Miolo - Migração e Diversidade Cultural
Miolo - Migração e Diversidade Cultural
Miolo - Migração e Diversidade Cultural
Porto Alegre
1ª edição
2021
M636
Migração e diversidade cultural na narrativa brasileira contemporânea
/ organizado por Maria Zilda Ferreira Cury, Cimara Valim de Melo. - Porto
Alegre, RS : Zouk, 2021.
244 p. ; 16cm x 23cm.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5778-035-0
CDD 869909
2021-2723 CDU 821.134.3(81).09
direitos reservados à
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Caminhos. São eles que formam o elo entre o migrante, seu antes e
seu depois. Por vezes, caminhos de pedra, áridos; por vezes trilhas a serem
abertas pelo sujeito que os descobre como possibilidade. Sempre, redutos de
passagem, resistência e (des)encontro. Vitor Ramil (2008, p. 268) relata a “dor
dos caminhos”, que, ao mesmo tempo, comporta beleza e perversidade. É ela
– a dor – principal matéria-prima para a produção literária brasileira con-
temporânea, a qual tem explorado amplamente fluxos migratórios, desloca-
mentos bem como migrâncias internas e suas consequências socioculturais e
individuais. Frente à diversidade que emana desses trânsitos humanos, cada
vez mais intensos no novo milênio, o presente livro busca oportunizar um
conjunto de investigações, atuais e abrangentes, acerca do modo pelo qual a
narrativa brasileira tem representado condições de migrância – vista, na con-
cepção de Pierre Ouellet (2005), como uma passagem ao outro, que transpõe
limites e vai além, infringindo leis por meio da conjunção entre movimento e
mudança. Seja por meio da problematização de identidades que transcendem
fronteiras, pela expressão do diaspórico e do exílico a promover o olhar sobre
a outridade, ou pelo reflexo das transformações geoculturais no humano, a
literatura nunca esteve tão conectada aos deslocamentos transnacionais e a
suas implicações para a dissolução da dicotomia local x global; nesse contex-
to, espaços são redimensionados, dando lugar à diversidade, mas também a
desigualdades e marginalidades.
O fenômeno da migrância carrega em si subjetividades. A palavra traz
consigo a ambivalência entre suas dimensões: uma mais concreta, que expres-
sa a mobilidade geográfica que a acompanha; outra simbólica (OLIVIERI-
GODET, 2010, p. 195), que inclui resistência do indivíduo face ao lugar
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BAKHTIN, Mihkail. Speech Genres and Other Late Essays. Tradução: Wern McGee.
AustIn: University of Texas Press, 2013.
CANCLINI, Néstor García. O mundo inteiro como lugar estranho. Tradução: Larissa
Fostinone Locoselli. São Paulo: Edusp, 2016.
CHAMOISEAU, Patrick. Frères migrants. Paris: Seuil, 2017.
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Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estu-
dos culturais. 15.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
LACLAU, Ernesto. New Reflections on the Revolution of Our Time. Londres: Verso,
1990.
OLIVERI-GODET, Rita. Errância, migrância, migração. In: BERND, Zilá (org.)
Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre:
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ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo.
São Paulo: Boitempo, 2015.
OUELLET, Pierre. L’esprit migrateur: essai sur le non-sens commun. Montréal: VLB,
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RAMIL, Vitor. Satolep. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn.
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15.ed. Petrópolis:
Vozes, 2014.
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Eurídice Figueiredo1
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2 A MINUSTAH foi bastante criticada devido aos abusos cometidos e, sobretudo, à violência
da repressão na Cité Soleil em 6 de julho de 2005, quando 63 pessoas foram mortas. O General
Augusto Heleno, então comandante, foi substituído pelo governo, o que muito o irritou. A mis-
são foi encerrada pela ONU em 2017.
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3 O escritor haitiano, que mora no Canadá, estava em Port-au-Prince para participar do fes-
tival Étonnants Voyageurs, tendo escrito essa crônica no calor da hora.
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1 Doutora em Letras (UFRGS), com pós-doutorado realizado junto ao King’s Brazil Institute
(King’s College London). Professora de Letras do Instituto Federal de Educação, Ciências e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Canoas. E-mail: [email protected].
2 A música “London, London” pertence ao álbum Caetano Veloso (1971), gravado na
Inglaterra durante seu exílio devido à ditadura militar (1969-1971).
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3 No original: “[…] in the spatial world of real bodies the extraordinary demographic displace-
ments of mass migrant workers and of global tourists invert this individual solipsism to a degree
unparalleled in world history” (JAMESON, 1992, p. 363).
4 No original: “What must be mapped as a new international space of discontinuous historical
realities is, in fact, the problem of signifying the interstitial passages and processes of cultural diffe-
rence that are inscribed in the ‘in-between’, in the temporal break-up that waves the ‘global’ text.”
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– Take care, stupid! Take care of my carpets! They are very-very expensive!
Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago um cigarro (ameri-
cano). But, sometimes, yo hablo también un poquito de español e, if il
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O “estar perdido” que abre e fecha a narrativa pode ser percebido como
consequência da disjunção a acompanhar o migrante em sua condição de es-
trangeiro. Como propõe Bhabha (1994, p. 310), é somente pela cisão e pelo
deslocamento do “eu” descentrado e fragmentado que a representação do in-
divíduo emerge como parte de um todo social marcado pela ambivalência.
Nesse sentido, o narrador de “London, London” expressa, em diversos mo-
mentos, a sua posição deslocada, bem como a ânsia por um lugar de per-
tencimento: “Mon cher, apanhe suas maracas, sua malha de balé, seus pratos
chineses apanhe todos os pedaços que você perdeu nessas andanças e venha
para o meu tapete mágico” (ABREU, 1996, p. 47). Tal busca se transforma em
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Agora custo um pouco mais caro e meu preço está sujeito às oscila-
ções da bolsa internacional. Quando você voltar, vai ver só, as pessoas
falam, apontam: “Olha, ele acaba de chegar da Europa”, fazem caras e
olhinhos, dá um status incrível e nesse embalo você pode comer quem
quiser, pode crer. (ABREU, 1996, p. 49).
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Tal como ocorre com os não lugares, o narrador de Lorde não consegue
se realizar totalmente. Pelo contrário, nele o que mais se percebe é o vácuo
de sentido, a falta, o silêncio e o olvido. Para isso, o apartamento alugado em
Hackney tem especial relevância. Desfeito do espaço do aeroporto, é ainda na
Greater London que o visitante estrangeiro encontra pouso, em um bairro que
ele sabia longínquo, “ao norte de Londres, de imigrantes vietnamitas, turcos,
já fora das margens dos mapas da cidade que costumam propagar em folders
turísticos” (NOLL, 2004, p. 17).
Hackney assume, dessa forma, a dimensão do distanciamento en-
tre o narrador e a cidade pela qual transita. É nela que o seu processo de
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7 No original: “A secret wound, often unknown to himself, drives the foreigner to wandering.”
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8 No original: “Not belonging to any place, any time, any love. A lost origin, the impossibility to
take root, a rummaging memory, the present in abeyance. The space of the foreigner is a moving
train, a plane in flight, the very transition that precludes stopping. As to landmarks, there are none.”
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10 No original: “[…] what we really are; or rather – since history has intervened – what we
have become.”
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Considerações finais
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12 No original: “[…] of not belonging to a territory, of being apart, in a world of fragmentation
and disorder, of having lost his own territory and seizing a foreign view of it, but also of opening
new paths where they had never existed.”
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Referências
ABREU, Caio Fernando. Estranhos estrangeiros. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
ANDRÉ-SALVINI, Béatrice (ed.) Babylone. Paris: Hazan; Musée du Louvre éditions,
2008.
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Tradução: Maria Lucia Pereira. Campinas: Papirus, 1994.
BHABHA, Homi K. How the Newness Enters the World. In: BHABHA, Homi k. The
Location of Culture. London; New York: Routledge, 1994.
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Lyslei Nascimento1
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2 Vale lembrar Georges Perec (2012, p. 27): “E houve o sabão em pó, a roupa que seca, a rou-
pa que é passada. O gás, a eletricidade, o telefone. As crianças. As roupas e as roupas de baixo.
A mostarda. As sopas em pacote, as sopas em lata. Os cabelos: como lavá-los, como pintá-los,
como mantê-los, como fazê-los brilhar. Os estudantes, as unhas, os xaropes para a tosse, as má-
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3 A obra de Ben Abraham conta com mais de quinze títulos dedicados ao tema da Shoah.
Além desse autor, Igel cita Konrad Charmatz, Joseph Nichthauser, Olga Papadopol, Malka L.
Rolnik, Alexandre Storch, Sonia Rosenblatt, I. Podhoretz, Américo Vertés, Alfredo Gartenberg,
Ari Chen, Mathilde Maier, dentre outros.
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7 Leiam-se, ainda, os versos: “Bem te conheço, voz dispersa/ nas quebradas,/ manténs vivas
as coisas/ nomeadas./ Que seria delas sem o apelo/ à existência,/ e quantas feneceram em sigilo/
se a essência/ é o nome, segredo egípcio que recolho/ para gerir o mundo no meu verso?”
(ANDRADE, 2012, p. 12).
8 De “Procura da poesia”, de Drummond, lembrem-se os versos: “Penetra surdamente no
reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há
desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicioná-
rio” (ANDRADE, 2012, p. 2019).
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9 Além da enigmática letra hebraica, que traz para o debate a noção de infinito (BORGES,
1998. p. 686-698), ver, também, o poema “As coisas”: “A bengala, as moedas, o chaveiro,/ A
dócil fechadura, as tardias/ Notas que não lerão os poucos dias/ Que me restam, os naipes e o
tabuleiro./ Um livro e em suas páginas a seca/ Violeta, monumento de uma tarde/ Sem dúvida
inesquecível e já esquecida,/ O rubro espelho ocidental em que arde/ Uma ilusória aurora./
Quantas coisas,/ Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,/ Nos servem como tácitos escravos,/ Cegas
e estranhamente sigilosas!/ Durarão para além de nosso esquecimento;/ Nunca saberão que nos
fomos num momento” (BORGES, 2000, p. 395).
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10 Ver alguns versos do poema “Daddy”, de Silvia Plath (2006, p. 165-199): “Eu tive de matar
você, papai./ Você morreu antes que eu pudesse –/ Peso de mármore, saco repleto de Deus,/
Estátua medonha com um dedão gris/ Do tamanho de uma foca de Frisco”.
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Não recordar não é uma opção para essa narradora. Por isso, o texto em
forma de lamento, de cobrança, de falta de empatia para com o pai sobreviven-
te. A palavra-chave desse trecho é “enfeitiçada”, porque ela dirige o olhar do
leitor ao desejo frenético de dar sentido ao silêncio do pai. A cena da leitura de
“livros, livros e mais livros” põe na ribalta “as memórias alheias” que são cos-
turadas à própria vida, numa vertigem de livros invisíveis referenciados nessa
repetição (PIGLIA, 1991, p. 60-66).
Os espaços labirínticos são, nesse texto à contraluz, listados: o deserto
sem sentido, o abismo do esquecimento, os becos sem saída e, no holofote, o
ato falho da narradora: “a nossa história”. Duplica-se, portanto, no corpo-texto
da filha, os corpos emparedados dos pais. No corpo ficcional da mãe e do pai,
a filha se inventa e se reinventa, também, ficcionalmente, a fim de suportar “o
desterro e a perplexidade” da pátria da dor, do relâmpago, mas também do
reflexo, territórios movediços da ficção.
Se, como queria Ricardo Piglia (1991, p. 60), a memória é a tradição
impessoal, feita de citações, na qual todas as línguas são faladas, nos romances
de Halina Grynberg e na literatura pós-Shoah no Brasil, a memória é íntima
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Referências
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Cecily Raynor1
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4 O livro foi traduzido para o português com o título Culturas do passado-presente: modernis-
mos, artes visuais, políticas da memória.
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5 Em espanhol: “No hay transiciones; no hay ningún nexo narrativo entre escenas que se hacen
y se disipan sin dejar rastros, como borbotones de materia líquida estallando en un caldo biótico
de fuerzas elementales.”
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6 Como observado por Idelbar Avelar, há várias referências a Pedro Páramo no romance,
incluindo uma peça que o protagonista e Cris montam juntos, descrita como uma “peça, um
monólogo de um autor mexicano, falava de uma mulher enlutada, por acreditar com ódio e de-
sespero na eternidade. Isto, ela não se cobria de luto no corpo e na alma pela morte de alguém,
pela finitude de um ser, não: o seu luto ao contrário expressava sua tristeza pela dura, pela des-
comunal herança da eternidade” (NOLL, 1993, p. 71).
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Conheço todas de cor. Pesei cada frase, cada palavra. Sob as ordens dos
superiores, tentei imaginar os motivos, e criei um personagem por trás
dos atentados. Fui buscar no fundo da minha imaginação tudo o que
não havia utilizado no meu projeto abortado de tornar-me um escritor.
Inventei aquele homem revoltado, louco, só. E conforme novos atenta-
dos iam ocorrendo, com intervalos por vezes de dois, por outras de três
e até cinco anos, sem uma única palavra do verdadeiro “terrorista”, sem
nenhuma manifestação daquele homem que provavelmente nada tinha
a ver com o que criava, ia compondo sua personalidade em novas car-
tas, dando-lhe maior complexidade psicológica, colocando-o no centro
de um teatro. (CARVALHO, 1998, p. 74).
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7 Em seus escritos sobre poder e conhecimento, Foucault (1986, p. 12) nos lembra que “Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso
que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles
que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.”
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O que chama nossa atenção aqui é o fardo que o discurso se torna para
o narrador. Ele compara sua própria voz ao ato de carregar uma pedra pesa-
da, pois deve carregar uma mentira em constante estado de performance. Na
verdade, mesmo enquanto fala, ele diz ao leitor para desacreditá-lo. A dis-
sociação entre linguagem, identidade e pensamento voluntário marginaliza
ainda mais o narrador, pois ele fica preso em sua própria performance. Ele
não está sozinho, porém, além das histórias contadas pelo narrador, sua fi-
lha adotiva, Cristina, chega ao ponto de construir uma história falsa afirman-
do que sua mãe morreu cedo e que o narrador a criou. Dessa forma, tanto
em Teatro como em Harmada o leitor é encarregado de peneirar informa-
ções contraditórias a cada esquina, em uma constante busca por fragmentos
que possam compor uma história compreensível. Esses fragmentos assumem
muitas formas, refletindo sobre o conceito de verdade, linguagem, sanidade e
identidade. Assim, nossa leitura dos textos pode ser comparada à reconstru-
ção de uma ruína, peneirando os escombros de narrativas díspares e lugares
ambíguos. De fato, alinhados a essa performatividade, os romances tornam-se
teatros de sua própria autoria, estruturas austeras e ruinosas.
Conclusão
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Referências
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Roxanne Covelo1
1 Doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2019) e professora substitu-
ta de língua e literatura inglesas na mesma instituição. E-mail: [email protected].
2 Ver a resenha de Albert Von Brunn (2013). O narrador de O Desterro conta sua busca pela
terra natal de seus avós, cujo exílio é seu legado. “Por décadas”, ele explica, “eu percorri os qua-
drantes do que era, então, chamado de ‘Primeiro Mundo’, em busca do lugar com o qual os meus
avós sonhavam – aquele lugar mais elevado que os outros lugares, de onde fomos expulsos, e que
haveria de nos ser restituído” (KRAUSZ, 2011, p. 27).
3 Na mesma época (1920), quase 13% dos judeus que imigravam se dirigiam ao Brasil; porém,
apenas 0,01% da população brasileira atual se identifica como judaica (LESSER, 2001, p. 66–70).
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4 Em Outro lugar, Israel é descrita como “lar definitivo e excelente [para] um povo maltra-
tado”, pelo menos aos olhos dos seus primeiros fundadores (KRAUSZ, 2017, p. 83). O autor
discorre sobre a profunda convicção dos judeus “de que ali seria possível, finalmente, construir o
país com o qual tinham sonhado, por séculos, seus antepassados, quando falavam da Jerusalém
celeste que os aguardava ao fim de cada prece” (KRAUSZ, 2017, p. 87). Também é sugerido que
os kibutzim estabelecidos no deserto israelense são a continuação desse mesmo projeto utópico,
porque “se sonhava em criar ali um exemplo, uma nova sociedade, uma sociedade perfeita, que
pudesse servir de modelo à humanidade” (KRAUSZ, 2017, p. 257).
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5 No original: “true exile is a condition of terminal loss” (tradução da autora). Com exceção
das citações do texto Pastoral americana, traduzido por Rubens Figueiredo, todas as traduções
são da autora.
6 No original: “Exiles are cut off from their roots.”
7 O narrador viaja a Nova York em companhia de um amigo (também filho de imigrantes
judeus) e observa que “ele me parecia voltar às suas próprias origens […] e a um destino que,
tendo sido abandonado pelos seus pais, recaia sobre ele”, um comentário que se aplica igualmen-
te bem ao narrador quanto se aplica a seu amigo (KRAUSZ, 2017, p. 96).
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8 Em Outro lugar, a utopia representada por Nova York é também a utopia mais sombria do
consumismo, “o paraíso sem fim das tentações terrenas que se ofereciam […], que me pareciam
sustentados por um vigor excessivo, por um apetite excessivo, por desejos excessivos, por um
excesso de excessos” (KRAUSZ, 2017, p. 138). Seu representante por excelência é a Coca-Cola,
cujas propagandas cobrem os edifícios da cidade. “[C]omo o vermelho do seu emblema”, explica
o narrador, “a Coca-Cola anunciava o início de uma nova era, uma era na qual os anseios e os
desejos seriam rapidamente satisfeitos e enunciava […] o fim da tirania da paciência e da par-
cimônia […] da temperança e da moderação, e o início da grande era da liberdade” (KRAUSZ,
2017, p. 98).
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9 A título de exemplo, o turco mecânico é usado por Walter Benjamin (2006, p. 389) no ensaio
“Sobre o conceito de história” para ilustrar o modelo do materialismo histórico e da falsa crença
num rumo linear do progresso.
10 “A história como ruína e a crítica a uma visão linear e teleológica da passagem do tempo e
da negatividade do progresso, emblema da modernidade, presentes na reflexão benjaminiana,
são retomadas por Krausz, sempre tingidas de melancolia” (CURY, 2019, p. 123).
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11 No original: “As a family they still flew the flight of the immigrant rocket, the upward, unbro-
ken immigrant trajectory from slave-driven great-grandfather to self-driven grandfather to self-con-
fident, accomplished, independent father to the highest high flier of them all, the fourth-generation
child for whom America was to be heaven itself.”
12 No original: “She’s post-Catholic, he’s post-Jewish, together they’re going to go out there to Old
Rimrock to raise little post-toasties.”
13 Para o protagonista de Roth, a maneira mais rápida e mais autêntica de ser americano é
simplesmente ser rico (uma lógica que guia também os protagonistas de outros livros clássicos
americanos, e em especial O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald). Segundo o crítico Derek Ro-
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cortaram […] os laços por meio dos quais se ligavam aos ancestrais,
como quem se livra de uma carapaça inútil, como quem se livra de um
fardo inútil. Amparadas por sua condição de estrangeiras nas Américas
yal, o protagonista de Pastoral americana se assemelha a Jay Gatsby e outros heróis americanos,
tanto ficcionais como históricos, por sua persistência em negar suas origens étnicas e reinven-
tar-se na base do êxito econômico (ROYAL, 2005, p. 190).
14 No original: “[…] out of each generation’s getting smarter – smarter for knowing the inade-
quacies and limitations of the generations before – out of each new generation’s breaking away from
the parochialism a little further, out of the desire to go to the limit in America with your rights,
forming yourself as an ideal person who gets rid of the traditional Jewish habits and attitudes,
who frees himself of the pre-America insecurities and the old, constraining obsessions so as to live
unapologetically as an equal among equals.”
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15 No original: “n’en reste pas moins ancré dans une histoire, dans la continuité d’une vie, qui
plonge chacun dans son passé, même le plus lointain, dans le souvenir de ses ancêtres et de ses
antécédents, qui font apparaître une généalogie qu’on peut interpréter comme la genèse de soi.”
16 No original: “éblouissement et fascination utopistes […]”
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17 No original: “the neutral, dereligionized ground of Thanksgiving, when everybody gets to eat
the same thing, nobody sneaking off to eat funny stuff – no kugel, no gefilte fish, no funny herbs,
just one colossal turkey for two hundred and fifty million people – one colossal turkey feeds all.
A moratorium on funny foods and funny ways and religious exclusivity, a moratorium on the
three-thousand-year-old nostalgia of the Jews, a moratorium on Christ and the cross […]. It is the
American pastoral par excellence and it lasts twenty-four hours.”
18 No original: “Participation naturelle, c’est-à-dire amenée automatiquement par le lieu, la
naissance, la profession, l’entourage. Chaque être humain a besoin d’avoir de multiples racines. Il a
besoin de recevoir la presque totalité de sa vie morale, intellectuelle, spirituelle, par l’intermédiaire
des milieux dont il fait naturellement partie.”
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Considerações finais
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21 No original: “the democratic invitation to throw your origins overboard if to do so contributes
to the pursuit of happiness.”
22 A narrativa no mínimo irônica de A marca humana é baseada no caso real de Melvin
Tumin, um professor de Princeton que foi amigo de Philip Roth. Muitos leitores também identi-
ficaram semelhanças à história de Anatole Broyard, um crítico literário do New York Times cuja
identidade negra só veio a lume depois de sua morte.
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Figura 1 – “Roupa”
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2 Walter Moser (2004) aponta três tipos de movência que marcam as expressões culturais da
atualidade: locomoção, midiamoção e artemoção.
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Os rastros, marcas que evocam a mulher amada, são pistas para serem
por ela reconhecidas; ademais, constituem-se uma maneira de impedir a per-
da de si mesmo, uma vez que tem a amada inscrita no próprio corpo. “Amada
aquela que levantou âncora deixo nunca-jamais cair da memória: está tatuada
in totum em mim” (FERREIRA, 2012, p. 25). O narrador se diz um “andarilho
mnemônico”, em função do abandono, o que transforma os rastros que vai
deixando numa forma contraditória de conservação da memória, e de desejo
de marca identitária no espaço anônimo da cidade.
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Mas ela amada que levantou âncora virá – eu sei. Talvez esteja agora
num quarteirão qualquer da rua de trás. Não vou perguntar porque sei
sinto pressinto que o senhor dirá que não ouve o som onomatopaico
do salto do sapato dela. Entendo: só eu conheço o ritmo desequilibrado
do seu jeito característico de dar um passo titubeante depois do outro.
Ouça: som de salto de sapato alto. Há dez anos ouço os passos dela
aproximando-se, sensação de que nosso encontro é frustrado no último
instante pelas mãos invisíveis malévolas dos deuses dos desencontros.
(FERREIRA, 2012, p. 176-177).
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3 Muito embora o narrador se refira algumas vezes ao livro mais famoso de Erasmo de Rotter-
dam, Elogio da loucura, não é propriamente o mesmo sentido de loucura dado pelo filósofo hu-
manista que é assumido pelo texto de Evandro Ferreira. Em Elogio da loucura, Erasmo satiriza a
decadência moral da sociedade da época, principalmente a da Igreja. “A loucura é para Erasmo o
impulso vital, a beata inconsciência, a ilusão, a ignorância contente de si – numa palavra, a men-
tira vital. Toda a vida humana, seja a individual, seja a social, funda-se em mentiras, em ilusões
ou em imposturas, que velam a crua realidade e constituem o maior atrativo da própria vida.
E Erasmo, pondo a falar a Loucura e entrincheirando-se por detrás de um pretexto divertido,
pode rasgar o véu daquelas mentiras e mostrar a realidade que elas ocultam” (ABBAGNANO.
1970, p. 189).
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Veja: mulher enrolada num pano longo imundo acende cigarro no toco
do cigarro que maltrapilho alcoólatra de rosto intumescido atirou no
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4 “Poderia a literatura igualmente utilizar-se dos dejetos? […] exatamente a que corresponde
a noção de dejeto quando aplicada à língua, ao texto, ao discurso, e isto ao lado de sua tema-
tização literária, ao nível da materialidade do meio ‘linguageiro’? Trata-se, certamente, de um
uso mais ou menos metafórico de ‘dejeto’, mas muitos textos literários estabelecem uma ligação
sutil entre a representação temática do dejeto não verbal e a figuração do material verbal como
dejeto” (tradução da autora).
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Referências
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Mônica Gama1
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2 Expressão usada por Alice para iniciar o relato sobre um dia nas ruas: “Vamos, Barbie, pra
rua de papel” (REZENDE, 2014, p. 175).
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Nem tranquei a porta, nem fui ao banheiro, nem bebi um copo d’água,
[…] desabei no sofá branco que eu detesto com você, Barbie, no colo
[…]. E aqui estou vomitando nestas páginas amareladas os primeiros
garranchos com que vou enchê-las até botar tudo pra fora e esconjurar
toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá
e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e
arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e
sonha e morre e ressuscita sem parar. (REZENDE, 2014, p. 13-4).
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3 Carolina denuncia a ilusão de quem positiva a cidade sem perceber que ela é pensada tam-
bém para a exclusão: “Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo,
que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras.
As favelas” (JESUS, 1992, p. 76). A edição dos cadernos exibe passagens recolhidas entre 1955,
1958 e 1959, período do auge da construção de Brasília, símbolo da modernidade urbana e face
brilhante do processo de modernização que resultou na produção de subúrbios e favelas.
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Eu nem percebi, naquele dia, quando saí de casa atrás de um quase ima-
ginário, um vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás
de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio, que ia me
levar pra um buraco, outro mundo. Também, que importância tinha?
Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só pra cair em algum mun-
do, sair daquele estado de suspensão da minha vida num entremundo,
sem nem por um momento me perguntar como nem pra onde havia de
voltar. (REZENDE, 2014, p. 39).
5 Essa cena das ruínas que revivem a imaginação literária de Alice lembra uma das cenas mais
marcantes de Quarto de despejo: “Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde
o sono começa a pensar nas misérias que nos rodeia. Deixei o leito para escrever. Enquanto
escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas
são de prata e as luzes de brilhantes. […] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer
que estou na favela” (JESUS, 1992, p. 52). A fantasia diurna, consciente, em vigília, assemelha-se
aos sonhos quanto à função de realização do desejo.
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6 “Se no Ocidente a nação é antes de mais um ‘contrário’, para os povos colonizados a iden-
tidade será, em primeiro lugar um ‘oposto a’, isto é, em princípio, uma limitação” (GLISSANT,
2011, p. 22).
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Referências
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Preâmbulo
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No início nem percebia que se tratava de raiva, ódio até, sentia ape-
nas um incômodo, uma inquietação, depois dores de cabeça, cada vez
piores, que a faziam parar num hospital, soro, descanso, enxaqueca,
diagnosticara o médico, prescrevendo-lhe um tratamento para evitá-la,
analgésicos fortíssimos que a deixavam com sono e a sensação ainda
mais forte de estar em outro lugar.” (SAAVEDRA, 2018, p. 37-38).
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para que eu fosse a pessoa que eu deveria ser, uma aluna exemplar, uma
filha exemplar, um exemplo de diligência e serena alegria, em suma,
para que o mundo jamais perdesse os contornos que ela havia lhe dado,
pois ao mínimo passo em falso tudo poderia desmoronar, nesse mo-
mento percebe-se a si mesma. (SAAVEDRA, 2018, p. 72).
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Porque sair da casa dos meus pais em nada resolvera os meus proble-
mas, de certa forma até os aguçara. Sentia que minha vida estava cheia
de elipses, palavras não ditas, verdades escamoteadas, que se materia-
lizavam numa angústia, uma inquietação constante. E se até então eu
vivera alheia a isso, anestesiada, ou fingindo que nada acontecia, agora,
pela primeira vez, eu queria saber, mesmo sem ter certeza de que havia
realmente algo a descobrir, eu precisava saber. (SAAVEDRA, 2018, p.
100-101).
Ela intui uma verdade que se esconde nos subterfúgios, uma verda-
de silenciada pelos pais. Lembra-se de Max, o amigo que, em meio a uma
discussão infantil, lhe deu uma facada. Max e o acontecimento sofreram um
silenciamento: “Jamais podia mencioná-lo, nem ele nem nada que pudesse
remeter ao acontecido” (SAAVEDRA, 2018, p. 104). Nesse episódio, ele disse
palavras reveladoras sobre a origem de Maike, por isso a repressão a que foi
submetido. Porém, ser reprimido não significa que tenha sido apagado. Ouvir
as palavras reveladoras do amigo e, na sequência, receber a facada são inscri-
tos como eventos traumáticos. Seguindo Freud, J. Laplanche e J.-B. Pontalis
(2013, p. 500, tradução minha) mostram que em tais circunstâncias “[o]
afluxo de energia é excessivo em relação à tolerância do aparelho psíquico”.
Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 48), também na esteira de Freud, ressalta
que essa experiência “não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre.”
É justamente isso o que aconteceu com Maike: ela não consegue assimilar o
evento traumático, o qual permaneceu reprimido por muitos anos. No entan-
to, ele ficou latente, por isso aflora em um momento em que ela está preparada
para encarar essas “verdades escamoteadas”.
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4 Nessa parte, duas protagonistas são denominadas avó: a protagonista e a avó desta.
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mas ao que não se acostumava nunca, mesmo com o passar dos meses,
era a distância da mãe, e especialmente da avó, e até mesmo dos irmãos
brigando e ela brigando com eles e a mãe brigando com ela, sentia falta
até das coisas de que não gostava, da mãe batendo nela com o cabo de
vassoura, porque mesmo batendo ainda era a mãe, e ali não tinha nin-
guém, só Dodô e aqueles fragmentos de conversa quando dona Clotilde
não estava olhando, que dona Clotilde não gostava de conversinhas en-
tre os serviçais. (SAAVEDRA, 2018, p. 141).
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sobre uma moça muito boa e muito bonita, mas muito pobre, ela vende
flores na rua para sobreviver, e que conhece um homem muito lindo
e rico e ele se apaixona por ela, e os dois são tão lindos juntos, e no
final ela casa com ele feito um príncipe, e ela aprende a comer direito e
falar direito e a vestir roupas bonitas, e ficam felizes para sempre […].
(SAAVEDRA, 2018, p. 143).
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ela ficou muda e imóvel e com um frio na barriga, sem saber o que di-
zer, quase não aguentando de tanta felicidade que era Renan achar ela
bonita, […] e sentiu seu corpo desmontar inteiro e achou que ia ficar
sem ar quando ele olhou com atenção para o seu corpo desmanchado
[…]. (SAAVEDRA, 2018, p. 145).
Ato contínuo, ele pega em sua mão e a conduz para o quarto. Na cena
de estupro, observam-se duas posições diferenciadas: a de Renan e a da prota-
gonista. Ele pressupõe que ela goste dele, porque afirma ter percebido que ela
o observa – como se a suposta afeição lhe desse prerrogativas para a efetivação
do ato. Mesmo suas palavras caindo no vazio, sem ocorrer uma interlocu-
ção por parte dela, ele prossegue no ato, o qual tem em vista unicamente sua
satisfação pessoal. Observe-se a posição da protagonista: mantém os olhos
fechados, pois “tinha medo de ver o que estava acontecendo” (SAAVEDRA,
2018, p. 145); permanece muda, sem responder aos seus questionamentos; e
fica “apavorada ao perceber que ele havia abaixado a calça e guiava a mão dela
em direção àquele pedaço duro de carne que os homens têm entre as pernas”
(SAAVEDRA, 2018, p. 145). Ela não é ingênua quanto ao ato, pois os filmes
lhe propiciaram ver cenas similares. No entanto, apesar de se imaginar uma
das heroínas do cinema, apenas sente dor, uma dor que lhe era desconhecida.
A memória desse ato abusivo está inscrita no corpo. É muito significativo que
a lembrança da dor física sempre se imponha. De acordo com as reflexões de
Aleida Assmann (2011, p. 265), “A memória corporal de feridas e cicatrizes é
mais confiável que a memória mental.” Em várias ocasiões, Renan a procura,
mas apenas com o intuito de se satisfazer. Terminado o ato, ele veste-se e vai
embora.
Aspecto cruel é o comportamento do rapaz depois do abuso: ele pas-
sa a ignorá-la, não fala com ela e “passava por ela como se ela não estivesse
ali” (SAAVEDRA, 2018, p. 146). Diante dessa atitude a jovem fica perplexa,
o que interferiu no desempenho das suas atividades e lhe acarretou falta de
vontade até de ir ao cinema, cujos filmes eram essenciais a sua sobrevivência.
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Nota conclusiva
Referências
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Um dia tudo é alheio. Você caminha por uma rua desconhecida e ela
perfaz uma curva inesperada, sem nenhuma esquina se torna outra rua,
assume outro nome, e você está perdido naquele que deveria ser o seu
bairro. Um dia tudo é alheio. Você encontra enfim um café, embora
não queira tomar um café, e sim ficar ali sentado; o garçom lhe traz
uma xícara e parece aguardar sua saída com alguma ansiedade, pois ali
tomar um café tem um sentido literal que não inclui a permanência por
longas horas. No início estranhávamos um pouco, dizem meus pais e
eu os entendo pelo avesso, porque já estranhei as ruas retas e os cafés de
toda uma tarde. (FUKS, 2015, p. 85).
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Meu irmão nasceu dois dias depois de seu parto, nasceu numa casa
longínqua nos arredores de Buenos Aires [… ] descrevo por suposição.
(FUKS, 2015, p. 59).
2 O trauma é entendido aqui a partir de Aleida Assman (2011, p. 279) como parte inalienável
do homem que, ainda assim “não é assimilável na estrutura identitária da pessoa, é um corpo
estranho que estoura as categorias da lógica tradicional: ao mesmo tempo interna e externamen-
te, presente e ausente.”
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Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre
um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de
mundo que costumamos chamar realidade – e uma inexorável dispo-
sição fabular […]. Nem mesmo com esse duplo artifício alcanço o que
pensava desejar. (FUKS, 2015, p. 95).
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Dessa viagem não sei muito, há algo nela que me escapa, não faço ideia
do que conversavam – não sei se a partida era melancólica ou desespe-
rada, ou se já se prenunciava um momento de maior tranquilidade, o
acolhimento que o Brasil lhes daria, a eles, que nem planejavam ficar.
Imagino o carro singrando a planície ensolarada e é como se meu olhar
se afastasse, como se visse do alto, paisagem com carro em velocidade.
Acirra-se assim a consciência de que ali eu não estava, de que ali eu não
podia estar, de que aquela travessia apressada é só um acontecimento
ancestral da minha própria história, essencial por algum motivo que
não sei explicar bem, ou que não vem ao caso. (FUKS, 2015, p. 82).
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3 “Postmemory describes the relation-ship that later generations or distant contemporary wit-
nesses bear to the personal, collective, and cultural trauma of others […]”
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Agora não sei mais por onde ir. Agora paraliso diante das letras e não
sei quais escolher. Agora sim, por um instante, posso sentir: queria
que meu irmão estivesse aqui, a pousar sua mão sobre a minha nuca, a
apertar meu pescoço com seus dedos alternados, tão suaves, tão sutis, a
me indicar a direção que devo seguir. (FUKS, 2015, p. 96).
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Referências
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Um dia, no nosso país – esse que ficou para trás sem que tenha-
mos conseguido colocar outro no lugar –, o tempo era ainda de
delicadeza. E era Dia de Todos os Santos.
Adriana Lisboa
1 Doutor em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. Foi um dos vencedores do 1º Prêmio
“Construindo a Igualdade de Gênero”, promovido pela então Secretaria Especial de Políticas
para Mulheres (SPM) da Presidência da República. Atualmente é professor da rede pública esta-
dual do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
2 O conceito de “nação (de) partida” foi desenvolvido em tese de doutorado, sobretudo, no
capítulo “Narrativas de deslocamentos e a nação (de) partida” (RESENDE, 2020). Resumida-
mente: “nação partida” se refere aos conflitos causados por perseguições político-ideológicas e
outras formas de violência estrutural, em que sujeitos deslocados não percebem mais a nação de
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8 No original: “If there is a global economy, there should be a global labor Market and a global
labor force. Yet, as many such obvious statements, taken in its literal sense it is empirically wrong
and analytically mis-leading. While capital flows freely in the electronic circuits of global financial
networks, labor is still highly constrained, and will be for the foreseeable future, by institutions,
culture, borders, police, and xenophobia” (CASTELLS, 2010, p. 247).
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9 No original: “with the intent of allowing the free movement of capital, goods, services and
certain categories of people”
10 No original: “United Kingdon Independency Party”.
11 No original: “Make American Great Again”.
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12 Curiosamente, segundo a mesma fonte, “85% das pessoas deslocadas estão em países em
desenvolvimento”, e não nos EUA, ou nos países da Europa Ocidental.
13 No original: “borders should be seen for their potential to constitute bridges and points of
contact, as much as they have traditionally constituted barriers to movement and communication”
(NEWMAN, 2006, p. 1).
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Sua viagem até a China de Mao Tsé-Tung tinha começado dez meses
antes, e com um propósito bem definido. […]. De Brasília, onde mora-
va, ele tinha ido para São Paulo, ficado ali por uma temporada, tentando
disfarçar as próprias pegadas, e dali a Paris, idem, e então até Pequim.
(LISBOA, 2014b, p. 58-9).
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Referências
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Considerações iniciais
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2 Vide romances: Palavras cruzadas (2015), de Guiomar de Grammont, K.: relato de uma
busca (2013), de Bernardo Kucinski, Mulheres que mordem (2015), de Beatriz Leal, Silêncio na
cidade (2017), de Roberto Seabra, entre outros.
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3 O romance de Hatoum abre com uma fotografia antiga, em preto e branco, de um ônibus
com o letreiro “Brasília-São Paulo” estacionado em uma rodovia. Não há créditos da imagem.
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Brasília é uma cidade para quem tem asas ou pode voar. […] Os bairros
e avenidas têm siglas com letras e números, me perdi no primeiro pas-
seio pelas superquadras da Asa Sul, parecia que estava no mesmo lugar,
olhando os mesmos edifícios. São bonitos, cercados por um gramado
que cresce no barro; essa beleza repetida também me confundiu. Tudo
confunde, nada lembra lugar algum. O céu é mais baixo e luminoso, e as
pessoas sumiram da cidade. (HATOUM, 2017, p. 28).
4 Título do livro de Richard Sennett Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental
(1994).
5 Referência ao texto de Italo Calvino Seis propostas para o próximo milênio.
6 Acerca dessa questão, no romance Silêncio na cidade (2017), de Roberto Seabra, também
ambientado em Brasília, a personagem Tino Torres revela quem eram os habitantes da capital
federal: “Naquele tempo, não havia grandes diferenças entre os jovens. Éramos quase todos
iguais: filhos de trabalhadores e servidores públicos, que se misturavam nas escolas e nas ruas.
Com o tempo, foi surgindo uma nova classe em Brasília: a das famílias dos políticos, dos altos
servidores públicos, inclusive dos militares de alta patente, e dos primeiros grandes empresários
da cidade. Formavam a elite brasiliense” (SEABRA, 2017, p. 120).
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Passei o Natal de 67 com Lina e tio Dácio no chalé dos meus avós ma-
ternos, em Santos. […]
O fim da noite natalina foi fúnebre: Ondina saiu da mesa e avisou que
não ia festejar o Ano-Novo. […] meu avô bem-humorado, sugeriu um
passeio até o porto.
“Nessa escuridão?”
“Lá fora está menos escuro que nesta sala, Dácio. Parece que apagaram
tudo aqui dentro. Martim vem comigo?” (HATOUM, 2017, p. 20).
Ondina, mãe de Lina, não aceitava a separação dos pais de Martim, dei-
xando bem claro a todos a sua discordância em relação à decisão tomada pela
filha e culpando-a por sua “fraqueza moral e sentimental” (HATOUM, 2017, p.
20). Sobre a questão, Lina discordava da mãe, mas não queria discutir o assun-
to na frente do filho de 16 anos. Apesar de ser uma data festiva que se pretendia
iluminada junto de pessoas queridas, o tom sombrio e a penumbra parecem
invadir a celebração com a certeza de Lina acerca do seu divórcio. Mais uma
cicatriz que impregna sua trajetória de sentimentos confusos. Por onde quer
que vá, Martim, náufrago solitário, à espera de um resgate, deixa um rastro de
solidão e silêncio.
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Por que passei mais de dois meses sem enviar uma palavra para minha
mãe? Para punir com o silêncio o silêncio dela?
Escrevi uma longa carta, que começou com meu sonho recente. […]
Também sonhei mais uma vez com você. Não foi um sonho sereno num
lago imenso, e sim um dos pesadelos nas noites na capital: você, outras
mães e Dinah apareciam juntas num protesto contra o fechamento da
escola onde estudei. Quando ia te abraçar, soldados do Exército repri-
miram o protesto e as pessoas sumiram numa poeira cinzenta. Você
também sumiu.
Não me machucaram quando fui detido em março de 68. Mas os pesa-
delos, a violência, e tudo que vem acontecendo na vida de muitas pes-
soas dão a Brasília um sentimento de destruição e morte que nem sequer
os palácios, a Catedral, as cúpulas do Congresso e todas as curvas desta
arquitetura conseguem dissipar. (HATOUM, 2017, p. 150, grifos nos-
sos).
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