociais.
Desse modo, os poucos elementos aqui apresentados fazem com que esses
autores sejam considerados clássicos, pois as obras desses escritores nos permitem
debater sobre a condição humana e sobre as relações sociais e políticas de um
determinado momento histórico. Assim, para Rodrigues (2016, p. 71), “essas obras
constituem, através das gerações, um arcabouço de textos que servem de referência para
se ensinar literatura, pois pertencem às mais variadas escolas literárias e ainda servem
para que possamos estabelecer um percurso da literatura através dos tempos”. Clássico,
portanto, é uma referência, um modelo a ser seguido, uma inspiração.

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LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

2.1 QUAL A RELAÇÃO DO CÂNONE COM A ESCOLA?

A BNCC (BRASIL, 2018, p. 499) orienta a progressão das aprendizagens e


habilidades. Segundo o documento, “em relação à literatura, a leitura do texto literário,
que ocupa o centro do trabalho no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear
também no Ensino Médio”. Portanto, para que a leitura do clássico se torne profícua, é
de suma importância que os docentes do Ensino Fundamental e posteriormente os do
Ensino Médio desenvolvam nos alunos o gosto pela atividade de ler, trabalhando correta
e gradualmente esse estímulo, o que normalmente não acontece.
O que ocorre, geralmente, é um contato com a disciplina muito tardio, por isso
ler Gregório de Matos, Machado de Assis, Shakespeare e outros é cansativo e assustador
para os alunos. Esse tipo de leitura se torna distante para eles, pois não houve um
processo que facilitasse esse encontro. Não foi trabalhado, antes dos alunos começarem
a lerem tais autores, a teoria da literatura e o gosto por ela, por exemplo. Outro fator que
desestimula o prazer pela leitura é a obrigação. Ler para fazer uma avaliação, um
resumo, prestar um vestibular etc. faz com que o estudante não consiga usufruir da obra.
Consequentemente, a maturidade que não foi trabalhada atrapalha a compreensão dos
textos.
Há que se salientar que gostar de ler não é uma obrigação. Assim como existem
pessoas que não gostam de jogar bola, existem, também, aquelas que não gostam de ler,
ainda mais livros complexos. Porém, Brito et al. (2014, p. 47) citam uma palestra
pronunciada pelo professor Frederico de Sousa Silva (2013) no IX Congresso Mineiro de
Formação de Professores para a Educação Básica, com o título Ensino de Literatura no Ensino
Médio, em que ele afirma que

[...] é preciso apresentar a literatura clássica e dita canônica


aos alunos, de maneira que eles façam o gustar (do Latim:
provar, tomar o gosto) em relação à leitura. Se é gustar,
isso significa que o aluno pode ou não aprovar a leitura,
mas é preciso passar por isso, pelo gustar, para saber se de
fato ele vai começar a gostar e daí progredir nessa leitura
até por conta própria. O professor ainda afirmou que, se o
aluno não ler Camões, como poderá gostar de Camões,
por exemplo.

Para Brito et al. (2014, p. 48), “a literatura da escola é do gustar (provar) e não a
do gostar (apreciar), pois escolas têm um objetivo específico, o aprendizado”. Mas esse
objetivo de fazer com que o aluno aprenda não impede que os professores façam com
que essa aprendizagem seja um tanto quanto prazerosa. Segundo Calvino (2007), de fato,
as leituras da juventude podem ser pouco proveitosas, seja pela impaciência, seja pela
distração, seja pelas inexperiências. Para o escritor, os clássicos não podem ser lidos por
obrigação, mas sim por amor. Italo Calvino (2007, p. 13) ainda profere que

[...] a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal
um certo número de clássicos dentre os quais (ou em
relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus"

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MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para


efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são
aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

É inegável, também, que exista uma falha no modo como os clássicos são
levados para sala de aula, pelo fato de haver professores que focam apenas
conhecimentos informativos das obras, dos autores e de épocas, não oferecendo um
caminho que oportunize o interesse pela literatura e pela leitura. Antonio Candido (1972,
p. 82) já afirmava que “os estudos modernos de literatura se voltam mais para a estrutura
do que para a função”.
Fica claro que, além dessa necessidade de formação intelectual, existe o dever
de se trabalhar a literatura por ela ser essencial na formação humana. Candido (1995, p.
249) já assegurava que a função fundamental da literatura é a de humanizar o homem:
“a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna
mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade. O semelhante”. Porém, o
que se percebe é que, no processo de formação, os educadores não foram orientados a
passar o caráter humanizador da literatura adiante. Portanto, segundo Brito et al. (2014,
p. 46), não se deve atribuir a culpa total dessa falha aos professores, pois muitos deles
não tiveram uma formação adequada em relação à forma como trabalhar os clássicos no
contexto escolar.

2.2 COMO FACILITAR A LEITURA DE UM CLÁSSICO?

Partindo-se do apresentado, o que se espera, antes de começar os estudos com


os clássicos, é que os professores do Ensino Fundamental trabalhem, primeiramente, a
parte teórica da literatura. Isso significa que o educador deva explicar o porquê da
importância da leitura, quais suas vantagens etc. Segundamente, deve-se instigar o gosto
pela literatura, estimulando a de livros com os quais os educandos se identifiquem. Isso
permitirá que ele “entre” no mundo dos clássicos mais naturalmente, partindo do
conhecido para o desconhecido.
Costa (2016), citando Bragatto Filho (1995), declara que o trabalho com a leitura
literária deve ocorrer sem pressões, pois o contrário pode fazer com que os alunos sintam
até mesmo repulsa pela leitura. Portanto, trabalhar a literatura de forma espontânea
possibilitará que os alunos desenvolvam laços afetivos com os livros, aumentando,
também, o gosto e a familiaridade com a leitura. Como foi evidenciado, o professor,
antes de qualquer coisa, deve tornar a literatura como uma experiência e não como um
conteúdo avaliativo. Dessa forma, o aluno conseguirá construir um sentido para a
leitura.
Ainda, de acordo com Costa (2016), citando Cosson (2014), é importante que os
professores respeitem a variedade de gêneros, autores e obras, que os alunos escolhem,
em vez de impor determinados títulos a eles, facilitando, então, a partida para a
construção do leitor profícuo. Esses professores não devem privilegiar uma obra
simplesmente por ser canonizada. No entanto, essa também não deve ser excluída, tendo
em vista que o cânone representa nossa identidade cultural.

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LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

No Ensino Fundamental seria interessante a prática da leitura compartilhada e


em voz alta dos clássicos. Isso facilita uma melhor compreensão do texto e promove a
discussão sobre a temática apresentada. Outra estratégia seria a leitura dos textos
adaptados. Nesse viés, vale destacar a ressalva de Freitas (2016, p. 17-18): “espera-se que
a leitura de obras clássicas adaptadas funcione apenas como ponto de partida para a
leitura das obras originais e não que as substitua, uma vez que a adaptação não apresenta
toda a essência linguística da obra original”.
Seguindo o apresentado, os alunos estarão mais preparados para “encarar” os
clássicos. “Concluído o Ensino Fundamental, supõe-se que os alunos que ingressam no
Ensino Médio já estejam preparados para a leitura de textos mais complexos da cultura
literária”. (BRASIL, 2006, p. 63). Possuindo-se esse conhecimento prévio de literatura, o
aprofundamento ocorrerá de forma mais natural, o que não quer dizer que os discentes
não terão dificuldades, uma vez que essas obras continuarão tendo suas linguagens
rebuscadas, interpretadas como difíceis. Por isso, esses tipos de obras devem ser
trabalhados com mais cautela, levando-se em conta alguns aspectos, para a melhor
compreensão do alunado. Para Martins e Revoredo (2009, p. 2), “não basta apenas
selecionar o livro. É necessário trabalhá-lo adequadamente em sala de aula”.
Sugere-se que a leitura de um clássico, sem a necessidade de estratégias
facilitadoras e sem interrupções, se dê no decorrer dos três anos do Ensino Médio, visto
que a maturidade estará mais aguçada. Porém, isso não impede e não quer dizer que
esses métodos não devam ser utilizados com eles. Deve existir, por parte do mediador,
uma reflexão sobre a prática mais adequada a ser utilizada caso haja necessidade.

2.2.1 Quais metodologias adotar no trabalho com a Literatura Clássica?

Pensando-se em apresentar metodologias diferentes das que normalmente são


adotadas, foi feita uma busca na internet por trabalhos que já foram publicados por
diferentes pesquisadores e, ao discutirem tal temática, propõem formas de trabalho com
a Literatura Clássica. Dessas leituras, foram selecionados, para ser exposto neste
trabalho, exemplos de metodologias que podem ser adotadas, que foram e poderão ser
exitosas em sua prática.
Ao analisar esses trabalhos, observou-se que os métodos utilizados foram os
seguintes: leitura guiada por etapas: pré-leitura, leitura e pós-leitura, retextualização de
textos, projetos literários, leitura por adaptações e tertúlias literárias. Cada um desses
métodos possui suas significâncias. Ler por etapas significa que a leitura é um processo
complexo que se inicia antes de começar a leitura, continua durante e se conclui muito
depois que se termina de ler. Esse planejamento permite que o texto literário se torne um
objeto de leitura, discussão e reflexão. Retextualizar um texto para outro faz com que o
aluno, obrigatoriamente, leia a obra, construindo sentidos para o texto literário e
ativando nele um processo criativo de produção. A escolha e execução de um bom
projeto contribui para a formação do interesse pela leitura, amplia a capacidade de
produção dos estudantes e desenvolve seu raciocínio. As adaptações funcionam como
um facilitador, como uma porta de entrada e até mesmo como uma intérprete e não
devem, de forma alguma, ser vistas como substitutas das originais. As tertúlias

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MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

estimulam o diálogo, a troca de experiências, desenvolvem a solidariedade e o respeito


às diferenças.

2.2.1.1 Adoção de roteiro definido: pré-leitura, leitura e pós-leitura

Essa metodologia é apresentada por Helen Freitas (2016), em seu trabalho


intitulado A leitura dos clássicos na sala de aula: uma prática possível. Ela propõe que,
inicialmente, seja feita uma apresentação aos alunos desenvolvendo a temática “Ler para
quê?”. Nesse momento os alunos devem participar da conversa, partilhando suas
experiências com a leitura.
Posteriormente, sugere-se que o professor conte uma história. Para
exemplificar, Freitas narrou a Guerra de Troia contida na Ilíada, de Homero. Esse
momento tem como objetivo mostrar aos alunos que os temas abordados em obras
clássicas são muitos atuais e podem despertar o interesse deles.
Depois, a partir das obras clássicas já pré-selecionadas pelo professor, os alunos
devem escolher uma obra para ser lida. Para facilitar essa escolha, ela aconselha que
sejam disponibilizados alguns cartões com imagem da capa do livro, acompanhados de
uma breve resenha, para possibilitar que o aluno escolha de acordo com suas
preferências. A outra etapa seria a da leitura dos livros escolhidos individualmente. Caso
haja alguma dúvida, o aluno deve ser orientado a procurar o professor.
O fechamento é dado pelo compartilhamento da leitura com a turma. Sugere-
se uma iniciativa diferente para esse momento, como, por exemplo, um “piquenique
literário”. Nesse momento de pós-leitura, tem-se uma possibilidade de ampliação da
leitura dos alunos, pois, a partir do que ouvem, podem se sentir convidados a lerem
outras obras em sua completude.

2.2.1.2 Retextualização de clássicos para o formato vídeo digital

No trabalho intitulado Clássicos, tecnologia, (re) leitura: a literatura no Ensino


Médio, Silva (2016) sugere a (re)textualização de um clássico para o formato de vídeo
digital, a partir dos recursos oferecidos pelo Windows Movie Maker. Segundo ela, o
primeiro passo é a escolha da obra original, pelos alunos, para a produção do vídeo
digital. Ressalta-se que todo processo será feito em grupo. Feita a leitura, previamente,
os grupos devem retextualizar o conteúdo do texto escolhido: transformar a obra clássica
escolhida no formato de vídeo digital. Para isso ser possível é necessário que, em aulas
anteriores, o professor apresente aos alunos mostras de vários vídeos digitais, de outras
obras, para que sirva de exemplo. Além disso, devem-se apresentar aos alunos os
objetivos e a motivação para todo percurso.
Vale salientar que essa estratégia se apresenta bem coerente com o perfil da
geração de alunos que estão na escola atualmente, uma geração que apresenta muita
facilidade para desenvolver atividades que exigem o uso de aparatos tecnológicos e que
rapidamente aprendem a usar recursos desconhecidos até então, mas necessários ao
desenvolvimento da atividade.
As cenas do vídeo podem ser feitas pela computação gráfica ou a mão, como
Silva (2016) sugere na figura a seguir.

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LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

Figura 1: Apresentação do capítulo

Fonte: Silva (2016, p. 3).

Um trabalho como esse não deve ficar apenas no contexto de sala de aula,
podendo, então, o professor organizar um momento na escola em que os alunos possam
apresentar o vídeo desenvolvido para toda a comunidade escolar e até para a
comunidade externa. Saber que o trabalho deles poderá extrapolar os muros da escola
serve de motivação.

2.2.1.3 Algumas estratégias encantadoras: compartilhar leituras, apresentar curiosidades e


relacionar a realidade atual

Outras formas de como trabalhar os clássicos da literatura foram mostradas por


Ferreira (2018), no site da Nova Escola, na matéria intitulada Como trabalhar clássicos da
literatura no fundamental. Na matéria, são mencionadas as metodologias utilizadas pelas
professoras Bárbara Passos e Marta Chiva. Bárbara menciona que, logo no início do ano
letivo, leva seus alunos à biblioteca e os questiona sobre seus hábitos de leitura. Dessa
forma, ela consegue fazer com que os próprios alunos se estimulem mutuamente,
indicando suas preferências. A partir das informações trocadas durante a conversa, a
professora também consegue apresentar aos estudantes novos autores e títulos. Já Marta
idealizou e fez em sala de aula um clube de leitura em que os alunos puderam trocar
suas experiências.
Ambas acreditam que as adaptações são boas alternativas para o primeiro
contato com os clássicos. Escolhida a melhor adaptação, o primeiro passo é apresentar o
autor da obra e seu tradutor. Isso é importante para que se possa compreender o sentido
do texto. Chiva vai além e leva aos estudantes exemplares da obra em questão: um
original, um que será lido e outro em formato de história em quadrinhos, por exemplo.
Assim, os alunos entendem que uma única obra pode ter várias versões. Marta também
trabalha a interdisciplinaridade para contextualizar a obra. Ela acredita que o fato de eles
serem inseridos em uma temática que acabaram de aprender faz com que se interessem
ainda mais pelo texto. Por exemplo, ela fez uma parceria com o professor de História
para que os discentes lessem Os miseráveis, logo após estudarem a Revolução Francesa.
Passos sugere a leitura compartilhada e Chiva ressalta a importância de se fazer a relação
com os dias atuais.

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MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

É notória, então, a necessidade de o professor atuar como mediador nesse


processo de leitura, provocando os alunos quanto a suas escolhas e quanto às discussões
possíveis a partir delas.

2.2.1.4 Projeto Literatura viva hoje e sempre: os clássicos

É indiscutível que a pedagogia de projetos tem sido uma metodologia atrativa


para os alunos, principalmente quando bem utilizada e aplicada pelos professores. É
nesse caminho que a proposta de Inês Czervinski (2016) acontece, propondo o trabalho
com a literatura via projetos. Para tanto, ela idealiza um projeto cujo desenvolvimento
se dê em etapas.
Primeiramente, apresenta-se o tema do projeto ao grupo docente e, num
segundo momento, em uma sala denominada de “feira literária”, o educando é levado a
escolher sua obra. Depois, num outro momento, é feita a leitura do texto Conto de escola,
de Machado de Assis, em forma de história em quadrinhos para debaterem algumas
questões como: “Qual foi a sua escolha e por quê? O que vocês entendem por literatura
e clássicos? O que acham da leitura desses livros? O que acham da linguagem utilizada
nas obras clássicas?”. Feito esse debate, apresenta-se aos alunos os estilos literários e,
posteriormente, os educandos devem fazer uma pesquisa na internet sobre as obras
clássicas escritas e sua importância no contexto social e, assim, expor seus
questionamentos, dúvidas, receios, preconceitos e as definições e a importância da
literatura em nossas vidas.
Passada essa etapa de discussão e esclarecimentos de dúvidas, os discentes
devem produzir um poema descrevendo o significado da leitura literária para eles
(nesses processos de criação se faz importante uma parceria com o professor de Artes
para a confecção de uma estética provocativa); na sequência, a mídia é utilizada:
minisséries inspiradas em clássicos, curtas animações... Depois, em círculo, os alunos
fazem uma leitura dos clássicos em forma de história em quadrinhos e desenvolvem, a
partir de trechos do livro clássico, sua própria história em quadrinho. Mais adiante, com
a leitura já realizada pelo aluno da obra escolhida, ele deve retirar da sua memória um
trecho marcante da história lida, transformá-lo em uma única imagem e explicar aos
demais o motivo por que essa imagem foi importante. Como fechamento, a
dramatização, a declamação, a dança e a música podem ser apresentadas.

2.2.1.5 Tertúlia Dialógica Literária

Foi disponibilizado pela Comunidade de Aprendizagem um caderno com


informações básicas para conhecer e colocar em prática a Tertúlia Dialógica Literária: “a
Tertúlia Literária é uma prática de leitura dialógica que consiste em um encontro ao
redor da literatura, no qual os participantes leem e debatem, de forma compartilhada,
obras clássicas da literatura universal” (COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM, [s. d.],
p. 3). As tertúlias podem ser realizadas em diversos ambientes e os encontros podem
acontecer no horário regular ou no contraturno.
São organizadas da seguinte forma: antes de começar, deve-se escolher quem
assumirá o papel de moderador (pode ser o professor ou não): ele organiza a conversa e

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LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

favorece a participação de todos, não explica, não apresenta nem contextualiza a obra;
depois, o grupo participante escolhe o livro que lerá e define o trecho que será lido
individualmente e em voz alta, no encontro, explicando por que gostou ou não e o que
chamou sua atenção (o professor/moderador determina até onde os alunos lerão para
cada encontro); assim, após a leitura de cada trecho, o moderador cede o turno, também,
para aqueles que gostariam de comentar o trecho lido pelo colega. E assim o ciclo é feito,
primeiro uma pessoa lê o seu trecho, fazendo seus apontamentos, depois, os outros
comentam, abrindo espaço para novas interpretações e reflexões, e, em seguida, outra
pessoa lê e assim por diante. Para finalizar, os participantes voltam à leitura do livro, até
onde o moderador indicar, tendo em mente todos os diálogos e reflexões compartilhadas
na sessão, e se preparam para o próximo encontro.

2.2.1.6 Lendo clássicos em HQ

Uma outra metodologia é sugerida pela própria autora deste trabalho.


Decorrente do que foi apresentado nesta pesquisa, ficou claro que as adaptações são
ferramentas positivas para o trabalho pedagógico no ambiente escolar, visto que a
linguagem utilizada e a adequação literária incentivam os alunos a buscarem cada vez
mais o universo literário.
Surgindo o momento de se trabalhar com determinado autor ou período
literário, sugere-se que uma HQ seja apresentada. Primeiro: o professor deve orientar os
alunos a pesquisarem sobre o autor que será trabalhado naquele momento. Segundo: os
discentes devem elaborar e realizar uma apresentação do que encontraram. Terceiro: o
docente, enxergando necessidade, acrescentará o que for necessário e realizará uma
conversa sobre o que foi apresentado. Quarto: aqui se dá o momento de leitura e a leitura
deve ser feita de forma compartilhada, diante da tela de projeção. Uma observação, caso
a HQ não seja encontrada em formato digital, para a apresentação na tela de projeção,
sugere-se que, com uma obra em mãos, seja utilizado um retroprojetor. Quinto: o
professor deve propor um diálogo, pós leitura, sobre o que leram. Sexto: para incentivar
alunos de outras classes e demais e para mostrar a eles que, além do livro tradicional,
existem outros que contém a mesma história, só que em outro formato; os alunos que
leram a HQ podem realizar um encontro literário para apresentar esses livros aos seus
colegas.
Seria interessante que todos possuíssem um livro em mãos, porém sabemos que
a escola não possui recursos para atender a grande demanda. Dessa forma, outras
soluções são propostas para que a leitura possa ser feita, de um modo mais interativo e
enriquecedor, levando em conta que as HQs são obras que, em seu todo, possuem
bastantes figuras e cores.
É necessário ressaltar que todas essas propostas podem ser adaptadas partindo
da realidade de cada contexto. É importante destacar que a metodologia só poderá ser
usada se existir a capacitação dos professores para tal, recursos disponíveis e apoio de
demais. Também, há a possibilidade de esses trabalhos serem realizados, resguardada a
necessidade de alguns ajustes, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio,
neste quando houver necessidade.

34 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MONALLISA CRISTINA DA SILVA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

3 CONCLUSÃO

Ainda hoje é recorrente a discussão sobre o ensino de Literatura Clássica,


considerando-se a resistência dos jovens a esse tipo de literatura. Então, nesse contexto,
este estudo objetivou refletir sobre o modo como a Literatura Clássica é, normalmente,
trabalhada no ambiente escolar, com o intuito de propor formas metodológicas
diferentes para a leitura dos clássicos; quando praticadas corretamente, muitas leituras
são simplificadas, fazendo com que a maioria dos jovens percam sua resistência.
Conclui-se que, na verdade, o questionamento a ser feito não deveria ser se os
adolescentes em contexto escolar devem ler ou não os clássicos e sim como facilitar essa
leitura. Percebeu-se que as práticas de ensino adotadas nas aulas de literatura, pelos
autores apresentados, foram exitosas, pois permitiu o envolvimento dos alunos e
demonstrou serem interessantes e prazerosas, indo ao encontro à inovação.
Parece que a forma como a leitura é trabalhada desde o Ensino Fundamental
até o Ensino Médio é desmotivante, desinteressante e os alunos a veem como algo difícil.
Entretanto, a literatura é um direito resguardado aos estudantes, e a não garantia dela
nos leva a refletir sobre o que Rodrigues (2016, p. 67-68), ao citar Maria (2009), afirma,
dizendo que o afastamento dessas obras é feito de forma proposital, pois é intenção dos
governantes formar mão de obra para as indústrias e não formar cidadãos capazes de se
posicionarem contra eles. A literatura é um meio de formação cidadã, levando-se em
consideração as diversas funções por ela desempenhada, inclusive a humanizadora.
Então, o que há de se aprimorar são as formas de se trabalhar a Literatura
Clássica, despertando-se nos alunos o gosto e o desejo por conhecer esse tipo de
literatura e enxergando nela toda a potência formadora que tem.

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2018.

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35 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LER OU NÃO LER OS CLÁSSICOS: EIS A QUESTÃO

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37 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 38-50, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Análises e reflexões sobre a elaboração de


enunciados de atividades e tarefas nas aulas de
Língua Portuguesa

Analysis and reflections on the elaboration of utterances of activities


and tasks in Portuguese language classes

KLEISSIELY DE CASTRO
Licenciada em Letras Português/Inglês - UFLA
E-mail: [email protected]

BIANCA DE SOUZA GOMES


Licenciada em Letras Português/Inglês - UFLA
E-mail: [email protected]

AMANDA GAZOLA TARTUCI


Mestre em Discurso e Representação Social - PROMEL
E-mail: [email protected]

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo basilar apresentar recursos e estratégias didáticas que
podem auxiliar professores, nas aulas de Língua Portuguesa, a produzir enunciados de
atividades e tarefas escolares mais sistematizados e condizentes com o objetivo de ensino
pretendido. Nesse sentido, foram realizadas duas propostas de análise de materiais didáticos: a
primeira, foi feita a partir de uma atividade retirada do Plano de Ensino Tutorado (PET), de Minas
Gerais; a segunda foi executada por meio de um fôlder informativo. Para a consecução do objetivo
proposto, foram utilizados, sobretudo, os estudos de Marcuschi (2006), com o intuito de embasar
as discussões sobre as concepções de gênero, linguagem e ensino, e Lino de Araújo (2017), a fim
de problematizar a maneira como os enunciados de atividades e tarefas são elaborados nas aulas
de língua materna. Diante do exposto, espera-se, com este trabalho, fornecer insumos aos
educadores para a construção de atividades escolares mais contextualizadas, baseadas em noções
fundamentadas de língua, linguagem e ensino.
Palavras-chave: Ensino. Materiais didáticos. Enunciados. Língua Portuguesa.

Abstract: This research aims to present resources and didactic strategies to help Portuguese
Language teachers to produce more systematized and consistent statements of activities and
school tasks with the intended teaching objective. In this context, we made two proposals for the
analysis of didactic materials: the first was based on an activity taken from the Tutored Teaching
Plan (PET) in Minas Gerais; the second was executed through an informative folder. To achieve
the proposed objective, we used the studies of Marcuschi (2006) in order to support the
discussions about the conceptions of genre, language, and teaching, and the works of Lino de
Araújo (2017) in order to problematize the mother tongue classes elaborated the activities and
tasks statements. Therefore, this work is expected to provide educators with inputs for the

38 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

construction of more contextualized school activities based on grounded notions of language and
teaching.
Keywords: Teaching. Teaching materials. Utterances. Portuguese language.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A elaboração de enunciados de atividades e tarefas escolares na disciplina de


Língua Portuguesa é, ainda, um assunto pouco discutido no campo da Linguística e, por
isso, demanda maior aprofundamento teórico acerca da estrutura composicional e da
funcionalidade do gênero enunciado. Além disso, são ofertadas, em sala de aula,
propostas teórico-metodológicas constituídas com base em noções rasas e até mesmo
equivocadas sobre os conceitos de língua, linguagem e ensino, que norteiam as práticas
linguísticas.
Tendo isso em vista, esta pesquisa tem como objetivo basilar apresentar
recursos e fundamentações didáticas que podem auxiliar professores na produção de
enunciados de atividades e tarefas mais sistematizados e condizentes com o objetivo de
ensino pretendido. A necessidade deste estudo nasceu durante o nosso período como
bolsistas do Programa de Residência Pedagógica (RP) da Universidade Federal de
Lavras (UFLA), em que sentimos a falta desse saber durante o nosso processo de
formação inicial e precisávamos de estratégias mais eficazes para elaborar e analisar os
enunciados de atividades e tarefas escolares.
Para a consecução do objetivo proposto, foram utilizados, sobretudo, os
trabalhos de Marcuschi (2006), com o intuito de embasar as discussões sobre as
concepções de gênero, linguagem e ensino, e de Lino de Araújo (2017), a fim de
problematizar a maneira como os enunciados de atividades e tarefas escolares são
elaborados nas aulas de língua materna. Para a análise, foram realizadas duas propostas
de análise de materiais didáticos: a primeira, feita a partir de uma atividade retirada do
Plano de Ensino Tutorado (PET) de Minas Gerais; a segunda, executada por meio de um
fôlder informativo.
Diante do exposto, trazemos à baila, nesta pesquisa, a questão de como o gênero
enunciado é essencial à profissão do professor e, ainda assim, é pouco trabalhado em
sua formação inicial e continuada. Também abordamos os materiais didáticos e como a
explicitação de suas concepções de linguagem é definidora para delinear a elaboração
das atividades. Por fim, apresentamos, de forma didática, exemplos de como formular
enunciados de atividades e tarefas de leitura, de escrita e de análise linguística. Com
base nisso, espera-se fornecer insumos aos educadores para a construção de propostas
pedagógicas mais contextualizadas, atendendo às necessidades de ensino-
aprendizagem dos alunos.

2 A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

A elaboração de enunciados é, segundo Lino de Araújo (2017), uma atividade


característica da profissão do professor, um gênero que ele precisa dominar, pois
envolve não só o seu bom desempenho profissional, mas também o sucesso do

39 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

aprendizado do aluno. Todavia, o gênero enunciado não é devidamente trabalhado na


formação inicial e continuada do professor, uma falha grave, já que ele passa boa parte
de seu tempo elaborando exercícios e avaliações. A questão é: em que momento da
formação do professor esse conhecimento é sistematizado?
Marcuschi (2006) salienta que a formulação de uma atividade escolar tem que
estar intrinsecamente vinculada aos objetivos de ensino e às teorias subjacentes à atuação
docente. Os Livros Didáticos de Português (LDP) nem sempre deixam claro quais são as
concepções linguagem e de ensino que adotam, fazendo com que a abordagem de língua
seja “desvinculada dos usuários, descolada da realidade, semanticamente autônoma e
a-histótica” (2006, p. 47). Consequentemente, as atividades propostas no material
seguem os mesmos equívocos.
Além disso, Lino de Araújo (2017) defende que enunciados devem ser gêneros
customizados – precisam ser elaborados de forma específica para as turmas, com ajustes
para cada uma, muitas vezes. Todavia, há o costume generalizado, no Brasil, de que um
professor que dá aula para vários sétimos anos pode elaborar uma mesma avaliação para
todas as turmas. Lino de Araújo (2017) explica que, de modo geral, sim, isso pode
acontecer, mas de modo específico, não, pois cada turma possui um ritmo diferente de
aprendizado.
Outro aspecto abordado pela linguista é que enunciado é um gênero de ação: o
professor direciona o aluno para um fazer sem o seu suporte presencial. A base tem que
ser um enunciado bem elaborado, clássico, que comece com um verbo no imperativo,
dizendo ao discente o que tem que fazer, para ele se preparar mentalmente para tal ação.
Um enunciado mal elaborado “obriga” o docente a aceitar respostas que ele não pode
invalidar, podendo causar grandes constrangimentos e confusões na relação aluno-
professor. Assim, o professor deve se cercar de cuidados na elaboração das atividades
que ele não vai achar pronto em nenhum outro lugar e que ele precisa de perícia para
fazê-lo.
É preciso destacar também que, ao longo do processo de escolarização, os
alunos precisam aprender a ler enunciados. Muitas vezes, os alunos leem a prova e não
sabem o que fazer, então o docente apenas oraliza a pergunta com o intuito de explicá-
la, acreditando que esse ato resolverá a falta de entendimento do aluno. É assim, na
maioria das vezes, que somos “ensinados” a ler enunciados.
Isso também acontece no processo de aprendizado da elaboração desse gênero
nos cursos de licenciatura, comparado por Lino de Araújo (2017) ao ensino da oralidade
na escola. Se o sujeito já é falante de língua portuguesa, tem-se a crença de que não é
preciso “perder tempo” ensinando-o a falar. Assim, o fracasso do aluno em situações
que demandam um bom uso da linguagem oral é visto como fracasso individual, e não
da escola. O mesmo acontece com o ensino da elaboração de atividades nos cursos de
licenciatura – subentende-se que os licenciandos saibam fazê-lo.
Não se tem, no entanto, ensinado os licenciandos a formular atividades
escolares, nem demonstrado a relação delas com os objetivos de ensino, tampouco com
as teorias implícitas à atuação do professor. A desconexão entre a teoria defendida pelo
docente e as atividades por ele apresentadas são recorrentes. Marcuschi (2006)
exemplifica que muitos materiais didáticos dizem que trabalham com análise linguística
e apresentam exercícios que apenas dão foco à identificação gramatical. Essa habilidade

40 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

não faz parte da formação inicial do docente, mas ele acaba aprendendo esse gênero na
sua prática didática, muitas vezes, de forma errônea e contraditória.
De modo geral, a dificuldade em elaborar enunciados de atividades e tarefas
escolares tem sido suprida pelos professores com a troca de atividades entre os pares e
com a cópia do LDP e das questões de processos seletivos como o ENEM. Mas, como
aponta Marcuschi (2006), nem mesmo os LDPs são fontes confiáveis de exercícios bem
elaborados, coerentes e teoricamente sustentados. Por isso, é importante refletir sobre
como são elaborados os materiais didáticos, especialmente no que diz respeito à
formulação de atividades escolares, e entender como isso impacta o processo de ensino-
aprendizagem.

3 MATERIAIS DIDÁTICOS E ENSINO

O processo de ensino-aprendizagem abraça uma construção conjunta de


saberes, na qual conversam sujeitos, objetivos, objetos, contextos e materiais didáticos.
Os materiais didáticos, entendidos como as ferramentas que auxiliam no
desenvolvimento do processo, têm o livro didático como seu exemplar mais comum e
acessível. Isso não quer dizer que o livro didático seja o responsável pelo sucesso ou pelo
fracasso das práticas educativas. Ele é um mecanismo que traz consigo marcas
contextuais e características específicas, que vão desde seus pressupostos teóricos até as
crenças e os métodos, devendo ser escolhido e utilizado conforme o cenário da escola.
Marcuschi (2006) mostra que, mesmo numa época marcada pelas tecnologias
digitais, o material didático continuará sendo uma importante ferramenta no ensino. As
questões cruciais que o autor traz para análise nesses materiais são: “1. Qual a noção de
língua subjacente aos livros de LDP?” e “2. Quais as habilidades desenvolvidas nos LDP?
(2006, p. 46). Poucos manuais analisados por ele elaboram alguma observação a respeito
das decisões teóricas. O autor também fala da impressão de que se tem de que o ensino
de Língua Portuguesa (LP) se dá na suposição que a teoria suporte é tão evidente que
não é preciso explicitá-la.
Na análise feita, Marcuschi (2006) detecta um silenciamento dos autores de LDP
sobre as concepções de língua que orientam a confecção dos manuais. Essa concepção
implícita é encontrada através da análise das atividades que se encontram no material:

De uma maneira geral, a língua é tomada como um


instrumento de comunicação não problemático e capaz de
funcionar com transparência e homogeneidade. A dar
crédito aos LDP, a língua é clara, uniforme, desvinculada
dos usuários, descolada da realidade, semanticamente
autônoma e a-histórica. Uma espécie de ser autônomo e
desencarnado (MARCUSCHI, 2006, p. 47).

De acordo com o autor, é imprescindível que os materiais alertem que não se


ensina tudo da Língua Portuguesa, mas ensina-se uma variante padrão de Língua
Portuguesa. Além disso, é um erro tomar a língua como clara e transparente porque sua
natureza é “semanticamente opaca” (MARCUSCHI, 2006, p. 47). As línguas são

41 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

constituídas histórica, coletiva, social e geneticamente. As fronteiras da linguagem


precisam ser ampliadas e a linguagem pode ser vista reflexiva e metalinguisticamente,
de forma a mediar a interação dos discentes dentro de eventos comunicativos que façam
parte da sua realidade, da comunidade discursiva ao qual pertencem. Assim, a
linguagem, em última instância, não deveria ser recortada em fatias léxico-gramaticais
para fins de ensino-aprendizagem.
Os materiais didáticos precisam estar comprometidos com a formação
continuada dos professores de Língua Portuguesa, deixando explícita a necessidade
dessa formação, de forma a garantir a reflexão sobre a prática docente. Nesse sentido, a
formação continuada deve ser entendida como um momento em que os professores
precisam refletir sobre seus esquemas de ação e suas atitudes desenvolvidos durante e
depois da aula e se, realmente, estão em sintonia com a teoria proposta nos LDPs,
fazendo com que o professor conheça sua concepção de linguagem, pois é ela que deve
fundamentar e orientar sua prática pedagógica.
Sabe-se que é difícil haver uma linearidade entre a concepção de linguagem que
norteia o trabalho de cada docente e sua prática em relação ao ensino de análise
linguística. Entre o domínio da teoria e a efetivação da prática de ensino há muitas
variáveis. Essas variáveis podem estar relacionadas às escolhas didáticas do professor,
às condições oferecidas pelas Redes de Ensino ou por outras condições diversas.
Todavia, a formação continuada deve estar presente e ao alcance do professor para que
este ajuste constantemente o seu fazer pedagógico, a fim de obter sucesso na profissão e,
consequentemente, no ensino-aprendizagem dos seus alunos.

4 A TAXONOMIA DE BLOOM E O ROTEIRO ADAPTADO DE MORETTO

As discussões tecidas até aqui revelam que ainda há muito o que se refletir
acerca da elaboração de enunciados de atividades e tarefas escolares nas aulas de Língua
Portuguesa, seja na prática pedagógica, seja nos materiais didáticos com os quais os
professores entram em contato. A formulação deles é, sem dúvida, parte imprescindível
do exercício docente, haja vista que a maneira como são construídos influencia
diretamente na qualidade e na eficiência do ensino ofertado aos alunos. Logo, é
importante que os educadores compreendam a relevância desse momento para o
desenvolvimento de propostas metodológicas que, de fato, atendam às demandas de
ensino-aprendizagem dos estudantes.
Lino de Araújo (2017) apresenta uma série de aspectos que precisam ser
considerados para a construção de enunciados de atividades e tarefas1 escolares, bem
como os recursos que podem ser utilizados como apoio para o desenvolvimento desse
processo. Neste estudo, nos ateremos a discutir de forma mais detalhada dois deles – a

1 A limitação deste artigo não nos permite adentrar na diferenciação entre os termos atividade e
tarefa. Em síntese, Lino de Araújo (2017) salienta que o primeiro se refere à uma operação de
ensino-aprendizagem que engloba várias sequências didático-discursivas, enquanto o segundo
diz respeito aos elementos que constituem uma dada atividade e que tem por objetivo,
justamente, completá-la/realizá-la. Para compreender de maneira mais aprofundada,
recomendamos a leitura da obra Enunciado de atividades e tarefas escolares: modos de fazer.

42 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

taxonomia de Bloom e o roteiro adaptado de Moretto –, a fim de auxiliar os docentes na


estruturação de seus trabalhos em sala de aula. Essa tarefa, por mais simples que pareça,
demanda a sistematização de conhecimentos diversificados, os quais precisam estar
calcados em concepções sólidas de linguagem e texto.
Partindo da premissa de que toda atividade precisa indicar de forma clara e
objetiva o que será verificado e/ou avaliado por meio dela, a taxonomia de Bloom cumpre
importante papel na medida em que permite estabelecer tanto os objetivos educacionais
a serem alcançados quanto as operações mentais inerentes a cada um dos propósitos
previamente estabelecidos. Esse movimento permite ao professor receber,
constantemente, um retorno dos educandos, o que viabiliza, caso seja necessário, a
reestruturação do plano pedagógico. Esses objetivos foram organizados por Lino de
Araújo (2017), com base em Moretto (2008), em 6 domínios que se organizam em
diferentes níveis de complexidade e distintos domínios, como explicitado no Quadro 1 a
seguir.

Quadro 1: Níveis de complexidade de Bloom


NÍVEIS DE VERBOS
DOMÍNIOS
COMPLEXIDADE RELACIONADOS

Identificar, nomear,
(RE)CONHECIMENTO: capacidade de
assinalar, citar,
identificação das propriedades fundamentais
relacionar, completar,
dos objetos de conhecimento apreendidos.
observar.

COMPREENSÃO: indicação de elementos


Básico que dão significado ao objeto de Explicar, descrever,
conhecimento, sua composição, finalidade, caracterizar.
características etc.

APLICAÇÃO: transposição da compreensão Resolver, aplicar (com


de um objeto de conhecimento em caso base no texto),
específico, situação-problema etc. transformar, explicar.

Analisar, examinar,
ANÁLISE: percepção da inter-relação entre o
decompor (sentença),
todo e suas partes.
escandir.
Intermediário
SÍNTESE: reorganização das partes de um
Resumir, generalizar.
todo.

AVALIAÇÃO: emissão de juízo de valor Julgar, justificar,


Avançado
sobre análises e sínteses efetuadas. apresentar argumentos.

Fonte: elaborado por Lino de Araújo Lino de Araújo (2017, p. 29-30) com base em
Moretto (2008, p. 113-137).

A partir da sistematização de atividades que mesclam diferentes níveis de


complexidade e domínios, o professor consegue desenvolver propostas que combinam

43 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

objetivos cognitivos essenciais para a verificação e fixação da aprendizagem, os quais


estão ancorados em três pilares: o do entendimento, o da compreensão e o da
interpretação. Assim, oportuniza-se a produção de questões que instigam diferentes
tipos de operações mentais, desde as mais simples – como indicar, relacionar, explicar,
caracterizar, aplicar etc. – até as mais complexas – como analisar, examinar, apresentar
argumentos críticos, julgar e justificar etc.
Não obstante, essa categorização hierárquica funciona ainda como um
parâmetro de correção para o educador, já que possibilita não só observar se os objetivos
educacionais previamente estabelecidos estão sendo alcançados, mas também receber
um retorno sobre as necessidades de aprendizagem dos discentes. Em última análise,
cabe destacar que essa taxonomia possui suas limitações, já que se fixa apenas em
objetivos cognitivos e operações mentais, e não focaliza aspectos interacionais da
aprendizagem – como a relação professor-aluno, professor-professor –, que também são
de suma importância para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos, e não são,
muitas vezes, diretamente observáveis. Logo, é importante que o professor
complemente essa ausência com suas próprias experiências no âmbito escolar (LINO DE
ARAÚJO, 2017).
Em se tratando, especificamente, da preparação de atividades e tarefas que
envolvem aspectos cognitivos da aprendizagem – tais como linguagem, raciocínio,
memória, percepção etc. – vale a pena o docente também recorrer ao roteiro adaptado
de Moretto (2008) para complementar seu plano de ensino. A partir dele, são dispostos
ao educador, em formato de instrução, quatro aspectos que podem auxiliá-lo em suas
práticas, sendo eles:

(1) Especifique o conteúdo a ser explorado na atividade.


(2) Indique o objetivo para a avaliação da aprendizagem,
relativo ao conteúdo.
(3) Relacione 2 ao nível de complexidade da questão, com
base na taxonomia de Bloom.
(4) Indique os critérios para a correção (MORETTO, 2008,
p. 134 apud LINO DE ARAÚJO, 2017, p. 31).

Ao se utilizar desse roteiro, o docente consegue definir com bastante


objetividade os elementos constitutivos da sua aula e, ao mesmo tempo, perceber se os
objetivos estabelecidos foram atingidos – caso a resposta seja negativa, é necessário
pensar em um replanejamento pedagógico. Cabe ressaltar ainda que, assim como a
categorização de Bloom, o roteiro de Moretto também enfoca objetivos cognitivos, o que
demanda do professor o complementar a partir de suas vivências no espaço escolar.
Diante das considerações desenvolvidas neste tópico, é possível observar que a
taxonomia de Bloom e o roteiro adaptado de Moretto são instrumentos que, por mais
que apresentem limitações, podem auxiliar o professor de forma satisfatória na prática
de elaboração de enunciados de atividades e tarefas escolares. Entretanto, como já
ressaltamos, é preciso pensar em propostas que os complementem de acordo com as
vivências experienciadas em cada sala de aula e as exigências de ensino de cada turma.
Logo, além dos aspectos cognitivos, o docente precisa implementar às suas atividades e

44 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

tarefas objetivos interacionais, culturais, sociais etc., para que se atenda, de forma
satisfatória, às necessidades de ensino e de aprendizagem dos discentes.

5 APONTAMENTOS SOBRE IMPORTÂNCIA DA SEQUÊNCIA INJUNTIVA NO


PROCESSO DE ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS

Ao pensarmos sobre enunciados de atividades e tarefas escolares, outra questão


que se mostra pertinente são as sequências injuntivas, que serão discutidas neste tópico
também a partir de Lino de Araújo (2017). Para entender a importância de se abordar
esse ponto, a autora argumenta que a elaboração de enunciados deve levar em
consideração os interlocutores da prática social, nesse caso, professores e alunos.
Partindo disso, podemos dizer que o processo consciente de produção (ou mesmo de
adaptação) dos enunciados é crucial para o encaminhamento pedagógico, pois, munido
dos mecanismos e das estratégias para demonstrar o que se espera dos alunos, o
professor pode nivelar os conhecimentos atuais do alunado e os que se almeja alcançar.
Segundo Lino de Araújo (2017), as sequências injuntivas são tipos textuais que
mais aparecem nas tarefas e nas atividades escolares. Elas são utilizadas para guiar a
ação dos alunos e, por interferirem na forma como as respostas das atividades são
guiadas, demandam atenção por parte do docente. Dito de outra forma, essas sequências
dizem ao aluno como ele deve agir para atingir determinado objetivo de aprendizagem,
o que se realiza por meio de comandos2.
Um ponto importante sobre a estruturação dessas sequências é que elas se
apresentam como sequências descritivas iniciadas pelo verbo no modo imperativo, ou
seja, elas descrevem a ação a ser realizada e dão o comando para concretizá-la. No
português brasileiro, o modo imperativo aparece de formas variadas, como o presente
do subjuntivo, que é a mais comum nos enunciados – “assinale a alternativa correta”,
“responda às questões abaixo” etc. É necessário destacar, no entanto, que a marcação
linguística nas sequências injuntivas por meio do verbo só é eficiente se o todo que
compõe a sequência estiver coerente com um objetivo de aprendizagem. Retomando o
que foi discutido neste capítulo, é importante que se tenha uma noção clara de língua,
linguagem e ensino para que a formulação dos enunciados seja condizente com o que se
pretende que os alunos alcancem.
Outro ponto importante sobre o uso do verbo é que ele deve deixar claro os
parâmetros de avaliação propostos pelo professor. A título de exemplificação, em
questões de múltipla escolha, é comum a presença do verbo “assinale” para introduzir
a questão a ser realizada. Ao demarcar que o que se espera do aluno é o apontamento
da alternativa verdadeira (ou a falsa, em alguns casos), ele entenderá que será avaliado
a partir da identificação da opção requerida. Em contrapartida, em questões discursivas
iniciadas pelo verbo “comente” ou “fale”, por exemplo, os parâmetros avaliativos não
ficam bem estabelecidos porque os alunos não sabem o que se espera deles, ou seja, se

2Há diferentes tipos de comandos relacionados às atividades e tarefas nas aulas de LP, além de
comandos específicos para atividades de leitura, escrita e análise linguística. Para entender mais
sobre isso, consulte a obra de Lino de Araújo (2017).

45 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

eles devem explicar, julgar, resolver etc., conforme a taxonomia de Bloom. É importante,
pois, que haja consonância entre o que se espera e o que se solicita ao aluno.

6 PROPOSTA DE ANÁLISE

Trazendo essas discussões (itens 4 e 5) para uma breve análise, será discutida a
estruturação da atividade da Figura 1, retirada do Plano de Estudos Tutorados (PET)3
destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental II.

Figura 1: Atividade do PET

Fonte: SEE-MG (disponível em: https://estudeemcasa.educacao.mg.gov.br/pets/ef-anos-


finais-2022).

A partir desse exemplo, podem ser feitos alguns apontamentos sobre a


estruturação dos enunciados. Em primeiro lugar, há verbos no modo imperativo (“leia”
e “responda”), no entanto a atividade carece de uma formulação que direcione os alunos
para determinado objetivo. Os enunciados “Dá para entender a mensagem?” e “O que
causa estranheza?”, reforçados pelo texto precedente à atividade sobre a importância da
vírgula, direcionam o aluno a inferir que há problemas referentes aos elementos
notacionais da escrita. Contudo, os textos multissemióticos demandam outros modos de
ler que, muitas vezes, uma leitura guiada de modo semelhante ao texto verbal não é
suficiente. No caso da placa, é comum que sejam utilizados outros recursos para
demarcar a enumeração, como a disposição em lista dos itens proibidos. Isso precisa ser
enfatizado, porque o efeito da estranheza não se dá no contexto de uso da placa, mas a
partir do momento em que o texto passou a circular na internet para refletir sobre o uso

3Os PETs são os materiais didáticos criados e disponibilizados pela Secretaria do Estado de
Educação de Minas Gerais (SEE-MG) para o período de estudo remoto emergencial durante a
pandemia de covid-19.

46 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

inadequado da vírgula. Provavelmente, para o seu propósito sociodiscursivo, a placa


funciona.
Refletindo sobre isso, é crucial que a leitura seja trabalhada de modo conjunto
à análise linguística, e aqui entramos no segundo ponto: quando nos atentamos para o
embasamento da atividade 1, inferimos que ela seja de análise linguística, pois se guia
pela escolha de objetos de conhecimento e de habilidades próprios do eixo Análise
Linguística/Semiótica da BNCC. O documento propõe o trabalho transversal com esse
eixo, no entanto isso não acontece, pois os alunos são levados por uma compreensão do
texto que o exclui dos seus propósitos sociais, evidenciando apenas o suposto uso correto
da vírgula. Desse modo, podemos entender que, ainda que haja o uso do modo
imperativo substanciado pela sequência injuntiva, as instruções não são claras, porque a
atividade não se fundamenta adequadamente. Quando, por exemplo, se utiliza da
sugestão da BNCC de que os gêneros e as habilidades devem, necessariamente, ser
trabalhados com os campos de atuação, problemas como esses são evitados; além disso,
as estratégias de formulação dos enunciados vêm a ser úteis para se alcançar os objetivos
de aprendizagem estabelecidos previamente.
Agora, fazendo o caminho contrário, trazemos um exemplo de tarefa que teve
como fundamento as proposições de Lino de Araújo (2017) e da BNCC (2018). Ela foi
formulada durante o desenvolvimento das atividades do subprojeto “Práticas de
Linguagem e Ensino de Língua Portuguesa” do Programa de Residência Pedagógica
(RP) da Universidade Federal de Lavras4 (UFLA) (FIGURA 2).

Figura 2: Questão de análise linguística elaborada.

Fonte: elaborada pelas autoras durante o desenvolvimento de atividades no Programa


de Residência Pedagógica (RP).

4 Ao longo de nossas atividades enquanto bolsistas da RP, fomos levadas a aplicar os estudos
teóricos desenvolvidos, como este sobre elaboração de enunciados de atividades e tarefas
escolares. Entre esses resultados, estão a organização da mesa-redonda sobre o tema, disponível
em: https://youtu.be/JccI8bV8hJ0, e a elaboração de uma Sequência Didática (SD), em que foi
possível elaborar enunciados para as tarefas de fixação e verificação de aprendizagem nelas
presentes, como mostra a Figura 2.

47 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Para analisá-la, podemos levantar um primeiro ponto: as questões nela


presentes se referem à uma atividade de leitura a ser feita anteriormente em sala de aula
e, por isso, são contextualizadas. A atividade prévia consiste na leitura de dois folders
informativos, um com dicas para manter a saúde mental durante a pandemia de covid-
19 e outro contendo informações sobre os direitos legais das pessoas trans e travestis.
Observando a Figura 2, nota-se que a questão de análise linguística foi formulada de
acordo com a leitura anterior, o que converge com o que propõe a BNCC: o trabalho
transversal com o eixo Análise Linguística/Semiótica.
Um segundo ponto se refere à delimitação clara dos objetivos educacionais, que
são expressos de forma organizada em níveis de dificuldade de acordo com a taxonomia
de Bloom. Por exemplo, a questão mescla diferentes níveis: o básico, a partir da
solicitação de identificação do objeto de conhecimento; e o intermediário, em que se pede
tanto para relacionar público-alvo/objetivo ao objeto de conhecimento quanto para
explicar essa relação. É importante destacar que, na primeira parte da questão, ainda que
não haja o imperativo tão explícito como na segunda parte, essa é uma questão comum
que se apresenta sob a forma de interrogação indireta (LINO DE ARAÚJO, 2017). Por
meio dela, o aluno é conduzido a identificar determinada característica do texto (nesse
caso, uma característica negativa).
Outro ponto sobre essa questão é que ela é formulada para atender aos
propósitos estabelecidos pela sequência didática. Como faz parte de uma tarefa de
fixação de aprendizagem, ela pretende sistematizar e ampliar a leitura realizada
previamente, bem como propiciar condições para a produção posterior do fôlder. A
atividade do PET, por sua vez, se propõe a analisar o uso adequado da vírgula a partir
de campanhas publicitárias, mas ambos os pontos não são trabalhados devido à
formulação inadequada da atividade: primeiro, como vimos, a vírgula deve ser
trabalhada a partir de gêneros discursivos em que seu uso faça sentido; segundo, a
atividade parte da leitura de uma placa que não se relaciona às campanhas publicitárias
trabalhadas nas demais questões.
Para finalizar essa discussão, é válido dizer que outros aspectos são passíveis
de análise em ambos os casos apresentados, mas, devido às restrições de um artigo,
trouxemos as principais. O que observamos é que o modo imperativo é crucial para a
formulação de enunciados de atividades/tarefas escolares, pois ele direciona a ação do
aluno segundo os objetivos de aprendizagem estabelecidos previamente. Constatamos
também que essa formulação é bem-sucedida se articulada aos saberes teóricos, aos
documentos norteadores oficiais e ao encaminhamento pedagógico adequado. Quando
essa combinação é planejada, conhecer a estruturação e os efeitos linguístico-discursivos
das sequências injuntivas pode ser produtivo, pois permitirá ao professor utilizar
mecanismos que facilitarão o trabalho com a língua/linguagem e o retorno positivo dos
alunos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos evidenciar que ainda existem muitas lacunas no


processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, sobretudo quando se fala da
elaboração de atividades e tarefas escolares. Como salientado, as estratégias e recursos

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KLEISSIELY DE CASTRO | BIANCA DE SOUZA GOMES | AMANDA GAZOLA TARTUCI

aqui discutidos podem auxiliar satisfatoriamente o trabalho dos professores, os quais


precisam conhecê-los, compreendê-los e podem, sempre que necessário, utilizá-los de
acordo com as exigências de cada aluno e de cada turma. Entretanto, as limitações desses
mecanismos didáticos e as dificuldades observadas na prática de produção de
enunciados de atividades e tarefas escolares demonstram a inegável importância da
formação continuada para que seja possível construir, no âmbito escolar, práticas mais
sistematizadas e contextualizadas.
Nesse sentido, colocamos em evidência para o professor que, ao avaliar a
eficiência da estruturação dos enunciados, é crucial delimitar uma concepção de
linguagem e ensino que norteie essa análise, uma vez que atividades e tarefas estão
atreladas a teorias, e sua elaboração demanda reflexão consciente. A importância desse
processo pode ser condensada em dois pontos: a possibilidade de guiar o ensino de
Língua Portuguesa por uma perspectiva que dialoga com os documentos norteadores
oficiais e com os aportes teóricos nos quais se embasam as ações pedagógicas; e o
direcionamento adequado do alunado em relação aos objetivos de aprendizagem
almejados.
Outra questão que se mostra pertinente destacar é que a elaboração dos
enunciados deve levar em consideração os interlocutores dessa prática social, e isso
significa que a resposta dos discentes às questões propostas é fundamental para se
pensar em como o encaminhamento das atividades e tarefas pode ser planejado. Muitas
vezes, os objetivos elencados pelos professores não necessariamente são mal elaborados
nas questões, mas eles podem não convergir com o nível de dificuldade a que os alunos
estão preparados para responder. Assim, fica mais nítido distinguir quais são as
demandas das turmas e entender como os enunciados podem supri-las.
Para encerrar, destacamos que as discussões trazidas neste texto podem ser
ampliadas e revistas a partir da prática pedagógica e dos estudos dos professores que se
interessam pela temática. Sempre é importante evidenciar que a docência se constitui a
partir da articulação constante entre teoria e prática, tendo em vista a busca por novos
aprendizados que possibilitem um ensino de língua portuguesa emancipatório e
condizente com as demandas contextuais da comunidade escolar. Esperamos, por fim,
que este trabalho contribua para enriquecer as ações pedagógicas de professores de
Língua Portuguesa e sirva de ponto de partida para futuras pesquisas sobre esse assunto.

REFERÊNCIAS

BLOOM, B. S.; ENGLEHART, M.; FURST, E.; HILL, W.; KRATHWOHL, D. Taxonomy
of educational objectives. New York: David Mckay, 1956. 262 p.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. MEC/Secretaria de


Educação Básica. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.p
df. Acesso em: 24 mar. 2021.

LINO DE ARAÚJO, D. Enunciado de atividades e tarefas escolares: modos de fazer.


São Paulo: Parábola Editorial, 2017.

49 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANÁLISES E REFLEXÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS DE ATIVIDADES E
TAREFAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

MORETTO, V. P. Prova: um momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas.


8. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: DIONISIO, A. P.;


MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. 4. ed. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2006.

50 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 51-68, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Estratégias de leitura no Ensino Médio:


ressignificando a interpretação de texto

Reading strategies in high school: reframing text interpretation

JOYCE KÉREN SIQUEIRA


Graduada em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

CAROLINA DA CUNHA REEDIJK


Professora orientadora - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: A leitura é uma prática social indispensável para a aquisição de conhecimento e para a
formação sócio-crítica do indivíduo, pois estimula o desenvolvimento da imaginação, da
criatividade, da reflexão e da comunicação, aumentando, assim, o repertório intelectual do leitor.
Entretanto, apesar de a leitura ser trabalhada em todos os níveis escolares, muitos alunos ainda
concluem o Ensino Médio sem uma boa capacidade interpretativa. Trata-se de um problema
estrutural, desencadeado por uma série de razões, entre as quais se destacam a precariedade do
ensino do país e a falta de incentivos que apoiem o hábito e a importância da leitura. Pensando
nisso, o objetivo geral deste trabalho foi propor possíveis intervenções pedagógicas para a
melhoria do ensino de leitura e da capacidade interpretativa dos alunos do Ensino Médio. A
pesquisa realizada foi de cunho bibliográfico e teve como base a análise da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) do Ensino Médio. Após as leituras teóricas, procedeu-se à elaboração de um
plano de aula com propostas de trabalho para a leitura de três gêneros, charge, infográfico e
notícia. Todo o planejamento foi elaborado levando em consideração o ensino via estratégias de
leitura, o que pode direcionar o processo de interpretação textual por parte do aluno.
Palavras-chave: Estratégias de leitura. Ensino Médio. Interpretação de texto. Língua Portuguesa.

Abstract: Reading is an indispensable social practice for knowledge and the socio-critical
formation of the individual since it stimulates the development of imagination, creativity,
reflection, and communication, thus increasing the intellectual repertoire of the reader. However,
despite practicing reading in all grades, many students still finish high school without good
interpretive skills. This is a structural problem triggered by several reasons, especially the
precariousness of education in the country and the lack of incentives to support the habit and
importance of reading. With this in mind, the objective of this paper was to propose possible
pedagogical interventions to improve the teaching of reading and the interpretive capacity of
high school students. The research was bibliographic and based on the analysis of the Common
National Curricular Base (BNCC) for high school. After the theoretical readings, we proceeded
to the development of a lesson plan with working proposals for the reading of three genres:
charge, infographic, and news. Considering the teaching via reading strategies was elaborated
the planning, which can direct the process of textual interpretation by the student.
Keywords: Strategies for reading. High school. Text interpretation. Portuguese language.

51 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1 INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea lida com os reflexos da globalização a todo


momento. Com isso, a disseminação de informações trazidas pelos mais diversos meios
de comunicação - como internet, televisão, rádio e afins - exige dos indivíduos uma boa
capacidade cognitiva. Nesse sentido, o letramento tem se tornado indispensável não
somente para as práticas leitoras e ou intelectuais, mas também para as práticas sociais
e ou interacionais, considerando que uma pessoa letrada, além de codificar e
descodificar o sistema da escrita, é capaz de dominar a língua nos mais diversos
contextos sociais, podendo interagir com qualquer gênero textual e se informar por meio
dele.
Concomitante às transformações sociais, a educação tem passado por diversas
modificações ao longo dos anos, a começar pelo perfil do aluno, que sofreu mudanças
em concomitância com a sociedade, o que exige a reestruturação de toda a escola para
melhor recebê-lo. Com a evolução das tendências pedagógicas, o professor, em conjunto
com os demais colaboradores da escola, passou a valorizar a participação interacional
dos alunos e a considerar essa prática como ferramenta estratégica para um aprendizado
sócio-crítico e autônomo. Desde então, a escola passou a exercer dois papéis
fundamentais na sociedade: o de socializar e o de democratizar o acesso ao
conhecimento dos indivíduos. Nesse viés, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
destaca que é papel do Ensino Médio aprofundar, no ensino de Língua Portuguesa, a
análise sobre as linguagens e seus funcionamentos, a fim de intensificar a perspectiva
analítica e crítica da leitura, da escuta e da produção de textos; ampliar as referências
estéticas, éticas e políticas que cercam a produção e a recepção de discursos e estimular
a participação social dos jovens nas questões de cidadania, trabalho e estudo (BRASIL,
2017).
Ainda que a leitura esteja presente na vida dos indivíduos desde seus anos
escolares iniciais, o analfabetismo funcional continua sendo uma realidade brasileira em
pleno século XXI. Segundo dados de 2018 do Indicador Nacional de Analfabetismo
Funcional (INAF), cerca de 30% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos
funcionais e apenas 1 em cada 10 brasileiros é considerado proficiente para a análise de
gráficos de duas variáveis. Além disso, dados recentes da Agência Brasil revelam que de
2015 a 2019 a porcentagem de leitores do país caiu de 56% para 52%, ou seja, o Brasil
perdeu mais de 4,6 milhões de leitores nos últimos anos. De acordo com a pesquisa, esse
fato se justifica por três principais razões: a influência da internet e das redes sociais, as
dificuldades de leitura e a falta de incentivos.
Diante dessa realidade, buscou-se, neste artigo, oferecer metodologias mais
ativas para que a leitura seja trabalhada nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino
Médio em sua forma mais plena e sublime. Sabe-se que ela é fundamental na construção
de conhecimento e de autonomia do aluno, mas se tem ciência de que, apesar de ser
bastante presente no processo de formação básica dos alunos, há ainda muitas
dificuldades no processo de leitura compreensiva. Nesse sentido, acredita-se que o
ensino da leitura carece da abordagem via ensino das estratégias de leitura, a qual pode

52 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

ser pertinente, em especial no Ensino Médio, tendo em vista o desenvolvimento de


habilidades leitoras e o aumento da capacidade interpretativa dos alunos.
Embora a leitura seja trabalhada em todos os níveis de ensino nas escolas,
muitos alunos concluem o Ensino Médio sem uma boa capacidade interpretativa. Os
alunos aprendem a ler, mas não aprendem a ler de forma ativa, eficaz e compreensível.
Sendo assim, essa deficiência no ensino acaba impactando o desempenho dos indivíduos
na sociedade, uma vez que a capacidade interpretativa é essencial em todos os âmbitos
da vida. Por essa e por outras razões, o ensino de Língua Portuguesa deve ser repensado
para que as escolas não continuem formando os chamados “analfabetos funcionais”.
Esta pesquisa, nesse contexto, critica o “ler por ler” e oferece, como proposta pedagógica,
o trabalho com estratégias de leitura que contribuam para a ascensão social e para a
formação de indivíduos críticos e ativos em seu processo de aprendizagem e de
interpretação.
Assim, o objetivo geral deste trabalho foi propor possíveis intervenções
pedagógicas para a melhoria do ensino de leitura e da capacidade interpretativa dos
alunos do Ensino Médio, tendo como foco o trabalho com as estratégias de leitura e o
desenvolvimento da autonomia dos indivíduos. Para tanto, o trabalho foi realizado por
meio de uma pesquisa bibliográfica, que teve como base a análise da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. A pesquisa foi dividida em quatro seções:
a leitura como caminho para a autonomia; o ensino da leitura baseado nas estratégias de
leitura; as aulas de Língua Portuguesa como espaço para aprimoramento da leitura e as
propostas para o ensino de leitura. Como propostas pedagógicas para o ensino de
leitura, foram enfatizados três gêneros textuais: o infográfico, a notícia e a charge.

2 LEITURA: CAMINHO PARA AUTONOMIA

A autonomia significa que o indivíduo adquiriu a capacidade de tomar


iniciativas para alcançar o objeto do pensar. Isso não implica, evidentemente, na exclusão
do ambiente físico e sociocultural. Neste horizonte, a autonomia se opõe a qualquer tipo
de dependência ou subalternidade. Há vários tipos de autonomia: psicológica,
profissional, política, intelectual etc. Em qualquer desses níveis, a construção da
autonomia é uma trajetória em que se vai avançando paulatinamente, e seu usufruto se
dá através de formas diferentes de capital, inclusive através do capital cultural e
simbólico (BOURDIEU; PASSERON, 1970).
Considera-se como indivíduo autônomo intelectual aquele que é apto para
construir um vocabulário amplo; analisar e comparar ideias e ou teorias; selecionar e
interpretar os mais variados discursos; extrair semelhanças e diferenças nos contextos
propostos; potencializar suas explicações e sistematizá-las; articular seus conhecimentos
de forma embasada; entre outros.
Diversas pesquisas e importantes autores como Paulo Freire (2000) declaram a
importância da autonomia no ensino e a importância da leitura no processo de
construção da autonomia dos estudantes. Apesar disso, o panorama de competência
leitora no Brasil ainda preocupa. Em uma reportagem recente publicada em 24/06/2021
pelo G1, Elida Oliveira relata que o país regride em meta para acabar com o
analfabetismo e não alcança objetivo de investir mais na educação: “Uma análise sobre

53 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

o Plano Nacional de Educação (PNE) revela que três das vinte metas estabelecidas para
melhorar a qualidade do ensino do país apresentam retrocesso. O relatório de análise foi
feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Uma das metas de retrocesso é
a erradicação do analfabetismo: a meta era ter 93,5% dos brasileiros acima de 15 anos
alfabetizados até 2015; erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% o
analfabetismo funcional até 2024. Mas somente em 2020 a meta de 2015 foi atingida. O
quadro de analfabetismo funcional aumentou, quando deveria regredir. Saiu de 27% da
população de 15 a 64 anos com analfabetismo funcional em 2015 para 29% em 2018
(dados mais recentes). A meta era reduzir a 13,5% até 2024”. Nessa mesma pesquisa,
Elida mostrou que a principal meta não cumprida é a de ampliar o investimento público
em educação: “para 2024, o objetivo era investir 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em
educação pública. Entre 2015 e 2017, os gastos estiveram em torno de 5%. Em 2019,
atingiu 7%. Durante a pandemia, o quadro piorou. Segundo o relatório, houve
aceleração na desvalorização da prática docente, o que distancia ainda mais o
cumprimento desta meta”. O estudo feito pela repórter do G1 mostrou que o cenário
educacional no Brasil ainda continua em situação de regresso.
O conceito de analfabetismo vai muito além da ideia de não saber ler e escrever.
É preciso reconhecer e compreender os variados tipos de analfabetismo: o absoluto; o
digital; o político e o funcional. Dando destaque ao analfabetismo funcional, que é o foco
deste trabalho, pode-se dizer que é considerado um analfabeto funcional aquele que está
apto para ler e para escrever e que consegue descodificar os símbolos, mas não
compreende seus significados. Aquele que lê um livro, um artigo ou até mesmo um texto
simples e que não consegue compreender o seu conteúdo e interpretar o que foi lido de
forma satisfatória, pode ser considerado um analfabeto funcional. Esse é um problema
que deve ser levado a sério, pois prejudica o desenvolvimento intelectual, pessoal e
profissional do indivíduo. Por isso, o desenvolvimento de métodos que priorizem o
letramento é imprescindível na educação.
Considerando a escola como ambiente onde os alunos têm mais contato com a
leitura, vê-se nele um caminho para superar essa problemática, sendo importante os
educadores incentivarem essa prática e oferecerem metodologias ativas para que os
alunos reconheçam a função humanizadora das práticas leitoras, mantenham esse hábito
e desenvolvam sua autonomia por meio das habilidades de interpretação, pois, como
revela Freire (2000, p. 46),

uma das tarefas mais importantes da prática educativa-


crítica é propiciar as condições em que os educandos em
suas relações uns com os outros e todos com o professor
ou a professora ensaiam a experiência profunda de
assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como
ser pensante, comunicante, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de
amar.

A leitura é tida como ferramenta essencial para a construção de autonomia


intelectual. Por muitos anos, a sociedade se restringiu à ideia de que “aquele que lê

54 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

bastante torna-se muito inteligente”. Contudo, embora a leitura seja, de fato, um


instrumento de conhecimento, ela não garante, por si, o desenvolvimento da inteligência
do leitor. Para que o indivíduo extraia conhecimento máximo durante a leitura, este deve
acionar o seu papel de leitor ativo e dar sentido, significado, expectativa e objetivo ao
que se lê. Por esse motivo, as estratégias de leitura são indispensáveis nas práticas
leitoras, pois permitem que indivíduos leiam e compreendam os mais variados textos,
façam inferências pertinentes sobre o que se lê, opinem criticamente sobre discursos
polêmicos, apresentem suas visões de mundo etc.
As escolas ainda reproduzem crenças limitantes sobre a leitura em suas
propostas de atividades que, quase sempre, se restringem ao ato de descodificar termos,
avaliar a pronúncia e a pontuação e propor apenas uma interpretação geral sobre o que
foi lido. São atitudes como essas que impedem o desenvolvimento da autonomia dos
alunos, pois não lhes permitem um desfrute completo e significativo dos textos lidos,
muito menos a exposição de seus conhecimentos adquiridos na pós-leitura. Como
ressaltam Freire e Shor (1986, p. 22),

[…] ler não é só caminhar sobre as palavras, e também não


é voar sobre as palavras. Ler é reescrever o que estamos
lendo. É descobrir a conexão do texto, e também como
vincular o texto/ contexto com meu contexto, o contexto
do leitor.

Vê-se, portanto, a necessidade de as escolas repensarem suas práticas


pedagógicas e proporem atividades que estimulem a leitura ativa e proporcionem um
momento interativo para que os alunos possam compartilhar seus posicionamentos e,
consequentemente, sentirem-se ouvidos. Afinal, essa troca de pensamentos contribui
significativamente para o processo de ensino-aprendizagem e para a construção e ou
desenvolvimento da autonomia dos sujeitos.

2.1 ENSINO DE LEITURA BASEADO NAS ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Para que o ensino de leitura seja trabalhado de forma eficiente e favorável aos
estudantes, as aulas devem proporcionar uma aprendizagem significativa, a começar
pelo abandono das atividades mecânicas que levam o aluno a compreender a leitura
como uma atividade meramente escolar. O trabalho com a leitura dos textos deve partir
de atividades sociointeracionais que tenham como foco a formação de indivíduos críticos
e autônomos. De acordo com Solé (2018, on-line),

quando o objetivo é aprender, ler com competência


significa, em primeiro lugar, ler para poder se guiar num
mundo em que há tanta informação que às vezes não
sabemos nem por onde começar. Em segundo lugar,
significa não ficar apenas no que dizem os textos, mas
incorporar o que eles trazem para transformar nosso
próprio conhecimento. Pode-se ler de forma superficial,
mas também pode-se interrogar o texto, deixar que ele

55 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

proponha novas dúvidas, questione ideias prévias e nos


leve a pensar de outro modo.

Tendo como foco de ensino de leitura a formação de leitores críticos e


autônomos, faz-se necessário desenvolver atividades que propiciem o desenvolvimento
de tais habilidades (criticidade e autonomia). A interpretação é indispensável nesse
processo. Acredita-se, então, que o trabalho com as estratégias de leitura seja
fundamental nesse quesito, pois, segundo Solé (2018), elas ajudam o aluno a aplicar seu
conhecimento prévio, a realizar inferências sobre o texto e a identificar e esclarecer o que
não entende.
Segundo Kleiman (2002, p. 49),

quando falamos de ESTRATÉGIAS DE LEITURA,


estamos falando de operações regulares para abordar o
texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da
compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir
do comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do
tipo de respostas que ele dá a perguntas sobre o texto, dos
resumos que ele faz, de suas paráfrases, como também da
maneira com que ele manipula o objeto: se sublinha, se
apenas folheia sem se deter em parte alguma, se passa os
olhos rapidamente e espera a próxima atividade começar,
se relê.

As estratégias de leitura podem ser definidas como um conjunto de ações


exercidas pelo leitor para a construção de sentido do que é lido. Essas estratégias são
classificadas em cognitivas e metacognitivas por Kleiman (2002): as cognitivas se referem
às operações inconscientes do leitor e as metacognitivas são aquelas realizadas com
algum objetivo preestabelecido pelo leitor. A prática dessas estratégias é feita em três
momentos: antes da leitura, durante a leitura e após a leitura.
São alguns exemplos de estratégias de leitura:
● relacionar o título do texto com o subtítulo, com as imagens e com os gráficos -
detectar o conteúdo que será abordado;
● ler com atenção - fazer uma leitura pausada e refletir sobre o que é lido;
● sintetizar as principais ideias do texto - destacar os termos desconhecidos, as
palavras-chave, fazer breves anotações no próprio layout do texto se possível;
● ler nas entrelinhas - questionar a opinião do autor do texto enquanto o lê, tentar
adivinhar seu objetivo ao escrever o texto, relacionar a posição do autor sobre
um assunto com os conhecimentos prévios adquiridos;
● praticar a leitura em voz alta - perceber a estruturação das palavras, das
vírgulas, dos discursos e afins;
● variar a leitura dos textos - ter contato com os mais variados gêneros textuais -
identificar as semelhanças e as diferenças entre os elementos constituintes de
cada gênero textual;
● produzir textos - transcrever o que foi lido com as próprias palavras, inferir
sobre o assunto considerando as vivências e as opiniões individuais e coletivas.

56 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

Propor aos alunos do Ensino Médio a aplicação das estratégias de leitura


listadas pode despertar neles o gosto pela leitura e pelas atividades de interpretação de
texto que permeiam todas as disciplinas escolares. Cumpre dizer que a interpretação não
se restringe tão somente ao ambiente escolar e acadêmico, mas também às situações
cotidianas da vida dos estudantes.
O uso das estratégias de leitura contribui para a formação do aluno nos aspectos
cognitivo, social, político e cultural. Extrair conhecimento sobre o que se lê é refletir sobre
novas perspectivas de mundo; é ampliar o repertório de informações; é atualizar os
preconceitos; é pensar diferente; é pensar coletivo; é ser capaz de identificar o que é certo
e o que é errado, o que ético e o que é antiético; é formar opinião própria; é ter a liberdade
e a capacidade de pensar além. Considera-se, então, fundamental a participação da
escola no incentivo da aplicação de estratégias de leitura a fim de diminuir o índice de
analfabetos funcionais do país e aumentar o índice de leitores críticos e ativos.

2.2 AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: ESPAÇO PARA APRIMORAMENTO DA


LEITURA

A interpretação de texto é trabalhada durante todo o período escolar dos


alunos, desde os anos escolares iniciais, até o Ensino Médio e Superior. O ensino de
Língua Portuguesa tem uma grande relevância nesse sentido, pois é nessa disciplina que
os alunos têm o primeiro contato com as atividades de interpretação.
Enquanto o Ensino Fundamental lida com a interpretação de textos em sua
forma mais “básica”, o Ensino Médio tende a aprofundar as questões de interpretação
com o intuito de preparar o aluno para a realização de provas como o ENEM e os
vestibulares, que exigem alta interpretação por parte dos indivíduos que almejam a
aprovação. Por essa e por outras razões, o trabalho com a leitura nas escolas deve
transcender a descodificação do código escrito e proporcionar sentido à vida do sujeito.
Deve-se trabalhar a leitura e a escrita em conjunto de modo a contribuir para a
compreensão completa e significativa dos alunos, ressignificando seu aprendizado e
suas interpretações. Os gêneros textuais, tidos como suporte em que o texto se
materializa, podem, nesse sentido, colaborar positivamente no processo de interpretação
e compreensão leitora. Mikhail Bakhtin (1997) salienta que gêneros são tipos
relativamente estáveis de enunciados e os divide em gêneros textuais e gêneros do
discurso.
A BNCC de Língua Portuguesa para o Ensino Médio define a progressão das
aprendizagens e habilidades levando em conta uma série de fatores, entre os quais
destacam-se:
● a complexidade das práticas de linguagens e dos fenômenos sociais que
repercutem nos usos da linguagem (como a pós-verdade e o efeito bolha);
● a consolidação do domínio de gêneros do discurso/gêneros textuais já
contemplados anteriormente e a ampliação do repertório de gêneros, sobretudo
dos que supõem um grau maior de análise, síntese e reflexão;
● o aumento da complexidade dos textos lidos e produzidos em termos de
temática, estruturação sintática, vocabulário, recursos estilísticos, orquestração
de vozes e semioses;

57 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

● o foco maior nas habilidades envolvidas na reflexão sobre os textos e práticas


(análise, avaliação, apreciação ética, estética e política, valoração, validação
crítica, demonstração etc.), já que as habilidades requeridas por processos de
recuperação de informação (identificação, reconhecimento, organização) e por
processos de compreensão (comparação, distinção, estabelecimento de relações
e inferência) já foram desenvolvidas no Ensino Fundamental;
● a atenção maior nas habilidades envolvidas na produção de textos
multissemióticos mais analíticos, críticos, propositivos e criativos, abarcando
sínteses mais complexas, produzidos em contextos que suponham apuração de
fatos, curadoria de informação, levantamentos e pesquisas e que possam ser
vinculados de forma significativa aos contextos de estudo/construção de
conhecimentos em diferentes áreas, a experiências estéticas e produções da
cultura digital e à discussão e proposição de ações e projetos de relevância
pessoal e para a comunidade;
● o incremento da consideração das práticas da cultura digital e das culturas
juvenis, por meio do aprofundamento da análise de suas práticas e produções
culturais em circulação, de uma maior incorporação de critérios técnicos e
estéticos na análise e autoria das produções e vivências mais intensas de
processos de produção colaborativos;
● a ampliação de repertório, considerando a diversidade cultural, de maneira a
abranger produções e formas de expressão diversas – literatura juvenil,
literatura periférico-marginal, o culto, o clássico, o popular, cultura de massa,
cultura das mídias, culturas juvenis etc. – e em suas múltiplas repercussões e
possibilidades de apreciação, em processos que envolvem adaptações,
remidiações, estilizações, paródias, HQs, minisséries, filmes, videominutos,
games etc.;
● a inclusão de obras da tradição literária brasileira e de suas referências
ocidentais – em especial da literatura portuguesa –, assim como obras mais
complexas da literatura contemporânea e das literaturas indígena, africana e
latino-americana.
As aulas de Língua Portuguesa devem proporcionar aos estudantes um espaço
para aprimoramento da leitura. Nesse sentido, o professor, como mediador da turma,
deve selecionar textos com propósitos educativos, ou seja, deve escolher temas
pertinentes e sugerir a análise dos alunos em relação aos elementos constituintes da
linguagem que estão sendo trabalhados no bimestre ou no semestre. Assim, o aluno
aprende a matéria e aprende sobre o que foi lido de forma satisfatória, pois não leu de
forma mecânica, e sim com algum propósito.
Como reforça a BNCC (2017, p. 490),

cabe ao Ensino Médio aprofundar a análise sobre as


linguagens e seus funcionamentos, intensificando a
perspectiva analítica e crítica da leitura, escuta e produção
de textos verbais e multissemióticos, e alargar as
referências estéticas, éticas e políticas que cercam a
produção e recepção de discursos, ampliando as

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JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

possibilidades de fruição, de construção e produção de


conhecimentos, de compreensão crítica e intervenção na
realidade e de participação social dos jovens, nos âmbitos
da cidadania, do trabalho e dos estudos.

Para que o trabalho com a leitura em sala de aula seja aplicado de forma
estratégica e eficaz no processo de ensino e aprendizagem dos alunos, o planejamento
das aulas torna-se indispensável para o professor. As práticas pedagógicas e as
metodologias escolhidas pelo docente influenciam significativamente no alcance de seus
objetivos. Desse modo, é preciso repensar sobre as propostas de atividades que são
ofertadas aos alunos.
Ao planejar sua aula, o professor deve fazer os seguintes questionamentos:
“Que objetivos pretendo alcançar com essa aula?”; “Quais atividades devo propor para
que esses objetivos sejam alcançados?”; “Quais habilidades meus alunos podem
desenvolver com essas atividades?”; “Os textos escolhidos são pertinentes?”; “Como
propor um momento interacional com meus alunos?”. Avaliar essas questões é
extremamente importante, pois, assim, o professor consegue se nortear para aplicar a
metodologia mais adequada em sua aula.
Considerando-se as aulas de Língua Portuguesa como um espaço para
aprimoramento da leitura, vê-se a importância do trabalho com os mais diversos gêneros
textuais. Optar pela variedade de textos em sala de aula permite que o aluno reconheça
as diferentes propostas, linguagens e recursos presentes em cada gênero textual; absorva
maior entendimento sobre o tema abordado; compreenda o funcionamento da língua;
desenvolva sua criticidade e, consequentemente, sua autonomia intelectual. Cumpre
destacar que o ensino de Língua Portuguesa pautado em gêneros textuais contribui não
somente para o processo de ensino e aprendizagem da língua materna, mas também
para o incentivo ao hábito da leitura por parte dos estudantes. Cabe ao professor, então,
selecionar textos e gêneros variados para uma proposta mais dinâmica e eficiente em
suas aulas.
É com o objetivo de evidenciar como essas questões podem estar presentes no
ensino de leitura que é proposta a próxima seção, em que é apresentado o planejamento
de aulas para que se possa trabalhar com o ensino da leitura nas perspectivas
evidenciadas neste trabalho.

3 PROPOSTAS PEDAGÓGICAS PARA O ENSINO DE LEITURA

Como proposta pedagógica para o ensino de leitura nas aulas de Língua


Portuguesa, sugere-se, aqui, a aplicação das estratégias de leitura por meio do trabalho
com os seguintes gêneros textuais: a charge, o infográfico e a notícia. A justificativa pela
escolha desses gêneros se dá pelo fato de contribuírem positivamente no processo de
interpretação dos leitores, visto que a união entre os elementos verbais e não verbais
favorece uma absorção mais ampla do que é lido. Além disso, o trabalho com esses
gêneros explora um dos campos de atuação listados pela BNCC, o jornalístico-midiático,
que se caracteriza pela circulação dos discursos e dos textos da mídia informativa e
publicitária, que permite a construção de uma consciência crítica e seletiva por parte dos

59 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

alunos em relação à produção de informações e posicionamentos. O intuito é propor, a


partir dos textos escolhidos, um planejamento de aulas que possam ser aplicadas na
disciplina de Língua Portuguesa no Ensino Médio.
O tema escolhido para ser trabalhado nas aulas planejadas foi a saúde mental
dos estudantes, um assunto que versa a realidade de muitos jovens e que, na perspectiva
da autora deste trabalho, precisa ser mais discutido no ambiente escolar, principalmente
em contextos de tantas incertezas e inseguranças também decorrentes da situação
pandêmica e pós-pandêmica vivenciada atualmente.
No Ensino Médio, muitos alunos já apresentam um histórico de instabilidade
emocional devido a uma série de fatores da realidade de cada um. A questão é que, além
de lidarem com diversos problemas e preocupações pessoais, os estudantes desse nível
escolar acabam se tornando vulneráveis às pressões externas impostas pela sociedade e
até mesmo pela própria escola. O aluno do Ensino Médio se sente sobrecarregado e
esgotado emocionalmente por diversas razões: não ter decidido a profissão que deseja
atuar; não conseguir estudar no mesmo ritmo que seus colegas; ser julgado por não
querer fazer faculdade; ser “cancelado” por expor suas crenças; sofrer algum tipo de
preconceito; não se sentir ouvido e ou respeitado; não querer entrar em um curso
concorrido etc. Esses são apenas alguns motivos que podem alimentar sentimentos ruins
e resultar em sérios transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão, que podem
agravar cada vez mais se o indivíduo não mantiver o tratamento adequado. Por isso, é
tão importante falar sobre essas questões para que os alunos possam se sentir ouvidos e
acolhidos de certa forma. Isso também é papel da escola, afinal, a educação, na
perspectiva de Paulo Freire (2000), deve ser libertadora, para que se alcance uma
sociedade mais justa, mais ética, mais solidária e mais humana.
A seguir, os textos escolhidos:

Texto I: Charge

Fonte: https://medium.com/jornaldois/por-qu%C3%AA-tantos-estudantes-em-fase-pr%
C3%A9-vestibular-sofrem-com-problemas-psicol%C3%B3gicos-c9221d0a85fb. Acesso
em: 25 out. 2021.

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JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

Texto II: Infográfico

Fonte: https://novaescola.org.br/conteudo/17034/como-esta-a-saude-mental-nas-
escolas. Acesso em: 25 out. 2021.

Texto III: Notícia


ONU alerta para impacto da pandemia na saúde mental de jovens
Relatório do Unicef aponta que uma em cada 7 pessoas entre 10 e 19 anos no mundo sofre com
distúrbios mentais. Órgão das Nações Unidas diz que restrições do coronavírus geraram efeitos
adicionais a longo prazo.
Um em cada sete jovens entre 10 e 19 anos no mundo sofre de um distúrbio mental
diagnosticado, como ansiedade, depressão e problemas comportamentais, segundo um
relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado nesta terça-feira
(05/10).
A agência da ONU alerta que as restrições da pandemia de coronavírus provocaram,
quanto a isso, efeitos adicionais que são "sérios" e que serão perceptíveis "ao longo de
muitos anos".
Segundo a diretora-executiva do Unicef, Henrietta Fore, as consequências da covid-19
para o estado psicológico de crianças e adolescentes são "apenas a ponta do iceberg, porque
muitas crianças sofriam de estresse psicológico antes da pandemia".
"Foram longos 18 meses para todos nós – especialmente para as crianças", afirma Fore,
através de nota.
O Unicef destacou que existe uma grande lacuna mundial entre a necessidade de
serviços de ajuda e os recursos disponíveis para o tratamento de problemas e transtornos
mentais em jovens. Os governos estão gastando menos de 2% de seus orçamentos de Saúde
com o assunto, segundo o relatório, intitulado A Situação Mundial da Infância 2021, que
pela primeira vez enfoca a saúde mental.

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

"Muito pouco investimento vem sendo feito por governos para atender a essas
necessidades críticas. Não é dada importância suficiente à relação entre a saúde mental e
as consequências para a vida futura", destaca a diretora-executiva do Unicef.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/onu-alerta-para-impacto-da-pandemia-na-
sa%C3%BAde-mental-de-jovens/a-5941292. Acesso em: 25 out. 2021.

3.1 O PLANEJAMENTO DAS AULAS BASEADO NAS ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Disciplina / Área do Conhecimento: Língua Portuguesa


Nível escolar: do 1º ao 3º ano do Ensino Médio
Tema: A saúde mental dos estudantes
Competências / Objetivos de Aprendizagem:
− reconhecer a importância da temática;
− perceber as diferenças e as funções de cada gênero textual proposto;
− realizar uma leitura completa e significativa dos textos por meio da aplicação
das estratégias de leitura;
− realizar atividades de interpretação, de revisão e de produção textual;
− (EM13LP44) analisar, discutir, produzir e socializar, tendo em vista temas e
acontecimentos de interesse local ou global, notícias, fotodenúncias,
fotorreportagens, reportagens multimidiáticas, documentários, infográficos,
podcasts noticiosos, artigos de opinião, críticas da mídia, vlogs de opinião,
textos de apresentação e apreciação de produções culturais (resenhas, ensaios
etc.) e outros gêneros próprios das formas de expressão das culturas juvenis
(vlogs e podcasts culturais, gameplay etc.), em várias mídias, vivenciando de
forma significativa o papel de repórter, analista, crítico, editorialista ou
articulista, leitor, vlogueiro e booktuber, entre outros;
− (EM13LP19) compartilhar gostos, interesses, práticas culturais, temas/
problemas/questões que despertam maior interesse ou preocupação,
respeitando e valorizando diferenças, como forma de identificar afinidades e
interesses comuns, como também de organizar e/ou participar de grupos,
clubes, oficinas e afins.
Materiais:
− lousa;
− giz ou pincel;
− layout com os três textos e com a proposta de atividades;
− lápis;
− borracha.
Previsão para aplicação: 3 aulas (50 minutos hora/aula)

1º etapa - Apresentando a proposta de tema aos alunos e avaliando seu conhecimento


prévio

Antes de propor a leitura dos textos selecionados, o professor iniciará a aula


utilizando a técnica de brainstorming, colocando na lousa/quadro a expressão saúde
mental, tema a ser trabalhado. A partir dessa expressão, questionará os alunos,

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JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

atentando ao conhecimento prévio deles: o que vocês entendem sobre saúde mental?
Depois, a partir do que os alunos forem destacando, o professor vai
ampliando/provocando mais reflexões junto aos alunos, podendo utilizar dos seguintes
questionamentos: “Vocês acreditam que os transtornos psicológicos podem afetar a vida
pessoal, social e profissional dos indivíduos?”; “Vocês acham importante dar atenção às
emoções, por quê?”; “Vocês acreditam que haja uma incidência maior de problemas
psicológicos em que faixa etária?”; “Falar de saúde mental hoje é normal ou vocês ainda
acreditam ser tabu em determinadas situações?”. Todos esses questionamentos
contribuem para a participação da turma e permitem que os alunos compartilhem suas
visões sobre o assunto antes mesmo de terem contato com as leituras propostas pelo
professor.

2º etapa - Propondo uma leitura completa e significativa por meio da aplicação das
estratégias de leitura

Depois de contextualizá-los sobre a temática, o professor entregará aos alunos


um layout com os três textos selecionados: a charge, o infográfico e a notícia. Nesse
instante, os alunos realizarão uma leitura baseada nas estratégias de leitura propostas
pelo professor, levando em consideração os três momentos da leitura: a pré-leitura, a
leitura e a pós-leitura. Nesse processo, os alunos deverão ser direcionados a uma leitura
coletiva dos textos - o professor guiará os alunos durante a leitura para que, juntos,
possam aplicar as estratégias de leitura, esmiuçar o significado dos elementos de cada
texto e valorizar as múltiplas interpretações. Espera-se que, nessa etapa, os alunos, sob
orientação do professor, consigam:
a) na charge - relacionar os elementos verbais com os não verbais e, a partir
disso, detectar o conteúdo que será abordado; analisar atenciosamente os detalhes mais
minuciosos presentes nas caricaturas e nos objetos que compõem a parte não verbal do
texto; investigar o objetivo do texto; questionar o intuito do chargista ao criar a charge;
analisar o processo intertextual na produção do texto; utilizar setas e demais símbolos
para destacar algum detalhe importante; observar o ano de publicação do texto.
b) no infográfico - observar atentamente os dados inseridos; destacar as
informações mais importantes e fazer breves anotações; atentar à relação do verbal com
o não verbal; questionar o motivo das taxas presentes; verificar o ano de publicação do
texto; questionar o papel das autoridades diante das taxas inseridas.
c) na notícia - analisar a manchete e relacioná-la com o subtítulo da notícia; criar
expectativas com a leitura; fazer uma leitura pausada e analisar o discurso; sintetizar as
principais ideias presentes no texto; questionar a opinião do autor do texto; relacionar a
posição do autor com os conhecimentos prévios adquiridos; observar a linguagem e
notar se houve ambiguidade ou alguma outra falha na linguagem utilizada.
Com a aplicação dessas estratégias, os alunos conseguirão realizar uma leitura
mais compreensível para, assim, socializarem o conteúdo e realizarem as atividades
solicitadas pelo professor durante a aula.

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

3º etapa - Realizando atividades e propondo a elaboração de um trabalho

Na etapa final da aula, antes de realizarem as atividades, os alunos irão


compartilhar com o professor suas interpretações, suas opiniões sobre o tema, suas
críticas aos posicionamentos dos autores dos textos e outros afins. Esse momento
contribui significativamente para o processo de aprendizagem dos alunos, pois,
analisando diferentes perspectivas sobre o tema, eles conseguem ampliar seu repertório
intelectual e se posicionarem criticamente diante do assunto. Vale ressaltar que, para que
esse momento sociointeracional flua de forma favorável, os alunos precisam ter
realizado uma boa leitura dos textos, por isso defende-se a aplicação das estratégias de
leitura.
Depois de concluir essa discussão indispensável na pós-leitura, os alunos
deverão realizar algumas atividades solicitadas pelo professor, que trabalharão as
habilidades de leitura, interpretação, revisão e produção textual. O professor pedirá que
os alunos respondam às questões inseridas no layout com base nas discussões
sociointeracionais a respeito do tema. As atividades de interpretação servirão como
estímulo para o aprendizado completo dos alunos, que deverão retomar a leitura dos
textos e das anotações realizadas durante a leitura coletiva. Além das atividades de
interpretação de texto, o professor deverá elaborar questões relacionadas à estrutura e à
linguagem de cada gênero escolhido, pois, assim, os alunos podem compreender a
articulação e a singularidade de cada gênero textual. O ensino de Língua Portuguesa
precisa ser contextualizado ao uso social da língua, por isso a BNCC postula que o
contato com a variedade de textos é imprescindível para que o aluno consiga entender a
relação de sentido existente em cada detalhe contido nos textos dos mais diversos
gêneros. Vale lembrar também que a leitura crítica está intrinsecamente associada à
didática escolhida pelo professor durante a explicação e a resolução das atividades que
serão desenvolvidas em sala de aula. Sendo assim, é papel do professor optar por
atividades que façam sentido no aprendizado do aluno, para que este alcance os
objetivos esperados pelo professor durante o planejamento de sua aula.
O objetivo final dessa etapa é propor aos estudantes a elaboração de um
trabalho que será dividido em três momentos, sendo, respectivamente, pesquisa, debate
e artigo de opinião.
1. Proposta de pesquisa - o professor irá orientar os alunos para a realização de
uma pesquisa na própria escola, dividindo a sala em pequenos grupos. O foco
desta pesquisa será a elaboração de um questionário, pelos próprios alunos, que
deverá conter perguntas relacionadas à saúde mental dos jovens. Quando
finalizado, o questionário deverá ser entregue aos alunos de outras turmas para
que estes respondam a ele e o devolvam às equipes. A intenção é avaliar a saúde
mental dos estudantes e levantar dados para a realização das próximas etapas
do trabalho. Essa proposta é baseada no campo das práticas de estudo e
pesquisa, que, segundo a BNCC (2017, p. 480) é fundamental para ampliar a
reflexão sobre as linguagens, contribuir para a construção do conhecimento
científico e para a aprender a aprender.
2. Proposta de debate - com base nos dados recolhidos a partir dos questionários
que os alunos responderam, as equipes irão se preparar para um debate

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JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

supervisionado pelo professor. Nesse momento, as equipes irão discutir as


possíveis justificativas para as taxas de alunos que demonstram saúde mental
afetada, abordarão o papel das autoridades nessa questão, levantarão os tabus
que ainda persistem na sociedade e irão propor intervenções. Trata-se do
trabalho com o campo de atuação na vida pública proposto pela BNCC (2017,
p. 503), que tem por objetivo a consolidação das habilidades relativas à
participação e atuação política e social, ao debate qualificado e ético de ideias,
à consciência dos direitos e deveres e à reclamação de direitos. O debate em sala
de aula favorece a participação de toda a turma e permite que os alunos
argumentem de forma pautada e ética sobre os assuntos propostos.
3. Proposta de artigo de opinião - para fechar o trabalho, cada membro das
equipes deverá elaborar um artigo de opinião sobre o tema saúde mental dos
estudantes, levando em consideração as discussões, as leituras, o debate e a
pesquisa realizados em sala de aula sob orientação do professor. Nesse
processo, eles irão praticar a produção textual e os elementos linguísticos do
tipo de texto solicitado. Esse será o momento de transferir para o papel tudo o
que aprenderam sobre o tema de forma argumentativa. De acordo com a BNCC
(2017, p. 503), trabalhar com esse gênero permite que o aluno reconheça sua
função social e compreenda a forma como se organizam os recursos, os
elementos linguísticos e as demais semioses.
O trabalho descrito nesta seção é apenas uma sugestão que pode vir a ser
trabalhada no Ensino Médio. A partir dessas ideias, muitas outras podem surgir e muitas
outras propostas podem, também, ser aplicadas de forma satisfatória. Antes de ser
aplicado, o projeto deve ser pensado com base nos objetivos de cada professor e na
realidade de cada turma. O foco é explorar as estratégias de leitura e permitir que os
alunos desse nível de ensino construam sua autonomia, leiam de forma ativa e sejam
protagonistas de seu próprio aprendizado.
A seguir, tem-se o quadro ilustrativo do planejamento de aulas proposto:

Quadro 1: Planejamento de aulas


DESCRIÇÃO MÉTODOS OBJETIVOS
Apresentando a
Garantir a
proposta de tema aos
Técnica de participação dos
ETAPA 1 alunos e avaliando o
brainstorming alunos de forma
conhecimento prévio
estratégica.
deles…
Propondo uma leitura
Garantir uma
completa e
Pré-leitura; leitura e interpretação mais
ETAPA 2 significativa por meio
pós-leitura aprofundada dos
da aplicação das
textos lidos.
estratégias de leitura...
Realizando atividades Atividades de Garantir a
e propondo a interpretação, compreensão
ETAPA 3
elaboração de um pesquisa, debate e completa e
trabalho... artigo de opinião. significativa dos

65 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

alunos sobre o tema


abordado.
Fonte: elaborado pelas autoras, 2021.

4 CONCLUSÃO

A leitura é uma competência indispensável para o desenvolvimento pleno dos


indivíduos. Aquele que possui uma boa competência leitora é capaz de articular em
todos os meios e assumir uma postura crítica sobre qualquer assunto. Pensando no
contexto escolar, pode-se afirmar que a competência leitora dos estudantes é de extrema
relevância, pois é a partir dela que esses sujeitos irão se posicionar como cidadãos, como
seres pensantes, como membros de uma sociedade. Pelo fato de a leitura se fazer
necessária na formação do indivíduo, seu ensino deve receber uma metodologia especial
adotada pelas escolas.
Observou-se, com esta pesquisa, que o ensino de leitura nas aulas de Língua
Portuguesa do Ensino Médio carece de uma abordagem mais ativa e estratégica. Os
dados estatísticos inseridos no trabalho comprovam que o analfabetismo funcional ainda
é um desafio a ser enfrentado no Brasil em pleno século XXI. Este é um problema
estrutural que necessita da intervenção do governo, para investir na educação e cumprir
com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE); da escola, para promover um
ambiente em que os alunos se sintam motivados e acolhidos; e do professor, para
garantir uma aprendizagem mais significativa a partir de metodologias de ensino
adequadas e eficazes.
Tendo em vista a realidade abordada, considerou-se pertinente propor
intervenções pedagógicas para a melhoria da capacidade interpretativa dos alunos do
Ensino Médio, tendo como foco o trabalho com as estratégias de leitura e o
desenvolvimento da autonomia dos indivíduos. Para isso, realizou-se uma pesquisa de
caráter bibliográfico, que teve como base a análise da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) do Ensino Médio. As seções que constituíram a pesquisa fomentaram a
importância de se trabalhar com uma variedade de gêneros nas aulas de Língua
Portuguesa para, assim, proporcionar aos estudantes uma interpretação mais
significativa do que é lido. Nessa perspectiva, constatou-se que a metodologia adequada
para o ensino de Língua Portuguesa, baseada nas propostas dos próprios PCNs e da
BNCC, transforma os textos em elos e favorece a formação do sujeito em sociedade.
Como perspectiva didático-pedagógica, verificou-se, por meio deste estudo,
que a proposta de utilização dos gêneros charge, infográfico e notícia, associada à
aplicação das estratégias de leitura, tende a contribuir para o desenvolvimento da
criticidade e da autonomia intelectual do aluno. Além disso, observou-se que a proposta
de trabalho com a pesquisa, com o debate e com o artigo de opinião é extremamente
válida para o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio, pois incentiva o aluno a
investigar, a ler sobre o assunto para criar seus argumentos de criticidade. O aluno, nessa
perspectiva, torna-se protagonista de seu aprendizado.
Vê-se, portanto, a importância de se refletir sobre o ensino de leitura, na
tentativa de encontrar, além de soluções e ações que promovam um ensino significativo,

66 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


JOYCE KÉREN SIQUEIRA | CAROLINA DA CUNHA REEDIJK

meios que auxiliem tanto o professor em formação quanto os que já atuam, a fim de
direcioná-los a práticas eficientes para seu trabalho pedagógico.
Este estudo revela sua importância na preocupação com a melhoria do ensino e
do aprendizado em Língua Portuguesa; na preocupação com o desenvolvimento da
autonomia e da criticidade dos alunos do Ensino Médio; na tentativa de oferecer, aos
futuros e atuais docentes, alternativas para o melhor funcionamento do ensino de Língua
Portuguesa; na tentativa de incentivar o gosto pela leitura aos alunos; na tentativa de
diminuir os índices de analfabetismo funcional no país; na tentativa de formar
indivíduos que leiam e compreendam as entrelinhas de cada texto. Este estudo dá
margens para futuras pesquisas relacionadas ao tema e pode ser recomendado como
uma ferramenta complementar de pesquisa aos que se interessam pela temática e aos
professores de Língua Portuguesa, que, apesar dos desafios diários, encontram, em sua
missão de ensinar, a motivação necessária para persistirem.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da


criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 277-326.

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MEC/CONSED/UNDIME, 2017.

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Paz e Terra, 1986.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50.


ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 165 p.

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com-o-analfabetismo-e-nao-alcanca-objetivo-de-investir-mais-na-educacao-diz-
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OLIVEIRA, Tory. Como está a saúde mental nas escolas?: em alta no mundo, casos
ainda são tabu no ambiente escolar e o tema não faz parte da formação da maioria dos

67 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO ENSINO MÉDIO: RESSIGNIFICANDO A INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

professores. Em alta no mundo, casos ainda são tabu no ambiente escolar e o tema não
faz parte da formação da maioria dos professores. Disponível em:
https://novaescola.org.br/conteudo/17034/como-esta-a-saude-mental-nas-escolas.

ONU alerta para impacto da pandemia na saúde mental de jovens: Relatório do Unicef
aponta que uma em cada 7 pessoas entre 10 e 19 anos no mundo sofre com distúrbios
mentais. Órgão das Nações Unidas diz que restrições do coronavírus geraram efeitos
adicionais a longo prazo. 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/onu-alerta-
para-impacto-da-pandemia-na-sa%C3%BAde-mental-de-jovens/a-59412925.

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ZANETTI, Lucas. Por que tantos estudantes em fase pré-vestibular apresentar com
problemas psicológicos?: a lógica da educação como cortesia escancara como
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https://medium.com/jornaldois/por-qu%C3%AA-tantos-estudantes-em-fase-
pr%C3%A9-vestibular-sofrem-com-problemas-psicol%C3%B3gicos-c9221d0a85fb.

68 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 69-87, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

O gênero textual tirinha: uma sequência didática


balizada por mediadores tecnológicos

The comic strip genre: a didactic sequence guided by technological mediators

CÉSAR MORAIS ROSA


Graduado em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

ADRIENE STTÉFANE SILVA


Professora orientadora - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo versa elencar uma sugestão de sequência didática do gênero textual tirinha
por meio das novas tecnologias, a saber: a mídia social Facebook. Para isso, realizando-se uma
pesquisa de caráter bibliográfico, embasou-se em autores que dissertaram a respeito do tema,
como Ramos (2017), Vinhal (2019), Lopes-Rossi (2011), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011),
Bakhtin (1992), Sancho (2007), entre outros. Dentre as etapas abordadas, este trabalho apresentou
conceituações breves a respeito de mediação tecnológica e didática, aspectos composicionais do
gênero tirinha e conceituação de sequência didática. Nesse sentido, concluiu-se que é possível,
por meio de aparato tecnológico, construir atividades que ensejem as tirinhas, e que o Facebook é
um importante e inovador mediador para a circulação das tiras, para interatividade e para a
autonomia do aluno no que se refere à aprendizagem das características do gênero.
Palavras-chave: Tirinha. Sequência didática. Mediação tecnológica. Mediação didática.

Abstract: This article aims to list a suggestion for a didactic sequence of the comic strip textual
genre through new technologies: the social media Facebook. For this, bibliographical research
was conducted, based on authors who have disserted on the subject, such as Ramos (2017), Vinhal
(2019), Lopes-Rossi (2011), Dolz, Noverraz, and Schneuwly (2011), Bakhtin (1992), Sancho (2007),
among others. In the approached steps, this work presented brief concepts about technological
and didactic mediation, compositional aspects of the comic strip genre, and didactic sequence.
The conclusion was that it is possible, using technology, to build activities that involve comic
strips and that Facebook is an innovative and significant mediator for the circulation of the strips,
interactivity, and the student's autonomy when it comes to learning the characteristics of the
genre.
Keywords: Comic strip. Didactic sequence. Technological mediation. Didactic mediation.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho pretende elencar uma sugestão de um projeto pedagógico


balizado por mediadores tecnológicos para os anos finais do Ensino Fundamental II de
escolas públicas, uma vez que se observa o crescente número de circulação das tiras na
internet.

69 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

Nesse sentido, buscamos compreender como as novas Tecnologias da


Informação e Comunicação (TICs) têm modificado o processo de ensino-aprendizagem,
em especial o de língua materna, reestruturando as relações de ensino. Com a inserção
delas, percebe-se que o poder disciplinador é quebrado, dando espaço para a mediação
da informação versus conhecimento pelo professor, que se torna, agora, mediador do
processo de ensino- aprendizagem (PASSOS; ASSUNÇÃO DE AGUIAR, 2016).
Além disso, concebe-se o aluno como autônomo em seu processo de
aprendizagem, e não mais como um repositório de conhecimento. Desse modo,
entendemos, como Sancho (2007), que é preciso haver uma nova postura do professor e
dos especialistas em educação quanto à implementação do aparato tecnológico na sala
de aula, usando-o de forma crítica e inovadora.
Dentro dessa perspectiva, trabalhar o gênero tirinha mediado pelas novas
tecnologias, numa sugestão de atividades sequenciais, pareceu-nos proveitoso e eficaz,
levando-se em consideração a nova abordagem que os textos ganharam ao longo do
tempo, em sala de aula. Valemo-nos da rede social Facebook, que, por meio de seus
instrumentos, pode potencializar o ensino modular e a produção final do gênero tira.
Portanto, inspirando-nos em Ramos (2017) e em Vinhal (2019), abordamos
alguns aspectos prototípicos do gênero tirinha, na tentativa de fazer com que o professor,
na sequência didática, consiga reunir o maior número de informações possível para
sistematizar as características da tira. Nesse sentido, construímos nossas atividades
sequenciais sempre embasados nos postulados teóricos de Dolz, Noverraz e Schneuwly
(2011).
Logo, sugestionamos que o professor-tutor leve os alunos a entrar em contato
com o referido gênero por meio de blogues, páginas de redes sociais, sítios eletrônicos,
estabelecendo um problema de comunicação bem definido: que é a postagem da
reprodução da tira na rede social do aluno, ressignificando, assim, a circulação e
permitindo, de forma significativa, que o aluno descubra se os objetivos, traçados na
sugestão de nossa sequência didática, foram cumpridos e se ele, de fato, realmente
internalizou os aspectos discursivos e composicionais da tirinha. Entendemos que, dessa
forma, ao se aplicar a sequência que propusemos, o professor mediador inovará suas
aulas, chamando a atenção dos alunos, potencializando o ensino-aprendizagem e
contribuindo para uma aprendizagem divertida e significativa.
Em consonância com o exposto, esta pesquisa buscou responder ao
questionamento seguinte: como utilizar as TICs no processo de ensino-aprendizagem do
gênero tira e como abordar, sistematicamente, este gênero? Para isso, elaborando a
sugestão de uma sequência didática, objetivamos apresentar sugestões de mediações
didática e tecnológica, por meio de atividades sequenciais, para se trabalhar o gênero
tirinha; abordar os aspectos globais de uma tira, bem como sua definição; elencar o
conceito de sequência didática.
A escolha do gênero tira justifica-se pelo fato de, em sua conjugação, trazer
desenhos, imagens etc, o que pode captar a atenção do alunado, e pelo fato de estar, com
base em Ramos (2017), ancorada em experiências da vida, o que aproxima o aluno, cada
vez mais, do conteúdo a ser trabalhado. Esta pesquisa colabora com a mediação didática
e tecnológica dos professores quanto à abordagem do gênero discursivo tirinha,
permitindo-lhes refletir acerca do ensino-aprendizagem e sugestionando a eles

70 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

propostas de atividades a serem utilizadas em sala de aula ou como parâmetro para uma
abordagem inovadora.
Cumpre informar que os objetos metodológicos deste artigo são de natureza
bibliográfica, aludindo a arcabouços teóricos de estudiosos que dissertaram sobre o
tema, como Ramos (2017), Sancho (2007), Lopes-Rossi (2011) etc. Ainda cumpre informar
que este trabalho está disposto em 6 seções: 1 Considerações iniciais; 2 Texto na sala de
aula; 3 TICs voltadas ensino-aprendizagem de língua portuguesa; 4 O gênero tira; 5
Estratégias pedagógicas balizadas por mediadores tecnológicos; 6 Considerações Finais.

2 TEXTO NA SALA DE AULA

Em sala de aula, a abordagem do texto, ao longo dos anos, modificou-se a partir


de novas concepções de ensinar-aprender. Entende-se, atualmente, que o texto é a base
do ensino- aprendizagem de língua portuguesa no ensino fundamental; todavia,
reportando-se à metodologia criativa, ele foi tomado, nas últimas décadas, como um
material ou objeto empírico, que propiciava reflexões linguísticas e práticas de leitura e
de produção. Logo, nesse ínterim, “não havia espaço para o ensino, e o texto era tomado
como objeto de uso, mas não de ensino” (ROJO; CORDEIRO, 2011, p. 8).
Com o ensino de procedimentos numa abordagem cognitiva e textual, tomou-
se o texto, com o passar do tempo, como suporte para desenvolvimento de estratégias e
habilidades de leitura e de redação, isto é, ele é articulado como uma base, um suporte
para serem desenvolvidas estratégias necessárias de planejamento. De acordo com Rojo
e Cordeiro (2011), dentro dessa perspectiva, ler o texto, em sala de aula, é a situação que
ocasiona a aprendizagem de estratégias a que o alunado recorre; e produzi-lo gera
agenciamento de estratégias de revisão, de planejamento e de editoração.

3 TICs VOLTADAS AO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA

O avanço das tecnologias digitais tem modificado as formas de comunicação e


de interação sociais dos indivíduos, que estão cada vez mais num contexto cibercultural,
metassignificando o acesso a informações, assim como a propagação delas. Portanto, de
acordo com Sancho et al (2007, p. 17), “torna-se difícil negar a influência das Tecnologias
da Informação e Comunicação na configuração do mundo atual, mesmo que esta nem
sempre seja positiva para todos os indivíduos e grupos”.
A partir de 1985, com os chamados nativos digitais, é que se percebeu uma
intensificação de todo esse aparato tecnológico. Isso porque todo o mundo globalizado
reestruturou-se com a inserção das TICs, engendrando novas relações de poder, de
emprego e novas perspectivas, por exemplo. Infere-se, pois, que a era digital trouxe
grandes contribuições à humanidade, podendo até ser comparada com o surgimento da
linguagem e da imprensa. Como extensões da capacidade humana, “[a]s tecnologias
digitais estão alterando o funcionamento do homem e criando uma relação de
dependência” (PASSERO; ENGSTER; DAZZI, 2016, p. 2).
Isto posto, é indubitável que as TICs tenham afetado o ensino-aprendizagem na
educação básica, especialmente em que pese o ensino-aprendizagem de língua

71 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

portuguesa, à qual nos reportamos, em diversas modalidades, constantemente nos


meios virtuais. Oliveira e Silva (2020, p. 2) atestam que é importante que

isso seja aproveitado, articulado enquanto estratégias


pedagógicas por parte dos professores de Língua
Portuguesa, a fim de tornar as aulas mais próximas da
realidade social/cibercultural, e fazer com que os alunos
usem a língua de forma significativa, construindo-se,
desse modo, caminhos para que a aprendizagem ocorra
processualmente, de forma coletiva e, principalmente,
colaborativa. Necessário, pois, uma postura diferenciada
do professor em relação ao conhecimento e a sua
concepção de ensino.

Nesse ínterim, afirma-se a necessidade de uma nova postura do professor e,


dessa forma, de uma nova pedagogia. Implementando-se as tecnologias digitais na
educação, a saber, nas aulas de língua materna, o profissional docente torna-se, portanto,
ponte rolante do conhecimento, quer dizer, ele passa a mediar o processo de educar-
aprender, transformando as informações trazidas pelo alunado em conhecimento
concreto. Isso implica desafios, visto que o docente, então, tem de ir de encontro à
educação bancária, rompendo os paradigmas tradicionais de ensino, a fim de que haja
uma aprendizagem significativa (fusão da mediação didática e mediação tecnológica).
Desse modo, observa-se que o professor-tutor deve esquivar-se, agora, do lugar
de detentor do conhecimento, entendendo o aluno como o agente de seu próprio
processo de sua aprendizagem, o centro dele. A escola, por sua vez, deve estar aberta,
aspirando a uma nova visão diante das mudanças sociais e trilhando um caminho que
vá ao encontro da reconfiguração social em face das TICs.
Pensando nisso, o ensino de língua portuguesa tem de estar “atrelado a
situações que combinem o desenvolvimento das habilidades linguísticas (ler, falar,
escrever, ouvir), com o uso das tecnologias digitais” (OLIVEIRA; SILVA, 2020, p. 4).
Necessário se faz, pois, na tentativa de construir um ambiente educacional mais criativo,
inventivo e conectado com os jovens, que o professor vá além da teoria, pensando na
criação de práticas pedagógicas que permitam a apropriação daquilo que é
utilizado/disponibilizado nos ambientes virtuais, nas aulas de língua materna.
Entretanto, é preciso salientar que não basta lançar mão das tecnologias digitais
de forma mecânica, procedimental. É importante que haja reflexão, crítica acerca do uso
delas na educação, de forma a balizar e embasar propostas, posicionamentos,
ressignificar ações. À vista disso, entende-se que essas evoluções tecnológicas devem ser
entendidas como mediadores tecnológicos no processo de ensino-aprendizagem, isto é,
devem ser vistas como forma de potencializar o ensino.

O que mostra essa facilidade de adaptação das TIC às


diferentes perspectivas sobre o ensino e a aprendizagem é
que, em si mesmas, não representam um novo paradigma
ou modelo pedagógico. Assim, professores e especialistas
em educação tendem a adaptá-las às suas próprias crenças

72 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

sobre como acontece a aprendizagem. O desafio é que os


profissionais da educação mudem de imediato sua forma
de conceber e pôr em prática o ensino ao descobrir uma
nova ferramenta. Como mostra a história da educação, a
administração e os professores costumam introduzir
meios e técnicas adaptando-os à sua própria forma de
entender o ensino, em vez de questionar suas crenças,
muitas vezes implícitas e pouco refletidas, e tentar
implantar outras formas de experiência docente
(SANCHO et al, 2007, p. 22).

Consoante Passos e Assunção de Aguiar (2016), nessa perspectiva, conclui-se


que o professor-tutor analisa as situações de aprendizagem, propondo ao alunado
desdobramentos e reflexões sobre a prática.

4 O GÊNERO TIRA

A esta seção cabe explicitar as características do gênero tira, apresentando os


aspectos integrantes dele, bem como sua definição. Sabe-se que esse gênero textual
discursivo apresenta-se com um desfecho humorístico e é veiculado geralmente em
jornais, revistas, páginas virtuais entre outros. Além disso, possui uma natureza político-
social.
A maior parte dos dicionários sintetiza a definição de tira, quando aplicada a
quadrinhos, limitando-se ao número de quadros apresentados e à forma como estes são
dispostos. A título de exemplo, vejamos um verbete apresentado pelo Dicionário Houaiss
da língua portuguesa: “Segmento ou fragmento de história em quadrinhos, geralmente
com três ou quatro quadros, e apresentados em jornais ou revistas numa só faixa
horizontal”.
Ramos (2017), propondo uma nova possibilidade de definição, reportando-se à
realidade de uso da tirinha, apresenta-nos a forma como ela tem sido utilizada na prática,
tanto no papel quanto na internet. Desse modo, indo de encontro à definição dos
dicionaristas, ele concebe tira como faixa horizontal ou também vertical, com um ou mais
quadrinhos ou vinhetas (sinônimo para os quadros), sem nenhuma obrigatoriedade de
número de quadrinhos para que haja a configuração da tira.
Isso porque se verificou que, em razão do suporte (digital ou papel) e da mídia
em que o gênero é veiculado, o molde utilizado para a tira varia. Com o passar do tempo
e com a crescente utilização das mídias sociais e inserção nelas, modifica-se o suporte e,
por sua vez, modifica-se o tamanho do quadro em que a história aparece, flexibilizando-
se o uso dos formatos e a maneira como são dispostos.
Vejamos, nas figuras a seguir, o uso dessas ocorrências supracitadas.

73 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

Figura 1: História de Armandinho, criada no tamanho tradicional de tira: uma faixa


horizontal, composta, no caso, por três vinhetas e produzida por Alexandre Beck

Fonte: https://tirasarmandinho.tumblr.com/. Acesso em: 20 de out de 2021.

Figura 2: História de Armandinho criada na vertical, produzida por Alexandre Beck

Fonte: https://wordsofleisure.com/tag/alexandre-beck/. Acesso em: 20 de out de 2021.

Observa-se, em face do exposto, que, na figura 1, a tira foi criada no seu formato
tradicional, com três quadrinhos de mesmo tamanho. Em comparação, na figura 2, há
uma disparidade no formato dos quadrinhos e na disposição deles: o segundo
quadrinho é maior que o primeiro, e a tira é apresentada na vertical.
Outro aspecto pertinente é o fato de que as tiras na vertical não são comumente
empregadas nos jornais brasileiros; em contrapartida, nos norte-americanos, isso já é
habitual. Pensando nisso, uma vez que o suporte influencia na limitação do formato das
vinhetas, Ramos (2017, p. 16) adverte que “as mídias sociais permitem que o autor crie e
veicule a tira tanto na vertical quanto na horizontal”.

4.1 TIRA OU TIRINHA: O QUE USAR?

Podemos perceber que, nesta pesquisa, faz-se o uso alternado de dois


vocábulos: tira e tirinha, referindo-se à composição em quadrinhos. Diante disso, talvez
surja uma pertinente indagação: qual termo devemos usar?
De modo que nos explicasse a consolidação de ambos os usos, Ramos (2017)
salienta-nos que, na internet, há páginas virtuais que trazem à tona os dois termos: ora
referem- se às histórias como sendo tiras, ora referem-se a outras como tirinhas.
Percebemos, portanto, que já estamos acostumados com essas palavras nas publicações
deste século. Contudo, evidencia-se que nem sempre isso ocorreu, porque, na fase pré-
internet, nos compêndios lançados no país até a primeira década deste século, o termo
mais comum a ser utilizado era tira.

74 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

Ramos (2017, p. 39) ainda apresenta que

[...] o que se percebe é que a palavra “tirinha” começou a


se popularizar neste século. Um dos motivos possíveis
disso deve ser creditado à internet e à forma como autores,
leitores e editores passaram a se referir a esse formato de
produção de história em quadrinhos. Materiais didáticos,
documentos oficiais relacionados ao ensino e produções
acadêmicas, que também registram o termo “tirinha”,
parecem refletir esse uso difundido virtualmente.

Observa-se, nessa perspectiva, que a globalização, com o advento da internet,


trouxe muitas modificações nas definições, nas composições e nas apresentações de
gêneros textuais, em especial, o gênero discursivo tira.
Na prática, ambas as palavras têm utilidades e funcionam como sinônimas. Mas
há outros motivos por que o termo “tirinha” popularizou-se rapidamente, como o fato
de haver uma pluralidade de expressões para lançar mão das tiras no país.
Segundo Ramos (2017), nos Estados Unidos, país em que as tiras nasceram
comercialmente, batizou-se a tira como comic strips, que equivale à conhecida, nos países
hispânicos e no Brasil, tira cômica. Nosso país, por outro lado, registra várias formas de
referir- se a ela: tira, tira cômica, tira de humor, tira humorística, tira em quadrinhos, tira de
quadrinhos, tira de jornal, tira jornalística, tira diária, tirinha, tirinha cômica, tirinha de humor,
tirinha humorística, tirinha de jornal, tirinha diária.

4.2 MODOS DE LINGUAGEM NAS RELAÇÕES VERBO-IMAGÉTICAS

Hodiernamente, compreende-se que não prevalece a ideia de que um texto é


composto unicamente do signo verbal. Por conseguinte, ao lermos uma tirinha,
percebemos que há mais de um modo de linguagem, quer dizer, encontramos
imagens/gravuras e palavras. Esse tipo de conjugação leva o nome de texto icônico-verbal,
linguagem híbrida ou mista ou texto multimodal. São textos que, em sua configuração,
combinam linguagem verbal e não-verbal.
Nota-se que o gênero tira ficaria incompreensível se as imagens e os elementos
gráficos dele (desenhos, cores, ícones etc.) fossem eliminados, isso porque as imagens
não são simples ilustrações dos textos verbais – trazem consigo sentido/coerência para o
texto, quando as captamos por intermédio da visão.
Toda essa composição reflete o impacto das novas mídias digitais na sociedade,
especialmente na educação, com uma nova composição de textos, evidenciando o
multiletramento, isto é, letramento em múltiplas linguagens (imagens estáticas e em
movimento, música, dança e gesto, linguagem verbal oral e escrita etc.) e em múltiplas
culturas. (ROJO; MOURA, 2019).
Logo, ensinar os gêneros orais e escritos na escola, em especial a tirinha, requer
do docente uma prática pedagógica mais elaborada e planejada, porquanto o gênero em
questão traz, por meio de outros signos linguísticos, concepções e significações para a
construção de sentido.

75 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

4.3 UM GÊNERO DISCURSIVO

De antemão, cabe aqui advertir que os vocábulos discursivo e textual carregam


o mesmo valor informativo em se tratando de gênero escolarizado.
Entende-se que a linguagem realiza-se nas práticas sociais (situações de
linguagem), evocando características de quem fala, do que se fala e de onde se fala.
Entendemos, como Bakhtin (1992), portanto, que o enunciado é uma unidade de
comunicação verbal e que todo dizer é ideológico, isto é, a língua apresenta-se como um
fenômeno histórico-social. Isso implica salientar que a característica estrutural específica
de cada gênero limita-se em conformidade com as experiências verbais dos participantes
do diálogo.
Nesse viés, Bakhtin (1992) articula os gêneros discursivos como tipos de
enunciado criados dentro dos vários campos de exercício humano. Consoante Dolz e
Schneuwly (2011), os gêneros do discurso são introduzidos por meio das práticas de
linguagem, das capacidades de linguagem e das estratégias de ensino.
Em conformidade com esse arcabouço teórico, infere-se, logo, que o gênero
textual tira justifica-se como discursivo porquanto revela muito acerca de questões
sociais, do contexto político e dos dramas que a sociedade vive, moldando nossa fala ao
formato dele, apresentando-se, nesse sentido, como ideológico; e atuando nas nossas
mediações comunicativas:

[C]ircula socialmente por meio de jornais, revistas, livros


didáticos, além de redes sociais e blogs especializados
neste gênero. Muitos de seus personagens são veiculados
em propagandas, desenhos animados, filmes e outros,
portanto um gênero com o qual o discente tem contato
(VINHAL, 2019, p. 17).

Portanto, parece-nos atrativo e inovador abordar o gênero tira humorística no


ensino-aprendizagem de língua portuguesa, já que ele nos revela e muito questões
sociais, históricas e políticas, por meio das TICs, de modo a balizar e reestruturar os
aspectos discursivos da tira, modificando sua recepção.

5 ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS BALIZADAS POR MEDIADORES


TECNOLÓGICOS

Nesta seção, propusemo-nos elencar sugestões para uma prática pedagógica


que enseje, por meio dos mediadores tecnológicos, a leitura e a produção escrita do
gênero textual tira humorística em uma sequência didática. Para isso, necessário se faz,
de antemão, recordarmos breves conceituações acerca de um ensino do gênero escrito
ou oral em esquema sequencial, já que

[C]abe ao professor, portanto, criar condições para que os


alunos possam apropriar-se de características discursivas
e linguísticas de gêneros diversos, em situações de

76 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

comunicação real. Isso pode ser feito com muita eficiência


por meio de projetos pedagógicos que visem ao
conhecimento, à leitura, à discussão sobre o uso e as
funções sociais dos gêneros escolhidos e, quando
pertinente, a sua produção escrita e circulação social
(LOPES-ROSSI, 2011, p. 71).

Sempre com vistas à mediação didática do professor, entendemos que ele, como
tutor, possibilita a criação de um espaço de aprendizagem inventivo e significativo para
os educandos, competindo-lhe abordar os diversos gêneros textuais por meio de projetos
didáticos, de modo a sistematizar e a construir o conhecimento do alunado.

5.1 O QUE É UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA?

Muito se tem discutido a respeito do ensino dos gêneros escritos e orais na


escola, desde sua apresentação e leitura até a produção escrita. Por isso, em sua coleção,
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011) afirma-nos que, embora um desafio, é possível
ensinar a escrever textos e a comunicar-se em situações públicas escolares e
extraescolares.
Ao comunicarmos, adaptamo-nos à situação de fala, lançando mão de
diferentes recursos de acordo com as condições em que estamos inseridos. O enunciado
se comprova porquanto não falamos do mesmo modo quando escrevemos um bilhete e
um currículo, por exemplo, uma vez que esses gêneros são produzidos em
circunstâncias diferentes.
Isto posto, um projeto pedagógico balizado por uma sequência didática objetiva
levar o alunado a dominar melhor determinado gênero com que não está familiarizado,
permitindo-lhe, portanto, escrever ou falar de uma maneira mais adequada em dada
situação de fala. Para Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011, p. 82), uma sequência didática “é
um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de
um gênero textual oral ou escrito”. Infere-se, assim, que as sequências didáticas atuam
como facilitadoras no processo de absorção das práticas de linguagem novas ou
dificilmente domináveis pelos alunos.
A seguir, vejamos o esquema cunhado pelos referidos autores sobre a estrutura
de base de uma sequência didática.

Figura 3: A estrutura de base de uma sequência didática

Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011, p. 83).

77 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

De forma a compreender as especificidades de uma sequência didática, é


importante ter em mente algumas ponderações importantíssimas: os princípios teóricos
do procedimento, a natureza em módulo e as possibilidades de diferenciação deste, as
distinções entre os trabalhos com oralidade e com escrita e a articulação entre o trabalho
na sequência e outros domínios de ensino de língua.
Apresentaremos agora, resumidamente, do que trata cada etapa de uma
sequência didática.

1. Apresentação da situação é a etapa que expõe aos alunos um projeto de


comunicação que será reproduzido “verdadeiramente” na produção final.

A produção inicial de apresentação da situação permite, portanto, fornecer aos


alunos todas as informações necessárias para que conheçam o projeto comunicativo
visado e a aprendizagem de linguagem a que está relacionado. Na medida do possível,
as sequências didáticas devem ser realizadas no âmbito de um projeto de classe,
elaborado durante a apresentação da situação, pois este torna as atividades de
aprendizagem significativas (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p. 85, grifo
nosso).

2. Produção inicial constitui-se na etapa em que há o primeiro lugar de aprendizagem


da sequência. Porque, conforme atestam Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011, p.
86), “[n]o momento da produção inicial os alunos tentam elaborar um primeiro
texto oral ou escrito e, assim, revelam para si mesmos e para o professor as
representações que têm dessa atividade”.

3. As etapas modulares trabalham os problemas que aparecem na primeira


produção, dando aos alunos os instrumentos necessários para pleiteá-los.

Em cada módulo, é muito importante propor atividades as mais diversificadas


possíveis, dando, assim, a cada aluno, a possibilidade de ter acesso, por diferentes vias,
às noções e aos instrumentos, aumentando, desse modo, suas chances de sucesso (DOLZ;
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p. 89).

4. Produção final é a etapa em que a sequência é finalizada com uma produção, com
vistas à divulgação e à circulação do gênero, o que dá ao aluno a possibilidade
de praticar as noções e os instrumentos elaborados e trabalhados, de forma
separada, nas etapas modulares. Esta etapa permite ao professor realizar uma
avaliação somativa. Nesse sentido, Lopes-Rossi (2011, p. 78) observa que “é de
grande satisfação para todos os envolvidos no projeto. Sentimentos como
emoção e orgulho encerram um processo que, certamente, contribuiu muito
para o desenvolvimento das habilidades comunicativas dos alunos e para a
ampliação de seu conhecimento de mundo”.

78 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

5.2 SUGESTÃO DE ESTRATÉGIA PEDAGÓGIGA PARA ABORDAGEM DO GÊNERO


TIRA: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA PELO FACEBOOK

O impacto do aparato tecnológico nas línguas contribuiu para o surgimento de


uma nova realidade que aponta para o que os teóricos chamam de letramento digital.
Dentro dessa perspectiva, Ribeiro (2012, p. 45 apud VINHAL, 2019, p. 41) explicita que
“o letramento digital está dentro do letramento1 mais amplo, não linearmente, mas numa
rede de possibilidades. Ele pode começar no impresso e partir para os digitais, uma vez
que muitas ações se assemelham nesses ambientes; ou fazer o trajeto no sentido
contrário”.
Pensando nisso, entende-se que o gênero tira cômica “contribui
significativamente para aprimorar a capacidade de uso da linguagem e está presente
também no mundo digital” (VINHAL, 2019, p. 41). Assim como afirma Ramos (2017),
articulamos a era digital, nos quadrinhos, na forma de produção das histórias, com os
vários recursos do computador e com o contato entre as pessoas (o que é traduzido em
suporte e circulação), proporcionado pelo e-mail e pelas mídias sociais.
Percebe-se, nesse viés, que, ao longo do século, o suporte em que as tirinhas se
materializavam modificou-se, transformando – como já analisado na seção 4 desta
pesquisa – o formato e a disposição das tiras. Além disso, o autor pode abjurar da
dependência de um espaço nos jornais para a circulação e divulgação do gênero.
É isso que postula Ramos (2017, p. 141), ao apontar que,

[S]e ao longo do século XX, o desenhista dependia de um


espaço nos jornais para divulgar suas tiras, basta agora ele
criar um blog, um site ou uma página numa rede social
para expor seu trabalho – isso pode ser feito
gratuitamente, inclusive, e sem o auxílio de um
profissional especializado. A disputa vaguinha nos diários
impressos perdeu terreno para a liberdade proporcionada
pelo meio virtual.

Dessa forma, o número de tiras publicadas em blogues, sítios eletrônicos e em


redes sociais já ultrapassa o volume de tiras publicadas em jornais. A revolução digital
vista nas tirinhas brasileiras configura um diferencial: na internet, o leitor pode acessar
exclusivamente o site ou blogue do autor, sem que tenha de dividir a atenção com outras
séries (RAMOS, 2017).
Apresentamos, neste artigo, algumas modificações nas tiras advindas da
inserção das TICs. Torna-se, em vista disso, importante reportar que essas novas
tecnologias também modificaram a ordem paratextual2. Já não há necessidade, por
exemplo, de o autor registrar seu nome e o título da série na parte acima da história, uma
vez que as tirinhas humorísticas estão sendo veiculadas nos próprios blogues e redes
sociais dos autores.

1 Segundo Soares (2003, apud Rojo e Moura, 2019, p. 14), letramento “é o estado ou condição que
adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter apropriado da escrita”.
2 Ramos (2017) concebe paratexto como os elementos que ficam no entorno do texto.

79 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

Agora, nesses suportes, amplia-se a interatividade, incentivando-a, pois os


recursos tecnológicos dos gêneros digitais possibilitam a postagem (palavra utilizada para
referir-se às publicações em mídias sociais) não só de comentários, emojis3, figurinhas,
mas também de reações, por exemplo: as de amei e de curti. De acordo com Ramos (2017,
p. 145), desse modo, esse tipo de interação “constrói relações próprias, tanto entre o autor
e o leitor quanto entre os próprios internautas. Seja em qual plataforma de acesso for”.
Após toda essa contextualização sobre as tiras digitais, apresentaremos uma
sugestão de projeto pedagógico para a produção escrita do gênero discursivo tira por
meio das TICs, tomando por base uma sequência didática. Cumpre salientar que esta
pesquisa construiu-se pensando no ensino público, portanto levamos em conta a
infraestrutura e os recursos dos colégios públicos, bem como a gestão escolar.
Desse modo, este projeto destina-se aos anos finais do ensino fundamental II
das escolas públicas, porque entendemos que os alunos já têm um repertório de
conhecimento para discutir, analisar e articular os aspectos composicionais e discursivos
do referido gênero. No que tange, portanto, à educação básica pública, é preciso
considerar os níveis de ensino, os materiais didáticos e tecnológicos que estão à
disposição do corpo docente e a direção escolar, que muito contribui para a
implementação de práticas pedagógicas que aspirem à inovação.
Como já dissertado, a primeira etapa de uma sequência didática é a apresentação
inicial da atividade de linguagem a ser realizada. Nesta etapa, é importante que o docente
aspire à produção final da tirinha, expondo aos alunos um projeto de comunicação bem
definido que será realizado “verdadeiramente” na produção final: a divulgação das
tirinhas produzidas em sala de aula na conta pessoal de cada aluno, no Facebook. Na
exposição do problema de comunicação, o professor deve fazer questionamentos de
natureza discursiva da tirinha a ser confeccionada, elencando a) qual gênero será abordado:
trata-se de uma tira de humor, texto multimodal, veiculado, ao longo dos tempos, em
lacunas de jornal, revistas, livros didáticos, blogues etc., abordando aspectos ideológicos
por meio de um desfecho cômico; b) a quem se dirige a produção: amigos, colegas da rede
social em questão; c) que forma assumirá a produção: o suporte a ser utilizado será uma
folha sulfite em que se reproduzirá a tira à mão, que posteriormente será
fotografada/digitalizada pelo aparelho eletrônico de cada aluno; e d) quem participará da
produção: produção individual.
Para que o aluno conheça bem o gênero a ser trabalhado, é preciso que o
professor, como mediador, comece a sistematizar o conhecimento do alunado, por meio
de uma investigação de informações, fazendo com que o alunado entre em contato com
o gênero tira. Entendemos que este ponto desta atividade sequenciada possa gerar uma
imprecisão quanto às etapas de uma sequência didática para o professor, já que a
apresentação inicial e as etapas modulares podem misturar-se, gerando um
questionamento: ora, os módulos não são os processos em que se expõe o gênero,
trabalhando seus aspectos composicionais, temáticos e discursivos?
A resposta para essa pergunta está no fato de ser importante a sistematização do
conhecimento prévio do aluno. Assim, senão organizar, reunir, o que é sistematizar?

3De acordo com Vinhal (2019, p. 40), o termo “emoji é elaborado a partir das palavras japonesas
e (imagem) e moji (personagem)”.

80 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

Trabalhamos, portanto, como já abordado neste trabalho, com a concepção do professor-


tutor, mediador. Nesse sentido, cabe-lhe conduzir a organização e o processo de ensino-
aprendizagem do aluno quanto ao gênero tira. Quer dizer: ele não pode chegar à sala de
aula e despejar todos os aspectos composicionais, por exemplo, da tirinha. Se o fizesse,
entenderia o aluno como um repositor passivo de conhecimento, e não como autônomo
de seu próprio processo de aprendizagem.
Pensando nisso, nesta sugestão, propomos que o professor reúna e analise, de
acordo com a temática e com a faixa etária, tirinhas para serem apresentadas aos alunos,
com vistas à sistematização do conhecimento e à produção final. Para isso, esses
profissionais podem se valer de sítios eletrônicos, de páginas de redes sociais, de blogues
etc., que também serão apresentados aos discentes.
Antes de irmos à sugestão de sistematização do gênero tira, é importante
salientar que – pensando na estrutura e recurso da escola em que os docentes trabalham
– estes podem optar, na etapa de exposição inicial das tirinhas, por levar os alunos para
a sala de informática disposta de computadores com acesso à internet ou por pedir aos
discentes que utilizem o aparelho eletrônico para a pesquisa. Julgamos a última opção –
com a qual trabalhamos nesta sequência – mais prática, em se tratando da otimização do
tempo e do acesso mais rápido a sítios eletrônicos, blogues, páginas em redes sociais etc.
Mas é preciso considerar o perfil da turma, o que nos leva a traçar melhores estratégias
pedagógicas, analisando se todos conseguem ir, mantendo-se a disciplina, à sala de
informática, ou se todos, no caso da utilização do celular em sala de aula, possuem um
aparelho eletrônico e se ele tem acesso à internet. Havendo isso ocorrido, é hora de expor
aos alunos o gênero textual.
Analisemos, a título de exemplo, a tirinha escolhida, via
https://www.facebook.com/tirasarmandinho, página do Facebook, que representa a
personagem Armandinho, de Alexandre Beck, para a apresentação e contato inicial.

Figura 4: História de Armandinho, de Alexandre Beck (2021)

Fonte: https://www.facebook.com/tirasarmandinho. Acesso em: 26 out. 2021.

Na figura 4, a primeira vinheta evoca a fala de um adulto perto de Armandinho,


salientando que há um pouco de calcário (rocha sedimentar composta por diversos
minerais) num recipiente (o texto icônico: o recipiente e o olhar de Armandinho e o do
sapo, seu animal de estimação, apontam-nos para tal fato). Na segunda vinheta, o adulto
diz que o calcário ajuda a corrigir o solo, já que neutraliza a acidez fornecendo
macronutrientes. Na terceira vinheta, nota-se, como recurso humorístico, a quebra do
sentido até então construído, uma vez que, após refletir (o texto icônico da segunda
vinheta explica), a personagem Armandinho, não se valendo da coerência da relação
enunciada, concebe a correção do solo como uma fustigação, um castigo.

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O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

Dado isso, portanto, o professor-tutor pode passar algumas atividades


relacionadas à tira, como, por exemplo:
1) Quem são as personagens desse texto?
2) O que nos leva a construir o humor que ele traz?
3) Há um diálogo anterior ao que foi apresentado? Justifique sua resposta.
4) Por que aparecem quadrinhos no texto lido?
5) Como os desenhos desse texto influenciam nosso entendimento?
O mediador, assim, vai construindo, por meio da sistematização, o que é o
gênero tira e como ele nos é apresentado. Nota-se que, aplicando-se essa atividade,
consegue-se auferir, de forma basilar, o entendimento que o aluno tem em relação à
pontuação, aos textos icônico-verbais, ao gênero trabalhado, bem como compreender o
seu conhecimento de mundo. Portanto, a partir disso, o professor pode começar a
apresentar, ainda pensando nas etapas sequenciais, o gênero tira.
Meirelles (2014, on-line), em matéria publicada no site Nova Escola, nos alerta
para essa sondagem inicial, explicitando que

a sondagem é fundamental a todo o trabalho por ser o


momento em que são levantados os conhecimentos da
turma. Muitas vezes, os professores acham que perguntar
"o que vocês sabem sobre..." é suficiente para ter respostas,
mas não é bem assim. Essa etapa inicial já configura uma
situação de aprendizagem e precisa ser bem planejada. Em
vez da simples pergunta, o melhor é colocar o aluno em
contato com a prática.

Logo depois de toda essa exposição, seguindo esta sequência didática, o


professor pode pedir à turma que faça uma produção inicial do gênero tira numa folha
separada para ser-lhe entregue, com uma temática livre. Nessa etapa, cada aluno disporá
dos instrumentos até aqui apresentados para reproduzir verdadeiramente o gênero
tirinha. Observa-se, segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011, p. 101) que

[C]ada aluno consegue seguir, pelo menos parcialmente, a


instrução dada. Esse sucesso parcial [...] permite
circunscrever as capacidades de que os alunos já dispõem
e, consequentemente, suas potencialidades. É assim que se
definem o ponto preciso em que o professor pode intervir
melhor e o caminho que o aluno tem ainda a percorrer:
para nós, essa é a essência da avaliação formativa. Desta
forma, a produção inicial pode motivar tanto a sequência
como o aluno.

Portanto, esta primeira etapa de produção de tiras (em que os alunos,


evidentemente, não receberão nota) constitui um momento áureo de observação,
conferindo ao professor refinar a sequência, modulá-la e adaptá-la de acordo com as
capacidades reais de cada aluno da turma.

82 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

Isto posto, entram agora as etapas modulares ou os módulos. Este é o processo


que permite ao professor abordar, separadamente, diversos elementos do gênero tira, de
modo que solucione os problemas apresentados pelo alunado na produção inicial.
Percebemos aqui, nesse sentido, conforme apregoa Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011),
que é necessário que o mediador do processo de ensino-aprendizagem decomponha o
trabalho.
A etapa de produção é muito complexa, com vários níveis de aprendizagem
que funcionam simultaneamente na mente do aluno. Como Dolz, Noverraz e Schneuwly
(2011, p. 88), entendemos que, “em cada um desses níveis, o aluno depara com
problemas específicos de cada gênero e deve, ao final, tornar-se capaz de resolvê-los
simultaneamente”.
Em consonância com o exposto, já sabemos que o trabalho do mediador, nos
módulos, é realizado de acordo com essas dificuldades específicas de expressão escrita
apresentadas pelo aluno, quer dizer que pode haver uma mudança de plano no caminho.
Pensando nisso, explicitaremos, inspirando-nos em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011),
a seguir, algumas suposições de problemas que podem ser superados, em níveis, na
produção escrita do gênero discursivo tirinha, visando sempre à produção final.
Uma forma modular de se trabalharem essas dificuldades é representar a
situação de comunicação, em que o professor deve levar o aluno a compreender o
destinatário da tirinha que ele vai produzir pensando sempre nos seus amigos do Facebook
e na finalidade do gênero: divertir, satirizar etc. Isso vai ajudar o discente a estruturar
melhor o seu texto, planejando-o.
Outra forma é a elaboração do conteúdo da tira que permite ao docente apresentar
técnicas para o aluno elaborar o gênero. Nesta etapa modular em níveis, o mediador do
processo de ensino-aprendizagem pode ressaltar as características discursivas,
composicionais e temáticas da tirinha por meio de leitura de tiras.
É dentro dessa perspectiva que Lopes-Rossi (2011, p. 74) entende que “o
módulo de leitura nesse formato proposto deve levar o aluno a discutir, comentar e
conhecer as condições de produção e de circulação do gênero discursivo escolhido para
o projeto a partir de vários exemplos”.
Em conformidade com o que foi apresentado, ainda tomemos a figura 4 para
exemplificar a apresentação de instrumentos de que os discentes precisarão para
cumprir com os objetivos do problema de comunicação, na produção final. Como
observam Dolz; Noverraz e Schneuwly (2011), por se tratar de uma atividade em
sequência que parte de algo complexo (problema de comunicação) para algo simples (o
trabalho em módulos) e, novamente, para algo complexo (produção final),
compreendemos que a sequência didática trata de excessivas reiterações (obviamente,
em níveis) para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem.
Uma sugestão, dessa forma, com base em nossas suposições, é que professor
explore a definição, reportando-se à questão composicional do gênero tirinha à medida
que apresenta o tamanho de cada vinheta, comparando-o. Além disso, a linguagem
híbrida também é um importantíssimo aspecto a ser explorado pelo professor, que deve
explicitar que os elementos gráficos constroem, também, o sentido do texto. Por
exemplo: entende-se que se trata de uma criança em conversa com um adulto, porquanto
a personagem Armandinho mostra-se menor em relação ao tamanho da outra

83 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

personagem cujas pernas compridas e magras aparecem. O fato de Armandinho inclinar


sua cabeça para o alto também justifica a colocação apresentada por nós.
Há outros elementos que também podem ser analisados, como o humor, o tema
e os elementos básicos da oralidade: palavras e expressões que remetem a uma pluralidade
de significados (correção do solo, por exemplo) de acordo com o contexto
sociointeracional, a linguagem econômica, poucos personagens etc (KAUFMAN;
RODRÍGUEZ, 1995, apud VINHAL, 2019).
Ainda na etapa modular, sugerimos que o professor, junto com a turma, elabore
uma lista de compreensão do gênero, sintetizando o que foi aprendido com o alunado
até aqui. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011) chamam esse processo de capitalização da
aquisição, em que se registrará o conhecimento apreendido sobre determinado gênero.
Cumpre reiterar que os módulos podem ser modificados a partir das
dificuldades apresentadas pela turma. Na figura 3, podemos observar que nos são
apresentados os módulos 1, 2 e n, porque há n possibilidades de se trabalharem os aspectos
do gênero de acordo com a demanda da sala. Nesse viés, compete ao professor analisar,
criar e recriar as etapas modulares. A última parte deste projeto é a produção final, visando
à avaliação somativa.
Agora é o momento de indicar aos alunos se os objetivos foram atingidos,
dando-lhes o poder de controlarem seu próprio comportamento como produtores de
tirinhas, durante a revisão e reescrita; permitindo-lhes avaliar todos os progressos
realizados durante o trabalho e analisar o que aprendeu e o que resta fazer. (DOLZ;
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011).
Nesse sentido, após todas essas etapas, é hora de os alunos divulgarem as
tirinhas produzidas, na conta pessoal deles, no Facebook. O professor pode pedir para que
eles fotografem/digitalizem sua tira por meio de seu aparelho eletrônico e postem na
referida rede social, acompanhando todo o processo e levando-os a entender se o
conteúdo das tiras produzidas é destinado efetivamente ao perfil de seguidores que eles
têm na rede social deles, se cumpriram com os aspectos do gênero (questão humorística
e composicional: quadrinhos, frases curtas, poucas personagens...).
Entendemos aqui, com o fim desta sequência – a postagem das tiras – que a
interatividade virtual estará garantida, já que se pode reagir à tira publicada, comentá-
la nos espaços de que dispõe uma postagem no Facebook e divulgá-la para o máximo de
pessoas possível. Assim, analisamos que o uso dessa tecnologia garante, tanto na etapa
modular (consulta a tirinhas) quanto na produção final (postagem na rede social), além
da interatividade, inovação, criatividade, ressignificação e balizamento de todo o
processo de ensino-aprendizagem, já que há uma aprendizagem significativa, porque os
alunos estão utilizando, no ensino do gênero tira, as redes sociais e as mídias sociais em
que estão inseridos, o que permite a contextualização das vivências deles.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos quadros depois, o que nos ensinou essa sequência didática sobre o tão
aceito gênero tirinha balizada pelo Facebook como mediador tecnológico no ensino?
Entendemos que a abordagem do texto, materializado num gênero textual, modificou-
se com o decorrer do tempo, por meio de novas concepções de ensino-aprendizagem.

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CÉSAR MORAIS ROSA | ADRIENE STTÉFANE SILVA

Com a incorporação dos PCNs, nos anos finais da década de 90, concebeu-se o
texto como objeto de ensino dos eixos do uso da língua materna, quer dizer, passou-se a
considerar as situações de produção e circulação dos textos, bem como os seus aspectos
ideológicos.
Nesse ínterim, inspirados em Bakhtin (1992), entendemos que o gênero
discursivo tira cômica, como prática de linguagem, pode evocar-nos muito sobre
questões de natureza político-social, uma vez que, segundo Ramos (2017), a tira pode
estar ancorada em experiências reais da vida. Assim, concluímos que, além de se valer
do humor em sua construção, a tirinha também configura vários tipos de linguagem, daí
falar-se em texto multimodal ou icônico-verbal. Isso porque usa desenhos, imagens,
gravuras, o que, pensando-se no ensino, pode ser muito atrativo para o aluno.
Com a globalização e a chegada da internet, todas as instâncias do mundo
modificaram-se, em especial, a educacional. Agora, com a implementação das TICs no
ensino-aprendizagem de língua portuguesa, o professor torna-se mediador do processo
de ensino-aprendizagem, e o aluno, por sua vez, o centro. É preciso, portanto, que o
professor assuma uma nova postura para lidar com os alunos, nativos virtuais, na escola,
intermediando o ensino, por meio de uma aprendizagem significativa (fusão da
mediação tecnológica e da mediação didática). Sendo assim, ao professor compete
articular e engendrar estratégias didáticas para a inserção dessas novas tecnologias nas
aulas de língua portuguesa, de forma a colaborar para um ensino inovador e criativo.
Pensando nisso, propusemos uma sequência didática balizada por um
mediador tecnológico, o Facebook, acreditando que essa rede social pode muito contribuir
para a divulgação e circulação das tirinhas, assim como para o acesso rápido a elas, e
para a interatividade, porque trata de uma mídia social em que os alunos estão inseridos.
Além disso, entendemos que, em blogues, páginas de redes sociais, sítios eletrônicos etc.,
há um grande número de tiras publicadas, que se sobressai ao número de tiras
veiculadas em revistas e em jornais, o que facilita mais ainda o acesso a elas.
As novas tecnologias, nessa perspectiva, também afetaram e muito a circulação
do gênero tirinha, contribuindo para mudanças nos elementos paratextuais e
composicionais, como percebemos. Por essa razão, embasando-nos em Dolz, Noverraz
e Schneuwly (2011), a fim de atingir o objetivo desta pesquisa, elencamos uma sugestão
de atividade sequencial, explicitando cada etapa por que o professor tem de passar para
atingir a produção escrita do gênero tira.
Sempre com vistas à produção final das tirinhas, em nossa sequência didática,
propusemos que o professor faça uso de páginas de redes sociais ou de blogues etc., para
apresentar aos alunos o gênero tirinha, expondo-o a eles por meio do aparelho eletrônico
de cada um. Além disso, a produção final envolve a postagem da reprodução do gênero
tirinha na conta pessoal de cada aluno, no Facebook. Pensamos que isso pode facilitar
extremamente o trabalho didático do professor-tutor em sala de aula, já que, senão todos,
a maioria dos alunos dispõe de um celular – sem salientar que, atualmente, nota-se que
os professores lutam contra o aparelho eletrônico dos alunos, tentando chamar-lhes a
atenção. Portanto, por que não unir o útil ao agradável?
Inferimos, por conseguinte, que toda essa nova tecnologia pode acrescentar
muito no trabalho com as tiras, já que, trazendo uma nova ressignificação de uso e de
circulação delas (é preciso pensar, por exemplo, no público-alvo a que a tira se destina

85 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O GÊNERO TEXTUAL TIRINHA:
UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA BALIZADA POR MEDIADORES TECNOLÓGICOS

quando é postada na rede social de algum aluno), pode inovar e balizar o ensino-
aprendizagem de língua portuguesa, já que o aluno, após publicar a sua reprodução do
gênero, pode interagir por meio de reações e comentários típicos da referida rede social,
criando, assim, um lugar significativo de aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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87 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 88-103, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Combate ao racismo por meio da


leitura de autoras negras

Combating racism through the reading of black authors

GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO


Graduada em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES


Professora orientadora - UNIPAM
E-mail: [email protected]

LUÍS ANDRÉ NEPOMUCENO


Professor coorientador - UFV
E-mail: [email protected]

Resumo: No presente artigo, buscamos analisar metodologicamente obras literárias brasileiras


que foram escritas por mulheres negras e que auxiliam na compreensão do racismo como fonte
de problemas sociais. Para isso, foi preciso definir, pautando-se em pesquisas bibliográficas e
webliográficas, de cunho exploratório, o que é o racismo e por que ele é estrutural e realizar a sua
contextualização histórica desde os tempos da escravidão no Brasil. Tudo isso possibilitou
reafirmar que a literatura é um excelente meio para identificação, reflexão e combate acerca dos
problemas sociais presentes na sociedade. O trabalho demonstra que o racismo no Brasil é mais
do que ódio às pessoas negras. É um ambiente criado para o genocídio da população negra.
Palavras-chave: Literatura. Ensino. Antirracismo. Identidade.

Abstract: In this article, we seek to methodologically analyze Brazilian literary works written by
black women that help comprehend racism as a source of social problems. It was necessary to
define what racism is and why it is structural and to put it into historical context since the time
of slavery in Brazil, based on bibliographic and web-based research of an exploratory nature. All
of this made it possible to reaffirm that literature is an excellent medium for identification,
reflection, and combat about the social problems present in society. The work demonstrates that
racism in Brazil is more than hatred for black people. It is an environment created for the genocide
of the black population.
Keywords: Literature. Teaching. Anti-racism. Identity.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O racismo é uma herança negativa da sociedade; apesar de esforços diversos,


está presente no meio social do Brasil e de outros países. Casos noticiados pelas mídias,
como o de Miguel Otávio, que, segundo o jornal G1 (2020), caiu do 9º andar de um prédio

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GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

devido ao descuido da patroa de sua mãe, e o de João Pedro, que, também segundo o
jornal G1 (2020), foi encontrado morto pelos familiares 17 horas após ter sido baleado
em uma operação policial e ter sido levado pelos próprios policiais em um helicóptero
para ser socorrido, mostram o descaso e a desvalorização estruturais que se instauraram
na sociedade em relação à vida do negro. Entretanto, apesar de casos de racismo
individual serem recorrentes, não se pode reduzir esse tipo de violência apenas a casos
isolados.
De acordo com Edinaldo César Santos Junior, coordenador executivo do
Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN) e juiz do Tribunal de Justiça de
Sergipe (TJSE), (apud ANDRADE, 2020), redatora no site do Conselho Nacional de
Justiça (2020, online), aproximadamente 63,7% da população carcerária brasileira é
composta por negros, dado de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Ainda, segundo pesquisa da ONU/Mapa da Violência (apud DEUTSCHE WELLE, 2017,
online), sete em cada dez pessoas assassinadas no Brasil são negras. Esses e outros dados
denotam o caráter sistêmico do racismo no Brasil.
Tendo em vista o que foi exposto, é necessário articular movimentos de combate
que podem e devem ser preventivos. É papel da sociedade como um todo reparar as
desigualdades sociais existentes para que possamos alcançar oportunidades
semelhantes. Isso significa o contrário de dar oportunidades iguais a todos, o que apenas
ressaltaria os privilégios que alguns grupos já têm. Significa dar oportunidades
proporcionais, a fim de que todos partam de um mesmo lugar. Nesse sentido, os negros,
que foram historicamente prejudicados e impedidos de alcançar certos espaços, devem
ser restituídos das oportunidades perdidas até que alcançem os outros grupos. A partir
daí, todos estarão partindo de um mesmo ponto, como se dessem início a uma corrida
não mais atrás que outros nem mais à frente.
Apesar de haver poucas denúncias de injúria racial, os crimes de racismo são
recorrentes na vida dos negros. As bases do racismo são mais profundas e mais
complexas que apenas casos isolados, por isso se torna cada vez mais importante educar
as pessoas para o antirracismo. Não basta apenas respeitar, é preciso lutar pelo direito
do outro de existir em sociedade, livre das violências e dos homicídios gratuitos. Por
esse motivo, é preciso pensar em maneiras de formar cidadãos conscientes do valor do
negro, que não é nem mais, nem menos importante que um não negro.
Uma das vias de construir essa consciência é por meio da arte em geral e,
especificamente, da literatura negra. Essa seria uma oportunidade de eliminar
estereótipos, como o de que os negros são incapazes de produzir literatura. O trabalho
com a literatura afro-brasileira auxilia no processo identitário dos alunos negros e na
representatividade que muitos alunos negros procuram durante suas leituras, além de
ser uma forma de empoderamento do grupo negro, um incentivo para continuar
frequentando a escola e buscando um futuro melhor.
Os dias 31 de março, Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial,
e 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, apesar de trazerem o foco para o problema
que pessoas negras vêm enfrentando, não têm sido suficientes para debater a infinidade
de assuntos que podem ajudar a solucionar o racismo e a discriminação racial. De acordo
com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), no capítulo que trata das competências
específicas de ciências humanas e sociais aplicadas para o ensino médio, é necessário

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COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

“reconhecer e combater as diversas formas de desigualdade e violência, adotando


princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos
Humanos” (BRASIL, 2018, p. 558).
O papel transformador da educação escolar torna-a uma possível saída para
eliminar todo o tipo de desigualdade. A escola tem o poder de transformar pessoas, de
mudar vidas e de criar oportunidades. Por meio da educação escolar, é possível que
crianças e jovens que são alvos frequentes de um sistema estrutural e institucionalmente
racista tenham acesso a desde itens básicos, como a refeição do dia na hora do lanche,
até a oportunidade de conseguir um emprego que mudará a realidade não só desse
aluno, mas também de toda a sua família. Nesse contexto, predizendo o que será
abordado ao longo do trabalho, a literatura negra pode ser explorada, de forma a educar
jovens negros e não negros acerca da importância de todas as cores, como forma de
combate à constante desvalorização do corpo negro e de valorização da luta antirracista.
Assim, levando-se em conta o racismo ainda muito presente na sociedade, é
papel da escola trabalhar didaticamente a literatura afro-brasileira, de forma a combater
as desigualdades impostas por essa intolerância que se perpetua. Apesar da leitura do
cânone ser essencial para a formação do leitor, a maioria dos autores que o compõem
são brancos. Devido ao desconhecimento de autores negros e muitas vezes devido à
necessidade de seguir os projetos literários tradicionais à risca, muitos professores não
trabalham questões como essa em sala de aula. Então, é preciso encontrar na literatura
clássica obras de autores negros que possam ser fonte para os alunos e que, ao mesmo
tempo, atendam ao projeto pedagógico da escola.
É nesse contexto que se desenvolve este estudo, cujos objetivos são: investigar
e apresentar formas de trabalho com a literatura afro-brasileira em sala de aula que
favoreçam o combate ao racismo e incentivem o respeito às diferenças, o
empoderamento, a criação de identidade dos alunos e a representatividade por meio das
obras de autoras negras; conceituar racismo e racismo estrutural, termos que auxiliarão
no dimensionamento do problema; explorar a Lei 10.639/03, modificada pela Lei
11.645/08, que exige o trabalho focado nas culturas afro-brasileiras e na história do
continente africano; estimular o consumo de literatura negra, bem como sua valorização
por meio do acesso a autores representativos; promover o processo identitário dos
alunos, tanto daqueles que são negros, como daqueles que convivem com pessoas
negras; diminuir o preconceito dentro de sala de aula, por meio do entendimento do que
é preconceito.
Para alcance desses objetivos, o estudo foi pautado em pesquisa bibliográfica e
webliográfica, fundamental para alcançar a base teórica necessária para compreender
termos relacionados ao tema, como racismo, racismo estrutural etc. e para viabilizar
materiais que podem tornar a educação antirracista cada vez mais efetiva. Assim, por
intermédio da pesquisa em livros e da pesquisa via internet, foi viabilizado o acesso à
legislação atualizada e a artigos recentes, visando encontrar os fundamentos necessários
para o estudo proposto. Ainda, partindo dessa fundamentação, foi desenvolvida uma
seção em que se apresenta a análise de três obras de mulheres negras, a saber: Úrsula, de
Maria Firmina dos Reis; Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e Becos da Memória,
de Conceição Evaristo, entremeada de sugestões de abordagens que servem de auxílio
para os professores trabalharem com a literatura afro-brasileira.

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GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

2 AS FACES DO RACISMO

A fim de compreender o racismo e as formas como ele é reproduzido na


sociedade, é preciso ter conhecimento do contexto de seu surgimento no Brasil,
possibilitando a diferenciação do que veio a ser o racismo no Brasil em relação ao que é
o racismo em outras partes do mundo. O apagamento do histórico de racismo que se
perpetuou por anos, o embraquecimento da população e o genocídio de corpos pretos
foram a chave para que o racismo no Brasil se desenhasse de maneira diferente do que
ocorre mundialmente.

2.1 ENTENDENDO O PASSADO

De acordo com o professor de História da África e do negro no Brasil, Dirceu


de Lima Jr. et al. (apud CASTANHARI, 2021, online), desde a abolição da escravatura em
13 de maio de 1888, que, ao contrário do que muitos pensam, não se deu por total desejo
da princesa Isabel, foram criadas poucas políticas públicas de inserção de ex-
escravizados na sociedade. Sem um lar, sem emprego, já que os senhores de engenho
não aceitavam pagar ex-escravizados, sem perspectivas e sem a aceitação da população
que morava nas àreas centrais das cidades, muitos negros foram forçados a viver em
àreas periféricas da cidade. A partir daí, muitos entraram para o crime.
Ainda de acordo com Dirceu de Lima Jr. (apud CASTANHARI, 2021, online),
imigrantes da Europa foram trazidos ao Brasil com a intenção de aumentar a população
branca e diminuir a população negra. Nessa época, ganhou força a ideia de eugenia, ou
seja, superioridade racial dos europeus. Terras foram negociadas com esses imigrantes
como forma de incentivo à fixação de residência no Brasil. Essa negociação foi quitada
sem necessidade de pagamento por parte dos imigrantes, resultando em um acúmulo
de terras e, consequentemente, de privilégios.
Muitos negros não podiam entrar na escola por não terem documentação,
apenas os filhos da miscigenação que possuíam documentos tinham acesso a mais
possibilidades. Ademais, documentos em geral relacionados ao comércio de
escravizados foram desaparecendo com o tempo. Segundo Gilberto Freyre (2003), autor
do livro Casa grande & senzala, valiosas pesquisas em torno da imigração de escravizados
para o Brasil foram queimadas, por motivos econômicos, pelo conselheiro Rui Barbosa,
ministro do Governo Provisório.

2.2 AFINAL, O QUE É RACISMO?

Ao longo dos anos, mais e mais oportunidades foram sendo tiradas dos negros
e, mesmo que outros grupos sociais estejam lutando com os negros para combater a
desigualdade racial, a desinformação de certos grupos, o preconceito herdado dos
antepassados e até o medo de abrir mão dos privilégios são fatores que contribuem para
que a situação continue como está. Esse preconceito provoca danos às pessoas de outra
cor, e esses danos podem variar de acordo com o poder e a influência que o racista tem
sobre sua vítima.

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COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

Pessoas negras, especificamente, são mortas por motivos como estar segurando
um objeto que pareça uma arma, brincar na porta de casa ou até mesmo estar dentro de
casa jogando videogame. Isso ocorre porque, desde antes da escravidão, negros eram
vistos como uma etnia inferior, sem alma e sem capacidade de pensar racionalmente.
Essa visão acerca dos negros melhorou, mas os preconceitos foram sendo perpetuados
de pai para filho, contribuindo para que até hoje exista uma diferença no tratamento da
pessoa negra. O racismo, segundo Almeida (2019, p. 22), é um sistema de discriminação
baseado na cor da pele de um determinado grupo, que se dá por meio de atitudes
conscientes e inconscientes que privilegiam ou desprivilegiam certos indivíduos,
dependendo do grupo racial a que pertençam.
Para Ruiz (1988 apud MUNANGA, 2005, p. 41), existe uma ligação direta entre
a escravidão a que os negros foram submetidos e a aversão às pessoas de cor negra.
Ainda acrescenta que foi criado um estigma em relação a cor negra que tem sido
reforçado pelos interesses econômicos e sociais que outrora levaram os povos negros à
escravidão.
Para Bento (1988 apud MUNANGA, 2005, p. 60), racismo é a ideia de que existe
uma relação de causa e efeito entre certos traços de sua personalidade, inteligência ou
cultura de uma pessoa e suas características físicas. Ligada a isso, está a visão
segregadora de que algumas etnias são superiores às outras.
Já para Santos (1988 apud MUNANGA, 2005, p. 61), racismo é a suposição de
que existem raças e, em seguida, a atribuição de características biogenéticas a fenômenos
unicamente sociais e culturais. Ele diz que racismo é também uma forma de dominação
ou uma maneira de justificar a dominação. Uma mistura de ignorância e interesses
econômicos.
A autora de Pequeno Manual Antirracista, Djamila Ribeiro (2019, p. 5-6), diz que
falar sobre racismo no Brasil exige um debate estrutural – realizar uma contextualização
histórica, começando pela relação entre escravidão e racismo e mapear as suas possíveis
consequências. É importante entender como esse sistema tem beneficiado
economicamente durante um longo período apenas pessoas brancas, ao passo que
pessoas não brancas, principalmente os negos, não tiveram acesso a direitos básicos e à
distribuição de riquezas.

2.3 POR QUE O RACISMO É ESTRUTURAL?

Para Almeida (2019), o racismo tem três desdobramentos possíveis: o estrutural,


o institucional e o individualista. Ele ressalta que, na verdade, o racismo é basicamente
estrutural, ou seja, tem suas bases construídas em diferentes níveis de funcionamento da
sociedade.
Segundo Almeida (2019), dizer que o racismo é estrutural não exclui os sujeitos
racializados, ou seja, não generaliza suas vítimas, mas os concebe como parte de um
sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado
a todo momento. A intenção é afastar visões reducionistas a respeito do que é ou não
racismo que, além de não contribuírem para o entendimento do problema, dificultam a
luta antirracista.

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GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

Dizer que o racismo é estrutural é perceber um padrão nas mortes em razão da


cor, causadas por outras etnias e, por vezes, pela própria etnia. Esse padrão, mesmo que
inconsciente, dá-se justamente pela normalização de fatos. Racismo estrutural está em
não enxergar problema quando um menino é baleado dentro de casa e encontrado morto
após ser colocado no helicóptero por policiais, não se surpreender com uma mulher
grávida sendo baleada e morta e depois tendo seu cupom de desconto na loja que
trabalhava revertido em lucro para a empresa. Não se indignar com um cliente sendo
espancado até a morte nos fundos de um supermercado após ter se exaltado com um
funcionário do estabelecimento.
Segundo Ferreira (2019, online) o racismo estrutural é essa naturalização de
ações e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro e que
promovem a segregação ou o preconceito racial. Um processo que se repete para a
população negra todos os dias.
Em suma, o racismo é resultado de trezentos anos de escravidão, uma abolição
que se deu sob pressão, a ausência de políticas de integração dos ex-escravizados na
sociedade e a tentativa de embranquecimento da população com direito a distribuição
de terras para eurpoeus que desejassem fixar-se no Brasil. Isso tudo foi passado de pai
para filho, para neto, durante gerações de famílias. E assim, como uma herança negativa,
o racismo se tornou parte do cotidiano, muitas vezes velado, outras vezes escancarado.
Consciente ou inconscientemente, o racismo é cometido todos os dias, prejudicando e
tirando oportunidades e, por vezes, a vida de pessoas negras.

2.4 COMO A ESCOLA PODE AJUDAR?

Apesar de existirem dias como o 11 de março, Dia Internacional da Luta Contra


a Discriminação Racial, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e leis como a Lei
7.716, de 1989, que torna o racismo um crime inafiançável, histórica e estruturalmente a
justiça raramente está do lado dos negros, pois também é parte da sociedade, que é
sistemicamente racista. Nesse sentido, como combater o racismo quando nem mesmo a
justiça é favorável o suficiente?
A união de grupos sociais, a disseminação de informação e o trabalho dos
educadores podem ser uma resposta. As escolas, com seu poder de transformar vidas e
criar oportunidades, têm um papel transgressor também na causa racial. A Lei 10.639
(2003), modificada pela Lei 11.645 (2008), instituiu a obrigatoriedade do ensino da
História da África, da cultura afro-brasileira e indígena, mas ainda existe um longo
caminho a ser percorrido que exige esforços de todos os grupos sociais. As Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004) dizem que

[...] o sucesso das políticas públicas de Estado,


institucionais e pedagógicas, visando a reparações,
reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e
da história dos negros brasileiros depende
necessariamente de condições físicas, materiais,
intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para

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COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

aprendizagens; em outras palavras, todos os alunos


negros e não negros, bem como seus professores, precisam
sentir-se valorizados e apoiados. Depende também, de
maneira decisiva, da reeducação das relações entre negros
e brancos, o que aqui estamos designando como relações
étnico-raciais. Depende, ainda, de trabalho conjunto, de
articulação entre processos educativos escolares, políticas
públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças
éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações
étnico-raciais não se limitam à escola (BRASIL, 2004, p. 13).

Apesar de a escola não ser a única responsável pelo combate ao racismo, para
muitos alunos não negros, em alguns casos criados em um ambiente racista, é na escola
que encontrarão informação e educação antirracista e poderão tornar-se pessoas cada
vez mais conscientes. Já para os negros, a inserção de autores negros no currículo escolar
será também fonte de representatividade, empoderamento e identidade.
Nesse ponto é que se pode valer da literatura afro-brasileira como forma de
discussão de conteúdos inerentes ao racismo e como forma de combatê-lo. Autores como
Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra brasileira, são pouco
trabalhados na sala de aula. Algumas vezes são citadas em sala pelos professores,
cogitadas para vestibulares, mas não lidas pelo incentivo à formação do aluno. Quando
se fala em autores negros, nomes mais conhecidos são trazidos à tona e muitas vezes não
ficam na lembrança do aluno como os demais autores. O fato é que autoras como Maria
Firmina podem e devem ser trabalhados em sala de aula. Segundo Soares (2020, p. 11),
o romance Úrsula é considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil. Ademais,
ao contrário do que era comum à literatura do século XIX, pessoas negras e escravizadas
são retratadas de modo positivo.
Além de Maria Firmina dos Reis, diversas autoras e diversos autores negros
têm estado presentes nas escritas, apesar de não terem reconhecimento similar ao de
muitos autores e autoras não negras. Por meio da pesquisa científica, é possível fazê-los
protagonistas. Acreditando nisso é que se propõe, na seção seguinte, a análise de temas
abordados nas obras escolhidas e sugestões de abordagens a serem feitas pelo professor
no trabalho com a literatura afro-brasileira, buscando combater o racismo e a
discriminação racial.

3 COMBATE AO RACISMO E À DISCRIMINAÇÃO RACIAL VIA LITERATURA

Conforme abordado neste trabalho, é importante que a escola faça sua parte na
luta contra o racismo, sendo a literatura um dos caminhos possíveis de se efetivar tal
luta. Nesse sentido é que se propõe aqui a análise de três obras de autoras negras
brasileiras que abordam formas variadas de apresentação do racismo na sociedade.
A autora Conceição Evaristo apresenta, na obra Becos da Memória, publicada em
2006 e a mais atual dentre as três, inúmeras questões que são pertinentes à temática.
Optou-se por refletir a objetificação e sexualização da mulher negra aliadas à ideia de
que a mulher branca, pura, frágil e virginal é feita para o amor e para o casamento.

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GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

A autora Carolina Maria de Jesus, na obra Quarto de Despejo - diário de uma


favelada, um livro da década de 60, traz à tona a temática da pobreza, da fome e da
estagnação social a que o negro foi submetido devido ao racismo e à ausência de
incentivo governamental desde os tempos da abolição. A obra de Carolina Maria de
Jesus também contém a solidão da mulher negra, tema que tem sido discutido somente
nos últimos anos e que, por muitas vezes, é invalidado, mas que também provém do
racismo.
A autora Maria Firmina dos Reis, na obra de 1859 intitulada Úrsula, traz a visão
do negro a respeito da escravidão, o que possibilita despreender-se de uma visão
estereotipada dos negros e perceber a crimilização e bestialização do negro.

3.1 O RACISMO E A SEXUALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS

Sabe-se que, desde os tempos da escravidão, o corpo negro tem sido objetificado
e sexualizado. Isso ocorre concomitantemente a outras formas de racismo e por esse
motivo é um fato, por vezes, invalidado por pessoas que acreditam que o racismo esteja
ligado apenas à repulsa ou ao rechaçamento explícito da pessoa negra.
Na obra de Evaristo (2017), percebe-se a representação da sexualização do corpo
da mulher negra na personagem de Cidinha-Cidoca, cujo corpo é objeto de desejo dos
homens do morro. É possível perceber no trecho:

Diziam as más línguas e as boas também que Cidinha-


Cidoca tinha o “rabo de ouro”. Não havia quem o
provasse e não se tornasse freguês. Todos iam e voltavam.
Velhos, moços e até crianças. As mulheres da favela
odiavam Cidinha-Cidoca. As mais velhas a temiam pelos
seus homens, as mocinhas por seus namorados e as mães
por seus filhos que começavam a crescer e que, entre o
vício da mão, do autocarinho, preferiam o corpo macio e
quente, preferiam o “rabo de ouro” da Cidinha-Cidoca
(EVARISTO, 2006/2017, p. 17).

Apesar de corresponder aos homens que a procuravam, Cidinha-Cidoca tinha


uma estranha consciência do vazio das relações que têm como base a aparência. Mais
ainda, ela parecia perceber que, mesmo sendo uma mulher livre, ainda carregava as
correntes da escravidão. Ela servia aos homens por razões muito mais complexas do que
a necessidade de satisfação sexual. A entrega dava-se pela forma como estava
acostumada a ser tratada por homens desde cedo, já que as mulheres negras são
associadas à promiscuidade e perdição desde cedo, enquanto as mulheres brancas são
associadas à virgindade, ao respeito e à santidade, ambos casos de objetificação. Cidinha
poderia, como muitas mulheres negras, desejar qualquer forma de contato físico, mesmo
que sem nenhuma afetividade, ao rechaço e aos maus-tratos sofridos todos os dias por
conta da cor da pele.
A questão da loucura e do suícidio de Cidinha-Cidoca revela questões externas
e internas que tornaram a realidade insuportável para a personagem. Cidinha vivia em
sua cabeça, imaginando uma nova realidade onde seria livre dos homens e da

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COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

subserviência a que se submetia. Em certos pontos da obra de Evaristo (2017), é possível


notar como Cidinha era percebida por outros ao seu redor: primeiro como objeto de
satisfação alheia, depois, uma sombra do que já fora um dia.

Como explicar a morte de Cidinha-Cidoca? Como explicar


a morte? A mulher estava morta. Cidinha-Cidoca, durante
os anos de lucidez, representara a vida na favela. Ela, o
corpo dela, o sexo gostoso, o prazer. Veio a loucura;
primeiro, o espanto de todos; depois, o acostumar-se.
Cidinha-Cidoca foi virando história do passado, embora
estivesse ali tão presente no botequim de Sô Ladislau, no
botequim de Cema, pelos becos da favela, com o seu
silêncio, com o seu mutismo e seu olhar de doida mansa
desconcertando a todos. Continuava bonita, a cabeleira
encarapinhada, suja e sem trato. O corpo esguio, o
camisolão sujo, imundo, antes branco. Todos olhavam
Cidinha-Cidoca. As mulheres e as crianças pareciam não
ter medo. Os homens, aqueles que tinham conhecido o
corpo quente de Cidinha, pareciam assustados com a
eterna inércia que havia tomado conta dela. Haviam se
acostumado com a loucura dela, a morte era diferente
(EVARISTO, 2006/2017, p. 112).

A hipersexualização das mulheres negras pode ser prejudicial em diferentes


níveis. A mulher negra passa a se diminuir em relacionamentos para caber nas
expectativas de homens em relação ao seu corpo “da cor do pecado”. Ao buscar
aprofundar certas relações, depara-se com frases como “mulata de carnaval”,“gosto de
mulheres negras porque são mais quentes, boas de cama, fogosas” ou “eu nunca teria
um filho da sua cor”. Frases que parecem absurdas nos dias de hoje, perante tantos
exemplos bem-sucedidos de relações inter-raciais, mas que são comuns no imaginário
da população e acabam sendo normalizadas ou relevadas dentro de uma relação inter-
racial. A importância da afetividade das relações está em reconhecer os outros como
pessoas que sentem e pensam e não existem apenas para suprir as vontades do outro. O
tratamento da mulher como objeto de prazer sexual, “apenas para diversão e não feita
para casar”, pode trazer sequelas permanentes e, em certos casos, até mesmo a morte.

3.2 O RACISMO E A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

Carolina Maria de Jesus representa milhares de mulheres negras ao tratar de


temas que fazem parte da esfera do racismo. Como dito anteriormente, o racismo possui
muitas nuances, está intrincado na sociedade e é razão da origem de muitos fenômenos
sociais que inicialmente não parecem estar ligados ao racismo.
Existe uma espécie de sentimento coletivo de mulheres negras de que elas estão
fadadas a ficar sozinhas. Esse sentimento tem origens distintas: seja a sexualização da
mulher negra de pele clara que, como já mencionado, exclui qualquer tipo de afetividade
no relacionamento, seja a rejeição da mulher negra de pele retinta que é descartada como

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uma opção de desejo sexual, seja a constatação da mulher negra de que é constantemente
trocada por outras mulheres brancas ou negras de pele mais clara que a sua, dentre
outros tipos de violência à autoestima e à saúde mental da mulher negra. Seja qual for o
motivo da autoexclusão ou exclusão forçada da mulher de meios sociais e institucionais,
o sentimento de solidão e não pertencimento na mulher negra é mais presente do que o
dos homens negros. Isso ocorre porque a mulher negra é duplamente oprimida: pela sua
cor e por seu gênero. Isso separa, em muitos níveis, a mulher negra do homem negro.
Em um trecho do livro Quarto de Despejo, é possível perceber o fenômeno da solidão da
mulher negra:

Agora eu vou na casa da Dona Julita trabalhar para ela.


Fui catando papel. O senhor Samuel pesou. Recebi 12
cruzeiros. Subi a Avenida Tiradentes catando papel.
Cheguei na rua Frei Antonio Santana de Galvão 17,
trabalhar para a Dona Julita. Ela disse-me para que não
iludir com os homens que eu posso arranjar outro filho e
que os homens não contribui para criar o filho. Sorri e
pensei: em relação aos homens, eu tenho experiências
amargas. Já estou na maturidade, quadra que o senso já
criou raizes (JESUS, 1960, p. 30).

O trecho trata de uma problemática que parece comum a todas as mulheres,


mas que, na verdade, é mais cruel para mulheres negras: o tratamento da mulher negra
como objeto sexual, levando o homem a abandoná-la no momento de assumir a
paternidade em uma gravidez indesejada, aliado à pobreza extrema e à ausência de
apoio jurídico para recorrer aos direitos. Tudo isso leva a mãe negra a assumir todas as
responsabilidades da maternidade, ainda que não tenha feito o filho sozinha e, com o
passar do tempo, a acomodar-se com a situação em que vive. Para fugir de eventuais
decepções, essa mãe solo, provedora da casa, escolhe a solidão. Apesar de muitos
homens negros e brancos discordarem e usarem casos particulares para mostrar que
também sofrem rejeições e solidão, a maioria esmagadora de mulheres negras solteiras
por uma grande parte da vida que existiram, existem e continuarão existindo prova o
contrário do que está no imaginário masculino. A solidão da mulher negra pode partir
da própria ou de ações externas a ela. Ainda assim é solidão, pois parte de uma dor e
uma tristeza que vêm do racismo, algo que não se pode controlar.
Outro trecho da obra de Jesus (1960, p. 77) mostra o desespero frente à
possibilidade de vivenciar a rejeição e a violência sutil que estão presentes desde a
infância das mulheres negras: “Tive sonhos agitados. Eu estava tão nervosa que se eu
tivesse azas eu voaria para o deserto ou para o sertão. Tem hora que eu revolto comigo
por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos”.
O texto de Jesus (1960), logo no início, mostra que uma figura de representação
paterna faz falta na vida da mulher negra e na criação de seus filhos, porém a autora, em
virtude de suas experiências nos relacionamentos afetivos, demonstra, no decorrer da
narrativa, uma consciência de que homens dentro de casa podem não ajudar com as
tarefas ou com a criação dos filhos: “Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos.

97 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher
sozinha sem um homem no lar” (JESUS, 1960, p. 8).
Apesar de não ser o sonho de toda mulher casar e ter filhos, é importante estar
livre para escolher o próprio caminho e saber que, dentre as opções para um possível
relacionamento afetivo, estão pessoas livres de preconceitos.

3.3 O RACISMO E A ESTAGNAÇÃO SOCIAL

No Brasil, apesar de pessoas negras e brancas passarem fome e viverem em


situação de pobreza, os negros são 75% entre os que estão em situação de miséria,
conforme dados de Madeiro (2019, online). Por isso é importante pensar como o fato está
ligado aos tempos da escravidão. Desde lá, o corpo negro é tratado como mercadoria,
sendo mais uma vez objetificado e bestializado. Em meio às diversas opções de trechos
da obra de Jesus (1960), o trecho a seguir demonstra o recorte da desigualdade em sua
forma mais cruel:

A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que


alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E
agradeci o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro que as
aguas invadiu os armazens e estragou os alimentos. Bem
feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta dos
preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio.
Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que
não trabalham e passam bem (JESUS, 1960, p. 50).

Desde o período da escravidão, pessoas brancas têm se beneficiado de


privilégios como terras para que os europeus pudessem se estabelecer. A partir de então,
pessoas negras tiveram menos privilégios e chegaram à situação de miséria. Para as
classes mais altas, conforme mostrado por Jesus (1960), é preferível desperdiçar as
comidas do que doá-las. Assim, é possível perceber a desvalorização das pessoas negras
em todos os âmbitos sociais. A fome e a miséria, resultantes dessa desigualdade, levam
a população menos favorecida a furtos, roubos e assassinatos.

3.4 O RACISMO E A CRIMINALIZAÇÃO DO CORPO NEGRO

Em trechos da obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, é possível perceber como
se dava a criminilização do corpo negro. O negro era visto como menos que um animal
para as pessoas da época. No trecho a seguir, é possível perceber a dor e o sofrimento
destinados às pessoas do navio de Mãe Susana, a voz ancestral do livro que alerta Túlio
dos perigos de confiar em pessoas brancas, uma vez que estes fizeram pouco para
despertar a confiança das pessoas negras:

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de


infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um
navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta
de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa

98 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para


caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados
em pé e para que não houvesse receio de revolta,
acorrentados como os animais ferozes das nossas matas,
que se levam para recreio dos potentados da Europa.
Davam-nos a água imunda, podre e dada com
mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos
morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar,
de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas
humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes
doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e
famintos! Muitos não deixavam chegar esse último
extremo – davam-se à morte (REIS, 2019, p. 80).

Na atualidade, é possível realizar um paralelo entre a situação dos navios


negreiros e o sistema carcerário brasileiro atual. As condições de vida precárias e a
lotação desumana demonstram, em duas épocas diferentes, um jogo de interesse político
que prejudica alguns grupos sociais em detrimento de outros. Revoltar-se é um sinal de
resistência ao que foi imposto.

Então Túlio olhou em derredor de si a assegurar-se da


situação e dos meios de fuga, e viu nesse quarto horrível
troncos, correntes, cepos, anjinhos, que se cruzavam. Aí,
quantos desgraçados não tinham no meio das torturas
amaldiçoado, como Jó, o dia do seu nascimento?!...
Quantas lágrimas não teriam regado aqueles instrumentos
de suplício?!... (REIS, 2019, p. 131).

Túlio, diferentemente de Mãe Suzana, não se exalta ao demonstrar sua


indignação. Isso demonstra que, ao contrário do que foi estigmatizado, há discordância
entre pessoas de mesma cor, pois o conjunto formador do eu de cada um é único e parte
das vivências e da personalidade de cada um. Por esse motivo, generalizar as ações de
criminosos negros é uma atidude que se tornou rotina dentro de uma estrutura social
racista.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Logo após o fim da escravidão, não foram instituídas políticas de reinserção do


negro na sociedade. Esse fato gerou consequências sociais e econômicas à vida de
pessoas negras. Tais consequências têm impactado essa parcela da população até os dias
de hoje. É possível perceber que os negros são minorias em espaços de grande poder
aquisitivo e maiorias em índices de pobreza e mortalidade.
Para reverter os casos de racismo e injúria racial na sociedade, é preciso
compreender que o racismo é qualquer forma de discriminação ou segregação baseado
na cor da pele de um grupo social. Apesar de o racismo não estar restrito a uma cor de
pele, no Brasil, dado o histórico de escravidão já mencionado, percebe-se que a
população negra sofre diversas situações de discriminação e exclusão. Isso faz do

99 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


COMBATE AO RACISMO POR MEIO DA LEITURA DE AUTORAS NEGRAS

racismo um acontecimento estrutural na sociedade. Sendo estrutural, o racismo é


naturalizado, relativizado e desacreditado e está ligado às bases da construção da
sociedade.
Para combater o racismo e evitar que essa estrutura se perpetue, é preciso
buscar formas de ensinar o antirracismo para a população. Nesse sentido, a literatura é
um excelente caminho para que os jovens possam perceber o racismo, analisar
criticamente o seu papel dentro de uma sociedade onde o racismo é estrutural e buscar
caminhos para mudar a situação dos negros na sociedade.
Nesse sentido, obras como Úrsula, clássico literário brasileiro escrito por uma
mulher negra e pouco comentado na academia, Quarto de Despejo, retrato da rejeição e
dp descaso com a população que reside nas favelas, com recorte para as que são pobres
por consequência da falta de oportunidades a que os negros estão expostos, e Becos da
Memória, coletânea de memórias e histórias inventadas que refletem a realidade de
diversas gerações de pessoas negras, são ótimas fontes de pesquisa com intenção de
transformação social.
Por meio deste estudo, foi possível perceber que o racismo possui muitas
“faces”, ou seja, ocorre de diferentes maneiras, como por meio de hostilidade. Neste
estudo, para começar a combater o racismo, foi preciso entender o passado, as raízes
históricas da opressão. Após contextualizar o racismo, foi necessário defini-lo enquanto
significação. Esse conhecimento auxiliou na identificação das situações de racismo. Em
seguida, passou a ser analisado o racismo em concomitância à solidão da mulher negra
presentes em Becos da Memória, fato que exclui e oprime mulheres negras duplamente:
por serem mulheres e por serem negras. Depois, passou a ser analisada a estagnação
social, presente em Quarto de Despejo, proveniente da ausência de políticas de reinserção
do ex-escravo na sociedade e na economia. Por fim, passou a ser analisada a
criminalização e bestialização do corpo negro, presentes em Úrsula por meio das
histórias de Mãe Suzana.
O trabalho teve a intenção de fazer entender o que é o racismo, porque ele é
estrutural e qual o seu contexto histórico. Por meio da análise das obras, foi possível
confirmar a presença do racismo na sociedade, bem como seus diversos níveis. As obras
de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Maria Firmina dos Reis possibilitaram
a análise de trechos que confirmam a existência do racismo, o que pode e deve despertar
nos alunos sentimentos como identificação, empatia e desejo de mudança. Ou seja, a
pesquisa possibilitou ampliar a visão do problema de forma a buscar a conscientização.
As obras exploradas neste estudo foram selecionadas sob a perspectiva da
educação antirracista por meio de literatura. Nesse sentido, é possível trabalhar o
antirracismo na obra Becos da Memória por meio de histórias separadas, como a história
da personagem Cidinha-Cidoca. Na obra Quarto de Despejo, é possível trabalhar capítulos
do diário de Carolina. Na obra Úrsula, é possível lançar mão das memórias da
personagem de Mãe Suzana.
Segundo Candido (2011), a literatura tem sido um poderoso instrumento de
educação. Tudo aquilo que a sociedade valoriza ou abomina está presente nas
manifestações literárias. Por meio da literatura, é possível confirmar, negar, propor,
denunciar, apoiar ou combater, possibilitando dialogar acerca dos problemas. Sendo
assim, tornam-se importantes a literatura sancionada e a literatura proscrita.

100 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

Seria interessante a seleção de outros trechos das obras, algo que pode e deve
ser desenvolvido futuramente, inclusive em sala de aula. Durante a busca por formas de
trabalhar literatura negra em sala de aula, foram encontrados aspectos mais superficiais
de como se dá o racismo, problema que limita o estudo.
Apesar disso, foi possível comprovar a importância da leitura e da literatura no
entendimento das questões que circulam em nosso meio social. O trabalho trouxe à tona
a necessidade de mais estudos metodológicos na área, principalmente aqueles voltados
à literatura. Faz-se necessário ampliar os estudos e tornar a pesquisa uma possível fonte
para jovens professores que desejam educar os alunos para o antirracismo.

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GEOVANNA FRANCESCA DA SILVA ARAÚJO | MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES | LUÍS
ANDRÉ NEPOMUCENO

SOARES, Anderson Novais. Literatura afro-brasileira na sala de aula: concepção,


planos de aula e outras ideias. 2020. 58 f. Tese (Doutorado) – Curso de Língua
Portuguesa: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas
Gerais – Campus Rio Pomba, Rio Pomba, 2020. Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/584677/2/Literatura%20afro-
brasileira%20na%20sala%20de%20aula.pdf. Acesso em: 15 jun. 2021.

103 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 104-112, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Entre canais humanos e muralhas lisas: as


transformações da urbe no poema Cidade física, de
Dora Vasconcellos

Between human channels and smooth walls: the transformations of the


city in the poem Cidade física, by Dora Vasconcellos

DEIVIDE ALMEIDA ÁVILA


Mestrando em Letras - UFSJ
E-mail: [email protected]

OZANA SACRAMENTO
Professora Doutora - IF Sudeste MG
E-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho propõe investigar a transformação sofrida na cidade na segunda metade
do século XX, tomando a poeta carioca Dora Vasconcellos (1911-1973) como representante desse
período. Para isso, analisaremos o poema “Cidade física”, inserido no livro Surdina do
Contemplado (1958). Nesse poema, a autora tem como aspectos líricos a subjetividade e a
sensibilidade em relação às modificações ocorridas na urbe, sobretudo sobre as formas e as
vivências sociais. Tal poema focaliza a cidade em cenários, personagens e tradições convergentes
num determinado tempo da história no espaço temporalidade. A cidade começou a ganhar
importância por suas transformações, cujo espaço passou a abrigar uma sociedade urbana
dominada pelo mercado, pela tecnologia e pela aceleração da vida cotidiana. Dora Vasconcellos
deu voz a um sujeito lírico que evoca a dificuldade de traduzir a cidade que hoje habita, que
mostra certo tipo de desencantamento e deslinda com estranhamento as mudanças ocorridas em
seu próprio tempo e espaço, versando, assim, sobre as perdas ocasionadas pela modernidade. A
partir de tais constatações, perceberemos como a crítica usada pela poeta descreve o espaço
citadino, pensado e analisado historicamente, e nos oferece imagens, costumes e linguagens
dentro de uma história cultural. Para contribuir à investigação, recorremos a estudos dos teóricos
Canclini (1997) e Collot (2013), entre outros.
Palavras-chaves: Cidade Física. Modernidade. Subjetividade. Sensibilidade.

Abstract: This paper proposes to investigate the city transformation in the second half of the 20th
century, taking the Rio de Janeiro poet Dora Vasconcellos (1911-1973) as a representative of this
period. For this purpose, we will analyze the poem " Cidade física" (Physical City), included in
the book Surdina do Contemplado (1958). In this poem, the author's lyrical aspects are
subjectivity and sensibility concerning the modifications that have occurred in the city, especially
regarding social forms and experiences. The lyric poetry shows the town in scenarios, characters,
and traditions that converge in a particular time of history in the space of temporality. The city
began to gain importance because of its transformations, whose place became home to an urban
society dominated by the market, technology, and the acceleration of daily life. Dora Vasconcellos
has given voice to a lyrical subject that evokes the difficulty of translating the city he inhabits,

104 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


DEIVIDE ALMEIDA ÁVILA | OZANA SACRAMENTO

that shows a certain kind of disenchantment, and glances with strangeness at the changes that
have occurred in his own time and space, thus dealing with the losses caused by modernity. From
these observations, we will see how the criticism used by the poet describes the city space,
historically thought and analyzed, and offers us images, customs, and languages within a cultural
history. To contribute to the investigation, we draw on studies by theorists Canclini (1997) and
Collot (2013), among others.
Keywords: Physical City. Modernity. Subjectivity. Sensitivity.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Revolução Industrial causou profundas mudanças no modo de vida das


pessoas, dentre elas o aceleramento da urbanização e a reconfiguração do processo
produtivo. Tais transformações afetaram a relação das pessoas com esse novo espaço
regido pelas regras do capital. A presença da cidade em sua faina frenética, que deixa as
pessoas ilhadas em sua rotina, tornou-se comum nos textos literários e, por conseguinte,
passou a ser objeto nos estudos literários. O espaço urbano nos oferece referências que a
literatura busca representar através de imagens, costumes e tipos, dentre outros objetos.
Assim, buscaremos entender a poesia do espaço urbano abordado por Dora
Vasconcellos, com suas significações e representações numa determinada
temporalidade.
A literatura, mais especificamente aqui a poesia, é uma ferramenta persuasiva
na construção da sociedade, pois, como afirma o crítico Antonio Candido (2006, p. 20), a
arte literária, como um instrumento de civilização, forma-se por meio do entrelaçamento
de variados fatores sociais. Deve-se perceber a literatura como um todo indissociável,
resultado de um tecido formado por características sociais distintas, porém
complementares. Assim, deve-se pensar a influência exercida pelo meio social sobre a
obra de arte, como a influência que a própria obra exerce sobre o meio. A arte pode,
então, ser uma expressão da sociedade, não deixando de se considerar o teor de seu
aspecto social, ou seja, o quanto ela está interessada nos problemas sociais.
Candido assevera que o conteúdo social das obras e o influxo da literatura no
leitor fazem do texto literário um mecanismo de mobilização social. Afirma o crítico:

[...] a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de


fatores do meio, que se exprimem na obra em graus
diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um
efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores
sociais. (CANDIDO, 2006, p. 30).

Nessa perspectiva, a literatura é um fenômeno de cultura e, portanto, tem um


papel na sociedade, qual seja, sua função humanizadora que ultrapassa a fruição estética.
Sendo assim, podemos ler como a cidade em si nos traz sentidos e as perdas desses. A
urbe se reflete na escrita literária como uma composição ficcional que, dentro dos
estudos culturais, leva em conta, também, a formação de identidades, como aponta
Néstor García Canclini (1997, p. 96):

105 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ENTRE CANAIS HUMANOS E MURALHAS LISAS: AS TRANSFORMAÇÕES DA URBE NO
POEMA CIDADE FÍSICA, DE DORA VASCONCELLOS

Este tipo de aproximação tem consequências para a


construção da cidadania cultural, porque esta cidadania
não se organiza somente sobre princípios políticos,
segundo a participação “real” em estruturas jurídicas ou
sociais, mas também a partir de uma cultura formada nos
atos e interações cotidianos, e em projeção imaginária
desses atos em mapas mentais da vida urbana.

De acordo com Canclini, a cidade imaginada e desvendada pelos escritores


amplia os sentidos da urbanidade dentro da literatura. O antropólogo argentino, que
tem como foco a cultura na pós-modernidade a partir do ponto de vista latino-
americano, elucida o impacto de novas tecnologias, o que podemos chamar de
“necessidade capitalista”, no setor cultural de uma sociedade. Assim, veremos como o
poema vasconcelliano serviu para criar uma experiência a partir da perspectiva de um
eu lírico que transita por esse tipo de cidade, que existe na realidade social.

2 A LEITURA DA CIDADE NA POESIA DE DORA VASCONCELLOS

A modernidade é um fenômeno essencialmente urbano que cumula a vivência


da cidade de complexidades e tensões. Tais elementos, emanados do ser humano e
atuantes sobre ele, faz com que o espaço urbano surja como metáfora de uma nova
prática dos citadinos, numa nova ordem tecnológica que modifica o cenário no qual
habitam.
O intuito da investigação da temática urbana no poema Cidade física é averiguar
a maneira como a imagem é evocada pela palavra poética, tendo em vista que tal recurso
retórico, inicialmente, pode ser definido como a representação verbal de um objeto
visual.
O sujeito lírico, com perspicácia, tem um olhar voltado para a cidade, uma
mirada da mesma ordem do flâneur apresentado pelo poeta francês Charles Baudelaire.
Esse olhar poético, configurado pela figura do observador, capta, de forma sensível e
verdadeira, o mundo, o cotidiano e o que neste mundo. Enfim, uma flânerie que mostra
a vida social, o cosmopolitismo.
A cidade que o flâneur observa é a das transformações urbanas que ocorreram
no século XIX, a urbe que concebe novas vias de circulação para os transeuntes,
implicando a destruição de um espaço de antes que, agora, dá morada ao novo. Assim,
leremos como a cidade representa as impressões atravessadas pela subjetividade de um
sujeito lírico que se propõe a olhar e a relatar o que vê e/ou sente com o propósito de
manifestar aspectos e/ou situações que foram experienciados em um dado momento.
Parte-se do pressuposto de que qualquer discurso sobre a cidade está sob o viés histórico
de um tempo vivenciado, em que a urbe existe como espaço social e físico, com ordem e
desordem demográfica, arquitetônica e cultural.

106 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


DEIVIDE ALMEIDA ÁVILA | OZANA SACRAMENTO

3 A POETA

Dora Alencar de Vasconcellos, além de consulesa e embaixadora representante


do Brasil em alguns países, foi poeta com publicação de três obras no gênero lírico:
Palavra sem eco (1952), Surdina do contemplado (1958) e O grande caminho do branco (1963).
Também, em 1958, sob encomenda do compositor Heitor Villa Lobos, escreveu quatro
poesias que compuseram as canções da suíte Floresta do Amazonas.
No livro Surdina do contemplado, com um número de 172 poemas, Dora
Vasconcellos tomou como tema o amor – sentimento esse descrito em vários sentidos,
como a infância, o folclore e o urbano.
Sobre esse último tema, a poeta deslinda a cidade em constante transformação,
um modelo de urbe moderna, resultado de processos históricos e revoluções de diversas
áreas que culminaram em pensamentos, cultura e modos de vida que podemos chamar
de modernidade.
Jorge Medauar (1963, s/n), ao tratar sobre a poética de Vasconcellos, diz que
“[...] a metáfora, o símbolo, a imagem são recursos usados, porém despojados dessa
clareza surpreendida na leitura do primeiro verso, ou mesmo da primeira palavra”.
Não obstante o que disse o crítico, Vasconcellos usa uma linguagem direta, que
ilustra fatos do dia a dia, como a representação do cotidiano urbano. E, mais
especificamente, no poema Cidade física, verifica-se que os versos livres, dispostos em
cinco estrofes, mostram uma determinante para a sociedade contemporânea, um sujeito
lírico que reclama a mudança na cidade. A urbe começou a ganhar importância por suas
transformações, cujo espaço passou a abrigar uma sociedade dominada pelo mercado,
pela tecnologia e pela aceleração da vida cotidiana, e é essa cidade que, em certa medida,
se desumaniza, que emerge no poema de Vasconcellos.

4 CIDADE EM FORMA DE POESIA

Considerando-se que a poesia de Dora Vasconcellos não foi e ainda não é


amplamente divulgada em meios tradicionais e nos digitais, transcreve-se a seguir o
poema em tela.

Cidade física

A cidade existe estrondosamente


Pisam sôbre1 o tambor das ruas
Passos de ritmos vários
Acordando as pausas verticais

Não há ouro entre a poeira


Nem recato no ruído
As ruas se negam aos transeuntes
E há afogados

1Optamos por manter a escrita original, pois a edição utilizada é anterior à reforma ortográfica
de 2009.

107 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ENTRE CANAIS HUMANOS E MURALHAS LISAS: AS TRANSFORMAÇÕES DA URBE NO
POEMA CIDADE FÍSICA, DE DORA VASCONCELLOS

Entre canais humanos

Já ruiu o abrigo das flôres


E já passou a vertiginosa estrela
Levo perdas e danos
E todas as tristezas comuns
Em mim reunidas

Jogo o olhar em visões


E beijo as pedras
Cuidando despertá-las

Dor física do amor


Dor física da cidade imensa
A idéia crepuscular
Pernoita
Entre muralhas lisas. (VASCONCELLOS, 1958, p.26)

No título do poema, o adjetivo “física” remete à natureza, à matéria e, em


particular, aqui, à composição, a organização e a formação de uma cultura urbana.
À primeira vista, a cidade já é descrita como ruidosa, barulhenta, povoada por
transeuntes em passos de variados ritmos, responsáveis por acordar metaforicamente,
os prédios – formas referenciais às construções modernas. Como um dos símbolos mais
característicos de um grande centro, os edifícios construídos nas metrópoles em muita
quantidade podem equiparar a cidade a um labirinto. Há que se mencionar que a cidade
ruidosa de certa forma é musical; observa-se o emprego de vocábulos que remetem à
música, como tambor, ritmos e pausas. É como se o espaço das ruas fosse uma grande
pauta musical em que os prédios completam a notação musical como barras de
compassos que, juntamente com a rotina frenética e o insulamento dos citadinos,
compõem uma nova e opressiva harmonia da urbe.
Na segunda estrofe, vê-se a alusão ao capital (ouro) e certa hostilidade da cidade
para com seus habitantes/transeuntes. Na terceira estrofe, tal hostilidade se mantém na
supressão das flores, e a voz lírica assinala o sentimento de perda.
A dureza da cidade e a sensação do eu lírico se afiguram na quarta estrofe. Na
última estrofe, a cidade imensa insinua o fim de um ciclo dentro de si mesma; contudo,
a cidade causa dor física a esse sujeito. A voz lírica observa e sente a identidade perdida
e fragmentada da multidão que não mais vive o espaço, mas habita a tecnicidade de uma
nova cultura.
As referências a urbe movimentada são conotadas pelo advérbio
“estrondosamente” (verso 01) e pelos léxicos musicais: tambor, ritmos, pausas (versos
02, 03 e 04). Tais ruídos são causados pelos passantes que dão passos que despertam as
construções aprumadas, guiando o leitor por vias públicas, o que alude a uma
movimentação desordenada de pedestres que causa estrondo e rumores.
O ambiente peculiar da cidade grande é evocado pelas referências negativas às
ruas com o advérbio de negação “não” para indicar a agitação e a incomodidade nessas
vias “[onde] há afogados/Entre canais humanos” (versos 08, 09). Nesses versos, a

108 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


DEIVIDE ALMEIDA ÁVILA | OZANA SACRAMENTO

multidão das ruas (canais humanos), anônima, não enxerga o outro que se afoga nela
mesma. Essas referências evocam o sentido da audição, uma vez que os ruídos
provocados pelos passantes costumam importunar aqueles que vivem em localidades
com esse tipo de ruas povoadas/movimentadas. A audição aqui é afetada pela ação
humana que podemos acrescer do “sentido” cinético.
Os versos “Já ruiu o abrigo das flôres” e “E já passou a vertiginosa estrela”
(versos 10 e 11) mostram a interferência desses pedestres que modificam o cenário da
natureza ainda existente. A “inútil” e pequena interferência humana no que ainda resta
de beleza natural nos grandes centros é um mergulho do eu lírico na subjetividade
desterritorializada, percebendo visualmente as singularidades que escondem o visível,
ou seja, atentando para o que existe – o belo, e graças a tais intervenções, a cidade fica
um tanto mais dura.
Os versos seguintes – “Levo perdas e danos/E todas as tristezas comuns/Em
mim reunidas” (versos 12, 13 e 14) – mostram um sujeito lírico insatisfeito, atento às
intempéries causadas pela ação humana, que não atenta para a vida natural ao seu redor
e não a contempla, pois, na pressa do ramerrão diário, nem dispõe de tempo para isso.
Tais versos nos possibilitam inferir, também, que o meio ambiente sofreu efeito devido
à urbanização.
Ao discorrer sobre a rua movimentada, povoada por transeuntes apressados, a
poeta descortina um espaço que se revela para além da função de um lugar dinâmico e
social da cidade. A personificação da rua como um espaço reformulado, recriado e que
ainda abriga resquícios da natureza, não tem importância e isso causa uma inquietude,
uma insatisfação ao sujeito lírico. A rua, aqui, parece um ser vivo que legitima a urbe a
qual o cosmopolitismo deu à luz.
Podemos inferir como um espaço urbano é construído e se modifica a partir das
contradições manifestadas pela lógica do sistema capitalista, com constante busca pelo
lucro dentro do desenvolvimento. Observa-se isso na menção à poeira das ruas onde não
há mais ouro, metáfora da busca pela riqueza material. Nessa perspectiva, os indivíduos
estão em uma cidade tecnificada e hostil em que sua imagem mecanicista aparece nos
versos de Vasconcellos com representações visuais das pausas verticais (edifícios) e das
“ruas que se negam aos transeuntes”.
Os termos que aludem à vontade do sujeito lírico – “olhar em visões”, “E beijo
as pedras/Cuidando despertá-las” – na penúltima estrofe, registram uma reflexão e uma
angústia acerca da nova e dura realidade da cidade, símbolo de
modernidade/urbanização. E a voz poética mostra tamanho descontentamento quando
a metrópole se transforma em registro de sua própria história, “na dor física”.
A percepção da cidade pelo sujeito lírico, por meio dos sentidos, registra uma
cidade moderna coalhada de transeuntes, isto indicado pelos léxicos “pisam” e “passos”
que modificam o espaço “acordando” os prédios, sem “recato”, sem espaço entre os
próprios passantes.
Na última estrofe, o leitor pode ler a preocupação da voz lírica com a mudança
de cenário na cidade e isso origina um olhar que traduz transformação que a provoca e
a afeta de alguma forma, cuja “Dor física do amor” e “da cidade imensa”, ainda persiste
e adentra a noite “entre muralhas lisas”. A expressão “idéia crepuscular” remete ao

109 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ENTRE CANAIS HUMANOS E MURALHAS LISAS: AS TRANSFORMAÇÕES DA URBE NO
POEMA CIDADE FÍSICA, DE DORA VASCONCELLOS

declínio ou fim de um ciclo, o que ocorre repetidas vezes com as cidades como resultado
das intervenções humanas no espaço urbano.
Nos versos de Cidade física, Vasconcellos descreve um espaço urbano como uma
cidade grande, cujo cotidiano ilustrado em sua poética revela ruas em constante
movimentação e o descaso ao pouco de vida natural (natureza) que ainda habita esse
espaço e a qual está a ruir. O cotidiano faz parte da produção e da reprodução em que a
vida moderna se encontra. A austeridade do dia a dia, do corre-corre, do sufocamento
na cidade é contrastada com um tempo de dor subjetivamente causada no eu poético,
uma experiência que afetou sua vivência. A cidade, presente nessa poesia, aparece como
uma ambientação que vive e atua com o sujeito poético e não como uma simples matéria.
No poema, a poeta soube dar significado à imagem da cidade moderna, pois
suscitou metaforicamente as edificações inseridas nos grandes centros quando diz
“pausas verticais”, aludindo a espaços entre as ruas e a “muralhas lisas”, remetendo a
edifícios monumentais e, de alguma forma, inacessíveis aos passantes, posto que sejam
muralhas, ocasionando, assim, barreiras representando impossibilidades causadas pelos
processos capitalistas, como a industrialização, que privam os seres de direitos
igualitários.
Sobre a partilha entre o sujeito e a paisagem e como se dá esse tipo de interação,
Luiz Otávio Cabral (2000, p. 38-39) diz:

Sob uma perspectiva humanística é preciso deslocar a


atenção do objeto externo para os processos que ocorrem
com os sujeitos que interagem com a paisagem. Não no
sentido de determinar com precisão as forças físicas e
psíquicas envolvidas, mas de descrever e analisar a
maneira pela qual eles partilham essas relações
existenciais com o entorno.

E é isso que se depreende desse quadro em movimento descrito pelo eu lírico.


A cidade física, com suas ruas abarrotadas de passantes esquivos e afogada na rotina
sufocante da cidade barulhenta, arquitetonicamente hostil, causa padecimento a esse
sujeito que flana e observa a urbe.
Uma vez que a paisagem é uma construção/representação feita pelo sujeito de
forma imagética e sentimental, com significado para além do espaço estático, Michel
Collot (2013, p. 26) diz:

A paisagem não é apenas vista, mas percebida por outros


sentidos, cuja intervenção não faz senão confirmar e
enriquecer a dimensão subjetiva desse espaço, sentido de
múltiplas maneiras e, por conseguinte, também
experimentado. Todas as formas de valores afetivos –
impressões, emoções, sentimentos – se dedicam à
paisagem, que se torna, assim, tanto interior quanto
exterior.

110 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


DEIVIDE ALMEIDA ÁVILA | OZANA SACRAMENTO

As características pertinentes à polis moderna são reveladas paisagisticamente


e abarcam uma fonte de inspiração. Vasconcellos versa sobre uma cidade, não
referenciada, mas com características concernentes a esse espaço cujo sujeito lírico é o
focalizador que contempla a paisagem citadina, paisagem esta que atua na subjetividade
do eu lírico a ponto de lhe causar dor.
No poema Cidade física, podemos ler a consciência de uma poeta que mostra a
percepção sensorial da cidade entre os cenários que a compõem. Nele, há uma
autoinvestigação de acontecimentos cotidianos que são explicitados como uma forma de
capturar a poética do mundo contemporâneo, observado de uma forma sistemática que
refina a vida – o olhar poético.
Com isso, somos levados a experimentar fisicamente os traços característicos
intrínsecos à movimentação de um grande centro. Com a aplicação desse modelo
interpretativo em forma de poesia, a delimitação das especificidades da urbe, reveladas
por meio de palavras, demonstra como a literatura é capaz de criar interação e
interpretação através de um sujeito lírico que descreve sentimentos e do leitor tanto com
o processo de vivência na rua movimentada como com a cidade per se.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enfoque nos estudos contemporâneos sobre a cidade propicia que se observe


inscrição/descrição da cidade vivenciada, sentida, residente e observada pela voz lírica
em Dora Vasconcellos.
Podemos considerar que o poema Cidade física, escrito em 1958, dá estatuto e
historicidade à cidade moderna com pequenas, porém, contundentes amostras do
espaço urbano, cujo choque e tensão no olhar do sujeito lírico aparecem com impressões
e insatisfações que os versos fazem interiorizar.
O conflito entre o eu e o espaço paisagístico se dá com palavras de conotações
negativas marcadas por signos de complexidade, de choque e de certo esvaziamento do
humano. É sintomática a resistência da voz lírica à cidade que se modificou. A
modernização, como valor e processo, apagou o antes, agora a cidade é regenerada e
perde sua peculiaridade para se juntar ao mesmo estilo de toda cidade moderna. A
cidade reconstruída e desorganizada mostrou-se caótica com a perda das referências aos
valores do passado.
O poema abordado demonstra a importância que tem o ambiente construído na
formação das identidades. A cidade moderna impõe novas relações com o espaço, como
lemos no poema. Ainda, tal poema revela o impacto da transformação da cidade sobre
o eu lírico, como reclama o sujeito lírico como um focalizador que utiliza da
subjetividade contemplativa como uma das formas literárias para verbalizar a
metrópole.
O ponto de vista do sujeito lírico reveste-se de certo descontentamento que se
mescla de tom sentimental que lê a cidade através da memória afetiva de um estilo e
condição do que foi antes. No presente, busca-se ainda o que resta de idílico e reclama a
maneira de viver a cidade. O eu lírico encena os hábitos de um lugar customizado pelo
capitalismo, cujos novos traços do cosmopolitismo se inscrevem na vivência do sujeito
com um progresso que apaga o antes. Aqui, a cidade é um receptáculo de pessoas,

111 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ENTRE CANAIS HUMANOS E MURALHAS LISAS: AS TRANSFORMAÇÕES DA URBE NO
POEMA CIDADE FÍSICA, DE DORA VASCONCELLOS

costumes e valores impulsionados pela modernidade advindos do sistema de


industrialização e urbanização que alteraram o cenário físico.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: BENJAMIN, Walte. Obras


escolhidas. v. III. Trad. José Carlos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São
Paulo: Brasiliense, 1989.

CABRAL, Luiz Otávio. A paisagem enquanto fenômeno vivido. Geosul, Florianópolis,


v. 15, n. 30, p. 34-45, jul./dez. 2000.

CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 1997.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio


de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Tad. de Ida Alves. Rio de Janeiro:
Oficina Raquel, 2013.

MEDAUAR, Jorge. Contracapa: In: VASCONCELLOS, Dora. O grande caminho do


branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1963.

VASCONCELLOS, Dora. Surdina do contemplado. Rio de Janeiro: Editora Livraria


José Olympio, 1958.

112 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 113-133, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Reflexões sobre língua(gem) neutra no


português brasileiro

Reflections on neutral language in Brazilian Portuguese

LORRANY LIMA SILVA


Graduada em Letras - UNIPAM
E-mail: [email protected]

ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES


Professora orientadora - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: A relação mútua entre língua e sociedade é inquestionável. Assim, a dinamicidade da


sociedade reflete na dinamicidade da língua e torna evidentes discussões sobre variação e
mudança linguística. Nesse contexto, este artigo propôs reflexões acerca da linguagem neutra na
língua portuguesa, que tem chamado a atenção de diversas mídias nos últimos anos. Por meio de
pesquisa bibliográfica e webliográfica, buscou-se compreender a importância do tema para a
inclusão linguística de pessoas da comunidade LGBTQ+ e mostrar evidências de que as mídias
contribuem para a divulgação de novas variações e de indícios de mudanças linguísticas.
Concluiu-se que, pelo fato de a linguagem neutra promover discussões recentes, há muito o que
se debater sobre o assunto. Os linguistas terão papel fundamental na descrição e na análise de
discussões futuras sobre essa questão.
Palavras-chave: Linguagem neutra. Variação linguística. Não binárie.

Abstract: The mutual relationship between language and society is unquestionable. Thus, the
society dynamics reflect on the language dynamics and make discussions about linguistic
variation and change evident. In this context, this paper reflects on neutral language in
Portuguese, which has drawn the attention of several media in recent years. Through
bibliographic and web-based research, it sought to understand the importance of the theme for
linguistic inclusion of people from the LGBTQ+ community and to show evidence that the media
contributes to disseminating new variations and signs of linguistic changes. It was concluded that
because neutral language promotes recent discussions, there is much to debate. Linguists will
play a fundamental role in describing and analyzing future discussions on this issue.
Keywords: Gender-neutral language. Linguistic variation. Non-binary.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A língua portuguesa é, atualmente, o sexto idioma mais falado no mundo. De


acordo com Lane (2019, on-line), o português é a língua materna de mais de 250 milhões
de pessoas, inclusive dos brasileiros. Com uma grande quantidade de falantes diversos,

113 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

é inegável a existência de variações linguísticas, principalmente se se considerar a


extensão territorial e os processos de colonização do Brasil.
Essa grande quantidade de variações decorre do processo evolutivo da língua,
que, quanto mais é usada, mais é atualizada pelos próprios falantes para adequar-se ao
contexto social e histórico da época. Consequentemente, tornam-se relevantes estudos
que buscam investigar essas variações.
Com o avanço nos estudos sobre a Teoria Queer, que afirma que o gênero é
construído socialmente, identidades sexuais e de gênero vêm ganhando espaço nessas
reflexões, surgindo a necessidade de melhor representar a pluralidade da comunidade
LGBTQ+, inclusive na língua. Dessa forma, reflexões envolvendo o uso de gênero neutro
na língua portuguesa têm-se tornado cada vez mais comuns nas mídias sociais.
Sabe-se que, pela tradição de uso e pela norma, o português só admite flexões
de gênero no feminino e no masculino, não possuindo pronomes/marcações neutras e
utilizando o masculino para marcar essa neutralidade, causando discussões acerca do
sexismo que acompanha a língua portuguesa. Nesse sentido, existem pessoas as quais
não se sentem confortáveis com essa representação binária de gênero, o que levou ao
surgimento da proposta de “linguagem neutra” para a língua portuguesa e até mesmo
de um Manifesto ile para uma comunicação radicalmente inclusiva1, como forma de
desconstruir os conceitos cis-heteronormativos de gênero, visto que muitas pessoas não
se identificam com a designação de gênero masculino nem com a de feminino.
Essa proposta de linguagem neutra foi amplamente difundida nas redes sociais,
levando diversas pessoas a entrarem em contato com o manifesto, incluindo alguns
acadêmicos, como o professor Guilherme Terreri Lima Pereira, mais conhecido pelo
nome artístico Rita von Hunty, uma drag queen que, por meio do canal no YouTube
Tempero Drag, propõe reflexões sobre literatura, política e sociedade.
Uma vez que algo viraliza na internet, pessoas do mundo todo podem entrar
em contato com ela. Com a divulgação do manifesto nas redes sociais, várias pessoas
passaram a adotar a linguagem neutra. Algumas marcas, inclusive, passaram a trabalhar
com campanhas de marketing cada vez mais inclusivas, buscando atingir o maior
número de consumidores. Editoras nacionais também têm adotado pronomes neutros
para a tradução de livros com personagens não binários e transexuais. Percebe-se,
portanto, a grande influência das redes e mídias sociais no comportamento linguístico
dos indivíduos. Essa influência pode colaborar para o surgimento de variantes
linguísticas.
Tendo isso em vista, o presente estudo teve como objetivo geral refletir sobre as
propostas de linguagem neutra no português do Brasil, compreendendo a importância
de seu estudo e mostrando evidências de que as mídias sociais contribuem para o
espalhamento de novas variações linguísticas, sobretudo para a divulgação das
propostas de gênero neutro na língua portuguesa. Além da necessidade de conhecer o
significado dessas novas práticas discursivas, foi desejo da autora educar-se sobre temas
de gênero e sexualidade que envolvam a língua(gem), procurando, acima de tudo,
respeitar a pluralidade de identidades existentes dentro e fora da comunidade LGBTQ+.

1 Mais informações sobre o documento serão apresentadas no subtópico 2.4.1.

114 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e webliográfica, de caráter exploratório,


buscando leituras relevantes para o desenvolvimento do artigo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para a fundamentação deste artigo, cujo cerne é a discussão de uma


problemática que perpassa pela questão variacionista da língua, abordam-se,
inicialmente, os estudos sociolinguísticos para esclarecer a questão de variação e
mudança linguística, para, posteriormente, trazer a visão da gramática normativa sobre
a flexão de gênero e como ela foi se transformando do latim vulgar para o português
contemporâneo. Nesse ínterim, importante é apresentar a diferenciação acerca do
conceito de gênero gramatical e gênero social e, por fim, apresentar trechos do Manifesto
ile para uma comunicação radicalmente inclusiva, documento que deu origem às discussões
sobre gênero neutro, além de propor algumas reflexões sobre o assunto e de mostrar
exemplos do uso da linguagem neutra nas mídias e da repercussão desse uso.

2.1 TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA

Assim como explicam Cunha, Costa e Martelotta (2017, p. 22), a linguística


afirma-se como ciência no início do século XX, com a publicação do Curso de linguística
geral, obra póstuma de Ferdinand de Saussure. A partir desse marco, uma nova postura
acerca dos estudos sobre língua(gem) é tomada, e pesquisas sob diferentes perspectivas
são realizadas, ramificando a linguística em diferentes áreas de estudo.
Uma dessas áreas de estudo é a Sociolinguística, que, como explicam Cezario e
Votre (2017, p. 141),

estuda a língua em seu uso real, levando em consideração


as relações entre a estrutura linguística e os aspectos
sociais e culturais da produção linguística. Para essa
corrente, a língua é uma instituição social e, portanto, não
pode ser estudada como uma estrutura autônoma,
independente do contexto situacional, da cultura e da
história das pessoas que a utilizam como meio de
comunicação.

A Sociolinguística surgiu do interesse e da necessidade de analisar os


fenômenos de variação e mudança inerentes às línguas. A teoria firmou-se,
principalmente, nos anos 1960, por meio dos estudos de William Labov, linguista
estadunidense que a nomeou de Teoria da Variação e Mudança Linguística, ou
Sociolinguística Variacionista, como é comumente chamada na área. Por meio de seus
estudos, Labov abriu portas para desmistificar a ideia de que a língua seria um caos na
comunicação oral e passou a divulgar que, mesmo as variantes, ou seja, a “forma que é
usada ao lado de outra na língua” (CEZARIO; VOTRE, 2017, p. 142), mais informais
também são dotadas de normas organizadas.

115 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Para Labov (2008, p. 174), “os procedimentos da linguística descritiva se


baseiam na concepção da língua como um conjunto estruturado de regras”. O autor
explica que, no passado, era comum as normas do sistema linguístico serem
consideradas como invariantes, mas que isso mudou com estudos detalhados do
contexto social onde a língua é usada, mostrando que diversos elementos estão
envolvidos nos processos de variação e mudança.
Como discorrem Cezario e Votre (2017, p. 141), por meio de coleta de dados e
de análise dos fenômenos, o sociolinguista observa o grau de estabilidade de uma ou
mais variantes, verificando se esta é uma variante que está em seu início ou se ela está
mais próxima de atingir a mudança de fato. Isso comprova que as mudanças não são
simples frutos do acaso, mas são motivadas por elementos linguísticos e
extralinguísticos.
Entre os elementos envolvidos no processo de variação e mudança, encontram-
se cinco grandes dimensões estabelecidas por Weinreich, Labov e Herzog (2006, p. 121),
resumidas por Cezario e Votre (2017, p. 149), que são:

1) os fatores universais limitados da mudança (e variação),


que podem ser sociais ou linguísticos;
2) o encaixamento das mudanças no sistema linguístico e
social da comunidade;
3) a avaliação das mudanças em termos dos possíveis
efeitos sobre a estrutura linguística e sobre a eficiência
comunicativa;
4) a transição, momento em que há mudanças
intermediárias;
5) a implementação da mudança: estudo dos fatores
responsáveis pela implementação de uma determinada
mudança; explicação para o fato de a mudança ocorrer
numa língua e não em outras, ou na mesma língua em
outros momentos.

Importante salientar que, atualmente, tem-se forte influência das mídias em


geral, principalmente da internet, via redes sociais, na divulgação e na discussão de
variantes linguísticas, como é o caso da linguagem neutra a ser abordada neste artigo.
Nas mídias, tudo acontece de forma muito rápida, como pode-se perceber na quantidade
de conteúdos que viralizam diariamente. Como argumentam Raminelli et al. (2015, p.
128),

[...] frente a esse cenário inovador e convidativo à inserção


de manifestações e ao acesso a uma gama muito maior de
informações do que as fornecidas pelos meios de
comunicação tradicionais, a exemplo da televisão, jornal e
rádio; cria-se um novo ambiente e também uma nova
cultura, em que é permitida a qualquer pessoa, desde que
com acesso à Internet, a possibilidade de livre produção
de conteúdo.

116 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

Sendo assim, é possível perceber que as mídias estão desenvolvendo um papel


que vai muito além do relacionamento virtual entre indivíduos. Com cada vez mais
pessoas tendo acesso à internet, as redes sociais estão nos aproximando de diferentes
discussões e temas com os quais, normalmente, poderíamos não entrar em contato em
outra situação. O portal de notícias G1 informa que “o uso da internet no Brasil cresceu
em 2020, passando de 74% para 81% da população, o que representa 152 milhões de
pessoas” (USO DA INTERNET..., 2021, on-line). Além disso, as redes estão se tornando
palco para pesquisas em várias áreas do conhecimento, uma vez que a grande influência
causada por elas na vida das pessoas têm sido objeto de interesse para diversas empresas
que financiam essas pesquisas.

Essas novas tecnologias inauguraram um modelo


descentralizado e universal de circulação de informações,
permitindo uma comunicação individualizada que vem
causando, como sinaliza Santaella (2003), mudanças
estruturais mais significativas na produção e distribuição
de informações, pois as tecnologias digitais tanto alteram
de modo relevante os padrões de produção quanto de
difusão da cultura midiatizada (FONSECA; SILVA;
TEIXEIRA FILHO, 2017, p. 62).

Foi por meio das redes sociais que o Manifesto ile para uma comunicação
radicalmente inclusiva foi divulgado. Também por meio delas é que começaram as
discussões acerca da necessidade de uma mudança linguística para a inclusão de parte
da comunidade LGBTQ+, que não se sente acolhida pela atual flexão de gênero existente
na língua portuguesa. Porém, antes de analisar o Manifesto, considera-se importante
trazer a visão da gramática normativa acerca da flexão de gênero no português.

2.2 FLEXÃO DE GÊNERO NA GRAMÁTICA NORMATIVA

No âmbito gramatical, como explica Bechara (2009, p. 111), todos os nomes são
dotados de gênero, sendo que, no português atual, eles distribuem-se entre o grupo do
masculino e o grupo do feminino. São masculinos aqueles nomes antepostos pelo artigo
“o” (o linho, o sol, o clima, etc) e são femininos aqueles antepostos pelo artigo “a” (a
linha, a lua, a grama, etc). Essa classificação é oriunda da simplificação ou da redução
das flexões de gênero usadas no latim vulgar.

Os gêneros masculino e feminino do português atual têm


sua origem nas desinências do caso latino acusativo, sendo
o acusativo de segunda declinação (-um) responsável por
formar os nomes masculinos e o acusativo de primeira
declinação (-am) responsável pelos nomes femininos
(MONARETTO; PIRES, 2012, p. 162).

Como foi visto anteriormente, a língua não é estática e passa por constantes
transformações. O português “provém do latim, que se entronca, por sua vez, na grande

117 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

família das línguas indo-europeias, representada hoje em todos os continentes”


(CUNHA; CINTRA, 2017, p. 9). É dessas línguas indo-europeias que o latim vulgar
herdou a classificação de gênero em três desinências, as quais, mais tarde, seriam
reduzidas a duas, na transição para o português arcaico.

Os nomes de gênero feminino e gênero masculino também


estavam presentes no latim vulgar, porém com uma
peculiaridade, já que em latim havia um terceiro gênero: o
neutro. No português atual, sabe-se que as formas neutras
dos substantivos e adjetivos latinos foram absorvidas ora
pelas palavras de gênero masculino ora pelas de gênero
feminino, não apresentando atualmente expressão
gramatical para a categoria semântica neutra
(MONARETTO; PIRES, 2012, p. 162).

Corado (2021, on-line) acrescenta que, em latim,

o gênero das palavras se classificava em função da sua


semântica, isto é, do seu gênero natural. Dessa maneira,
constituiu-se, na língua latina, a seguinte oposição entre os
gêneros: de um lado, os animados, os quais se dividiam
em masculino e feminino, e, de outro, os inanimados, que
abarcavam os neutros.

Logo, o gênero neutro do latim vulgar era usado somente para classificar
objetos inanimados. Monaretto e Pires (2012, p. 169) apontam que alguns estudiosos de
linguística histórica argumentam que o desaparecimento do gênero neutro se deu “pela
confusão com o gênero masculino dos casos nominativo, vocativo e acusativo que
possuíam terminações idênticas para ambos os gêneros”. Partindo dessa confusão, foi-
se apagando, aos poucos, a única marca distintiva fonética na oralidade da terceira
declinação, o que levou à absorção dessas marcas pelas outras duas desinências
(masculino e feminino), até o seu desaparecimento no português arcaico.
Além da concepção de flexão de gênero colocada por Bechara neste subtópico,
Cunha e Cintra (2017, p. 202) acrescentam que “o masculino é o termo não marcado; o
feminino o termo marcado”. Essa ideia de marcação de gênero vem de Mattoso Câmara
Jr. (1970, p. 89), forte crítico à forma como as gramáticas tradicionais apresentam a flexão
de gênero, conforme se verá adiante.

2.3 GÊNERO GRAMATICAL VS. GÊNERO SOCIAL

Na seara das discussões acerca de gênero neutro na língua portuguesa, não se


podem ignorar questões como a dinamicidade das línguas naturais e não se deve,
também, ignorar a distinção entre gênero gramatical e gênero social.
Como antecipado, Câmara Júnior (1970) critica a maneira como as gramáticas
tradicionais apresentam a flexão de gênero. O autor traz para a seara gramatical a ideia
de marcação de gênero. Como apresenta Cunha (2008, p. 27),

118 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

o principal ponto criticado por Câmara Júnior está no fato


de, segundo ele, as gramáticas associarem gênero a sexo.
Para Mattoso Câmara Jr., todos os substantivos do
português pertencem a um gênero, masculino ou
feminino, inclusive os que designam coisas, como casa e
ponte, sempre femininos, ou palácio, pente, sofá,
masculinos. O gênero, segundo o autor, “é uma
distribuição por classes mórficas para os nomes, da
mesma forma que o são as conjugações para os verbos. A
única diferença é que a oposição masculino – feminino
serve freqüentemente para em oposição entre si distinguir
os seres por certas qualidades semânticas [...].

Assim, é necessário que se faça a distinção entre gênero gramatical e gênero


social. Como exposto até agora, entende-se o gênero gramatical como uma classificação
morfológica nominal. Dessa forma, passar-se-á para o conceito de gênero social.
Muitas vezes o termo “gênero” é usado de forma equivocada para referir-se a
sexo biológico ou à orientação sexual. Resumidamente, Panek (2015, on-line) define o
sexo como as características biológicas com as quais uma pessoa nasce, podendo ser
femininas ou masculinas. Já a orientação sexual são as inclinações afetivas, sexuais e
amorosas de cada indivíduo. Por fim, têm-se a identidade de gênero, ou gênero social,
termo mais complexo, pois ainda não possui definição concreta por parte dos estudiosos.
Na imagem a seguir, vê-se um resumo da distinção desses termos.

Figura 1: Conceitos de identidade de gênero, orientação sexual e sexo biológico

Fonte: GÊNERO..., 2017, on-line.

119 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Estudos sobre a construção do gênero social foram e ainda são fortemente


difundidos desde a década de 1990. Um dos principais nomes nesse meio é Judith Butler,
filósofa responsável por apresentar críticas acerca da identidade de gênero e da
heteronormatividade, essenciais para a atualização dos movimentos feministas e
LGBTQ+ contemporâneos. Por meio de sua Teoria Queer, Butler (2003, p. 23) concebe que,

originalmente para questionar a formulação de que a


biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende
à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em
termos biológicos, o gênero é culturamente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo
nem tampouco tão aparente fixo quanto o sexo. Assim, a
unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela
distinção que abre espaço ao gênero como interpretação
múltipla do sexo.

Ou seja, enquanto sexo refere-se a questões biológicas inatas ao corpo humano


e relacionadas com o conceito de feminino e masculino, o gênero diz respeito aos papéis
socioculturais atribuídos a homens e mulheres na sociedade. Sendo assim, não podemos
dizer que o gênero decorra diretamente do sexo. Butler (2003, p. 24) completa:

supondo por um momento a estabilidade do sexo binário,


não decorre daí que a construção de “homens” se aplique
exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo
“mulheres” interprete apenas corpos femininos. Além
disso, mesmo que os sexos pareçam não
problematicamente binários em sua morfologia e
constituição (ao que será questionado), não há razão para
supor que os gêneros também devem permanecer em
número dois.

Ao romper com a ideia de relacionar gênero e sexo, Butler (2003) introduz o


conceito de não binariedade. Percebe-se que, mesmo que o sexo biológico seja
classificado de forma binária (corpos masculinos e corpos femininos), o gênero não
precisa sê-lo.

2.3.1 A não binariedade

A Revista Galileu (O QUE É GÊNERO..., 2021, on-line) explica que o termo “não
binário” não é novo, mas que ganhou maior destaque recentemente, graças às
declarações de figuras públicas que não se identificam como homens nem como
mulheres. Um exemplo é Demi Lovato, que, em vídeo recente em sua rede social,
compartilhou ter passado “por um trabalho de cura e reflexão” e, com isso, ter a
revelação de que se identifica como pessoa não binária. “Acredito que isso representa
melhor a fluidez que sinto na minha expressão de gênero” (O QUE É GÊNERO..., 2021,
on-line).

120 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

Para entender a não binariedade, é importante compreender, primeiramente, os


conceitos de cisgênero (popularmente referido apenas como “cis”) e transgênero
(popularmente referido apenas como “trans”). Pessoas cis são aquelas que se identificam
com o gênero que lhes foi designado de acordo com seu sexo biológico. Por exemplo,
uma pessoa que nasceu num corpo feminino e se identifica como mulher. Já as pessoas
transgênero, ou transexuais, não se identificam com o gênero imposto a elas no
nascimento. É dentro da categoria trans que estão as pessoas que se entendem como não
binárias.
As pessoas não binárias “sentem que sua identidade de gênero não pode ser
definida dentro das margens da binariedade” (O QUE É GÊNERO..., 2021, on-line);
entendem que o gênero ultrapassa a identificação como homem ou como mulher,
esclarece a organização LGBT Foundation (O QUE É GÊNERO..., 2021, on-line). A não
binariedade é um termo que pode englobar pessoas de gênero fluido, pessoas agênero,
pessoas trans, pessoas intersexo e qualquer pessoa que não se sinta contemplada pelo
binarismo.
E o que isso tem a ver com a língua(gem)? Tudo, afinal, a língua(gem) é parte
do que caracteriza os indivíduos como sujeitos sociais. É por meio da língua(gem) que
os sujeitos se expressam e se comunicam com seus pares. “Se a gente parar e pensar, a
língua nos agencia. Nós não podemos existir fora da língua. Toda questão de identidade,
de gênero, de sexualidade necessariamente perpassa a linguagem”, afirma Monteiro
(apud ORTEGA, 2021, on-line). Assim sendo, pensar numa linguagem que contemple
pessoas não binárias no português torna-se essencial.

2.4 A LINGUAGEM NEUTRA NO PORTUGUÊS: ALGUMAS REFLEXÕES

Retomando Butler (2003, p. 45), “não é possível significar as pessoas na


linguagem sem a marca do gênero”. Pensando na importância de acolher pessoas que
não se sintam confortáveis em referir-se a si mesmas nos conceitos normativos já
discutidos de gênero gramatical, foi elaborado por Pri Bertucci e Andrea Zanella o
Manifesto ile para uma comunicação radicalmente inclusiva, documento que propõe a
necessidade de trazer à baila pronomes e flexões de gênero neutro para a língua
portuguesa.

2.4.1 O que diz o Manifesto

Lançado em 2015, o Manifesto ile para uma comunicação radicalmente inclusiva foi
criado, como dito, por Pri Bertucci e Andrea Zanella. Bertucci, CEO transexual e não
binárie, comanda o Diversity BBox, uma iniciativa que procura dar consultoria
especializada voltada para a diversidade, principalmente sobre questões de gênero e
sexualidade, a empresas. Zanella é psicóloga, doutora em educação, pesquisadora e
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
O Manifesto busca sugerir o uso de um novo pronome, o pronome “ile”, e do
sufixo “-e” como “uma tentativa de questionar a ‘norma’, a cis-heteronormatividade,
aquele conceito que diz que ‘o certo é homem, macho e masculino e mulher, fêmea e

121 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

feminina’” (BERTUCCI; ZANELLA, 2015, on-line). O documento começa argumentando


que, atualmente, a língua portuguesa não é flexível o suficiente para designar quem não
se identifica como homem nem como mulher e, por isso, torna-se importante pensar em
uma alternativa inclusiva.

A discussão de gênero e de sexualidade causa muito


desconforto em vários círculos. Há quem não se sinta
representade (a) (o) pelas formas normalizantes de
expressão: ele ou ela (como se só houvesse 2
possibilidades). Há quem fique desconfortável por
perceber que tem gente querendo ser algo que não estava
previsto na ‘norma’. Essa divisão em dois, esse binarismo,
deixa de fora uma enorme variedade de possibilidades,
que não são nem uma coisa, nem outra. E quem está nesse
grupo, do nem uma coisa nem outra, continua sendo
gente, continua tendo direito de ser como é (BERTUCCI;
ZANELLA, 2015, on-line).

Os autores seguem o manifesto informando que o uso do pronome “ile” pode


parecer estranho, posto que, como apresentado nos tópicos anteriores, as palavras do
português são dotadas de gênero, seja feminino, seja masculino. Também citam que
fazer concordância com “ile” pode ser difícil no início, mas que esse estranhamento é
parte da mudança linguística. “Nos força a ter que lidar, lembrar e reconhecer que nossos
padrões não são estáticos. Que a vida não é estática, assim como nossa língua, que aceita
os neologismos para poder retratar novas realidades” (BERTUCCI; ZANELLA, 2015, on-
line).
O pronome “ile” é uma alternativa aos pronomes pessoais da 3ª pessoa “ele” e
“ela”. De acordo com a gramática normativa, em uma sala com pessoas de diversos
gêneros, para se referir ao grupo todo, seria aplicado o pronome “eles”, mesmo que a
maioria dos componentes desse grupo fossem mulheres ou pessoas de outros gêneros.
Na proposta neutra de Bertucci e Zanella, “eles” poderia ser substituído por “iles”,
fazendo uso de uma palavra que não delimita o gênero dos presentes no grupo.
Para manter a concordância com o pronome “ile”, o Manifesto sugere o uso de
“-e” no final dos nomes (substantivos e adjetivos). Por exemplo, ao invés de usar
“amigo” ou “amiga”, pode-se optar por “amigue”, mantendo a neutralidade. Sendo
assim, a frase “Ele é meu amigo” ficaria “Ile é minhe amigue”. Essa opção também evita
o constrangimento de tratar pessoas transexuais pelo pronome incorreto, pois errar os
pronomes de uma pessoa LGBTQ+, ainda que “sem querer”, também é considerada uma
forma de violência, já que essas pessoas têm seus gêneros invalidados diariamente por
conta do preconceito.
Em entrevista para o jornal Estadão, concedida a Moura (2019, on-line), Bertucci
esclarece essa questão: “Você gostaria que alguém te chamasse de um gênero que não te
representa? Você, homem, gostaria de ser chamado de 'ela'? É isso que eu experimento
todos os dias. As pessoas podem achar que [a questão da linguagem] é um capricho, mas
não é”. Bertucci também afirma que

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LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

vivemos em uma sociedade que não pensa em gênero para


além de genital e que vê apenas duas possibilidades de
existência: a caixinha rosa e a caixinha azul. É um
paradigma de 2 mil anos, não dá para quebrar em uma
palestra ou em uma semana de diversidade. Tem de ser
um esforço constante (BERTUCCI apud MOURA, 2019, on-
line).

Outra questão trazida no documento diz respeito ao uso dos símbolos “@” e
“x”. Ao surgirem as primeiras discussões a respeito de linguagem neutra, esses símbolos
eram usados como desinências em palavras para marcar a neutralidade. Retomando o
exemplo da palavra “amigo”, a grafia seria “amig@” ou “amigx”. Porém, os leitores de
palavras em aparelhos digitais (celulares, computadores, etc) usados por deficientes
visuais não conseguiam fazer a leitura das palavras com essas terminações, dificultando
a compreensão de textos para pessoas sem visão. É por esse motivo que os autores optam
pelo uso da desinência “-e”, compreendido sem problemas pelos leitores digitais.
Para concluir o Manifesto ile para uma comunicação radicalmente inclusiva, Bertucci
e Zanella escrevem um poema que, ao final, declara:

ile abre um caminho vocal


pra que o pensamento compreenda mais nuances
para que a inclusão não seja só nos bastidores
para que o discurso possa ser ouvido por todes
para que a realidade se transforme
e que ela se remolde pra abarcar
todas as possibilidades do humano (BERTUCCI;
ZANELLA, 2015, on-line).

Como informado por Bertucci e Zanella no Manifesto, o pronome “ile” não é a


única alternativa para gênero neutro. Valente (2020, on-line) traz uma alternativa ao
documento de Bertucci e Zanella, o Sistema elu2, que também tem como objetivo propor
uma forma de se referir a pessoas de forma neutra. As questões de concordância seguem
o previsto pelo Manifesto, o que muda é o pronome usado, o qual passa a ser “elu”. Esse
sistema, unido às ideias do Manifesto ile, já é usado por editoras, emissoras de TV,
empresas, etc, tanto no Brasil, quanto em outros países falantes de português.
No Um guia para promover a linguagem inclusiva em português, Bertucci e Zanella
explicam a origem do “ile” e o porquê da escolha desse pronome.

Tomando como referência um dos pronomes


demonstrativos neutros do latim (“illud”), consideramos
que foneticamente a letra “i” no início do pronome
poderia dar a sensação de neutralidade ao “ILE”. Como
todo exercício de escrita, leitura e escuta envolvem o uso

2Para mais informações, sugere-se a leitura de Sistema Elu, linguagem neutra em género. Disponível
em: https://dezanove.pt/sistema-elu-linguagem-neutra-em-genero-1317469. Acesso em: 26 set.
2021.

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REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

da letra E nas palavras para que se torne neutra, como nos


exemplos “cansade”, “animade”, “incluíde”, então o uso
do E no final do pronome é o mais adequado. O pronome
ILE é o único que apresenta menos problemas gramaticais
e na pronúncia, na escuta, na escrita, e na identificação
visual, cria-se semelhança entre EU, TU, ILE (BERTUCCI;
ZANELLA, 2015, on-line).

Também desenvolvidos por Bertucci e Zanella, estão anexados, no mesmo guia,


outros arquivos que expandem a visão de linguagem neutra para a de linguagem
inclusiva, pensando em alternativas para além do gênero neutro. Muito mais que uma
questão de gênero, a linguagem inclusiva ou comunicação inclusiva contribui ainda para
assegurar a representatividade na e pela língua.

2.4.2 Alternativas para uma linguagem mais inclusiva

Como Rita von Hunty (2020, on-line) afirma em seu canal Tempero Drag, “as
palavras carregam consigo histórias de transformações sociais”. A drag queen e
professora também explica que vivemos em uma sociedade onde, historicamente,
homens normalmente ocupam espaços de prestígio e que esse fato é refletido na
linguagem, por meio da semântica das palavras. Por exemplo, entende-se o significado
da expressão “forte como um touro” como algo positivo, mas usa-se a palavra “vaca”
como ofensa às mulheres.
Dessa maneira, diversos artigos e manuais foram escritos, por diversos autores
e pesquisadores da língua, na tentativa de propor alternativas para termos e expressões
considerados machistas, racistas ou sexistas. Um deles é o Manual para o uso não sexista
da linguagem, publicado em 2014 pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, criado
com intuito de revisar a linguagem usada na administração interna do Estado.
No capítulo intitulado O uso do neutro e o uso de genéricos do manual, encontram-
se alguns exemplos de palavras genéricas que podem ser usadas para substituir palavras
cujo gênero é explicitamente masculino. Algumas dicas, como substituir “os
professores” por “o corpo docente”, “os coordenadores” por “Coordenação” e “os
homens” por “a humanidade” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 56-58), quando esses
termos se referirem a um grupo de pessoas diversas, são apresentadas no documento e
contribuem para o exercício de linguagem mais inclusiva.
Outra recomendação mencionada no capítulo Profissões exercidas por mulheres é
utilizar, quando possível, o gerúndio “para evitar o uso de algumas palavras que
geralmente se identificam com os homens como políticos, diplomatas, médicos ou
gentílicos” (RIO GRANDE DO SUL, 2014. p. 69). Dessa forma, a frase “Se os diplomatas
tivessem mais competência, a gestão seria melhor” poderia ser reescrita como “Tendo-
se mais competência, seria melhorada a gestão diplomática”.
Ainda no mesmo capítulo, aconselha-se “o uso de pronomes, adjetivos,
substantivos e verbos (sem a anteposição de determinantes), que não variam no que se
refere a gênero, permite-nos falar ou escrever sem que ninguém fique invisível ou

124 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

oculto” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 70). Em lugar de “Eles buscavam melhores
condições”, pode-se fazer uso de “Buscavam-se melhores condições”.
Essas são apenas algumas das alternativas propostas pelo Manual, que dispõe
de vários textos nos modelos usados pela Instituição, presentes no último capítulo, com
os quais o leitor pode exercitar o uso de linguagem inclusiva. Caso seja de interesse, o
leitor do documento pode praticar esses usos também no dia a dia, pois, a partir da
movimentação e da articulação dessas ideias, os usos vão se tornando cada vez mais
naturais nos processos de interação e formação discursiva. Já é possível ver,
principalmente nas mídias, os resultados e repercussões dessas discussões acerca de
linguagem neutra, como se demonstra a seguir.

2.4.3 Linguagem neutra nas mídias e a repercussão dos fatos

Apesar das discussões recentes, a linguagem neutra já é adotada em vários


setores, gerando polêmicas que, muitas vezes, ganham espaço nos portais de notícias.
Um desses casos foi protagonizado pelo Museu da Língua Portuguesa, em julho de 2021.
Ao divulgar a nova logomarca por meio da rede social Twitter3, a instituição usou a
expressão “[...] um chamamento para todas, todos e todes os falantes [...]”, gerando
críticas e elogios. Por um lado, os críticos alegam que o uso da palavra “todos” não é
excludente e que “todes” é apenas uma “gíria de uma bolha”; por outro lado, outros
parabenizam a iniciativa do órgão. O museu divulgou uma nota no jornal Estadão
(MUSEU DA..., 2021, on-line), em que declarou estar “aberto a debater todas as questões
relacionadas à língua portuguesa, incluindo a linguagem neutra, cuja discussão toca
aspectos importantes sobre cidadania, inclusão e diversidade”.
Outro caso que tomou conta dos portais de notícia foi o da novela Pega Pega,
exibida em 2017 pela Rede Globo. Em uma cena, a personagem de Elizabeth Savalla usa
“amigues” em um diálogo com um grupo de drag queens. Martins (2021, on-line), no
jornal Folha de S. Paulo, informa que Cláudia Souto, autora da novela, está escrevendo
outro roteiro em que usará novamente linguagem neutra em algumas cenas. Canais de
TV fechados e serviços de streaming, como a Netflix, também têm adotado, cada vez
mais, linguagem não binária em seus conteúdos, como ocorre na série Sex Education, que
tem pronomes neutros em inglês traduzidos para o português.
O uso de linguagem neutra no meio midiático não se reduz às novelas e séries.
Na transmissão esportiva das provas de skate das Olimpíadas de 2020, a skatista e
comentarista do SporTV Karen Jonz usou pronomes neutros ao se referir a Alana Smith,
skatista não binárie. De acordo com Capuano (2021, on-line), em matéria para a Veja,
houve esforço por parte de Jonz e dos colegas para tratar Smith com os pronomes
corretos, mas os comentaristas pareciam ter dificuldade em fazer concordância com as
demais palavras que acompanhavam esses pronomes. Porém, a tentativa mostra um
avanço positivo à mudança. Considerando-se que a TV ainda é o meio midiático de

3Disponível em: https://twitter.com/MuseudaLingua/status/1414704318800875520?s=20. Acesso


em: 19 out. 2021.

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REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

maior influência do Brasil4, estas são formas importantes de fazer chegar pautas sociais,
políticas e econômicas para aqueles que não têm acesso a essas discussões por meio da
internet.
Outra esfera em que se têm notado passos importantes para o debate referente
à linguagem neutra é a das publicações. Pode ser citado, por exemplo, a Editora
Nacional, que trouxe para o Brasil o livro Felix para sempre, de Kacen Callender. O livro,
que conta com protagonista trans e personagens não bináries, foi traduzido por Vic
Vieira, que optou por traduzir os pronomes em inglês they/them para “elu/delu”.

Para jovens trans e não-binários: Vocês são lindes. Vocês


são importantes. Vocês são válides. Vocês são perfeites
(CALLENDER, 2021, p. 4).

Digam seus nomes, pronomes e de onde vocês são. Eu


começo. Meu nome é Bex, uso os pronomes elu/delu e sou
do Bronx (CALLENDER, 2021, p. 169).

Eu levanto o olhar, encontro os olhos delu por um


segundo, e posso ver que elu realmente está dizendo isso
genuinamente. Bex quer que eu volte, que eu tente de
novo (CALLENDER, 2021, p. 171).

Com a ajuda de amigos e da família, comecei a minha


transição social e física como uma pessoa não-binário
transmasculino que utiliza pronomes ele/dele e pronomes
neutros (they/them em inglês, elu/delu no português)
(CALLENDER, 2021, p. 325).

Além de Felix para sempre, diversos autores nacionais independentes,


principalmente aqueles que escrevem para o público LGBTQ+, têm publicado seus
contos e novelas no Kindle Direct Publishing, serviço da multinacional Amazon, que faz
publicação de livros digitais usando linguagem neutra. É o caso da série Clichês em rosa,
roxo e azul, de Maria Freitas, possuidora de 12 contos, publicados mensalmente em 2020.
Protagonizados por personagens bissexuais, os contos também se aproveitam da
linguagem neutra quando aparecem personagens trans e não binários.
Na mesma notícia supracitada, a tradutora Paula Drummond, da editora Rocco,
comenta essa mudança no meio literário.

A língua serve à sociedade, não o contrário. Se existe uma


demanda pelo gênero neutro, a gente tem que aprender a
usar. O que me preocupa é que, por não estar
normatizado, não tem um padrão. ‘Elu’ é o que mais está
se falando agora, mas também tem o ‘ile’. A gente não sabe

4 Dados disponíveis em: https://www.otempo.com.br/diversao/apos-70-anos-tv-ainda-mantem-


forte-influencia-so bre-a-sociedade-brasileira-1.2387379. Acesso em: 19 out. 2021.

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LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

se vai ficar datado ou até errado daqui a alguns anos


(DRUMMOND apud MARTINS, 2021, on-line).

Drummond, assim como Vieira, trabalhou na tradução de um livro com


personagens não binários, intitulado Cool for the summer: um verão inesquecível. No
comentário, ela expressa a dificuldade em escolher entre os pronomes neutros mais
usados atualmente, dado que ainda não há normatização a ser seguida, porém defende
que a demanda pelo uso deve ser atendida. Na mesma reportagem, Arthur Ramos (apud
MARTINS, 2021, on-line), da editora Galera Record, tradutor de Os garotos do cemitério,
defende que o uso de pronomes neutros tem “um peso político”, pois seu uso também é
uma forma de levantar bandeiras a favor da comunidade LGBTQ+.
As campanhas publicitárias também têm investido em linguagem neutra.
Recentemente, a marca de esmaltes Risqué lançou a coleção Revolução das Cores, sendo
que um dos esmaltes foi nomeado Rosa para todes, fazendo uso de linguagem neutra. De
acordo com o PropMark (RISQUÉ QUER..., 2021, on-line), o vice-presidente de marketing
da empresa afirma: “Este é um momento de ressaltarmos a liberdade de expressão, a
versatilidade de cada pessoa e estimular a criatividade e autoconfiança até mesmo na
hora de escolher a cor das unhas”.
Em 17 de maio de 2021, Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia e
Transfobia, a rede de fast food Burger King também levantou bandeiras a favor da
linguagem não binária em sua rede social5 para celebrar a data e foi criticada por
seguidores. O Gazeta do Povo (PARLAMENTO..., 2021, on-line) informou que, como
resposta às críticas, o restaurante publicou uma nota reconhecendo a complexidade do
assunto e reforçando a importância de discuti-lo.
Se, por um lado, existe um avanço a favor dessa mudança linguística, por outro,
há fortes tentativas de impedi-la. O atual presidente, Jair Bolsonaro, considera a adoção
de pronomes neutros um “aparelhamento na educação” (CAIXETA, 2020, on-line),
incitando seus apoiadores a levantarem esforços para censurar esse uso. Na época do
caso já citado do Museu da Língua Portuguesa, Mário Frias, secretário especial do
Ministério da Cultura, afirmou que o uso de gênero neutro pela instituição era
“vandalização da nossa cultura” (MARTINS, 2021, on-line).
Deputados e demais políticos bolsonaristas têm tentado aprovar projetos de lei
no país todo para proibir o uso de linguagem neutra em instituições de ensino, alegando
que isso é considerado “enviesamento político-ideológico” (MARTINS, 2021, on-line).
Dentre os diversos casos, o site da rádio Educadora (2021, on-line) cita algumas cidades,
como Divinópolis (MG), São Paulo (SP) e Toledo (PR), onde projetos de lei defendendo
a proibição do uso de linguagem neutra estão em andamento. Recentemente, o Governo
de Rondônia aprovou um desses projetos, e as instituições de ensino e professores do
estado que descumprirem a norma podem sofrer sanções. “Segundo o Governo de
Rondônia, a lei foi criada para estabelecer ‘medidas protetivas ao direito dos estudantes
ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta’” (GOVERNO...,
2021, on-line).

5Disponível em: https://twitter.com/BurgerKingBR/status/1394387218026962956. Acesso em: 25


out. 2021.

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REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA(GEM) NEUTRA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Têm-se tornado recorrentes as notícias expondo relatos de professores que são


criticados por usarem linguagem neutra nas escolas. Uma professora do 6º ano de Vitória
(ES), por exemplo, cumprimentou os alunos com um texto inserido no sistema de aulas
virtual contendo “bem-vindes” e foi severamente criticada pelos pais desses alunos. O
portal Tribuna Online (2021, on-line) descreve que os responsáveis dos estudantes
levaram reclamações para o vereador da cidade, que, por meio da Secretaria de
Educação do município, se reuniu com a professora para repreendê-la e tirou o texto do
ar.
Enquanto isso, o portal Gazeta do Povo (PARLAMENTO..., 2021, on-line), em
outra matéria, noticiou que o parlamento venezuelano aprovou, recentemente, uma lei
de uso de linguagem neutra “em todas as comunicações orais e escritas emitidas pelas
autoridades públicas, assim como em todos os níveis e modalidades do sistema
educacional”, a fim de contribuir para a igualdade de gênero.
A linguagem não binária também chegou aos concursos públicos brasileiros. O
portal Brasil de Fato (CONCURSO..., 2021, on-line) informou que o concurso para as
Forças Armadas Brasileiras (FAB), realizado em junho de 2021, teve como proposta de
redação a utilização de linguagem neutra. A questão apresentou três textos sobre o tema,
causando revolta em grupos conservadores e gerando uma denúncia feita por uma juíza
bolsonarista. Sendo a favor ou não do uso de linguagem neutra, é fato que encontrar essa
discussão em um espaço considerado conservador fomenta ainda mais o debate sobre
uma possível mudança linguística.
Por meio desses e outros exemplos que se têm destacado nas mídias,
considerando as características da Teoria da Variação e Mudança Linguística já citada neste
artigo, é possível alegar que o uso cada vez mais recorrente de linguagem neutra no
português pode ser considerado indício para uma possível mudança. Retomando as
cinco dimensões estabelecidas por Weinreich, Labov e Herzog (2006, p. 121), é
perceptível que a primeira delas — “os fatores universais limitados da mudança (e
variação), que podem ser sociais ou linguísticos” (CEZARIO; VOTRE, 2017, p. 149) — já
é observável nesse fenômeno. Sabendo-se disso, é provável que o tema continue a gerar
discussões por um bom tempo e que os sociolinguistas ainda tenham muito o que
analisar.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em conta que o debate acerca da linguagem não binária é recente,


ainda há muito o que refletir. Não foi objetivo deste trabalho dar resposta pronta e
acabada ao leitor, mas considerou-se importante trazer algumas reflexões para o meio
acadêmico, uma vez que o assunto tem-se popularizado em diversas mídias,
principalmente na internet, como foi apresentado.
De acordo com Martins (2021, on-line), o uso de linguagem neutra “pela
indústria do entretenimento, ao lado da abordagem do assunto em veículos de imprensa
e programas de auditório, faz com que ela possa cair na boca do povo, embora de
maneira lenta, como é comum com outras mudanças na língua”. Por meio desta
pesquisa, pôde-se perceber que empresas têm estado dispostas a cooperar com o uso de

128 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


LORRANY LIMA SILVA | ELIZENE SEBASTIANA DE OLIVEIRA NUNES

linguagens neutra, seja por apoio à causa, seja pela filosofia do “quem lacra, lucra”. Ou,
ainda, por ambos os motivos, como escreveu Martins (2021, on-line).
Entende-se que o uso (ou não) de linguagem neutra não será definido nos
próximos meses, provavelmente nem nos próximos anos. Mudanças linguísticas são
inevitáveis, mas não são imediatas. Dessa maneira, cabe destacar o importante papel de
linguistas e demais pesquisadores da língua, que são e serão os responsáveis por
descrever e analisar essas mudanças (ou o abandono delas), fomentando as discussões
futuras.
Por fim, é importante compreender que não há como prever o que vai acontecer
com o uso da linguagem neutra, mas, como foi apresentado, já é possível considerar que
essa linguagem começou a ultrapassar a bolha onde começou a ser difundida. Pensando
na inclusão linguística da comunidade LGBTQ+, principalmente de pessoas transexuais
e não binárias, as autoras desta pesquisa esperam que o impacto dessas discussões
possibilite a transformação para uma língua portuguesa que inclua todos, todas e todes.

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Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 134-148, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

O combate ao preconceito linguístico:


a trajetória de uma proposta1

Fighting linguistic prejudice: the trajectory of a proposal

ÍRIS FERNANDA MENDES DIAS


Graduada em Letras Português, Licenciatura - UNIMONTES
E-mail: [email protected]

MARIA ALICE MOTA


Doutora em Estudos Linguísticos - UFMG
E-mail: [email protected]

WELBER NOBRE DOS SANTOS


Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos - UFMG
E-mail: [email protected]

Resumo: Neste artigo, abordamos a temática do preconceito linguístico. Sendo assim, temos por
objetivo analisar a trajetória da proposta de luta contra o preconceito linguístico instituída por
Bagno (1999) em seu livro Preconceito linguístico – como é, como se faz, obra considerada um marco
na assunção dessa luta. Para isso, partimos da hipótese de que, passados mais de vinte anos de
sua publicação, a proposta de Bagno (1999) mantém-se atual e necessária, tanto pelas reflexões e
estudos que foram agregados a ela a cada edição, quanto pelo fato de que o preconceito linguístico
persiste na sociedade como um todo e, também, na escola. Portanto, a pergunta que norteia o
nosso estudo é: qual foi a trajetória dessa obra nesses 21 anos desde que propôs a luta contra o
preconceito linguístico? A conclusão a que chegamos, tendo em vista as análises das edições, é a
de que, em sua trajetória (edição 1 a 56), a proposta de Bagno de luta contra o preconceito
linguístico passou por um amadurecimento teórico, tendo adquirido mais consistência ao abarcar
contribuições de estudos feitos pelo próprio autor e de outros estudos que trataram do tema nesse
período de tempo.
Palavras-chave: Língua. Sociolinguística. Preconceito linguístico.

Abstract: In this article, we address the issue of linguistic prejudice. Thus, our goal is to analyze
the trajectory of the proposal to fight against linguistic prejudice instituted by Bagno (1999) in his
book Preconceito linguístico - como é, como se faz, a work considered a landmark in the assumption
of this fight. To this end, we start from the hypothesis that Bagno's (1999) proposal remains
current and necessary. Not only because of the reflections and studies added to each edition, but
also of the linguistic prejudice that persists in society and school. Therefore, the question that
guides our study was: What has been the trajectory of this work in 21 years since it proposed the

1 Este artigo constitui-se em um recorte da monografia intitulada O combate ao preconceito


linguístico: a trajetória de uma proposta, defendida por Íris Fernanda Mendes Dias, em setembro de
2020, no âmbito da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), sob orientação da
Profa. Dra. Maria Alice Mota.

134 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

fight against linguistic prejudice? The conclusion we have reached, in view of the analyses of the
editions, is that in its trajectory (editions 1 to 56) Bagno's proposal to fight against linguistic
prejudice has undergone a theoretical maturation, having acquired more consistency by
encompassing contributions from studies by the author himself and from other studies that have
dealt with the subject during this period.
Keywords: Language. Sociolinguistics. Linguistic prejudice.

1 INTRODUÇÃO

O preconceito linguístico está imbricado em nossas relações sociais, desde


aquelas mais formais até as mais informais, estando relacionado não só “àquilo que se
diz”, mas, destacadamente, a “quem diz o que diz”. Um dos pontos preocupantes é o
fato de que, muitas vezes, esse preconceito é silenciado ou velado por uma roupagem
jocosa, descontraída, humorística, como, por exemplo, os sotaques, as gírias, as
expressões que são reproduzidas com o intuito de fazer humor e provocar o riso
(TEIXEIRA, 2017).
De acordo com Bagno (2006), o preconceito linguístico é um fato social
arraigado no comportamento de muitas pessoas. Assim, é uma atitude, muitas vezes,
inconsciente, sendo ideologicamente imposta no âmbito social e reforçada pela mídia.
Ainda segundo Bagno (2006), o preconceito linguístico penetra de tal forma no
pensamento das pessoas que os atos preconceituosos tornam-se partes integrantes do
próprio ser.
Voltando a um passado remoto, temos cada grupo étnico com a criação de
simbologia para atender às suas necessidades de comunicação. Assim, nasceu a
linguagem, a qual passa, no decorrer do tempo, a ser analisada sob diferentes aspectos,
chegando-se ao contínuo estabelecimento de normas para uso da língua. Paralelamente
às regras, seguindo o dinamismo inerente às línguas naturais, surgem também as
variações no uso da língua e, consequentemente, o preconceito linguístico, o desprezo
pelo modo de falar daqueles que não utilizam a língua seguindo as regras impostas pela
Gramática Normativa. Desse modo, surgem as discussões sobre os usos da língua e da
aceitação ou não dos dialetos, o que leva à conclusão de que o uso que as pessoas fazem
da língua é capaz de fazer distinção entre elas.
A Sociolinguística, como teoria que analisa os fenômenos de variação
linguística motivados por fatores linguísticos e, também, sociais, trata do preconceito
linguístico, pois que este é uma consequência justamente do uso variável da língua.
Conforme Mollica (2003, p. 13), “toda língua apresenta variantes mais prestigiadas do
que as outras”. A autora ressalta, nesse sentido, a importância dos estudos
sociolinguísticos para destruir os preconceitos linguísticos e relativizar a noção de erro.
Desse modo, tendo em vista essa reflexão inicial, o nosso intento neste artigo é
analisar a trajetória da proposta de combate contra o preconceito linguístico que foi
instituída por Bagno (1999) em sua obra clássica Preconceito linguístico – como é, como se
faz, um trabalho considerado um marco na assunção dessa luta no contexto brasileiro.
Partimos da hipótese de que, no decorrer de mais de 20 anos de sua publicação, a
proposta de Bagno (1999) mantém-se atual, necessária e mais consistente, já que a ela o

135 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

autor agregou mais pressupostos teóricos advindos de outras reflexões e estudos


realizados no decorrer desse tempo, desde a primeira publicação em 1999.
Em face a esses aspectos, a pergunta que direciona a nossa pesquisa é: o que nos
revela a trajetória da proposta de Bagno (1999)? Com o intuito de respondermos a tal
questionamento, valemo-nos de um aporte teórico que reúne alguns pressupostos da
teoria Sociolinguística, tomando as contribuições de autores como: Labov (1972), Tarallo
(1994), Monteiro (2000), Calvet (2002), Camacho e Alkmin (2004), Faraco (2008), Oliveira
(2008), Mendes (2009), Antunes (2010) e Bagno (1999; 2006; 2008; 2010; 2015).
Para verificar a trajetória da proposta de Bagno (1999), que é o foco do nosso
estudo, adotamos as reflexões empreendidas por Viana (2000), Cerqueira (2002) e
Teixeira (2017), visto que tais autores analisam edições diferentes da obra: 1, 15 e 56,
respectivamente. O critério que adotamos para seleção dos referidos trabalhos constitui-
se no lapso temporal existente entre as edições analisadas e a publicação das análises em
revista especializada da área.
A conclusão a que chegamos, tendo em vista as análises das edições, é a de que,
em sua trajetória (edição 1 a 56), a proposta de Bagno de luta contra o preconceito
linguístico passou por um amadurecimento teórico, tendo adquirido mais consistência
ao abarcar contribuições de estudos feitos pelo próprio autor e de outros estudos que
trataram do tema nesse período de tempo. Concluímos, ainda, que a proposta feita por
Bagno (1999) continua atual, já que o preconceito linguístico persiste, tanto na sociedade
de um modo geral, como no âmbito escolar. Consideramos que se trata de uma obra
importante e que merece ser lida e discutida em diversas áreas onde os estudos da
linguagem se fazem presentes.

2 A LÍNGUA DE ACORDO COM A GRAMÁTICA TRADICIONAL (GT)

Historicamente, a língua é definida de maneiras diferentes, a depender da


perspectiva teórica que se adote. Conforme a Gramática Tradicional (GT), considerando
os seus objetivos e peculiaridades, a língua constitui-se num sistema autônomo, rígido e
arbitrário, já que não leva em conta a dinamicidade da língua em seu processo de
variação. Nesse viés, tal abordagem, ao propor exemplos para um uso ‘correto’ da
língua, aborda os fenômenos de linguagem como estáticos, não acompanhando, assim,
o caráter dinâmico que é inerente a esses fenômenos.
Desse modo, para Possenti (2012, p. 86), “[...] as gramáticas tradicionais nos dão
uma impressão de exaustividade às custas de uma extrema superficialidade e vagueza”,
de modo que deixa lacunas ao tratar da língua, visto que não consegue mostrar, de fato,
como essa língua se manifesta de modo efetivo em diversos contextos de uso,
apresentando modelos superficiais que, em algumas vezes, fogem à verdadeira
realidade da língua que é utilizada por falantes reais, e não ideais.
Na perspectiva de Antunes (2007), essa gramática a qual nos referimos é
particularizada, de modo que não engloba toda a realidade que é inerente à língua, já
que reúne apenas aqueles usos que são considerados aceitáveis numa visão de língua
que é socialmente prestigiada. Sendo assim, enquadra-se no domínio normativo, cuja
função é definir o certo, ou seja, o como deve ser da língua, apontando, por oposição, o
errado, a maneira como não se deve dizer.

136 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

Em vista desse aspecto, a GT também é reconhecida pelo seu caráter normativo


e pedagógico, já que impõe regras de uso da língua para que os seus usuários possam
seguir, tanto na fala, quanto na escrita. Nesse viés, ao apresentar um padrão de uso
linguístico, a GT também apresenta um modelo de falante ideal, haja vista que, para esse
tipo de gramática, “[...] a língua corresponde às formas de expressão observadas e
produzidas por pessoas cultas, de prestígio”. (POSSENTI, 2012, p. 74). Assim, as formas
variantes que fogem às exemplaridades desse tipo de gramática são tidas como erro, e
não como uma variação que faz parte do sistema da língua.
Na visão de Bechara (2009), o intuito da GT é “[...] elencar os fatos
recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em
circunstâncias especiais do convívio social” (BECHARA, 2009, p. 52). Cegalla (2005, p.
16), por seu turno, propõe que uma gramática desse tipo “[...] aponta normas para a
correta utilização oral e escrita do idioma, em suma, ensina a falar e escrever a língua
padrão corrente”. A partir das visões desses dois gramáticos, fica evidente que a GT
contribui, em certa medida, com a propagação do preconceito linguístico, sobretudo pelo
fato de apontar como erro as utilizações que não se adequam aos seus padrões
normativos.
Na seção 3, a seguir, apresentamos a abordagem da Sociolinguística
Variacionista em relação à noção de língua, que, diferentemente da GT, considera os
processos de variação linguística que são inerentes ao funcionamento das línguas
naturais.

3 A LÍNGUA PARA A SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Conforme Alkmim (2001), existe uma ligação inquestionável entre linguagem e


sociedade, sendo que essa relação é a base da constituição do ser humano. Para esse
autor, a história da humanidade constitui-se na história de seres que estão organizados
socialmente e que detêm um sistema de comunicação oral. Nesse viés, não há como
colocar em dúvida a relação entre linguagem e sociedade, de modo que esta não deveria
estar ausente, portanto, das reflexões sobre os fenômenos linguísticos.
Diante do pensamento de Alkmim (2001), faz-se necessário considerar,
também, que as línguas variam e mudam ao longo do tempo, já que são dinâmicas e
estão suscetíveis às necessidades comunicativas do homem. Endossando esse
pensamento, Mollica (2003) afirma que a variação linguística é um fenômeno universal
que pressupõe a existência de diferentes formas linguísticas denominadas variantes e a
variação se dá em diferentes níveis gramaticais: fonético-fonológico, morfológico,
morfossintático, sintático, lexical, semântico, etc.
Para Castilho (2010), ao longo do tempo, várias foram as tentativas de explicar
o surgimento das línguas do mundo. Primeiramente, a crença era a de que todas as
línguas derivaram do hebraico, depois do episódio da Torre de Babel. Contudo, a
Antropologia foi evidenciando que outras culturas humanas para além da judaica
tinham explicações semelhantes. Assim, a Linguística Comparada comprovou que tal
hipótese não podia ser confirmada, dada a grande diferença entre as estruturas das
línguas no mundo.

137 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

Assim, conforme o referido autor, essa questão de origem das línguas foi
deixada à margem e se começou a pensar na proposição de diferentes famílias
linguísticas e na descrição das “línguas-filhas”, estabelecendo, assim, tipologias
linguísticas. Isso se justifica pelo fato de que as línguas que pertencem a uma mesma
família tendem a apresentar semelhanças entre si, tendo-se em vista que a história de
uma língua é construída em meio a uma combinação harmônica entre continuidade e
mudança.
Faraco (2019) propõe que estudar a história de uma língua é se concentrar nos
movimentos, nas mudanças que vão alterando o sistema. Para ele, a Sociolinguística tem
se mostrado uma das contribuições mais significativas para a história das línguas, já que
considera a heterogeneidade inerente às línguas e postula que a mudança linguística não
acontece apenas de uma sincronia para outra, mas também no interior de uma única
sincronia, ou seja, passou-se a falar numa sincronia da diacronia.
A Sociolinguística, conforme nos mostra o próprio nome, reúne teorias de duas
ciências: a Sociologia e Linguística. Sendo assim, busca, em seus pressupostos básicos, a
integração entre língua e sociedade. Desse modo, os fenômenos linguísticos são
estudados a partir da associação entre fatores de natureza estrutural e social.
Conforme Monteiro (2000, p. 28):

[…] a sociolinguística analisa os aspectos sociais com o


intuito de compreender melhor a estrutura das línguas e
seu funcionamento. Por sua vez, a sociologia da
linguagem busca alcançar um melhor entendimento da
estrutura social através do estudo da linguagem. A
diferença, em última análise, é uma questão de ênfase, […]
se o investigador é por sua formação e índole um
sociólogo, seu trabalho certamente será enquadrado na
sociologia da linguagem; se, por outro lado, ele é um
linguista, a descrição ou análise que fará sem dúvida será
de cunho sociolinguístico.

Portanto, a Sociolinguística, também chamada Teoria da Variação e Mudança,


surge na segunda metade do século XX, na década de 1960, como uma reação à ausência
do componente social nas correntes de estudos linguísticos existentes até então, como no
Estruturalismo e no Gerativismo, em que o foco era somente a estrutura da língua e se
defendia que essa língua era homogênea, lidando com a ideia de falante-ouvinte ideal.
Labov (1972), considerado como precursor da Sociolinguística Variacionista,
defende que a língua desempenha um papel essencial em nossas vidas e que, por meio
dela, expressamos ideias, sentimentos, desejos. Sendo assim, é heterogênea,
multifacetada e sujeita a constantes variações e mudanças, tendo-se em vista a
dinamicidade do meio social em que se manifesta.
Corroborando essa reflexão, Mendes (2009, p. 51) afirma:

Toda língua apresenta variação interna, mas a necessidade


de comunicação faz com que essa variação obedeça a
certos limites. Assim, essa variação é determinada por

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ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

diversos fatores sendo necessário considerar as diferenças


diatópicas, diacrônicas, diastráticas e diafásicas. Lidar
com a variação é, pois, lidar com heterogeneidade. Cabe
lembrar que essa heterogeneidade é ordenada – a língua é
uma realidade inerentemente variável e ordenada.

Essas variações têm sido objeto de análise de vários estudiosos da


Sociolinguística, os quais buscam analisar o uso da língua segundo a cultura do falante.
Nesse contexto, a língua possui natureza variável, o que orienta e sustenta a
interpretação e observação do comportamento linguístico dos indivíduos. Portanto, a
Sociolinguística foi o ponto de partida de novas orientações de pesquisas e novas
correntes concentradas em trabalhar o fenômeno linguístico relacionado ao contexto
cultural e social, dando o devido valor às variantes que são consideradas como erro pela
gramática tradicional.
Assim, a Sociolinguística estuda a língua em seu uso real, atentando-se para as
relações entre a estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais. Para Labov (1972),
a língua é uma instituição social e, portanto, não pode ser estudada como uma estrutura
autônoma, independente do contexto situacional das pessoas que a utilizam como meio
de comunicação. Dessa forma, a tentativa de uniformização e padronização da língua
torna-se improcedente, já que reflete a cultura de um povo, suas manifestações político-
culturais em uma perspectiva ao longo do tempo e em um determinado tempo.
A Sociolinguística concebe que a variação e a mudança linguística são inerentes
às línguas naturais, sendo as variantes as diferentes formas linguísticas de dizer algo com
o mesmo valor de verdade, e a mudança, a escolha que se faz entre as diferentes formas
linguísticas existentes em tempos diferentes e a cristalização dessa escolha.
Entretanto, Tarallo (1994, p. 63) afirma: “Nem tudo o que varia sofre mudança;
toda mudança linguística, no entanto, pressupõe variação. Variação, portanto, não
implica mudança; mudança, sim, implica sempre variação”. Ou seja, variadas formas
linguísticas podem conviver sem que uma necessariamente elimine definitivamente a
outra. Mas, no processo de mudança, está contida a variação.
A variação oral é uma realidade e está relacionada com a vida social dos
sujeitos, de modo que “uma das funções da sociolinguística é correlacionar as variações
existentes na expressão verbal a diferenças de natureza social, compreendendo cada
domínio o linguístico e o social, como fenômenos estruturados e regulares”
(CAMACHO, 2004, p. 50).
Desse modo, falar sobre a língua é, conforme Tarallo (1994, p. 50), falar de um
sistema que “a cada situação de fala em que nos inserimos e da qual participamos,
notamos que a língua falada é a um só tempo heterogênea e diversificada”, e é essa
heterogeneidade que deve ser sistematizada num viés científico.
A Sociolinguística, então, evidencia as variações na expressão oral e entende
que, para acabar com a crença de que uma língua seja superior à outra, é preciso entender
os fatores que favorecem a variação linguística, bem como o fato de que a língua é usada
como instrumento de manipulação, já que, por meio dela, agimos nas práticas sociais
com determinadas intenções, confirmando a ideia de que, “é na linguagem e pela
linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1991, p. 288).

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O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

Então, a Sociolinguística mostra que as línguas devem ser estudadas sem


preconceitos e que cada uma tem sua devida importância em suas realidades variáveis.
Aqui, não se trata de recusar as contribuições da Gramática Tradicional, pois ela tem o
seu valor e os seus objetivos próprios, mas de refletir a língua numa abordagem
variacionista, respeitando as variantes que surgem nos contextos de uso sem nenhum
tipo de preconceito ou estigma.

4 O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

No art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), já se


reconhecia que a liberdade linguística é um direito que deve ser assegurado socialmente.
Tomemos na íntegra o referido artigo:

Art. 2º. Todo ser humano tem capacidade para gozar os


direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração,
sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição (ONU, 1948).

A Constituição Federal Brasileira (1988), ao tratar do patrimônio cultural de um


povo, garante que esse patrimônio também inclui a língua, sendo que ela é um direito
fundamental concedido ao indivíduo que integra a sociedade civil. Vejamos o Art. 216
desse documento:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os


bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e
viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V
- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico (BRASIL, 1988).

De acordo com Oliveira (2008), falar de preconceito é falar de opinião ou


convicção formada previamente, sem o devido conhecimento dos fatos ou circunstâncias
que envolvem um processo, um acontecimento ou uma situação. Já em relação
especificamente ao preconceito linguístico, a autora considera como uma intolerância e
uma aversão a usos da língua fora dos considerados modelares na sociedade, como
marcas identitárias de desprestígio social, econômico, cultural, político, entre outros.
Considera, ainda, que o preconceito linguístico é manifestado em diferentes contextos,

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tendo em vista a crença na superioridade de determinados comportamentos linguísticos


em relação a outros.
Os fenômenos de variação ocorrem com maior frequência na fala. Nesse
sentido, Faraco (2008) reforça que uma língua é formada também por um conjunto de
variedades. Desse modo, podemos dizer que alguém que desconhece as normas que
regem a língua não conhece apenas uma parte da língua, visto que a gramática
normativa representa apenas uma face do idioma. No entanto, é necessário que se
reconheça o valor do retrato linguístico que é oferecido pela GT, já que este retrato
conserva uma certa unidade linguística.
Conforme antes referido, língua e sociedade estão imbricadas, de maneira que
a língua, assim como a sociedade, não está livre de preconceitos por não se manifestar
de acordo com os padrões normativos preestabelecidos. Nessa ótica, surgem as várias
discussões de gramáticos, linguistas e professores de Língua Portuguesa acerca dos
fenômenos linguísticos que são alvos de preconceito por parte de algumas pessoas, as
quais afirmam que só há um tipo de língua, a padronizada, menosprezando as demais
variantes, que revelam a riqueza cultural de um povo.
Consoante Bagno (2010, p. 16):

Acusações de que as pessoas estão “matando” a língua


aparecem em textos publicados há séculos, mas a língua,
estranhamente, nunca termina de morrer. Segundo essa
linha de pensamento, o português, desde que se firmou
como língua de um povo soberano, há quase mil anos, é
um idioma permanentemente moribundo.

Os puristas linguísticos como os referidos por Bagno (2010) não levam em conta
que a língua pode apresentar características próprias tanto da pessoa que a usa quanto
do meio em que essa pessoa habita, sendo que tais características não possuem menor
valor e não são erros, mas estão condicionadas por um sistema que licencia a sua
manifestação. Portanto, se a língua é constituída de variação, é porque as comunidades
de fala e as pessoas que nela residem são diferentes e possuem sua identidade
linguística, devendo essa identidade ser respeitada.
Conforme Antunes (2010), a realidade com a qual nos deparamos é uma língua
que muda, que varia, que se mostra receptiva a novos sons, novas entonações, novos
vocábulos, que altera seus significados, que cria associações diferentes, que adota
padrões sintáticos novos, sobretudo porque essa língua é regida por diferentes contextos
efetivos de uso e está submetida a outras influências culturais.
Por fim, de acordo com Calvet (2002), devemos considerar e analisar a língua
como o mundo, que se transforma, sofre constantes mudanças e está intrinsecamente
ligada à vida humana, que é dinâmica e está aberta a novas possibilidades. Nesse
sentido, ser preconceituoso linguisticamente é estar fechado à vida em seu conjunto de
manifestações, pois a língua é uma realidade que passa por mudanças, assim como o
processo de desenvolvimento do homem.

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O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

5 O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: UMA OBRA, UMA


PROPOSTA

Conforme já mencionamos, o livro Preconceito linguístico - o que é, como se faz,


escrito por Bagno, em 1999, representa um marco no combate ao preconceito linguístico.
Nele, o autor constata a presença desse tipo de preconceito na sociedade, que, segundo
ele, é consequência de alguns fatores como a ignorância, a intolerância e até mesmo a
manipulação ideológica. Ainda segundo Bagno (1999), os meios de comunicação e a
própria escola são responsáveis por disseminar e intensificar o preconceito linguístico.
Essa obra hoje já se encontra em sua 56ª edição, e é uma das mais lidas entre aqueles que
estudam a língua na perspectiva da Teoria da Variação.
A seguir, apresentamos o olhar de três pesquisadores sobre a obra.

5.1 A OBRA PRECONCEITO LINGUÍSTICO - O QUE É, COMO SE FAZ (ED. 1),


SEGUNDO VIANA (2000)

Para Viana (2000), a obra Preconceito Linguístico é um convite a uma reflexão


sobre alguns aspectos do uso da língua, advindos de uma discussão histórica sobre
língua e gramática normativa, entre linguistas e aqueles que se dedicam ao ensino de
Língua Materna.
Na obra, parte-se do pressuposto de que a sociedade construiu mitos em torno
do uso da língua, tais quais: i) há uma unidade na língua portuguesa falada no Brasil,
não reconhecendo a existência da variação linguística; ii) o brasileiro não sabe português
e que só em Portugal se fala bem português; iii) “o Português é muito difícil”; iv) as
pessoas sem instrução falam tudo errado”, v) “o certo é falar assim porque se escreve
assim; vi) é preciso saber gramática para falar e escrever bem”: vii) “o domínio da norma
culta como um instrumento de ascensão social” (VIANA, 2000).
Viana (2000) afirma que Marcos Bagno alerta o leitor para a existência de
determinados elementos (gramática tradicional, métodos tradicionais, livros didáticos e
o que denomina de “comandos paragramaticais”), que, juntos, contribuem para a
manutenção do preconceito. Bagno também admite que há uma crise no ensino da língua
portuguesa e apresenta alternativas para uma mudança de atitude, inclusive em relação
à revisão da noção de “erro”. Ademais, expõe alguns problemas básicos que manteriam
a norma culta, sendo um bem reservado a uma pequena parcela da população brasileira
e um poderoso instrumento de ocultação da verdade, manipulação do outro, de controle,
de intimidação, de opressão, de emudecimento.
Para Viana (2000), Bagno assume um discurso político e mostra uma clara
preocupação com os rumos do ensino da língua materna, explicitando sua intenção de
tornar essa obra em um “instrumento de combate ao preconceito linguístico”, de modo
que merece ser divulgada nos meios acadêmicos, tanto em nível de terceiro grau como
em nível de pós-graduação, em que o foco é o ensino/aprendizagem de língua materna.

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5.2 A OBRA PRECONCEITO LINGUÍSTICO – O QUE É, COMO SE FAZ (ED. 15),


SEGUNDO CERQUEIRA (2002)

Para Cerqueira (2002), na obra Preconceito Linguístico, Bagno nega a noção


simplista de “certo" e " errado" em relação ao uso da língua e se propõe a fazer uma
análise mais aprofundada dos fenômenos do português falado e escrito no Brasil, com o
intuito de combater esse preconceito na sociedade e, de modo particular, aquele que
advém de professores de língua portuguesa. Para isso, Bagno analisa sete aspectos que
considera como mitos construídos e que contribuem para o preconceito linguístico, são
eles: 1) A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade; 2) Brasileiro não sabe
português / Só em Portugal se fala bem português; 3) Português é muito difícil; 4) O lugar onde
melhor se fala português no Brasil é o Maranhão; 5) O certo é falar assim porque se escreve assim;
6) É preciso saber gramática para falar e escrever bem; 7) O domínio da norma culta é um
instrumento de ascensão social.
Cerqueira (2002) chama a atenção para o argumento de Bagno de que os mitos
analisados no capítulo I são perpetuados em nossa sociedade por um mecanismo de
círculo vicioso do preconceito linguístico e demonstra como o procedimento de muitos
profissionais colabora para a manutenção da prática de exclusão. Bagno ressalta que a
mudança de atitude do professor deve refletir-se na não-aceitação de dogmas, na adoção
de uma nova postura (crítica) em relação a seu próprio objeto de trabalho: a norma culta:
ao invés de “rePEtir alguma coisa, o professor deveria reFLEtir sobre ela” (CERQUEIRA,
2002, p. 401).
Bagno admite que o preconceito linguístico está consolidado e que mudanças
só acontecerão quando houver uma transformação radical do tipo de sociedade em que
estamos inseridos. Ao discutir o ensino da gramática tradicional, sua crítica diz respeito
aos conceitos dessa gramática, estabelecidos há mais de 2.300 anos. O autor levanta
novamente a questão das mudanças, reconhecendo que o novo assusta, subverte as
certezas e compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes.
Cerqueira (2002) considera que nesta 15ª edição há modificações significativas
em comparação com a primeira edição. Entre essas mudanças destaca o acréscimo de
um capítulo final - O Preconceito contra a linguística e os linguistas, anexo de uma carta de
Bagno à Revista Veja, e a história da capa do livro.
Cerqueira (2002) destaca, ainda, que, segundo Bagno (2000), as mudanças
ocorridas nessa edição se devem à sua preocupação em conservar o livro atualizado,
sintonizado com a evolução e reflexões do momento, tendo em vista as críticas, sugestões
e comentários que o livro recebe.

5.3 A OBRA PRECONCEITO LINGUÍSTICO – O QUE É, COMO SE FAZ (ED. 56),


SEGUNDO TEIXEIRA (2017)

Teixeira (2017) afirma que o seu objetivo em analisar a 56ª edição da obra
Preconceito Linguístico – o que é, como se faz, escrita por Bagno em 1999, é contribuir para
que profissionais de diferentes áreas compreendam que “preconceito, independente de
que natureza for, é uma crença pessoal, uma postura individual diante do outro”
(TEIXEIRA, 2017, p. 228).

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O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

No que se refere especificamente ao preconceito linguístico, Teixeira (2017)


afirma que qualquer pessoa pode achar determinado uso da língua mais bonito,
elegante, mais feio ou rude do que outro. Mas quando esse pensamento gera ações
discriminatórias, deve ser algo a ser denunciado e combatido.
Iniciando a sua análise, Teixeira (2017) informa que a obra foi publicada
primeiramente em 1999, no entanto, atualizada por Bagno, em 2015, com recentes
pesquisas e contribuições, as quais deixaram a obra ainda mais interessante para o tema.
Informa que, na introdução, Bagno (2015) ressalta a importância da publicação desta 56ª
edição do livro e que, em síntese, essa nova edição se encontra organizada em seis
capítulos, tem uma abordagem mais teórica, com a presença de mais exemplos.
Conforme a análise de Teixeira (2017), no primeiro capítulo, Bagno trata dos
mitos da língua portuguesa. No segundo capítulo, explica o que chama de círculo
vicioso. No terceiro capítulo, segundo o pesquisador, Bagno (2015) desconstrói o
preconceito linguístico. No quarto capítulo, diferencia linguagem, metalinguagem e
epilinguagem. No quinto capítulo, aborda o preconceito contra linguistas e a linguística.
E, no último capítulo, exemplifica vários casos em que o ensino da língua portuguesa
foge dos arcaísmos da norma-padrão.
Entre os apontamentos apresentados sobre o conteúdo da referida edição,
Teixeira (2017) considera que Bagno (2015):
● atualiza a obra, considerando as novas reflexões teóricas e práticas do autor,
devido às contribuições de outros colegas linguistas e educadores, e também
acrescenta material novo, com discussões bem recentes em torno de alguns
temas acerca da linguagem;
● apresenta importantes esclarecimentos sobre política educacional, tendo em
vista que ele propõe uma visão diferente do ensino da língua com práticas de
letramento em que todos tenham acesso às variedades linguísticas de prestígio;
● valida pesquisas quanto à utilização de gêneros textuais discursivos no
processo de ensino e aprendizagem;
● mostra interesse na proposta de uma reflexão linguística crítica, pois a
variedade prestigiada não corresponde integralmente às formas prescritas pelas
gramáticas normativas e que, para tanto, é imprescindível que toda reflexão seja
feita por meio de investigação de fatos linguísticos reais, confrontando
pesquisas tradicionais com as mais recentes, estando claro que a variação
linguística, na visão sociolinguística do autor, é o objeto do ensino da língua;
● interage com outros estudiosos para firmar sua tese no livro;
● não quer desconsiderar o ensino na norma-padrão, mas que o trabalho didático
seja levar os falantes de variedades a se apoderar também de novos recursos
linguísticos, de outras variedades, ou seja, das variedades prestigiadas e da
norma-padrão tradicional;
● não altera seus exemplos e permanece com o argumento de que saber uma
língua não se reduz e a fazer análise sintática ou saber a regência correta de um
verbo, que muitas vezes está atrelada aos arcaísmos;
● está certo quando utiliza exemplos fáceis para que possamos entender a
complexidade de sua obra;

144 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

● atualiza o seu texto utilizando, além de competência linguística, noção de


letramento e de gêneros textuais. Isso demonstra maior proximidade com o
leitor que se interessa na área;
● assim como no primeiro livro, é político e não deixa de opinar em prol de uma
sociedade em que todos tenham os mesmos direitos e acesso à educação de
qualidade;
● acrescenta um quarto elemento, que são os comandos paragramaticais. Trata-
se da comercialização de normas do "bem-escrever e falar" consumidas para
atingir diversos objetivos, tais como concursos, vestibulares, entre outros;
● sugere que o assunto sobre preconceito linguístico na homossexualidade seja
aprofundado por pesquisadores;
● utiliza a mesma lógica do livro anterior para justificar os comandos
paragramaticais. Para isso, ele cita exemplos de obras que, de acordo com o
professor, são manifestações preconceituosas em relação ao português
brasileiro;
● propõe dez cisões, as quais são: 1) Compreender que todo falante nativo sabe a
língua; 2) Aceitar que não existe erro; 3) Saber que ortografia é uma decisão
política que se altera; 4) Considerar que erros são fenômenos linguísticos e
explicáveis; 5) Conscientizar-se de que “toda língua muda e varia”; 6) Entender
que língua muda, evolui e se transforma; 7) Respeitar a variedade linguística de
todos; 8) Defender que a língua está em tudo e nos constitui como seres
humanos; 9) Acreditar que o professor de língua portuguesa é português de
“TUDO”; 10) Respeitar o conhecimento intuitivo do aluno a fim de que
possamos ensinar para o bem;
● é minucioso quando traz à discussão temas quanto à linguagem,
metalinguagem e epilinguagem;
● propõe que estudar o funcionamento da língua num texto autêntico e
depreender sentidos que as expressões linguísticas permite refletir sobre a
diferenças resultantes da troca de uma expressão por outra é estudar
“gramática”;
● crítica vários autores que deturpam o importante papel da linguística e de
linguistas;
● apresenta uma série de textos coletados entre 2012 e 2014 que vão ao encontro
da sua proposta sobre a língua, o preconceito e o papel dos meios de
comunicação no Brasil;
● oferece uma lista de obras que deveriam ser consultadas e lidas nos cursos de
Letras e Pedagogia;
● sugere que o próprio nome do curso de “Letras” já deveria ter sido alterado há
muito tempo para “Ciências da linguagem”, ou algo parecido.

Em conclusão, Teixeira (2017) reconhece que o tema é aprofundado na referida


edição e que se trata de uma obra importante e que merece ser lida e discutida em
diversas áreas onde a linguagem se faz presente.

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O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo, abordamos o tema preconceito linguístico, tendo como


objetivo analisar a trajetória da proposta de luta contra o preconceito linguístico
proposta por Bagno (1999) no seu livro Preconceito Linguístico - como é, como se faz, obra
de grande aceitação não só entre os estudiosos da Sociolinguística, mas também entre
aqueles que concebem a língua em uso como objeto de estudo. Trabalhamos com a
hipótese de que, passados mais de vinte anos de sua publicação, a proposta de Bagno
(1999) mantém-se atual e necessária, tanto pelas reflexões e estudos que foram agregados
a ela a cada edição, quanto pelo fato de que o preconceito linguístico persiste na
sociedade como um todo e, também, na escola. Portanto, a pergunta que norteou o nosso
estudo foi: qual foi a trajetória dessa obra nesses 21 anos desde que propôs a luta contra
o preconceito linguístico?
A conclusão a que chegamos, tendo em vista as análises das edições escolhidas,
é a de que, em sua trajetória (edição 1 a 56), a proposta feita por Bagno (1999) foi
significativamente ampliada e atualizada, já que a ela o autor agregou suas mais recentes
reflexões e estudos. A obra abarca, também, contribuições de estudos que trataram do
tema nesse período de tempo. Assim, percebemos que a obra passou por um consistente
amadurecimento teórico. A constante atualização da obra, ao nosso modo de ver, é muito
importante, pois representa também a renovação da proposta do autor que é, como ele
mesmo afirma, sua “permanente militância contra o preconceito linguístico e em favor
de uma educação de língua materna mais democrática e coerente” (BAGNO, 2015, p. 9).
De fato, conforme afirma Teixeira (2017) em sua análise, trata-se de uma obra
importante que merece ser lida e discutida em diversas áreas onde os estudos da
linguagem se fazem presentes. Portanto, ao lançar Preconceito Linguístico - como é, como se
faz, Bagno não apresenta somente um livro, mas o início da luta por uma causa que
consideramos nobre, já que a base das relações sociais está no respeito à identidade do
outro.

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O COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO: A TRAJETÓRIA DE UMA PROPOSTA

MENDES, Andréia Almeida. A ausência ou presença de artigo definido diante de


topônimos na fala dos moradores da zona rural das cidades de Matipó e Abre Campo.
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148 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 149-164, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

O letramento na constituição do leitor científico

Literacy in scientific texts reader's constitution

ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO


Graduando em Letras - UNIVILLE
E-mail: [email protected]

MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF


Graduando em Letras - UNIVILLE
E-mail: [email protected]

ROSANA MARA KOERNER


Doutora em Linguística Aplicada - UNICAMP
E-mail: [email protected]

Resumo: O estudo que aqui se apresenta buscou investigar a relação que acadêmicos de
graduação possuem com as leituras e o material proposto ao longo de seus respectivos cursos,
assim como sua percepção acerca deles, seus conhecimentos sobre os gêneros textuais científicos
e as dificuldades enfrentadas por eles na vivência acadêmica. O instrumento de pesquisa foi um
questionário online com 22 perguntas, sendo apenas uma delas de livre resposta. Os resultados
mostraram que muitos estudantes possuem conhecimento mediano de gêneros científicos e,
ainda assim, somente dos mais recorrentes, como o artigo e a resenha. Houve, também, exposição
de dificuldades quanto à compreensão, utilidade e vinculação dos materiais propostos com o
curso de maneira geral. Vê-se, então, a necessidade de trazer a discussão sobre o Letramento
Acadêmico/Científico para patamares mais presentes não somente no meio dos discentes, mas
também no dos docentes.
Palavras-chave: Letramento Científico. Acadêmicos. Leitura. Gêneros Textuais Científicos.

Abstract: The present article sought to investigate the relationship that undergraduate students
have with academic reading and the material proposed throughout their respective courses, as
well as their perception of them, their knowledge about scientific textual genres and the
difficulties they face during the academic experience. The survey instrument was an online
questionnaire with 22 questions, being only one of them open to discursive answers. The results
showed that many of the students have average knowledge of scientific genres and, even so, only
about the most recurring ones, such as article and review. There was also exposure of difficulties
regarding the understanding, usefulness and linking of the materials proposed to the course in
general. It is seen, then, the necessity of bringing the discussion on Academic/Scientific Literacy
to levels more present not only in the student environment, but also among teachers.
Keywords: Scientific Literacy. Academics. Reading. Scientific Textual Genres.

149 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

1 INTRODUÇÃO

A partir do ingresso no primeiro ano do Ensino Fundamental (em alguns casos


até mesmo antes), a criança já passa a ter contato com o aprendizado e o
desenvolvimento da leitura. Visto que este tipo de habilidade é algo que acompanhará
o indivíduo durante toda a sua vida, sobretudo se escolher ingressar na academia, vê-
se, nesse quesito, a motivação para a presente investigação.
A academia vem, há muitos, anos sendo colocada em lugar de prestígio pela
sociedade, e é crescente a valorização da educação, da ciência e da pesquisa. Contudo,
no momento atual, há a preocupação de como é trabalhada a teoria com os acadêmicos
que passam pelo processo de formação e a de que, futuramente, serão eles próprios
desenvolvedores de pesquisas e guiarão a disseminação do saber.
Dessa forma, buscou-se investigar questões como em que medida a formação
superior e o contato com gêneros textuais científicos contribuem para a vida acadêmica
e, igualmente ao que foi tomado como objetivo geral desta pesquisa, quais as
dificuldades vivenciadas pelos acadêmicos em relação às leituras técnicas sob a
perspectiva do Letramento Acadêmico/Científico. Assumiu-se, ainda, uma terceira
problemática: compreender a forma como os acadêmicos percebem as leituras
relacionadas aos seus respectivos cursos e a interligação delas com outras disciplinas da
grade curricular.
O artigo se estrutura de forma a contemplar os pressupostos teóricos que
embasaram a pesquisa, a apresentação da metodologia utilizada, a análise e a discussão
dos dados coletados e as considerações que lançam olhares amplos às problemáticas.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nesta seção serão discutidos alguns pressupostos que envolvem três


macrotemas: leitura e formação do leitor, letramento e, afunilando para o tema central,
letramento acadêmico.

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

Há diferentes conceitos de leitura permeando o ambiente acadêmico. Muitos


autores apontam que ler vai muito além da decifração e da decodificação de um texto.
Interpretar, compreender e reescrever aquilo que foi lido, saber construir diálogos
críticos entre a significação de um texto e o mundo é interação recíproca entre o texto e
o leitor. De acordo com Foucambert (1994, p. 31), “[...] ler significa ser questionado pelo
mundo e por si mesmo, significa que certas respostas podem ser encontradas na escrita,
significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que integra
parte das novas informações ao que já se é”. A decodificação de um texto não basta; é
preciso que o leitor se esforce para realizar uma interpretação íntegra e eficiente,
principalmente no que se refere ao texto narrativo, que oferece múltiplos detalhes a
respeito do enredo.
Muito se fala a respeito do desinteresse dos jovens pela leitura ao chegarem ao
Ensino Fundamental e Médio, mas pouco se faz para mudar esse quadro, que é reflexo

150 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

de um terreno mal preparado na infância. O incentivo à leitura não deve partir apenas
do professor quando a criança começa a cursar as séries iniciais, mas, sim, dos pais ou
responsáveis, que devem ser o motor impulsionador da leitura antes mesmo do infante
chegar à escola.
No entanto, é compreensível que muitos pais, tanto por fatores
socioeconômicos e culturais quanto por falta de tempo ou desinteresse, não estimulem a
criança a ler e, portanto, a escrever, deixando essa tarefa somente para o professor.
Diante dessas condições, cabe à escola garantir que os alunos tenham acesso aos livros,
por meio de bibliotecas e professores mediadores de leitura capacitados para que essa
tarefa seja cumprida. Muito além da escola, é uma tarefa essencialmente do governo
garantir verbas e políticas públicas para que a leitura possa cumprir seu papel de formar
leitores maduros, críticos e humanizados, capazes de usar suas experiências literárias a
fim de conseguir atuar em diferentes situações da vida.
Paulo Freire (1989) aponta que a leitura de mundo precede a leitura da palavra,
e o livro infantil juvenil permite esse movimento, pois mostra à criança e ao jovem um
recorte do mundo por meio das imagens e das cores em sua completude. É partindo
dessas linguagens que a leitura transmitirá sua mensagem de respeito às pessoas, aos
direitos humanos e à natureza, possibilitando a construção crítica dos jovens acerca dos
valores sociais que beneficiam o bem comum.

2.2 LETRAMENTO

Para Santos et al. (2016), os processos de alfabetização e letramento são mais


complexos do que se possa imaginar. Embora sejam processos distintos, é necessário que
caminhem juntos, para que ambos sejam aplicados com eficiência e, principalmente,
para que o educando consiga absorver de forma orgânica todas as metodologias
utilizadas nesse percurso.
Dessa forma, entende-se que a aprendizagem de leitura e escrita se dá por meio
de um processo dinamizado que ocorre através de dois mecanismos de acesso: a técnica,
configurada no modo de alfabetização, e o letramento, relacionando-se às práticas
sociais. De acordo com Santos et al. (2016, p. 6),

[...] para que ocorra a efetivação e domínio da técnica,


onde o educando consiga traçar, reconhecer as letras e
relacionar som e grafia, é indispensável a presença de
materiais adequados ao ensino, um ambiente benéfico e
um educador atento que saiba prognosticar possíveis
irregularidades na aquisição e contribuir positivamente
durante todo o percurso.

No seu processo de construção pessoal, o indivíduo começa a compreender o


mundo a sua volta antes mesmo de ingressar na esfera acadêmica e vai trabalhando a
curiosidade e a familiaridade com diversos temas, em especial, a leitura e escrita. E é por
meio destas que esse indivíduo constrói pontes de saber intrínsecas aos seus interesses
pessoais, sendo instigado, cada vez mais, a fazer novas descobertas.

151 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

Nessa perspectiva, Santos et al. (2016) afirma que o professor é mediador e a ele
cabe a responsabilidade de fazer com que o aluno, no decorrer do trajeto educativo, crie
vínculos sólidos e prazerosos com a leitura e a escrita, articulando conteúdos
significativos, desprendendo-se de ferramentas obsoletas e funções tradicionais como
apenas um mero transmissor de conteúdo e, consequentemente, repetidor de exercícios
dos livros didáticos. É crucial uma forma de ensino compatível com a realidade e o
contexto social em que o educando está inserido, a fim de que, gradativamente, ele
construa uma relação fundamentada nos conceitos do seu aprendizado e do mundo que
o cerca.

Sabemos que para alfabetizar letrando o professor deve


realizar um trabalho social com a intenção de desenvolver
atividades pedagógicas que busquem aproveitar a
vivência do aluno e também é necessário que o docente
tenha sensibilização para melhor ajudar o educando no
processo de alfabetização e letramento. (SANTOS et al.,
2016, p. 9).

Por fim, o autor afirma que haverá muitos desafios a serem superados pelo
corpo docente, mas, num mundo que está em constante mudança e aperfeiçoamento,
têm-se as condições necessárias para lidar com esses dilemas.

2.3 LEITURA ACADÊMICA

Segundo a pesquisa de Silva et al. (2020), vê-se que a procrastinação é um dos


grandes inimigos da leitura acadêmica; a inclinação à leitura dos textos possui maiores
probabilidades de culminação quando existe uma motivação particular de interesse
natural por parte do aluno, do contrário, a ociosidade e o adiamento da tarefa
predominam. Os indicadores obtidos pela pesquisa demonstram que “entre os vinte e
cinco e trinta anos [pode] haver um declínio na procrastinação com posterior aumento
da idade, justificado pela obtenção de experiência ocasionada pela maturidade” (UZON
ÖZER et al., 2009 apud SILVA et al., 2020, p. 155 [adaptação própria]).
Já Oliveira e Santos (2005) apontam que alunos advindos do Ensino Médio para
o nível superior demonstram uma deficiência na qualidade da leitura, apresentando
apenas a habilidade de decodificação em mais de uma década de ensino e deixando as
habilidades de letramento, criticidade, interpretação e motivação mais atrasadas.

Para entender essa complexidade é necessário levar em


consideração as muitas características do leitor, o
conhecimento anterior que influencia a compreensão geral
do texto, o objetivo da leitura e o propósito e nível de
motivação do leitor. Isso talvez explique por que pesquisar
a compreensão em leitura seja desafiador para os
interessados pela área [...] (OLIVEIRA; SANTOS, 2005, p.
123).

152 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

Como apontado por Tourinho (2011), a discrepância entre os estudos em outros


países acerca da leitura comparados aos do Brasil é enorme, o que impossibilita uma
visão ampla sobre o problema que envolve a prática. A deficiência de tanto de estudo
quanto de fomentação à leitura acarreta uma insatisfação na docência universitária, por
o aluno ler apenas o que é obrigado e não possuir vivência da leiturização como
entretenimento ou lazer.

Nem mesmo o advento da internet aumentou a dimensão


da leitura no país, pois muitos, ao invés de utilizar essa
ferramenta importantíssima a seu favor, como fonte
infinita de possibilidades de acesso ao conhecimento
humano escrito, preferem alienar-se com as piores opções
oferecidas pela rede mundial de computadores.
Infelizmente, essa situação é uma ameaça aos
desenvolvimentos social, econômico e político do país.
(TOURINHO, 2011, p. 328).

A maior parte dos alunos ingressantes no nível superior atualmente chega à


graduação sem ser capaz de desenvolver uma relação de compreensão e interpretação
de textos, fictícios ou não, independentemente de serem das áreas humanas (as quais
exigem maior leitura ou interpretação) ou das áreas exatas (que, por mais que se alcance
o conhecimento de modo mais técnico, ainda é dependente da interpretação para tangê-
lo) (TOURINHO, 2011).
Num contraponto à motivação do acadêmico brasileiro quanto à busca e
compreensão de leituras, os resultados obtidos pelo questionário de Bertoluci (2009),
aplicado a alunos de Pedagogia, mostram que muitos dos ingressantes no nível superior
são os primeiros de suas famílias a frequentar o ambiente acadêmico, sendo assim não
tiveram nem mesmo a possibilidade de conviver com pessoas e meios que promovessem
o hábito de leitura, potencializando as dificuldades apresentadas frente aos textos
científicos. Por conseguinte, o vocabulário próprio do tecnicismo científico e a linguagem
presente nesses gêneros apenas agravou a dificuldade já marcante pela falta do hábito
de leitura.
Tangendo com a pesquisa de Silva (2019), também realizada com graduandos
de Pedagogia e igualmente de Psicologia, nota-se que os alunos percebem certo
estranhamento quanto às leituras propostas, principalmente no início do período letivo.
A leitura fragmentada de materiais é citada como empecilho por dar a impressão de não
haver coerência ou ligação entre os conteúdos; e o modo como as leituras são abordadas,
por vezes com um professor não contextualizador dos planos de ensino seguidos,
também é muito mencionado no que diz respeito aos aspectos que se tornam barreira da
leitura acadêmica.

É como se a leitura de textos acadêmicos já fosse conhecida


dos discentes, logo, não seria necessário ensiná-la. Esse
pressuposto está em consonância com os princípios da
abordagem habilidade de estudo (LEA; STREET, 1998): a
leitura, assim como a escrita, é uma habilidade individual

153 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

e cognitiva que, uma vez aprendida, pode ser,


supostamente, mobilizada em quaisquer contextos. Está
em consonância também com a crença de que, quando o
indivíduo aprende a ler, ele aprende de uma vez por
todas, então, não há necessidade de lhe ensinar algo
relativo à leitura, quando ele chegar à universidade.
(SILVA, 2019, p. 208).

Como dito por Tourinho (2011), espera-se que o acadêmico ingressante no


ensino superior já apresente um elevado nível de plenitude em leitura, o que, muitas
vezes, por fatores majoritariamente sociais, não acontece. As impossibilidades de
letramento viabilizadas pelas condições e vivências de cada um dos alunos coloca sobre
as instituições de ensino superior um compromisso que vai muito além do acadêmico,
mas também com a sociedade. Para Tourinho (2011, p. 344-345), “não se trata de corrigir
erros da formação básica dos alunos e sim represar uma situação calamitosa, evitando
que tal fluxo de problemas continue”.
Vê-se, então, que uma solução viável não significa somente uma reestruturação
do ensino básico referente aos aspectos que englobam a leitura, mas um olhar especial
sobre a problemática que está inserida e solidificada dentro do próprio meio acadêmico,
com docentes, acadêmicos e egressos que não possuem ciência dos níveis de leituras
exigidos em cada etapa.

3 METODOLOGIA

Esta pesquisa é de abordagem quantitativa. O público-alvo envolveu


acadêmicos ingressos e frequentadores regulares de cursos de graduação de múltiplas
áreas e de diversas instituições de ensino superior do Brasil.
O instrumento de coleta dos dados consistiu em um questionário com 22
perguntas fechadas, sendo uma delas aberta, respondido de maneira online. O
questionário foi disseminado por meio de redes sociais e contato direto com alguns dos
respondentes. A análise dos dados foi qualitativa, quantitativa, descritiva e
interpretativa, demonstrada por meio de gráficos e considerando os apontamentos
teóricos.

4 ANÁLISE DE DADOS

Foram obtidos 113 questionários respondidos por acadêmicos de idade entre 17


a 56 anos, de universidades públicas e privadas dos estados de Santa Catarina, Paraná,
Rio de Janeiro e Pernambuco, pertencendo a diversas áreas: Ciências Humanas e
Linguagens (Letras, História, Geografia, Artes Visuais, Pedagogia e Educação
Quilombola, ambos os cursos com licenciandos e bacharelandos), Ciências Biológicas e
da Natureza (Ciências Biológicas – Licenciatura e Bacharelado em Meio Ambiente e
Biodiversidade), Ciências da Saúde (Medicina e Enfermagem), Ciências
Socioeconômicas e Sociais Aplicadas (Administração, Ciências Econômicas, Arquitetura
e Urbanismo e Direito) e Ciências Exatas e Suas Tecnologias (Matemática, Física,

154 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

Engenharia Civil, Engenharia Automotiva, Engenharia de Produção, Tecnologia em


Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Gestão de RH). É importante frisar que grande
parte do público-alvo pesquisado está inserido nos cursos de Letras e suas habilitações,
o que justifica o fato de alguns conceitos, como os de Letramento e o de Letramento
Científico, terem um número superior de respostas favoráveis à noção e compreensão
destes.
O questionário foi elaborado com perguntas voltadas ao Letramento Científico:
o conhecimento dos sujeitos a respeito dele e a importância da leitura de gêneros textuais
científicos, bem como a utilização desses gêneros antes e durante o ensino superior.
No que concerne à vivência educacional dos respondentes, anterior ao ingresso
no ensino superior, questionamos onde haviam cursado o Ensino Médio, se em escolas
públicas ou escolas particulares. Os dados resultantes dessa questão foram de que 39,8%
(45 pesquisados) tiveram formação em escolas particulares e 60,2% (68 pesquisados)
tiveram formação em escolas públicas. Vale ressaltar aqui que índices socioeconômicos
não foram abordados; portanto, essa questão não objetivou pesquisar se os participantes
que frequentaram escolas particulares eram bolsistas, totais ou parciais, ou se arcavam
com todos os custos do ensino. O intuito foi apenas perceber a qual nível de educação os
respondentes foram expostos.
Sendo perguntados se sabiam o que era Letramento Científico, simplesmente
Letramento ou se não sabiam absolutamente nada sobre a temática, revelou-se uma
porcentagem de apenas 27,4% (31 respostas) de acadêmicos que têm conhecimento do
que é Letramento, 31% (35 respostas) que sabem mais especificamente o que é
Letramento Científico e 41,6% (47 respostas) que não possuem qualquer noção do que
seja Letramento. É preciso dizer, ainda que exposto anteriormente, que grande parte do
público alcançado configurava-se como alunos de Letras e demais licenciaturas,
podendo ser esta a razão de um percentual maior acerca dos conceitos de Letramento.
Sobre as três questões fechadas referentes aos gêneros textuais, indagamos
quais gêneros científicos os acadêmicos possuíam conhecimento de composição e
estrutura ou se já haviam produzido ao menos uma vez; de quais desses mesmos gêneros
eles possuíam qualquer conhecimento e quais eles julgavam serem os mais utilizados
pelos professores.
Números muito significativos foram apontados: 90,3% disseram ter grande
conhecimento sobre o artigo científico (de revisão ou de pesquisa); 87,6%, de resenha
(dissertativa ou crítica); 74,3%, de síntese (argumentativa, crítica ou explicativa); 39,8%,
de monografia; 57,3%, de tese e 64,6%, de livros de teoria. Uma porcentagem pequena
de 31,9% apontou que já produziu ou teve contato com o ensaio acadêmico. Isso se dá,
pois, segundo Maria Zambrano (1987 apud LARROSA, 2003), o triunfo da filosofia
sistemática e da razão técnico-científica sucumbiu formas de escrita acadêmica
subjetivas, como as epístolas morais, os diálogos filosóficos e o ensaio, gêneros literários
que são os principais instrumentos de reflexão do pensamento dentro das ciências
humanas.
Sobre os gêneros textuais científicos dos quais os acadêmicos possuem pouco
ou nenhum conhecimento, o ensaio lidera com 64,6%, seguido da monografia, com
57,5%, da tese, 39,8% e dos livros de teoria, 28,3%. O artigo científico, a síntese e a resenha
tiveram uma porcentagem inexpressiva. Por fim, perguntados sobre os gêneros textuais

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O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

científicos dos quais os acadêmicos julgam serem os mais utilizados pelos professores
em suas disciplinas, o artigo científico, a resenha, a síntese e os livros de teoria foram os
gêneros textuais mais assinalados pelo público. Já o ensaio, a tese, e, menos ainda, a
monografia são os textos científicos menos utilizados nas disciplinas acadêmicas.
O quadro a seguir representa as respostas referentes à questão que investigava
a utilização e a recomendação de textos científicos durante o período do Ensino Médio.

Quadro 1: Utilização de textos científicos em sala de aula no Ensino Médio


Alternativa Porcentagem N. de respondentes
Não, não houve recomendação de textos
8,8% 10
científicos.
Não, não houve utilização de textos
12,4% 14
científicos.
Sim, houve recomendação de textos
14,2% 16
científicos.
Sim, houve tanto utilização quanto
17,7% 20
recomendação de textos científicos.
Sim, houve utilização de textos científicos. 18,6% 21
Não houve utilização tampouco
28,3% 32
recomendação de textos científicos.
Total 100% 113
Fonte: dados da pesquisa, 2020.

Como observado no quadro 1, a maioria das respostas, divididas em seis


opções, voltou-se para o fato de que não houve utilização tampouco recomendação de
textos científicos, de qualquer natureza, de qualquer área e em qualquer disciplina,
segundo o total de 28,3% (32 respondentes).
Estes 28,3% que representam a não utilização e a não recomendação de textos
científicos podem ser somados aos 12,4% que disseram não ter tido a utilização de textos
científicos, embora fosse provável a recomendação deles, e outros 8,8% que disseram
não terem tido a recomendação, embora fosse provável a utilização. Essa soma resulta
em 49,5% do total de respostas (56 respondentes), alunos no tocante aqui, que não
tiveram contato com textos científicos ou o tiveram muito pouco, de modo não
satisfatório.
Quando perguntados sobre a frequência com que os professores utilizam textos
científicos no curso, dos 113 respondentes, 73,5% apontaram que os professores se
utilizam frequentemente de textos científicos durante todo o percurso acadêmico. O
segundo maior grupo de respondentes (15%) assumiu unicamente a utilização de textos
científicos e cerca de 11,5% considerou a utilização esporádica desse tipo material.
Nenhum dos respondentes optou pela opção “nunca”.
A partir das respostas, pode-se destacar que a predominância dos entrevistados
dispõe a utilização constante de textos científicos no meio acadêmico e o segundo maior
grupo corresponde à utilização total desse material. Evidencia-se, então, que esse
conteúdo é apresentado e manipulado em toda trajetória acadêmica.
Em relação ao nível de interesse nos textos disponibilizados como leitura
complementar ou obrigatória pelos professores, uma porcentagem significativa de 69,9%

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ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

dos sujeitos apontou que é mediano. Portanto, a inclinação dos acadêmicos acerca dos
textos propostos é superficial ou parcial pelos textos ou por alguns deles. Em oposição a
isso, 28,3% dos acadêmicos afirmaram que há muito interesse nos textos propostos pelos
professores. Além disso, uma pequena porcentagem de 1,8% apontou que há pouco ou
nenhum interesse acerca desses textos. Os dados apontam significativamente para uma
inclinação parcial ou superficial pelos textos científicos, um número bastante
preocupante, pois a falta de interesse pode gerar impactos tanto na interpretação e na
absorção do conteúdo lido, quanto na ressignificação dele durante a formação
acadêmica. Esses dados também revelam que a falta de interesse pelos textos científicos
pode ser consequência da má seleção deles. É preciso que o professor volte sua atenção
para a linguagem científica e para o modo como o texto discute as informações. Quando
a linguagem é mais complexa, o texto pode oferecer alguns entraves para o acesso às
informações, ocasionando empecilho para a compreensão da proposta do texto.
Perguntado ao público-alvo sobre a importância das leituras científicas para a
formação de um acadêmico do seu curso, 77% disseram que a leitura, a reflexão e a
discussão de textos científicos são itens indispensáveis. Em oposição, 22,1% acreditam
que algumas leituras sejam dispensáveis e que, portanto, não fomentam a formação do
graduando. Uma inexpressiva porcentagem de 0,9% afirmou que as leituras científicas
são dispensáveis e totalmente triviais. Embora os dados apontem um número muito
significativo de sujeitos que acreditam na importância dos textos científicos para a
formação acadêmica, os 22,1% que consideram esses textos dispensáveis é bastante
preocupante, já que estamos falando da formação de sujeitos que atuarão em diferentes
áreas da sociedade. Os textos científicos de determinada área refletem os avanços dela,
os problemas, as soluções, o que já foi superado e o que ainda precisa de maior atenção.
Negar a importância desses textos na formação profissional é pressupor que a atuação
do acadêmico será baseada nos próprios critérios, pouco se importando com os
progressos da ciência e, consequentemente, com o impacto que suas ações podem gerar
no meio em que está inserido.
Tendo como base as leituras e os materiais com os quais os acadêmicos já
tiveram contato, foi questionado se é perceptível uma coerência entre eles e se é
perceptível o objetivo que possuem para as disciplinas estudadas. Um total de 67,3% dos
acadêmicos afirmou que conseguem perceber a relação entre o conteúdo e as temáticas.
Por outro lado, 32,7% dos sujeitos pesquisados assinalaram que conseguem perceber a
importância de algumas leituras, mas não veem coerência em outras. Isso indica que
pode existir um descuido do docente quanto à seleção do material ou em sua introdução,
tanto em relação à linguagem utilizada pelos autores do texto quanto à abordagem
metodológica da proposta do material.
O próximo quadro indica a constante dos acadêmicos acerca da não
contextualização devida ou insatisfatória do material oferecido pelo docente, podendo
fazê-lo parecer desconexo das demais propostas.

157 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

Quadro 2: Ocorrência de contextualização dos textos científicos utilizados em


sala de aula pelo professor
Alternativa Porcentagem Pessoas
Sim, acontece frequentemente. 8% 9
Não, nunca aconteceu. 8% 9
Sim, acontece, porém, esporadicamente. 36,3% 41
Sim, já aconteceu. 47,8% 54
Total 100% 113
Fonte: dados da pesquisa, 2020.

Com base nos dados do quadro 2, pode-se perceber que quase metade dos
respondentes (47,8%) relata que já aconteceu de não conseguirem compreender o
objetivo de um texto proposto ou de terem dificuldades para entender a relação do texto
com outras disciplinas. Cerca de 36,3% dos respondentes mencionam que esse obstáculo
advém esporadicamente, e nas duas opções seguintes, “Sim, acontece frequentemente”
e “Não, nunca aconteceu”, obteve-se um resultado análogo de uma pergunta à outra
(8%).
Por intermédio das respostas, é importante ressaltar a pesquisa de Silva (2019),
que também obteve resultados similares no que diz respeito ao estranhamento quanto
às leituras e à dificuldade acerca da leitura fragmentada, a qual deriva na falta de ligação
e coerência entre os conteúdos acadêmicos. Esta se revela ser a dificuldade maior, tanto
na pesquisa de Silva quanto neste levantamento: conseguir criar conexões reais com
textos para absorver melhor os conteúdos.
Com base nos dados sobre se os acadêmicos acreditam que deve haver iniciativa
do professor quanto à contextualização do material, pode-se notar que 97,3% dos
respondentes optaram pela contextualização indispensável e apenas 2,7% que ela é
desnecessária.
Mais uma vez é imprescindível destacar a dificuldade que os leitores
acadêmicos demonstram em relação a criar vínculos entre um conteúdo e outro e, apesar
das respostas negativas à contextualização, a grande maioria dos entrevistados acredita
que a ligação entre os textos do curso é um alicerce indispensável.
Procurou-se investigar também de que modo as leituras científicas utilizadas
na academia eram passadas aos acadêmicos. Para tal, questionamos se havia alguma
contextualização do texto indicado e, ainda além, qual o nível de contextualização
recorrente. Felizmente, nenhum dos respondentes assinalou a resposta: “Não, não existe
qualquer contextualização”. Contudo, mesmo que 65,5% (74 pessoas) tenha respondido
que existe contextualização das leituras em um nível satisfatório, 34,5% (39 pessoas)
alegaram que existe, sim, uma contextualização, mas que ela é pouca e,
consequentemente, insatisfatória, possivelmente ocasionando a resistência dos
acadêmicos com o conteúdo trazido para dentro da sala de aula ou, ainda, a sua
fragmentação com o restante do plano de ensino.
Quando perguntados se a preparação para os textos científicos deveria começar
desde o Ensino Médio ou ser mais bem trabalhada pelos professores de graduação,
observa-se que 55,8% dos respondentes acreditam que a preparação para a leitura de um
texto científico deva ser um trabalho mútuo, iniciando no Ensino Médio e alcançando o

158 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

Ensino Superior. Outros 34,5% responderam que deve haver a contextualização desde o
Ensino Médio e apenas 9,7% acreditam que o professor da graduação é quem deve
preparar os graduandos para as leituras específicas.
A partir disso, é importante salientar que mais da metade dos entrevistados
considera imprescindível que a contextualização ocorra nas duas vias de ensino,
contrastando ainda mais o que foi dito por Tourinho (2011), que é esperado que o
ingressante no ensino superior já tenha um nível de excelência em leitura, o que não
acontece na maioria das vezes, gerando consequências negativas dentro da sala de aula.
Ao serem perguntados se se consideram leitores científicos, constata-se, a partir
dos dados coletados, que 62,8% dos respondentes não se consideram um leitor científico
ainda que tenha capacidade para realizar esse tipo de leitura e discuti-las em turma. O
segundo grupo de respondentes (37,2%) se considera um leitor científico, capaz de
absorver e discutir com o professor e em grupo as leituras propostas. Nenhum dos
entrevistados considerou a opção em que não se sentia capaz de interagir com o material
científico e discuti-lo.
Diante desse fato, podem-se trazer em pauta os dados apresentados na questão
sobre a frequência da utilização de textos científicos, que detém, como a maioria das
respostas, a utilização constante. Nota-se, então, que há proposta de conteúdo, mas que
a pertinência se dá na adaptação e na adequação das estratégias empregadas para formar
leitores acadêmicos.
Com base nas respostas à pergunta de que se os acadêmicos gostariam de ter
maior compreensão e engajamento com os materiais propostos, constata-se que 55,8%
dos respondentes gostariam de entender melhor os textos oferecidos, que 43,4%, apesar
de entenderem parcialmente, gostariam de compreendê-los mais, e que apenas 0,9% não
gostaria de ter qualquer interação com essas leituras.
Com base nisso, pode-se observar que se alcançou um número similar entre
acadêmicos que gostariam de entender os textos em sua totalidade e acadêmicos que,
apesar de entenderem, gostariam de compreendê-los de uma forma melhor. Isso nos
mostra, assim como na pergunta anterior, considerar-se ou não um leitor científico, que
há uma carência desses leitores no percurso acadêmico, ainda que haja esforço da parte
docente e discente e que é preciso muito mais do que a apresentação do conteúdo:
atribuir relevância às estratégias utilizadas a fim de aprimorar esses leitores com base
nas suas vivências e entendimento.
A última questão se referia à experiência do respondente como acadêmico de
graduação. Perguntamos qual seria, segundo eles, a melhor forma de abordar o
“Letramento Científico” no Ensino Superior e qual a maior dificuldade deles com os
textos dessa esfera. Embora essa questão tenha visado respostas de caráter qualitativo,
pode ser interessante apresentar alguns dados de forma quantitativa.
Primeiramente, é preciso reduzir alguns números aqui para que a análise seja
mais fidedigna. Dos 113 respondentes, 7 deles não souberam como responder a essa
pergunta ou não souberam formular uma opinião, diminuindo o número de respostas
para 106. Destas 106 respostas, 39 (36,8%) discursavam sobre como a melhor alternativa
seria que os alunos de graduação tivessem contato prévio desde o Ensino Médio com o
gênero científico, textos desse mesmo gênero e exercícios de produção textual, ainda que

159 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

simples, visando a uma introdução e a uma preparação para os conteúdos vindouros no


ensino superior.
Ainda mantendo o foco em dados quantitativos, 25 dos 106 pesquisados
discursaram sobre como seria importante e de grande contribuição atividades,
produções textuais ou minicursos e até mesmo disciplinas e cursos que ensinassem o
gênero científico, sua composição, seus múltiplos formatos, sua linguagem particular,
sua composição e sua utilização tanto para estudo quanto para pesquisa. Fazendo um
conectivo com outras respostas que igualmente apareceram recorrentemente, alguns dos
respondentes disseram não haver tal disciplina ou introdução ao gênero científico e que
essa era uma das causas do estranhamento e das dificuldades. Outros ainda frisaram que
existe uma disciplina voltada para o conhecimento científico em suas instituições, muitas
vezes denominada de “Metodologia da Pesquisa” e afins, mas que ela se encontra
majoritariamente, se não completa, em EaD, o que se entende como sinônimo de
precariedade.
Utilizando-se das próprias palavras de um dos participantes, ele diz que
“aprendemos a referenciar um artigo sem nem mesmo saber o que é um artigo”,
evidenciando que, mesmo que exista uma carga horária destinada a essa modalidade de
ensino, ela é pobre e focaliza aspectos ligados à forma, e não ao conteúdo que o gênero
veicula, não possui coerência em sua estrutura didática e, por ser trabalhada em EaD,
culpabiliza o acadêmico pelo seu não entrosamento com textos científicos, desde a
leitura até a produção.
Dessa forma, foi apontado que um plano de ensino mais funcional e mais claro
quanto aos gêneros científicos, explicando suas estruturas, suas utilidades, suas
diferenças, especificidades, a como compor um texto científico e, sobretudo, a como ler
um texto científico, poderia contribuir com uma formação voltada ao Letramento
Científico dentro do ensino superior. Logo, as instituições que não possuem esse ensino
teriam de rever seus conteúdos e as que possuem, como algumas mencionadas pelos
respondentes, deveriam tratar com mais seriedade e trazer maior significância ao espaço
disponibilizado a esses gêneros tão importantes na academia.
O último aspecto a ser quantificado é sobre o tratamento e a curadoria que os
professores exercem sobre os textos que utilizam ou recomendam dentro da sala de aula.
Dos 106 que responderam, 26 (24,5%) deles disseram que deveria haver uma maior
contextualização do professor sobre os textos que trazem para dentro da academia. O
que era recorrente em muitas dessas 26 respostas, e também em outras, é que, além da
contextualização do material proposto, deveria haver um exercício do professor quanto
aos termos técnicos e científicos utilizados em suas respectivas áreas, por muitas vezes
apresentarem especificidades próprias de uma ciência para outra e, ainda, termos
autocunhados dentro das teorias, os quais, em ambos os casos, permanecem como
incógnitas para o acadêmico até que ele esteja já em certa altura do curso.
Outro cruzamento entre as respostas que pode também ser adicionado a este
momento é o desejo de retomada dos textos levados para dentro da sala de aula ou dos
textos dados como recomendação ou leitura complementar. Mesmo que a taxa de
utilização desses textos mais secundários seja baixa, existe, por parte do acadêmico, a
vontade de discutir ou até mesmo sanar dúvidas que ocorrem durante a leitura desses
materiais. Foi relatado que a não retomada dos textos acontece igualmente com materiais

160 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

que são “obrigatórios” pelo professor, deixando o exercício de leitura e criticidade ainda
mais pobre e criando uma interrogação de “se não for para discutir, então por que ler?”.
Utilizando as próprias palavras de uma participante da pesquisa, tem-se que a
maior das dificuldades é receber artigos e textos dos professores e, no final, não haver
ligação destes com a realidade cotidiana ou profissional, ou nem mesmo colocá-los sob
escopo de discussão, levando isso a se tornar “apenas uma leitura vaga e sem utilidade,
o que faz com que nós, alunos, abandonemos a leitura e a compreensão”.
Ainda no que tange à linguagem científica, é observável nas respostas dos
pesquisados que muitos não compreendem como se estruturam os diversos gêneros do
universo acadêmico, alegando algumas vezes que deveria haver uma reforma nessa
linguagem ou até mesmo ser utilizado algo mais coloquial; houve ainda quem dissesse
que às vezes a utilização desse tipo de escrita/fala soa como mero complemento estético.
As respostas desse nicho demonstram existência de um conhecimento amplo sobre como
o discurso se estrutura e como a comunicação é plural e possui suas diferenciações
dependendo da esfera em que é utilizada, configurando-se como mais um tópico
possível de ser sanado com um plano de ensino mais rigoroso e coerente no que toca os
gêneros da esfera científica.
Outra evidência presente nas respostas foi o argumento de que muitas vezes os
professores tratam os alunos ingressantes na graduação como indivíduos já capazes de
ler, absorver, refletir e exercer criticidade sobre o texto científico, o que é bastante
errôneo. Nesse aspecto, vê-se a confusão que não somente acadêmicos e o restante das
pessoas, mas professores também fazem com as características correspondentes ao
Letramento. Saber ler, como já é saturado e muito bem-conceituado dentro dos estudos
sobre o Letramento, e também na Teoria da Literatura, vai muito além do decodificar
das palavras, de reconhecer os signos que compõem o alfabeto e se juntam em sílabas,
palavras e frases. Nesse sentido, perdem os acadêmicos por não lhes ser trabalhada a
habilidade necessária para desvendar a estrutura dos textos.
Algo que se vincula com essa discussão, e dessa vez direcionado aos
professores, é de que alguns respondentes alegaram que, por vezes, os próprios docentes
não possuem domínio sobre os gêneros científicos, o que atrapalha o momento das
orientações sobre a escrita de textos desses gêneros. Levando-se esse aspecto em
consideração, já se torna menos impressionante que instituições de ensino superior, estas
que são produtoras de conhecimento científico, não tenham disciplinas ou enfoque na
ministração do texto e da produção do conhecimento científico, ou, quando o tem, é de
maneira não satisfatória, pobre e sem a devida seriedade, acarretando o sucateamento
das produções que muitas vezes são feitas de maneira não ideal, visando apenas à
conclusão do curso ou da disciplina.
Como não poderia deixar de ser abordado, boa parte dos pesquisados também
revelou que não existe interesse deles próprios pelo texto e que necessitariam de força
de vontade e cobrança de si próprios para engajarem com os materiais. Os motivos
apontados para esse fenômeno são vários, além da própria procrastinação mostrada por
eles, bem como a falta de tempo, o excesso de textos, a desconexão e não contextualização
dos materiais (levando até mesmo à frustração dos acadêmicos por não enxergarem
sentido no conteúdo), textos não atuais e que se utilizam de uma forma antiga da língua

161 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

ou que são de décadas anteriores, quando os próprios professores exigem fontes recentes
como fonte para trabalhos.
Terminando os aspectos que envolvem a problemática referida pelos
acadêmicos, ainda há o fator “ensino público” bastante presente nas respostas. Dentre
elas, o argumento de que o atual ensino público em território nacional não é nada
satisfatório ao nível exigido na graduação, o que acaba por elitizar o nível superior
devido ao não engajamento de alunos de escolas públicas ao conteúdo presente nos
Projetos Políticos Pedagógicos dos cursos. Críticas referentes à metodologia da forma de
ensino, à não variação nas modalidades de gêneros textuais e ao pouco incentivo a
leituras de natureza científica também foram recorrentes.
Houve respostas que, bastante relevantes, acabaram chamando mais a atenção
por consequência, como foi o caso de dois estudantes que transmitiram igualmente suas
preocupações com os demais cursos, apoiando-se no argumento de que num curso como
Letras e outras licenciaturas, que possuem influência do ensino de gêneros, existe maior
familiaridade com os gêneros discursivos, dentre eles, o científico. Já em cursos de áreas
exatas, as engenharias, como utilizado no exemplo por um deles, em que até o mesmo o
professor pode não ter uma vivência literária e de escrita satisfatória devido ao próprio
caráter da profissão, torna-se um grande desafio o exercício de escrita dos gêneros
textuais aqui discutidos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que a discussão e a efetivação dos múltiplos conceitos de


Letramento é algo de extrema urgência nos âmbitos em que a leitura tem um papel
imprescindível, como na academia. Desse modo, observou-se que os acadêmicos
questionados percebem que um maior contato com os gêneros textuais científicos antes
do ingresso no ensino superior seria uma boa forma de fundamentar um leitor científico,
como observado na questão de resposta aberta. Destarte, essa não convivência prévia e
o pouco contato com as estruturas e finalidades do texto científico demonstraram que
existem, sim, desafios por parte dos acadêmicos em entender os materiais trazidos à sala
de aula, para interagir com eles, refletir acerca deles e discuti-los.
É quase unânime que a leitura é indispensável na formação de qualquer
profissional de qualquer área, como as muitas aqui alcançadas, e existe nos discentes o
desejo de absorvê-las e compreendê-las melhor. Contudo, esta pesquisa buscou apenas
o olhar dos acadêmicos sobre alguns gêneros textuais dentro da academia. Seria
possível, ainda, e talvez até necessário, buscar a visão que os docentes possuem sobre o
assunto, além de suas próprias percepções acerca do letramento de seus estudantes.
Embora este estudo tenha tido êxito em certos aspectos, como evidenciar a
relação de estudantes do ensino superior com textos acadêmicos e a ausência do
letramento na vivência desses estudantes, outros não foram possíveis de contemplação.
Uma questão a pensar a partir dos resultados obtidos é como a formação superior
parcialmente defasada, no que tange ao letramento, afeta o retorno dos alunos à
academia, tornando-se um empecilho para a formação continuada, uma vez que os
acadêmicos saem desse espaço com impressões ruins sobre o saber científico.

162 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


ANDRÉ HENRIQUE DE MARAFIGO | MATHEUS GABRIEL DA SILVA BOFF | ROSANA MARA KOERNER

REFERÊNCIAS

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Pedagogia. Ao pé da letra: Revista dos Alunos da Graduação em Letras, Recife, v. 11,
n. 2, p. 107-124, 2009. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/pedaletra/issue/view/2331. Acesso em: 10 jun. 2020.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad. Bruno Charles Magne: Porto Alegre:
Artes Médicas, 1994.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Revista Educação & Realidade.


Porto Alegre, v. 28, n. 2, p. 101-115, 2003. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25643. Acesso em: 10
jun. 2020.

OLIVEIRA, Katya Luciane de; SANTOS, Acácia Aparecida Angeli dos. Compreensão
em Leitura e Avaliação da Aprendizagem em Universitários. Psicologia: Reflexão e
Crítica, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 118-124, 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722005000100016&script=sci_arttext.
Acesso em: 10 jun. 2020

SANTOS, Ana Claudia Siqueira dos et al. Alfabetização e letramento: dois conceitos,
um processo. [S. l.]. 2016. Disponível em: https://portal.fslf.edu.br/wp-
content/uploads/2016/12/tcc3-6.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.

SILVA, Elizabeth Maria da. O que dizem graduandos em Pedagogia sobre suas
práticas de leitura: o olhar dos letramentos acadêmicos. Revista Leia Escola. Campina
Grande, v. 19, n. 1, p. 200-211, 2019. Disponível em:
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/Leia/article/view/1292. Acesso em: 12 jun.
2020.

SILVA, Paulo Gregório Nascimento da et al. Motivação para leitura e variáveis


sociodemográficas como preditoras da procrastinação acadêmica. Psicología,
Conocimiento y Sociedad, Montevidéu, v. 10, n. 1, p. 142-163, 2020. Disponível em:
https://revista.psico.edu.uy/index.php/revpsicologia/article/view/560/419. Acesso em:
15 jun. 2020.

163 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


O LETRAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DO LEITOR CIENTÍFICO

TOURINHO, Cleber. Refletindo sobre a dificuldade de leitura em alunos do ensino


superior: “Deficiência” ou simples falta de hábito?. Revista Lugares de Educação,
Paraíba, v. 1, n. 2, p. 325-346, 2011. Disponível em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/rle. Acesso em: 15 jun. 2020.

164 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


Revista Crátilo, vol. 15, n. 1: 165-175, jan./jul. 2022
© Centro Universitário de Patos de Minas
https://revistas.unipam.edu.br/index.php/cratilo

Breve revisão da literatura acerca da produção


escrita em língua inglesa por alunos da
Educação Básica

Brief literature review on the production written in English by


Students of the Basic Education

MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES


Doutora em Estudos Linguísticos - UNIPAM
E-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho traz um estudo acerca da seguinte temática “breve revisão da
literatura acerca da produção escrita em Língua Inglesa por parte dos alunos da Educação
Básica”, tomando como referência os seguintes autores: Bereiter e Scardamalia (1987); Celce-
Murcia e Olshtain (2000); Costa (2016); Cristovão e Nascimento (2005); Dias (2004), Grabe e
Kaplan (1996), dentre outros. Procurou-se observar, nesses textos, a dificuldade dos professores
de trabalhar, de forma sistematizada, com a habilidade de produção escrita nas aulas de língua
inglesa, por mais adverso que seja o contexto de aprendizagem dos alunos. A metodologia
utilizada foi revisão de literatura, tomando como referência autores em Língua Estrangeira que
se preocupam em estudar e descrever essa habilidade. O resultado mostra uma mudança de foco
por parte dos docentes quanto à produção escrita, considerando-a como um processo, e não mais
como um simples produto.
Palavras-chave: Produção escrita. LínguaInglesa. Ensino e aprendizagem.

Abstract: The present work brings a study about the following theme "brief literature review
about the written production in English by students of Basic Education ", taking as a reference
the following authors: Bereiter e Scardamalia (1987); Celce-Murcia e Olshtain (2000); Costa (2016);
Cristovão e Nascimento (2005); Dias (2004), Grabe e Kaplan (1996), among others. We tried to
observe, in these texts, the difficulty of teachers to work, in a systematic way, with the ability of
written production in English language classes, however adverse the students' learning context
may be. The methodology used was a literature review, taking as reference authors in a foreign
language who are concerned with studying and describing this skill. The result shows a change
of focus on the part of teachers regarding written production, considering it as a process, and no
longer as a simple product.
Keywords: Written production. English language. Teaching and learning.

1 INTRODUÇÃO

Aprender um novo idioma e comunicar-se em outra língua não significa apenas


desenvolver as habilidades de produção oral, uma vez que, através das habilidades
escritas, também nos comunicamos.

165 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


BREVE REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA
INGLESA POR ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Muitas vezes, professores relegam a habilidade de produção escrita a um


segundo plano por considerarem-na menos importante que as outras, principalmente
porque acreditam que seus alunos a utilizarão com menor frequência em relação às
demais. Para Raimes (1983), a escrita ajuda os alunos no seu aprendizado, não só
reforçando as estruturas gramaticais e o vocabulário já aprendido. Esta autora afirma
também que, através da produção escrita, os alunos têm a chance de ir além do que
aprenderam a falar, arriscando-se, expressando suas ideias e se envolvendo com a nova
língua.
Vários estudos vêm sendo desenvolvidos acerca do trabalho com a produção
escrita. Com o intuito de fazer uma breve revisão acerca do tema, o presente trabalho se
propõe, primeiramente, a falar sobre a habilidade de produção escrita, apresentando, de
forma breve, suas características e fases; sem seguida, fala-se dos gêneros textuais e sua
contribuição para a produção escrita; no tópico seguinte, são apresentados recursos que
podem ser utilizados na atividade de produção escrita; finalmente, são expostos critérios
para avaliar textos escritos. Cumpre esclarecer que a produção escrita neste trabalho é
vista como um processo de criação, revisão e recriação, e não apenas como um produto
final.
O objetivo principal deste trabalho é apresentar uma breve revisão de literatura
acerca do tema produção escrita em Língua Inglesa por parte dos alunos da Educação
Básica. Como objetivos específicos, temos: analisar as características e etapas da
produção escrita; analisar a produção escrita e o trabalho com os gêneros textuais;
analisar a produção escrita e o uso de novas tecnologias; analisar a avaliação na
produção escrita.
A produção escrita é uma habilidade que, para muitos, representa um grande
problema. Alunos e professores, quando precisam produzir um texto, muitas vezes, se
sentem acuados e acabam desistindo da tarefa. Se isso já acontece na língua materna, ele
se torna maior em língua estrangeira. Portanto, este trabalho, como justificativa, busca
apresentar uma reflexão acerca do tema, a qual poderá ser utilizada, posteriormente, por
professores, ao trabalhar essa habilidade com seus alunos/as.

2 METODOLOGIA

Foi feita uma pesquisa descritiva e bibliográfica acerca dos aspectos da


produção escrita em língua inglesa. Tomou-se como referência autores em Língua
Estrangeira que se preocupam em estudar e descrever essa habilidade: Bereiter e
Scardamalia (1987); Celce-Murcia e Olshtain (2000); Costa (2016); Cristovão e
Nascimento (2005); Dias (2004), Grabe e Kaplan (1996), entre outros.
Procurou-se observar nos textos selecionados a problemática da dificuldade dos
professores de trabalhar, de forma sistematizada, com a habilidade de produção escrita
nas aulas de língua inglesa, por mais adverso que seja o contexto de aprendizagem dos
alunos. Esperou-se, na observação, uma mudança de foco, por parte dos docentes,
quanto à produção escrita, considerando-a como um processo, e não mais como um
simples produto.

166 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES

3 A PRODUÇÃO ESCRITA

3.1 CARACTERÍSTICAS E ETAPAS DA PRODUÇÃO ESCRITA

Segundo Dias (2004), as produções de textos refletem os usos reais de uma


língua estrangeira nas práticas comunicativas cotidianas e são incorporadas a propósitos
comunicativos específicos, de acordo com a interação que está acontecendo. Para tanto,
faz-se necessária a integração de quatro componentes aliados à adequação, acuidade e
contextos reais de comunicação: competência linguística, competência textual,
competência sociolinguística e competência estratégica.
Um bom produtor de textos faz uso de três conhecimentos: o conhecimento de
mundo, que é aquele que o aluno já incorporou às suas estruturas cognitivas no processo
de participação das relações internacionais no mundo; o conhecimento léxico-sistêmico,
que diz respeito ao domínio da organização linguística nos vários níveis (léxico-
semântico, sintático, morfológico e fonético-fonológico); o conhecimento textual, que
está relacionado aos domínios discursivos, gêneros textuais, tipos textuais e articulação
do texto.
Ao produzir um texto, o escritor/produtor deve ter sempre em mente o seu
leitor-alvo e as situações sociais de comunicação.

Figura 1: Etapas durante a produção escrita

Fonte: adaptado de Dias, 2004.

Como pode ser observado na Figura 1, a escrita compreende diferentes etapas


e em cada uma delas o escritor/produtor conta com o feedback de outras pessoas para a
apreciação e o aprimoramento do seu texto. É importante ressaltar a direção das setas,
mostrando que, apesar de o escritor se encontrar em uma determinada fase, ele/ela pode
retornar à fase anterior, revisá-la, continuar o seu processo de escrita até a versão final.
Caso esta não atinja o resultado desejado, o processo é reiniciado.
Para Seow (2003), a atividade de produção escrita envolve quatro estágios: o
planejamento, o rascunho, a revisão e a edição. Esses estágios não são lineares, não
apresentam uma sequência fixa nem são ordenados. Para Seow (2003), no estágio do

167 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


BREVE REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA
INGLESA POR ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

planejamento, o professor encoraja os alunos a escrever e estimula seus pensamentos.


Ele sugere atividades como tempestade cerebral, clustering, escrita rápida livre e
perguntas. Já no estágio do rascunho, o foco está na fluência da escrita e não há a
preocupação com a precisão gramatical ou com a organização do rascunho. Nessa fase,
ocorrem comentários que podem ajudar no estágio da revisão, que é baseado nas
respostas dadas pelo/a professor/a ou pelos/as colegas a seu texto. O estágio da edição
envolve os alunos na organização de seus textos enquanto preparam o rascunho final,
que será avaliado. A avaliação pode ser feita de forma analítica (baseada em aspectos
específicos da habilidade escrita) ou holística (baseada na interpretação global da
eficiência da redação) ou ambas. A etapa da pós-escrita compreende qualquer atividade
na sala de aula em que o professor e os alunos trabalham com o texto final, incluindo a
sua publicação, a leitura em voz alta ou outra atividade.
Figueiredo (2005), em estudos sobre produção escrita, faz uma retrospectiva,
apontando as primeiras pesquisas acerca dessa habilidade desde o século dezenove até
os dias atuais, mostrando inicialmente essa produção apenas como um produto e depois
sendo considerada um processo.
Como foi dito no início deste trabalho, a escrita é concebida aqui como um
processo e, para exemplificar esse aspecto, pode-se citar o trabalho de Köche at al. (2004),
que desenvolveram uma pesquisa junto aos alunos do curso de Licenciatura em Letras
e Pedagogia na Universidade de Caxias do Sul. Através desse estudo, foi possível
acompanhar o processo de escrita dos alunos-informantes e identificar os seus erros.
Identificados os problemas com a produção escrita, foi possível apontar aos alunos
formas de aperfeiçoar seus textos através da reescrita.
Grabe e Kaplan (1996) ressaltam que um ponto fundamental a ser considerado
na construção de um texto é a forma de organizá-lo, respondendo à pergunta: “Quem
escreve o quê, para quem, com que propósito, por quê, quando, onde e como?”. Ao
redigir um texto, observando os tópicos dessa pergunta, o escritor pode criar um
material que apresente informações que serão requisitadas pelo leitor.
Ao analisar quem escreve, podem ser observadas as características que
influenciam a produção escrita, permitindo avaliar se a pessoa que produziu o texto é
um escritor experiente ou não.
A escrita pode sugerir uma ação ou um processo, e esse termo é usado para
examinar a estrutura linguística de textos, ou seja, as escolhas linguísticas feitas pelo
escritor ao produzi-lo. Várias ferramentas linguísticas estão disponíveis ao
escritor/produtor do texto, permitindo-lhe fazer escolhas e combinações diferentes que
irão garantir a fluência da informação, a coesão e a coerência. Os seus elementos
linguísticos auxiliam também a identificar o público-alvo, o objetivo do autor ao
produzir seu texto, o contexto e o gênero textual.
Ao falar sobre o que é escrito, leva-se em consideração a mensagem, o conteúdo,
o gênero textual (propriedades formais identificáveis, propósitos formais identificáveis
e uma estrutura completa) e registro (definido pelo tópico da escrita, o meio e o teor
interpessoal). O conhecimento do conteúdo, dos gêneros e dos registros engloba recursos
sociais, recursos temáticos e recursos culturais que influenciam a escrita de forma
considerável.

168 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES

Ao informar para quem o texto é escrito, o produtor do texto se preocupa com


seu público-alvo. Este é essencial para a criação do texto e para a geração de significado,
uma vez que será ele que influenciará no tipo de discurso do texto. Existem alguns
parâmetros que devem ser observados ao se considerar o público-alvo, como o número
de leitores, se são conhecidos ou não, o status do escritor em relação ao leitor e vice-
versa, o conhecimento compartilhado pelo escritor e leitor, bem como a extensão do
conhecimento especializado.
Ao definir o objetivo do texto, o escritor mostra que seu objetivo geral é
comunicar-se com o leitor. Escritor e leitor irão compreender e interpretar propósitos de
escrita através de certos princípios linguísticos, psicológicos e sociolinguísticos aceitos
(máximas griceanas, atos de fala, convenções quanto ao status, ao poder, à situação, à
intenção e à atitude), além de prever algumas estruturas cognitivas.
O motivo que leva as pessoas a escrever, muitas vezes, pode diferir do seu
propósito funcional, ou seja, às vezes, o que está escrito no texto não é compreendido
pelo leitor. Esse fato pode ser causado por dois motivos: até que ponto o escritor quer
que o leitor perceba a sua mensagem implícita e até que ponto um conteúdo complexo
apresenta uma informação acessível ao leitor (dificuldade contingencial – referência
técnica; modal – interpretações equivocadas; tática – o autor quer ser compreendido
somente em algumas partes; ontológica – restrições impostas pela própria língua).
A forma como o texto escrito é produzido, ou seja, que instrumento é utilizado
para se escrever um texto (computador, caneta, etc.), tem pouca influência na sua
estrutura. O lugar e o momento em que o texto é produzido não influenciam de forma
significativa o processo e a forma da escrita (não de forma que vá influenciar na
etnografia da escrita).
Celce-Murcia e Olshtain (2000) se preocupam em mostrar alguns aspectos que,
se bem trabalhados pelos professores, poderão ajudar seus alunos no processo de
produção escrita. As autoras sugerem formas de como os professores podem romper a
barreira inicial que muitos escritores têm ao iniciar a sua produção escrita; no que diz
respeito aos alunos, mostrar a eles que todos são capazes de produzir um texto. Ainda
para as autoras, um bom início para as produções escritas seria através de temas
pessoais.
Sintetizando o que já foi falado, podemos dizer que, no que diz respeito à
escolha do tópico para a produção escrita, o aluno deve escrever sobre algo que lhe dê
prazer, esgotando as possibilidades sobre o assunto (o que o leitor quer saber sobre o
tópico, como a informação deve ser organizada, se deve ser utilizado algum recurso para
chamar a atenção do leitor e escolher o gênero). Após escolhido o assunto, os
alunos/escritores precisam planejar a sua escrita (utilizando o brainstorming), fazendo
um levantamento de informações sobre o que decidiram escrever. É importante que o
professor utilize a leitura como um recurso para fornecer mais informações aos alunos
sobre o tópico sobre o qual eles vão escrever.
Kroll (2001) sugere atividades de brainstorming, listas e grupos de informações
e escrita livre para ajudar os alunos a iniciar a sua escrita do texto. Essa autora também
enfatiza o uso da leitura como forma de ajudar os alunos a obter mais informações sobre
o gênero e o público-alvo, além de saber mais sobre o assunto a ser escrito. Para a
produção escrita, os alunos/escritores precisam estar conscientes de que eles precisarão

169 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


BREVE REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA
INGLESA POR ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

escrever, reescrever e rever as suas produções até que elas apresentem coesão e
coerência. Uma boa sugestão apresentada pela autora para guardar as produções dos
alunos é através de protfólio, que poderá posteriormente ser utilizado para a avaliação
das produções.

3.2 PRODUÇÃO ESCRITA E O TRABALHO COM GÊNEROS

Motta-Roth e Heberle (2005), em seus estudos sobre gêneros, estabelecem uma


relação estreita entre os gêneros e o texto a ser produzido. Para tanto, o professor deve
estar sempre atento e levar os seus alunos a relacionarem a linguagem textual ao seu
contexto de situação e ambos devem ser relacionados ao contexto de cultura. Ao ser
exposto aos mais variados gêneros, o aluno aprende a analisar como as várias culturas
se organizam e aprende maneiras diferentes de fazer parte delas. Muitas vezes não é a
falta de competência linguística que dificulta a inserção social do aluno, mas, talvez, a
sua falta de conhecimento de como a linguagem é usada nos mais variados contextos e
nas mais variadas formas.
Para Motta-Roth e Heberle (2005), a estrutura potencial do gênero se constitui
na expressão verbal de uma configuração contextual e depende de certos conjuntos de
valores que estão relacionados ao campo, ao teor e ao modo. Nessa teoria, são
estabelecidos elementos obrigatórios, opcionais e interativos do gênero. Entende-se por
elemento obrigatório aqueles componentes essenciais de uma configuração contextual;
os elementos opcionais são aquelas variáveis que estão relacionadas a um determinado
gênero, mas que não têm necessariamente que estar presentes em qualquer texto que
acompanha aquela atividade social específica; o elemento interativo engloba os
elementos recursivos que aparecem mais de uma vez num evento comunicativo sem,
contudo, seguir uma ordem rígida (MOTTA-ROTH; HEBERLE, 2005, p. 18). Apesar de
existirem críticas a respeito do uso da estrutura potencial do gênero, Motta-Roth e
Heberle (2005) consideram que este tipo de estudo pode auxiliar na compreensão da
linguagem, estabelecendo uma relação entre texto, contexto de situação e contexto de
cultura.
Cristovão e Nascimento (2005) consideram que a exploração de modelos
didáticos do gênero é uma grande fonte de informações e um material didático muito
importante. As referidas autoras desenvolveram trabalhos com gêneros para a melhoria
das aulas de produção escrita.
Bambirra (2005) comprova o que foi dito anteriormente ao apresentar o seu
trabalho desenvolvido com alunos de 8ª série para o desenvolvimento da habilidade de
produção escrita em língua inglesa. Segundo a autora, o trabalho com gêneros auxiliou
os alunos na sua fase de geração de ideias e também no planejamento textual. Os alunos,
segundo Bambirra (2005), precisam ter contato com gêneros textuais diferentes sobre um
mesmo assunto para que possam compará-los e descobrir suas variadas formas de uso.
Dessa forma, o aluno descobre a função social de cada texto: quem escreve para quem,
o quê, quando, como – o que é apontado por Grabe e Kaplan (1996). Ao ser capaz de
dominar essas informações de forma consciente, o aluno consegue ir além desse
conhecimento por ele adquirido e produzir seus próprios textos de forma eficiente.

170 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES

3.3 PRODUÇÃO ESCRITA E O USO DE NOVAS TECNOLOGIAS

Muitos autores já demonstram uma preocupação em incorporar novas


tecnologias às aulas de língua estrangeira, já que os recursos tecnológicos fazem parte
da vida dos alunos e representam uma forma de deixar as aulas mais ricas.
Marco (2003) aponta como vantagens para se utilizar a internet nas aulas de
produção escrita: possibilidade de interação entre alunos de diferentes lugares, grande
interação com o material do curso, motivação para escrever para públicos autênticos e
com propósitos reais, extrapolação dos domínios de sala de aula. Esse autor ainda aponta
a riqueza de material que se encontra disponível na rede e que pode ser utilizado como
fonte de pesquisa, preparando o aluno com informações que podem ser usadas na fase
escrita. A internet também oferece recursos de consulta sobre aspectos gramaticais,
dicionários e outras fontes de informação.
Além dessas atividades mencionadas, a rede apresenta atividades de produção
escrita que podem envolver os alunos, e o próprio uso de e-mails é um ótimo recurso
para que os alunos pratiquem a sua escrita. Marco (2003) mostra também a importância
do uso da rede nas aulas de inglês instrumental, uma vez que oferece uma grande
variedade de textos e tarefas aos alunos. Ainda segundo esse autor, a internet envolve a
integração de várias habilidades e promove a aprendizagem colaborativa, além de
promover o contato do aluno com textos de disciplinas específicas e gêneros e fornecer
uma ampla variedade de tarefas.
Na era em que vivemos, não há como fugir das novas tecnologias. Adotar
ferramentas e plataformas digitais pode aproximar professores e alunos no processo de
ensino/aprendizagem. O uso do Instagram e do WhatsApp podem ser ótimas
ferramentas para estimular os escritores a produzirem textos em língua estrangeira.
Rojo e Moura (2012) dizem que, além das ferramentas de escrita manual e
impressa, são necessárias novas práticas de produção e de análise crítica como receptor.
Vários trabalhos estão sendo desenvolvidos com o intuito de investigar aspectos
positivos e/ou negativos dessas novas ferramentas. Andrade (2016), Sousa (2016), Costa
(2016), Santos (2016), entre outros, apresentam propostas de trabalho conduzidas com o
uso do WhatsApp. Smith (2017) desenvolveu uma pesquisa com alunos acerca do uso
das novas tecnologias e o seu aprendizado.
Todos os recursos são importantes e, se bem conduzidos e utilizados, podem
ser excelentes ferramentas a favor da educação.

3.4 AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO ESCRITA

Weigle (2002) apresenta princípios sobre como projetar uma avaliação para
turmas grandes, procurando testar os alunos além do nível individual de sala de aula.
Para a autora, a avaliação consiste em três estágios: estágio da criação, que envolve a
reunião de informações sobre o propósito dos testes, características do público-alvo e a
necessidade de escrita no seu mundo real; estágio da operacionalização, que utiliza a
informação adquirida no estágio anterior para criar as especificações do teste; estágio da
administração, que envolve tanto o pré-teste quanto os testes completos.

171 Revista Crátilo, v. 15, n. 1, jan./jun. 2022


BREVE REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA
INGLESA POR ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Vários outros aspectos precisam ser considerados para a elaboração de um teste


como o assunto, material de estímulo, gênero a ser desenvolvido, tempo que será
utilizado para desenvolver a tarefa, as instruções que devem ser bem claras para não
causar má compreensão por parte dos alunos e se será permitido o uso de dicionários ou
não durante o teste.
Weigle (2002) apresenta escalas de pontuação sendo elas primária, holística
(tipo de pontuação mais rápido e vê as qualidades do texto e não seus erros; dentre as
desvantagens tem-se o fato de não fornecer informação diagnóstica útil sobre a
habilidade de escrita); analítica (fornece uma informação mais útil sobre as habilidades
dos escritores, entretanto leva mais tempo para ser feita que o método holístico); e de
traços múltiplos.
As formas de avaliação podem ser várias. Dentre elas, temos as conferências, os
diários (e os blogs), os memoriais e os portfólios.
As conferências são conversas ou discussões feitas entre aluno e professor, entre
vários alunos e o professor ou toda a classe e o professor sobre o desempenho de uma
tarefa específica – neste caso a produção escrita. O diário consiste no diálogo escrito entre
professor(es) e aluno(s), podendo ser eletrônico ou não, em casa ou na sala de aula.
Dentre os benefícios mencionados sobre o uso de diários, têm-se: os alunos praticam as
habilidades escritas; eles têm a oportunidade de se expressar espontaneamente; o
professor pode conhecer um pouco mais sobre o aluno e acompanhar o seu processo de
aprendizagem. O memorial é um livro de lembranças mais detalhado. Espera-se que nele
seja apresentada uma descrição detalhada sobre o assunto que vai ser tratado. Nesse tipo
de atividade, o aluno poderá refletir sobre a produção juntamente com o professor e
sistematizar seu conhecimento. O portfólio é uma coleção de trabalhos confeccionados
pelos alunos que demonstram seus esforços e seu desenvolvimento em uma
determinada área. Ele pode ser específico ou genérico, individual e acessível ao aluno e
ao professor. O portfólio pode ser usado para avaliar o processo de aprendizagem
(apresentações dos seminários durante as aulas).
Figueiredo (2005) desenvolveu uma pesquisa sobre a correção dos erros de
produções escritas feitas pelos alunos (turma de quinto ano do curso de Licenciatura em
Letras da Universidade de Goiás – 10 alunos participaram da pesquisa). Foram
desenvolvidas atividades de produção escrita como carta informal, biografia, resenha de
um filme e descrição de um lugar. As pessoas responsáveis pelas correções dos erros dos
textos eram os alunos leitores, os próprios autores dos textos e a professora.
Após o desenvolvimento da pesquisa, constatou-se que as correções dialogadas
ajudam a melhorar os textos escritos; os alunos fazem discussões sobre a produção dos
textos e reflexões sobre o processo de escrita. Como pontos negativos, o autor ressalta
que, muitas vezes, um colega não confia na correção do outro e nem sempre é capaz de
encontrar os erros no texto. Na visão da professora da turma, os alunos passaram a ver
o erro como algo natural e tiveram a oportunidade de expor seu texto aos colegas. Foi
constatado também que os alunos se sentiram desinibidos tanto na produção escrita
quanto na oral e se praticamente se tornaram mais autônomos na sua aprendizagem.
Finalizando esta parte do texto, é necessário falar da correção gramatical ou não
de um texto. Muitos professores se questionam até que ponto eles devem ou não fazer
correções gramaticais nos textos de seus alunos. Ferris (2004) também questiona essa

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MÔNICA SOARES DE ARAÚJO GUIMARÃES

correção dos erros feita pelos professores nos textos escritos de seus alunos. Ele afirma
que alguns estudos foram desenvolvidos sobre a correção ou não dos erros de gramática
nos textos, constatando:

 poucos são os trabalhos sobre correção do erro em Segunda Língua que


comparam a escrita dos alunos que receberam correção gramatical num
determinado período de tempo com aquela em que os alunos não receberam a
correção;
 os estudos não apresentam descobertas que são semelhantes ou que possam ser
replicadas em outros contextos;
 algumas predições podem ser feitas: o adulto precisa de instrução explícita
sobre seus erros para que estes não fossilizem; alunos que recebem uma
resposta para seus erros tendem a ficar mais cuidadosos nas suas revisões;
alunos tendem a apreciar respostas para seus erros, e isto faz com que se tornem
mais motivados para melhorar a sua escrita.

Ferris (2004) conclui que a correção dos erros é um componente necessário na


instrução escrita. Os professores devem incluir em suas aulas tratamento e resposta para
os erros dos alunos. Para níveis mais avançados, o professor deve incluir feedback indireto
para os erros dos alunos. O docente deve considerar também que diferentes tipos de
erros requerem tratamentos diferenciados. A revisão do texto pelos alunos após o
feedback do professor deve ser estimulada e, caso necessário, uma instrução gramatical
suplementar pode ser dada os alunos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção escrita é uma habilidade que precisa ser incorporada como uma
prática constante nas aulas de língua estrangeira. A referência para pesquisas e estudos
acerca dessa habilidade é vasta e extremamente rica, como se pôde verificar neste
trabalho.
Procurou-se fazer aqui uma breve reflexão sobre a construção de textos escritos
em língua inglesa. Verificou-se que o professor desempenha um papel importante na
produção escrita, entretanto ele deixa de ser o único público-alvo para o texto e passa a
ser um orientador, fazendo com que as tarefas sejam cumpridas de forma objetiva e clara.
Os colegas passam a assumir o papel de colaboradores e revisores dos textos uns dos
outros.
Cabe salientar que a escrita, nas teorias apresentadas neste estudo, é vista como
um processo e não mais como um produto final, pronto e acabado. Os docentes precisam
estar cientes de todos os aspectos que envolvem a produção escrita e motivar os seus
alunos na prática dessa habilidade. Os professores devem também oferecer recursos
modernos e informações que facilitem o processo de escrita para seus alunos.

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BREVE REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA
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