Silenciamento Foucault

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Foucault e indigenciação – as formas de

silenciamento e invisibilização dos sujeitos

Foucault and the impoverishment - the shapes of silencing and


invisibilization of subjects

Wellington Amâncio da Silva *

Recebido em:04/2015
Aprovado em:10/2015

Resumo: Este artigo apresenta uma proposta teórica e


conceitual sobre formas de indigenciação para além dos
aspectos econômicos na contemporaneidade. Escolhemos duas
das suas categorias, a saber, a invisibilização e o
silenciamento – como as condições discursivas e as práticas de
constituição do sujeito indigenciado. Normalmente indigente é,
grosso modo, um sujeito que vive em extrema carência
material, ausência de condições mínimas de salubridade e
conforto com meios próprios. No entanto, defendemos que há
formas de indigenciação mais complexas sobre os sujeitos
para além da objetivação econômica. Assim, apresentamos a
partir de uma perspectiva arqueológica, Foucaultiana (2002,
2007, 2008, 2010), a indigenciação como um afastamento
existencial onde a investidura da máquina da punição e da
vigilância encontra-se “desinteressada”. Disto, temos como
hipótese que a indigenciação ocorre a partir de duas
dimensões, a saber, a dimensão do silenciamento e a dimensão
da invisibilidade. A primeira dimensão fundamentar-se-ia pela
tríade: ausência de discurso, discurso como monólogo 1 e
discurso não considerado. Por sua vez, a segunda dimensão
definir-se-ia pela tríade: sujeito inconveniente, sujeito
ignorado e o não-sujeito.
Palavras-chaves: Foucault, indigenciação do sujeito,
silenciamento, invisibilização, discursos.

Abstract: This paper presents a theoretical and conceptual


proposal on ways to indigencing (indigenciation) beyond the
economic aspects nowadays. We chose two of its categories,
namely, the invisibility and silencing - as the discursive

* Mestrando em Ecologia Humana pela UNEB


Problemata: R. Intern. Fil. v.6, n. 3(2015), p 111-128 ISSN 2236-8612
doi:HTTP://dx.doi.org/10.7443/problemata.v6i3.24016
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conditions, and as the indigencing subject constitution
practices. Usually indigent is roughly a guy who lives in
extreme lack material, absence of minimum conditions of
health and comfort with its own resources. However, we argue
that there are more complex forms of indigenciação on
subjects beyond the economic objectification. Thus, we present
from an archaeological perspective, Foucault (2002, 2007,
2008, 2010), indigencing as an existential estrangement where
the investiture of the machine punishment and surveillance is
“disinterested”. From this, we hypothesize that the
indigenciação occurs from two dimensions, namely, the size of
silencing and the size of invisibility. The first dimension would
be based by the triad absence of speech, speech as speech
monologue and not considered. In turn, the second dimension
set would be by the triad subject inconvenient, ignored the
subject and non-subject.
Keywords: Foucault, indigence-action of the subject silencing,
invisibility, discourse.

Introdução

Dentre as múltiplas formas de silenciamento e de


invisibilidade do sujeito, talvez, as que menos provocam
interesse de pesquisa, sejam aquelas consequentes da
indigenciação. Pergunta-se se tal desinteresse decorreria da
“intangibilidade” do fenômeno: por sua “localização imprecisa”,
pela “volatilidade” da presença dos seus sujeitos, pelo seu
aspecto “ficcional” absurdo, por tipo característico de alienação.
Qualquer pesquisador perguntar-se-ia acerca do procedimento e
das ferramentas de pesquisa para auscultar o silenciamento e
trazer à luz o “fenômeno” da invisibilidade; parece haver aí uma
incongruência intrínseca às formas de indigenciação, mas é essa
incongruência, esse regime de aporia, essa opacidade. Ora, se o
indigente é, grosso modo, um sujeito que vive em extrema
carência material, ausência de condições mínimas de
salubridade e conforto com meios próprios, seus significados
estão circunscritos na dimensão do trabalho e do capital. De
todo modo, esse indigente ainda é, geralmente, incluído num
campo de generalidades cujo núcleo central é a loucura, em seus
matizes; disso, o indigente também é representado como
alienado em demasia da ordem social e histórica do mundo -
como um ser que “coexiste” em dimensões paralelas à realidade
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instituída, um espectro; aqui, para que fique claro, a
indigencição é uma invenção do próprio discurso,
ressignificando o humano a todo instante e ao longo da história,
tendo como base a toda essa ressignificação, as rupturas, as
descontinuidades pelas quais os sujeitos são submetidos. Os
caminhos que levam o ser humano à indigenciação é o que nos
interessa aqui – e sabemos que existem diversos níveis de
indigenciados que envolvem até as dimensões mais subjetivas
do ser; existem tipos parecidos, que dialogam, reforçam um ao
outro; existem tipos distintos de indigenciados, mais difíceis de
apreender 2, e estes são construídos através de um jogo de
sentidos e representações que convencionalizam-se nos
discursos - a este processo de invisibilização e silenciamento do
ser que denominamos indigenciação, que sustenta-se em três
dimensões discursiva, a saber, a do trabalho, da política e da
sexualidade. Destarte, esclarecemos que não suscitamos aqui
uma discussão apenas sobre o indigente comum, a formação
discursiva desse sujeito que evoluiu conceitualmente desde a
Antiguidade, ganhando algum status de asceta na Idade Média e
se tornando o “imprestável”, o lumpemproletariado após a
Revolução Industrial – sujeito que é uma negação á dimensão
“apenas” do trabalho. Queremos dar alguns passos à
anterioridade do fenômeno indigência e buscar entender sua
arqueologia, por meio dos sentidos que a constitui e tentar
desconstruir seus estereótipos, naquilo que Fredric Jamerson
denominou de “lugar de um superávit ilícito de significado”
(1994, p. 33-34), isto é, do estereótipo impreciso do homem
andrajoso, de roupa puída, pedinte, maltratado de aparência:
forma-sujeito cuja imagem pedagógica - apesar do
silenciamento imposto à sua voz humana, exorta-nos a não sê-lo.
No entanto, mesmo construindo cotidianamente um
distanciamento existencial da forma-indigente, atravessam
nossas subjetividades discursos e práticas de indigenciação tais
que vão, em maior ou em menor intensidade, nos atingindo,
determinando-nos como vítimas, ou como reprodutores algozes.
Portanto, temos como hipótese que indigenciação é um processo
de silenciamento e invisibilização para daqueles que negam para
si a adoção de tipos humanos existenciais constituídos
discursivamente no âmbito geral tridimensional, a saber, do
trabalho, da política e da sexualidade. O processo de
silenciamento compõe a tríade: ausência de discurso, discurso
como monólogo3 e discurso não considerado. Por sua vez, o
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processo de invisibilização estabelece tríade: sujeito


inconveniente, sujeito ignorado e o não-sujeito. Consideramos
como a causa principal da indigenciação, no século XXI, as
dimensões e processos acima citados. Disso postula-se que a
indigenciação é uma condição imposta que tem o caráter de
loucura social, isto é, de uma anormalidade individual dentro da
ordem coletiva; de uma alienação particular dentro do contexto
social comum; de desligamentos aparentes, mesmo estando
implicado à trama social.

Itinerário de pesquisa

Com efeito, propomos o procedimento arqueológico para


buscar compreender a indigenciação no domínio das práticas dos
discursos próprias, em seu jogo de regras, sobre os sujeitos
através desses sentidos “axiológicos” e suas práticas de verdade
em face da “complexidade que lhe é própria”. Nessa definição,
Foucault (2010) afirma que “a arqueologia busca definir [...] os
próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras [...]
mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar
frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém a
parte, a profundidade do essencial.” (p. 157) 4.
Deste modo, não sendo um “método formalizador, nem
interpretativo” (Ibidem p. 153), compreendemos que o
procedimento arqueológico é uma análise das origens do
conjunto dos enunciados que circulam nos discursos individuais
ou reunidos, como saber instituinte sobre um objeto e que, por
assim dizer, funda o próprio objeto em suas condições e
possibilidades de existência, num conjunto de regras que
determina-lhe uma veracidade discursiva, a partir de certos
“indicadores de verdade” (2002, p. 27). Devemos nos ater a
esse aspecto ontológico do sujeito, isto é, seu ser reconhecido,
constituído e inteligível no âmbito dessa materialidade do
discurso “na qualidade de monumento” do discurso, dessa ponte
entre práticas discursivas constituintes e sujeito aí fundado,
objetivado, edificado discursivamente, no âmbito de uma
inteligibilidade condicionada ao reconhecimento da verdade.
Para Foucault (2001, 2004, 2010), é preciso saber os começos
dos saberes sobre os objetos (sujeitos), levando em conta os
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cortes ou descontinuidades do discurso e como o sujeito
“aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de
sujeito que conhece [...]” (2007, p. 430). Disso, a arqueologia, é
compreendida por Foucault (2010) como um termo que pretende
destacar “[...] o tema geral de uma descrição que interroga o já
dito no nível de sua existência” (Ibidem, p. 149). Em nosso caso,
ao investigarmos os sentidos atribuídos aos objetos (e aos
sujeitos), a arqueologia da indigenciação indicaria as estruturas
de sua plataforma discursiva, historicamente situada,
socialmente aceita e reproduzida como veracidade - visto que há
um discurso sobre determinado objeto e, em outro momento,
outro discurso constituinte sobre o objeto; com efeito, está claro
para nós um movimento de interesses rumo ao objeto bem como
a constituir-lo em certos significados; por causa disso, antes é
preciso saber que, segundo Foucault, o discurso é, pois,
“constituído de um número limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência”
(Ibidem, p. 132-133). Por conseguinte, as formas-sujeitos são
ressignificadas e reconstruídas dentro desses contextos
discursivos; Assim, em vista das intercalações de sentidos e de
representações entre os sujeitos indigentes, indigenciados e a
loucura como discursos que os atravessa, pensamos estar diante
de um elaborado conjunto de condições existenciais próprio.
Dito isso, pretendemos com o procedimento arqueológico
estudar as formas de indigenciação através dos discursos em ao
menos dois aspectos: de onde provêm as práticas de
silenciamento e de invisibilização do “sujeito”. Queremos deixar
claro que ao tratarmos de formas-sujeitos, abordamos-lhas
diretamente, ao tratar dos indigenciados, o fazemos por meio de
uma observação oblíqua na tentativa de, neste artigo, não
tentarmos criar mais uma forma-sujeito, uma representação, um
discurso de dominação.

A forma-sujeito e a sua constituição histórica

Foucault (2002, 2007, 2010) analisa as formas de


pensamentos através dos discursos e como são postos em atos e
enunciados pelos sujeitos em cada tempo histórico determinado.
Os discursos são formas de articulação, entre os sujeitos, dos
modos de ser e de saber em condição ao que pode ser dito ou
não dito, num plano contextual, isto é, em dado local, situação e
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em face de direitos discursivos conquistados; segundo Foucault,


de determinar “seu titular” (2010, p. 56). Por conseguinte, é de
determinado saber constituído, saber esse incorporado como
jogo de verdade pelo próprio sujeito (sujeito discursivo), que se
pode tomar posição para enunciar seus significados, isto é, para
articular conceitos, sentidos e representações acerca dos objetos,
tomando-os num momento que é histórico, em sua forma
estática de significação, defendendo-os de fora e para fora, bem
como incorporando a si, constituindo-se por meio de certos
discursos aos quais crê ter a chancela para articulá-los como
verdades, num jogo que se define por possibilidades de
utilização e de apropriação de conhecimentos e saberes
suscitados pelos discursos – nestas condições os sujeitos são
constituídos. Em outras palavras, o discurso é “um conjunto de
regras anônimas, históricas sempre determinadas no tempo
espaço, que definiram em uma dada época, e para uma área
social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições
de exercício da função enunciativa”. (Ibidem, 2010, p. 133).
Em síntese, os discursos são modos de objetivação: uma
das finalidades pela qual se enuncia. Constituintes de
representação, de agrupamento e de catalogação dos sujeitos,
como imagens, formas, configurações em tipos similares e
dessemelhantes a partir de “figuras” (“psiquiatria” ou “economia
política” ou” história natural”), por exemplo (Ibidem, p. 154).
Segundo Woodward (2000, p. 17-18):

[...] os discursos e os sistemas de representação


constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos
podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.
Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica
da publicidade ajudam a construir certas identidades de
gênero. Em momentos particulares, as promoções de
marketing podem construir novas identidades [...].

Por sua vez, essas formas expressas e significantes de ser e


estar do sujeito são subjetivadas pelos mesmos sujeitos – a
subjetivação define a constituição do sujeito moderna; em outras
palavras, também o discurso esvazia o objeto, trazendo para si
um simulacro como subjetivação do objeto reduzido em ideia –
tal processo é uma forma de violência. Mas, esse instrumental
não é perfeito: circula nos discurso e nele reside uma quase
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imperceptível anomia, isto é, um distanciamento intrínseco ao
procedimento de apreensão da análise e uma simulação de
aproximação equivocada pela significação: amalgama entre o eu
do discurso e a alteridade do objeto. Nessa perspectiva de
“história das idéias”, “trata-se da disciplina das linguagens
flutuantes, das obras informes, dos temas não ligados. Análise
das opiniões mais que do saber, dos erros mais que da verdade;
não das formas do pensamento, mas dos tipos de mentalidade”
(Ibidem, 2010, p. 155). Mesmo sendo tudo o que possuímos para
comunicar, os discursos são subjetivados sempre numa
perspectiva em vias de um equívoco em si mesmos, para dizer e
significar quem é o outro, ou para convencionalizar os sentidos
de si. Um exemplo disso, consta num texto de Foucault:
Cometeríamos um erro, seguramente, se perguntássemos
ao próprio ser da loucura, ao seu conteúdo secreto, à sua verdade
muda e fechada em si mesma, o que se pôde dizer a seu respeito
e em um momento dado; a doença mental foi constituída pelo
conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a
nomeavam, recortavam, descreviam, explicavam, contavam seus
desenvolvimentos, indicavam suas diversas correlações,
julgavam-na e, eventualmente, emprestavam-lhe a palavra,
articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus.
(2004, p.36).
As representações de uma alteridade impossível de ser
enunciada com precisão - de saber seu ding an sich, a coisa em
si -, só podem ser assumidas por sujeitos que adotem para si
estas representações, como sujeitos constituídos por elas, como
formas-sujeitos de um discurso. Desse sentido também, a
loucura poderia ser tomada como uma metáfora ao hermetismo
contido em determinadas tentativas de significar por meis dos
discursos, como um problema relacionado à alteridade do objeto
do discurso.
Isso ocorre porque há na linguagem, especialmente em seu
aspecto inerentemente polissêmico, dimensões contraditas: os
antagonismos da loucura em face da norma, o auge do
“desatino” ordenado em “racionalidade” discursiva; pretensões
desta norma em alcançar a loucura - por meio das assepsias das
ideias, da descrição e da análise -, sem enlouquecer, isto é, de
trazer algum registro decalcado da superfície desse objeto-
loucura, catalogar e descrever as Figuras da loucura como uma
projeção daquilo que não deseja ser (Foucault, 2008, p. 251); as
representações da alteridade do objeto, que se não possuir uma
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linguagem, uma condições de oferecer inteligibilidade


discursiva, ou de estar alienado do próprio discurso, é estudado
em sua forma passiva, como uma ideia do que possa vir a ser
seu objeto5: a forma sujeito indigenciado, (assim como do
louco), ser que, por assim dizer, escapa dos modos de
“vigilância” e “punição” (Foucault, 2012) – essas duas concisas
expressões da norma-lidade, da racionalidade do Νομος.
Temos até aqui, a loucura em seu hermetismo
despretensioso, a indigência como uma condição
predominantemente econômica e os processos de indigenciação
como representações e ao mesmo tempo como prática: discurso
que tenta convencionalizar os sujeitos não claramente
traduzíveis, de difícil apreensão em objetos e, ao mesmo tempo,
procedimento de ostracização desses sujeitos que não se
permitem objetivar – e aqui objetivar é muito menos alcançá-los
por meio de alguma descrição, ou retirar-lhes algum sentido,
mas, muito mais enquadrá-los em um repertório, em um
contorno de objeto, em um perfil, dentro do universo imaginário
daquilo que o discurso diz ser o louco, o indigenciado;
normalizar a alteridade dentro do “espaço limitado e definido”
da egocentricidade do discurso da loucura e da indigência.
A indigenciação é talvez a última tentativa de
normatização do sujeito em ser inteligível, constituído, na
tentativa de delimitar claramente a loucura e a indigência desses
sujeitos do aqui e agora. Diferentemente, a indigência é a
normatização do que outrora denominou-se de
Lumpenproletariat, da forma-sujeito improdutivo, do sujeito
indiferente e indiferenciado. De tal modo que, segundo as
perspectivas industriais da Modernidade do século XVIII, o
louco em si mesmo, o “sujeito” da mão-de-obra caótica como o
indigente, o louco para o social, designaram uma generalização
estabelecendo-o como um modo radical de sujeito improdutivo.
Apenas nos sanatórios, o louco produz para o Estado, sem o
saber, tornando-se dentro desse espaço de controle uma forma-
sujeito no limite de sua deformação, aparado em suas arestas
afiadas pelos psicotrópicos, sempre um amálgama na fronteira
entre custo e benefício, em vista do lucro pela manutenção da
loucura em seu estado pacífico; por sua vez, o indigente
reproduz uma imagem modelo, como uma profunda exortação
àquilo que não se deve ser; nessa perspectiva “industrial” o
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indigente nos ensina, por negação, que devemos produzir e, a
reprodução para o Capital é um primado da norma. Em outras
palavras, queremos dizer que a indigenciação é uma forma de
discurso que suscita similitude entre loucura e indigência e que
delibera práticas sociais de invisibilização e silenciamento que
alcançam, sobretudo, sujeitos estereotipados como
improdutivos, e, segundo Foucault (2002, p. 9), aqueles que se
emolduram nas regiões discursivas “interditadas” da
“sexualidade e da política”.
Os indigenciados não despertam interesses como objetos
do discurso, ocorrem na periferia dos discursos, mesmo que
deste não escapem de todo. Os discursos, mínimos, representam-
lhos como opacidades; o silenciamento se efetiva pela
insensibilidade temática – uma constante no Ocidente, um modo
de seletividade e depois esquecimento. Se segundo Foucault,
[...] a unidade do objeto “loucura” não nos permite
individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre
eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante (2004,
p.36), a indigenciação é uma tentativa de tomar como unidade
um conjunto de enunciados que categorizam um tipo de discurso
onde o objeto da indigenciação é nesse processo esquecido
como função mesma de objetivação. Por causa disso, a
indigenciação é também uma aporia, um contrassenso: falar e
descrever minimamente aquilo que é o objeto do seu “interesse”
no limite da mudez, da discretez, da sua fragilidade
significativa, isso, para não suscitar um foco, sua atenção. A
indigenciação do sujeito, em sua função hermenêutica, o
enquadra negativamente ao associar seu modo de ser e estar às
representações tendenciosas localizadas nas instancias da
anormalidade: da improdutividade, da irregularidade sexual e
disposições e de sua condição políticas contraditória.

Silenciamentos e invisibilizações

Foucault nos interroga ao utilizar um exemplo de um


objeto quase hermético, a expressão bruta de uma alteridade, o
sujeito louco: “se perguntássemos ao próprio ser da loucura, ao
seu conteúdo secreto, à sua verdade muda e fechada em si
mesma, o que se pôde dizer a seu respeito e em um momento
dado” (2004, p.36). Nisso encontramos uma aporia dentro das
condições de circularidade dos discursos, isto é, das
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possibilidades de chancela ou da interdição de um discurso


verdadeiro ou que contenha uma verdade (Foucault, 2002), isto
é, sempre o que se diz sobre o indigenciado é uma anulação da
sua alteridade discursiva; o exemplo do anti-discurso que advém
ao próprio louco é significativo para demonstrarmos aqui, em
forma de hipérbole, como a indigenciação é, especialmente, a
interdição de um discurso muitas vezes corporificado no próprio
indigenciado que some na ausência do “seu” discurso ao mesmo
tempo em que aquilo que é permitido saber sobre ele, o discurso
que foi chancelado é outra coisa. Sobre o louco ou o indigente,
por exemplo, a questão mais importante que levantamos é o que
ele diz de si, da sua alteridade, para nós, não pode ser aniquilado
pela linguagem, pelos discursos; sua existência como tal é em si
mesma um discurso-outro, que por si só fala de tal maneira
como uma expressão de autônoma absurda em face do mundo
constituído, como sua negação radical dita em alfabeto próprio,
que não se permite objeto, cujo rizoma permeia toda a
humanidade, transcendendo o ser da linguagem6.
Da indigenciação como forma de silenciar, as
possibilidades predicativas do ser do sujeito seriam fundadas
através de práticas discursivas que sobre ele mesmo incidem,
dizendo quem ele é e o que ele não é a partir dele mesmo,
quando adotadas essas possibilidades predicativas; constitui-lhe
a base de onde decorrem as formas de interferência da sua
subjetividade, intervenção das suas vias de auto-objetivação7;
isso se daria através de três condições de silenciamento: da
ausência de discurso, do discurso como monólogo e do discurso
não considerado. Estas condições decorrem de: a) os discursos
tomam o ser como objeto-outro e constitui-lhe um aspecto
ontológico definido, convencionalizado e padrão, aproximando-
o do sujeito de um discurso e não como sujeito que discursa; b)
aquilo que diz respeito ao sujeito em sua forma histórico
inteligível, portanto, delimitada: o sujeito cidadão, o sujeito que
trabalha, o sujeito democrático, o sujeito participativo, o sujeito
político, são formas discursivas positivas, que não partem de
nenhuma tentativa de suscitar ou “permitir” sua própria
alteridade, mas de compendiá-lo, narrá-lo, consolidá-lo ratificá-
lo e descrevê-lo em seu ego e seu alterego dentro dessa forma
histórica. Isso visa circunscrever os sujeitos indigenciados a um
discurso como monólogo; c) o sujeito do discurso – aquele que
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“toma para si” a autoria de um discurso -, subjetiva um conjunto
de sentidos, por exemplo, sobre a loucura, “no grupo de todos os
enunciados que a nomeavam, recortavam, descreviam,
explicavam, contavam seus desenvolvimentos, indicavam suas
diversas correlações” (Foucault, 2004, p.36); esta adoção
categórica, este marco de orientação, como uma alteridade
plástica, diz o que o sujeito-outro não é, por não considerar seu
discurso. Temos aqui uma forma de subjetivação dos sentidos,
adoção dos discursos sobre o que é um modo de ser e estar
enquanto sujeito tal em sua “forma recente” (Foucault, 2007, p.
536). Assim sendo, a indigenciação é, antes de tudo, uma
extrusão das possibilidades de identidade; é estar banido dentro
mesmo de um sistema, de um topos, de um agrupamento
humano. Nos três processos, o discurso atuar sobre a
constituição dos sujeitos e traz a memória o labor das Moiras
gregas8, as fiandeiras que tecem a regularidade da vida, que as
artificializam impedindo qualquer aspecto de
contingencialidade.
Estão muito claros, no transcurso textual deste artigo,
alguns exemplos de silenciamento e invisibilização. No entanto,
como um ensaio, delimitamo-los aqui, por meio de algumas
categorias de análise, no sentido em que a invisibilização
estabelece em uma tríade: sujeito inconveniente, sujeito
ignorado e o não-sujeito – tais que, baseado em Foucault,
constituem o “sujeito elidido” (2007, p. 21). Com a licença pelos
aspectos, sobretudo descritivos e propositivos desta sessão,
pensamos que a invisibilização ocorre na condição onde o
sujeito antes foi silenciado – ele perderia progressivamente a
chancela de enunciação porque não comportaria, ao menos
figurativamente, as condições discursivas como agente de uma
verdade adquirida. Não possui um topos discursivo, ou seja, não
foi subsumido numa instituição; não se justifica pela adoção de
uma aparência legível e relacional a priori, por assim dizer,
normal - naquilo que a compõe e que facilite, por meio de
símbolos convencionalizados, sua associação a um grupo; nem
currículo que legitimem sua modalidade de enunciação, ou
quando sua compleição étnica desentoa da sua profissão e
carreira. Com efeito, ao indigente restar-lhe-ia um discurso que
possui como núcleo o apelo da mendicância, o pedido como
discurso monótono, recorro não convincente; ao assalariado
despolitizado9 a reclamação não considerada; ao que vivencia
uma sexualidade característica a recusa, o abandono, e a noite
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não com festa, mas como opacidade; ao opositor político a


atribuição da infâmia, a demonização. Destarte, esse membro
“desigualizado” entre iguais lembra-nos um palimpsesto, e faz
circular de modo aparentemente inofensivo. O sujeito
inconveniente institui, ou sobre ele é instituído, estigmas que
pontuam significados de negação nas “regiões onde a grade é
mais serrada e os buracões negros se multiplicam, [...] as regiões
da sexualidade da política” (Foucault, 2002, p. 9) e ainda, a
região do trabalho. Esse percurso transforma-o paulatinamente
em um ignorado na paisagem cotidiana e, quando “visto de
relance”, desperta algum tipo de mal-estar, às vezes sutil, banal,
ignorado, como no caso do indigente que, para alguns se
assemelha mais a uma falha na arquitetura urbana ou um hiato
no cotidiano social. O não-sujeito é uma contradição ou negação
do sujeito constituído em seu caráter funcional – mesmo o
louco, “organizado” num estado de loucura em que se pode
manipular, dentro da orla do sanatório, é um sujeito sempre em
constante transição com o não-sujeito; o indigente tirado de
circulação normal (partindo daquilo que perceptivelmente deve
circular como figura da normalidade), porque sua presença
destoa demasiadamente da paisagem organizada ainda é
recebido côo sujeito de alguma coisa; torna-se um não-sujeito
quando sua presença caótica é vista com similar à ordem caótica
dos lugares de arquitetura abandonada, topos onde a paisagem
predominante é apresenta detrito, lixo etc. - e o que ele tem a
dizer sobre tudo isso? Os modos de subjetivação nem o define
bem nem “formata” eficientemente, isto é, ele não se sujeita
facilmente a um regimento discursivo específico por sua
localização existencial oscilante, às além das margens de sentido
constituintes. O louco e o indigente, entes destituídos de
discurso, são, por assim dizer, corpos-discursivos que
“vociferam” inconveniências profundas, quando pressentidos no
cotidiano.

Formas de indigenciação do sujeito contemporâneo

Talvez para além de hipóteses, pode-se encontrar os


fenômenos que constituem um processo de indigenciação entre
certos grupos de sujeitos, especialmente, aqueles diferenciados
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segundo certos “caracteres produtivos” 10, isto é, sujeitos
diferenciados e subsumidos ao grupo dos “improdutivos” – e
não é regra geral que apenas o indigente típico seja um
improdutivo; pode-se enquadrá-los11 - de forma sempre
susceptível ao preconceito e ao equivoco, visto que percorre às
ausências discursivas12 -, em categorias tais como exclusão e
marginalização. Nesses aspectos, denominamos de processos de
indigenciação excludentes e de processos de indigenciação
marginalizantes 13. No âmbito dos discursos que agenciam as
representações de trabalho produtivo ideais, são excluídas por
esses discursos e práticas de indigenciação excludentes, pessoas
que não se enquadram ao estereótipo ideal do sujeito
producente: com efeito, são assinaladas discursivamente em
categorias discriminatórias de idade, aparência, compleição 14,
etnia, grau de instrução (entre grau de formação acadêmico 15) e
ausência de letramento, tipos de produção 16, poder econômico 17,
entre outros exemplos.
Os processos de indigenciação marginalizantes tomam
forma a partir dos discursos que interditam certas práticas
existenciais, a partir de interpretações morais majoritárias,
religiosa, científica e filosófica, acerca de padrões normativos
permitidos, dentro das “regiões da sexualidade e da política”
(Foucault, 2002, p. 9) - no final das contas, são práticas
existenciais não reconhecidas como corroborativas ao modelo de
sujeito producente no âmbito das demandas contemporâneas do
Capital, ou ainda, não são suscetíveis de generalização e de
imitação para fins econômicos, como estereótipos consumíveis
da cultura e da mídia (Kellner 2001; Gripsrud 2002; Paiva,
2002; Hall, 2013; Sauvageot, 1987), enfim, não podem ser
enquadrados como força útil, corpo produtivo e submisso
(Foucault, 2012, p. 29). Esse regime de marginalização - das
características não aceitas como forma-sujeito ideal 18 dentro dos
aspectos da sexualidade e da política -, é mais contundente
quando associado a outros aspectos culturais reprováveis em
estereótipos de aparência, de compleição, de etnia, de idade, de
grau de instrução, de poder econômico, etc. Destas condições,
certamente podemos entender a indigenciação e talvez pensá-los
como não-sujeitos19, visto que sua figura e seu conteúdo podem
não enquadrarem-se em nenhum modelo satisfatoriamente
constituído.

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Algumas considerações acerca da indigenciação

A indigenciação é uma prática de abandono premeditada,


por vezes, estratégica – não apenas em seus aspectos de hiper-
exclusão econômica, isto é, da alienação social do bônus e do
ônus econômico, por meio de um “tire-o da frente para que haja
laissez-passer...”, muito secundário aqui. A indigenciação
consiste, especialmente, em um afastamento existencial da
participação do mundo e do outro, quando nem sob a tolerância
permite-se alguma aproximação; nem a possibilidade de uma
tolerância aí exerceria algum tipo de diálogo no limite? Diante
desta invisibilização e silenciamento, a ausência quase total de
consenso não suscita um conflito porque, ao menos, uma das
partes acredita num valor maior que a tolerância/intolerância,
porém, valor maior assaz abstrato: um valor (de logro)
compensador desta proximidade apenas física, regional, entre os
sujeitos - como ocorre no caso do louco e raramente no caso do
indigente20. Mas, não há tolerância ou intolerância nos processos
de indigenciação – há, por assim dizer, uma indiferença, uma
falta de interesse pelo outro. Assim, é de pensar-se que ele
“coexista” em dimensões paralelas à realidade instituída, um
espectro. Como pessoa humana, sua condição de indigência é o
resultado direto das impossibilidades sociais que sobrecaem-lhe,
ao tempo em que as tais distanciam-lhe do alcance visual, das
possibilidades de inclusão: quando entrevisto, presença
indesejável; por ser um ente desconsiderado, quase fantasma no
cotidiano.
Acreditamos que a indigenciação decorre através das
práticas discursivas de opacidade do sujeito que não interessam-
se em apreendê-lo em definitivo, mas deixá-lo em “suspenso”,
no limítrofe entre existência e inexistência, entre corpo-discurso
que exorta-nos a não sê-lo e espectro do cotidiano, ser
imperceptível – aqui, uma espécie de equilíbrio de interesses
entre dizê-lo e não dizê-lo, entre clarificá-lo e obscurevê-lo.
Portanto, mesmo construindo cotidianamente um distanciamento
existencial, atravessam nossas subjetividades discursos e
práticas de indigenciação tais que atuam, em maior ou em menor
intensidade, atingindo-nos e determinando-nos como vítimas, ou
como algozes reprodutores desse tipo característico de morte
social.
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1 Os autores objetivam transformar o discurso como monólogo em discurso
entrevistável (discurso agora considerado), de modo a fundamentar o tipo de
indigência aqui pretendido.
2 E é aqui que reside um risco inerente a própria linguagem, a saber, a de

constituir sentidos para o ser tornando-o forma-sujeito específica que


funciona como um modelo muitas vezes hegemônico, um modelo que reforça
os modos de ser e estar instituídos aos sujeitos numa sociedade que cristaliza
o status quo, que impõe maneiras didáticas de pensar e se comportar
constituindo assim um leque de formas-sujeitos que funcionam (perdoe-nos
pelo exemplo assaz cartesiano) como engrenagens funcionais dentro de uma
maquina.
3 Os autores objetivam transformar o discurso como monólogo em discurso

entrevistável (discurso agora considerado), de modo a fundamentar o tipo de


indigência aqui pretendido.
4 Grifo nosso.
5 Para Foucault o sujeito é constituído através dos diversos discursos; nisso

o sujeito é objeto do discurso; é objetivado por meio de constituições


linguísticas específica, por exemplo, de uma área do saber: o sujeito da
antropologia, o sujeito da história, o sujeito da pedagogia, o sujeito da
psiquiatria, entre outros.
6 Expressão muito precisa anterior às expressões constituintes: “ser

humano”, “homem”, “indivíduo”, “sujeito”, “ator”, “pessoa”, etc. Tal


expressão sintetiza a forma-sujeito primordial no Ocidente, advinda de
Aristóteles: λόγονδὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων, “dentre todos os seres
vivos, apenas o homem possui palavra”. ARISTÓTELES, 1998, a 9-10, p. 55.
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7 Como questões gerais da Filosofia, as tradicionais: “de onde vim”, “para


onde vou”, se tornaram quase obsoletas e face do que a dificílima questão
“o que sou”, cada vez mais complexa – suscitando para muitos sujeitos
pensantes aquilo que poderíamos denominar de ceticismo ontológico ou de
outro ponto de vista muito suspeito, de niilismo existencial.
8 As Μοῖραι (Moiras) são: Κλωθώ (Cloto), responsável por fia a vida;

Λάχεσις (Láquesis), responsável por sortear os fios que determinam o


destino, é a divindade da "predestinação"; Ἄτροπος (Átropo), responsável
por cortar o fio da vida.
9 Despolitizado como aquele que não sabe reivindicar dentro de certas

normas, que não protesta formalmente, isto é, que não insere sua exigência
no âmbito do justificável, da legalidade, de maneira que materialize em seu
discurso tanto a defeca da lei ao seu favor como o merecimento dela por seus
atributos funcionais, de desempenho como mão-de-obra. Despolitizado
também no sentido de oposição e resistência, ou mesmo contra-hegemônico.
10 Por assim dizer, “modo de produção”, onde se inclui as dimensões

subjetivas e objetivas do trabalho.


11 Num âmbito cartesiano, enquadrar é sempre catalogar, prender, fixar,

cristalizar, esvaziá-los de sentidos, visto que, neste caso, sentidos ocorrem


em uma dinâmica contextual no mundo, lugar dos acontecimentos ligados
aos sujeitos, como aquilo que os move e como aquilo que estes elaboram,
mediam, compartilham.
12 O indigente é diferente do louco, em cujo “sujeito” foi construído um

papel econômico nos sanatórios através do regime de dependência e, por


isso mesmo, interessam-se de saber o que ele é por ele mesmo, pelas
tentativas clinicas de transladar seu discurso hermético. Ao indigente não se
permite um discurso, nem a este é suscitado interesse. Percebemos no
indigente as ausências de um discurso – muito embora ele seja mesmo o
próprio discurso, um corpo discursivo de um discurso outro.
13 De fato, exclusão e marginalização aparentam ser uma mesma coisa. No

entanto, aqui, queremos considerar exclusão como o afastamento dos


sujeitos dos seus próprios direitos dentro da tipologia do trabalho
desvalorizado, muito embora eles estejam dentro da sociedade, porém,
experimentando condições de indignidade; os sujeitos excluídos podem
despertar interesses de exploração - apesar de pouco considerados - estão
“à vista”, são observados, entram nas estatísticas, escreve-se sobre eles. O
processo de marginalização é, sobretudo, mais radical, pois, expulsa os
sujeitos do centro para a margem da sociedade, silenciando-os e
invisibilizando-os. Sujeitos marginalizados geralmente são postos numa
dimensão social espectral. Antes, eles são enquadrados categoricamente nas
tipologias negativas, portanto, não aceitáveis, da sexualidade e da política.
14 Tomamos aparência como à figura culturalmente constituída pelos trajes e

ornamentos que apontam para culturas periféricas; compleição como uma


constituição genética que aponta para feições étnicas diferentes do biótipo
europeu (homem+jovem+anglo-saxão/ariano).
15 O caso dos professores das séries iniciais no Brasil desmistifica o aspecto

majoritário da variável condicionante “formação acadêmica” como mérito,


conditio sine qua non de ascensão social e econômica. Aqui, nos parece, que

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um tipo de produção “aquém” das demandas materiais imediatas do Capital


financeiro instituído, denotaria e conotaria algum tipo de improdutividade?
16Na contemporaneidade, nas perspectivas deontológicas do trabalho

capitalista, por exemplo, a adjetivação “sujeito improdutivo” não


corresponderia ao sujeito que nada produz, como o indigente; certamente a
nulidade social do ser do sujeito improdutivo decorra da ausência de uma
forma de produção monetária visível ou ostentativa, justificada por meio dos
seus discursos específicos. Aí a materialidade do discurso estaria, por
exemplo, contida na forma mesma dos bens materiais - em sua aura de valor
em face de classe social e do fetiche da marca (grife) -, adquiridos dentro de
regras e de mérito específicos em vista de status social e, a partir de
representações que legitimam a posse de bens, tais como certos cargos e
profissões de grande poder no imaginário social – tais ofícios constituem em
si a materialidade do discurso da forma-sujeito-produtivo. A ausência de
possibilidade de produção é, pois, a ausência de certos bens materiais e da
alcunha de certas profissões financeiramente “invalidadas” socialmente: Zé
artista plástico, Maria feirante, Pedro artesão, José das esculturas, etc. -
percebamos aqui a ausência dos títulos antes do nome próprio e da troca do
sobrenome pelo ofício.
17 Aqui simplesmente como a capacidade visível de obtenção e consumo de

bens.
18 Aqui, lembramos de Adorno: “escrever poesia depois de Auschwitz é um

ato de barbárie” (2003, p. 281). Qualquer escrita é dificílima em face das


vítimas, há uma ousadia que envergonha o escritor, seja de poesia, de prosa
ou de texto científico. Porém, a denúncia é uma condição, talvez, de nos
envergonharmos menos. No Brasil, temos o nosso “Acontecimento” que
impossibilita a poesia e, tratar dele aqui nos envergonha porque a escrita é
sempre fria, esvaziativa, enquadrativa, generalizante e de pouco alcance em
face da totalidade dos fatos. Fazemos aqui movido pelo desejo de denuncia,
mas antes de tudo, pedimos desculpas por fazê-lo do nosso “lugar de
conforto” acadêmico...
19 E há alguns aspectos libertários “em erupção”, entre o limítrofe da crise

existencial e social e a satisfação de si.


20 Na Antiguidade a prática da caridade considerava menos o indigente e

mais o temor aos deuses, visto que a caridade funcionava para aplacar sua
fúria. Na Idade Média o indigente também não era propriamente o sujeito
central desta prática, mas um meio de se obter o perdão e a misericórdia de
Deus. O indigente minimamente atendido em sua necessidade servia mais
para justificar o sujeito caridoso.

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