Miolo - Migração e Diversidade Cultural

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Migração e diversidade

cultural na narrativa brasileira


contemporânea

Maria Zilda Ferreira Cury


Cimara Valim de Melo
(organizadoras)

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Migração e diversidade
cultural na narrativa brasileira
contemporânea

Maria Zilda Ferreira Cury


Cimara Valim de Melo
(organizadoras)

Porto Alegre

1ª edição

2021

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copyright © 2021 Editora Zouk

Projeto gráfico e edição: Editora Zouk


Revisão: Maria Fernanda Gonçalves Moreira
Foto da capa: Cimara Valim de Melo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


de acordo com ISBD
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

M636
Migração e diversidade cultural na narrativa brasileira contemporânea
/ organizado por Maria Zilda Ferreira Cury, Cimara Valim de Melo. - Porto
Alegre, RS : Zouk, 2021.
244 p. ; 16cm x 23cm.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5778-035-0

1. Literatura brasileira. 2. Crítica literária. I. Cury, Maria Zilda Ferreira.


II. Melo, Cimara Valim de. III. Título.

CDD 869909
2021-2723 CDU 821.134.3(81).09

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura: crítica literária 869909
2. Literatura: crítica literária 821.134.3(81).09

Este livro contou com o apoio do Instituto Federal


de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).

direitos reservados à
Editora Zouk
av. Cristóvão Colombo, 1343 sl. 203
90560-004 – Floresta – Porto Alegre – RS – Brasil
f. 51. 3024.7554

www.editorazouk.com.br

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Sumário

Trilhas para o alheio: a literatura sob o olhar do outro


(Uma introdução)
Maria Zilda Ferreira Cury
Cimara Valim de Melo
7

Alejandro Chacoff e Julián Fuks: apátridas, exilados, asilados


Eurídice Figueiredo
15

“London, London”: a narrativa brasileira contemporânea pelo viés do


estrangeiro no Velho Mundo
Cimara Valim de Melo
33

A lição das coisas: Halina Grynberg e a


literatura judaica pós-shoah no Brasil
Lyslei Nascimento
61

Ruínas e identidades migrantes em Teatro, de


Bernardo Carvalho, e Harmada, de Gilberto Noll
Cecily Raynor
75

“O milagre americano do esquecimento”:


Krausz e Roth em Nova York
Roxanne Covelo
101

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Relatos de impermanência
Maria Zilda Ferreira Cury
115

“Gente de corpo e dor, quase”: experiência migrante em Quarenta dias, de


Maria Valéria Rezende, e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus
Mônica Gama
131

Entre o deslocamento e a imobilidade:


as mulheres exiladas de Com armas sonolentas, de Carola Saavedra
Gínia Maria Gomes
155

O exílio e a adoção: perspectivas de


alteridade em A resistência, de Julián Fuks
Luciana Paiva Coronel
181

Um mundo com fronteiras: deslocamentos


e relocalizações em Adriana Lisboa
Vander Vieira de Resende
201

(I)migração, barbárie e silêncio em


A noite da espera, de Milton Hatoum
Sheila Katiane Staudt
221

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Trilhas para o alheio:
a literatura sob o olhar do outro
(Uma introdução)

Em mim se estreitam os caminhos de pedra.


Jorge Luis Borges

Então lancei-me na grande chuva que caía sobre todos os caminhos.


Vitor Ramil

Caminhos. São eles que formam o elo entre o migrante, seu antes e
seu depois. Por vezes, caminhos de pedra, áridos; por vezes trilhas a serem
abertas pelo sujeito que os descobre como possibilidade. Sempre, redutos de
passagem, resistência e (des)encontro. Vitor Ramil (2008, p. 268) relata a “dor
dos caminhos”, que, ao mesmo tempo, comporta beleza e perversidade. É ela
– a dor – principal matéria-prima para a produção literária brasileira con-
temporânea, a qual tem explorado amplamente fluxos migratórios, desloca-
mentos bem como migrâncias internas e suas consequências socioculturais e
individuais. Frente à diversidade que emana desses trânsitos humanos, cada
vez mais intensos no novo milênio, o presente livro busca oportunizar um
conjunto de investigações, atuais e abrangentes, acerca do modo pelo qual a
narrativa brasileira tem representado condições de migrância – vista, na con-
cepção de Pierre Ouellet (2005), como uma passagem ao outro, que transpõe
limites e vai além, infringindo leis por meio da conjunção entre movimento e
mudança. Seja por meio da problematização de identidades que transcendem
fronteiras, pela expressão do diaspórico e do exílico a promover o olhar sobre
a outridade, ou pelo reflexo das transformações geoculturais no humano, a
literatura nunca esteve tão conectada aos deslocamentos transnacionais e a
suas implicações para a dissolução da dicotomia local x global; nesse contex-
to, espaços são redimensionados, dando lugar à diversidade, mas também a
desigualdades e marginalidades.
O fenômeno da migrância carrega em si subjetividades. A palavra traz
consigo a ambivalência entre suas dimensões: uma mais concreta, que expres-
sa a mobilidade geográfica que a acompanha; outra simbólica (OLIVIERI-
GODET, 2010, p. 195), que inclui resistência do indivíduo face ao lugar

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habitado e seu estranhamento com relação ao desconhecido e/ou ao diferente.
Dela, partem os termos “poéticas da migrância” e “escrita migrante”, os quais
dão conta das representações desses deslocamentos pelo universo literário.
Nesse sentido, Néstor Canclini (2016) destaca que, cada vez mais, devido à
interculturalidade e aos meios de comunicação globalizada, tornamo-nos es-
trangeiros de paisagens outrora próprias, vivemos outras “pátrias” e, com isso,
esfumam-se as fronteiras que nos davam certezas – estraneidades que trans-
cendem os limites do territorial para indicar novos caminhos, ao mesmo tem-
po em que desestabilizam o indivíduo identitariamente por oferecerem-lhe
mais desajustes que alternativas.
De fato, reconhecer-se como “outro” impõe novos processos de reco-
nhecimento e adaptação, os quais nunca se completam. O migrante faz da
experiência veículo de interação, construindo “comunidades transnacionais”
(CANCLINI, 2016, p. 60), as quais absorvem outros modos de narrar a expe-
riência do deslocamento, “talvez mais expressivas da condição transterritorial
contemporânea” da qual emerge o (desejo de) ser/sentir-se estrangeiro:

O desejo de ser estrangeiro se mostra diferente nos migrantes geográ-


ficos e nos estrangeiros-nativos, naqueles que devem se exilar, perse-
guidos por uma ditadura ou por uma parte da sociedade que os julga
estranhos; ou os que por razões semelhantes permanecem como dissi-
dentes, exilados internos, desqualificados como cidadãos: em um insí-
lio. (CANCLINI, 2016, p. 63).

Fronteiras e deslocamentos migratórios têm sido intensamente repre-


sentados nas últimas décadas pela literatura e trazem consigo a noção de
estraneidade para além da dimensão territorial. A produção literária brasi-
leira atual abarca de modo recorrente estranhamentos que transcendem as
variações geográficas por que passam grupos de indivíduos, ou mesmo seres
isolados, mas que mesmo assim trazem consigo em profundidade a marca
do “outro”, do alheamento e da dor, que acompanha quem irrompe em espa-
ços de diferença. Kathryn Woodward (2014, p. 9) mostra que a identidade é
relacional pelo simples fato de que é marcada pela diferença e por sua inscri-
ção simbólica, conectada a outras identidades. Nesse sentido, “a globalização
produz diferentes resultados em termos de identidade”, produzindo, dentre
eles, a resistência e a transgressão à “homogeneidade cultural promovida pelo
mercado global”, que conduz a distanciamentos e crises identitárias; a migra-
ção, por sua vez, “produz identidades plurais, mas também identidades con-
testadas” – ora desestabilizadas, ora desestabilizadoras – em um processo que
é caracterizado por grandes desigualdades” (WOODWARD, 2014, p. 21-22).

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Tal contexto de lutas – de um lado, pela (re)afirmação de identidades;
de outro, por novos espaços de inclusão e reconstrução – corrobora com a
fluidez de nosso tempo e impulsiona novos deslocamentos, os quais incluem
o que Ernesto Laclau vincula a crises globais de identidade em face da per-
da de fixidez e da mobilidade dos chamados “centros”, que se multiplicam
e dos quais novas identidades emergem (LACLAU, 1990, p. 40). Se, de um
lado, temos a diversidade proclamada pelo multiculturalismo (ORTIZ, 2015);
de outro, encontramos a busca pela preservação de identidades que insistem
em se relacionar e se transformar. No caminho, vemos o desafio de quebrar
com “oposições binárias” (WOODWARD, 2014, p. 46), que produzem dico-
tomias como dentro e fora, centro e margem, próprio e alheio, insiders e out-
siders. As identidades, nesse sentido, “têm a ver não tanto com as questões
‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões
‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como
essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós pró-
prios’” (HALL, p. 109). Isso porque elas são constituídas como atos de poder
(LACLAU, 1990) e, com isso, envolvem espaços de dominação, altercação e
resistência – mas também de articulação e encontro.
A partir do exposto, encontramos neste livro 11 textos ensaísticos em
crítica literária, sobretudo de pesquisadoras que têm se debruçado sobre a
temática do deslocamento, em específico no que tange à narrativa brasileira
contemporânea. É preciso, aqui, destacar que os textos foram produzidos nas
mais adversas situações individuais e coletivas derivadas da pandemia de co-
vid-19, que assolou o mundo em 2020 e ainda persiste. Nesse contexto, em
meio a tantos desafios familiares, de saúde e profissionais que envolveram as
condições de produção das pesquisas aqui registradas, brindar a comunidade
acadêmica com esta publicação é, por si só, um ato de resistência, que simbo-
liza luta em meio às intempéries e esperança de dias melhores.
Euridice Figueiredo abre o livro com o ensaio “Alejandro Chacoff e
Julián Fuks: apátridas, exilados, asilados”, cujo mote está na relação entre pro-
dução ficcional e histórias de vida mergulhadas em deslocamentos transna-
cionais, nos quais o “ser estrangeiro” é percebido na construção das perso-
nagens e suas experiências de passagem. Assim, são revisitados, em especial,
os romances Apátridas, de Chacoff, e A ocupação, de Julián Fuks, nos quais a
estrangeiridade é vista como constitutiva de identidades fluidas, vinculadas a
trânsitos familiares e a espaços de segregação que, em muito, dialogam com
o gênero autoficção. A sensação de exílio, atrelada à questão da pluralidade
linguística e das barreiras dela advinda, está presente nas produções desses

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autores e traduz a força do homo migrator de que fala Patrick Chamoiseau
(2017). Como bem observa Euridice Figueiredo, na era das distopias, escri-
tores procuram usar sua arma possível, a escrita, para dizer não à opressão e
colaboram, em sua mobilidade, para “polinizar o mundo” (CHAMOISEAU,
2017) com suas experiências representadas pelo literário.
O deslocamento sob a perspectiva do outsider em espaços que transgri-
dem fronteiras rege “‘London, London’: a narrativa brasileira contemporânea
pelo viés do estrangeiro no velho mundo”, de Cimara Valim de Melo. Para
isso, a representação de personagens na cidade de Londres é explorada a par-
tir das narrativas “London, London ou Ajax, brush and rubish”, presente na
obra Estranhos estrangeiros, de Caio Fernando Abreu; Lorde, de João Gilberto
Noll; Machamba, de Gisele Mirabai; e Deserto, de Luis Krausz. As marcas da
diferença, da repressão e da segregação movem as obras em análise, ao mesmo
tempo em que elas trazem à tona olhares distintos sobre movimentos migra-
tórios e exílicos. Se é “somente aos olhos de uma outra cultura […] que a
cultura estrangeira revela-se completa e profundamente” (BAKHTIN, 2013, p.
7, tradução nossa), percebemos no olhar do “ser estrangeiro” sobre si mesmo
e o outro uma cartografia literária que condensa questões de ordem transna-
cional, colocando à mostra geografias do deslocamento, pelas quais chegamos
a experiências exílicas e diaspóricas circunscritas na memória individual e
coletiva, as quais problematizam identidades e seus (não)pertencimentos.    
Também “A lição das coisas: Halina Grynberg e a literatura judaica pós-
-Shoah no Brasil”, de Lyslei Nascimento, percorre questões caras aos temas
identidade e diferença, mas sob a ótica da diáspora judaica representada pela
literatura contemporânea. Para isso, revisita a obra de Halina Grynberg, mais
especificamente os romances Mameloshn e O padeiro polonês, à luz da matéria
nominal que deles pode ser extraída. Nessas obras, a memória torna-se veí-
culo de resistência, seja pelos silêncios que a atravessam, seja pelo que dela
retiramos como testemunho ou confissão. Desse modo, deparamo-nos com
violências, perdas e exílios que acompanham personagens-sobreviventes da
Shoah, cujos relatos dão voz a minorias perseguidas e aos traumas que assom-
bram suas memórias de vida. A sensação de que “Já não há lugar para onde
ir” (CANCLINI, 2016, p. 57) faz-se presente nos escombros da história indi-
vidual desses sujeitos representados, os quais traduzem a dimensão do dano
coletivo deixado pelo nazismo a seus grupos dissidentes.
Vestígios de identidades em crise que acompanham a produção de au-
tores latino-americanos na contemporaneidade são examinados por Cecily
Raynor em “Ruínas e identidades migrantes em Teatro, de Bernardo Carvalho,

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e Harmada, de Gilberto Noll”. Em seu ensaio, a pesquisadora explora a am-
bivalência espacial existente nos referidos romances, a qual leva o leitor ao
questionamento da própria ideia de espaço, com suas tensões e subjetividades.
Mundos narrativos simbolicamente constituídos como ruínas são aqui apre-
sentados e contribuem com a problematização de processos de homogeneiza-
ção em nível global. Assim, as narrativas em questão abrem caminho a olhares
para além das fronteiras a eles impostas, dissolvendo a dicotomia local x global
por meio de perspectivas que refletem a ambivalência da contemporaneidade.
Na perspectiva da identidade cultural judaica e dos movimentos diaspó-
ricos, “‘O milagre americano do esquecimento’: Krausz e Roth em Nova York”,
de Roxanne Covelo, discorre acerca das obras Outro lugar, de Luis Krausz, e
Pastoral americana, de Philip Roth, buscando traçar um paralelo entre am-
bos os autores no que tange a questões como imigração, exílio e utopismo.
As atitudes das personagens perante o passado e o futuro, com seus sonhos
esfacelados e uma história que não quer ser esquecida, fazem-nos perceber a
condição de sujeitos desterrados, os quais ocupam, em diferentes espaços do
globo, uma posição minoritária. Sujeitos aos quais os autores em questão dão
voz, em uma literatura que se faz essencialmente política, colocando-se em
uma posição ao mesmo tempo emancipatória e interrogativa no que se refere
à conflituosa relação que o imigrante nutre com suas raízes em seus processos
de (des/re)territorialização.
Os trânsitos de personagens pelo espaço urbano, notadamente dos
marginalizados sociais tomados como refugo dos processos intensos de glo-
balização, são contemplados no texto “Relatos de impermanência”, de Maria
Zilda Ferreira Cury, a partir da leitura do livro O mendigo que sabia de cor os
adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. As reflexões de
pensadores como Arjun Appadurai e Zygmunt Bauman, que fazem sobressair
as feições mais sombrias das sociedades atuais, Walter Moser, que toma as
moções contemporâneas como paradigma das suas análises sobre o sentido
político do olhar sobre esse outro marginalizado, fornecem os recortes preten-
didos. Por outro lado, os inusitados e melancólicos testemunhos do narrador
do romance sobre a solidão e a morte, sobre a situação de permanente espera
em que se encontra depois de abandonado pela mulher amada, suscitam a re-
flexão sobre a necessidade de afirmação identitária do sujeito contemporâneo,
até mesmo no contexto atual de precariedade e mudança contínua.
Faces da migração e da errância no espaço urbano são também desvela-
das por Monica Gama em “‘Gente de corpo e dor, quase’: experiência migrante
em Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, e Quarto de despejo, de Carolina

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Maria de Jesus”. Em seu estudo, aspectos da movência e do desenraizamen-
to são abordados, dentro do espaço geográfico brasileiro, pela perspectiva de
personagens mulheres que ocupam posições minoritárias – respectivamente
da mulher idosa e da mulher negra e pobre. A realidade urbana periférica pelo
viés do corpo feminino aproxima ambas as obras, as quais, mesmo separadas
temporalmente por mais de cinco décadas, possuem elementos comuns, car-
regando consigo elementos da literatura migrante. Ademais, o gênero diário,
real ou ficcionalizado, serve de canal para essas narrativas, as quais possuem
em seu cerne os reflexos de deslocamentos de personagens migrantes cujas
posições de invisibilidade social as tornam desterradas na própria terra. 
Na esteira da perspectiva feminina sobre movimentos migratórios, en-
contramos “Entre o deslocamento e a imobilidade: as mulheres exiladas de
Com armas sonolentas, de Carola Saavedra”, de Gínia Maria Gomes. Nele é
discutida a noção de exílio e sua relação com a (i)mobilidade do ser, marca-
da por trânsitos geográficos ou mesmo por condições subjetivas que levam
ao degredo. Para isso, o contexto que circunda três personagens do referido
romance é explorado, à luz das reflexões teóricas sobre a condição exílica – a
“fratura do ser” e a descontinuidade a ela inerentes (SAID, 2003). Sendo o
deslocamento peculiar ao indivíduo contemporâneo, neste observam-se como
recorrentes as sensações de desconforto, não pertencimento e desalojamen-
to, sejam os movimentos experienciados voluntários ou não – elementos que
Gínia investiga com afinco na narrativa de Saavedra.
É justamente sobre o exílio que Luciana Paiva Coronel discorre em
“O exílio e a adoção: perspectivas de alteridade em A resistência, de Julián
Fuks”, no qual se propõe a analisar o fenômeno da migrância, bem como a
mobilidade identitária produzida por essa condição, em face dos reflexos da
ditadura argentina na memória familiar. Nesse sentido, espaços entrecruzam-
-se na obra de Fuks e, com eles, são problematizadas as relações de diferença
entre eu/outro, sobretudo no que tange aos percursos geracionais. Heranças
e rupturas com o passado conflituam-se, promovendo uma luta no interior
da narrativa, repleta de traumas, com seus desdobramentos, e de relações de
alteridade que se projetam no perfil identitário do migrante. Assim, Coronel
constrói um estudo embasado na perspectiva da extraterritorialidade, tendo
em vista uma narrativa centrada no “outro”, na estraneidade que este carrega
consigo e em processos reversos de migração, pelos quais exílio e autoexílio
se perpassam.
Já no ensaio “Um mundo com fronteiras: deslocamentos e reloca-
lizações em Adriana Lisboa”, Vander Resende investiga peculiaridades de

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romances brasileiros contemporâneos que representam personagens em trân-
sitos para fora da nação, em deslocamentos espaciais, identitários, sociais,
culturais, subjetivos e afetivos. A partir de reflexões de Avtar Brah, Achille
Mbembe e David Newman, entre outros, Resende evidencia como os roman-
ces de Adriana Lisboa possibilitam problematizar um recrudescimento e um
reerguimento de muros e barreiras, em meio a um disseminado discurso de
mundo sem fronteiras.
Para finalizar as discussões, Sheila Katiane Staudt, em “(I)migração,
barbárie e silêncio em A noite da espera, de Milton Hatoum”, viaja pelos ca-
minhos da repressão militar brasileira e em suas consequências em termos de
deslocamentos espaço-temporais. Acompanhando a trajetória memorialística
de um exilado que, mesmo distante, não abandona completamente seu lu-
gar de origem, é explorada a experiência individual do estrangeiro, em seus
inúmeros trânsitos forçados devido à barbárie a que a sociedade brasileira
foi submetida com a repressão militar. É também observada a presença de
diários sobrepostos, cuja estrutura narrativa conduz à reflexividade literária,
pela qual a memória do trauma é descortinada. Estrangeiro dentro e fora do
Brasil, o narrador do romance de Hatoum parte em busca de si e de um rumo
para a sua errância, ocasionada pelas diversas cicatrizes deixadas pela condi-
ção migrante, as quais o marcam em sua travessia. As formas de resistência
dessa personagem (i)migrante são aqui alvo de análise.
Entre herança e errância, os caminhos de pedra da literatura brasileira
contemporânea vão sendo abertos e, cada vez mais, transnacionalizam-se. A
riqueza dos textos aqui presentes expressa o quão complexa tem sido a pro-
dução literária atual, e o quanto ela revela quem somos nesse permanente
devir, pois os trânsitos representados nas obras aqui analisadas dão mostra
dos percursos tortuosos que compõem a nossa identidade coletiva. Portanto,
Migração e diversidade cultural na narrativa brasileira contemporânea, na soma
dos estudos apresentados, consegue oferecer uma visão de conjunto acerca de
tendências multifacetadas percebidas na romanesca brasileira em relação à
mobilidade espaço-temporal e aos estranhamentos dela advindos. Poéticas da
impermanência, significativas de um mundo em constante movimento, muito
embora desigual e assimétrico, fazem parte da série literária brasileira e são
aqui representadas na riqueza de múltiplas identidades.

Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury


Profa. Dra. Cimara Valim de Melo
Janeiro de 2021

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Referências

BAKHTIN, Mihkail. Speech Genres and Other Late Essays. Tradução: Wern McGee.
AustIn: University of Texas Press, 2013.
CANCLINI, Néstor García. O mundo inteiro como lugar estranho. Tradução: Larissa
Fostinone Locoselli. São Paulo: Edusp, 2016.
CHAMOISEAU, Patrick. Frères migrants. Paris: Seuil, 2017.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL,
Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estu-
dos culturais. 15.ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
LACLAU, Ernesto. New Reflections on the Revolution of Our Time. Londres: Verso,
1990.
OLIVERI-GODET, Rita. Errância, migrância, migração. In: BERND, Zilá (org.)
Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre:
Literalis, 2010. p. 189-210.
ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo.
São Paulo: Boitempo, 2015.
OUELLET, Pierre. L’esprit migrateur: essai sur le non-sens commun. Montréal: VLB,
2005.
RAMIL, Vitor. Satolep. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn.
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15.ed. Petrópolis:
Vozes, 2014.

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Alejandro Chacoff e Julián Fuks:
apátridas, exilados, asilados

Eurídice Figueiredo1

Na nova geração de escritores brasileiros, alguns têm um duplo perten-


cimento ou ainda uma identidade híbrida e multifacetada, como já acontece
há anos nos países de língua inglesa e francesa, como desdobramento da co-
lonização e das migrações. Aqui a presença de jovens autores binacionais se
articula ao exílio de famílias em decorrência, direta ou indireta, das ditaduras
do Cone Sul. Esse é o caso de três autoras, nascidas no Chile, no Uruguai e
na Argentina na década de 1970, que vieram para o Brasil ainda pequenas:
respectivamente, Carola Saavedra, Gabriela Aguerre e Paloma Vidal.
Diferentemente das três, os dois autores que serão objeto deste texto
são brasileiros natos, o que não impede que mantenham vínculos com ou-
tros países como parte da herança familiar e de suas histórias de vida. Julián
Fuks nasceu em 1981, em São Paulo, de pais argentinos exilados, e Alejandro
Chacoff em 1983, em Cuiabá, filho de uma brasileira e de um chileno. A fa-
mília se mudou para os Estados Unidos quando ele tinha dois anos de idade,
tendo passado um período no Chile. Adulto, morou nos Estados Unidos e na
Inglaterra. Esses elementos biográficos, aqui resumidos de maneira sumária,
foram reelaborados e recriados ficcionalmente em seus romances.
A questão do trânsito internacional para esses escritores se distingue
do cosmopolitismo do século XIX em que se destacam, de um lado, o intelec-
tual sofisticado, como Joaquim Nabuco, autor de Minha formação, e, de outro
lado, os rastaqueras, ricos comerciantes de café, nouveaux riches ignorantes,
motivo de escárnio da elite. A atração do mundo de Nabuco não se confunde
com os prazeres do rastaquerismo; ela se exprime pelas afinidades comparti-
lhadas com a cultura europeia porque, como explica Sérgio Buarque (1973,
p. 3), o brasileiro é um “desterrado”. No fundo esses intelectuais brancos se
sentem como europeus expatriados, o que levou Mário de Andrade a falar de

1  Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade


Federal Fluminense, possui Mestrado e Doutorado em Letras Neolatinas pela UFRJ. É pesquisa-
dora do CNPq. E-mail: [email protected].

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“moléstia de Nabuco” (apud SANTIAGO, 2004, p. 25), que se caracteriza por
ter saudade do cais do Sena estando na Quinta da Boa Vista.
A experiência de Fuks e Chacoff também se difere do circuito interna-
cional traçado por autores como Silviano Santiago (Stella Manhattan) e João
Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, Lorde) a partir de suas viagens e estadas
no exterior enquanto professor e escritor. Outros escritores “viajaram” para o
exterior, seja após viagens reais (Adriana Lisboa em Rakushisha, Azul corvo e
Hanói) e Bernardo de Carvalho (em Mongólia e O filho da mãe), seja através de
viagens imaginárias, como Chico Buarque (Budapeste) ou André Sant’Anna,
que tematizou a venda de jogadores de futebol para os times europeus em O
paraíso é bem bacana. E, mesmo na geração deles, seus romances não têm
nada em comum com as produções de Luísa Geisler (De espaços abandona-
dos) ou de Carol Bensimon (O clube dos jardineiros de fumaça e Todos nós
adorávamos caubóis), nas quais há um distanciamento dos países visitados
por suas personagens, o estrangeiro se construindo como exterioridade, como
experiência passageira, como aprendizado ou fuga (ainda que as duas autoras
tenham feito viagens reais a esses países).
Já em Apátridas de Alejandro Chacoff e Procura do romance, A resistên-
cia e A ocupação de Julián Fuks, suas histórias de vida são fruto dos desloca-
mentos de suas famílias, o que faz com que a estrangeiridade seja constitutiva
de suas identidades. Nesses romances, os trânsitos familiares são contados,
sendo que em A ocupação, Fuks alarga seus horizontes, elaborando também a
trama dos ocupantes do Hotel Cambridge, em São Paulo. Além desses traços
comuns, é de se destacar o fato de terem todos eles o formato de autoficção: os
autores estão sempre contando suas próprias experiências.
Em vez de autoficção, Julián Fuks (2017, p. 76) prefere falar de pós-
-ficção, como se hoje os escritores já não pudessem escrever romances com a
imaginação, como se fazia antigamente, obrigados que são “a trabalhar ago-
ra apenas com o que lhes resta num cotidiano imediato, com suas próprias
biografias, seus próprios passados, suas parcas lembranças e suas vivências
diárias quase sempre pueris”. Como afirma Jacques Rancière (2009, p. 58), “o
real precisa ser ficcionado para ser pensado”; portanto, ao escrever enredos
verdadeiros, a ficção não é abandonada, mas ressignificada: ao narrar os acon-
tecimentos vivenciados por eles (e seus personagens), os autores ficcionali-
zam, dando ênfase, amalgamando, distendendo, mudando as temporalidades
– enfim, há muitos procedimentos próprios da narratividade e decorrentes do
uso da linguagem que são colocados em ação para se construir um romance.
O romance é um gênero inacabado e aberto, como já apontava Bakhtin
(2010, p. 399); ele está sempre se reinventando. Ao se tornar dominante,

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contribui para a renovação de todos os gêneros, contaminando-os. Se existe
um paradigma do romance – o romance balzaquiano –, ele foi criado para
ser imediatamente quebrado, parodiado, transformado. Por ser um gênero
impuro, o romance se hibridiza em contato com outros gêneros, podendo se
utilizar de todos os procedimentos, como afirma Marthe Robert (1972, p. 15):
a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o dis-
curso; ele não sofre nenhuma proibição e nenhuma prescrição; em geral em
prosa, ele pode, eventualmente, recorrer também à poesia.
Assim, desde as últimas décadas do século XX, ao se apropriar da tra-
dição autobiográfica, o romance se reinventa na forma de autoficção; nela, o
“eu” do autor está pulsante – o mundo gira em torno dele. Entretanto, não
existe nem um pacto de verdade, como apregoa Philippe Lejeune, para a auto-
biografia, nem um pacto ficcional, que seria a regra do romance; trata-se, an-
tes, de um pacto ambíguo, transversal, híbrido. O leitor tanto pode acreditar
que é tudo verdade quanto desconfiar de (quase) tudo, ficando, desse modo,
no terreno do indecidível. De qualquer maneira, é certo que, para criar uma
narrativa interessante e legível, o autor exacerba os sentimentos e as emoções,
comprimindo ou estendendo as ações dos personagens.
Quando decide escrever, ainda morando em Londres, o personagem-
-narrador de Chacoff não sabe se deve escolher o português ou o inglês. Pensa
em dois enredos, ambos relacionados com questões políticas de países estran-
geiros: o primeiro, que provavelmente seria escrito em inglês, se passaria em
Londres, trataria dos impactos da política econômica de Margaret Thatcher
sobre uma família de classe baixa; já o outro, certamente escrito em português,
seria sobre um exilado da ditadura chilena que foi parar no Brasil. Contudo,
não consegue deslanchar nenhum, porque eles lhe são exteriores; seu conhe-
cimento dos assuntos era livresco. Essas histórias “não tomavam vida nunca,
desidratadas pelo sol totalitário dos seus temas graves” (CHACOFF, 2020, p.
182). Resulta que não quer/pode realmente escrever ficção; necessita, pelo
menos no primeiro livro, contar sua história, ainda que em forma de romance.
Fuks, que já publicou três romances, segue a mesma trilha da auto-
ficção que percorreu em Procura do romance. Na era da pós-ficção, o ensaio
se incorpora ao romance mais do que nunca porque o autor, autoconscien-
te e autorreflexivo, não quer só contar uma história – ele pretende construir
uma reflexão ética e estética sobre o presente. Em Procura do romance (2011)
Fuks utilizou a terceira pessoa para narrar os percalços de seu personagem,
Sebastián – na verdade seu alter ego –, que reapareceria nos dois romances
seguintes. Nessa primeira obra, muito autocentrada, com laivos proustianos

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na exploração da memória da criança que morou naquele apartamento de
Buenos Aires, numa tentativa de volta dos pais após o fim da ditadura, no
início dos anos 1990, não falta nem a cena do beijo de boa noite da mãe nem
a ansiedade do menino. Em comum com os romances mais recentes, a voz do
narrador que desconfia de si, duvida da linguagem, desestabiliza a “verdade”
exposta. O narcisismo de sua empreitada, como se fosse um exilado de volta
às origens, só é desviado pela comunhão que sente na Plaza de Mayo quando
vê as mães e avós, com seus lenços brancos na cabeça; pensa, então, que seu
papel deve ser o de “testemunha legítima de seu tempo” (FUKS, 2011, p. 127);
em outras palavras, quer dar uma conotação política a seu projeto, para que
não seja vazio.
A memória da escola, em que era “el brasilero”, é tênue, às vezes um
pouco caricata, quando todas as crianças descem ao pátio para a inspeção de
piolhos; as recordações da queda em que corta a testa ao bater na quina da
mesa e do período em que a mãe fica acamada após um acidente são um pou-
co mais vívidas. Todavia, o autor não busca realmente construir uma narrativa
realista de fatos do passado, como faz Chacoff; Fuks cria uma ambiência um
pouco desfocada para lembrar de uma criança que viveu naquele apartamento
em torno de seus 7 anos de idade. O presente das andanças de Sebastián pelas
ruas, praças, restaurantes, livrarias, apesar de não ter a irresponsabilidade do
flâneur, é muito mais de interrogação sobre si e sobre o poder da arte. E ape-
sar do tom autodepreciativo, o autor/narrador recolhe suas folhas soltas antes
de deixar o apartamento, e o leitor sabe que elas são o romance que acaba de
ler, como em Proust. Apesar de sua pretensa derrota ao procurar escrever o
romance em Buenos Aires, o romance se fez.
O olhar do menino do passado é muito importante em Apátridas, ocu-
pando toda a primeira parte, muito mais longa do que a segunda, em que o
protagonista já é um adulto que reside em Londres e volta para a missa de
sétimo dia do avô materno. O menino, como o autor (segundo a orelha do
romance), nasceu em Cuiabá, de mãe brasileira e pai chileno; foi ainda pe-
queno para os Estados Unidos. Com cerca de 10 anos, após a separação dos
pais, a família se instala em Cuiabá. No Brasil, onde costumava vir de férias,
tem sentimentos contraditórios, vergonha e orgulho; a mãe e as crianças são
“agregados” da casa, têm um estatuto subalterno, ocupando o mesmo quarto
e dependendo do dinheiro do avô, que mostrava certo desprezo por intelec-
tuais que ganhavam pouco. O autor usa uma metáfora para falar da adapta-
ção do menino àquela nova realidade: assim como foi obrigado a tomar o
leite com nata, diferente daquele que bebia nos Estados Unidos; ele teve de se

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acostumar com aquela “vida viscosa, densa, empelotada” (CHACOFF, 2020, p.
66). Quando a mãe arruma um emprego, compra um Gol 1000, um carrinho
bem modesto para o padrão da família. O menino sonha em se vingar um dia,
tornando-se um intelectual rico. A casa do avô, imponente e feia, é sempre
referida na topografia da cidade de Cuiabá, na rua Otiles Moreira. O narrador
de primeira pessoa inscreve, assim, a capital do Mato Grosso na produção
recente da literatura, esse Brasil Central pouco presente no mapa literário.
Nesse retorno ao país natal, o menino é objeto do olhar de estranha-
mento dos familiares e colegas de escola, que observam seu sotaque ao fa-
lar português e que lhe fazem perguntas às quais não sabe responder (se nos
Estados Unidos é melhor ou pior, se tem passaporte americano, se tem sau-
dade do pai “chileno”). Sente-se desterrado, sendo, portanto, falsa a ideia de
“país natal”, pois a Filadélfia (Estados Unidos), onde viveu seus primeiros anos
escolares, talvez seja o lugar em que se sentia “em casa”. Nota-se, em seus trân-
sitos, que ele sempre esteve deslocado: no período em que a família passou no
Chile, na ausência da mãe, que voltara para os Estados Unidos com o objetivo
de terminar a sua tese de doutorado, ele e a irmã ficaram entregues a uma
babá, já que o pai não se ocupava realmente dos filhos, estando mais interes-
sado na sua nova namorada, Lucía, com quem viria a se casar. Então o menino
é obrigado a aprender espanhol; sente-se inseguro devido aos eventuais erros
que poderia cometer.
Tendo feito curso de Relações Internacionais, que parecia lhe abrir as
portas da mobilidade, tudo o que o narrador deseja é voltar para o norte, para
os Estados Unidos, onde cursa o Mestrado, que o qualifica para um trabalho
em Londres. Sua especialidade é América Latina, o que o faz viajar para os
países do Cone Sul, onde procura nas ruas a figura do pai, que ele supõe mo-
rar em Assunção (Paraguai), já que em seu último encontro em São Paulo o
pai lhe mostrara um recorte de jornal com matéria sobre ele, então diretor de
Relações Internacionais da Universidade de Assunção. O trabalho que faz na
empresa ou organização não parece interessá-lo muito. Quando criança, tinha
sotaque em português, já que foi alfabetizado em inglês. Sua experiência no
Chile lhe parece uma fraude, sua relação com essa língua é de certo estranha-
mento. “A língua espanhola é mais ou menos como uma mala vazia – algo
muito leve […] que carrego pelo saguão com facilidade” (CHACOFF, 2020,
p. 90).
A questão da dupla nacionalidade e do duplo pertencimento já se apre-
senta desde a escola em Cuiabá, onde alguns meninos levam passaportes es-
trangeiros para se vangloriar de suas origens; o protagonista sente inveja da

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leveza com que seus colegas lidam com isso, enquanto sua sensação era de
que precisava se justificar para os outros. “O desterro era um assunto que me
afligia” (CHACOFF, 2020, p. 42). Tanto Sebastián de Procura do romance e A
resistência quanto o protagonista sem nome de Chacoff sentem-se exilados no
Brasil, como se não pertencessem de todo ao país em que nasceram. A ques-
tão da pluralidade linguística está presente: o inglês e o espanhol são línguas
que fazem parte da história de vida, respectivamente, de Chacoff e Fuks.
Em todos esses romances, há uma busca para entender os pais, os ante-
passados, enfim, as raízes que poderiam explicar esses sujeitos em crise, como
se a anterioridade pudesse lhes restituir uma interioridade que lhes falta; de
fato, os semas do vazio, do oco, da ruína, da inoperância ressoam nas narra-
tivas desses jovens autores. Por essa razão, em artigo consagrado ao romance
A resistência (2020), abordei-o como uma narrativa de filiação, tal como foi
teorizado pelos críticos franceses Dominique Viart (2008) e Laurent Demanze
(2008). Diferente do romance genealógico, na narrativa de filiação remonta-se
o presente em direção ao passado; o narrador ou a personagem busca enten-
der os pais e os antepassados para melhor se compreender.
Ao longo de todo o romance Apátridas, o narrador procura explicar a
figura do pai através da reconstrução da história familiar – um pai ausente,
que viu poucas vezes depois da sua volta ao Brasil e cujo endereço desconhe-
ce. O pai da infância nos Estados Unidos parecia-lhe seguro e elegante ao
pagar a conta no restaurante, mostrava-se superior nos hotéis que frequentava
em viagens, menosprezava a família da mãe de Cuiabá, uns caipiras, odiava
o Brasil. Rememora, insistentemente, o roubo de seu Rolex na Avenida Santo
Amaro, em São Paulo, relógio que denota sua pretensão à riqueza, assim como
seu Alfa Romeo levado para o Chile.
Há um descompasso na figura do pai porque, após a separação, pedia
dinheiro descaradamente e de maneira compulsiva ao ex-sogro, em telefone-
mas que o menino começou a escutar na extensão. Apesar das tentativas, não
compreendia muito bem as conversas e, sobretudo, não entendia a razão de o
avô continuar financiando o pai, um homem que não gostava de trabalhar. O
menino chega a pedir ao avô para parar de ceder às demandas do pai, mas o
avô lhe responde que o dinheiro é seu e ele dá a quem quiser. Aliás, distribuir
notas e notas de dinheiro era uma maneira de demonstrar o seu poder, quiçá
o seu afeto. O pai parece desprezível porque chora, um choro fingido, para co-
mover o velho; chega a pedir 500 reais ao filho adolescente quando ele morava
em São Paulo. É constrangedor.
O pai diz ao filho adulto que a família da mãe se apossou de seus bens,
versão oposta à que a mãe lhe contava na infância, em que ele tinha vendido

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todas as propriedades que ela herdara. Ele se sente lesado porque perdeu o pá-
trio poder, mas realmente não se interessou em manter contato com os filhos.
Alguns da família diziam que ele era inteligente, outros que era louco, socio-
pata. O narrador menino achava que o pai não era louco, percebia nele um
“vazio interior”, uma “falta de interioridade” (CHACOFF, 2020, p. 29). Nessas
duas expressões fica evidenciado que esse homem é uma forma sem conteúdo,
um ser irresponsável, narcisista, que reclama de tudo, como se todos estives-
sem a seu serviço. O pai é um vazio, um ponto de interrogação, “uma figura
etérea e sem muitos contornos” (CHACOFF, 2020, p. 10). É tão etéreo que não
dá seu endereço, como se não fosse localizável num território.
Outro evento muito mencionado é sua expulsão de Cuiabá pelos fami-
liares da mãe, história mal contada ou mal compreendida pelo narrador. Em
sua volta à cidade no final do romance, hospeda-se, nas duas últimas noites,
no hotel El Dorado, onde ocorreu o entrevero, tentando imaginar a cena no
saguão do hotel; busca esclarecer os fatos com Romualdo, o motorista da fa-
mília, que não explica nada. Apesar de o romance se apresentar como uma
busca do pai, que coincide com a busca do país, conforme a orelha do livro,
escrita por João Moreira Salles, o que se vê é a erosão da autoridade paterna
que coincide com a ausência de pátria.
Ao fim e ao cabo, o avô é a figura central, aquele que exerce a função
de pai nesses anos iniciais após a volta ao Brasil. É ele o patriarca que acolhe
a filha e os netos, assegurando-lhes a sobrevivência com conforto, afeto com
certa bonomia, às vezes irônica. A importância do avô se comprova na segun-
da parte, quando o narrador volta a Cuiabá após sua morte, aos 90 anos. E
mais uma vez se rememora a vida do avô, o fim da casa, demolida, todos da
família já morando em apartamentos.
O pai de Fuks aparece em seus três romances: no primeiro, numa única
cena, mostra-se compreensivo e terno diante do menino que acordou de noite
todo molhado e envergonhado. Em A resistência, os pais, psicanalistas, foram
militantes e perseguidos pela ditadura argentina, tendo fugido para o Brasil
com o bebê adotado. Eles são vistos mais no passado, em que se mostraram
aguerridos, apesar de certa ingenuidade, ao ter armas debaixo da cama ou ao
participar de uma reunião no Parque da Água Branca em São Paulo. A despei-
to da derrota dessa geração que viveu e sonhou com a revolução, em tempos
de utopia, ela é mais plena e realizada do que a de Sebastián, que se sente
inútil. Em A ocupação, ao contrário, o pai do presente é um homem velho e
doente, bastante depauperado. Entretanto, apesar de parecer uma ruína, ele
melhora e, na última cena, já não aceita a comida insossa do hospital – espera

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que o outro filho lhe traga um bife ancho, o que assinala seu bom apetite e sua
recuperação.
Sendo chileno da geração que viveu a ditadura de Pinochet, o pai de
Chacoff é uma incógnita. Às vezes a mãe sugere que ele gostava do ditador,
mas nada é muito certo. Já morando em Londres, o personagem-narrador,
diante dos filhos de exilados, sente-se desprovido de história para contar por-
que seu pai não foi nem militante nem colaboracionista; mais uma vez, seu pai
é um ser etéreo. “No fundo eu queria me juntar àqueles filhos de exilados ou
até aos filhos dos fascistas […], com seus romances históricos, a maioria ainda
não escrita, inspirados nas vidas gloriosas ou desgraçadas dos seus pais em
combate” (CHACOFF, 2020, p. 120). Contudo, a figura do pai é evanescente,
e nada havia a contar sobre ele.
Além dos pais, a narrativa de filiação tende a remontar aos ancestrais,
reconstruindo uma linhagem na qual existe um legado a ser transmitido/re-
cebido. Em A ocupação, o pai de Sebastián começa a passar mal numa viagem
à Patagônia, após ter verificado, pela internet, que seus avós judeus foram efe-
tivamente mortos em Auschwitz. É significativo o sintoma que apresenta: a
opressão que sente não o deixa respirar. Embora soubesse isso de maneira
impessoal e genérica, o pai só decidiu realmente pesquisar o assunto instigado
pelo filho que escrevera sobre os ancestrais judeus em A resistência. O conhe-
cimento era algo distante de sua subjetividade, um mero fato histórico do qual
se distanciava emocionalmente. A herança que se carrega pode ser um fardo,
pode ser incompreensível, pode ser uma ferida ou algo de que se orgulha ou
se envergonha, mas não pode ser ignorada.
A questão da diáspora se manifesta em todos os pormenores no decur-
so de uma vida. O pai de Fuks, hospitalizado em A ocupação, se inquieta em
relação ao local onde será enterrado: forasteiros como eles não têm um túmu-
lo da família. Por outro lado, não quer ser enterrado em Buenos Aires: com a
família estando no Brasil, quem iria visitá-lo? “Nenhum parente enterrado no
Brasil, na Argentina os corpos dos poucos espalhados em vários cemitérios,
nenhum lugar no mundo que reunisse os antepassados, nenhuma terra que
congregasse seus ossos” (FUKS, 2019, p. 46). Cremação lhe parece inaceitável;
ele não quer pactuar com Hitler e continuar a fazer o seu trabalho. Sendo
imigrantes, eles se reterritorializam no Brasil fundando uma família brasileira
e, mesmo em sua morte, podemos imaginar uma reapropriação simbólica do
país ao estabelecer um túmulo familiar no qual os descendentes poderão vir a
ser enterrados. A visibilidade do monumento funerário marcaria esse nasci-
mento/enraizamento em solo estrangeiro tornado solo pátrio.

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Nesse romance, a linhagem continua no projeto do casal de ter filho;
durante anos, a esposa do narrador manifestou sua recusa da maternidade,
mas mudou de opinião, ensejando o início de uma nova fase. Apesar dos per-
calços da gravidez iniciada e do luto que se segue ao aborto espontâneo so-
frido, o casal no final do romance parece ter-se recuperado. E o leitor pode
imaginar que outras tentativas poderão ser bem sucedidas. Numa sociedade
que John B. Thompson (apud LADDAGA, 2013, p. 25) chamou do self-disclo-
sure, em que os escritores têm contato direto com o público através das redes
sociais, os leitores já sabem que o casal tem duas filhas.
Podemos detectar uma similaridade entre as crises por que passam os
corpos do pai e da mulher com os escombros e a miséria do Hotel Cambridge,
como se prédios, corpos, ou seja, a própria sociedade estivesse em ruínas.
Todavia, é a resistência que se afirma; todos reagem, tanto os participantes
desterritorializados da Ocupação quanto as duas pontas geracionais, a do pai
e a do projeto de filho. Ainda que a melancolia predomine ao longo do ro-
mance, o final aponta para alguma esperança porque, em termos políticos,
não se pode sucumbir às opressões; diferentemente da descrença de Pasolini,
Fuks se aproxima mais do pensamento de Didi-Huberman (2014, p. 49), que
acredita na sobrevivência dos vaga-lumes: “Há sem dúvida motivos para ser
pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar
sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes”.
No romance de Chacoff, o narrador perscruta a vida do pai etéreo, com
mania de grandeza, irresponsável, que não ajuda a avó Elena, a qual vive po-
bremente em Santiago; por outro lado, convive e acompanha de perto as his-
tórias do avô materno, dono de cartório, rico, homem de direita, que tinha
ligações com a família de Filinto Müller, político de Cuiabá que se notabilizou
por ter sido o chefe da Polícia Política no Governo Vargas, responsável por
prisões, torturas e assassinatos. Na verdade, tudo é nebuloso; não há compro-
vação de nada. Na cena final do romance, a mãe lhe dá um relógio que per-
tenceu ao bisavô, que teria sido comprado em Londres pouco após o fim da
Primeira Guerra. Esse relógio com o vidro quebrado, sem conserto possível,
simboliza o tempo parado? O tempo da família que não evoluiu? O protago-
nista o guarda como um talismã, uma espécie de objeto mítico de uma ances-
tralidade pouco (ou nada) conhecida. Não se sabe, por exemplo, como e por
que o bisavô teria ido para Londres. O que fazia? São muitas as especulações
em Apátridas. Já o bisavô de Fuks, sabe-se, foi deportado para Auschwitz. Nós
podemos conhecer (ou não) nossa genealogia, mas não podemos escolher
nossos antepassados.

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As migrações sempre existiram – elas mudaram as civilizações devido
às trocas que propiciaram. Como lembra Patrick Chamoiseau (2017), o Homo
sapiens é, antes de tudo, um Homo migrator. Os judeus que vieram para a
América, fugindo do antissemitismo, dos pogroms e das perseguições nazis-
tas, se juntaram a outros imigrantes europeus e asiáticos, que queriam “fazer
a América”, e aos descendentes de africanos que foram trazidos à força. Os
únicos povos autóctones são os indígenas. Em nossa história recente, com a
progressiva globalização, o fenômeno se acirrou e, ainda que o Brasil não seja
um grande recebedor de migrantes, como os Estados Unidos e a Europa, tem
acolhido, sobretudo, hispano-americanos e haitianos.
O termo “apátridas” no romance de Chacoff (2020, p. 110) é só uma
provocação do tio, apelidado de comunista; um xingamento direcionado às
crianças que o perturbavam quando estava escrevendo, ao comerciante que
não lhe vendia fiado, ao Estado que lhe cobrava impostos demais ou ao “pre-
sidente com o cabelo empapado de gel que só andava de jet ski e não tinha
aguentado nem dois anos no cargo”, numa alusão ao presidente Collor, que
ficou no poder de 1990 a 1992. Ninguém é, stricto sensu, apátrida no romance,
embora haja no mundo de hoje muitos migrantes indocumentados. Durante
a ditadura brasileira, a partir do decreto nº 66716 de 15 de junho de 1969,
promulgado pelo presidente Médici, militantes, seus filhos e netos, banidos do
país, ficaram anos sem passaporte; eram, pois, apátridas, pessoas sem direitos
e sem acesso à cidadania.
Em A ocupação, o narrador não menciona o estatuto dos estrangeiros
que estão ocupando o Hotel Cambridge; são todos expatriados. Mesmo os
brasileiros que estão ali são expatriados, porque a pátria não lhes proporcio-
nou trabalho, educação e moradia, elementos fundamentais para se ter direito
à cidadania. O Hotel Cambridge foi um hotel de luxo na avenida Nove de
Julho, no centro de São Paulo, até 2002. Dilapidado após oito anos de abando-
no, foi ocupado a partir de 2012. A contiguidade do prédio degradado com o
luxo na cidade mais rica e mais moderna do país aponta para a desigualdade
social que permeia a sociedade brasileira. Se no romance de Chacoff são os
indígenas que mendigam à beira da estrada em Cuiabá, o que assinala a mar-
ginalidade em que vivem, no romance de Fuks os excluídos estão no coração
da “civilização”.
A chefe da ocupação é Carmen, uma brasileira enérgica, líder da Frente
de Luta por Moradia que dirige o movimento com sua voz vigorosa. Ela sabe
que o narrador está ouvindo as histórias de vida dos ocupantes visando es-
crever um livro; ela lhe diz: “Se quer entender este lugar, melhor esquecer as
trajetórias pessoais, as vidas particulares. Se quer entender este lugar, melhor

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não perder de vista a coletividade, melhor se juntar a nós na luta” (FUKS,
2019, p. 83).
Dentre os ocupantes, destaca-se Najati, provavelmente um refugiado,
que fugiu da guerra na Síria, e, portanto, correspondia às exigências para con-
cessão de refúgio. Ele deseja contar sua história, e o escritor funciona como o
mediador que a narra em seu romance. Najati morava em Homs, cidade que
foi destruída no âmbito da guerra civil, no período de 2011 a 2014. Najati foi
preso depois de fazer um discurso em praça pública; foi solto sob a condição
de deixar o país. Não tem notícias de sua mulher, seus filhos e netos; sente-se
deslocado aqui. No fim do romance, o narrador já não o encontra mais. Teria
ele voltado à Síria? Segundo Zygmunt Bauman (2005, p. 85), esses outsiders
“trazem os distantes ruídos da guerra e o mau cheiro de lares pilhados e al-
deias incendiadas que não podem deixar de nos fazer lembrar como é fácil
invadir ou esmagar o casulo de sua rotina segura e familiar […], e como pode
ser ilusória a segurança de sua posição”.
Outros ocupantes também são oriundos de países estrangeiros. Gínia
veio para o Brasil após o terremoto que destruiu Port-au-Prince, capital do
Haiti, em 2010, matando cerca de 300.000 pessoas. Demetrio Paiva deixou
sua casa nos arredores de Cuzco no Peru, passou pela Bolívia, pelo Paraguai e
chegou a São Paulo. Já Rosa fugiu de Aragominas, pequena cidade do estado
de Tocantins, depois que seu marido a abandonou e sua casa foi invadida por
bichos. Cada um tem ou teria uma história de guerra, acidente ou miséria
para contar; cada um se deslocou em busca de melhores condições de vida.
Pelos agradecimentos de Fuks no fim de A ocupação, percebe-se que
seus personagens são inspirados em pessoas reais, com nome e sobrenome:
Najati Tayara, Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, da FLM, Demetrio
Paiva e Carolina Motoki, que lhe emprestou a história de Rosa. Como Gínia
não é mencionada, talvez ela seja uma personagem fictícia criada para dar
conta da presença dos haitianos. O Brasil entrou no horizonte deles quando
passou a comandar a Missão das Nações Unidas pela Estabilização do Haiti
(MINUSTAH)2 em 2004. Essa foi a primeira vez que nosso país foi encarre-
gado pela ONU de ser líder de uma missão, que se deveu à atitude proativa
do Ministério de Relações Exteriores, que pleiteava que o Brasil se tornasse
Membro Permanente do Conselho de Segurança (o que não aconteceu).

2  A MINUSTAH foi bastante criticada devido aos abusos cometidos e, sobretudo, à violência
da repressão na Cité Soleil em 6 de julho de 2005, quando 63 pessoas foram mortas. O General
Augusto Heleno, então comandante, foi substituído pelo governo, o que muito o irritou. A mis-
são foi encerrada pela ONU em 2017.

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A situação no Haiti, que já era ruim, ficou péssima após o terremoto que,
em 12 de janeiro de 2010, em poucos segundos, destruiu a capital, Port-au-
Prince, onde se concentrava quase todo o PIB do país. Desde então, a afluên-
cia dos haitianos aumentou de maneira significativa: segundo estimativas da
Polícia Federal, cerca de 72.000 teriam entrado no país entre 2010 e 2015.
Apesar de não atenderem aos critérios do Comitê Nacional para Refugiados
(CONARE), eles foram admitidos por razões humanitárias, devido à criação
de uma resolução normativa. Eles formam, junto com venezuelanos, bolivia-
nos e colombianos, as maiores comunidades de migrantes da região América
do Sul/Caribe. Já os sírios constituem o maior contingente de refugiados.
Gínia provoca o narrador perguntando se ele quer que ela conte como
foi o terremoto, isso é o que todos querem. Mas, depois de narrar a destruição,
o desaparecimento da filha, os escombros da cidade-cemitério, ela faz ques-
tão de ressaltar que ele precisa ir além, escrever que o Haiti não é só miséria.
“Mas ponha algo mais que a dor, algo mais que a desgraça, se quiser escrever
qualquer coisa que valha a pena” (FUKS, 2019, p. 73). Ela se orgulha de seu
povo, que fez uma revolução de independência na qual eliminou a escravi-
dão e expulsou os colonizadores franceses. E ela acrescenta: “nenhum de nós
jamais venderia a nossa história, a liberdade que conquistamos com a nossa
própria força” (p. 73). O escritor Dany Laferrière3, no livro Tout bouge autour
de moi (2010), em que relata sua experiência durante o abalo sísmico, também
evoca a independência única e gloriosa do Haiti, nascimento de uma nação
nunca reconhecida pelo Ocidente, que continua punindo o país para que sirva
de lição àqueles que, porventura, desejarem se libertar da escravidão. Uma
analogia entre a revolução haitiana e a revolução cubana parece se impor: nos
dois casos, a glória foi duramente cobrada pelos poderosos; o Haiti sofreu no
século XIX o mesmo bloqueio econômico que foi imposto a Cuba no século
XX, além de ter pagado uma indenização à França.
Os ocupantes do Hotel Cambridge são, em sua maioria, migrantes eco-
nômicos, indesejáveis que não se enquadram no projeto de acumulação do
capital e, portanto, constituem o refugo no sistema capitalista globalizado.
Essas pessoas, que se situam em espaços periféricos, sem infraestrutura e sem
serviços sociais (favelas, prédios em escombros sob ocupação, bairros longín-
quos), são alvos de ataques da polícia. Tidos por perigosos, violentos, causam
ansiedade em diferentes camadas da população: os mais pobres temem se tor-
nar refugo e se equiparar a eles enquanto a classe média tende a desprezá-los.

3  O escritor haitiano, que mora no Canadá, estava em Port-au-Prince para participar do fes-
tival Étonnants Voyageurs, tendo escrito essa crônica no calor da hora.

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Bauman (2005) associa refugo humano a lixo industrial, inspirado no roman-
ce Cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, em que uma montanha de lixo se acu-
mula às portas da cidade de Leônia. Assim como todos os habitantes ficam
felizes com a passagem dos lixeiros, que os libertam de suas impurezas (o
lixo), os moradores de nossas grandes cidades gostariam de se desvencilhar
de todo refugo humano, essas “vidas desperdiçadas” (que dá título ao livro
de Bauman) ou essas vidas que não importam (o movimento negro estaduni-
dense reivindica justamente que Black Lives Matter). No fundo, a própria ideia
de cidades invisíveis em Calvino tem a ver com esses espaços escondidos, no
subsolo, nas periferias, nas inúmeras reduplicações das cidades descritas que,
às vezes, tornam-se verdadeiros labirintos devastados dos quais não se con-
segue sair.
Em Apátridas, ao voltar a Cuiabá para a missa de sétimo dia do avô,
a cidade lhe parece estrangeira, talvez mais estranha que Londres, onde vi-
via. No ato de querer mudar seus documentos (identidade, título de eleitor)
no cartório que fora do avô e que continua nas mãos da família, exprime-se
um desejo de despertencimento, de desterritorialização. E o personagem sen-
te que nenhum lugar lhe pertence de todo: brasileiro expatriado, o Chile do
pai interessa-lhe quase nada, os Estados Unidos e a Inglaterra, com os quais
talvez se identificasse mais, não o reconhecem como um cidadão. Situa-se,
portanto, num não lugar identitário, ainda que seja um privilegiado em ter-
mos socioeconômicos.
A alienação das classes superiores retratadas por Chacoff (2020, p. 151)
inclui seus colegas que só pensam em fazer concursos para ter um bom em-
prego, seus familiares que nem o reconhecem, pensando que ele sequer falava
português, enfim, uma família desagregada e um grupo social sem caráter. O
cúmulo da alienação em cena é representado pela figura da turista rica e in-
sensível às cidades visitadas. A tia Leci era uma viajante contumaz, conhecia
São Petersburgo, Berlim e Helsinque, mas era tudo inútil – ela permanecia
inalterada. “Pulava de um continente a outro, ansiosa por roçar a superfície
agitada da experiência, sem se preocupar muito em absorver os lugares pelos
quais passava”. Com ironia, o autor termina o episódio da tia Leci dizendo
que, ao visitar a catedral de Notre-Dame de Paris, irritou-se porque achou que
ela era imitação da igreja de São Gonçalo, quando é justamente o contrário,
sendo a igreja de Cuiabá uma cópia kitsch da catedral francesa.
Julián Fuks é tão privilegiado quanto Chacoff, porém, ele parece estar
mais estruturalmente enraizado na sociedade brasileira, sem perder sua ar-
gentinidade. Ele tem consciência de seu estatuto; percebe-se deslocado junto

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aos residentes que se propõe a retratar. Ele chegou à ocupação através de uma
Residência Artística Cambridge, a convite de Juliana Caffé, realizadora de um
documentário sobre a ocupação, e patrocinado por um programa artístico da
Rolex, sob a supervisão do escritor moçambicano Mia Couto. O escritor é um
outsider naquele cenário em ruínas e, no entanto, ele está ali para dar teste-
munho, como já o fizera no primeiro romance, ao passar pela Plaza de Mayo.
Escreve sobre a ocupação como sinônimo de resistência, porque aquelas pes-
soas sem teto estão resistindo, lutando por moradia, não são perdedoras; a
prisão de Preta significa que ela é militante de uma justa causa, em defesa dos
direitos que lhe foram arrancados.
Aqui se faz uma ligação da geração de Fuks com a de seus pais: apesar
de estarmos vivendo a era das distopias, apesar de essa geração ser acomoda-
da e individualista, escritores como Fuks estão tentando usar sua arma possí-
vel, a escrita, para dizer não à opressão, para dizer não aos tiranos de plantão.
Esse romance faz, assim, ressoar o anterior, A resistência, em que fala de sua
família e, ao fazê-lo, trata dos tempos passados de ditadura e de militância,
mas também do presente, do seu presente de resistente. “Ocupar era o im-
perativo de todos eles, ocupar as praças, as ruas, os prédios vazios, povoá-los
com seus corpos ainda firmes, com sua vida incontível” (FUKS, 2019, p. 104).
A ocupação é, pois, uma luta política coletiva que se opõe à resignação,
à aceitação da marginalização e da invisibilidade. O autor está lá presente,
dando seu testemunho e, principalmente, compartilhando a luta. E o capítulo
se encerra com a frase que resume o significado do seu projeto: “Meu impe-
rativo talvez fosse outro, embora impossível: me fazer praça, me fazer rua,
me fazer prédio vazio, e que enfim me ocupasse o incontível da vida” (FUKS,
2019, p. 105).
A resistência dos expatriados é tema de uma conversa entre Judith
Butler e Gayatri Spivak, (2018, p. 44), em que a primeira afirma: “Precisamos
de meios mais complexos de compreensão da polivalência do poder e de
suas táticas para entender formas de resistência, agenciamento e contramo-
bilização que obstruam o poder de estado ou dele se esquivem”. O exemplo
dos hispânicos que cantam o Hino Nacional em espanhol é o mote que faz
deslanchar o diálogo das duas intelectuais, porque a língua está diretamente
relacionada com a identidade cultural e com o sentimento de pertencimen-
to. Butler aponta para uma “contradição performativa” nas manifestações de
rua proibidas, porém levadas a cabo como “formas de insurgência” (BUTLER;
SPIVAK, 2018, p. 60) que expõem a rua como o lugar para a livre reunião,
para o palco em que se encena a liberdade em desafio às leis repressivas.

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Ao fazer isso, se insere no discurso público essa defasagem existente entre o
que postula a lei do Estado e as necessidades dos excluídos da cidadania. E
Butler (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 101) termina suas considerações sobre
essa situação dizendo que Sorel acatou a ideia de Marx de que precisamos de
falsas imagens do futuro para mobilizar as massas; como não queremos que
essas imagens se realizem, ela pergunta: “E então, terminamos aqui, com a
promessa do irrealizável?”
A interpelação final do texto de Butler e Spivak (2018), publicado em
inglês em 2007, nos leva a mais perguntas do que a respostas satisfatórias. O
que seria o irrealizável? A promessa, em princípio, tem sentido valorativo.
Porém, nos últimos 13 anos, com o avanço do capitalismo e da globalização e,
ao mesmo tempo, a escalada da violência promovida pela extrema-direita que
chegou ao poder nos Estados Unidos, no Brasil e em alguns países da Europa,
a situação dos migrantes só piorou. Olhando para o nosso presente em 2020,
somos levados a pensar que vivemos uma distopia inimaginável até alguns
anos atrás. Estariam as forças retrógradas pondo em prática o irrealizável ou
ainda haveria esperança de que outras forças exerçam pressão suficiente para
se chegar a uma promessa de um devir democrático?
Em um livro recente, Siderar, considerar, Marielle Macé (2018, p. 28)
adota uma postura que se aparenta à de Fuks: em vez de ficarmos siderados,
ou seja, petrificados, estarrecidos, nossa atitude diante dos expatriados, dos
invisibilizados, deve ser de consideração, de escuta. Considerar seria “ir ver
ali, levar em conta os vivos, suas vidas efetivas, uma vez que é desse modo e
não de outro que essas vidas são furtadas ao presente – levar em conta suas
práticas, seus dias, e então desenclausurar o que a sideração enclausura”.
Considerar seria reconhecer a concretude das experiências vividas por essas
pessoas, mostrar-nos semelhantes/dessemelhantes, porque cada vida é única
e insubstituível; só nesse movimento de aproximação podemos reconhecer
a singularidade de cada vivente. “É na exata medida em que é considerada
como vivida que uma vida pode ser considerada como exposta à ferida, capaz
de vulnerabilidade, capaz de ser perdida e chorada e de enlutar outras vidas”
(MACÉ, 2018, p. 31). Nesse gesto de acolhimento e de hospitalidade, pode-
mos vislumbrar além do sofrimento, além da dor; perceber os atos de heroís-
mo, as realizações em que manifestam sua dignidade apesar da vulnerabilida-
de em que vivem. E reconhecer, com Chamoiseau (2017), que as migrações
têm o dom de polinizar o mundo, pois cada ser humano, em sua mobilidade,
leva consigo novas experiências, formas culturais diversas que permitem as
contínuas transformações das sociedades.

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Referências

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Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 2010.
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de Janeiro: Zahar, 2005.
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Tradução de Vanderlei J. Zacchi e Sandra Goulart Almeida. Brasília: UnB,
2018.
CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
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CHAMOISEAU, Patrick. Frères migrants. Paris: Seuil, 2017.
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa
Nova e Márcia Arbex. Revisão de Consuelo Salomé. Belo Horizonte: UFMG,
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ce contemporâneo. In: DUNKER, Christian et al. Ética e pós-verdade. Porto
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FUKS, Julián. Procura do romance. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de laboratório: estratégias das artes do presente.
Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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tação de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica
Costa Netto. São Paulo: 34, 2009.
ROBERT, Marthe. Roman des origines et origines du roman. Paris: Gallimard, 1972.

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SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo: políticas de globalização e de identidade
na moderna cultura brasileira. In: O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte:
UFMG, 2004.
VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent: héritage,
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“London, London”: a narrativa brasileira contemporânea
pelo viés do estrangeiro no Velho Mundo

Cimara Valim de Melo1

Look deep on my eyes. Can you see?


They ‘re lost. They’re completely lost. And I can do nothing.
Caio Fernando Abreu

I know, I know no one here to say hello


I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I’m wandering round and round here nowhere to go
[…]
I choose no face to look at
Choose no way
I just happen to be here
And it’s okay
Caetano Veloso2

A literatura brasileira contemporânea tem sido um caminho profícuo


para a exploração de minorias pela perspectiva de migrantes latino-ameri-
canos no tão chamado Velho Mundo – expressão cuja perspectiva histórica
denota uma regionalização continental eurocêntrica. Relações de poder, em
especial as que passam por questões étnicas e de gênero, tornam-se cruciais
para a compreensão do caráter transnacional das produções literárias das úl-
timas décadas. Nesse sentido, Fredric Jameson (1992) já havia destacado a
problematização advinda de um grande e complexo espaço internacional em
(trans)formação, pelo qual migrantes, ainda que ocultos nas sombras do im-
perialismo europeu, revelam impactos de força sociopolítica, cultural e eco-
nômica, expondo ao mundo deslocamentos demográficos em massa nunca

1  Doutora em Letras (UFRGS), com pós-doutorado realizado junto ao King’s Brazil Institute
(King’s College London). Professora de Letras do Instituto Federal de Educação, Ciências e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Canoas. E-mail: [email protected].
2  A música “London, London” pertence ao álbum Caetano Veloso (1971), gravado na
Inglaterra durante seu exílio devido à ditadura militar (1969-1971).

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antes observados de migrantes e de turistas globais3.
Estamos em um tempo no qual um conhecimento transnacional do
mundo é, mais do que nunca, requisitado, tendo em vista que espaços locais
são inevitavelmente atravessados pelo chamado “global” e vice-versa. Como
afirma Homi Bhabha (1994, p. 309), a globalidade cultural é constituída pelo
entrelugar que circunda as subjetividades de uma realidade descentrada, a
qual produz novas possibilidades de mapeamento da diferença, de seus deslo-
camentos e de suas projeções no todo social.

O que deve ser mapeado como um novo espaço internacional de rea-


lidades históricas descontínuas é, de fato, o problema de significar as
passagens e os processos intersticiais de diferença cultural, os quais es-
tão inscritos no “entrelugar”, na ruptura temporal que ondula o texto
“global”. (BHABHA, 1994, p. 310, tradução nossa).4

Assim, reposicionar olhares, rastrear trânsitos e problematizar tempo-


-espaços em permanente mudança são ações cruciais à compreensão do siste-
ma literário atual. Por ele, cada vez mais observamos a construção de perso-
nagens móbiles, a representar a experiência de deslocados em solo estrangeiro
e, com ela, diferentes lugares de fala pelo viés da diferença. Narrativas dis-
ruptivas trazem consigo a “imagem desarticulada do presente” de que fala
Bhabha (1994, p. 311), povoando-a com a impermanência e a ambivalência
contidas no fenômeno da migrância – aqui compreendido no sentido propos-
to por Ouellet (2005), de passagem ao outro e consequente transposição dos
limites do “eu”.
São justamente os movimentos migratórios e exílicos que buscamos
analisar neste ensaio, o qual traz em seu eixo o mapeamento de narrativas
brasileiras contemporâneas cujas personagens centrais vivem a condição de
estrangeiro latino-americano em solo europeu. Tomamos como corpus, para
isso, a recorrência da cidade de Londres em obras que carregam consigo di-
ferentes perspectivas sobre a outridade, aqui pensada em analogia à noção de
outsideness trazida por Mikhail Bakhtin (2013, p. 7, tradução nossa), segundo
o qual “somente aos olhos de uma outra cultura é que a cultura estrangeira

3  No original: “[…] in the spatial world of real bodies the extraordinary demographic displace-
ments of mass migrant workers and of global tourists invert this individual solipsism to a degree
unparalleled in world history” (JAMESON, 1992, p. 363).
4  No original: “What must be mapped as a new international space of discontinuous historical
realities is, in fact, the problem of signifying the interstitial passages and processes of cultural diffe-
rence that are inscribed in the ‘in-between’, in the temporal break-up that waves the ‘global’ text.”

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revela-se completa e profundamente”; assim, o “posicionar-se fora”, enquanto
outro, é crucial para a compreensão de si, para que “sentidos seus” sejam re-
velados em diálogo com “sentidos estrangeiros”.
Nesse contexto de (des)encontros, no qual personagens brasileiras es-
tão imersas na especialidade inerente ao “ser estrangeiro”, buscamos aqui ana-
lisar o percurso de obras cujos narradores se deparam com Londres, cujas
raízes estão enterradas no berço da cultura ocidental – uma cidade global que
não para, representante da interconectividade, da civilização e do multicul-
turalismo. Por um lado, ela é símbolo do hegemônico, da força que por si só
oprime o latino-americano; por outro, também é feita de uma identidade cul-
tural própria, que a posiciona como ilha – como “outro” – em relação ao con-
tinente europeu. Com isso, nossos percursos de análise centram-se em quatro
autores cujas produções são significativas nessas relações transnacionais: Caio
Fernando Abreu, Gisele Mirabai, João Gilberto Noll, Luis Krausz. As narrati-
vas aqui selecionadas dão mostras da riqueza encontrada na recorrência dos
meandros londrinos na literatura brasileira em termos de representação do
outro e, mais especificamente, da estraneidade.

“London, London” e o lixo que circunda o estrangeiro

A narrativa “London, London ou Ajax, brush and rubbish”, presente na


obra Estranhos estrangeiros5, de Caio Fernando Abreu (1996), desenvolve-se
a partir do (des)lugar ocupado pelo narrador – estrangeiro latino-americano
no Velho Mundo. Tal posição, que passa pelas noções de deslocamento e des-
centramento (HALL, 2005, p. 35), fica explícita já na primeira frase: “Meu
coração está perdido, mas tenho um mapa de Babylon City entre as mãos”
(ABREU, 1996, p. 43). A Babilônia, em sua etimologia, significa “porta do
deus”, porta que se abre para os homens, para o seu “instinto de dominação” e
de luxúria: “simboliza o triunfo passageiro de um mundo material e sensível,
que exalta apenas uma parcela do homem e que, consequentemente, o desin-
tegra” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 112). Considerada uma das
primeiras megalópoles da história (MARGUERON, 2000), “Babylon City”
faz analogia, no conto, à cidade de Londres, a qual carrega em si a confusão
linguística e o multiculturalismo, corroborando as ideias de grandeza, paga-
nismo e perdição (ANDRÉ-SALVINI, 2008), comumente associadas ao mito
de Babel.

5  O conto foi publicado originalmente em Pedras de Calcutá (1977).

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A linguagem é elemento que extravasa, no conto, a relação de domi-
nação entre o brasileiro e o espaço no qual ele procura se inserir. A cons-
trução lexical da narrativa produz um jogo de forças ao aproximar, pelo es-
paço textual, diferentes idiomas – em especial inglês, espanhol, francês –, os
quais se entranham à língua portuguesa. São mencionados objetos oriundos
de diversas partes do mundo, os quais traduzem, para além de experiências
de viagem, a hegemonia cultural: “Mrs. D(N)ixon usa um colete de peles (si-
berianas) muito elegante sobre uma malha negra, um colar de jade (chinês)
no pescoço. Os olhos azuis são duros e, quando se contraem, fazem oscilar de
leve a rede salpicada de vidrilhos (belgas) que lhe prende o cabelo” (ABREU,
1996, p. 43). A diversidade babilônica também é perceptível no mosaico de
identidades em contato com o narrador, observável na descrição dos objetos
que o acompanham na bolsa: “passaporte brasileiro, patchuli hindu, moedas
suecas, selos franceses, fósforos belgas, César Vallejo e Sylvia Plath” (ABREU,
1996, p. 48).
Além dos objetos, a narrativa também apresenta a variedade étnica en-
contrada em Londres, que muito contrasta com o espaço idealizado britânico,
onde “os castelos, os príncipes, as suaves vegetações, os grandes encontros”,
“as montanhas cobertas de neve, os teatros, balés, cultura, História” (ABREU,
1996, p. 45) estão ausentes. Em seu lugar, é um cenário árido que persiste,
repleto de faces estrangeiras:

Dura paisagem, hard landscape. Tunisianos, japoneses, persas, india-


nos, congoleses, panamenhos, marroquinos. Babylon City ferve. Blob’s
in strangers hands, virando na privada o balde cheio de sifilização, en-
quanto puxo a descarga para que Mrs. Burnes (ou Lascelley ou Hill ou
Simpson) não escute meu grito. (ABREU, 1996, p. 45, grifo do autor).

A paisagem humana sobrepõe-se à idílica e à histórica, revelando o


submundo londrino pela face do estrangeiro, o qual representa toda uma po-
pulação anônima, em busca do eldorado europeu, a se confrontar com a ne-
blina, a escuridão, “o frio, o medo, a vontade de voltar” (ABREU, 1996, p. 49).
Tal face revela o lugar da diferença – “não mordo, apesar de meu cabelo preto
e olho escuro”; “nojo de sua pele latina” (ABREU, 1996, p. 47) – e, com ela,
o fosso entre foreigners e locals, ilustrado pela oposição entre as imagens das
personagens Mrs. Dixon e do narrador anônimo, the cleaner:

– Take care, stupid! Take care of my carpets! They are very-very expensive!
Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago um cigarro (ameri-
cano). But, sometimes, yo hablo también un poquito de español e, if il

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faut, aussi un peu de français: navego, navego nas waves poluídas de
Babylon City, depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de
Carmenmiranda com uma Rumbeira-from-Kiúba. (ABREU, 1996. p.
44, grifo do autor).

A problematização da dominação cultural pelo viés de indivíduos fei-


tos de identidades desconstruídas ocupa espaço privilegiado no conto. A pai-
sagem narrativa é feita de seres transitórios, desenraizados, os quais trazem
consigo uma luz sobre minorias étnicas – as “cicatrizes suicidas de meus pul-
sos de índio” (ABREU, 1996, p. 47) – e de gênero – “I prefer boys” (ABREU,
1996, p. 45), envolta em um silêncio que bem representa a sua condição: “Eu
não quero dizer nada, em língua nenhuma, eu não quero dizer absolutamente
nada” (ABREU, 1996, p. 46). A força da hegemonia pode ser lida a partir desse
silenciamento, que também traduz a resistência da personagem em relação à
sua própria condição de alien na terra prometida; da corporeidade da dor pelo
trabalho excessivo, realizado em troca de libras suficientes a sua sobrevivên-
cia; da ilusão, marcada repetidas vezes no texto, de que a experiência de lati-
no-americano no Velho Mundo trará um diferencial em seu retorno – “l’ve got
something else” (ABREU, 1996, p. 50). A sensação de dor física, em especial
pelas bolhas nas mãos, ilustra a necessidade de a personagem sentir-se viva,
mesmo que seja pela materialidade do sofrimento.

Bolhas nas mãos.


Calos nos pés. Dor nas costas. Músculos cansados. Ajax, brush and
rubbish. Cabelos duros de poeira. Narinas cheias de poeira. Stairs, stairs,
stairs. Bathrooms, bathrooms. Blobs. Dor nas pernas. Subir, descer, cha-
mar, ouvir. Up, down. Up, down. Many times got lost in undergrounds,
corners, places, gardens, squares, terraces, streets, roads. Dor, pain. Blobs,
bolhas. (ABREU, 1996, p. 45, grifo do autor).

O “estar perdido” que abre e fecha a narrativa pode ser percebido como
consequência da disjunção a acompanhar o migrante em sua condição de es-
trangeiro. Como propõe Bhabha (1994, p. 310), é somente pela cisão e pelo
deslocamento do “eu” descentrado e fragmentado que a representação do in-
divíduo emerge como parte de um todo social marcado pela ambivalência.
Nesse sentido, o narrador de “London, London” expressa, em diversos mo-
mentos, a sua posição deslocada, bem como a ânsia por um lugar de per-
tencimento: “Mon cher, apanhe suas maracas, sua malha de balé, seus pratos
chineses apanhe todos os pedaços que você perdeu nessas andanças e venha
para o meu tapete mágico” (ABREU, 1996, p. 47). Tal busca se transforma em

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fuga, a qual remete a uma sucessão de movimentos aleatórios, sem que um
encontro significativo surja para romper com a sensação de vazio que acom-
panha a personagem – “Caminho, caminho. […] Espero, espero” (ABREU,
1996, p. 48).
A transitoriedade da narrativa é facilmente mapeada pelos códigos pos-
tais deixados pelo narrador como rastros de seu deslocamento pela cidade de
Londres, a qual é, paradoxalmente, transfigurada pela imagem mitológica da
cidade-mãe Babilônia, morada dos espíritos impuros, receptáculo da liberda-
de e da impureza – a mãe terrível, que embriaga e prostitui (JUNG, 1973, p.
200-202). Em dois momentos, o mapa aparece como símbolo da tentativa de
localização pela personagem, produzindo, juntamente aos códigos em desta-
que no Mapa 1, um movimento circular, que remete, paradoxalmente, à busca
e ao desencontro.

Mapa 1 – Mobilidade em “London, London”, de Caio Fernando Abreu

Fonte: Adaptado de Maproom (2016).

As regiões postais W11, W8 e W14 são recorrentes na narrativa, so-


mando-se às W2 e NW1, o que corresponde aos bairros nobres e populares de
Hammersmith, Kensington, Paddington e Westminster da Londres Central.
Temos aqui mais um contraste, visto que o narrador atravessa tais áreas ao
ir de uma casa a outra – de Mrs. Dixon a Mrs. Burnes e a Mrs. Austin – sem
nunca deixar a posição social que acompanha a sua função de faxineiro e que

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o segrega enquanto latino-americano em solo inglês: “– Please, can you clean
the other side of that door?” (ABREU, 1996, p. 48).
A circularidade dos trânsitos do narrador pelas referidas zonas pos-
tais é retomada na construção narrativa, cujo final leva o leitor à imagem do
mapa apresentada no início e, com ele, ao paradoxo entre a concretude do
recurso de localização geográfica utilizado e a sensação interior de estar sem
rumo, perdido em uma terra estrangeira, para a qual o dicionário funciona
como arma e defesa: “I don‘t forget. Meu coração está perdido, mas tenho um
London de A a Z na mão direita e na esquerda um Collins dictionary. Babylon
City estertora, afogada no lixo ocidental. But l’ve got something else. Yes, I do”
(ABREU, 1996, p. 50, grifo do autor).
A narrativa de Caio Fernando Abreu abre espaço à problematização
da condição subalterna ocupada pelo brasileiro na Europa, a qual passa pelo
lugar minoritário da língua nativa em relação à língua inglesa – “– I think all
Latin-American writers should write in English” (ABREU, 1996, p. 45) –, pelo
fenótipo latino que carrega consigo a marca da diferença ao ser observado
com estranhamento por pares de olhos azuis; e, em especial, pela posição so-
cial revelada nas relações de trabalho do imigrante brasileiro na Europa, sem
quaisquer garantias, mas que trazem a ele a sensação de status ao retornar ao
Brasil com o carimbo europeu.

Agora custo um pouco mais caro e meu preço está sujeito às oscila-
ções da bolsa internacional. Quando você voltar, vai ver só, as pessoas
falam, apontam: “Olha, ele acaba de chegar da Europa”, fazem caras e
olhinhos, dá um status incrível e nesse embalo você pode comer quem
quiser, pode crer. (ABREU, 1996, p. 49).

Londres como espaço de transformação

A representação da capital inglesa por brasileiros em trânsito também


remonta à obra Lorde, de João Gilberto Noll (2004). Nesse romance, o narra-
dor-personagem conduz uma narrativa carregada de introspecção à medida
que se desloca pelos espaços londrinos e vai, a cada passo, perdendo a noção
de si mesmo. O mote de Lorde é a crise identitária de um sujeito em trans-
formação permanente – para se reencontrar, precisa sair de sua terra-natal,
e a saga começa justamente em um não lugar, com a sua chegada a Londres.
A história tem início em Heathrow Airport (LHR), um dos aeroportos mais
movimentados da Europa, o qual está localizado em Longford, na região de
Hounslow, a oeste de Greater London: “Quando saí pela porta da alfândega,

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duas pesadas malas, sacola pendurada no ombro, nem pensei em olhar para
os que esperavam atrás de uma corda os passageiros que chegavam a seu desti-
no. […] Eu estava chegando ao aeroporto de Heathrow, em Londres” (NOLL,
2004, p. 9). Com as passagens Porto Alegre - São Paulo - Londres recebidas,
de quem o chamara para “uma missão em solo inglês” ligada ao seu papel de
escritor brasileiro, o narrador resolve ingressar em uma jornada em busca de
si, para a qual se abre uma infinidade de sem-rumos característica da posição
de andarilho.
A imagem do aeroporto traz consigo a força do não lugar, do espaço
destituído de identidade, sem afiliação ou raízes, o qual antecipa a perda expe-
rienciada pela personagem. Em sua postulação sobre as relações tempo/espa-
ço, Zygmunt Bauman (2012, p. 95) afirma que é na cidade que estranhos são
capazes de se encontrar ao acaso e se identificar pela condição que ocupam
– encontro que se faz sem passado ou futuro e que se desfaz com a mesma
rapidez com que teve início. Nesse sentido, é pelos não lugares urbanos que
o estrangeiro se identifica, visto a sua impossibilidade de neles se fixar. Um
é a personificação do outro pela negativa que os acompanha. Considerados
por Bauman “residentes temporários”, os indivíduos que trafegam pelos não
lugares têm elementos comuns, quais sejam, seu comportamento previsível e
a falta de expressões que possam defini-los como seres históricos (BAUMAN,
2012, p. 102). Isso porque a natureza dos não lugares tem seus pilares no que
Marc Augé (1994, p. 73-74) chama de supermodernidade:

Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico,


um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como
relacional, nem como histórico definirá um não lugar. A hipótese aqui
defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não lugares,
isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos […].

Tal como ocorre com os não lugares, o narrador de Lorde não consegue
se realizar totalmente. Pelo contrário, nele o que mais se percebe é o vácuo
de sentido, a falta, o silêncio e o olvido. Para isso, o apartamento alugado em
Hackney tem especial relevância. Desfeito do espaço do aeroporto, é ainda na
Greater London que o visitante estrangeiro encontra pouso, em um bairro que
ele sabia longínquo, “ao norte de Londres, de imigrantes vietnamitas, turcos,
já fora das margens dos mapas da cidade que costumam propagar em folders
turísticos” (NOLL, 2004, p. 17).
Hackney assume, dessa forma, a dimensão do distanciamento en-
tre o narrador e a cidade pela qual transita. É nela que o seu processo de

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desnudamento ocorre, assim como o de esquecimento de seu passado. Fora
dos cartões postais, seu primeiro contato é com uma Londres suburbana feita
de névoa e marginalização: “Ao nos aproximarmos de um dos portões impo-
nentes do Victoria Park, me senti correndo em manhã enevoada por uma de
suas alamedas e encontrando um mendigo que me pedia a moeda que lhe res-
tituiria a honra pelos próximos minutos” (NOLL, 2004, p. 20-21). A sua mo-
rada provisória, o apartamento, mostra-se inicialmente como único elemento
concreto naquele tempo-espaço suspenso vivido pelo narrador: “Parecia só
existir aquilo, uma casa desconhecida que teria de ocupar, uma língua nova,
a língua velha que tão cedo assim já me parecia faltar em sua intimidade”
(NOLL, 2004, p. 19). O deslocamento é sentido já de início pela barreira da
língua; aos poucos, contudo, é a memória falha que abre espaço ao ser es-
trangeiro, o qual vai sendo (des/re)construído identitariamente a partir do
desenraizamento da personagem, cada vez mais perceptível pela desmemória
que vai tomando conta: “Eles tinham chamado a seu país um homem que
começava a esquecer” (NOLL, 2004, p. 16).
À medida que a narrativa vai se desenvolvendo, cada vez menos tempo
o narrador passa no apartamento – “Não, não, não voltaria para o apartamen-
to de Hackney, eu ia resistir pelas ruas de Londres até que também pudesse
triunfar” (NOLL, 2004, p. 53). Toma forma, assim, o andarilho, e a persona-
gem passa de escritor a de andante, em um ir e vir pelos espaços da Central
London. Observamos, a seguir, os espaços percorridos pelo narrador à medi-
da que este vai se despojando de si e da cidade, ao mesmo tempo em que esta
parece querer expulsá-lo, como se o estrangeiro fosse um corpo estranho.

Mapa 2 – Mobilidade do narrador de Lorde, de João Gilberto Noll

Fonte: Editado de Google Maps (2020).6

6  Mapa em sua versão completa disponível em: https://bit.ly/33P4CQo.

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As áreas históricas e turísticas do coração londrino são exploradas re-
petidas vezes pelo narrador-andarilho, envolvendo áreas e estações de trem
como Euston, Charing Cross e Westminster. Em contraste a elas – com des-
taque para espaços públicos nas proximidades do Tâmisa, prédios do parla-
mento ou da realeza e espaços de arte e cultura, como a National Gallery e
Covent Garden – o comportamento do estrangeiro cada vez mais demonstra
a sua degradação, chegando ao ponto de ser visualizado como mendigo, o que
o remete ao indivíduo com quem se depara no início do romance. Além disso,
estações de trem/metrô são inúmeras vezes visitadas, aproximando o prota-
gonista dos não lugares, dada sua transitoriedade em termos identitários. A
narrativa traz, assim, uma construção verdadeiramente cartográfica: tal como
em um labirinto, o narrador parece vagar pelo mapa da cidade em busca de
uma saída, a qual não se mostra fácil de ser encontrada:

A terra estrangeira, sob a ótica da cidade, é um grande labirinto a ser


desvendado. Ela, por isso, encanta e desafia. Londres, no romance, é a
Babel de quem perdeu contato com sua terra de origem, absorvendo
a pluralidade do mundo através do ilhamento no desconhecido. Tudo
nela é novo, a começar pelo próprio estrangeiro. (MELO, 2013, p. 76).

Após o processo de desconstrução identitária experimentado em


Londres, o protagonista sente-se expulso pela cidade. Como em um ato de
alforria, pega um trem para Liverpool, onde encontra “os brios de uma cidade
que tem porto, o rio e logo o mar”, e, mais uma vez, depara-se com a força do
não lugar, dessa vez um hotel: “Chamava-se Britannia Adelphi Hotel” (NOLL,
2004, p. 99). É pelos espaços do Adelphi que o processo de transformação se
completa e, no vazio de si, encontra, com a ajuda de espelhos, o reflexo do
“Outro” que o habita – “O espelho confirmava, não adiantava adiar as coi-
sas com indagações. Tudo já fora respondido. Eu não era quem eu pensava”
(NOLL, 2004, p. 109).
A transição de um lugar para outro faz-se também pelo passar de uma
estação à outra: “Anunciava-se a primavera, era isso, e em algumas árvores
viam-se os botões querendo arrebentar” (NOLL, 2004, p. 102). Além disso,
pelo fato de observar em si um papel social – “empregado como professor de
português” (NOLL, 2004, p. 104) –, a personagem vive em si o paradoxo de
não querer ser nada e a tentativa de reconstrução do “eu” esfacelado. Contudo,
mesmo que um delicado equilíbrio seja perseguido em Liverpool, com auxí-
lio do tempo cíclico da natureza, das metamorfoses em seu próprio corpo,
da memória ou da linguagem aparentemente restauradas, o narrador carrega

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consigo a dor do não pertencimento. Ela alimenta a sua ânsia pelo movimento
sem direção certa, o que nos aproxima do vagar pontuado por Kristeva (1991,
p. 5, tradução minha): “uma ferida secreta, geralmente a ele desconhecida,
leva o estrangeiro à errância”7. Lorde, com isso, representa com profundida-
de a condição de estrangeiro, apresentando-o como “um verdadeiro órfão de
pátria e de relações”, cujo encontro com o desconhecido, “o outro que opera
em si”, leva-o à “exorcização das humilhações que sua condição lhe impõe”
(MELO, 2013, p. 264).

Londres pelo espaço feminino

Gisele Mirabai, em seu romance Machamba (2017), traz um olhar


distinto dos anteriormente apresentados com relação ao espaço londrino.
Inicialmente, porque a narrativa se desenrola pela perspectiva feminina, vis-
to que é a protagonista Machamba quem dá direção à narrativa. Já de iní-
cio, temos a cisão de seu tempo-espaço por meio de duas grandezas e suas
fronteiras – “o meridiano que separa o Dia do Antes do Dia do Depois. A
linha de Greenwich que divide o tempo em dois: O Tempo Grande e o Tempo
Pequeno” (MIRABAI, 2017, p. 9). O romance é dividido em três partes: Parte
1 – O Elo Perdido; Parte 2 – As Antigas Civilizações; Parte 3 – Tempo Grande.
A Parte 1 objeto de análise, traz o contraponto entre, de um lado, o mundo da
fazenda em Fiandeiras, Minas Gerais, onde residem as memórias de infância
e as sombras do passado, e, de outro, o da Londres Central, onde o presente
móvel imerge em uma cartografia marcada pelo deslocamento e pela frag-
mentação interior.
O universo de Machamba se aproxima ao de Londres ainda no Brasil,
pelas imagens das “cabines telefônicas vermelhas” e pela fascinação gerada
com a ideia de “superincríveis teletransportes”, ao assistir a um filme sobre
meninos que “viajam no tempo e perfuram o espaço da História” (MIRABAI,
2017, p. 39). Alimentada por essa ilusão e por planos passados de viagem,
Machamba, mesmo após sofrer traumas que a transformariam para sempre,
resolve incursionar pelo desconhecido e, com isso, tornar-se uma estrangei-
ra em Londres: “As pessoas falam e não cumprem. Se esquecem, mudam de
ideia. Simples assim. Mas para ela não. Para ela a viagem acabou acontecendo,
mesmo com acidente de caminhão” (MIRABAI, 2017, p. 38).
Todavia, em vez de recursos de teletransportes, é a marca da desigualda-
de de gênero e da segregação que ela encontra nas cabines telefônicas inglesas

7  No original: “A secret wound, often unknown to himself, drives the foreigner to wandering.”

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– “as mil e uma fotos das garotas da prostituição que se espalham pela cidade”
– nas quais se destaca o estereótipo da mulher brasileira no exterior: “Quando
menos esperou, a colega de uma colega do café propôs o negócio. Money
money” (MIRABAI, 2017, p. 38). Mesmo sem aceitar a proposta, Machamba
fragmenta-se identitariamente enquanto estrangeira nos interstícios da capi-
tal inglesa. É pelo corpo sexualizado que ela encontra um modo de “aliviar
uma tensão que nunca nessa vida se alivia” com inúmeros “Pretendentes”, sem
chegar a se aproximar afetivamente de ninguém nessa “expedição pelo mapa
dos corpos” – e, caso algum sentimento restasse, prontamente ela teria que
se despedir, “pegar a sua cabine telefônica e aterrissar em outras paisagens”
(MIRABAI, 2017, p. 39-40).
Kristeva (1991) afirma que a sexualização do estrangeiro tem relação
com a experiência de controle e repressão que este traz de sua terra natal e o
impulsiona a cruzar fronteiras. No espaço do desconhecido, não há preocupa-
ção com “o que os outros irão dizer” e, não havendo proibição, tudo é possível
– elementos que encontramos no decorrer dos trânsitos da personagem pela
cidade inglesa: “Ninguém reparou. Londres” (MIRABAI, 2017, p. 28). Além
disso, Kristeva (1991, p. 31) sugere que o exílio acaba por envolver o estilhaça-
mento do antigo corpo, provocando a quebra de limites sexuais, assim como
uma nova relação entre o indivíduo e as línguas materna e estrangeira. Se o
universo da língua materna se opera pela falta, o da nova língua (a ser) apren-
dida pelo estrangeiro torna-se um espaço de experimentação e liberdade.
O corpo de Machamba percorre as entranhas da Londres Central. No
encontro entre ele e outros corpos, um mapa vai sendo formado, alimenta-
do por uma vasta geografia urbana que a estrangeira explora. Com o pas-
sar das estações – do verão “em meio aos guarda-chuvas (MIRABAI, 2017,
p. 11)” ao outono que traz “as folhas despencando das árvores” (MIRABAI,
2017, p. 22) e dele ao inverno rigoroso que “vem gelando” tudo ao seu redor
(MIRABAI, 2017, p. 26-27) – percebemos a crise interior da protagonista, sua
dor e sua condição subalterna, a carregar não apenas o peso de um passado
que a desterritorializa e a desconstrói identitariamente, mas também o de um
presente vazio de sentido, traduzido em seu silêncio: “bonita e sem palavras”
(MIRABAI, 2017, p. 37). Do corpo de Machamba, temos o contraste entre
as cicatrizes do passado – “o parafuso no seu braço costurado” – e a mescla
entre beleza, exotismo e promiscuidade: “Uma feminilidade tão delicadinha,
a garota vinda lá de longe, do interior, do outro lado do mundo” (MIRABAI,
2017, p. 41). De acordo com Erika Tambke (2013, p. 123), “O estereótipo da
mulher brasileira como extremamente sexual é desenvolvido desde o período
colonial e sobrevive nos tempos atuais.”

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Por outro lado, “Londres é rica em diferentes tipos de confrontação
cross-cultural”, o que a impulsiona a “lidar com a diferença para recriar sua
própria identidade em relação ao outro” (TAMBKE, 2013, p. 146-147). Assim,
Machamba vive uma crise interior: silêncio e desmemória evocam a condição
desfavorável pela língua que pouco domina, pelo passado que a sufoca e pelo
presente solitário como mais uma anônima no território inglês. Seu corpo,
enquanto objeto de desejo e satisfação, mostra-se vazio de sentido, controla-
do pela sua “Cabeça de Ovos Mexidos que não se lembra. Que nunca nessa
vida quer se lembrar” (MIRABAI, 2017, p. 24). Machamba anda “sem rastro.
Apartada do tempo e do espaço” (MIRABAI, 2017, p. 29). Seu movimento
pela Londres Central contribui à compreensão da perda que a acompanha
após deixar o Tempo Grande e incursionar pelo Tempo Pequeno. Sua dor
aprofunda a sensação de estraneidade, como observa Kristeva (1991, p. 7-8,
tradução minha):

Não pertencer a nenhum lugar, tempo ou amor. Uma origem perdida,


a impossibilidade de se enraizar, uma memória remexida, o presente
suspenso. O espaço do estrangeiro é um trem em movimento, um avião
em pleno ar, a transição que impede o movimento. Quanto a pontos de
referência, não há nenhum.8

Machamba movimenta-se diariamente pela cidade – em especial, do


quarto alugado ao trabalho, um café nos arredores de London Bridge, onde
trabalha como garçonete. Caminha sempre que pode, “pois não gosta das
perguntas dos guardas quando apita o pino de metal no osso do seu braço.
[…] Por isso evita o metrô” (MIRABAI, 2017, 11). Após dividir o quarto com
quenianas em Kilburn, muda-se “para a casa de uma Senhora Galesa em
Willesden” (MIRABAI, 2017, 11). Transita por pontos turísticos, espaços his-
tóricos, uma infinidade de bares, pubs, casas noturnas e estações, produzindo
uma grande teia cartográfica, na qual destacamos Charing Cross, Piccadilly,
Baker Street, Russell Square e London Bridge. Por ela, conforme Mapa 3, fica
visível o “ir e vir” pelo labirinto da cidade.

8  No original: “Not belonging to any place, any time, any love. A lost origin, the impossibility to
take root, a rummaging memory, the present in abeyance. The space of the foreigner is a moving
train, a plane in flight, the very transition that precludes stopping. As to landmarks, there are none.”

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Mapa 3 – Trânsitos pela cidade de Londres em Machamba, de Gisele Mirabai

Fonte: Editado de Google Maps (2020)9

Com interesse pelo cartográfico desde cedo, é na faculdade de Geografia


que Machamba conhece Luís, com quem fizera o roteiro de viagem que, pos-
teriormente, a trouxera a Londres, ponto de partida entre “beber cerveja pint
nos pubs” e “as ruínas dos mundos” (MIRABAI, 2017, 38). Na cidade, seu
lugar preferido, e onde vai com recorrência, está no Natural History Museum,
em South Kensington: “O seu museu. […] A sua sala.” Nela, percebe-se cor-
pórea e linguisticamente: Pronta. Potente. Lê: “Aconteça o que acontecer, a mu-
dança é inevitável” (MIRABAI, 2017, p. 12, grifo da autora). É nessa sala, por
ser a última de uma sucessão de corredores e passagens, que se deleita com a
grafia das letras, a parede preta, a palavra change e todo o sentido que nela se
oculta. Residente temporária desse espaço coletivo repleto de expressões sim-
bólicas e representações da História, a protagonista encontra o que nela falta
– respostas para suas incertezas e caminhos para sua identidade esfacelada.
Pelo exemplo da protagonista, visualizamos no estrangeiro a represen-
tação máxima da outridade. Machamba deixa Londres pela necessidade de se
manter alien em terra estrangeira, de se perceber solitária, desconhecida, sem
laços. Frente à possibilidade de envolvimento afetivo com Bruno, ela decide
partir em busca do Outro desconhecido e da memória perdida nos recônditos
de um passado de perdas. Assim, a despedida de Londres faz-se como fuga
da cidade que, ao mesmo tempo, a acolhe e a sufoca; por outro lado, marca o
processo de reconstrução identitária da personagem. A cidade multicultural
que recebe a todos como uma grande mãe torna-se chave para a transfor-
mação da protagonista no romance – “aconteça o que acontecer, a mudança

9  Mapa em sua versão completa disponível em https://bit.ly/35Tn90M.

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é inevitável, nem mesmo vale voltar ao museu por uma última vez. Ela já
aprendeu a lição, a sala é a última, e ponto final” (MIRABAI, 2017, p. 61). É
pelos trânsitos constantes na aridez do inverno londrino que a protagonista
estabelece um caminho possível entre as Antigas Civilizações do Mundo e o
interior de Minas Gerais, entre o Tempo Pequeno o Tempo Grande, entre o
esquecimento e a memória, a fim de compreender o Elo Perdido e, com isso,
a si mesma:

Talvez só corram pelo saguão do Heathrow Airport porque acreditam


que ainda podem reter alguma coisa consigo. Ela compra passagem
para Atenas. Vai em direção ao antigo sonho das Enciclopédias, que
sonhava junto com Luís, mas Luís não é mais, agora é só ela e ela quer
encontrar aquilo que sempre quis. Mas o que mesmo ela sempre quis?
Não consegue escutar a resposta. […] Deixa tudo que já teve um dia e
não leva nada consigo, só o passaporte, que é uma ficha para brincar no
mundo dos aviões, junto com o cartão do banco. E uma conta que ficou
cheia com a brincadeira enfadonha de garçonete servindo café para os
advogados de Hong Kong. (MIRABAI, 2017, p. 64).

A névoa que cobre a Londres de sua despedida relembra o dia em que


ali chegou, a partir do mesmo não lugar, o aeroporto de Heathrow, fechando o
tempo-espaço vivido de modo circular. A diferença é que Machamba – nome
de guerra dado a ela por Daniel antes do Elo Perdido, na antiga língua banto,
a significar terra fértil, que morre, mas renasce – não passa por Londres ilesa;
ela leva consigo a memória em reconstrução ao cruzar a neblina espessa da-
quele espaço orgânico. As brumas simbolizam não apenas o indeterminado,
mas também o que está em evolução, ou seja, o período transitório entre dois
estados: “quando as formas antigas que estão desaparecendo ainda não foram
substituídas por formas novas precisas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p. 634). Ponte entre o que foi e o que está por vir, a cidade atua positivamente
na recuperação da memória de Machamba – “Mas, sim, ela agora se lem-
bra” (MIRABAI, 2017, p. 71) –, lembranças que partem do individual para
representar a memória coletiva de um passado de dominação de gênero e de
discriminação étnico-racial, como bem observa Lúcia da Rosa (2020, p. 188):

Percebe-se que o que está em jogo é o preconceito racial, a convivência


entre patrões e empregados e as regras na Fazenda. Apenas Machamba
quebra essas regras familiares e, por isso, recebe a punição que se des-
dobra em autopunição na vida errante e triste, em busca de si mesma
visitando vários países.

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Machamba oferece uma perspectiva peculiar acerca do estrangeiro,
corroborando a problematização da relação dicotômica dentro x fora, colo-
nizador x colonizado, negro x branco, feminino x masculino a partir da pers-
pectiva de uma mulher brasileira cuja experiência vivida está emaranhada a
trânsitos transnacionais. É nesse movimento que Londres assume uma dimen-
são metafísica capaz de aproximar tempos e espaços na rede de lembranças da
protagonista e, assim, contribuir com a (des/re)construção da personagem no
limiar entre o Tempo Grande e o Tempo Pequeno: “O Tempo Grande não é
ansioso. Ele não comete excessos. Espalha-se bem pelo que o homem insiste
em dividir em minutos. Os segundos do Tempo Pequeno com tantos traumas
torrentes tropeços” (MIRABAI, 2017, p. 32).

Entre o Oriente e o Ocidente: Londres como fuga e liberdade

Nossa última obra em análise – Deserto, de Luis Krausz – traz consigo


a marca da repressão. Contextualizada historicamente no período da ditadura
militar brasileira, o romance carrega em suas veias narrativas diferentes con-
textos sociopolíticos do século XX – o da II Guerra Mundial pela perspectiva
da diáspora judaica; o de um Brasil marcado pelos reflexos da ditadura mili-
tar; o de uma sociedade em crise frente a dicotomias como ocidente e oriente,
religião e laicidade, repressão e liberdade.
Com uma narrativa de tom confessional organizada em dez capítulos,
o romance apresenta a história de um jovem brasileiro de ascendência judaica
que revela os detalhes de um ato de transgressão por ele praticado em solo
estrangeiro. A desobediência às estritas regras repassadas pelos representan-
tes da Agência Judaica aos adolescentes, em presença de seus pais, antes da
viagem a Israel – “Não pode ir para a Europa” (KRAUSZ, 2013, p. 11) – tra-
duz-se, para além de uma aventura juvenil, como um grito de liberdade pro-
veniente de um indivíduo açoitado pela repressão de diferentes formas. Já de
início, o espaço descrito pelo narrador para a Sede da Organização Sionista
Unificada traz consigo a carga do medo frente a um tempo de obscuridades:
uma “sobreloja assustadora” com “uma porta de aço com uma janelinha de
vidro blindado – e que, em meados de 1970, era uma experiência aterradora”,
lembrando “uma masmorra da qual talvez nunca pudesse escapar” (KRAUSZ,
2013, p. 12). Os limites impostos pela religião se mesclam aos da repressão
militar no Brasil e ao passado de guerras a (des)unir Europa e Oriente Médio,
elementos históricos que produzem uma intersecção entre as perspectivas
diacrônica – vinculada ao passado familiar do narrador – e sincrônica – sua
aventura de Israel à Inglaterra.

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A outra face da repressão se produz justamente em seu reverso: a liber-
dade que precisa ser conquistada, tocada a qualquer preço. Surge assim a per-
sonificação da imagem da Europa, “a terra interdita das tentações burguesas
que facilmente poderiam desviar um judeu jovem e ingênuo do caminho reto
do sionismo” (KRAUSZ, 2013, p. 12), um continente sedutor localizado entre
Brasil e Israel, pelo qual a história familiar do protagonista se espalha em dife-
rentes percursos diaspóricos. Com a passagem da British Airways comprada
secretamente em Jerusalém, o narrador guarda, no tempo de espera entre o
fim da excursão e a viagem a Londres, o bilhete aéreo junto de si, como se
carregasse a entrada para “a terra prometida da cultura”. A viagem – “marcada
para o dia 14 de fevereiro de 1977” – torna-se símbolo de esperança e alívio,
fazendo-o sentir o “aroma da liberdade” (KRAUSZ, 2013, p. 13).
O romance é envolto por elementos históricos revelados no passado
familiar. Ao resgatar a história de primos, tios, avós e bisavós, o jovem produz
uma matriz diaspórica que conecta Oriente e Ocidente, revelando “o passado
exílico do povo de Israel” (KRAUSZ, 2013, p. 20). Ao mesmo tempo, revela
o trauma da II Guerra Mundial na história de parentes que tinham ficado na
Europa para serem “deportados, fuzilados, sufocados, cremados” (KRAUSZ,
2013, p. 21) pelos olhos curiosos e assustados de um adolescente que refaz as
trilhas de um povo desterrado dentro e fora “do domínio britânico sobre a
Palestine” (KRAUSZ, 2013, p. 15).
A diáspora remonta às origens da saída do povo judeu da Palestina – a
conhecida “Diáspora Judaica” – e se consolida, no século XX, como forma de
representação dos movimentos em massa que ocasionaram diferentes ondas
de refugiados, em especial a partir da Segunda Guerra Mundial. De modo
mais específico, a diáspora judaica traz consigo a resistência à assimilação e
à aniquilação (BOYARIN, D.; BOYARIN, J., 2003, p. 101-103), pela qual a
identidade é construída com base nas noções de “genealogia e territorialismo”.
Engloba também comunidades deslocadas de sua terra natal devido aos movi-
mentos de emigração, imigração e exílio (BRAZIEL; MANNUR, 2003, p. 1-4).
É nesse contexto que se emana a perspectiva do narrador, seu registro sobre
deslocamentos familiares, cujo percurso envolve a região da Palestina e países
como Alemanha, Áustria, Inglaterra e Brasil.
Como afirma Stuart Hall (2003, p. 236, tradução minha), a identidade
cultural é marcada pelo constructo da diferença, a qual constitui “o que so-
mos; ou melhor – a partir das intervenções históricas – o que nos tornamos”10.

10  No original: “[…] what we really are; or rather – since history has intervened – what we
have become.”

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Na narrativa de Krausz, a cultura judaica passa do próprio ao alheio aos olhos
do narrador, que, em face da ocidentalização cultural, a vê como cultura do
“outro”. Tal perspectiva é visível na forma como ele observa seus parentes mo-
radores de uma área residencial londrina de classe média e alta – cuja história
de imigração completava quatro décadas, envolvia o “linguajar escuro dos exi-
lados” (KRAUSZ, 2013, p. 73) e uma vida de segregação que conduziu o pri-
mo Eugen “ao silêncio e à solidão daquele apartamento em West Hampstead:
um beco sem saída cujas paredes o separavam do lugar nenhum das suas ori-
gens que não existiam mais” (KRAUSZ, 2013, p. 77).
A chegada a Londres envolve uma travessia por não lugares caracterís-
ticos de todas as obras em análise, como aeroportos e estações ferroviárias:
“e assim fui rolando pela gigantesca maquinaria do aeroporto, avião, e outra
vez aeroporto e trem e estação de táxi” (KRAUSZ, 2013, p. 64). A sensação
de estar entrando em um mundo novo, oculto “em meio às frias neblinas de
Londres” (KRAUSZ, 2013, p. 29), é representada em diferentes momentos
da narrativa. Em meio às memórias do narrador, surge o simulacro da “ter-
ra-mãe”, a qual recebe seus filhos pródigos por meio de uma ancestralidade
orgânica a unir gerações de migrantes. Os não lugares constituem-se, assim,
mais que pontos de passagem do narrador viajante à “terra prometida”, proje-
tando-se transnacionalmente.
Observamos, contudo, uma diferença entre os deslocamentos do jovem
de dezesseis anos e as demais personagens aqui analisadas pela comodida-
de proporcionada por suas condições financeiras – “meus pais não confia-
vam que eu pudesse chegar ao apartamento em Cholmley Gardens […] com
os transportes coletivos, carregando uma mala bastante pesada e, por isso,
me recomendaram tomar um trem do aeroporto de Heathrow até a Victoria
Station, de onde eu deveria seguir num taxi” (KRAUSZ, 2013, p. 63). Tanto as
experiências vividas na cidade quanto o ponto de vista do narrador são filtra-
dos por sua posição social e pelo acesso a bens culturais, o que contrasta com
as demais personagens analisadas.
Exemplos de como a posição social é delineada no romance está na
descrição da casa com “jardim em Campos do Jordão (KRAUSZ, 2013, p. 14)”
e da biblioteca dos avós com milhares de livros “que forravam, orgulhosos, as
prateleiras escuras da sala das pessoas de cultura que eles eram” (KRAUSZ,
2013, p. 36), o que contribui a uma visão diferenciada da personagem que
chega a Londres, cidade onde ele experimenta o sabor de um consumismo
refinado, possível unicamente aos abastados. O acesso a ingressos para a peça
de teatro The Waters of the Moon, em cartaz no Royal Haymarket Theatre, a

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compra de um pulôver castanho de shetland wool na loja Marks & Spencer
(KRAUSZ, 2013, p. 89-90) e a obediência ao pai, que o incumbira “de lhe
trazer um corte de tecido e um cachimbo da marca Dunhill” (KRAUSZ, 2013,
p. 81; 99), gera no protagonista a ilusão do pertencimento, pois “preferia ima-
ginar que poderia, perfeitamente, passar por europeu aos olhos de todos” ou
até se tornar um verdadeiro europeu” (KRAUSZ, 2013, p. 94). Londres é, mais
uma vez, símbolo da hegemonia cultural, produzindo uma hierarquia de va-
lores de consumo (SHETH, 1991) que interferem nas escolhas de compra, re-
presentativas dos valores sociais perseguidos pelo consumidor. Mais que isso,
Londres é espaço de identificação com a cultura europeia à qual o narrador
quer pertencer, em detrimento de sua ancestralidade.

Tinha certeza de que encontraria em Londres a continuidade e não a


nostalgia, o sentir-se perfeitamente em casa e não o exotismo de um lu-
gar no Oriente, constituído de uma estranha mistura de hebraico, árabe
e ídiche, de ideias marxistas trazidas da Rússia e de indolência e tirania
otomanas, de ressentimentos acumulados pelos séculos e de crenças
impenetráveis, de entusiasmos construídos e de rispidez de areia, san-
gue e terra. Pois em Londres, para além dos tecidos apropriados a todos
os climas e a todas as ocasiões, havia as salas de concertos, os museus,
as galerias, para não falar da rainha, com todas as suas pompas: as es-
sências do mundo civilizado que libertava o homem de toda a barbárie.
(KRAUSZ, 2013, p. 53-54).

A marca da diferença se aprofunda pelo olhar brasileiro sobre a ter-


ra britânica. Nela, não é preciso “sofrer com a inflação, com o calor, com a
poluição do ar, com os políticos corruptos, a criminalidade, a educação ine-
xistente”. Mais do que isso, a cidade-mãe é, mais uma vez, a personificação
da Babilônia, cujo símbolo “é a antítese da Jerusalém celeste e do Paraíso”,
é a “porta do deus” que se perverte em homem e no que nele há de mais vil
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 112). Londres torna-se, assim, veícu-
lo do “fetiche europeu” sobre a personagem, visto que simboliza “uma energia
divina captada, presente, utilizável” e se torna objeto de culto, a alimentar a
imaginação do jovem de raízes judaico-europeias.
Nesse sentido, o espaço da Central London é recorrente na narrativa,
revelando o percurso da personagem por museus, teatros, áreas comerciais e
turísticas, como Oxford Street, Regent Street, Piccadilly Circus e St. James, no
coração da cidade. Os trânsitos da personagem no Reino Unido, dentro e fora
dos limites de Londres, podem ser observados no mapa a seguir:

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Mapa 4 – Trânsitos em Deserto, de Luis Krausz

Fonte: Editado de Google Maps (2020)11

Os deslocamentos do narrador pela cidade corroboram a sua posição


dúbia entre viajante e turista: ele transita, fazendo dos espaços da cidade uma
espécie de morada, mas, ao mesmo tempo, não chega a pertencer a nenhum
dos locais pelos quais passa. No conforto das rotas planejadas, entre casas
de primos em Londres e Eastbourne e espaços públicos visitados – museus,
teatros e lojas essencialmente –, estão a certeza do retorno à casa dos pais,
no Brasil, e o tempo definido de viagem pelo qual ele pagou. Como afirma
Bauman (2013, p. 30), o que o turista compra, as coisas pelas quais ele paga, o
que ele demanda receber é precisamente o direito de não se incomodar – há
uma segurança comprada em sua aventura por diferentes espaços geográficos.
Contudo, o narrador também carrega o mundo de seus antepassados, o que
faz dele uma “criatura de passagem, em trânsito perpétuo entre um e outro
mundo” (KRAUSZ, 2013, p. 97). Por ele, chegamos ao périplo de toda uma
coletividade no deserto que forma a história de sobreviventes varridos “pelos
ventos e pelos mares até localidades distantes, dispersos pelos cantos do mun-
do como folhas ressecadas” (KRAUSZ, 2013, p. 114).

11  Mapa em sua versão completa disponível em https://bit.ly/3mGLe0z.

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Participa da compreensão dos movimentos geoculturais presentes na
obra o conhecimento linguístico, visto de forma paradoxal no romance. De
um lado, a variedade de línguas presentes na narrativa – ídiche, hebraico, ale-
mão, inglês, francês, além do português – demonstra o contato com identi-
dades, pelas quais as fronteiras “eu x outro” são delineadas. Um exemplo está
nas possibilidades de comunicação ampliadas pelo narrador, pelas línguas que
fala para além do português: “‘Do you speak english?’ ou ‘At medaberet anglit’
foram, como sempre, minhas primeiras palavras ao telefone” (KRAUSZ, 2013,
p. 9, grifo do autor). Também o conhecimento da língua francesa contribui à
leitura de títulos para ele inacessíveis no alemão formal: “pus a ler a tradução
francesa de A metamorfose, que trouxera comigo do Brasil. Não seria capaz de
ler em alemão o livro de Kafka porque o alemão que eu conhecia era apenas a
linguagem doméstica da conversa com meus avós e com meu pai” (KRAUSZ,
2013, p. 36). No caso do francês, o aprendizado da língua no Brasil se dá pela
força da supremacia cultural: “aquela Europa congelada, transmutada em pá-
tria metafísica, era o único lugar de nosso verdadeiro contentamento. Assim,
eu me socorrera com as aulas de francês, que era a língua europeia por exce-
lência” (KRAUSZ, 2013, p. 36-37).
Por outro lado, é pela barreira linguística que o narrador se percebe
como ser deslocado dentro da casa de familiares falantes do ídiche e do ale-
mão. As fronteiras linguísticas estão por toda a parte na obra e alteram o com-
portamento e as escolhas do jovem narrador. Seja pela biblioteca alemã de
seus avós, que permanece intangível, com “frutos proibidos” a um “semianal-
fabeto” (KRAUSZ, 2013, p. 36); seja pela carta enviada pelo tio-avô de Tel Aviv
ao protagonista, “escrita num ídiche um tanto solene”, sem suspeitar que ele
“não seria capaz de ler sequer uma daquelas palavras” (KRAUSZ, 2013, p. 21);
seja, por fim, no desconforto estabelecido pela dificuldade de comunicação
com o tio em Israel.
Os reflexos da globalização cultural estão bem representados em
Deserto. Por ela, a produção de produtos culturais e a facilidade de viagens
internacionais são canais para possibilidades de conexão entre espaços e in-
divíduos. Nesse sentido, Daniele Conversi (2010, p. 46) afirma que as via-
gens aéreas aumentam as possibilidades de compartilhamento, integração e
fusão cultural, contribuindo ativamente para a globalização. Por outro lado,
o multilinguismo (WEBER, 2013) produz a necessidade de desenvolvimento
de múltiplas competências linguísticas, as quais se tornam portas de entra-
da ao consumo internacional pelo turismo ou pela indústria cultural. Assim,
a globalização cultural é impulsionada por vários períodos pós-guerra, com

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aceleração maior a partir dos anos de 1980 devido ao desenvolvimento da
indústria de comunicação e entretenimento (CONVERSI, 2010, p. 39), época
que se aproxima da representada pelo romance, visto que o protagonista viaja
a Londres ao final dos anos de 1970, quando o aprendizado de línguas estran-
geiras de origem europeia, em especial a inglesa, passa a tornar-se um passa-
porte para a sua incursão no mundo ocidental, fazendo-o (re/des)construir a
sua identidade cultural, mesmo que seja pela ilusão de pertencimento gerada
naquele latino-americano de raízes judaicas ao embeber-se da atmosfera in-
glesa: “As luzes da cidade eu avistava pelos vidros molhados e através da garoa
se despediam de mim como as últimas cenas de um filme que gostamos muito
de ver” (KRAUSZ, 2013, p. 135).

Considerações finais

As narrativas de Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Gisele


Mirabai e Luis Krausz são amostras vívidas da complexidade do “ser estran-
geiro” engendrada por personagens brasileiras em trânsito no Reino Unido
e, mais especificamente, sob as brumas do inverno londrino. Contudo, tal re-
presentação não se limita a essas obras apenas: outros nomes significativos
da literatura brasileira contemporânea destacam o papel de Londres como
um espaço de passagem, fuga e libertação. Adriana Lisboa, Em Azul corvo
(2010), por exemplo, posiciona Londres temporalmente entre a Amazônia e
o Colorado por meio das memórias exílicas de Chico – ou Fernando, como
é conhecido pela narradora –, revelando o passado histórico de um Brasil
opressor e o trauma da ditadura trazido no silêncio daquele que carrega con-
sigo a experiência da dor. Londres, nessa obra, é o entrelugar de refúgio e
renovação. A cidade britânica significa aqui um entrelugar de refúgio e reno-
vação em contraste com o trauma da ditadura militar no Brasil, em analogia a
questões encontradas no romance de Krausz.
Já Michel Laub, em A maçã envenenada (2013), à semelhança de Caio,
em “London, London”, conecta Londres ao autoexílio e à sujeição ao trabalho
informal, expondo a situação de inúmeros latino-americanos no continente
europeu. Nesse romance, a passagem do narrador por Londres, após traumas
que mudam a sua vida, inclui uma carga horária sobre-humana, que muito
contrasta com o pagamento recebido – bico como entregador de panfletos,
atendente de lanchonete, faxineiro, carregador de caixas. A viagem a Londres
representa o autoexílio: pela narrativa, observamos que “os extremos entre
prisão e liberdade estão divididos entre dois lugares: Porto Alegre e Londres”;

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mais uma vez, a babel britânica torna-se uma espécie de mãe cruel, que rece-
be e, paradoxalmente, alimenta a sensação de desterritorialização – “de não
pertencer a um território, de estar à parte, em um mundo de fragmentação e
desordem, de ter perdido o seu próprio território e visualizá-lo como estran-
geiro, mas também de abrir caminhos onde eles nunca existiram”12 (MELO,
2015, p. 121, tradução minha) –, elementos recorrentes em Estranhos estran-
geiros, Machamba e Lorde.
De modo semelhante, a produção literária de Paloma Vidal se destaca
em termos de representação do estrangeiro pelos espaços britânicos. A autora
possui Londres como destino de personagens em Mais ao sul (2008), obra
composta por narrativas curtas que exploram a relação entre indivíduo e mo-
bilidade. Na novela “Viagem”, a narradora relata a sua “fuga” a Londres e o
(des)lugar de invisibilidade por ela ocupado na cidade-esfinge: “Ainda hoje
a cidade me parece imensa, fora do alcance das minhas pedaladas. Sei que
mesmo morando nela muitos anos permanecerá indecifrável. Que nunca será
minha. Que serei sempre uma estrangeira, quase invisível ao olhar indiferente
dos ingleses” (VIDAL, 2008, p. 42-43). Tal perspectiva nos remete às rela-
ções presente x passado estabelecidas no romance de Krausz ao registrar o
comportamento transitório de indivíduos cujos deslocamentos denotam uma
urgência ancestral, repassada por gerações. A condição de estrangeiro é tam-
bém destaque no romance Algum lugar, de Vidal, o qual tem o romance Lorde
como intertexto. A descrição detalhada da imagem da capa e a citação do pa-
rágrafo que abre o romance levam o leitor à sensação de deslocamento pelos
não espaços que acompanham as personagens, entrelaçando as experiências
de seres que partilham a mesma condição de aliens em ambientes anglófonos.
Dentre os elementos convergentes observados nessas obras, destaca-se
a representação de Londres como uma cidade global (SASSEN, 2002), cuja
infraestrutura, sistemas de comunicação e transporte se estendem à esfera
cultural. Como uma grande teia global, feita de interconexões labirínticas,
Londres – e, em especial, Londres Central – recebe indivíduos de todas as
partes do mundo, constituindo um emaranhado de línguas, povos, culturas,
experiências de passagem. Nesse contexto, percebemos elementos recorrentes
nas personagens brasileiras que circulam em solo britânico, qual seja, a visua-
lização de Londres à imagem e semelhança de Babel, pela qual um mundo
paradoxal é descortinado – ao mesmo tempo acolhedor e cruel, no qual há, de

12  No original: “[…] of not belonging to a territory, of being apart, in a world of fragmentation
and disorder, of having lost his own territory and seizing a foreign view of it, but also of opening
new paths where they had never existed.”

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uma lado, a conquista da invisibilidade e do anonimato em meio à imensidão
labiríntica da urbe; de outro, a certeza do não pertencimento pela marca da
estraneidade, como o único movimento possível fosse underground, sem aces-
so ao “ser europeu” por fatores fenotípicos, socioculturais e linguísticos, entre
outros que o colocam em uma posição minoritária face a uma ancestralidade
hegemônica tão sedutora quanto destrutiva.
A cartografia literária contida nas obras de Abreu, Krausz, Mirabai e
Noll leva-nos ao mapa da Londres Central apresentado por Sassen (2002, p.
84-85) como ilustrativo da rede que atravessa o coração londrino – ruas, ca-
nais, dutos, linhas férreas de metrô, esgoto, uma complexa rede de fibra ótica,
além de outros tipos de tubos e conexões são descritos por ela como parte
dessa massiva infraestrutura eletrônica que faz de Londres um espaço urbano
em rede, com projeções transatlânticas e conectividade transglobal. Ao sobre-
pormos os mapas literários aqui produzidos, observamos que, em sua essên-
cia, as personagens percorrem os espaços muito similares, entre Hyde Park e
Financial District, incluindo a região do Thames, de Westminster, para chegar,
na direção norte, a Camden e a parte de Hampstead, o que corresponde ma-
joritariamente aos espaços representados pelo mapa de Sassen. Todavia, em
termos literários, tal cartografia vai muito além da representação de caminhos
percorridos ou lugares visitados, conduzindo o leitor a geografias do desloca-
mento, as quais são constituídas pela experiência exílica e diaspórica de or-
dem transnacional e circunscritas na memória individual e coletiva. Nesse
sentido a memória é considerada um fenômeno dotado de zonas de fronteiras
conceituais, a habitar a encruzilhada entre o passado e o presente (SEYHAN,
2001, p. 31) e a problematizar, consequentemente, as relações entre identida-
de, pertencimento e segregação.
A expressão da marca da diferença, tão presente nas narrativas aqui
exploradas, retoma conceito de outsideness perseguido por Mikhail Bakhtin
(2013). Daí a necessidade material de as personagens se deslocarem geografi-
camente, de experimentarem o “ser estrangeiro” corporalmente; é em meio a
essa força estabelecida entre próprio e alheio que o indivíduo se (des)encontra
na cidade e (des/re)constrói um território só seu, internamente, conquistando
espaços e descobrindo-se no limiar entre o local e o global. Os protagonistas
das narrativas em questão têm seu tempo-espaço marcado pela experiência
vivida, imersa em movimentos (auto)exílicos e diaspóricos, que trazem à tona
a sua constituição insular. Seja pela história familiar que as acompanha ou
pela própria trajetória de vida, as personagens trazem consigo a face da se-
gregação e do isolamento, mas também a luta por um espaço, mesmo que de

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refúgio. A escolha pela cidade de Londres em diversas narrativas brasileiras
contemporâneas não é gratuita: enquanto ilha, ao mesmo tempo dentro e fora
do universo europeu, “o antigo nome da Grã-Bretanha é ‘Albion’, a branca”, cor
símbolo do centro primordial por ela representado; assim, o local de destino
dos protagonistas das narrativas aqui revisitadas faz referência a um centro ao
qual o ser se projeta e microcosmo de um “outro” mundo, que serve de refú-
gio e para o qual “se transfere o desejo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p. 502, grifo dos autores) de uma felicidade intangível. Corrobora essa simbo-
logia a imagem do inverno, elemento transversal nas obras aqui observadas.
A paisagem gélida, brumal e úmida acompanha o périplo de cada narrativa e
representa tanto a introspecção quanto a renovação, visto que é justamente no
inverno que a natureza busca refúgio e aguarda o renascimento. A cor bran-
ca une pelo espaço-tempo ilha e estação, acolhendo as personagens em uma
Londres que é vista como energia vital para o seu crescimento interior.
Além disso, a personificação da capital britânica como a babilônica
cidade-mãe proporciona o repensar sobre o papel feminino na literatura, não
necessariamente maternal, mas sempre desafiador, interrogativo, receptáculo
da liberdade, tão desejada pelas personagens nela chegam, e das impurezas
de um mundo terreno. Como quer Bhabha (1994, p. 321), o ato de atravessar
fronteiras repercute na transformação do “eu” enquanto “outro” e abre cami-
nhos para a compreensão de seus espaços de origem e destino, partida e che-
gada, formando uma identidade coletiva por vezes dissoluta, a ser constan-
temente repensada. Pelos meandros da narrativa brasileira contemporânea,
percebemos uma legião de estrangeiros anônimos, de seres a ocupar o papel
de “alienígena” (NOLL, 2004, p. 32) e a carregar em si a marca da exclusão,
de liberdades interrompidas e da luta incessante por um lugar que possam
chamar de seu.

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A lição das coisas: Halina Grynberg e a
literatura judaica pós-shoah no Brasil

Lyslei Nascimento1

Quando as tropas alemãs invadiram Paris em 1939, muitas pessoas fe-


charam suas residências e fugiram em busca de segurança longe da França
ocupada. Algumas famílias nunca mais puderam recuperar suas casas ou seus
pertencentes nas ruínas da cidade. Mas, em 2010, a neta de uma dessas pes-
soas teve essa oportunidade. Setenta e um anos eram passados, e a família de
Madame De Florian descobriu que, durante todo esse tempo, ela havia pagado
as taxas e mantido seu apartamento fechado em Paris, mesmo sem nunca mais
ter voltado para ali. Ela tinha vinte e três anos quando precisou fugir deixando
tudo para trás. Após a sua morte, um auditor fez o inventário de tudo o que foi
encontrado dentro do apartamento que havia permanecido fechado e desabi-
tado durante todo esse tempo.
Reaberto, descobriram que o apartamento se tornou, metaforicamente,
uma cápsula do tempo. Em meio à poeira e às teias de aranha, os objetos pare-
ciam suspensos, as prateleiras continham verdadeiros tesouros do início do sé-
culo XX. A cozinha ainda estava equipada com talheres, copos e outros utensí-
lios. As obras de arte haviam sido retiradas das paredes, como se a proprietária
estivesse se preparando para levá-las, mas não lhe sobrou tempo para tal. Uma
penteadeira, cuidadosamente entalhada, continha objetos de toucador, emba-
lagens de maquiagem, vidros de perfumes. Em um canto, foram encontrados
dois bonecos, um do Mickey Mouse e outro do Gaguinho, revelando a presen-
ça do universo de Walt Disney na época. Uma pintura chama atenção: o retrato
da proprietária do apartamento, que era uma atriz bem-sucedida em Paris,
num elegante vestido cor-de-rosa. Também foram encontradas muitas cartas
de amor cuidadosamente amarradas com fitas de diferentes cores (GONTIJO,
2014).
A história do apartamento de Madame De Florian ilustra, de forma
singular, a vida privada na França, no período da Segunda Guerra Mundial.

1  Professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da


Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Aproximo-a, também, aqui, ao poema “As coisas têm alma”, de Maria José de
Queiroz, do qual recorto os seguintes versos:

As coisas têm alma.


Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo (QUEIROZ, 1982, p. 17-18).

As coisas falam e, ali, onde desemboca o silêncio, o mistério se mani-


festa, continua a voz lírica que, em franco diálogo com o livro Lição de coisas,
de Carlos Drummond de Andrade (2012), ilumina minha leitura de uma série
de escritoras que, na contramão de uma crítica nem sempre generosa, fazem
fulgurar, em meio à escuridão, um traço, um rastro, um pormenor.
Mameloshn: memória em carne viva (2004) e O padeiro polonês (2015),
de Halina Grynberg, são paradigmáticos dessa literatura. O período de 11
anos que separa os dois romances não torna a leitura deles mais palatável. Ao
contrário, a duplicação do número 1 aponta, simbolicamente, para a condição
dúplice, ou gêmea, das narrativas. Em ambas, “a memória em carne viva” tra-
duz “a violência de ser um sobrevivente”, como afirma o rabino Nilton Bonder
no posfácio ao primeiro romance (BONDER, 2004, p. 101-106). Nesse texto,
ele também afirma que “somos todos resultado das mais diversas violências
produzidas no passado. O Holocausto gera crueldade, exílio da terra natal e,
principalmente, exílio do território humano, nossa mais primitiva linguagem”
(BONDER, 2004, p. 101). Além disso, Bonder continua advertindo o leitor
para o fato de que Grynberg “segue a gramática dos sonhos e dos pesadelos”,
daí que “em meio a tanta escuridão e desorientação, em meio a tanta perda e
tanta inevitabilidade, rastejam dos escombros adjetivos suaves, sobreviventes”
(BONDER, 2004, p. 103).
Proponho, no entanto, ler os dois romances de Grynberg à luz dos subs-
tantivos, ou seja, das coisas referenciadas, citadas ou listadas. Mais do que os
adjetivos – que estão próximos e qualificam os substantivos – eles põem em
cena palavras que nomeiam seres, objetos, qualidades, ações, sentimentos.2

2  Vale lembrar Georges Perec (2012, p. 27): “E houve o sabão em pó, a roupa que seca, a rou-
pa que é passada. O gás, a eletricidade, o telefone. As crianças. As roupas e as roupas de baixo.
A mostarda. As sopas em pacote, as sopas em lata. Os cabelos: como lavá-los, como pintá-los,
como mantê-los, como fazê-los brilhar. Os estudantes, as unhas, os xaropes para a tosse, as má-

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Desse modo, os objetos, em seu silêncio, adquirem uma importância
ímpar e manifestam o romance como um fato cosmológico que tem como mo-
delo o Gênesis bíblico, como queria Umberto Eco (1985, p. 20). Nesse sentido,
as coisas, ou os substantivos, que aparecem em listas e enumerações, fazem
parte de um mundo subjacente mobiliado pela escritora e por suas narradoras
(ECO, 1985, p. 21-27).
É também Eco (2010) que nos lembra que, na história da cultura oci-
dental, há listas de santos, elencos de soldados, enumerações de criaturas gro-
tescas, inventários de plantas e relações de tesouros. A essas listas acrescento
aquelas criadas por escritores que fazem das coisas perdidas, ou das que res-
taram da grande catástrofe, seu mote para sua escrita (NASCIMENTO, 2017).
Os dois romances de Halina Grynberg – Mameloshn e O padeiro polonês
– inscrevem-se, portanto, de forma peculiar, na literatura brasileira. Márcio
Seligmann-Silva (2007, p. 1) afirma que essa produção é “extremamente mar-
ginal” e que, por uma série de motivos, os sobreviventes que “acabaram apor-
tando no Brasil, não encontraram”, aqui, “um público acolhedor aos seus teste-
munhos”. Compõe-se, assim, para o crítico, um “panorama desolador”, apesar
de considerar a importância desses textos (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 10).
Antes de Seligmann-Silva, Regina Igel (1997) trata do tema em Imigrantes
judeus/escritores brasileiros em uma abordagem precursora. Na parte intitu-
lada “Memórias do Holocausto”, ela divide essa produção em: a) pedagógicos
– caracterizados pelo teor paradidático, de conteúdo autobiográfico e do que
ela considera como uma “mínima elaboração imaginativa”; b) híbridos – mar-
cados pela combinação de estilos, ou seja, apresentando traços pedagógicos
entrelaçados a descrições de vivências da guerra, reais ou imaginadas; e, por
último, c) ficcionais, isto é, textos cuja voz narradora é onisciente, analista ou
intérprete das reações dos personagens, recriando, pela imaginação, eventos
históricos em dramas e conflitos a partir da Shoah (IGEL, 1997, p. 211-247).
De acordo com a pesquisadora, sua proposta tem por objetivo localizar
esses textos “no corpo memorial da literatura brasileira” (IGEL, 1997, p. 211).
“Ser objeto de modesto aparato analítico” (IGEL, 1997, p. 211) seria, assim,
um recorte recente. Além disso, os primeiros autores que produziram textos
de cunho autobiográfico, “entre a data que chegaram ao país e o momento de

quinas de escrever, os adubos, os tratores, as diversões, os presentes, a papelaria, a linha branca,


a política, as autoestradas, as bebidas alcoólicas, as águas minerais, os queijos e as conservas,
as lâmpadas e as cortinas, os seguros, a jardinagem. Nada do que era humano lhe foi alheio.”
A lista das coisas, como se vê, configura-se como um inventário do cotidiano, desdobrado em
prosa poética, liricamente, na referência às roupas que se repete e culmina com a apropriação e
a reescrita da máxima de Terêncio: sou humano e tudo o que é humano me interessa.

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abrirem as comportas de suas memórias”, demoraram cerca de trinta anos para
escrever e publicar sobre suas memórias (IGEL, 1997, p. 211).
O elenco e a análise desses e de outros autores que mesclaram fato e fic-
ção, além dos que escreveram textos assumidamente ficcionais sobre a Shoah,
começam com uma introdução sobre outros temas bélicos na literatura brasi-
leira (IGEL, 1997, p. 212-214). Igel destaca que, apesar de esses tópicos terem
modesto registro na ficção do Brasil, eles conformaram narrativas que explo-
ram episódios épicos coloniais e imperiais, bem como biografias de vultos das
Forças Armadas e experiências de caserna. A partir dos anos 1970, uma nova
geração de historiadores judeus se dedicou, com afinco, aos estudos sobre
a Segunda Guerra Mundial, como Egon, Frieda Wolff e, mais tarde, Roney
Cytrynowicz. Além deles, com trabalho paradigmático por suas “intenções
didáticas”, Igel destaca a obra de Henry Nekrycz, mais conhecido pelo pseudô-
nimo de Ben Abraham. Entre suas publicações, estão …e o mundo silenciou,
de 1972; Holocausto, de 1976; Segunda Guerra Mundial: síntese, de 1985, que
revelam o recorte ao longo do tempo.3
Acompanhando a abordagem de Igel, que vai até os anos 1990, dois es-
critores judeus se destacam por tratarem da Segunda Guerra Mundial em suas
obras. Em primeiro lugar, de forma precursora, Jacó Guinsburg, com o conto
“O retrato”, publicado em 1946; e Boris Schnaiderman, com o romance que
poderíamos chamar de autobiográfico, Guerra na surdina, de 1964. Depois, o
tema ocorre em textos de outros escritores, como no romance A guerra no Bom
Fim, de Moacyr Scliar, de 1972. O tema da Shoah, mais especificamente, apare-
ce na obra de Scliar em 1986, no conto “Na minha suja cabeça, o Holocausto”;
também nas coletâneas A vida secreta dos relógios e outras histórias, de Roney
Cytrynowicz, em 1994, e Breve fantasia, de Samuel Reibscheid, em 1995.
Tendo esse estudo preliminar como parâmetro, Seligmann-Silva (2007,
p. 5) sugere, no artigo “Literatura da Shoah no Brasil”, classificar como “teste-
munho primário” os textos que apresentem experiências vividas em “primeira
mão”, ou seja, os textos memorialísticos dos sobreviventes; e como “testemu-
nho secundário” aqueles que forem produzidos por quem não viveu pessoal-
mente a catástrofe, mas faz dela seu tema literário. Do primeiro grupo, o crítico
refere-se à obra de Boris Schnaiderman e de Joseph Nichthauser. Acrescenta,
ainda, referências aos escritores Moacyr Scliar, Samuel Rawet, Aleksander

3  A obra de Ben Abraham conta com mais de quinze títulos dedicados ao tema da Shoah.
Além desse autor, Igel cita Konrad Charmatz, Joseph Nichthauser, Olga Papadopol, Malka L.
Rolnik, Alexandre Storch, Sonia Rosenblatt, I. Podhoretz, Américo Vertés, Alfredo Gartenberg,
Ari Chen, Mathilde Maier, dentre outros.

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Henryk Laks, Tova Sender, Sabina Kustin, Giselda Leirner e Halina Grynberg,
que publicaram outros textos após o levantamento de Igel. Do seu estudo, ele
conclui que “apesar da falta de diálogo desta produção com o veio da literatu-
ra nacional tradicionalmente mais valorizado”, obras como as de Nichthauser,
Scliar, Rawet, Cytrynowicz, Grynberg e Leirner, também o romance O J verme-
lho, publicado em 1976, por Alfredo Gartenberg, são suficientes para “compro-
var a importância do tema e a qualidade de seu tratamento” (SELIGMANN-
SILVA, 2007, p. 6). Além disso, ele avalia que os livros apresentados podem ser
vistos como

uma espécie de resumo concentrado de uma enorme produção, já que


muitas de suas modalidades estéticas e determinadas pela relação de
proximidade ou afastamento cronológico do evento, e pela pertença à
geração de sobreviventes ou de seus descendentes, estão aqui represen-
tadas. (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 10).

Berta Waldman, em dois artigos fundamentais – “Entre a lembrança e o


esquecimento: a Shoá na literatura brasileira” (2015) e “Uma história concisa
do Holocausto na literatura brasileira” (2019) –, traz para a reflexão outros
exemplos de como a literatura brasileira configurou as atrocidades perpetra-
das durante a Segunda Guerra Mundial.
Para isso, ela aborda, no primeiro texto, o romance A guerra no Bom
Fim, de Moacyr Scliar, publicado em 1972; Diário da queda, de Michel Laub,
publicado em 2011; e, de Cíntia Moscovich, o conto “O homem que voltou ao
frio”, publicado na coletânea Anotações durante o incêndio, de 2001; e o roman-
ce Por que sou gorda, mamãe?, de 2006. Nesses textos, a Shoah “é um instru-
mento para a construção de metáforas, metonímias, comparações, hipérboles,
litotes, com o propósito de tratar de outras situações que não o Holocausto
propriamente dito” (WALDMAN, 2019, p. 7).
No segundo texto, Waldman estuda os contos “O retrato”, de Jacó
Guinsburg; “O profeta”, de Samuel Rawet; “Mitzves, boas ações” e “O tio”, de
Meir Kucinski; “O mau humor de Wotan”, “A velha” e “A senhora dos segre-
dos”, de Guimarães Rosa; além dos romances A guerra no Bom Fim, de Scliar;
Memorial de um herege, de Samuel Reibscheid; os contos de A vida secreta dos
relógios e outras histórias, de Cytrynowicz; os romances Mameloshn: memó-
ria em carne viva, de Grynberg; Por que sou gorda, mamãe?, de Moscovich; e
Diário da queda, de Laub. A partir das análises de Waldman, é possível perce-
ber que mais do que as histórias de extermínio dos judeus na Segunda Guerra
Mundial, esses escritores, judeus e não judeus, têm provocado um olhar mais

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atento, mais sensível e delicado para com o cotidiano de personagens marca-
dos pela catástrofe, em primeiro ou segundo grau.
Nesse sentido, minha abordagem, neste ensaio, parte do olhar sensível
desses estudiosos, mas, a contrapelo das abordagens mais panorâmicas, pro-
ponho, com Waldman, uma leitura mais íntima e pessoal dos textos, consi-
derando, sobretudo, o valor do pormenor como um rastro importante.4 Para
além da explicitação do vazio, da falta e da lacuna apontados recorrentemente,
nas listas e nas enumerações, as coisas que têm alma, que emergem das som-
bras, como podem ser vislumbradas nos romances de Halina Grynberg, serão
o fio condutor das análises aqui empreendidas.5
Não afeitas à monumentalidade, Cíntia Moscovich, Giselda Leirner,
Halina Grynberg, Malka Lorber Rolnilk, Mathilde Maier, Noemi Jaffe, Sabina
Kustin e Sonia Rosenblat – só para citar algumas das escritoras que, no Brasil,
têm a Shoah como tema – elegem o pequeno, o pormenor, para construir suas
narrativas. O leitor não está, portanto, diante de um vazio, de uma página em
branco, mas entre fragmentos, ruínas e cinzas, em estado de dicionário, como
queria Carlos Drummond de Andrade. Essas coisas, tal qual verbetes, em uma
mínima compleição, parecem trazer de longe, ou de não tão longe na história,
“entre o ser e as coisas”, vozes que não podem ser abafadas.6

4  Para o conhecimento de outros autores, consultar o Dicionário de Escritores Judeus no Brasil


no site do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, que possui cerca de duzentos autores referen-
ciados em verbetes. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=-
nej&lang=1&page=1824&menu=1094&tipo=. Acesso em: 20 out. 2020.
5  Leia-se, outros versos do poema “As coisas têm alma”, de Maria José de Queiroz: “Do suben-
tendido à evidência/ emissá-rias de lembranças,/ as coisas falam./ Ilhas de luz e sombra,/ pás-
saros petrificados,/ pérolas de profundo sigilo,/ sua voz cresce,/ e sobe,/ cálida, vibrátil./ Numa
linguagem secreta,/ ali, onde desemboca o silêncio,/ o mistério se manifesta:/ flecha disparada,
súbito aroma,/ que o tempo devora/ e a quietude consome./ As coisas têm alma:/ múltipla, com-
pósita, diversa” (QUEIROZ, 1982, p. 17-18).
6  Leia-se, também, o poema “Entre o ser e as coisas”, de Carlos Drummond de Andrade:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando/ ao largo vento e à rocha/ imperativa,/ e a tudo me
arremesso, nesse quando/ amanhece frescor de coisa viva.// Às almas, não, as/ almas vão pai-
rando,/ e, esquecendo a lição que já se esquiva,/ tornam amor humor, e vago e brando/ o que é
de natureza corrosiva. // N’água e na pedra amor deixa gravados/ seus hieróglifos e mensagens,
suas/ verdades mais secretas e mais nuas./ E nem os elementos encantados/ sabem do amor que
os punge e que é, pungindo,/ uma fogueira a arder no dia findo” (ANDRADE, 2012, p. 203).

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Viviana Bosi, no posfácio a Lição de coisas, de Drummond,7 afirma que
há, nesse livro, um tom investigativo da memória. Para a estudiosa:

o que se poderia tomar por simples catálogo de dicionário parece antes


sintetizar a rememoração profunda de uma cultura, um lugar, um longo
período. Logo adiante, irrompe outra obsessão desdobrada do princípio
ao fim do livro – a pergunta sobre a relação entre expressão do sujeito,
palavras e coisas: “O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,/
coisa livre de coisa, circulando”. (BOSI, 2012, p. 103).

Minha leitura vai, dessa forma, de encontro à sentença da crítica que


insiste em tratar como mudez ou tartamudez a linguagem da literatura da
Shoah. Ao contrário, tomo a reflexão de Bosi para repensar esses textos e, com
um olhar atento, demoro-me nas pequenas coisas, nas quase translúcidas listas
presentes nos romances de Halina Grynberg, por exemplo. Neles, fazem-se ou-
vir coisas que anseiam sair da “cápsula do tempo” – os objetos do apartamento
de Madame De Florian ou as palavras em estado de dicionário dos versos de
Drummond – e vir habitar nossa memória.8
Beatriz Sarlo refere-se, em Tempo passado: cultura da memória e gui-
nada subjetiva, ao que Primo Levi chamou de “matéria-prima”, que, sem ne-
cessidade de “grandes gestos teóricos”, põe em cena o testemunho (SARLO,
2007, p. 23-24). Sendo assim, o estudo das coisas potencializa o pensamento,
fazendo com que se atravessem algumas fronteiras, inclusive epistemológicas
em relação à Shoah. Portanto, diante da catástrofe, do trauma, das perdas e
dos danos, surge o recurso de um certo otimismo teórico para pensar a “arte
da memória”, em contraposição, talvez, a um “dever da memória”. (SARLO,
2007, p. 24). Nesse sentido, a escrita das coisas faz falar uma “poética das listas”,
como estratégia e potencialidade narrativa (REBELLO, 2017).
Listas de coisas perdidas, recuperadas ou parcialmente preservadas,
como um inventário ou uma coleção de silêncios, são apresentadas nos dois
romances de Grynberg que, de forma lírica, faz irromper os dilaceramentos
da narradora e de todos os personagens neles inscritos. Ambas as narrativas

7  Leiam-se, ainda, os versos: “Bem te conheço, voz dispersa/ nas quebradas,/ manténs vivas
as coisas/ nomeadas./ Que seria delas sem o apelo/ à existência,/ e quantas feneceram em sigilo/
se a essência/ é o nome, segredo egípcio que recolho/ para gerir o mundo no meu verso?”
(ANDRADE, 2012, p. 12).
8  De “Procura da poesia”, de Drummond, lembrem-se os versos: “Penetra surdamente no
reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há
desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicioná-
rio” (ANDRADE, 2012, p. 2019).

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se conformam como uma espécie de relicário, no qual esses restos são pre-
servados e expostos (NASCIMENTO, 2017, p. 151-163). Os dois romances se
abrem, pois, como um tipo de espólio, em que os mistérios das vidas que ali se
escondem se manifestam de forma contundente.
O vocábulo “relicário” aparece em vários trechos das duas narrativas e
dão o tom da escrita. Como se sabe, o termo se refere a uma pequena caixa ou
baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele to-
cados, bem como partes do corpo (dentes, ossos, cabelos) ou objetos de grande
valor afetivo. Ao contrário do registro das cinzas e dos dejetos improváveis
que escapam dos delírios da mãe, sobrevivente de um Campo de Extermínio, a
narradora, em Mameloshn, avalia que “o pó dos cremados bailava na escuridão
até pousar” sobre ela. “Como uma Quarta-feira de Cinzas em mim sempre”, ela
ratifica (GRYNBERG, 2004, p. 9).
As coisas, que podem ser erroneamente tomadas como itens de um ca-
tálogo, por uma simples listagem, sintetizam, tal qual a letra Aleph ou a enu-
meração presente no poema “As coisas”, de Jorge Luis Borges, um espaço de
rememoração, uma área de intertextos e de significações, de vestígios de uma
cultura, de um lugar, de um período, de uma vida, de um elogio das sombras.9
Nessa perspectiva, cada coisa conforma-se, como uma fantasmagoria do que
se perdeu ou do que pouco se preservou. No romance Mameloshn, a narradora
afirma:
Madureira era muito quente todos os meses do ano e eu estava só so-
bre o leito anônimo, precário. Todas as coisas habitavam o sem-lugar. E
mal recordo de guarda-roupas ou prateleiras que ficassem no quarto de
casal, um móvel qualquer a misturar roupas e identidades, as ausências
mais do que as roupas, e as pessoas que não estavam ali mas que per-
maneciam sendo, melhor definidas do que eu ou meus vagos pertences.
(GRYNBERG, 2004, p. 12-13).

De suas parcas lembranças do quarto de dormir, ela passa, em primeira


pessoa, à descrição do corpo o qual habita. Este, no entanto, não é referenciado
com densidade e consistência. Diz a narradora:

9  Além da enigmática letra hebraica, que traz para o debate a noção de infinito (BORGES,
1998. p. 686-698), ver, também, o poema “As coisas”: “A bengala, as moedas, o chaveiro,/ A
dócil fechadura, as tardias/ Notas que não lerão os poucos dias/ Que me restam, os naipes e o
tabuleiro./ Um livro e em suas páginas a seca/ Violeta, monumento de uma tarde/ Sem dúvida
inesquecível e já esquecida,/ O rubro espelho ocidental em que arde/ Uma ilusória aurora./
Quantas coisas,/ Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,/ Nos servem como tácitos escravos,/ Cegas
e estranhamente sigilosas!/ Durarão para além de nosso esquecimento;/ Nunca saberão que nos
fomos num momento” (BORGES, 2000, p. 395).

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Tateio a caligrafia do tempo que a evoca, um estremecimento inespera-
do nas marcas sobre a pele de meu braço, a leve aspereza das sardas, há
uma dobra na carne da musculatura frouxa, os pigmentos em branco
são epigrafia de sua ausência. (GRYNBERG, 2004, p. 17).

A escrita do tempo traduz, no corpo fragmentado da filha, o corpo e a


memória da mãe. Pele, braço, músculos aparecem como disjecta membra, ou
seja, fragmentos dispersos. Nesse sentido, as marcas sobre a pele, a aspereza
das sardas, e até a dobra da carne da musculatura frouxa, deixam vislumbrar,
como pigmentos, a escrita no corpo e o corpo na escrita.
A caligrafia, como se sabe, é arte, prática ou técnica de escrever à mão,
segundo normas e convenções de legibilidade (tamanho, forma, proporção e
disposição dos sinais gráficos), ou de acordo com padrões estéticos de elegân-
cia e harmonia. No contexto do romance, essa arte ou técnica só pode vir pró-
xima à epigrafia, ou seja, a uma tentativa de decifração, datação e interpretação
das inscrições maternas sobre a pele. É, no entanto, nessa pele, uma página
marcada, que o corpo escrito da narradora ora se perde ora se encontra com
o da mãe, desde o início da narrativa, o leitor bem o sabe, às portas do delírio
e da morte.
Os dois vocábulos, “caligrafia” e “epigrafia”, põem em cena, portanto,
uma ilusão, ou encenação autobiográfica (MIRANDA, 2009), na qual as partes
do corpo – a pele, as sardas, o braço – são fragmentos de um discurso amoroso,
como diria Roland Barthes (1981), impossíveis de serem apresentados como
um todo, ainda que estranhamente suturados. Como filha de sobreviventes,
a narradora revela, pela escrita, seu corpo como um relicário, um envoltório,
que se tornava um “suporte para um palimpsesto, um documento distinguido
da linhagem devastada no Holocausto” (GRYNBERG, 2004, p. 21).
Na sequência, a narradora reflete sobre uma vacinação contra a coque-
luche a que foi submetida, quando criança, em sua escola de Paris, antes de a
família embarcar para o Brasil:

Estofada de anticorpos, perseverei nos resquícios da epidemia agarrada


à boneca nua que me amparava ao adormecer. Sugar o único tufo de
cabelos que enfeitava o alto de sua cabeça era o quanto necessitava para
encher-me de alento. Eu poderia renascer daí. Bastava como evidência:
haveria um mundo onde bonecas teriam cabelo, roupa e sapato. E eu um
nome para chamar. (GRYNBERG, 2004, p. 39).

A boneca com um único tufo de cabelos é uma evidência e uma espe-


rança. O renascimento da narradora, pela escrita, aparece, nesse momento,

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mesmo diante da ruína do brinquedo, ou do texto como ruína, porque, de al-
guma forma, vir para o Brasil significaria poder sonhar com um mundo “onde
as bonecas teriam cabelo, roupa e sapato”. Se, por um lado, a criança é a mãe
da boneca, como geralmente se tem na brincadeira infantil, por outra, a me-
nina suga o tufo de cabelo, como se a boneca fosse o seio da mãe. Além disso,
ambiguamente, a narradora, anônima que é, poderá, quem sabe, ter um nome
para chamar ou, por extensão, ser chamada ou nomeada, resgatando, no corpo
inerte da boneca, o seu nome próprio devastado pela guerra, pelas doenças,
pelo desafeto.
Desse modo, em Mameloshn, a narradora encena a língua materna e,
por extensão, a mãe, a memória e as suas relações familiares como uma ferida
continuamente aberta, mas, em O padeiro polonês, ela a desnuda e retira das
sombras, numa tentativa de acerto de contas implacável – a figura quase abjeta
do pai, tendo como intertexto, como não poderia deixar de ser, Carta ao pai,
de Franz Kafka (1997).
Como a página do meio entre duas metades de um único livro, os dois
romances se espelham. No primeiro romance, a narradora constrói a imagem
da mãe e sua condição de mulher abandonada pelo marido, em delírios sobre
o período de prisioneira nos Campos, marcada pela senilidade e pela doença.
No segundo, impera a figura do pai, cuja representação desabona qualquer
justificativa a atos criticados pela filha. No discurso da filha, um rancor su-
blime, porque lírico e melancólico, destrói, causticamente, qualquer memória
idealizada.
De acordo com a narrativa da filha, a retórica do pai era arte de confei-
teiro, ou seja, com o dom de iludir a quem dele se aproximava. Sendo assim,
ela avalia:

Urdia uma epopeia, conjugando sem cuidado o iídiche ancestral ao po-


lonês inculto: fraseado, abrupto, cadências hipnóticas, uma aura mítica
emalhando os detalhes, adulterando suas desventuras dos anos de guer-
ra. Fazia crer um profeta vergado sob o peso da revelação a arrastar os
passos de sua paixão pela Europa dividida entre o nazismo e o comunis-
mo. (GRYNBERG, 2015, p. 21).

Expondo essa fala estropiada, a narradora semeia, entre uma expressão


e outra, dúvidas quanto à boa índole do pai.10 Desse modo, ela conta com a

10  Ver alguns versos do poema “Daddy”, de Silvia Plath (2006, p. 165-199): “Eu tive de matar
você, papai./ Você morreu antes que eu pudesse –/ Peso de mármore, saco repleto de Deus,/
Estátua medonha com um dedão gris/ Do tamanho de uma foca de Frisco”.

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cumplicidade de um leitor que pode não se aperceber que essa “retórica” tam-
bém põe em relevo o seu próprio discurso.
Afinal, a narrativa em primeira pessoa expõe, mais do que encobre, a
narradora que pode não merecer a plena confiança do leitor. Nesse sentido,
os “ardis e truques” do pai também podem ser espelhados nas estratégias dela
para seduzir quem a acompanha nas histórias que conta. Se a “máscara mal
contida” e “estapafúrdia ficção” do pai, desfia um “lero-lero desabusado de ar-
timanhas, excessos de redundância, sequências intermináveis de metáforas,
exaurindo a atenção do ouvinte de maneira a encobrir versões divergentes das
‘verdades’ que difundia” (GRYNBERG, 2015, p. 22), a performance em que a
narradora atua também é digna de nota.
Muito bem urdida, a narrativa íntima e pessoal da filha se inscreve numa
história muito mais ampla:

A maioria dos sobreviventes do genocídio nazista preferia não recordar.


Poupavam a si, poupavam seus filhos e netos, resmungavam. Enfeitiçada,
agarrei-me aos livros, livros e mais livros, uma pesquisa frenética sobre
a Shoah. Lia as memórias alheias. Qualquer autor, qualquer texto, desde
que me permitisse ir um passo além dos enredos de meu pai, seguindo
em frente pelo deserto do sem sentido, para além do abismo do esque-
cimento, para além dos becos sem saída onde pareceria soterrada nossa
história. (GRYNBERG, 2015, p. 24).

Não recordar não é uma opção para essa narradora. Por isso, o texto em
forma de lamento, de cobrança, de falta de empatia para com o pai sobreviven-
te. A palavra-chave desse trecho é “enfeitiçada”, porque ela dirige o olhar do
leitor ao desejo frenético de dar sentido ao silêncio do pai. A cena da leitura de
“livros, livros e mais livros” põe na ribalta “as memórias alheias” que são cos-
turadas à própria vida, numa vertigem de livros invisíveis referenciados nessa
repetição (PIGLIA, 1991, p. 60-66).
Os espaços labirínticos são, nesse texto à contraluz, listados: o deserto
sem sentido, o abismo do esquecimento, os becos sem saída e, no holofote, o
ato falho da narradora: “a nossa história”. Duplica-se, portanto, no corpo-texto
da filha, os corpos emparedados dos pais. No corpo ficcional da mãe e do pai,
a filha se inventa e se reinventa, também, ficcionalmente, a fim de suportar “o
desterro e a perplexidade” da pátria da dor, do relâmpago, mas também do
reflexo, territórios movediços da ficção.
Se, como queria Ricardo Piglia (1991, p. 60), a memória é a tradição
impessoal, feita de citações, na qual todas as línguas são faladas, nos romances
de Halina Grynberg e na literatura pós-Shoah no Brasil, a memória é íntima

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e pessoal, na qual desemboca o silêncio e se manifesta o mistério ínfimo de
viver. Os textos, nesse sentido, abrem-se como uma cápsula do tempo tal qual
o apartamento de Madame De Florian. As micro-histórias, assim, compõem
a história na e pela linguagem, tanto as dos filhos nos pais quanto as dos pais
nos filhos, tal qual uma rede, ou uma renda, tecida com memórias próprias e
alheias, de partes humanas, de livros.

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Ruínas e identidades migrantes em Teatro, de
Bernardo Carvalho, e Harmada, de Gilberto Noll

Cecily Raynor1

Temos saudade das ruínas da modernidade porque elas ainda


parecem encerrar uma promessa que desapareceu de nossa era: a
promessa de um futuro alternativo
Andreas Huyssen

Na literatura latino-americana contemporânea, não é apenas a demar-


cação de espaços e lugares que nos ajuda a entender a interação entre global
e o local nos últimos anos, mas também a ausência ou obscurecimento de
marcadores espaciais. A literatura espacialmente ambígua fornece uma plata-
forma única a partir da qual podemos fazer a pergunta-chave: que vestígios
permanecem nesses trabalhos e o que nos dizem sobre o local, o regional,
o continental, ou o global? A ambiguidade espacial e o universalismo nos
devolvem também à tensão entre temas universais e locais na escrita.2 A re-
moção das narrativas dos limites da especificidade local pode ter um efeito
poderoso, com o espaço assumindo um papel alegórico. Ao mesmo tempo, à
medida que nosso mundo globalizado distorce as identidades específicas ao
lugar e a fixidez geográfica, os escritores desafiam cada vez mais as fronteiras,
afastando-se da estrutura da experiência vinculada ao local. Como afirmou
Edmundo Paz Soldán (2004), escritor boliviano e membro do movimento li-
terário McCondo, os latino-americanos estão “menos vinculados do que an-
tes ao ponto de referência tanto da identidade política quanto da civil”.3 Essa
plasticidade de identidade é explorada nos dois romances que examino neste
ensaio: Teatro (1998), de Bernardo Carvalho, e Harmada (1993), de Gilberto

1  Professora de Estudos Latino-americanos e Humanidades Digitais do Departamento de


Línguas, Literaturas e Culturas na McGill University, Canadá. Doutora em Estudos Latino-
americanos pela Georgetown University. E-mail: [email protected].
2  Escritores canônicos, incluindo Machado de Assis, Jorge Luis Borges, ou Guimarães Rosa,
há muito vêm defendendo uma estética desnacionalizada.
3  As traduções presentes no texto foram realizadas pela autora.

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Noll. Como exploro em minha pesquisa de uma maneira geral, a relação entre
os planos local e global é frequentemente caracterizada pelo diálogo e inter-
seção mutualistas. Territórios de memória, identidade e pertencimento com-
plicam e expandem nosso senso de lugar. Em Present Pasts: Urban Palimpsests
and the Politics of Memory4, Andreas Huyssen (2003, p. 4) comenta que “a
modernidade trouxe consigo uma compressão muito real de tempo e espa-
ço. Mas no registro dos imaginários, também expandiu nossos horizontes de
tempo e espaço para além do local, do nacional, até mesmo do internacional”.
Esse fenômeno se torna visível pela suavização dos parâmetros geográficos
em romances espacialmente ambíguos. De fato, os autores contemporâneos
da América Latina desafiam e questionam a própria ideia de espaço – como o
produzimos, a quem pertence, o que é e o que não é.
Este ensaio se concentra na ambivalência espacial como um reflexo da
interação entre o global e o local em dois romances brasileiros dos anos 1990:
Teatro (1998), de Bernardo Carvalho, e Harmada (1993), de Gilberto Noll. As
duas obras apresentam cenários que são nacionalmente indefinidos e fictícios:
a cidade de Harmada, no romance de Noll, e o país das maravilhas e suas ter-
ras limítrofes em Teatro, de Carvalho. O que vem à tona na interpretação dos
dois romances é um profundo senso de ambivalência, uma tensão inquieta
que une pertencimento e deslocamento, passado e presente, universal e par-
ticular. Essa tensão floresce na representação dos mundos narrativos como
ruínas, entre os protagonistas que lutam para mediar a memória e a experiên-
cia em línguas fraturadas, e na vertigem comunicada por narradores pouco
confiáveis que operam em ambientes indefinidos. De fato, há uma sensação
de estar em lugar nenhum e em todos os lugares na capital de Harmada e na
zona fronteiriça de Teatro, cujos cenários permitem que a familiaridade e o
distanciamento se misturem. Ambas as obras giram em torno da partida e
do retorno a territórios imaginados, geograficamente indefinidos. Às vezes,
esses reinos fictícios são retratados como locais de nostalgia, decadência e
até mesmo maravilha; em outras ocasiões, eles são dilapidados e decadentes,
restos do que foi um dia. A zona ambivalente entre o universal e o particu-
lar fornece outra lente para entender as expressões da literatura sobre a lo-
calidade diante da globalização. Esses romances refletem sua linha temporal
na América Latina durante os anos 1990: uma década na qual a região seria
cada vez mais confrontada com os males do neoliberalismo, à medida que foi
sendo impulsionada para o mercado global. Tendências econômicas globais

4  O livro foi traduzido para o português com o título Culturas do passado-presente: modernis-
mos, artes visuais, políticas da memória.

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possuem ramificações espaciais e pessoais, que Noll e Carvalho exploram de
forma fictícia. De fato, as forças globais penetram em nossas vidas locais e
somos confrontados com o sentimento inquietante de que as características
mais familiares de nossa vida cotidiana são construídas por forças e redes fora
de nós mesmos, ao mesmo tempo íntimas e distanciadas.
Alinhado com o foco no universal em diálogo com o particular, ambos
os trabalhos colocam ênfase nas ruínas dos tempos modernos como um tropo
espacial. De fato, as ruínas pertencem à paisagem dos dias atuais, ao mesmo
tempo em que são mapeadas ao longo do amplo arco da história universal,
tornando-as uma poderosa estrutura para o estudo do espaço. Na minha lei-
tura dos textos, a ruína serve a duas funções primárias: a) como herança para
processos fracassados de modernização na América Latina, vistos em cidades
em ruínas, ruas e zonas de fronteiras fantasmagóricas, e; b) como metáforas
espaciais para a expressão da perda, transformação e mudança de identidade
em uma era de globalização. Essas configurações disruptivas de tempo e es-
paço frequentemente tomam a forma de ruínas e espaços em decadência, cuja
própria deterioração lhes confere poderes de ruptura temporal e espacial. As
ruínas não surgem do nada, elas são sempre e imediatamente os artefatos de
outra época. Como os produtos de outros tempos e espaços, as ruínas repre-
sentam uma irregularidade espacial e temporal na paisagem “plana” da glo-
balização: elas indicam outras localidades que um dia ocuparam um determi-
nado lugar. Como Huyssen comenta na epígrafe, as ruínas têm a capacidade
única de encarnar o passado, o presente e um futuro projetado incompleto de
uma só vez, tornando-as poderosas ferramentas conceituais. Dessa forma, a
ruína atua como uma afronta direta aos processos de homogeneização e nive-
lamento das forças fenomenológicas globais, importante ao considerar como
os textos em análise articulam a experiência local em relação aos processos
globais. Harmada e Teatro também contradizem o retrato dos espaços globa-
lizados como limpos em sua estética, descolados dos sinais de épocas anterio-
res: homogêneos e padronizados.
Assim, baseando-me nos trabalhos dos teóricos da globalização
Anthony Giddens (1990, 1991) e Roland Robertson (1995), uso a ruína como
um meio para avaliar os conflitos entre tempos e espaços, prestando especial
atenção à tensão entre familiaridade e distanciamento que caracteriza a rela-
ção entre o local e o global. Ao fazer isso, concentro-me especificamente na
experiência pessoal, na (in)confiabilidade narrativa e em espaços indefinidos
como ferramentas para reconciliar seres ambivalentes e ambientes.

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Os espaços ambivalentes de Harmada, de Noll

Desde as primeiras linhas de Harmada, o leitor entra em uma série


de acontecimentos interligados, que se passam em locais indefinidos e são
fundamentados nos sentidos. O personagem principal, referido como “ele”,
está situado ao ar livre, reclinado sobre a terra: “Aqui ninguém me vê. E eu
posso enfim me deitar na terra. Aproveitar a terra que virou lama depois do
temporal” (NOLL, 1993, p. 5). Assim, o romance começa em um momento
de solidão e contato com o mundo orgânico, significativo no sentido de pri-
vilegiar a terra em vez de um local específico, o universal sobre o particular.
As primeiras linhas também enfatizam o corpo, que virá a desempenhar um
papel vital durante todo o romance. Dessa forma, Noll destaca a experiên-
cia da localidade como uma experiência profundamente sensorial, subjetiva
e fundamentada na experiência pessoal. De fato, o protagonista sente a terra
e todos os seus elementos. Esse episódio lembra as contemplações de Sara
Ahmed (1999, p. 341) sobre a experiência do lugar na vida contemporânea.
Ela escreve: “A imersão de um eu em uma localidade não se trata, portanto,
simplesmente de habitar um espaço já constituído (do qual se pode simples-
mente partir e permanecer o mesmo). Ao contrário, a localidade se intromete
nos sentidos: ela define o que se cheira, ouve, toca, sente, lembra”. Na verdade,
a ambiguidade espacial dessa cena é contrastada com sua especificidade sen-
sorial; o protagonista sente o chão debaixo dele, a terra lamacenta é tangível.
O momento de intimidade é perturbado por uma bola atingindo o ombro do
narrador, seu primeiro encontro com outras subjetividades. O protagonista
troca algumas palavras com o dono da bola, um garoto. À medida que a his-
tória avança, o leitor toma conhecimento de que os dois estão localizados na
margem de um rio desprovido de marcadores espaciais, intitulado simples-
mente “um rio qualquer” (NOLL, 1993, p. 6). Eles seguem o curso do corpo
luminoso da água, parando ao final para tomar banho. A narrativa se move
então entre uma série de locais sem nome, com o narrador bebendo em um
bar e depois acompanhando um homem manco em direção a outro rio não
especificado. Tais sequências iniciais preparam o cenário para uma história
que se desdobra em lugares indistintos, dando preferência aos sentidos e às
sequências de memória fluida: “Fiquei assim por algum tempo, parado pen-
sando nos últimos acontecimentos, tentando fazer um balanço sucinto daqui-
lo que acabara de ocorrer” (NOLL, 1993, p. 14). Portanto, o leitor se envolve
no mundo mnemônico do autor.

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Harmada é uma obra em grande parte interna, à deriva nos reinos da
consciência de seu protagonista sem levar em conta as restrições de lineari-
dade temporal ou espacial. Como Fermín Rodríguez (2010) eloquentemente
observa sobre Harmada, “não há transições; não há nexo narrativo entre as
cenas que são criadas e dissipadas sem deixar rastros, como rajadas de matéria
líquida que irrompem em uma mistura de forças elementares”.5 Claramente,
a falta de transições entre parágrafos desafia os leitores. Ao mesmo tempo,
os diversos acontecimentos compartilham um epicentro: a magnética capital
Harmada. É em Harmada que ele encontra Amanda, sua amante por um curto
período, e sua filha recém-nascida, Cristina (Cris), que reaparecerá mais tar-
de. O hotel que os dois habitam não tem nome específico, nem a rua em que
está localizado: “Ao chegar na estrada notei lá no fundo uma construção bem
iluminada nas janelas, trazendo na fachada em letras fluorescentes a palavra
hotel” (NOLL, 1993, p. 16). Além disso, os nomes dos outros personagens
– Sandra, Amanda, Cristina, Sônia – são genéricos. O leitor pode assumir
que eles pertencem a uma língua românica, mas apenas o acento circunflexo
sobre a letra “o” de Sônia aponta para o português. Em contraste com essa
não especificidade, Noll inclui referências culturais contemporâneas pontuais
na primeira seção: por exemplo, César Franck, um compositor francês cuja
música é mencionada em seu encontro no quarto de hotel, e Yuri Dupont,
supostamente um autor russo cuja obra está prestes a estrear no teatro. Dessa
forma, Noll entrelaça fato e ficção, pois Franck é uma figura histórica da vida
real e Dupont não. É como se Noll estivesse tentando enganar os leitores com
referências factuais, apenas para lançar um véu de mistério, fabricando outros
fatos.
Dadas essas incongruências, o narrador é deixado em uma posição du-
vidosa, pois o leitor não pode confiar nas referências culturais, sociais, políti-
cas e espaciais que elaboram o intrincado mundo narrativo de Harmada. Há
uma sensação de profunda ambivalência sobre os cenários, bem como uma
mistura do fictício e do real. O leitor está certo ao supor que a história se passa
em um país latino-americano, mas as referências do romance lançam pou-
ca luz sobre um local específico. Enquanto isso, começamos a ter uma ideia
do passado do narrador a partir de vários pontos de referência biográficos: o
tempo em que passou trabalhando na capital Harmada, seu casamento fra-
cassado com uma mulher chamada Jane, sua infertilidade e uma experiência

5  Em espanhol: “No hay transiciones; no hay ningún nexo narrativo entre escenas que se hacen
y se disipan sin dejar rastros, como borbotones de materia líquida estallando en un caldo biótico
de fuerzas elementales.”

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homossexual. Esses eventos estão associados a pistas geográficas carregadas
de lugares, incluindo um time de futebol chamado “Eldorado” de uma cida-
de conhecida como “Chaves” – a primeira é uma referência clichê à cidade
perdida fictícia do imaginário colonial latino-americano que se acreditava ser
repleta de ouro, e a segunda é um sobrenome comum em espanhol. Junto
com o título da obra e seus personagens, essas referências deliberadamente
genéricas evocam um imaginário latino-americano, apesar do fato de que a
localização exata de Harmada nunca é especificada. Ao construir o cenário
de Harmada, Noll empreende uma homogeneização deliberada do particular
através da generalização de marcadores espaciais locais para representar toda
uma região. Ao fazer isso, ele problematiza a noção de que a vida globalmente
incorporada varreu as características particulares do local e aponta, em vez
disso, para a natureza multiescalar e distanciada de atributos ostensivamente
locais: como aponta Giddens (1991), as permutações baseadas no local – um
shopping center ou, nesse caso, um time de futebol – são frequentemente ma-
nifestações de processos distantes e globais que ocorrem em todas as locali-
dades. Essa copresença de tendências particularizantes e universalizantes – o
que Roland Robertson chama de glocalização (1995) – leva a uma ambivalên-
cia que Giddens descreve como uma inquietante mistura de familiaridade e
estranhamento. A ambivalência espacial de Noll segue as tendências da nar-
rativa brasileira contemporânea, como Regina Dalcastagnè observa em uma
entrevista:

Mas há algumas décadas o que vem se impondo como uma caracterís-


tica da literatura contemporânea talvez seja o sentimento da impossi-
bilidade, ou mesmo da vacuidade, da pretensão de se formar o grande
painel da vida nacional. Não há mais a ideia de produzir o romance que
definiria o Brasil – o último foi, talvez, Viva o povo brasileiro, de João
Ubaldo Ribeiro. Nossos romances falam do aqui e do agora, de uma
classe social, de um gênero e uma raça – são pequenos recortes pessoais
ou de grupos localizados. Isso não é necessariamente ruim; a pretensão
de totalidade pode ser uma armadilha. (REBINSKI JUNIOR, 2014).

Em Harmada, Noll examina o aqui e agora observado por Dalcastagnè,


enquanto reflete sobre classe social e a decadência do corpo físico e da cida-
de. A narrativa está centrada na experiência individual, através de sentidos
físicos, memória, e afeto – táticas de localização e de aterramento em face
da disrupção da modernidade global. Se podemos afirmar algo é que seus
temas fornecem um comentário regional, e não especificamente brasileiro.
Para reforçar esse sentimento, Noll não aponta para o Brasil, mas inventa um

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conjunto genérico de atributos associados a um imaginário latino-americano,
e não a um puramente brasileiro. Além das práticas de nomenclatura e refe-
rências discutidas acima, o autor menciona os terremotos, o que aponta para
possíveis locais, incluindo, para além do Brasil, o Chile ou o México. Em vez
de transmitir um senso de lugar unificado, o romance se mantém firmemente
não específico; suas páginas repletas de marcadores sinalizam a incorporação
da região nos processos fenomenológicos globais, ao mesmo tempo em que
destacam como os protagonistas individuais modelam suas experiências lo-
cais na tela do espaço.
A sensação de ambiguidade espacial se intensifica à medida que o nar-
rador chega a um asilo sinistro para os sem-teto e doentes mentais, no qual
a maior parte de sua história se desdobra. Há uma esterilidade no lugar, que
é ao mesmo tempo desprovido de referências geográficas e disperso: “Depois
de rondar e rondar por cômodos daquele prédio sem fim, acabei encontrando
os indigentes todos que habitavam aquela casa num vasto refeitório, sentados
um de cada lado junto a compridas mesas” (NOLL, 1993, p. 44). A qualidade
sanitária do ambiente é elevada por seus objetos. Nesse espaço repetitivo, o
narrador é despojado de sua própria identidade, convertido em um número:
“Eu usava um pijama verde com um número no peito” (NOLL, 1993, p. 43).
Sua transformação é importante, pois o torna um ninguém, um paciente en-
tre muitos. Curiosamente, o sentimento de não especificidade é contrastado
com seu desejo de se apresentar, e sua voz subjetiva se torna uma poderosa
deixa para o específico em meio ao ambíguo. Pouco depois de sua chegada, ele
conduz apresentações diárias para colegas de confinamento, contando longas
histórias e contos pessoais. Curiosamente, esses monólogos são muitas vezes
frustrantes e difíceis de contar, revelando os limites de sua linguagem:

Eu, bem na verdade, jamais preparava as narrativas que desembocavam


pela minha boca. O rumo do desenrolar das tramas se dava só ali, no
ato de proferir a ação. Aliás, detestava pensar previamente acerca do
que teria a contar. Eu me deixava conduzir pela fala, apenas isso, e esta
fala nunca me desapontou, ao contrário, esta fala só soube me levar por
inesperados e espantosos episódios. (NOLL, 1993, p. 40).

Aqui, o leitor é surpreendido pela espontaneidade de suas apresenta-


ções; elas parecem ter uma qualidade quase involuntária, levando o narrador
a direções inesperadas. Entretanto, independentemente de sua qualidade ad-
-hoc, existe um desejo subjacente de dar voz à sua experiência no mundo e
de conectá-lo com aqueles ao seu redor através de brincadeiras espontâneas.
Por meio de sua performance, ele é capaz de modelar sua experiência local e

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subjetiva sobre um mundo desconectado do afeto, estéril, não descritivo e ho-
mogêneo. Ao mediar seu anonimato particular em meio a uma multidão que
parece sem rosto, o narrador é atraído por uma expressão de si mesmo, que
continuará a ter significado em Harmada.

O deserto urbano de Harmada

Em Harmada, a ambiguidade espacial e a ruína colidem enquanto a


cidade serve como um ponto de convergência, com o romance terminando
em um desnudamento sinfônico que destaca a ruína tanto da cidade quan-
to do narrador. Em contraste com a primeira parte do romance, a experiên-
cia do narrador na capital está repleta de influências e referências à história
pessoal, que servem para ancorar uma narrativa que, de outra forma, seria
fluida. O narrador constrói a localidade através da experiência pessoal em
ambas as seções do romance, mas suas memórias da e na cidade o enraízam
ainda mais em rotas espaciais do passado. Ao mesmo tempo, sua experiência
em Harmada está arraigada em um sentimento de ambivalência sobre sua
identidade, sua posição na cidade e sua capacidade de sobreviver diante da
queda fenomenológica e muito real da capital e de si mesmo. Harmada, a
capital, vem ampará-lo nessa vagueação. Em meio a esse cenário em ruínas,
tanto o narrador quanto sua filha adotiva, Cristina, que vem juntar-se a ele
no hospital psiquiátrico, encontram um sentido de propósito recuperan-
do suas identidades perdidas. Eles chegam de ônibus à noite, preenchendo
lentamente os contornos de Harmada e observam “um belo trecho de praia”,
inicialmente a partir de um apartamento em um prédio alto (NOLL, 1993,
p. 68). Desse mesmo ponto de vista, os personagens observam a silhueta de
uma cidade desmoronada à beira-mar, quebrada e acidentada – “Da área de
serviço se tem uma vista ríspida de Harmada: a enseada Sul, onde o mar é
escuro, cor de barro e se abre para um horizonte rasgado, despido de ilhas”
(NOLL, 1993, p. 100). Tal passagem emite uma aura de austeridade generali-
zada, como se a cidade com suas arestas recortadas fosse um mero perfil de
seu antigo eu. Sinais de decadência física aparecem ao longo de toda a obra,
desde as primeiras aventuras do narrador na capital, onde ele percebe que
viciados em drogas se reúnem em torno do teatro onde seus amigos Bruce
e Cris mais tarde se apresentam (NOLL, 1993, p. 70). Os problemas sociais
e a estagnação abundam. Da janela do apartamento, o narrador testemunha,
por exemplo, uma longa fila de candidatos a emprego do lado de fora de uma
fábrica: “Vejo uma fila enorme que dobra a esquina, pelo jeito candidatos a

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algum emprego de uma fábrica de cofres, onde a fila começa…” (NOLL, 1993,
p. 81). Esses sinais de decadência – tanto os dependentes de drogas quanto
os desempregados – vão além da decadência material, retratando os males
sociais da estagnação econômica. A cidade é exemplar de uma deterioração
econômica que a supera, ligada a processos fenomenológicos de um projeto
de modernização fracassado durante os anos de 1990, que permeou grande
parte da América Latina. Harmada é um lugar habitado por corpos inquietos,
onde a oferta excede em muito a demanda, um lugar que luta contra os males
do subdesenvolvimento e da pobreza; e há um sentimento sinistro nas massas
sem nome, não muito diferente dos espectros que habitam a Comala, cidade
do romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo. De fato, embora essas imagens de
declínio possam ser lidas superficialmente como problemas sociais locais, elas
inevitavelmente correspondem aos processos globais de industrialização que
deixam rastros heterogêneos sobre o local. Aqui, o conceito de glocalização de
Roland Robertson (1995) é bem adequado para descrever a presença simul-
tânea de forças universalizantes e particularizantes que configuram o retrato
narrativo de Harmada: a cidade é um ponto de colisão de forças globais sobre
um local específico. A cena da fila do lado de fora da fábrica necessariamente
lembra o leitor do mundo fora de Harmada: a cidade é um microcosmos em
um circuito global, e o que é vivido como local é inevitavelmente reposiciona-
do através de seu entrincheiramento dentro de processos globais, como Saskia
Sassen (1999) argumentou.
Certamente, muitas das descrições são evocativas de Pedro Páramo,
pois a cidade parece estar assombrada, cheia de edifícios fantasmagóricos
de outrora, vazios e dilapidados.6 Enquanto o narrador vê um dos prédios
ao nascer do sol, ele afirma que “Era madrugada, o prédio parecia morto”
(NOLL, 1993, p. 111). Ao mesmo tempo, ele narra seu passado em Harmada
como um passado de decadência, recordando as atividades teatrais de que
participava com Cristina e as noites que passava bebendo com Bruce, um ve-
lho amigo, enquanto se envolvia em encontros sexuais aleatórios. Na narrativa
presente, ele comenta sobre o fato de muitos dos quartos ou apartamentos em
que ele entra estarem vazios, abandonados, observando em dois parágrafos
consecutivos o vazio do apartamento, algo que chama sua atenção (NOLL,

6  Como observado por Idelbar Avelar, há várias referências a Pedro Páramo no romance,
incluindo uma peça que o protagonista e Cris montam juntos, descrita como uma “peça, um
monólogo de um autor mexicano, falava de uma mulher enlutada, por acreditar com ódio e de-
sespero na eternidade. Isto, ela não se cobria de luto no corpo e na alma pela morte de alguém,
pela finitude de um ser, não: o seu luto ao contrário expressava sua tristeza pela dura, pela des-
comunal herança da eternidade” (NOLL, 1993, p. 71).

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1993, p. 100). A esterilidade inerente aos espaços desocupados é um isola-
mento que espelha o estado emocional do protagonista. Ele então comenta
com Bruce “Ficaremos ilhados aqui”, repetindo novamente “Ilhados” (NOLL,
1993, p. 102). Mais tarde, em um último esforço para se reanimar de sua vida
caótica, o narrador rejeita sua reclusão, enfatizando sua necessidade de retor-
nar à sociedade na esperança de autopreservação: “Eu precisaria aprender a
me incluir no mundo em volta, só isso não deveria se chamar de covardia, era
a única forma de me preservar” (NOLL, 1993, p. 103). Aqui, percebemos que
o narrador vê a necessidade de se localizar para enfrentar um mundo instável
e globalizado, um mundo que está em espiral ao seu redor. Ele encontra esta-
bilidade na preservação de seu eu físico como um meio de resolver o conflito
entre sua vida passada decadente em Harmada e o estado de declínio que se
abateu sobre a cidade e seu próprio corpo. Chegando a um estado de deterio-
ração, o narrador deseja consertar seus dentes e comprar roupas novas, des-
cartando as roupas adquiridas no asilo: “Desta vez eu falo como se estivesse
decidindo pela minha restauração total” (NOLL, 1993, p. 77). Aqui, ele enten-
de a mudança como uma completa transformação de si, do corpo, da mente
e do espírito. Sua necessidade de renovação também mostra seu desejo de se
conectar novamente com os outros na tentativa de combater a solidão. Ele vai
ao dentista com a esperança de permitir “novamente a minha língua entrar
em outra boca, uma outra língua entrar na minha boca sem encontrar agora
cáries, ruínas, falhas” (NOLL, 1993, p. 78). Dessa forma, seu corpo é também
um tipo de ruína, uma ruína a ser restaurada. Harmada o atrai para sua teia,
dando-lhe uma sensação de esperança: “Depois de tanto tempo eu estava no-
vamente em Harmada, e precisava fazer com que a minha vida continuasse a
se dar por lá, como se ela fosse de um certo cultivo para conseguir a agilidade
de se desdobrar em outras ocorrências” (NOLL, 1993, p. 112). Ao contrário do
asilo estéril, árido e despersonalizado, Harmada é no mínimo um lugar rico
em vida humana e história pessoal, embora essas histórias nunca correspon-
dam à sua condição atual.
Quando o curto romance chega ao fim, o declínio pessoal e físico do
narrador colide com o da cidade em ruínas. No final, seus esforços são inúteis
diante do consumo pesado de álcool, incidentes de sangramento, explorações
sexuais incluindo bestialidades, náuseas e vômitos, noites dormindo nas ruas.
Esses comportamentos parecem ser sintomáticos de um problema mais pro-
fundo que aflige não apenas ele, mas a cidade em geral, a saber, o desemprego,
a pobreza e as doenças mentais, levando o narrador pelo caminho do vício
enquanto luta com comportamentos perigosos exacerbados por sua condição

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de sem-teto. No final, mesmo o magnetismo de Harmada revela-se insufi-
ciente para permitir sua ressurreição. Nas curtas sequências finais da obra, a
decadência da cidade é ampliada: “As ruas pareciam ainda mais sujas do que
de costume. Às vezes eu precisava contornar sacos de plástico como lixo, di-
lacerados no meio da calçada. Em vários deles, cachorros e mendigos faziam
a festa” (NOLL, 1993, p. 117). Essa pobreza penetra até mesmo em seu espa-
ço pessoal quando o narrador encontra um garoto de rua dormindo em seu
apartamento. Ele tem piedade da criança, permitindo que ela passe a noite. De
fato, sinais de declínio permeiam todos os níveis de espaço do romance, desde
o fenomenológico e global, até o local e o íntimo. As ruas da cidade e a cama
do próprio narrador exemplificam o diálogo entre o local e o global, permi-
tindo aos leitores verem os efeitos locais do fracasso da modernidade global.
Ao mesmo tempo, o fato de o narrador permitir que a criança fique com ele
também lembra aos leitores que, como atores locais globalizados, responde-
mos às forças globais em nível imediato e diário, através de nossas interações
mais cotidianas.
Em uma crítica clara ao passado colonial da América Latina, o romance
termina pouco depois, no dia em que se comemora a fundação da cidade, que
é ousadamente descrita como “a data em que um homem chega de barco numa
praia” (NOLL, 1993, p. 124). O mesmo jovem rapaz sem-teto agachado em
seu apartamento leva o narrador ao centro de Harmada e a Pedro Harmada,
um fantasma e fundador da cidade. Essa cena, a referência mais inequívoca
de Noll à obra de Juan Rulfo, se desenrola apropriadamente na parte antiga
da cidade, onde história e arquitetura colidem em seus edifícios coloniais em
ruínas: “Até o fim de uma rua sem saída, na parte velha da cidade. Havia no
local um prédio de três andares, escuro, muito antigo, espantosamente úmido
– de algumas fendas na era vertida uma água rala e vagarosa, mas contínua…”
(NOLL, 1993, p. 125). Embora a descrição desse edifício particular seja no mí-
nimo vaga, sua localização dentro da cidade antiga evoca imagens da arquite-
tura colonial e fachadas em decomposição, e a presença de Pedro Harmada só
aumenta a sensação de que ele é assombrado. O vazamento de água que parte
do edifício leva o leitor de volta às primeiras linhas da história, com o narra-
dor sentado às margens do rio, um momento no qual a natureza é permanente
e contínua, e o mundo material é temporário e suscetível à decadência. Diante
da natureza, a humanidade é impermanente, assim como a cidade e o prota-
gonista se desmoronam lentamente. Na sequência final, Harmada poderia ser
uma das muitas cidades da América Latina, seja Havana, Brasília ou Cidade
do México. Como tal, a generalização da Harmada de Noll serve como uma

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crítica às consequências dos projetos pós-coloniais de modernização do final
do século XX, dialogando com forças globais e vidas locais. Há um sentido
simultâneo de apagamento nas linhas finais, uma obliteração do passado para
dar lugar a um presente a-histórico, no qual a economia do mercado livre
virá a reinar. Dessa forma, Harmada aponta para um momento particular da
última década do século XX, um momento em que a América Latina será em
breve totalmente movida pelo capital global.

As terras fronteiriças em ruínas de Teatro

Em vez de uma peregrinação à capital, Teatro (1998), de Bernardo


Carvalho, concentra-se em um tropo espacial igualmente importante no ima-
ginário latino-americano, a zona de fronteira. O romance usa a fronteira como
uma estrutura conceitual para explorar a divisão entre realidades socioeconô-
micas e políticas, a tensão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento
(Norte/Sul), a língua privilegiada e não privilegiada e a cultura da violência
que permeia esse espaço geopolítico. Embora Teatro possa ser emblemático
das relações fronteiriças EUA/México, as relações alegóricas estabelecidas no
romance podem servir para representar a relação entre quaisquer dois países
que compartilham uma fronteira enquanto enfrentam um desequilíbrio ex-
tremo de poder. No entanto, ver Teatro a partir das lentes da fronteira EUA/
México pode ser útil para discutir questões mais amplas. Carvalho lança luz
sobre uma parcela da população frequentemente descartada, aqueles que es-
tão no “lado errado da fronteira”, tornando visível um setor de latino-ameri-
canos (independentemente da fronteira que se escolha) frequentemente dei-
xado na sombra. Empoderar a fronteira e reconhecer sua excepcionalidade
é algo pelo qual Gloria Anzaldúa ganhou notoriedade em seu texto teórico,
agora canônico, de 1987, Borderlands. Nessa obra, Anzaldúa pondera o espaço
fronteiriço multicamadas entre os EUA e o México, definindo a área frontei-
riça como uma área de regeneração, fusão, mistura e um complexo processo
de aculturação. Ela afirma: “Uma fronteira é um lugar vago e indeterminado
criado pelos resíduos emocionais de uma demarcação antinatural. Ela está
em um estado constante de transição” (ANZALDÚA, 1987, p. 3). Ao mesmo
tempo, em vez de pertencer somente a um ou outro lado da fronteira, a zona
fronteiriça muitas vezes produz novas culturas, idiomas e visões políticas, dis-
tintas de qualquer um dos países que dividem.
Como todo espaço, fronteiras não são apenas físicas, mas também psi-
cológicas e simbólicas. Ao falar sobre as identidades formadas ao longo da

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fronteira EUA/México, Anzaldúa (1987, p. 82) comenta: “A luta é interior: chi-
cano, índio, ameríndio, mojado, mexicano, imigrante latino, anglos no poder,
classe trabalhadora angla, negro, asiático – nossas psiques se assemelham às
cidades fronteiriças e são povoadas pelas mesmas pessoas. A luta sempre foi
interior, e se dá em terrenos exteriores”. Esse componente psicológico da fron-
teira é amplamente explorado em Teatro. Como em Harmada, Carvalho usa
o espaço da fronteira para refletir sobre questões de identidade, batalhas pela
linguagem, voz e poder. Ao fazer isso, ele investiga a complexa e muitas vezes
contraditória experiência do sujeito migrante. Como Sara Ahmed (1999, p.
343) escreve em sua discussão sobre o estranhamento e o pertencimento em
migração,

A experiência de deixar a casa em migração é, portanto, sempre sobre o


fracasso da memória em dar pleno sentido ao lugar que se vem habitar,
um fracasso que se experimenta no desconforto de habitar um corpo
migrante, um corpo que se sente fora do lugar, que se sente desconfor-
tável neste lugar. O processo de voltar para casa é igualmente sobre as
falhas de memória, de não ser habitado da mesma maneira pelo que
parece familiar.

O espaço físico da fronteira vem para encarnar o deslocamento perce-


bido de ambos os lados, faltando ao protagonista um sentido de enraizamento
para seu lugar de origem, e também para o país desenvolvido no qual ele foi
criado, encaixando-se ora em ambos os espaços, ora em nenhum deles. Dessa
forma, fronteira e ruína se entrelaçam para formar uma plataforma espacial a
partir da qual é possível explorar uma mistura conflituosa de estranhamento
e pertencimento sentida por aqueles que vêm do lado “errado” dos trilhos e
vivem no entrelugar.
Como em Harmada, Teatro deixa suas localizações geográficas inde-
finidas. O leitor não tem conhecimento do local da ação e os nomes de seus
personagens não fornecem links diretos para a origem nacional: Ana C., V.,
N., Daniel. Como em Harmada, há um punhado de referências do mundo
real, principalmente locais na Europa, incluindo França (Puivert, Mirepoix,
Toulouse e Montségur), Bósnia e Sérvia. Esses lugares são marcados como
exteriores ao espaço da fronteira, estrangeiros, distantes, permitindo ao lei-
tor supor que o conto não se passa próximo à Europa. A principal diferença
entre os dois romances no que diz respeito à ambiguidade espacial é que, en-
quanto Harmada constrói uma série de indicadores genéricos que apontam
para a América Latina, Teatro deixa o local desmarcado com a exceção de
poucas referências genéricas. Na verdade, Carvalho substitui inteiramente as

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definições espaciais, inventando dois países fictícios. Isso dá à história uma
qualidade alegórica sem entrar no gênero de fantasia, pois seus variados lu-
gares são fundamentados na vida contemporânea. Há dois países centrais na
história: um existe por nome e outro por procuração. Primeiramente, há o
país das maravilhas, um estado desenvolvido; em segundo lugar, seu vizinho
sem nome, descrito como um lugar indigente no qual se fala uma língua me-
nos prestigiosa. Os cenários locais são assim construídos em termos globais,
o que leva a uma sensação de vertigem espacial em lugares que parecem estar
desprovidos de marcadores antropológicos (AUGÉ, 1995). O que o apaga-
mento da identificação geográfica também consegue é remover a história do
contexto da América Latina ou qualquer outro lugar, permitindo amplas asso-
ciações: o local é construído em termos globais e universalizantes. Isso remete
ao trabalho de Robertson (1995) sobre a glocalização, uma vez que Carvalho
consegue universalizar o particular, construindo o local sobre marcadores es-
paciais generalizáveis e não específicos. A não especificidade espacial do ro-
mance não é vista apenas nos dois países que retrata, mas também na nomen-
clatura genérica de seus personagens: o leitor raramente toma conhecimento
dos sobrenomes dos personagens, incluindo o do protagonista da primeira
seção do texto, Daniel. Como Harmada, Teatro é um romance impregnado
de ambiguidade. De fato, o autor usa essa ambiguidade como pano de fundo
para explorar temas universais, incluindo o terrorismo, a psique humana frag-
mentada e frequentemente esquizofrênica, bem como dispositivos binários, a
exemplo de sanidade e insanidade, pobreza e riqueza, migração e imigração.
Ao mesmo tempo alinhado com Harmada, Teatro engaja a dicotomia entre
pertencimento e estranhamento, como um reflexo da experiência dos males
da globalização, enquanto seus personagens lutam contra o isolamento social
e uma extrema pobreza em seus países sem nome.
Como a zona de fronteira que explora, Teatro está dividido em duas
partes: “Os sãos”, seguida por “O meu nome”. A primeira parte do romance
conta a história de um policial aposentado, Daniel, que afirma ter informa-
ções fidedignas sobre uma série de ataques terroristas no país das maravi-
lhas, o país para o qual os pais do narrador fugiram antes de seu nascimento.
Nas sequências iniciais, o leitor toma conhecimento que o país das maravi-
lhas é também o “centro do império” (CARVALHO, 1998, p. 10), enfatizando
a questão da hegemonia e da marginalidade. Se o país das maravilhas é o
centro do império, todos os outros lugares são imediata e necessariamente
secundários a ele. Isso reforça a semelhança com a fronteira México/EUA,
assim como a paisagem desértica descrita entre os dois: “Vim pelo deserto”

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(CARVALHO, 1998, p. 11). Em contraste com o “centro do império”, o país
sem nome é economicamente precário e periférico: “Atravessou a fronteira,
fugindo da miséria e da insanidade de um mundo à margem” (CARVALHO,
1998, p. 10). Significativamente, o país limítrofe tem uma qualidade ruinosa e
fantasmagórica, mais tarde descrita como o “outro cemitério” (CARVALHO,
1998, p. 22). Como no texto de Noll, esse imaginário é amplamente estendido,
transformando-o em um lugar cheio de espectros, destruição e decadência:
“Já aqui, do meio dos mortos, nesta imensa lata de lixo, onde despejam os
restos e as misérias, posso falar” (CARVALHO, 1998, p. 22). Descrever o país
em tal estado, essencialmente um aterro sanitário, cria um forte contraste en-
tre o desenvolvido país das maravilhas e seu vizinho sem nome. Na terra de
origem, as coisas estão desmoronando, e a morte toca a todos. Na outra terra,
maravilhas e coisas incríveis são possíveis. Ao mesmo tempo, a deliberada
ambiguidade espacial de Teatro cai na linha do argumento de Anzaldúa sobre
a fronteira. Fronteiras significam a invenção de um novo espaço com novos
modos de ser, normas culturais desvinculadas pelo fardo de paradigmas na-
cionais estritos ou singulares. Um dos efeitos de libertar a zona de fronteira de
Teatro das restrições dos marcadores locais, regionais ou nacionais é imbuí-la
de um senso de universalidade. Essa terra de fronteira é feita para representar
cada fronteira, um espaço estranho e sinistro entre riqueza e empobrecimen-
to, lugar nenhum e todos os lugares, o espaço ruinoso de uma região em crise.
O leitor está, portanto, ciente da severidade do retorno forçado do pro-
tagonista à sua pátria. Ele deve voltar devido aos riscos associados às infor-
mações que possui sobre os ataques, empreendendo a viagem inversa de seus
pais, um ato que ele descreve como “retorno à periferia” (CARVALHO, 1998,
p. 11). Aqui, o leitor recebe mais uma referência espacial em relação a centro
e periferia, império e não império. A área imediatamente junto à fronteira é
desolada, carregada de decadência. Ao cruzar, ele opta por explodir seu carro,
apagando qualquer rastro de sua viagem: “Viajei durante dois dias até a fron-
teira, onde abandonei e explodi o carro, não antes de adulterar o número do
chassi… É comum encontrar carros explodidos na fronteira” (CARVALHO,
1998, p. 19). Essa explosão contribui para a imagem devastadora do “outro
lado da fronteira”, repleto de veículos abandonados, como também o ato de
apagar o número no chassi do carro elimina sua ligação com o protagonista de
Harmada. O espaço físico e a identidade estão interligados, o que implica que
atravessar a fronteira poderia oferecer uma possibilidade de renovação. Ao
mesmo tempo, essa seção dos textos lembra ao leitor a relação mutualista en-
tre o lugar e a prática. Daniel pratica o lugar através de táticas de localização,

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preservando seu próprio território de linguagem, rastreando novamente a
rota espacial de seus país até a fronteira (ainda que ao contrário) e remendan-
do suas experiências através de rotas espaciais subjetivas. Enquanto a decisão
de Daniel de explodir o carro “procede do” lugar, seguindo a decisão de outros
atores na fronteira, sua ação também “produz” lugar: ele contribui com mais
um chassi destruído para a paisagem ruinosa que faz fronteira com o “país das
maravilhas”. Dessa forma, ele é simultaneamente “produto” e “produtor” de
seu ambiente. No romance, o espaço é ao mesmo tempo imaginado e dinâmi-
co, lembrando ao leitor que as práticas de localidade são vibrantes e se movem
conosco ao longo de e atravessando nossas rotas espaciais.

Terror, confusão e o narrador não confiável em Teatro

A escrita permite a Daniel outro meio de produzir espaço, uma forma


de criar e sustentar versões alternativas da realidade. Teatro reflete sobre o uso
da escrita como uma forma de produzir, ocupar e tomar o espaço para nosso
narrador marginalizado. Dessa forma, ele é capaz de reinscrever sua voz sub-
jetiva e local na experiência muitas vezes desiludida dos processos globais e
fenomenológicos. A diferença socioeconômica inscrita nos espaços físicos dos
dois países em Teatro é impossível de ignorar. Carvalho usa o tropo espacial
das terras de fronteira para destacar a conexão entre poder e espaço, o que é
visto mais claramente nas práticas de escrita de nosso narrador. Em sua essên-
cia, Teatro conta a história dos responsáveis por uma série de ataques terro-
ristas, uma dupla de párias que enviam um pó letal a membros influentes da
sociedade em uma tentativa de combater os males do capitalismo neoliberal.
Esses atos ocorrem no desenvolvido “país das maravilhas”, mas, dado o estado
de coisas no país limítrofe, os ataques servem como uma declaração política
sobre as discrepâncias entre os dois lugares, pois a pátria do narrador luta com
o subdesenvolvimento e os impactos de um processo de modernização desi-
gual. Assim, Teatro reflete sobre a natureza desequilibrada da globalização,
vista através da lente de tensas relações de fronteira. Além disso, no romance,
o global e o local dialogam um com o outro através de expressões de vio-
lência. Os dois terroristas são descritos como informantes ocidentais, intelec-
tuais reclusos em uma cruzada para trazer justiça a uma hierarquia de poder
sistematicamente desequilibrada. Curiosamente, o narrador é encarregado de
reproduzir as cartas dos supostos culpados. Dado o desafio de identificar os
terroristas, após o primeiro ataque, a polícia lhe diz para escrever cartas jus-
tificando os eventos a partir da perspectiva do terrorista. Em outras palavras,

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ele tem a tarefa de imaginar as motivações das vidas individuais imbuídas de
processos globais. Ao mesmo tempo, a escrita se torna um mecanismo para
organizar o mundo ao seu redor, a fim de criar realidades alternativas e de
criar a si mesmo no meio delas:

Conheço todas de cor. Pesei cada frase, cada palavra. Sob as ordens dos
superiores, tentei imaginar os motivos, e criei um personagem por trás
dos atentados. Fui buscar no fundo da minha imaginação tudo o que
não havia utilizado no meu projeto abortado de tornar-me um escritor.
Inventei aquele homem revoltado, louco, só. E conforme novos atenta-
dos iam ocorrendo, com intervalos por vezes de dois, por outras de três
e até cinco anos, sem uma única palavra do verdadeiro “terrorista”, sem
nenhuma manifestação daquele homem que provavelmente nada tinha
a ver com o que criava, ia compondo sua personalidade em novas car-
tas, dando-lhe maior complexidade psicológica, colocando-o no centro
de um teatro. (CARVALHO, 1998, p. 74).

Teatro considera a noção de autoria e as linhas entre fato e ficção, vistas


aqui na incerteza do leitor sobre se o narrador está elaborando ou imitando
as cartas. Sua atenção aos detalhes relativos à psicologia dos terroristas, a suas
motivações e até mesmo ao momento dos intervalos entre os ataques mos-
tra-se perturbadoramente pessoal. O leitor fica se perguntando se a polícia
pode ter encenado os ataques e se aproveitado da imaginação de um escritor
fracassado. Isso não só confunde ainda mais as linhas entre verdade e ficção,
mas também reflete a falta de confiabilidade da autoridade (a polícia) na bus-
ca dos verdadeiros culpados. Há também consequências para a confiabilidade
do narrador, pois o leitor toma conhecimento da fabricação das cartas. A li-
nha final da passagem retorna ao título da obra e ao seu tema central: o teatro.
Curiosamente, o teatro – completamente fabricado, encenado e curado – é o
espaço ambivalente definitivo, uma fabricação da realidade que o público re-
conhece como falsa, mas que deve aceitar como real. O palco atua como uma
espécie de fronteira entre a realidade e a irrealidade, entre o público e o ator.
Anderson da Mata (2005, p. 11) comentou sobre essas questões na obra
de Carvalho, afirmando que “As reflexões estão a todo tempo apontando para
a questão da autoria, da escrita e da leitura como mecanismos de entendimen-
to, mas frágeis a ponto de expor seu autor à confusão”. Essa fragilidade é va-
liosa na medida em que descreve o mundo delicado e sombrio que Carvalho
constrói. O leitor muitas vezes se sente perplexo com o que está lendo dentro
de uma estrutura narrativa que é desordenada ou espelhada. De fato, há uma
familiaridade com a segmentação do romance, o qual é constituído ora pelo

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estranhamento, ora pela desestabilização do que é familiar, cuja ocorrência
se faz pela globalização à medida que o local se torna marcado por tensões
globais. São um delírio e um sentimento de tranquilidade que têm consequên-
cias narrativas. Essa confusão não é exclusiva de Teatro e pode ser vista em
outras obras de Carvalho, incluindo Nove Noites (2002) e Mongólia (2003).
Semelhante a Teatro, esses romances espelham suas narrativas em duas me-
tades com protagonistas invertidos, uma inversão que permite a Carvalho re-
fletir sobre a noção de confiabilidade narrativa. Dessa forma, o autor usa a
escrita como um meio de expor a natureza construída de todas as verdades, e
o caráter elusivo e escorregadio da “realidade”. O que antes eram fatos, agora
é ficção, e vice-versa. As vozes são multiplicadas e espelhadas de volta sobre si
mesmas; os eventos são descritos e depois anulados para expor sua fabricação.
Uma sensação de confusão é intensificada na segunda seção de Teatro, quan-
do outro narrador chamado Daniel, um fotógrafo, conta a história de Ana C.,
agora transformada em um famoso travesti masculino e estrela pornô com
uma legião de fãs, enquanto reside em um manicômio. Seus fãs chegam ao
ponto de escrever textos em dedicação à atriz. O final da segunda seção leva
o leitor a acreditar que Ana C. é ele próprio residente em um asilo e é, de fato,
o autor da primeira seção, Os sãos. Isso vira a história de cabeça para baixo,
colocando em questão a autoria de ambas as partes. No final, Carvalho conse-
gue criar um universo narrativo no qual não se pode confiar em nenhuma voz
e tudo, inclusive o espaço, está em um estado de fluxo. Em seus comentários
sobre Bernardo Carvalho, Stefania Chiarelli (2007, p. 77) descreve essa técni-
ca como um tipo de jogo com os leitores: “A interpenetração da verdade e da
mentira, o jogo entre loucura e sanidade vai tecendo um universo ficcional
onde não mais é possível que se estabeleça uma só verdade, que se torna mais
inverossímil do que a mentira”. Levando esse argumento mais além, propo-
nho que Carvalho conduz os leitores a um labirinto no qual eles começam
a questionar seu próprio senso de lógica em uma história comparada a uma
sala de espelhos. De uma perspectiva espacial, isso aumenta a sensação de
deslocamento e estranhamento, pois os leitores são levados de uma realidade
ambígua para outra.
Voltando à primeira metade de Teatro, o narrador discute os atos de
terrorismo com Ana C., sua ex-amante, reencontrando-a em sua pátria mui-
tos anos mais tarde. Eles falam sobre os eventos em detalhes junto com as
especulações correspondentes na mídia local. Sendo ele um aspirante a autor,
Daniel conecta a escrita com a criação do espaço, afirmando: “Mas as coi-
sas vão mudando e, quando você percebe, já ultrapassou os limites que tinha

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estabelecido, as regras mais fundamentais, e está perdido num lugar total-
mente desconhecido, para além das fronteiras, onde ainda estão para ser in-
ventados o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste” (CARVALHO, 1998, p. 32). Aqui,
Carvalho fala da natureza arbitrária desses marcadores, entendendo a geogra-
fia como escrita e como não escrita, um metacomentário sobre a política de
fronteira. A fronteira funciona como um limite “escrito” entre duas geografias
fluidas, o que nos remete à afirmação de Anzaldúa sobre a natureza indeter-
minada e transnacional do território fronteiriço. Em meio à confusão relacio-
nada a verdade e autoria, os supostos terroristas V e N criam mais um mundo
ficcionalizado: “Já tinham reinventado por completo a realidade do mundo,
numa espécie de pacto implícito, estirando os limites da verossimilhança e
da lógica, com o possível intuito de subvertê-la, pelo menos na cabeça de V”
(CARVALHO, 1998, p. 50). Esse mundo torna-se o microcosmo que o narra-
dor lê sobre o outro lado da fronteira através de artigos de jornal, permitindo
a Carvalho multiplicar ainda mais (e confundir) as perspectivas narrativas.
Por fim, o narrador se resigna à vida na periferia, em meio a escombros
e miséria: “Embora nesta cidade tudo pareça agora tão distante, como se eu
estivesse protegido, estou no meio da guerra, da miséria do mundo, que foi
banida pela ‘metrópole’ para esta periferia onde meu pai nasceu e onde vou
passar provavelmente as minhas últimas horas” (CARVALHO, 1998, p. 56).
Essa citação é reveladora, pois descreve o declínio da fronteira e o comple-
xo destino do protagonista, ao mesmo tempo em que serve para protegê-lo.
Daniel reconhece que dentro das ruínas ele está protegido de uma morte imi-
nente do outro lado da fronteira. No entanto, há uma sensação de agitação
ao ser colocado em quarentena nesse espaço, seu destino selado. Como em
Harmada, o retorno de Daniel para casa não significa uma renovação; ele é
forçado a viver nas ruínas de seu próprio passado escorregadio, um passado
que nunca foi totalmente seu. Dessa forma, a fronteira e a ruína trabalham
de forma complementar, lembrando aos leitores da fluidez e da tenuidade da
identidade. O posicionamento do romance dentro da fronteira fala à relativi-
dade cultural, nacional e histórica de toda a verdade. O narrador só é capaz
de falar sua verdade do outro lado da fronteira, um espaço que sustenta um
conjunto alternativo de valores.7

7  Em seus escritos sobre poder e conhecimento, Foucault (1986, p. 12) nos lembra que “Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso
que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles
que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.”

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O uso da língua em Harmada e Teatro

A fragmentação da linguagem em ambos os romances contribui para o


modelo de ruína em suas muitas dimensões nas narrativas em questão. Ambos
os protagonistas retransmitem suas histórias em pensamentos internos e se-
quências de memória, e há pouco diálogo com figuras secundárias. Essa ar-
madilha na experiência subjetiva se reflete na estrutura; Teatro e Harmada
são obras relativamente curtas e não contêm divisões de capítulos. Enquanto
Teatro está dividido em duas partes, cada uma das quais é essencialmente uma
narrativa ininterrupta, Harmada é uma história singular, sem divisões pon-
tuais. Essa organização contribui para sua estética disjunta. Dentro do tema
abrangente da ruína, há restos do eu, fragmentos de história pessoal, vestígios
de identidade. Em sua análise de Teatro, Paulo Thomaz (2010, p. 36) discute
como a desintegração da linguagem perturba nosso senso de tempo narrativo
e causalidade, levando à uma falta de plausibilidade: “Constituem resíduos,
ruínas de sentido, que intoxicam de tal maneira os vínculos de temporalidade
e causalidade da narrativa que, para o leitor, acaba por colocar em risco a pró-
pria plausibilidade dos textos”. Os leitores são forçados a compreender o sig-
nificado e a montar o quebra-cabeça maior. Esses resíduos aos quais Thomaz
alude caracterizam ambas as obras, com desintegração narrativa acentuada
por protagonistas que passam uma quantidade significativa de tempo em ma-
nicômios. Em Teatro, Daniel luta para se comunicar em sua língua mater-
na, uma língua que ele não domina totalmente. Como falante de herança, ele
acha que sua língua de origem é rudimentar e é incapaz de articular detalhes.
Ironicamente, porém, Daniel confia nessa língua fragmentada, pois ela lhe
permite contar sua história sem medo, protegendo-o da política do país das
maravilhas, onde ele auxilia a polícia na investigação dos crimes. Embora o
narrador enfatize seu fraco domínio da língua, ela funciona, no final das con-
tas, para salvar sua vida. Após fingir sua morte, Daniel decide se proteger
contando sua própria história do outro lado da fronteira em uma língua que
não é mais a sua:

Nasci e cresci do outro lado da fronteira que o meu pai atravessou na


calada da noite com a minha mãe grávida para viver no “centro do im-
pério”, ela dizia, e agora eu entendo. A mesma fronteira que tive que
atravessar de volta para falar essa língua que ele havia abandonado ao
decidir viver lá, embora comigo ainda tentasse usá-la, e que aos pou-
cos compreendeu ser a sua única esperança e o último vestígio da sua
identidade, a única herança que podia me deixar. (CARVALHO, 1998,
p. 10).

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A língua de herança de Daniel significa uma desconexão da hegemonia
– linguística, cultural e política. A língua de Daniel serve como um território
de pertencimento, mapeando seus caminhos espaciais e experimentais através
do espaço e do tempo. Sua linguagem lhe permite articular uma perspectiva
conflituosa sobre os desafios do estranhamento inerente à imigração transna-
cional. O narrador menciona em inúmeras ocasiões: pelo menos deste lado
da fronteira “eu posso falar” (CARVALHO, 1998, p. 22). A língua também
vem para marcar a fronteira entre sanidade e insanidade em Teatro, pois o
narrador observa que suas palavras serão percebidas como heresia, paranoia,
sarcasmo, insanidade, palavras que “cairiam no ridículo e no vazio”, fazendo
com que ele se tornasse um morto-vivo a quem seriam dadas doses pesadas
de sedativos (CARVALHO, 1998, p. 22). A língua é frequentemente inacessí-
vel em Teatro, estranha e incômoda. Chiarelli (2007, p. 77) observa que a lin-
guagem funciona como metáfora da impossibilidade de integração no texto:
“Além da ideia do artifício, da fabricação de uma multiplicidade de versões,
comparece também a discussão da linguagem como índice da não integração,
da marginalidade e do degredo, não só cultural, mas também psicológico”. De
fato, concluir o Teatro no estranho espaço de um manicômio lembra aos leito-
res que a insanidade é talvez o lugar do isolamento final, pois torna impossível
uma comunicação humana confiável.
O uso da língua está ligado à performance, com o papel do teatro co-
nectando tanto Harmada quanto Teatro às ruínas de formas que vão muito
além da ambiguidade espacial. De fato, há uma austeridade nos cenários e
nos diálogos de ambos os romances, com espaços que apresentam uma eco-
nomia de artefatos, como se fossem o que poderia permanecer depois de
uma tempestade, depois de removido todo o embelezamento – uma cama,
um apartamento vazio, um quarto estéril. Essa mesma economia de coisas é
espelhada na língua, muitas vezes expressa em breves declarações, fragmentos
que carecem de elaboração. O conceito de palco também é visto no nível do
enredo; em Teatro, todo o romance opera como um palco, e a segunda seção é
retratada como uma inversão da primeira, sendo a segunda versão de Ana. C.
como atriz de filmes pornográficos. O título da obra não decepciona, pois os
leitores entram na performance dessa dialética nas duas metades da obra. Se
considerarmos o texto como um teatro em si, os protagonistas são converti-
dos em atores, e toda linguagem se torna performativa. Em Harmada, o espa-
ço do palco também é fundamental, atuando em narração não oficial, na hora
de contar histórias e também no palco literal das apresentações teatrais. Além
do protagonista de Harmada, há várias figuras secundárias, como Cristina e

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Bruce, que são atores. Mesmo quando não age intencionalmente, o discurso
do narrador tem uma espontaneidade lúdica que enfatiza sua performativida-
de. Particularmente no manicômio, onde ele faz suas apresentações diárias, o
ator desempregado se torna um tipo de fantoche, um animador:

Pois é, eu fui um artista, um ator de teatro. E, de lá para cá, desde que


abandonei ou fui abandonado pela profissão, não sei, desde então já
não consigo mais fazer qualquer outra coisa […] tudo aquilo que eu
faço é como se estivesse representando, entende? Se pego uma pedra
aqui e a levo até lá me dá um negócio por dentro, como se fosse trilhões
de vezes mais pesado carregar esta mentira de carregar a pedra do que a
própria pedra, não sei se você me entende, mas o caso é grave, acredite.
[…] Eu e você aqui sabe? Tudo isto que estou a te falar, não acredite
em nada, é uma repelente mentira, eu não sou de confiança, não, não
acredite em mim. (NOLL, 1993, p. 24).

O que chama nossa atenção aqui é o fardo que o discurso se torna para
o narrador. Ele compara sua própria voz ao ato de carregar uma pedra pesa-
da, pois deve carregar uma mentira em constante estado de performance. Na
verdade, mesmo enquanto fala, ele diz ao leitor para desacreditá-lo. A dis-
sociação entre linguagem, identidade e pensamento voluntário marginaliza
ainda mais o narrador, pois ele fica preso em sua própria performance. Ele
não está sozinho, porém, além das histórias contadas pelo narrador, sua fi-
lha adotiva, Cristina, chega ao ponto de construir uma história falsa afirman-
do que sua mãe morreu cedo e que o narrador a criou. Dessa forma, tanto
em Teatro como em Harmada o leitor é encarregado de peneirar informa-
ções contraditórias a cada esquina, em uma constante busca por fragmentos
que possam compor uma história compreensível. Esses fragmentos assumem
muitas formas, refletindo sobre o conceito de verdade, linguagem, sanidade e
identidade. Assim, nossa leitura dos textos pode ser comparada à reconstru-
ção de uma ruína, peneirando os escombros de narrativas díspares e lugares
ambíguos. De fato, alinhados a essa performatividade, os romances tornam-se
teatros de sua própria autoria, estruturas austeras e ruinosas.

Conclusão

A ambiguidade espacial de Teatro e Harmada proporciona um senti-


mento de discórdia tanto para os protagonistas quanto para o leitor, que per-
manecem presos entre o senso de familiaridade e estrangeiridade, uma reflexão
da vida local cada vez mais empurrada para processos globais. A experiência

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da globalização é destacada pela ambivalência de ambos os romances, que
carecem de especificidade geográfica. Assim, eles mostram a tensão entre fa-
miliaridade e distanciamento, o que Giddens (1990) identifica como um atri-
buto central da modernidade. Por um lado, a falta de particularidade baseada
no lugar significa que os cenários de Harmada e Teatro são suficientemente
abertos para pertencer a qualquer um, mas, por essa mesma razão, estão im-
buídos de uma sensação de estranhamento: todos poderiam pertencer àqueles
cenários, mas ninguém o faz. Há uma familiaridade nesses estranhos mundos
narrativos, mas também uma desafeição, uma incapacidade de realmente se
conectar ou se relacionar com eles. No entanto, há mais coisas que conectam
essas duas obras do que a ambiguidade espacial. Tanto Harmada como Teatro
são um produto dos anos de 1990 e refletem sobre um momento histórico
particular na América Latina, no qual a região lutou contra o subdesenvol-
vimento enquanto se tornava cada vez mais imersa em processos globais. No
Brasil, o início dos anos noventa foi marcado por mudanças significativas na
política de combate aos problemas econômicos e agitação social, chamada pe-
los economistas de “década de reforma”. Novas circunstâncias internacionais
e mudanças na direção da formulação de políticas levaram a uma abertura
da economia brasileira a forças externas, incluindo bens importados e a uma
diminuição da interferência do Estado. Embora esses romances não comen-
tem diretamente os eventos históricos, eles utilizam a modelagem alegórica
para destacar o sentimento de agitação amadurecido na região durante esse
período. Ao fazer isso, eles ponderam o impacto dos processos globais sobre
as vidas locais.
Ao considerar o espaço, tanto a metrópole de Harmada quanto a terra
que faz fronteira com o país das maravilhas são lugares desafiados pelo sub-
desenvolvimento, em desmoronamento e declínio. Esse desmoronamento se
reflete em seus principais protagonistas, ambos lutando contra o isolamento e
a sanidade expressa sob a forma de uma confiabilidade narrativa decrescente.
No entanto, há um poder exercido na escrita e no lugar de performance. A
performance (no caso de Harmada) e a escrita (no caso de Teatro) tornam-se
mecanismos para a expressão do eu e de subjetividades marginalizadas. Em
vez de cair nas massas anônimas, essas duas vozes narrativas parecem se er-
guer e desafiar a própria placidez em que estão inseridas. Assim a escrita e a
atuação tornam-se mecanismos de afirmação de identidades diante da vida na
periferia. Apesar de suas diferenças, os romances de Noll e Carvalho compar-
tilham uma estrutura dicotômica e refletem profundamente sobre a ambiva-
lência da vida moderna. Seus protagonistas locais lutam para falar, superar a

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pobreza e a decadência, e desafiar a alienação de suas histórias pessoais com-
plexas. É dentro de sua armadilha no ciclo da ambivalência, porém, que os
romances lançam luz sobre como as vidas locais são narradas, negociadas e
mediadas em confronto com o global.

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“O milagre americano do esquecimento”:
Krausz e Roth em Nova York

Roxanne Covelo1

As obras do autor brasileiro Luis S. Krausz, que incluem Desterro: me-


mórias em ruínas (2011), Deserto (2013), Bazar Paraná (2015) e O Livro da
imitação e do esquecimento (2017), compartilham o tema do utopismo, sobre-
tudo no contexto da identidade cultural judaica e da imigração ou do exílio
diaspóricos. Em Desterro, o espaço utópico é representado pela ideia de uma
“Europa perdida” e “uma Alemanha sonhada de florestas negras e relógios de
cuco”.2 A Europa perdida dos imigrantes brasileiros judeus assombra também
os romances Bazar Paraná e Deserto. O segundo, que decorre em parte em
Israel nos anos 1970, se debruça também sobre o sionismo e os kibutzim como
formas adicionais de discurso utópico. Mais recentemente, o romance Outro
lugar (2017) anuncia, já por seu título, esse foco no utopismo; porém, não se
trata aqui dos topoi mais caros à visão de mundo de Krausz. Em Outro lugar,
a Alemanha pré-Guerra e o antigo Império Austro-húngaro, tão presentes nas
suas obras anteriores, dão lugar a uma utopia distinta: a ultramoderna Nova
York, “cidade das cidades, capital das capitais” (KRAUSZ, 2017, p. 95). Nova
York tem uma forte presença judaica: nos anos 1920, estima-se que quase um
terço da população de Nova York era de origem judaica, e a cidade conti-
nua sendo a maior aglomeração de judeus fora de Israel.3 O protagonista de
Outro lugar visita a cidade em busca, supostamente, de suas origens, pois pre-
tende estudar na renomada Jewish Theological Seminary of America. Mas o
que acaba lhe encantando nessa cidade voltada para o futuro é justamente o

1  Doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2019) e professora substitu-
ta de língua e literatura inglesas na mesma instituição. E-mail: [email protected].
2  Ver a resenha de Albert Von Brunn (2013). O narrador de O Desterro conta sua busca pela
terra natal de seus avós, cujo exílio é seu legado. “Por décadas”, ele explica, “eu percorri os qua-
drantes do que era, então, chamado de ‘Primeiro Mundo’, em busca do lugar com o qual os meus
avós sonhavam – aquele lugar mais elevado que os outros lugares, de onde fomos expulsos, e que
haveria de nos ser restituído” (KRAUSZ, 2011, p. 27).
3  Na mesma época (1920), quase 13% dos judeus que imigravam se dirigiam ao Brasil; porém,
apenas 0,01% da população brasileira atual se identifica como judaica (LESSER, 2001, p. 66–70).

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contrário: a emancipação dos nova-iorquinos de suas origens, ou “o milagre
americano do esquecimento”, segundo a expressão de Krausz (2017, p. 254).
Nesse sentido, o escritor se assemelha ao autor americano Philip Roth,
cujas obras também examinam o processo de integração cultural dos imi-
grantes judeus em Nova York e arredores, por exemplo, na cidade vizinha de
Newark, onde o autor nasceu em 1933. Na mesma linha, a obra mais impor-
tante de Roth – o romance Pastoral americana, ganhador do prêmio Pulitzer
de 1997 – compartilha o interesse de Krausz por espaços utópicos. Como su-
gerem os títulos do romance e das três secções em que está dividido (“Paraíso
Relembrado”, “A Queda” e “Paraíso Perdido”), Pastoral americana veicula
uma crítica da fantasia dos Estados Unidos como espaço paradisíaco, e, mais
especificamente, da sociedade americana como utopia pós-racial. Tal como
Krausz, Roth interroga a possibilidade de o imigrante desfazer-se totalmente
de suas raízes, bem como os motivos que levam um povo à imigração. Para
Krausz, porém, muito mais do que para Roth, o deslocamento e a desterri-
torialização são intimamente ligados à identidade judaica, que ele descreve
como sendo assombrada “pelo anjo medonho da Wanderung, da errância”
(KRAUSZ, 2017, p. 354). Segundo o narrador de Outro lugar, o exílio – “o
fantasma de uma errância sem fim” – seria o legado do povo judeu (KRAUSZ,
2017, p. 130). Como em Deserto, também em Outro lugar é abordada a ideia
de que a criação de Israel e, mais tarde, a criação dos kibutzim, ou comunas fa-
zendeiras, representam mais uma manifestação de seu utopismo hereditário.4
Fazem parte dos instintos mais profundos de um povo migratório, instintos
que há séculos “conduziam os judeus de um lugar ao outro, ao Egito e à Terra
Prometida, à Babilônia e à Polônia, a Roma e ao Norte da África, sempre lhes
anunciando o fim iminente das aflições” (KRAUSZ, 2017, p. 82). Em outras
palavras, na obra de Krausz, herança e errância formam um par inseparável,
e a imigração dos judeus até o “Novo Mundo”, seja para o Brasil ou para os
Estados Unidos, seria apenas o exemplo mais recente dessa busca milenar.
Porém, como salienta Georg Wink (2015, p. 59), nas obras de Krausz
“[e]ssa busca é condenada ao fracasso, porque, como o autor mostra bem

4  Em Outro lugar, Israel é descrita como “lar definitivo e excelente [para] um povo maltra-
tado”, pelo menos aos olhos dos seus primeiros fundadores (KRAUSZ, 2017, p. 83). O autor
discorre sobre a profunda convicção dos judeus “de que ali seria possível, finalmente, construir o
país com o qual tinham sonhado, por séculos, seus antepassados, quando falavam da Jerusalém
celeste que os aguardava ao fim de cada prece” (KRAUSZ, 2017, p. 87). Também é sugerido que
os kibutzim estabelecidos no deserto israelense são a continuação desse mesmo projeto utópico,
porque “se sonhava em criar ali um exemplo, uma nova sociedade, uma sociedade perfeita, que
pudesse servir de modelo à humanidade” (KRAUSZ, 2017, p. 257).

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através da sua ficção, o passado é sempre inatingível, a memória, sempre ape-
nas uma construção”. Isso se refere sobretudo às utopias nostálgicas do exi-
lado, voltadas sempre em direção a um passado perdido. Mesmo podendo
regressar um dia à sua terra natal, essa haverá sempre de se apresentar altera-
da, diferente do que era na ocasião da partida. Assim, como explica Edward
Said (2000, p. 173) em Reflexões sobre o exílio, a condição do exilado – do
“verdadeiro exilado”, como diz – é “a condição de perda terminal”, ou seja,
irrecuperável.5 À diferença do imigrante ou do émigré, o exilado vive a expe-
riência de ter suas raízes – seu vínculo ao passado e à terra natal – involunta-
riamente “cortadas”, e não renunciadas por escolha própria em busca de uma
vida melhor (SAID, 2000, p. 177).6 Como veremos mais adiante, essas duas
questões, das raízes e da escolha, são fundamentais ao tema da imigração na
obra de Krausz, bem como à diferença entre o otimismo do imigrante e o sau-
dosismo do exilado. Os primeiros romances do autor, como Desterro e Bazar
Paraná, exploram sobretudo a experiência de perda exílica. No entanto, como
comentado anteriormente, o livro Outro lugar assinala uma mudança de foco
em direção à forma contrária (porém não menos vã) de pensamento utopis-
ta, em que o discurso nostálgico dá lugar ao futurismo, e na qual Nova York
suplanta a Alemanha do entreguerras como espaço idealizado. O narrador se
dirige a Nova York “como a uma terra prometida”, representante por excelên-
cia do progresso, do desenvolvimento, da tecnologia – da modernidade, em
suma (KRAUSZ, 2017, p. 246). Embora viaje à cidade para estudar a história
judaica, e embora enxergue inicialmente essa viagem como a continuação de
uma busca encetada por seus antepassados,7 o verdadeiro atrativo de Nova
York é seu estatuto de capital da modernidade. A modernidade é definida pelo
narrador como “aquele mundo cujo centro era Manhattan” (KRAUSZ, 2017,
p. 36). Manhattan representa para o jovem estudante “o fulcro de tudo o que
era desejável” e “uma terra de contentamento, paz reinando dentro das suas
fronteiras, saúde e felicidade em seus lares” (KRAUSZ, 2017, p. 27, p. 186).
A maior parte dessa fantasia de modernidade procede, como já foi
mencionado, da tecnologia e da ideia de Nova York como ápice do progresso

5  No original: “true exile is a condition of terminal loss” (tradução da autora). Com exceção
das citações do texto Pastoral americana, traduzido por Rubens Figueiredo, todas as traduções
são da autora.
6  No original: “Exiles are cut off from their roots.”
7  O narrador viaja a Nova York em companhia de um amigo (também filho de imigrantes
judeus) e observa que “ele me parecia voltar às suas próprias origens […] e a um destino que,
tendo sido abandonado pelos seus pais, recaia sobre ele”, um comentário que se aplica igualmen-
te bem ao narrador quanto se aplica a seu amigo (KRAUSZ, 2017, p. 96).

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tecnológico. O narrador admite sofrer de uma condição que ele chama de
“síndrome do futuro”, bem como sua família e, na verdade, a maioria dos bra-
sileiros da época (KRAUSZ, 2017, p. 31). Em 1985, logo após a ditadura mili-
tar, os novos produtos que chegam dos Estados Unidos (e principalmente os
carros americanos) são vistos como “embaixador[es] dos novos tempos” e da
“marcha do progresso” que se espera com o fim da ditadura (KRAUSZ, 2017,
p. 32). No novo aeroporto Galeão, enquanto o narrador se prepara para sua
viagem, os aparelhos recém-importados lhe parecem o presságio das mara-
vilhas que o esperam em Nova York. De forma mais geral, pode-se dizer que
representam o futuro tecnológico esperado para o Brasil. Até os detalhes me-
nores, como “os painéis automáticos, recém-inventados nos Estados Unidos,
[eram] emblemas do mundo bem melhor que nos aguardava” (KRAUSZ,
2017, p. 30). Seus colegas e familiares compartilham seu otimismo raciona-
lista, baseado num entendimento linear e teleológico da história, e ele conta
como eles

vivia[m], então, ainda numa ilusão, herdada do século XIX, segundo a


qual se acreditava que se estavam por estabelecer as formas e os mode-
los definitivos para todas as coisas, de que se estava para construir os
edifícios, as avenidas e as máquinas destinadas a durar para sempre,
e que, portanto, uma era paradisíaca, de ócio e de paz, estava a pon-
to de ser alcançada graças ao progresso, não se dando conta de que
um Golem pode devorar seus criadores em vez de servi-los. (KRAUSZ,
2017, p. 30-31).

Como salienta o narrador, eles viviam “ainda” nessa ilusão, prestes a se


desfazer. Isso porque o país e o resto do mundo entrariam em breve numa era
dominada (e não mais servida) pela tecnologia: “a escravidão do progresso”,
como diz o narrador (KRAUSZ, 2017, p. 30). Essa volta-face, representada
pelo Golem que se vira contra seus criadores, é a era atual do consumismo
desenfreado8 e do que foi chamado por Jacques Ellul (1954, p. 97) de “trai-
ção pela tecnologia”, ou da tecnologia como finalidade em si. A figura judaica

8  Em Outro lugar, a utopia representada por Nova York é também a utopia mais sombria do
consumismo, “o paraíso sem fim das tentações terrenas que se ofereciam […], que me pareciam
sustentados por um vigor excessivo, por um apetite excessivo, por desejos excessivos, por um
excesso de excessos” (KRAUSZ, 2017, p. 138). Seu representante por excelência é a Coca-Cola,
cujas propagandas cobrem os edifícios da cidade. “[C]omo o vermelho do seu emblema”, explica
o narrador, “a Coca-Cola anunciava o início de uma nova era, uma era na qual os anseios e os
desejos seriam rapidamente satisfeitos e enunciava […] o fim da tirania da paciência e da par-
cimônia […] da temperança e da moderação, e o início da grande era da liberdade” (KRAUSZ,
2017, p. 98).

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do Golem, um autômato feito de barro e animado por magia para servir seu
criador, se tornou hoje um símbolo comum dos perigos da tecnologia, à se-
melhança das figuras do turco mecânico9 ou do monstro de Frankenstein. Seu
uso por Krausz se revela advertência contra os excessos da tecnologia e do
consumismo, muitas vezes baseados num modelo norte-americano de pro-
gresso que se enraizou no Brasil depois da II Guerra e que se fortaleceu muito
no período da ditadura, e que já foi criticado por Krausz em Bazar Paraná,
seu romance de 2015. Como nesse último romance, também em Outro lugar
evoca-se a desconfiança de Krausz perante o ufanismo (tanto o americano
quanto o brasileiro) e a busca do progresso a qualquer custo. Como explica
em seu romance de 2017, o progresso – a necessidade contínua do progres-
so – simplesmente não termina, “de tal forma que a cidade moderna, conce-
bida como paraíso artificial, acabou se transformando no inferno dos casti-
gos de Sísifo, […] [e] Nova York é o modelo desse novo conceito de cidade”
(KRAUSZ, 2017, p. 48). Ou seja, longe de constituírem um rumo à utopia, o
crescimento e o aprimoramento tecnológicos revelam-se uma espécie de tare-
fa interminável e, de certo modo, absurda, pois é sem finalidade clara além de
sua própria execução – como a do personagem mitológico.
Tal visão crítica do desenvolvimento, e sobretudo da história vista como
simples “rumo ao progresso infinito” (KRAUSZ, 2017, p. 36), é recorrente na
obra do autor. Em sua leitura de Bazar Paraná, romance de 2015 mencionado
acima, Maria Zilda Ferreira Cury assinala a “negatividade do progresso” como
um dos princípios estruturantes da obra. Segundo ela, o livro propõe uma
“crítica [à] visão linear e teleológica da passagem do tempo” (CURY, 2019,
p. 123), à semelhança das críticas da modernidade já propostas por Walter
Benjamin.10 O romance Outro lugar, embora se passe longe dos pequenos as-
sentamentos alemães do sul do Brasil, reitera o mesmo tema central do ceti-
cismo: não apenas quanto ao utopismo nostálgico do exilado, mas também
e sobretudo quanto ao utopismo futurista do imigrante, a “crença na cons-
trução do futuro” fundada em um entendimento otimista e linear da história
(KRAUSZ, 2017, p. 66).

9  A título de exemplo, o turco mecânico é usado por Walter Benjamin (2006, p. 389) no ensaio
“Sobre o conceito de história” para ilustrar o modelo do materialismo histórico e da falsa crença
num rumo linear do progresso.
10  “A história como ruína e a crítica a uma visão linear e teleológica da passagem do tempo e
da negatividade do progresso, emblema da modernidade, presentes na reflexão benjaminiana,
são retomadas por Krausz, sempre tingidas de melancolia” (CURY, 2019, p. 123).

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Eis um dos principais paralelos entre a obra de Luis Krausz e a de Philip
Roth. À semelhança do autor de Outro lugar, Roth se mostra profundamente
cético quanto à visão progressista da história, apesar de essa ser a visão do-
minante entre seus personagens imigrantes. Em Pastoral americana, a família
judia do protagonista tem fé absoluta no mito do sonho americano e da inte-
gração cultural como processo linear de enriquecimento e homogeneização.
Donos de uma enorme e próspera fábrica de luvas (o avô curtidor chegou ao
país sem poder falar inglês, mas aos poucos conseguiu economizar e abrir seu
próprio negócio com a ajuda do filho americanizado), os membros da família,
cheios de otimismo, se enxergam como

voando no foguete do imigrante, a inexorável trajetória do imigrante,


sempre para cima, do bisavô escravo para o avô livre, para o autocon-
fiante, realizado e independente pai, para o mais bem-sucedido de to-
dos eles, o jovem da quarta geração para quem a América deveria ser o
paraíso transformado em realidade. (ROTH, 2018, p. 147).11

A progênie dessa quarta geração, a jovem bisneta do imigrante funda-


dor, é vista como a mais americanizada de todos eles. É também o primeiro
membro da família a nascer rica: a culminação da “inexorável trajetória […]
para cima” descrita no trecho anterior (ROTH, 2018, p. 147). Outro elemento
importante é o fato de ela ser também a primeira gentia da família, pois seu
pai, o protagonista do livro, fez questão de se casar com uma shiksa, ou mu-
lher não judia. O protagonista considera seu distanciamento da religião (e,
na verdade, de qualquer marcador étnico) como imprescindível, e sua esposa
irlandesa, também filha de imigrantes que subiram na vida, é da mesma opi-
nião. “Ela é pós-católica, ele é pós-judeu”, pensam ao se casar, e juntos criarão
seus “pequenos filhos pós-doçuras” (ROTH, 2018, p. 90).12
A pastoral americana do título é uma utopia pós-religiosa e pós-ra-
cial em que a única identidade “desses novos americanos” é sua identidade
econômica;13 e em que as segundas, terceiras e quartas gerações se distanciam

11  No original: “As a family they still flew the flight of the immigrant rocket, the upward, unbro-
ken immigrant trajectory from slave-driven great-grandfather to self-driven grandfather to self-con-
fident, accomplished, independent father to the highest high flier of them all, the fourth-generation
child for whom America was to be heaven itself.”
12  No original: “She’s post-Catholic, he’s post-Jewish, together they’re going to go out there to Old
Rimrock to raise little post-toasties.”
13  Para o protagonista de Roth, a maneira mais rápida e mais autêntica de ser americano é
simplesmente ser rico (uma lógica que guia também os protagonistas de outros livros clássicos
americanos, e em especial O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald). Segundo o crítico Derek Ro-

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progressivamente das limitações vigentes no Velho Mundo (ROTH, 2018, p.
352). O aprimoramento desses filhos e netos de imigrantes se baseia

no fato de cada geração se tornar mais esperta que a anterior – mais


esperta por conhecer as inadequações e limitações das gerações pre-
cedentes –, no ímpeto de cada geração para romper um pouco mais
com o paroquialismo, no desejo de ir até o limite na América apoiados
nos nossos direitos, formando a nós mesmos como pessoas ideais que
se desvencilham dos hábitos judeus tradicionais, que se libertam das
inseguranças pré-América e das antigas e limitadoras obsessões […].
(ROTH, 2018, p. 103).14

Tal visão da integração cultural como processo de esquecimento e su-


peração, e dos antigos hábitos e crenças como mero “paroquialismo”, é re-
corrente na obra de Roth. Segundo Catherine Morley (2008, p. 194), o típico
protagonista rothiano é aquele que nega ou se livra de suas origens étnicas e
religiosas, negando assim “a multiplicidade inerente ao imigrante americano”
em favor do ideal do melting pot perfeitamente homogêneo.
Tais personagens, ansiosos para livrarem-se de suas raízes, também es-
tão presentes na obra de Krausz. Em Outro lugar, figuram duas primas húnga-
ras que, ao chegar a Nova York, constatam que as identidades, as rivalidades e
os preconceitos que estruturavam suas vidas na Europa já não têm mais valor;
não são sequer reconhecidos por seus vizinhos americanos. Uma cidade re-
pleta de tantos novos imigrantes, provenientes de tantas regiões do mundo,
simplesmente não se importa com os pormenores culturais que pareciam tão
importantes na Hungria. Anos depois de as primas imigrarem, quando o nar-
rador as visita em Nova York, vê que elas cortaram por completo o vínculo
com o Velho Mundo e lograram reinventar-se:

cortaram […] os laços por meio dos quais se ligavam aos ancestrais,
como quem se livra de uma carapaça inútil, como quem se livra de um
fardo inútil. Amparadas por sua condição de estrangeiras nas Américas

yal, o protagonista de Pastoral americana se assemelha a Jay Gatsby e outros heróis americanos,
tanto ficcionais como históricos, por sua persistência em negar suas origens étnicas e reinven-
tar-se na base do êxito econômico (ROYAL, 2005, p. 190).
14  No original: “[…] out of each generation’s getting smarter – smarter for knowing the inade-
quacies and limitations of the generations before – out of each new generation’s breaking away from
the parochialism a little further, out of the desire to go to the limit in America with your rights,
forming yourself as an ideal person who gets rid of the traditional Jewish habits and attitudes,
who frees himself of the pre-America insecurities and the old, constraining obsessions so as to live
unapologetically as an equal among equals.”

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inventaram para si mesmas novas origens, novos nomes, novas histó-
rias. Uma batizou-se em Portugal, nos braços da igreja católica. Não
sendo mais judia, tampouco se tornara cristã […]. A outra tornou-se,
aos olhos americanos, a esposa húngara de um cientista húngaro reno-
mado. Pronto. Basta. Schluss. Ende.
Húngaras aos olhos dos que não eram húngaros […] instalavam, na
atmosfera à sua volta, o perfume do esquecimento que paira nas ilhas
dos comedores de lótus, aquele perfume que penetra pelas narinas e
apaga o cheiro insuportável da memória […]. O perfume do esqueci-
mento instila o milagre americano do esquecimento. (KRAUSZ, 2017,
p. 253–254).

À semelhança de Roth, para Krausz “o milagre americano do esqueci-


mento” é o fato de as origens não terem mais importância numa sociedade
voltada inteiramente para o futuro. Os dois autores abordam tal visão utopis-
ta com certa ironia, mas ela continua sendo a perspectiva dominante entre
seus personagens. No entanto, como explica Pierre Ouellet, em seu estudo da
construção de identidade entre imigrantes, o passado não pode e não deve ser
apagado por inteiro. A “nova” identidade do recém-chegado “não é por isso
menos ancorada numa história, na continuidade de uma vida, pela qual o in-
divíduo é mergulhado no passado, até o passado mais distante, até a memória
de seus antepassados ​​e antecedentes, que revela uma genealogia que pode ser
interpretada como a gênese do seu eu” (OUELLET, 2002, p. 11).15 Segundo a
teoria de Ouellet, a tensão passado/futuro se deve habitualmente a uma ten-
são grupo/indivíduo, ou seja, ao desejo de cada um de se distinguir como ser
próprio e único. Para o imigrante na sua “busca identitária” (quête identitaire),
a pergunta mais importante não é mais “de onde venho?” e nem “quem sou
eu?”, mas, unicamente: “quem posso vir a ser?” (OUELLET, 2002, p. 11-14).
Daí o foco do imigrante no porvir e sua característica vulnerabilidade ao “des-
lumbramento e [à] fascinação utopistas” (OUELLET, 2002, p. 16).16
Como já foi mencionado, em Pastoral americana, essa utopia, presente
na palavra pastoral do título, é primeira e imprescindivelmente pós-racial e,
portanto, pós-religiosa. Por essa razão, seu feriado por excelência não é Natal,
e muito menos Chanucá ou Yom Kippur, mas o feriado neutro e ultra-ame-
ricano de Thanksgiving ou Ação de Graças. Para o protagonista pós-judeu,
é o melhor dia do ano, e também o único em que podem se reunir todos os

15  No original: “n’en reste pas moins ancré dans une histoire, dans la continuité d’une vie, qui
plonge chacun dans son passé, même le plus lointain, dans le souvenir de ses ancêtres et de ses
antécédents, qui font apparaître une généalogie qu’on peut interpréter comme la genèse de soi.”
16  No original: “éblouissement et fascination utopistes […]”

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membros da sua família, inclusive os sogros católicos. Como o resto dos ame-
ricanos, no final de novembro eles se juntam

no terreno neutro, isento de cunho religioso, do Dia de Ação de Graças,


quando todo mundo come a mesma coisa, ninguém inventa de sair por
aí comendo coisas gozadas – nada de kugel, nada de peixe gefilte, nada
de ervas amargas, só um colossal peru assado, para duzentos e cinquen-
ta milhões de pessoas –, um peru colossal que alimenta todo mundo.
Uma moratória de comidas esquisitas, comportamentos esquisitos e
exclusividade religiosa, uma moratória de três mil anos de nostalgia
dos judeus, uma moratória de Cristo, da cruz e da crucificação para
os cristãos […]. É a pastoral americana por excelência, e dura vinte e
quatro horas. (ROTH, 2018, p. 455).17

Nessa pastoral, as comidas típicas de outras culturas e outros dias fes-


tivos, “comidas esquisitas”, são representadas como antiamericanas. Por isso,
o peru tradicional (que remete imediatamente ao enorme peru do quadro de
Norman Rockwell, outro tableau cujo caráter idealizado é desconstruído pela
habitual ironia do pintor em relação aos pretensos valores democráticos da
sociedade norte-americana) é invocado enquanto símbolo da prosperidade
e da homogeneidade americanas. De certa forma, torna-se apenas mais um
hábito cultural e (pseudo) religioso: ele pode eliminar os “hábitos judeus tra-
dicionais”, mas não elimina o tradicionalismo; apenas substitui velhos hábitos
e raízes por novas formas dos mesmos, pois o ser humano precisa de tais
raízes e raramente resiste a criá-las. Precisa saber-se conectado a alguma ori-
gem. Na obra O Enraizamento de 1949, Simone Weil (1990, p. 61) defende
que as raízes são “a necessidade […] mais importante da alma humana”, e que
todo ser humano tem “participação natural” em uma série de microcomu-
nidades: “Participação natural, isto é, provocada automaticamente por lugar,
nascimento, profissão, e o ambiente que o rodeia. Todo ser humano precisa
ter múltiplas raízes. Ele precisa interpretar quase todos os aspectos de sua vida
moral, intelectual e espiritual, pelo viés dos meios dos quais ele faz parte”.18

17  No original: “the neutral, dereligionized ground of Thanksgiving, when everybody gets to eat
the same thing, nobody sneaking off to eat funny stuff – no kugel, no gefilte fish, no funny herbs,
just one colossal turkey for two hundred and fifty million people – one colossal turkey feeds all.
A moratorium on funny foods and funny ways and religious exclusivity, a moratorium on the
three-thousand-year-old nostalgia of the Jews, a moratorium on Christ and the cross […]. It is the
American pastoral par excellence and it lasts twenty-four hours.”
18  No original: “Participation naturelle, c’est-à-dire amenée automatiquement par le lieu, la
naissance, la profession, l’entourage. Chaque être humain a besoin d’avoir de multiples racines. Il a
besoin de recevoir la presque totalité de sa vie morale, intellectuelle, spirituelle, par l’intermédiaire
des milieux dont il fait naturellement partie.”

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Por essa razão, as utopias sonhadas pelos protagonistas de Pastoral america-
na e Outro lugar raramente se realizam por completo. Em vez de sentirem-
-se no paraíso, veem-se presos numa espécie de limbo cultural, “a posição de
entre-lugar ocupada por todo imigrante/exilado” (CURY, 2019, p. 126). Sua
construção identitária no país de acolhida é uma negociação constante, e nem
sempre bem sucedida, entre a necessidade prática de se integrarem e a “neces-
sidade espiritual”, descrita acima por Simone Weil, de se sentirem conectados
às raízes.
Quando prevalece a segunda necessidade, o imigrante pode encontrar-
-se na posição de corpo estranho num grupo de chegada que se quer homo-
gêneo. Por exemplo, em Outro lugar, o narrador aprende que nem todos os
imigrantes são iguais às primas húngaras – pelo contrário, muitos se agarram
tenazmente às origens e reproduzem suas cidades e aldeias natais em plena
Manhattan. Longe de ser a cidade homogênea e ultramoderna que imaginou,
Nova York contém muitos bairros que mais parecem a Europa do século XIX
que a América atual. O narrador surpreende-se, por exemplo, com a tenaci-
dade da famosa comunidade hassídica de Nova York, que parece um mundo
à parte, congelado no tempo, transplantado

de alguma seita cujo centro, no passado, fora em alguma aldeia da


Europa oriental e que, na América, se reconstituíra com devoção re-
dobrada. […] Nada e ninguém os demoveria de sua crença, nem
o trânsito de Nova York, nem a grande migração, nem o sionismo.
Permaneceriam imunes à vibração da cidade, não dariam importância
à sua linguagem, um laço indissolúvel os mantendo atados à realidade
única do seu ensinamento, de sua doutrina, dos seus votos, da sua ro-
cha, da sua salvação. (KRAUSZ, 2017, p. 133).

Bairros como Williamsburg, Borough Park e Crown Heights são os en-


claves de uma comunidade judia que resiste até hoje ao discurso político do
melting pot e também às ideias preconcebidas do narrador de Outro lugar so-
bre a imigração. Enquanto as primas húngaras se apressam para “[cortar] os
laços por meio dos quais se ligavam aos ancestrais”, a começar pela fé judaica,
os judeus hassídicos conservam a todo custo o “laço indissolúvel os mantendo
atados à realidade única do seu ensinamento” (KRAUSZ, 2017, p. 253, p. 133).
Contrariam sua fantasia inicial dos Estados Unidos como terra do esqueci-
mento e de Nova York como centro da modernidade, reforçando os comentá-
rios de Simone Weil e Pierre Ouellet sobre a importância das raízes e o desejo
inerente ao ser humano de sentir-se conectado a uma comunidade – embora
no caso extremo dos judeus hassídicos esse desejo resulte na sua separação
total da comunidade de Nova York.

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Existe no livro de Krausz outro bairro não menos importante à questão
da separação ou, melhor dito, da segregação racial. Trata-se do Harlem, “um
território proibido aos brancos de todas as espécies” (KRAUSZ, 2017, p. 128).
Em plenos anos 1980, auge da época de maior criminalidade em Nova York,
“os pavores do Harlem” (KRAUSZ, 2017, p. 128) fazem dele outro mundo “à
parte”, porém, não por escolha de seus habitantes. À diferença dos judeus has-
sídicos, os negros de Nova York não decidiram excluir-se. Eis uma diferença
crucial entre a identidade judaica e outras identidades étnico-culturais, uma
diferença nem sempre reconhecida ou explorada nas discussões de Krausz e
Roth sobre a “emancipação” das raízes e a possibilidade de reinventar-se. Ser
judeu é, muitas vezes, uma forma invisível (e, portanto, escapável) da outri-
dade. Os personagens judeus de Outro lugar e Pastoral americana falam da
possibilidade de livrar-se de suas origens porque, para eles, isso realmente
constitui uma opção. Mas para os membros das chamadas “minorias visíveis”,
tal utopia pode ser de difícil alcance. Como explica a Allyson Hobbs (2017,
p. 273) em A Chosen Exile: a history of racial passing in America, o poder de
“escolher uma identidade racial” é disponível apenas para alguns, e os dife-
rentes grupos constituintes da população americana tiveram oportunidades
desiguais de exercê-lo.19 Em outras palavras, “o milagre americano do esque-
cimento”, para retomar a expressão de Krausz (2017, p. 254), aplica-se a certos,
porém não a todos os membros da comunidade.

Considerações finais

Essa importante questão da escolha separa também as experiências


vividas pelo imigrante das vivenciadas pelo exilado, e explica suas atitudes
tão diferentes perante o passado. A atitude do imigrante é mais otimista e
voltada para o futuro, enquanto a do exilado será sempre marcada por uma
certa nostalgia. Porém, as duas formas de utopismo são igualmente votadas ao
fracasso – pois, como já observou Jacques Derrida (2001, p. 360), as utopias
são lugares permanentemente longes de nós, e a palavra em si já remete “ao
sonho, […] à impossibilidade que inspira mais a rendição que a ação”.20 Em
seus romances seguintes, os dois autores voltam à questão dos sonhos im-
possíveis, “da sonhada pastoral americana” e do “grande sonho esfacelado do
cosmopolitismo” (ROTH, 2018, p. 104; KRAUSZ, 2017, p. 44). Roth, por sua

19  No original: “to choose a racial identity […].”


20  No original: “Dans certains contextes, l’« utopie », le mot en tout cas, se laisse trop facile-
ment associer au rêve, à la démobilisation, à un impossible qui pousse au renoncement plutôt qu’à
l’action.”

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vez, debruça-se justamente sobre a questão da experiência negra nos Estados
Unidos e como ela se difere daquela dos judeus. Em A marca humana, publi-
cada em 2000, ele explora a ideia de “visibilidade” identitária e a possibilidade,
para o indivíduo negro, de “jogar fora suas origens” (ROTH, 2001, p. 334).21
O protagonista do livro é um homem negro que nasce com a pele tão clara
que consegue passar-se por branco (judeu, no caso, para justificar seus cabelos
crespos), e que chega a tornar-se professor universitário numa época de fortes
divisões raciais. Nem sua esposa nem seus filhos descobrem o segredo de suas
origens, que ele se recusa a revelar mesmo quando é demitido da universidade
após uma falsa acusação de racismo.22 Depois de Pastoral americana e Casei
com um comunista (1998), que trata da era da caça às bruxas macarthista, A
marca humana vem completar a chamada Trilogia Americana de Roth, na
qual ele desvenda as diversas hipocrisias e as falsas utopias que estruturam a
vida política e social nos Estados Unidos.
No caso de Krausz, seu romance mais recente – Opulência, de 2020
– também retorna aos temas do utopismo e do legado judeu, dessa vez no
Brasil. Nos anos 1970, a realidade da ditadura contrasta com o sonho dos
personagens de Opulência de construir, em plena Serra da Mantiqueira, uma
comunidade ideal. São inspirados pela própria nostalgia (como a maioria dos
protagonistas de Krausz, são descendentes de imigrantes e exilados alemães),
mas também, e, sobretudo, pela lenda medieval de Schlaraffenland, uma terra
utópica análoga a Shangri-La, El Dorado ou Atlântida. O título irônico es-
colhido por Krausz se refere à falsa opulência que guia os protagonistas em
seu malfadado projeto de construírem “ilhas de cultura numa terra selvagem”,
como diz o autor em Bazar Paraná (KRAUSZ, 2015, p. 94). Tal como em seus
romances anteriores, evoca-se a desconfiança de Krausz – parecida à descon-
fiança de Roth – quanto às formas mais ingênuas do pensamento utópico, seja
a insistência em recriar mundos perdidos, seja a fé cega no progresso histórico
linear. Os dois autores também questionam, pelo viés da busca identitária de
seus personagens, os limites da verdadeira integração cultural, que se revela
uma constante negociação entre a diferença e a homogeneidade, o passado e
o futuro, e a memória e o esquecimento.

21  No original: “the democratic invitation to throw your origins overboard if to do so contributes
to the pursuit of happiness.”
22  A narrativa no mínimo irônica de A marca humana é baseada no caso real de Melvin
Tumin, um professor de Princeton que foi amigo de Philip Roth. Muitos leitores também identi-
ficaram semelhanças à história de Anatole Broyard, um crítico literário do New York Times cuja
identidade negra só veio a lume depois de sua morte.

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Humain. Paris: Gallimard (Folio essais), 1990.

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WINK, Georg. Espaços Ficcionalizados em Desterro, de Luis S. Krausz: Um Ensaio em
Geografia Literária. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília,
n. 45, p. 49–64, jan./jun. 2015.

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Relatos de impermanência

Maria Zilda Ferreira Cury1

A exposição Histórias Afro-Atlânticas, que teve lugar no MASP em


2018, exibiu uma “seleção de 450 trabalhos de 214 artistas, do século XVI ao
XXI, em torno dos ‘fluxos e refluxos’ entre a África, as Américas, o Caribe, e
também a Europa” (MASP, 2018), como nos informa o texto projetado na pa-
rede de entrada do evento. A ideia de deslocamentos diversos, presente desde
o título da exposição, é estruturante do desejo de diálogos, sempre em contra-
dição, entre as culturas dos territórios afro-atlânticos, e da relevância do con-
ceito de trânsito como nuclear para a compreensão da arte contemporânea.
A movência e os trânsitos são referidos por Walter Moser (2004) como
marca distintiva das expressões culturais da atualidade. O teórico chama a
atenção para os milhões de viajantes, de refugiados de guerras, de pessoas
pressionadas pela fome ou em busca de trabalho que transformaram nosso
mundo em espaço de circulações intensas e multiformes. Inclui nesse contin-
gente os novos nômades urbanos que se deslocam pelas metrópoles do plane-
ta, o mais das vezes excluídos ou colocados à margem. Muitas manifestações
artísticas contemporâneas – agrupadas por Moser sob a denominação de ar-
temoção – também se ancoram nesse imaginário de mobilidade acelerada,
servindo-se de processos de reciclagem e de reutilização. Mobilidade e reci-
clagem seriam, pois, para o teórico, importantes operadores de leitura para se
pensar as práticas culturais do mundo atual.
Da exposição do MASP, destaco o trabalho “Roupa”, do artista plástico
Jayme Figura.
Uma figura suspensa, um andarilho cujo rosto não se distingue e cujas
roupas são constituídas por sucata: utensílios enferrujados, tecidos esfarra-
pados, tiras deterioradas de borracha e couro. Nenhuma parte do corpo da
escultura se deixa propriamente divisar, mas os suspensos sapatos rotos a
ela imprimem a simulação de movimento de um andarilho, dando-se a ver
ao espectador por meio da “roupa” degradada que a envolve e lhe dá forma.

1  Professora associada de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG). Professora titular de Teoria da Literatura (UFMG). Pesquisadora do CNPq. E-mail:
[email protected].

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Personagem anônimo, um rosto cujas feições não se distinguem, como as de
tantas outras pessoas em situação de rua, de quem, muitas vezes, o olhar dos
transeuntes se afasta com aversão ou constrangimento. Talvez uma autor-
representação, já que o artista aparece há anos em público “vestindo” suas
criações formadas com sucata, sempre mascarado, às vezes coberto de placas
de metal ou objetos variados, perambulando pelas ruas de Salvador. “Eu tô
dentro da obra, é como se eu tivesse encapado, vestindo ela, totalmente, até os
olhos […] usando o meu corpo como suporte, carregando todo o meu traba-
lho de anos de trajetória” (FREIRE; HERNANDEZ, 2014).

Figura 1 – “Roupa”

Fonte: Arquivo pessoal (2018).

A ideia de vestir a obra, de fazê-la a partir da exposição do próprio


corpo, é também paradigmática da arte contemporânea, já presente em traba-
lhos como os parangolés de Hélio Oiticica. Vejam-se também para a arte que

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trabalha com rejeitos e sucatas as pungentes fotografias de Gabriela Pereira,
que retratam objetos ressignificados por pessoas em situação de rua; a obra de
Vik Muniz, que se serve do lixo, do rejeito, para compor suas produções; ou
ainda as extraordinárias criações de Arthur Bispo do Rosário. Uma arte em
movimento, em trânsito, que incorpora à sua própria fatura a impermanência
e a precariedade, e que provoca uma atitude ética responsiva do espectador.
Em “Roupa”, Jayme Figura expõe características importantes assumi-
das pela arte em tempos de globalização acelerada. Além do deslocamento,
a representação áspera do marginalizado, esta última figurada no ambulante
em andrajos, possivelmente um sem abrigo, cujos anonimato e degradação
provocam e desconfortam o espectador. Tal provocação, contraditoriamente,
retira o outro do anonimato, torna-o visível e promove uma reflexão axiológi-
ca sobre a condição do marginalizado.
Tomo essa figuração do trânsito urbano como desencadeadora da refle-
xão sobre um romance da literatura brasileira contemporânea, O mendigo que
sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira
(2012), como uma sorte de chave de leitura que agregaria o feixe de relações
conceituais para a abordagem da narrativa.
O referido imaginário da mobilidade igualmente dá forma a produções
literárias da contemporaneidade, em cenários quase que exclusivamente urba-
nos. Personagens como o imigrante, o afastado do espaço nacional de origem,
os que são migrantes dentro do próprio país, mas também o marginalizado, o
subalterno, os novos nômades que cruzam as ruas das grandes cidades estão
presentes em textos contemporâneos que ficcionalizam o desenraizamento e
o sofrimento por ele causado. As escrituras contemporâneas, além disso, mui-
tas vezes promovem um movimento para o interior, uma intramoção, isto é,
narrativas que tematizam deslocamentos no espaço simultaneamente a uma
busca subjetiva, escritos que põem em circulação memórias individuais e co-
letivas, “espaços de linguagem”, para onde convergem a infância, a busca das
origens e do espaço identitário, o mundo dos afetos. Intramoção é feliz expres-
são de Nubia Hanciau (2009), inclusive colocada como um complemento (ou
antes, um suplemento) às mobilidades apontadas por Walter Moser (2004)2,
no panorama cultural contemporâneo, no texto já anteriormente referido.
Na ficção brasileira contemporânea, também foi assinalada por
Schollhammer (2009, p. 15) a simultânea presença das realidades interior e
exterior:

2  Walter Moser (2004) aponta três tipos de movência que marcam as expressões culturais da
atualidade: locomoção, midiamoção e artemoção.

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A literatura que hoje trata dos problemas sociais não exclui a dimensão
pessoal e íntima, privilegiando apenas a realidade exterior; o escritor
que opta por ressaltar a experiência subjetiva, não ignora a turbulência
do contexto social e histórico.

Tais colocações são, aqui, pertinentes para a leitura de O mendigo que


sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, que se apresenta como, entre
outras feições, uma narrativa que alia teor subjetivo e crítica social.
O romance exibe um narrador em primeira pessoa, um mendigo que
se desloca pelas ruas da cidade, com um discurso em fluxo ininterrupto – “a
exemplo desta manhã de narrativa epopeica – cujas palavras surgem a flux
igual filete de areia” (FERREIRA, 2012, p. 372) –, que dialoga com um interlo-
cutor. Este vai sendo constituído pela atitude responsiva do locutor/narrador,
uma vez que não tem uma fala claramente marcada, não se pronunciando de
forma explícita no discurso.

Bem observado: sandália de borracha no direito; tênis no esquerdo.


Achei-os num cesto de lixo. Gosto de ver meus pés assim, desequili-
brados, pisando as calçadas desta metrópole apressurada. […] Calçar
sapatos um diferente do outro é estripulia da estética – não é desatino,
não senhor.” (FERREIRA, 2012, p. 2, grifo meu).

Observe-se como, em outro momento do texto, o narrador chama a


atenção do interlocutor para que veja, cheire ou escute algo: “Veja: indigente
recostada na pilastra daquele outro viaduto. Sim: cabelos imundos, desgre-
nhados; maltrapilha” (FERREIRA, 2012, p. 9). E ainda: “Os três maltrapilhos
alcoólatras agora acertaram ritmo e letra; ouviu? Sim: Tire o teu sorriso do
caminho que eu quero passar com a minha dor.” (FERREIRA, 2021, p. 40).
Com esse recurso discursivo – efetivamente, uma “ação discursiva”
– o narrador logra um efeito dialógico não menos incisivo. Como quer M.
Bakthin quando discorre sobre o processo de interação verbal ou discursiva:

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não


pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de
fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e res-
sonâncias dialógicas. Entretanto, o enunciado não está ligado apenas
aos elos precedentes, mas também aos subsequentes da comunicação
discursiva. Quando o enunciado é criado por um falante, tais elos ainda
não existem. Desde o início, porém, o enunciado se constrói levando
em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é
criado. O papel dos outros para quem se constrói o enunciado, é excep-
cionalmente grande […]. (BAKHTIN, 2003, p. 300-1).

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Ao invocar constantemente esse interlocutor anônimo, o narrador mis-
tura-o à figura do próprio leitor, também este instado a levar em consideração
as realidades apontadas. É ainda Bakhtin que assinala que

a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acom-


panhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa ati-
vidade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e,
de uma forma ou de outra, forçosamente a produz […]. (BAKHTIN.
2003, p. 291).

O ouvinte/leitor tem, assim, com relação ao discurso que recebe, uma


atitude responsiva ativa, completando-o, dele discordando, com ele ficando
de acordo, modificando-o. Durante toda a audição/leitura, diz Bakthin, des-
de, literalmente, a primeira palavra do falante, o ouvinte/leitor, que recebe
e compreende a significação de um discurso, adota perante ele uma atitude
responsiva ativa, valorativa, portanto.
Assim se dá nas operações discursivas propostas pelo texto de Evandro
Ferreira, mesmo que o leitor se encontre diante da fala pretensamente única
de um narrador. Tal fala termina, então, por constituir o interlocutor, nesta
figura incluído o próprio leitor, como já se disse. Na cadeia dialógica levada
a efeito na narrativa, o interlocutor assume até mesmo a instância do próprio
escritor: “Reconheço que meu interlocutor é jeitoso no ofício de puxar o fio
da meada. A-hã: está na essência de quem lida todo dia com a palavra escri-
ta” (FERREIRA, 2012, p. 51). Também o narrador se apresenta como poeta:
“Agora sou poeta moeda inútil: sem frente e verso” (FERREIRA, 2012, p. 24);
“Deveria ser contrário a todas as leis da natureza abandonar crianças e poetas:
somos frágeis demais” (FERREIRA, 2012, p. 13, grifo meu).
Ao interlocutor, o narrador revela perambular pelas ruas há dez anos
(“Vita hominis peregrinatio – A vida é peregrinação)” (FERREIRA, 2012, p.
170), à espera da mulher amada que o abandonou, abruptamente. “Impossível
imaginar naqueles momentos que dia qualquer ela deixaria bilhete elíptico so-
bre criado-mudo: ACABOU-SE; ADEUS. Sei que vivo há dez anos dominado
pela expectativa ansiosa de ouvir voz dela sussurrando-me: Oi, meu amado,
voltei” (FERREIRA, 2012, p. 63, grifos do autor).
Um mendigo, romanticamente melancólico, erudito, amante da obra
de Erasmo de Roterdam, cujo livro de adágios – uma antologia de citações e
provérbios latinos e gregos – zelosamente guarda junto ao corpo e do qual cita
de cor, muitas vezes em latim, inúmeras passagens, misturadas a episódios da
vida do teólogo holandês. “Esta cidade gigantesca é meu eremitério. Os adá-
gios são meus salmos. Canto-os todos os dias. Livro de cabeceira – se assim

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posso dizer, desprovido de cama” (FERREIRA, 2012, p. 197-198). Serve-se
dos adágios, e também de uma gama muito extensa e erudita de referências
literárias, filosóficas, musicais, cinematográficas para o longo diálogo com seu
interlocutor. Mostra-se, assim, um mendigo sui generis, uma pessoa em situa-
ção de rua suo moto, movido por vontade própria.
Revela que grava a lápis pela cidade a letra N – inicial do nome da mu-
lher amada – deixando rastros, cicatrizes abertas do abandono e marcas do
seu itinerário pela cidade, talvez um recurso para possibilitar que a amada o
encontre. “Qualquer momento amada imortal seguirá com os olhos logomar-
ca do meu amor. Amanhã começo o projeto grafitante da multiplicação dos
Ns” (FERREIRA, 2012, p. 170).
“Sempre sonho encontrar-me com ela num canto qualquer da cidade.”
(FERREIRA, 2012, p. 20). Romanticamente, o narrador/mendigo alimenta a
esperança – dela vive, na verdade – de que a amada venha resgatá-lo do es-
paço anônimo da metrópole que adjetiva, repetidamente, como apressurada.

Já pensei em subir às escondidas na torre da Catedral para (a exemplo


de Quasímodo) tocar ininterrupto todos os sinos disponíveis – con-
fundindo ouvintes com desarranjos sonoros. Hipóteses. Por enquanto,
deixo rastros espalhando Ns nos espaços vazios dos postes e paredes
desta metrópole apressurada. Procura silenciosa sustentando-se na lo-
gomarca do amor perdido. Ela virá eu sei. Poderá não ser nesta semana.
Sequer na outra. Pouco importa: tenho esperança sobrando para abar-
rotar contêineres. Poderá ser mês que vem numa tarde chuvosa qual-
quer. (FERREIRA, 2012, p. 143).

Os rastros, marcas que evocam a mulher amada, são pistas para serem
por ela reconhecidas; ademais, constituem-se uma maneira de impedir a per-
da de si mesmo, uma vez que tem a amada inscrita no próprio corpo. “Amada
aquela que levantou âncora deixo nunca-jamais cair da memória: está tatuada
in totum em mim” (FERREIRA, 2012, p. 25). O narrador se diz um “andarilho
mnemônico”, em função do abandono, o que transforma os rastros que vai
deixando numa forma contraditória de conservação da memória, e de desejo
de marca identitária no espaço anônimo da cidade.

Os deuses do desamor, implacáveis, condenaram-me duplamente tiran-


do razão deixando memória. Andarilho mnemônico – sou sim. Tudo
que vejo dia todo evoca meu passado ao lado dela. Aquele pássaro ali;
veja; sim: sobre a mureta da casa em frente; também ele chama-me à
memória nossos voos rasantes sobre incontáveis assuntos pertinentes à
inquietude da alma. (FERREIRA, 2012, p. 198).

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A deambulação desse narrador/flâneur pelas ruas da cidade apressu-
rada – espaço do anonimato, da dessubjetivação – se converte numa busca
de leitura dos signos urbanos como forma de tornar presente a memória da
amada, intenção, de resto, filtrada pela melancolia causada pela perda. Em
Lembrar escrever esquecer, Jeanne-Marie Gagnebin reflete sobre a ligação en-
tre rastro e memória. Como o rastro, também

a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do


presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença
do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanes-
cente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da
memória e do rastro. (GAGNEBIN, 2006, p. 44).

Os rastros – que segundo a pesquisadora mantêm juntos “a presença


da ausência e a ausência da presença” – revelam sua fragilidade porque carre-
gam o constante risco de apagamento, estando ligados igualmente ao campo
semântico da cicatriz e da escrita.
O desejo do encontro acaba fazendo com que, liricamente, o narrador
decifre a proliferação de signos do espaço urbano, rastros de esperança, como
anunciadores da chegada iminente da amada: odores, sons de passos, cantos
de pássaro, voz da amada saindo da antena parabólica de edifício ou dos buei-
ros das ruas, toques de sinos de igreja.

Ouça: sinos de igreja. Possivelmente seus ouvidos também estejam se


deixando envolver mesmo som eclesiástico. Talvez esteja tocando-os
para anunciar triunfal a própria chegada. Sei que está em algum lu-
gar deste quadrilátero: sinto seu cheiro de alfazema. (FERREIRA, 2012,
p. 259).

Constantemente confere com o interlocutor se este também acredita na


proximidade da companheira, se também ele faz a mesma leitura dos rastros
como anunciadores da volta daquela que o abandonou.

Mas ela amada que levantou âncora virá – eu sei. Talvez esteja agora
num quarteirão qualquer da rua de trás. Não vou perguntar porque sei
sinto pressinto que o senhor dirá que não ouve o som onomatopaico
do salto do sapato dela. Entendo: só eu conheço o ritmo desequilibrado
do seu jeito característico de dar um passo titubeante depois do outro.
Ouça: som de salto de sapato alto. Há dez anos ouço os passos dela
aproximando-se, sensação de que nosso encontro é frustrado no último
instante pelas mãos invisíveis malévolas dos deuses dos desencontros.
(FERREIRA, 2012, p. 176-177).

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Essa cadeia – memória, rastro, cicatriz, escrita – encontra-se presente
no gesto do narrador que também escreve a inicial da mulher amada no tata-
me no qual dorme, inscrição sobre a qual apoia a cabeça.

Veja: N. Escrevi para saber – coincidência poética – onde fica o lado


norte do tatame. Lado sobre o qual recosto a cabeça. Durmo todas as
noites assim: rosto roçando primeira letra do nome dela – logomarca
também de minha nostalgia infinita. Choro sempre. Lágrimas se refa-
zem com a lembrança. (FERREIRA, 2012, p. 6).

É o rastro, embora inscrição frágil, que indica um caminho, que dá es-


perança de um rumo, de uma direção para esse sujeito melancolicamente so-
litário na imensidão da “cidade apressurada”, esperando a chegada da mulher
amada.
A memória dela, contraditoriamente, pois, é refrigério que retarda, que
posterga a loucura total sendo, ao mesmo tempo, a sua causa. A imagem da
nau dos insensatos, tão ao gosto das artes medieval e renascentista, é evocada
pelo narrador para falar do curso do enlouquecimento de que, consciente-
mente, é vítima3.

Não vou perdoá-la pela incompletude do ato: descuidou-se do tiro de


misericórdia. Deixou-me estendido moribundo à beira da vida. Não
sou zumbi por obra do acaso. Ando molambento a trouxe-mouxe pelas
ruas procurando inútil o ancoradouro da nau dos insensatos. Estou a
meio caminho do destrambelho in totum. (FERREIRA, 2012, p. 2).

Ao longo do texto, a loucura do narrador vai, gradativamente, se


aprofundando.

Loucura in totum que se avizinha possivelmente chegará aos berros.


Ainda consigo abafá-la com meu refrão ela virá eu sei. Esperança-elmo
impedindo ferimentos fatais das lanças do destrambelho absoluto. Sei

3  Muito embora o narrador se refira algumas vezes ao livro mais famoso de Erasmo de Rotter-
dam, Elogio da loucura, não é propriamente o mesmo sentido de loucura dado pelo filósofo hu-
manista que é assumido pelo texto de Evandro Ferreira. Em Elogio da loucura, Erasmo satiriza a
decadência moral da sociedade da época, principalmente a da Igreja. “A loucura é para Erasmo o
impulso vital, a beata inconsciência, a ilusão, a ignorância contente de si – numa palavra, a men-
tira vital. Toda a vida humana, seja a individual, seja a social, funda-se em mentiras, em ilusões
ou em imposturas, que velam a crua realidade e constituem o maior atrativo da própria vida.
E Erasmo, pondo a falar a Loucura e entrincheirando-se por detrás de um pretexto divertido,
pode rasgar o véu daquelas mentiras e mostrar a realidade que elas ocultam” (ABBAGNANO.
1970, p. 189).

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também que proximus sum egomet mihi– o mais próximo de mim sou
eu. (FERREIRA, 2012, p. 109).

A narrativa, habilmente construída, torna visível/audível tal crescendo


da loucura, mas, sempre, reitere-se, sem que de tal curso o narrador perca a
consciência, como um espectador de si mesmo, um narrador dos caminhos
da perda da própria razão e da morte que se aproxima, invocando o inter-
locutor por testemunha: do seu amor, da sua solidão, da sua loucura. Tais
consciência e lucidez, abrigadas no interior da loucura, anunciavam-se desde
a epígrafe, tirada a texto da psicanalista Najla Assy: “A loucura às vezes che-
ga quando se é tragado pela perda; é cegueira lúcida que despedaça a alma”
(FERREIRA, 2012, p. 1).

Ouviu? Centenas talvez de ratos soltando ensurdecedores guinchos to-


dos ao mesmo tempo. Por favor, grite qualquer coisa neles meus ou-
vidos para afastá-los de dentro de mim. […] Destrambelho in totum
aproximando-se a passos largos. Doidice absoluta sobrepondo-se ao
sonho de reaver amor perdido. […] Talvez seja mais sensato embre-
nhar-me pelas veredas do delirium tremens; pelas dos entumescimen-
tos das implosões irreversíveis. […] Acho que ela não chegará a tem-
po: ratos voltaram; agora são duas centenas talvez. […] Ratos arautos
anunciando nas entrelinhas que loucura absoluta já está possivelmente
a duas quadras de distância – aproximando-se a galope. Sei sinto pres-
sinto que amada aquela que levantou âncora não me ajudará a reaver
com lucidez meu cheiro primevo de alecrim. Chegará pouco depois do
destrambelho in totum. Inútil: não estarei mais em mim. Hipóteses.
Voltaram. Agora, pela timidez dos guinchos, são apenas dois ou três ou
quatro se tanto – vieram buscar o resto de minha memória que deixa-
ram cair pelo caminho. (FERREIRA, 2012, p. 391-395).

Um mendigo que sofre, enlouquece por amor, trazendo para o espaço


urbano em que transita “a dimensão pessoal e íntima” (SCHØLLHAMMER,
2009) na busca vã de deixar registros na “cidade apressurada”, para, mesmo
precariamente, impedir a loucura, a perda identitária, deixando marcas, ras-
tros de sua passagem.
Para Gagnebin, é vã a busca de individualização do sujeito individual
na sociedade contemporânea, na qual não logra deixar sua marca:

Tentar ainda deixar rastros seria, então, um gesto não só ingênuo e


ilusório, mas também totalmente vão de resistência ao anonimato da
sociedade capitalista moderna. Gesto vão porque restrito ao âmbi-
to particular e individual, quando se trata, dizem Brecht e Benjamin,

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de inventar resistências coletivas ao processo coletivo de alienação,
em vez de reforçá-lo por pequenas soluções privadas de consumo.
(GAGNEBIN, 2006, p. 115).

O deambulante do romance de Ferreira, no entanto, figura do sujei-


to lírico que atravessa o espaço urbano, narrador mnemônico que, como o
pintor da vida moderna retratado por Charles Baudelaire (2002), ou como as
figuras emblemáticas – o trapeiro, o flâneur – retratadas nas Flores do mal do
poeta francês, também “recolhe” das ruínas do espaço urbano aquilo que foi
desprezado, o lixo, o rejeito. No texto de Evandro Ferreira, o narrador exibe
à vista do interlocutor/leitor um conjunto de marginalizados sociais, pessoas,
como ele, em situação de rua, farrapos humanos, que seu discurso tira da
pretensa invisibilidade, assumindo a dimensão da crítica social também assi-
nalada por Schøllhammer (2009) como presente na ficção brasileira contem-
porânea, mesmo naquela de cunho subjetivo. O narrador, então, desenha o
gesto de “resistência coletiva” a que se refere Gagnebin também configurado
na invocação ética de atitude responsiva do interlocutor. Pode-se pensar, com
Almeida (2005), como as mobilidades contemporâneas não prescindem da
reflexão sobre os “afetos”:

As teorizações sobre os afetos abrem espaço para pensarmos as mobili-


dades contemporâneas não apenas em termos geográficos, mas também
em relação à circulação de emoções e afetos entre determinados cor-
pos, levando a ações e reflexões éticas que decorrem da maneira como
os corpos são afetados, numa perspectiva ética, pelos espaços contem-
porâneos e por outros sujeitos que por eles circulam (ALMEIDA, 2015,
p. 25).

E assim é que o narrador de O mendigo que sabia de cor os adágios


de Erasmo de Rotterdam, mesmo ora sabendo-se diferente dos mendigos que
com ele dividem o espaço das ruas (“Não me junto nunca-jamais aos outros
maltrapilhos. Eremita metropolitano – sou sim.” (FERREIRA, 2012, p. 8)),
ora com eles se tornando semelhante – pela repetição do dístico “Miseráveis.
Somos todos igualmente miseráveis” (FERREIRA, 2012, p. 235) – vai indivi-
dualizando-os, abarcando-os com um olhar compassivo, conferindo-lhes uma
narrativa de vida, como um trapeiro recolhendo restos de histórias (“Ouço
frases soltas aqui ali, permitindo-me montar colcha de retalhos noticiosa”
[FERREIRA, 2012, p. 13]).

Veja: mulher enrolada num pano longo imundo acende cigarro no toco
do cigarro que maltrapilho alcoólatra de rosto intumescido atirou no

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chão. Postura nobre até para abaixar-se. Próprio passado deixou-lhe
rastro de fidalguia. Olhando-a agora seguindo em frente arrastando sua
longa coberta, desconfio estar diante da rainha dos farrapos humanos.
Sujidade excessiva não foi capaz de arquear esbelteza. São surpreendên-
cias da vida.” (FERREIRA, 2012, p. 196-197).

O olhar compassivo do narrador – olhar “com paixão” – guarda o sen-


tido de “sofrer junto” (“com”), uma situação na qual se encontra associado a
outros, por cujos sentimentos se sente “a-fetado”.

Ela, mulher-molusco, por sua vez, possivelmente imagina acariciar o


filho que perdeu; ou o que nunca teve. Veja: às vezes deixa escapar sor-
riso minúsculo num canto qualquer da boca. Mas o olhar não sofre
influência dos acanhados movimentos labiais: continua profundamente
triste. Mendigo nenhum conseguiu ainda arrancar-lhe fotograma se-
quer de seu passado. O corpo é o próprio túmulo, cujos acontecimen-
tos pretéritos jazem invioláveis. Nunca me aproximei dela. Sua tristeza
excessiva amedronta-me, sempre fui frágil diante do desespero alheio.
(FERREIRA, 2012, p. 41).

Arjun Appadurai, no livro significativamente denominado Fear of small


numbers (2006), destaca o aprofundamento na contemporaneidade das rea-
lidades mais sombrias de violência e exclusão social, com uma expansão da
pobreza e da desigualdade. Para o pensador, a globalização só é um slogan
positivo para as elites, uma vez que os muitos miseráveis que ela cria são atin-
gidos por um duplo temor: o de uma inclusão à força no mundo globalizado
e, simultaneamente, o da exclusão desse mesmo mundo.
Por seu turno, Zygmunt Bauman (2005) reflete sobre o que fazer com o
excesso de lixo como problema candente da atualidade. As vidas desperdiça-
das que aparecem no título de seu livro dizem respeito à simultânea produção
do lixo e de seres humanos “refugados” pelo progresso econômico

A produção de “refugo humano”, ou, mais propriamente, de seres hu-


manos refugados (os excessivos e redundantes, ou seja, os que não
puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para
ficar), é um produto inevitável da modernidade, é um acompanhante
inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da cons-
trução da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população
como “deslocadas”, “inaptas” ou “indesejáveis”) e do progresso econô-
mico (que não pode ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos an-
teriormente efetivos de “ganhar a vida” e que, portanto, não consegue
senão privar seus praticantes dos meios de subsistência). (BAUMAN,
2005, p. 12).

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Esses “refugados” – vidas desperdiçadas, pequenos números – o narra-
dor singulariza de alguma forma: mulher-molusco, menino-borboleta, men-
digo que morreu de tristeza, maltrapilho alcoólatra de rosto intumescido. Para
eles, invoca o olhar do interlocutor: “Veja: maltrapilhos alcoólatras deitados
uns sobre os outros – entulho humano. Vidas apodrecendo-se a céu aberto”
(FERREIRA, 2012, p. 144-145).
Da “mulher molusco”, encerrada em sua caixa de papelão a servir-lhe
de casa, compadece-se por percebê-la a mais triste das criaturas, procurando
desvendar-lhe o drama que a faz acalentar o “menino borboleta”, que lhe traz
à lembrança, talvez, um ente querido desaparecido:

Pobre-diaba senta-se outra vez de cócoras ao lado da caixa de pape-


lão. É talvez a mais triste das figuras desde sempre aparecidas na Terra.
Mais uma criatura que não deveria ter vindo. Sim: ao mundo. Vida des-
necessária, sem sentido, débâcle congênito. (FERREIRA, 2012, p. 288).

Denuncia a penúria extrema em que se encontram as pessoas em situa-


ção de rua: a fome, a violência policial, o descaso de que são vítimas. É fre-
quente no romance a aproximação dos sem-abrigo ao lixo, à sujeira, ao mau
cheiro que exala dos seus corpos.

É difícil a tarefa de viver – principalmente na rua. Amontoados uns


sobre os outros nas praças empregamos com maus resultados qual-
quer traçado paisagístico. Somos o cancro da estética. Uma vez ouvi
uma senhora idosa dizendo para outra: Essa gente enfeia demais a ci-
dade. Esqueceu-se de dizer que a tornamos mais fedentinosa também.”
(FERREIRA, 2012, p. 161).

Também são eles vinculados à ferrugem e ao deteriorado, à ruína: “Ver,


em vez de ser, escombros. Sei que há dez anos sou restos de meu próprio des-
moronamento. Ruínas de mim mesmo (FERREIRA, 2012, p. 10); “Veja: des-
prezada pelos pares: fede muito. Possivelmente havia alguma beleza debaixo
daquela ferrugem” (FERREIRA, 2012, p. 136).
São os fora da ordem, os que deveriam ser excluídos da paisagem ur-
bana, “moradores de rua, que vivem debaixo de papelões, entre montes de
lixo, produto de seu trabalho cotidiano, são o imprevisto e o não desejado da
cidade, o que se quer apagar, afastar, desalojar, transferir, transportar, tornar
invisível” (SARLO, 2014, p. 55). O narrador interpela o interlocutor, com sua
crítica, posicionando-se politicamente:

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Sim: menino todo enferrujado. Inseto multicolorido destacou-se ainda
mais sobre o pretume de seu corpo quase nu. Maltrapilho mirim. Veja:
continua dormindo indiferente ao pouso da borboleta. Cidade inteira
endoideceu mais do que eu deixando tanta criança abandonada apo-
drecendo-se pelas esquinas. (FERREIRA, 2012, p. 17).

Por outro lado, igualmente se narra solidariedade, carinho, o mundo


dos afetos na divisão de comida, dos espaços entre os desvalidos.

Veja: mulher-molusco estanca sangue da mão dele maltrapilho alcoóla-


tra de rosto intumescido. A-hã: pedaço de jornal imundo. Solidariedade
brotando comovente feito cogumelo emergindo-se do fundo do ester-
co. São as surpreendências da vida. (FERREIRA, 2012, p. 164).

A ficção contemporânea brasileira contempla em diversos textos a re-


presentação de personagens em situação de rua. Já presentes, por exemplo,
na crônica “Debaixo da ponte”, de Carlos Drummond de Andrade, ou em
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, de João Antônio; são mais frequentes nos
contos contemporâneos de Marcelino Freire e Fernando Bonassi, nos textos
de Luiz Rufatto, na protagonista e outros personagens de Quarenta dias, de
Valéria Resende, entre outras produções. A arte contemporânea, aí incluída a
literatura, pode ser tomada, nessa vertente aqui privilegiada, como uma arte
dos dejetos? Ao falar de uma estética da reciclagem já tão comum nas artes
plásticas, Walter Moser assim se expressa sobre o que seriam os dejetos no
texto literário:

La littérature peut-elle également utiliser des déchets? […] à quoi exacte-


ment correspond la notion de déchet si on l’applique à la langue, au texte,
au discours, et ceci en deçà de sa thématisation littéraire, au niveau de
la matérialité du médium langagier? Il s’agit, certes, d’un usage plus ou
moins métaphorique de ‘déchet’, mais beaucoup de textes littéraires éta-
blissent un lien subtil entre la réprésentation thématique du déchet non
verbal et la figuration du matériau verbal comme déchet. (MOSER, 1999,
p. 102-103).4

4  “Poderia a literatura igualmente utilizar-se dos dejetos? […] exatamente a que corresponde
a noção de dejeto quando aplicada à língua, ao texto, ao discurso, e isto ao lado de sua tema-
tização literária, ao nível da materialidade do meio ‘linguageiro’? Trata-se, certamente, de um
uso mais ou menos metafórico de ‘dejeto’, mas muitos textos literários estabelecem uma ligação
sutil entre a representação temática do dejeto não verbal e a figuração do material verbal como
dejeto” (tradução da autora).

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O romance de Evandro Affonso Ferreira exibe um narrador/trapeiro,
emblemático dessa literatura que se vale dos dejetos e dos dejetos humanos, de
uma estética de restos, com um narrador que, em trânsito, recolhe do espaço
urbano o que foi descartado, arrepanhando as vozes de vidas desperdiçadas.

O chiffonier, anota Benjamin, é a figura provocatória da miséria hu-


mana. Também é uma nova figura do artista. Com aquilo que é joga-
do fora, rejeitado, esquecido, com esses rastros/restos de uma civiliza-
ção do desperdício e, ao mesmo tempo, da miséria, trapeiros, poetas
e artistas constroem suas coleções, montam suas “instalações” […].
(GAGNEBIN, 2006, p. 118).

Recupero aqui, para finalizar o meu texto, a escultura Roupa, de Jayme


Figura, com a qual o iniciei. Ambas as figuras, narrador e escultura, duplos do
artista e de seu trabalho, convocam leitor e espectador a uma responsividade
diante da matéria narrada em suas criações.

Referências

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Ramos Rosa. Volume V. Lisboa: Editorial Presença, 1970.
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temporânea. Porto Alegre: Zouk, 2015. p. 15-39.
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Durham/London : Duke University Press, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São
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FERREIRA, Evandro Affonso. O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006.

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HANCIAU, Núbia. Escrituras e migrações. In: CURY, Maria Zilda Ferreira; WALTY,
Ivete Lara Camargos; ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Mobilidades cultu-
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historias-afro-atlanticas. 29.6-21.10.2018. Acesso em: 10 dez. 2020.
MOSER, Walter. La culture en transit: locomotion, médiamotion, artmotion. In:
Gragoatá: Revista do Programa de Pós-graduação em Letras, Niterói, n. 17,
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MOSER, Walter. Esthétiques du déchet. In: VILLENEUVE, Johanne; NEVILLE,
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SCHØLLHAMMER, Karl Eric. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
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“Gente de corpo e dor, quase”: experiência
migrante em Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, e
Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

Mônica Gama1

A literatura brasileira recupera continuamente o tema da viagem e do


deslocamento. Na produção contemporânea, é recorrente a figuração de per-
sonagens desenraizados e (i)migrantes, corpos que se deslocam e que, em
movimento, ou recordando dessa movência (de si ou de seus antepassados),
lastreiam a observação das relações humanas precisamente nesse sentimento
de errância.
Uma dessas obras com o tema do deslocamento urbano é Quarto de
despejo: diário de uma favelada (1992), publicado originalmente em 1960.
Carolina Maria de Jesus, moradora da favela paulistana do Canindé, conscien-
te do combate imposto por sua condição de mulher, negra e pobre, exibe, nas
páginas do diário, seus questionamentos sobre a realidade, e revela-se uma
exploradora sensível de formas de expressão poética. Ainda que a escritora
seja uma migrante de Minas Gerais, esse diário captura a movimentação ur-
bana, retratando instantâneos da cidade pela perspectiva da trabalhadora que
a percorre em jornadas, cruzando limites territoriais e emocionais.
A partir dessa perspectiva da realidade urbana periférica, sugiro a apro-
ximação entre o diário de Carolina e uma obra de ficção, unidos pelo eixo
narrativo do deslocamento no cenário urbano, figurando a relação do corpo
feminino com as ruas e a favela em uma grande cidade. Trata-se de Quarenta
dias (2014), romance de Maria Valéria Rezende, que, ficcionalizando um diá-
rio, conta a história de Alice e sua experiência pelas ruas de Porto Alegre, ci-
dade para onde migra e onde é percebida de forma particular quando passa a
frequentar algumas de suas vilas e favelas, decidindo depois dormir nas ruas.

1  Professora de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira pela Universidade Federal


de Ouro Preto. Pós-doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais com a pesqui-
sa “A ficção romanesca do diário: autor suposto e escrita em ato na literatura brasileira do
séc. XX”. Possui doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo com
a tese “Plástico e contraditório rascunho”: a autorrepresentação de Guimarães Rosa (2013).
E-mail: [email protected].

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Tanto em Quarto de despejo quanto em Quarenta dias temos a escrita
de si de mulheres, com a tematização de sua relação com a cidade: no primei-
ro caso, Carolina Maria de Jesus, mãe solo, empenhada na garantia de sobre-
vivência material dos filhos, registra em seu diário sua vida como catadora de
papéis em São Paulo e seu cotidiano na favela, quarto de despejo social desse
espaço urbano excludente; no segundo caso, o romance recorre à ficção da
escrita de si para registrar a experiência de errância pela cidade e de desco-
berta interior a partir dessa mobilidade urbana – trata-se de uma investigação
a partir de uma perspectiva pouco abordada na literatura: a da mulher idosa,
uma migrante invisibilizada pela origem espacial e pela idade.
Enquanto Carolina registra sua vida de mãe e trabalhadora, a outra,
autora-ficcional, é uma aposentada, que documenta o que foi seu período de
quarentena nas ruas, de forma retrospectiva – sua perspectiva, portanto, é a
de espectadora de uma realidade pobre, ainda que uma observadora imer-
sa, pois abandona por vontade própria o conforto burguês responsável por
seu aprisionamento emocional. Ir para as ruas, no caso da obra ficcional, foi
necessário para que essa mulher conquistasse a “sensação de existir solta, no
meio do mundo, sem nenhuma determinação alheia, mas exposta a tudo”
(REZENDE, 2014, p. 13). A narradora acredita que foi preciso expor-se a tudo
para retornar a um estado em que não seja reduzida a uma identidade de “vó
profissional” desterrada. O romance tematiza o desejo de acesso a outra reali-
dade social, e a escrita figura uma ação de retorno a uma identidade perdida:
escreve-se para voltar a si, pois Alice se sente “ausente”, “aparentemente den-
tro, mas ausente deste apartamento que mais parece um cenário de novela”
(REZENDE, 2014, p. 18).
Além de partilharem a percepção feminina sobre a cidade e aflições de-
correntes da maternidade, esses textos se aproximam por tematizarem a mi-
grância, expondo o olhar feminino em face da hostilidade urbana, diante da
qual é preciso estar sempre em mobilidade para a garantia da individualidade.
Como narrativas de viagem modernas, essas obras mostram como a solidão, a
alteridade e a errância vão organizando a sensibilidade.
Não se trata aqui de fazer uma análise comparativa, mas de recorrer a
Quarto de despejo como um operador de leitura de Quarenta dias, na medida
em que ambos deslocam a genealogia de literatura de viagem ao imporem
uma perspectiva nova, capaz de mostrar o lugar do eu e do outro na cultura
brasileira.

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Os diários: a reação de Carolina e a “rua de papel”2 de Quarenta dias

Diário e deslocamento são gestos que se avizinham, pois o viajante lida


com transformações em sua identidade ao deparar-se com diferentes alteri-
dades, percebendo-se de forma distinta nessas novas configurações de espaço
e tempo. A realidade da cidade de São Paulo, frequentada diariamente por
Carolina, era tão diversa de sua situação na favela que podemos compreender
as jornadas para o trabalho como pequenas viagens entre dois territórios sem
fronteiras formais ou visíveis. Carolina chega a afirmar que “a favela é uma
cidade esquisita” cujo prefeito “é o Diabo” (JESUS, 1992, p. 81), território tam-
bém denominado de “quarto de despejo” e “gabinete do Diabo” (JESUS, 1992,
p. 157), enquanto o que não é favela é descrito como cidade de alvenaria, “sala
de visitas”, “palácio” e “jardim florido”.
Em Diário de Bitita (1986), obra de memórias posterior a Quarto de
Despejo, essa característica da movência é tematizada, seja nas memórias dos
deslocamentos dos antepassados, seja na busca de Carolina por melhores con-
dições, algo sintetizado por um conselho que recebe da mãe: “Minha mãe
dizia que as exigências na vida nos obrigam a não escolher os polos. Quem
nasce no polo norte, se puder viver melhor no polo sul, então deve viajar para
os locais onde a vida seja mais amena” (JESUS, 1986, p. 101). Quase ao fim do
livro, ao receber cartas da mãe contando sobre a violência que um tio sofria,
Carolina a aconselha a manter silêncio, pois “os pobres têm que ser afônicos.
Viver no nosso país como se fôssemos estrangeiros” (JESUS, 1992, p. 201).
No entanto, ao ser tratada como escrava por uma patroa, avalia que deveria
“aprender a reagir, a exigir respeito nos contratos de trabalho. […] A patroa
era estrangeira, e eu nacional. Eu não podia competir com ela” (JESUS, 1992,
p. 202). Diante da clareza de que se continuasse ali continuaria escravizada,
consegue um emprego como doméstica em São Paulo na esperança de ter
meios para “comprar uma casinha” e viver o resto dos seus dias “com tran-
quilidade…”. Importante notar nesses fragmentos como o livro de memórias
mostra uma percepção de si nessa posição de descompasso com identifica-
ções em torno da identidade nacional: percebendo-se como brasileira inferior,
deve agir como uma estrangeira, pois sua língua é indesejada, sendo a migra-
ção para São Paulo a esperança de mudança. Como já apontamos, esse livro é
escrito depois de Quarto de Despejo, sendo então muito importante notar que
esse destino migratório já havia se cumprido, sendo muito significativo ela
narrar a si mesma sob o signo da migrância.

2  Expressão usada por Alice para iniciar o relato sobre um dia nas ruas: “Vamos, Barbie, pra
rua de papel” (REZENDE, 2014, p. 175).

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Escrever seus diários com moradia fixada precariamente na favela, mas
andarilha na cidade, é sua forma de reação; se no dia a dia se via obrigada
a aceitar quieta o que lhe era imposto socialmente, como uma estrangeira
em seu país, o diário era como um território autônomo que lhe dava voz e
língua para expressar sua revolta. Todavia, esse era um território também em
disputa, pois, sonhando em ser reconhecida como escritora, Carolina nota
em Quarto de Despejo o descompasso de sua realidade com um necessário
repertório de beleza: “Segui pensando: quem escreve gosta de coisas bonitas.
Eu só encontro tristezas e lamentos” (JESUS, 1992, p. 161). Talvez esse lugar
de enunciação, tão propício à denúncia social, seja o fundamento do questio-
namento sobre a posição de sua literatura: “Um sapateiro me perguntou se o
meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é acon-
selhável escrever sobre a realidade” (JESUS, 1992, p. 96). Sua realidade estava
impregnada até no suporte físico de seus diários, cadernos escolares simples,
muitos deles recuperados do lixo, como é possível ver nos exemplares resguar-
dados em arquivos públicos e que mostram como a escrita de si era praticada
abundantemente pela escritora, havendo muito mais anotações do que as que
lemos em Quarto de despejo.
Em Quarenta dias o suporte do diário ficcional é um caderno velho,
com folhas amareladas e uma boneca Barbie na capa (escolhida como inter-
locutora da narrativa). Essa interlocução com a boneca dá um tom cômico
a alguns momentos e permite à diarista discorrer sobre seu corpo cansado
e velho, corpo feminino marcado pelo envelhecimento, contrastado com o
modelo de mulher de plástico imune à passagem do tempo. Esse caderno po-
deria estar no lixo, assim como o resto de suas coisas, pois o romance se inicia
com a precária situação da narradora e de seus objetos: tudo é velho, tudo é
descartável para quem a ajuda a fazer as malas para sua mudança do nordeste
para o sul do país.
Essa relação violenta com suas coisas antecipa a situação da migração
compulsória em que a personagem principal sai de João Pessoa para viver em
um confortável bairro classe média de Porto Alegre. O conforto, porém, é o
prêmio de consolação para uma mudança forçada: a filha exige que se mude
para o sul do país porque tem o projeto de tornar-se mãe, o que só se reali-
zaria com esse apoio presencial materno; todavia, no quarto dia em que está
na nova moradia, descobre que a filha que vai estudar no exterior por quase
um ano, deixando-a sozinha. Esse descaso da filha com a sua frágil condição
resulta primeiro no desejo de solidão e, posteriormente, na decisão de aban-
dono do apartamento para vagar pelas ruas de Porto Alegre.

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O diário, escrito no retorno dessa errância pelas ruas, nasce para purgar
o que aconteceu nesse período. Escrita resguardada pela intimidade, escrever
o diário é rebelar-se contra a liberdade restrita de uma mulher que, ao se ver
reduzida a um papel social, infantilizada (filha de sua filha), e solitária, retor-
na de uma aventura e, por meio da escrita, pode voltar a si, construindo-se
simbolicamente nas páginas do diário:

Nem tranquei a porta, nem fui ao banheiro, nem bebi um copo d’água,
[…] desabei no sofá branco que eu detesto com você, Barbie, no colo
[…]. E aqui estou vomitando nestas páginas amareladas os primeiros
garranchos com que vou enchê-las até botar tudo pra fora e esconjurar
toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá
e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e
arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e
sonha e morre e ressuscita sem parar. (REZENDE, 2014, p. 13-4).

O escatológico ou o aspecto sangrento das ruas não terão espaço de


fato no diário. A expectativa construída nessa cena que anuncia o que seria o
projeto de escrita é frustrada, na sequência, pelo centramento do relato de si e
pelo elogio a uma rede de solidariedade na favela e nas ruas, o que é rompido,
ao final, com o evento de uma morte. É esse episódio ao fim da quarentena
que justificaria tal aviso quanto ao caráter visceral, visto que a narradora es-
taria ainda impactada com o corpo que encontrara, evento mais recente do
início do gesto ficcional de escrita da narradora. Assim, ao organizar a narra-
tiva e iniciar o relato desde o momento em que migra, distancia-se do evento
que a faz sair das ruas e retornar para casa, sobrando para o relato muito mais
os acontecimentos ligados à rede solidária que encontra em sua viagem pela
cidade.
Alice, que vai se aventurar para se desconstruir, escreve para se reen-
contrar, confirmando uma síntese de Blanchot (2013, p. 274) sobre o diário
para o que chama de “empresa de salvação”, já que “escreve-se para salvar a
escrita, para salvar sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu (as des-
forras que se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para
salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve para não
se perder na pobreza dos dias”.
A “pobreza dos dias” que sente ser seu destino em Porto Alegre poderia
ter sido o impulso de Alice para a escrita do diário, mas suas anotações são
fruto do “retorno” de sua aventura, em que se dá notícias de uma viagem den-
tro da viagem. Projetando-se no texto (capaz de “salvar sua vida pela escrita”),
tem sua existência (re)valorizada a partir dessa experiência, o que a faz operar,

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pela notação de si, o salvamento de seu “grande eu, dando-lhe um pouco de
ar”.
Carolina escrevia quase todos os dias (salvando a escrita), acreditando
que a literatura seria responsável por tirá-la da favela (salvando-se pela escri-
ta), documentando o cotidiano e seus desejos (salvando o pequeno e o grande
eu). Há uma urgência em seu ato de escrita após noites insones, quando se
levantava cedo para escrever ou quando o fazia nas raras pausas do exaus-
tivo dia, o que equivale à urgência de sobrevivência mais substancial (comi-
da). Essa relação entre o desejo de escrita e a urgência da sobrevivência pode
ser percebida nas entradas do diário, que enumeram as primeiras ações de
Carolina no dia – quase sempre o início é alguma variação da sequência que
começa com “fui buscar água”, depois a indicação de uma noite mal dormida,
seguida da tensão com a falta de comida.
A abertura de Quarto de despejo, com a impossibilidade de Carolina
dar o que a filha deseja, sinaliza as diferenças de lugar social dessas mulhe-
res. A filha de Alice, criada no conforto da classe média, não enxerga a mãe
em sua individualidade; já Carolina se vê ainda escravizada, dessa vez, pelo
custo de vida, que não a permite comemorar a singularidade da filha, como
afirma nessa famosa abertura de seu diário: “Aniversário de minha filha Vera
Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos
gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente
somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e
remendei para ela calçar” (JESUS, 1992, p. 9). Essa notação é do ano de 1955,
porém, três anos depois, a situação não muda: “Hoje é o aniversário de minha
filha Vera Eunice. Eu não posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que
querer agarrar o sol com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar” (JESUS,
1992, p. 83). Essa repetição – sempre buscar água, sempre sentir fome, con-
tinuamente andar pela cidade para conseguir qualquer objeto que pudesse
ser vendido para comprar o mínimo para a alimentação – é como uma toada
que marca a impossibilidade de alteração social. Em Quarenta dias, a escrita
abranda o ressentimento pelo abandono e é resultado de uma urgência em
narrar o que foi vivido – “pra não sufocar, agora […], cercada de pedaços de
papel amassado, até sujo, que ajuntei pelas ruas” (REZENDE, 2014, p. 17) –
para relatar a aventura do encontro do eu com o real, com a alteridade das
ruas.
Como em um rito de aprendizado, a “protagonista Alice simula uma
identidade na cidade: é o que não é […]. Após sua experiência ex-cêntrica,
ela regressa ao seu apartamento, isto é, das ruas volta à esfera privada, para

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se encontrar consigo mesma e fazer o registro escrito de suas memórias”
(RESENDE; DAVID, 2016, p. 21). O diário, nesse caso, não é fruto da suspen-
são da vida para a anotação enquanto vive a errância na cidade; é documenta-
ção, no espaço privado, de uma experiência anterior (o que o aproxima, por-
tanto, das memórias) de uma viajante que narra suas experiências em lugares
diversos, o que mostra o conflito entre a expressão de si – enclausuramento
– e o impulso em ocupar esse lugar do narrador tradicional que pode dar con-
selhos. A confusão não está apenas no ordenamento dos pedaços de papel que
Alice trouxe das ruas, mas da perda de contornos nos eventos.

Perder-se no “rumo de outra mulher”

O título escolhido para o diário de Carolina expressa o sentimento de


exclusão desse lugar, pois a cidade seria a “sala de visitas” com “lustres de
cristais”, “tapetes de veludo, almofadas de cetim”; a favela, por sua vez, lhe dá
a impressão de que é “um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo” (JESUS, 1992, p. 33). Além do constrangimento em se notar redu-
zida a esse estado de latência de objeto fora de uso, e que deve ser mantido
longe do olhar, há a violência de não se ver em uma comunidade, pois não
se percebe representada nem na cidade de alvenaria nem na sociabilidade da
favela. Excluída da urbe moderna (sala de visitas), é também excluída pelos
vizinhos ao se expor como diferente por exercer a escrita na produção de um
livro sobre a favela.
No romance, a invisibilidade dessa comunidade das ruas e favelas tam-
bém aparece em primeiro plano, mas ela fica a serviço do estado de espírito da
narradora, que a usa para se esconder. Depois de passar a primeira noite fora
de casa (mais especificamente, nos bancos de um hospital), Alice avalia que é
bom continuar ali, escondida, “invisível entre os invisíveis […], espiando, por
todo o tempo que eu quisesse, aquele pedaço de mundo no qual tudo que a ci-
dade quer esconder abre-se como um abscesso supurado”3 (REZENDE, 2014,
p. 150). Sua invisibilidade, porém, é uma conquista e, como tal, um valor que
fala muito de seu lugar e de suas distâncias com Carolina – ao contrário desta,
mulher branca, classe média, aposentada e mãe que criou uma filha mimada.

3  Carolina denuncia a ilusão de quem positiva a cidade sem perceber que ela é pensada tam-
bém para a exclusão: “Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo,
que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras.
As favelas” (JESUS, 1992, p. 76). A edição dos cadernos exibe passagens recolhidas entre 1955,
1958 e 1959, período do auge da construção de Brasília, símbolo da modernidade urbana e face
brilhante do processo de modernização que resultou na produção de subúrbios e favelas.

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Seu desconforto de classe, com seus privilégios, apresenta-se como algo a ser
desconstruído: a fuga para a rua é a possibilidade de abrir uma fissura que lhe
permita ver o mundo para além da cerca de proteção de práticas burguesas.
Ao sair do hospital, dorme no chão de um parque e é identificada como
uma pessoa em situação de rua pela primeira vez, o que a incomoda, mas o
novo ângulo de observação, de baixo pra cima, a surpreende. A cidade torna-
-se uma personagem no romance, sendo o meio de investigação das relações
afetivas traçadas no espaço de exclusão social. Alice, que primeiro se refugia
escondida no apartamento, recebe a missão de tentar encontrar, em uma fave-
la, o filho de uma conterrânea, sumido há dois anos. Esse “rumo emprestado
de outra mulher” (REZENDE, 2014, p. 101) estava fadado à perdição, pois
Alice tinha apenas o nome de batismo, Cícero Araújo, e o nome da favela
onde o rapaz teria morado, Maria Degolada. Sem endereço detalhado, o nome
se revela inútil diante da prática de rebatizar os imigrantes por apelidos4.
A andança de Alice, “cada vez mais movida a pura ficção” para prolon-
gar “aquela nova espécie de liberdade, o anonimato sem destino”, transforma
Cícero em “mero álibi, perdendo-se e reinventando-se” (REZENDE, 2014, p.
138). Nesse percurso, reconhece na favela a fraternidade e a preocupação com
a mãe do jovem perdido, em um ambiente de violência e solidariedade, de
mistura racial e fé. Aprende também que há um grande número de mães sem
filhos – “Eu descobria que o mundo era feito em grande parte de gente desapa-
recida, gente que não deu mais notícia e gente desesperada atrás ou a esperar
conformadamente pelos sumidos” (REZENDE, 2014, p. 118). Em comum en-
tre essas histórias está a experiência de migração, que mostra como o dester-
ramento quebra os vínculos com o lugar de origem e também rompe vínculos
afetivos. Alice é a desterrada que se muda para reconectar-se com a filha, mas,
abandonada, tem que encarar a fragilidade dessa conexão emocional:

A essa altura, meu caso, de minha própria filha, desaparecida simples-


mente porque eu me recusava a ter mais notícias dela, começava a me
parecer banal e mais uma vez me deixava levar por outra pessoa, agora,
porém, sem nenhuma revolta, nem pensei em recusar, fui, pra onde
me puxaram, decerto satisfeita por não ter de me emocionar com mais
nada senão Cícero Araújo e a pobre e ambígua Maria Degolada, cuja

4  A negação do nome de família, geralmente associado ao nome do lugar ou da região de


onde a pessoa veio, é comum no processo de recriação da identidade do migrante, o que é mui-
to simbólico do desterramento, como foi imortalizado na música “Tudo é baiano”, de Aloisio
Gomes (2002): “Pode ser cearence, ou mesmo pernambucano / Mas chegando em São Paulo tem
que ser baiano […] Já estou quase maluco / Não é brincadeira / Eu nasci em pernambuco / […]
Quem eu sou eu não me engano / Mas chegando em São Paulo / Tem que ser baiano”.

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história também continuava a crescer e enroscar-se como as vielas e
becos da Vila. (REZENDE, 2014, p. 118).

O desaparecimento de sua filha, simbólico, na realidade, já havia ocor-


rido há muito tempo com a assimilação do modo de vida do lugar para onde
imigrou (evidenciada com a descrição apaixonada de Porto Alegre e com a
percepção da mãe quanto a uma recusa da cultura paraibana). Essa ruptura
do sensível se revela, por exemplo, no uso oportunista da fala paraibana, cujo
efeito a filha teria previsto no processo de convencimento da mãe, já que é
descrita como alguém que, tendo adquirido o sotaque sulista, retoma e perde
o falar nordestino de acordo com o momento do debate: “O que me estarrecia
era a pessoa inteiramente desconhecida, revelada pelas palavras agora ditas
noutra língua, na qual nem se ouvia mais um traço da fala paraibana, sua
língua materna, fora o “Mãínha” que ela deixou de usar logo depois do meu
primeiro não” (REZENDE, 2014, p. 28); e, ainda, quando os cuidados vêm
acompanhados de uma toada paraibana: “Autêntica ou forçada pra me domes-
ticar melhor” (REZENDE, 2014, p. 49). Essa manipulação por meio do modo
de falar, elo mais evidente entre as duas (descrita como branca, alta, muito
diferente da mãe), é recurso violento que se soma a tantas outras desfeitas à
mãe.
Os sete dias em que se esconde no apartamento antes de ir procurar
Cícero são descritos como um período de “sepultamento voluntário”, revelan-
do o quão violento foi todo o processo para a aposentada. Isso explica os mo-
tivos para a passagem de “habitante provisória de agora em diante, pra sempre
impermanente” (REZENDE, 2014, p. 166) à decisão pela mobilidade constan-
te nas ruas, descrevendo-se como uma mulher “em romaria”, “exílio”, “andari-
lha urbana”, “desenraizada” e, assimilando a linguagem local, uma “gaudéria”.
Se o diário de Alice narra em retrospectiva a quarentena na rua, quali-
ficando-a e ordenando-a, o resultado é a descrição de um processo de apren-
dizado que vai desse sepultamento voluntário (espécie de ritual de morte de
uma identidade) a um “estado de suspensão” e, por fim, a uma integração que
abala a fronteira entre um “eu” e os “outros” – “todos nós, habitantes dos bu-
racos da cidade, arrastávamos” (REZENDE, 2014, p. 236), em uma “romaria
pelo avesso da cidade, explorando livremente todas as brechas, quase invisí-
veis pra quem vive na superfície” (REZENDE, 2014, p. 235).
No processo de ficar em situação de rua, Alice primeiro dorme em lu-
gares mais protegidos (bancos do hospital e da rodoviária) e depois repousa
na rua de fato. Na exploração das brechas do real por meio desse novo ângulo
de observação há um acolhimento que garante a sobrevivência: a migrante da

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Paraíba recebe ajuda dos habitantes das vilas, favelas e, sobretudo, das pessoas
em condição de rua, sendo integrada a esse novo modo de habitar a cidade.
Uma dessas pessoas é Lola. Decisiva em sua trajetória, age como uma espécie
de embaixadora das ruas. Ao se encontrarem pela primeira vez, Alice se in-
comoda com o fato de que essa senhora, aparentemente em situação de rua,
reconhecesse nela uma igual. Ela repele esse olhar que a vê como semelhante,
reagindo com a narrativa do porquê de sua presença, de passagem, ali no chão
da praça, informando, ainda, que tinha um apartamento confortável para
onde voltar. O modo como a aposentada apreende a outra senhora lembra a
forma como Carolina se sentia percebida pelas pessoas da cidade de alvenaria:

Fiquei chateada de que me acreditasse igual a ela, sim, moradora de


rua, pedinte, arrastando aquele carrinho enferrujado afanado da porta
de um supermercado qualquer ou recuperado de ferro-velho, empan-
turrado de sobejos do consumismo dos outros, de todo tipo, equili-
brando milagrosamente uma montanha maior que ela de latinhas de
refrigerante e garrafas pet amassadas, folhas de papelão, montes de tra-
pos escapando pelas aberturas da grade do carrinho, um vulto a mais
dos muitos semelhantes que eu já tinha entrevisto por ali, como coisas
das ruas, sem lhes conceder mais atenção do que a um banco de pra-
ça, uma lixeira, um orelhão inútil. A rua é cheia de coisas sem muita
serventia, Barbie, do mesmo jeitinho que os quartos das meninas de
hoje que você costuma frequentar, só o preço é que difere. (REZENDE,
2014, p. 196).

O choque do encontro em um primeiro momento é reavaliado, no tem-


po da narração, pois ela mesma, dias após esse encontro, vai recorrer ao lixo
e conhecer melhor Lola, compreendendo a complexidade da figura que se lhe
apresentou. Em resposta à narrativa extraordinária de Alice, de que estava na
rua porque assim o desejava, Lola conta que também tem uma casa e que não
mora nas ruas, o que é entendido como uma mentira contada para responder
a sua arrogância à altura. Porém, é Lola quem depois vai abrigá-la em um mo-
mento de desespero, revelando-se que, de fato, contara a verdade.
Essa idosa nas ruas também era uma sobrevivente da rejeição: viúva,
rejeitada pelos enteados, herda a casa, mas fica sem dinheiro para mantê-la,
“arruinando-se ambas”; Alice ouve a narrativa e sua imaginação literária im-
põe outras perguntas: o “livro de Scliar escondido na minha mochila me pu-
nha mais perguntas na cabeça, polaco rico?, ela, polaca, judia?, ‘escrava bran-
ca’?, seria?, nem pensei em bisbilhotar mais, só me importa o que ela é agora
e o que será dela depois” (REZENDE, 2014, p. 236).

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Em uma bela imagem de um chão de letras ou uma casa de escrita,
Lola forrou o chão para que Alice tivesse algum conforto com livros de uma
biblioteca mofada de sua casa em ruínas, insólita em seu piso de mármore e
em sua coleção de livros encadernados em couro, porém, praticamente sem
telhado, o que a faz ativar a imaginação: “Minha imaginação de quase menina,
leitora voraz de contos de fadas durante a infância e de romancinhos de banca
de jornal na adolescência, viajava longe. A casa fronteira, ou o castelo?, sim,
aquilo poderia ser um castelo […]” (REZENDE, 2014, p. 230-1)5.
Quanto à presença da literatura na narrativa, há uma sucessiva sequên-
cia de pistas que evidencia o intertexto com Aventuras de Alice no país das
maravilhas (2002), como o nome da narradora, a repetição sobre a sensação
de que está encolhendo cada vez que é encurralada pela filha ou mesmo a
menção ao apartamento decorado em preto e branco, semelhante a um tabu-
leiro de xadrez montado por uma rainha louca. O leitor não tem dificuldade
ao acesso da referência, pois, na busca a Cícero, Alice evidencia a imagem da
entrada em outro mundo, regido por regras particulares:

Eu nem percebi, naquele dia, quando saí de casa atrás de um quase ima-
ginário, um vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás
de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio, que ia me
levar pra um buraco, outro mundo. Também, que importância tinha?
Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só pra cair em algum mun-
do, sair daquele estado de suspensão da minha vida num entremundo,
sem nem por um momento me perguntar como nem pra onde havia de
voltar. (REZENDE, 2014, p. 39).

A confirmação intertextual parece um esforço de evidenciação de si em


momento de passagem: se no clássico de Carroll temos uma jovem relutante
com a identidade social e a expectativa de amadurecimento (passagem da in-
fância para a vida adulta), a Alice paraibana já tinha iniciado sua “diminuição”
no jogo com a filha, mostrando-se em revolta pelo retrocesso imposto com a
infantilização (em sua passagem da vida adulta para a velhice) que lhe retirava
o domínio sobre a própria vida.

5  Essa cena das ruínas que revivem a imaginação literária de Alice lembra uma das cenas mais
marcantes de Quarto de despejo: “Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde
o sono começa a pensar nas misérias que nos rodeia. Deixei o leito para escrever. Enquanto
escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas
são de prata e as luzes de brilhantes. […] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer
que estou na favela” (JESUS, 1992, p. 52). A fantasia diurna, consciente, em vigília, assemelha-se
aos sonhos quanto à função de realização do desejo.

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A viagem ao mundo maravilhoso da Alice inglesa, experiência meta-
fórica de confronto com as contradições da vida, é capaz de construir sua
identidade no encontro com os seres estranhos, como em um rito de passa-
gem (pode-se afirmar que a jornada da heroína é a do crescimento). A Alice
de Quarenta dias abandona sua casa em João Pessoa para migrar para Porto
Alegre e depois, com vergonha de ter cedido (e, portanto, diminuído), abre
mão do espaço do apartamento (com seus signos relacionados ao novo e ao
decorado) que reduz ainda mais a sua identidade, partindo rumo à aventura
de confronto com a realidade que não está escondida em uma toca, mas que
sofre um processo, por forças sociais desiguais, de naturalização que invisi-
bilizam os sujeitos e suas experiências. Entrar nesse outro mundo é transitar
entre experiências de classe.
Narrativa de viagem em segundo grau (o primeiro seria o jogo inter-
textual com Carroll), seu retorno ao apartamento ocorre quando se confron-
ta com a síntese das violências naturalizadas na rua (pobreza, desigualdade,
fome), que é a morte: ao ver o corpo de um homem morto, Lola encerra a
experiência da amiga aposentada, mandando-a de volta para seu apartamento
e revelando que acreditara na narrativa da paraibana. Ao contrário da Alice
que precisa descobrir como sair da wonderland e voltar para seu mundo, a
Alice, narradora do diário, sabe que poderia retornar a qualquer momento,
mas há um conforto emocional na experiência comunitária que impedia a
formulação da volta. Seu ingresso nesse mundo é sua segunda migrância, des-
sa vez vivida em sua positividade. Talvez essa exibição reiterada da referência
literária seja o jogo cênico de uma posição de classe que, tentando significar
a complexa experiência de um passado recente, lança mão da cultura aventu-
resca de fundamento letrado.

O som ao redor: afeto e violência na experiência migrante

Quem é visto, ou acredita estar sendo visto, revida o olhar.


Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de
revidar o olhar. (BENJAMIN, 1991, p. 140).

Carolina Maria de Jesus registra a vinda dos imigrantes a São Paulo


a partir da perspectiva de seu ingresso na favela. Ela, mineira, está há mais
tempo na cidade e vê os que chegam do Nordeste como sujeitos diversos. Um
migrante chama muito a atenção de Carolina. Trata-se de um cigano pelo
qual parece nutrir uma paixão passageira, afeto que lhe garante ser compara-
do a Castro Alves e ser chamado pelo nome, de cigano ou baiano, mas não de

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nortista, como chama pejorativamente os migrantes. Sua vida de cigano, sem
parada, deslumbra Carolina (“este cigano quer hospedar-se no meu coração”),
mas também a inquieta: “se um dia este homem for meu, hei de prendê-lo ao
meu lado. Quero apresentar-lhe o mundo de outra forma” (JESUS, 1992, p.
135). Usando sempre essas metáforas relativas à fixação desse espírito cigano
movente, afirma que até o exílio seria melhor com ele: “Pensei: se algum dia
eu for exilada e este homem indo na minha companhia, ele há de suavizar o
castigo” (JESUS, 1992, p. 134).
Na favela, ambiente descrito pela violência, os recém-chegados dispu-
tam espaço e poder; por vezes são até rechaçados pelos moradores mais an-
tigos (também migrantes, mas provavelmente do Sudeste). Ainda assim, há
momentos em que Carolina percebe o fio social que os une: “A nortista co-
meçou a queixar-se que os seus filhos vão voltar para o interior porque não
encontram serviço aqui em São Paulo. Vão colher algodão. Fiquei com dó da
nortista. Eu já colhi algodão. Fiquei com dó da nortista” (JESUS, 1992, p. 126).
Além do tipo de trabalho pesado, a decisão de retorno comove porque essa
será mais uma história de separação familiar, tema que vai se tornar o foco
do tratamento acerca da questão da migração no romance de Maria Valéria
Rezende.
Quarenta dias pode ser lido como um grande elogio aos migrantes,
pois, mesmo que o ponto de partida tenha sido a condição de desterro da
narradora, sua quarentena vai revelar uma rede de migrantes que ela não su-
punha existir no Sul, mostrando um percurso entre o que via como estranho
e similar ao seu lugar de origem. Ser representante de outra mãe ajudou Alice
em seu processo de cura emocional, mas, sobretudo, resultou em sua inte-
gração em uma realidade que evidenciava o aspecto coletivo de abandonos e
rupturas emocionais. Inicialmente, os moradores das vilas e favelas revidavam
seu olhar de recém-chegada (que desconhecia a cidade e seus moradores),
revelando o quanto desconhecem de seus vizinhos, pois qualquer um que es-
tivesse acima da linha do Trópico de Capricórnio era alguém “de lá”. Porém,
ainda que esse “revidar de olhar” manifeste o jogo conflitante de alteridades,
há uma solidariedade quase automática quando se sabe que há uma mãe em
busca de seu filho, e Alice é levada até os “de lá”.
A sonoridade da fala nordestina é um dos marcadores dessa identidade
dos que são de “fora”. Ao percorrer a cidade, é sempre a “sonoridade da fala”
de sua terra que ajuda a narradora a sentir-se acolhida e a se refazer. No en-
tanto, ainda que a memória sonora seja reconfortante, o que encontra é uma
“longa procissão de rostos e dores” (REZENDE, 2014, p. 157), migrantes que

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deixaram alguém para trás ou foram abandonados. Há uma presença cons-
tante de mulheres solitárias, abandonadas por irmãos, maridos e filhos, quase
sempre com memórias de violências em suas narrativas familiares.
Se os migrantes brasileiros nordestinos – tratados como algo próximo
a estrangeiros ao serem chamados de “brasileirinhos” pelos sulistas – trans-
bordam no romance, há estrangeiros que pontuam a obra e trazem aspectos
singulares em relação à expressão do sentimento de exílio do imigrante. É o
caso de Arturo, argentino que fugiu da ditadura em seu país, com quem Alice
cria um forte laço emocional; é com ele (apelidado de Chapeleiro Louco) que
a narradora dorme de fato no relento da rua pela primeira vez. Trata-se tam-
bém de um filho perdido que a faz acessar memórias dolorosas da ditadura
militar brasileira, época em que abrigava e escondia perseguidos políticos em
sua casa em parceria com o marido, Aldenor. Esse passado, de experiências
fortes, é silenciado no romance, pois, assim como a história pregressa de Lola,
os leitores do diário podem apenas recolher parcas informações sobre sua
atuação e o que ocorreu com o marido, morto na época. Ferida sensível da
história brasileira, o silêncio durante a atuação clandestina não pôde ser se-
guido da narrativa orgulhosa sobre o fim do regime militar, o que ocorre até
mesmo no âmbito familiar, visto que a filha de Alice a culpa por ter crescido
sem pai e irmãos, como se isso fosse uma decisão simples para a mãe, que teve
sua família violentada.
O som de sua fala, com o castelhano misturado ao português, é respon-
sável por ativar as memórias que Alice tem da ditadura. Mas é o olhar do ar-
gentino que é reconhecido como o de um dos tantos homens que fugiam das
violências do Estado e que ficaram a seus cuidados – “um olhar que eu conhe-
cia, ao mesmo tempo meio louco e muito terno, como o de tantos daqueles
companheiros de Aldenor refugiados na nossa casa, talvez nos próprios olhos
de Aldenor” (REZENDE, 2014, p. 223).
Arturo havia decorado diversas poesias e queria ser poeta, assunto que
o fazia se reencontrar com suas memórias e viajar de volta para a Argentina:
“Arturo me esqueceu, partiu dali sem sair do lugar, pôs-se a desfiar versos,
[…] e entendi que já não os possuía íntegros, o portunhol, a cada frase re-
inventado, tinha se tornado seu único idioma. Levantei-me e fugi, pra não
chorar alto, pra não despertar Arturo” (REZENDE, 2014, p. 228). Essa perda
da própria língua e esse exílio forçado e sem possibilidade de retorno abalam
Alice: “chorei todas as mágoas de Arturo, de mistura com todas as demais
dores que me vinham contaminando naqueles dias, afogando as minhas”
(REZENDE, 2014, p. 228). Arturo se torna uma espécie de segunda missão

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para a narradora, que quer ajudá-lo a “desmisturar os idiomas” com uma edi-
ção bilíngue de Borges, que encontrara no lixo. No entanto, ele se nega até
mesmo a segurar o volume. Mais que a língua, a amiga deseja devolvê-lo à
sua família, mas a reação a surpreende, pois, tomado de medo, nega-se a até
mesmo a ouvir a amiga, que vê “a loucura expulsando qualquer ternura dos
olhos arregalados”; dias depois Alice o reencontra e reavalia a situação: não
“se lembrava mais e nem quero que se lembre, quero que siga tranquilo, enca-
sulado em seus poemas desconchavados” (REZENDE, 2014, p. 237).
A violência das perseguições políticas que provocaram o trauma do
amigo parece determinar que esse desterrado não volte mais, permanecen-
do como um filho perdido de alguém. A poesia (memória e prática poética)
funciona como uma espécie de casulo de proteção, o que o aproxima de Alice,
mas, se o casulo é o entrelugar de transformação, tem a aparência de imobilis-
mo para quem observa de fora, por isso esse desejo de Alice de ajudá-lo para
o retorno.
Muitas vezes a saída simbólica para o imobilismo é a possibilidade de
ser algo diferente de si, com a garantia de liberdade da mobilidade das asas
dos pássaros, espécie de sonho social compartilhado, como vemos no diário
de Carolina: “tive sonhos agitados. Eu estava tão nervosa que se eu tivesse
azas eu voaria para o deserto ou para o sertão. Tem hora que eu revolto co-
migo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos” (JESUS, 1960,
p. 78) e, ainda, “tem dia que eu invejo a vida das aves. Eu ando tão nervosa
que estou com medo de ficar louca” (JESUS, 1960, p. 104). A vida das aves,
invejada pela capacidade de deslocamento para lugares de calma, silêncio e,
talvez, até mesmo de solidão, não significa liberdade total quando parte des-
ses animais é obrigada a migrar, fissura dessa metáfora explorada por Maria
Valéria Rezende:

Andar com Lola dava-me direitos de cidadania pelas ruas, assimila-


vam-me como uma a mais entre eles, e eram tantos!, aves migrantes de
todas as espécies, perdidas do bando, cansadas ou extraviadas a meio
do caminho, esperando sob sol, chuva e sereno a volta do bando que
as resgate?, recusam o zoológico, não se deixam aliciar pela comida fá-
cil oferecida, medo de não ver a revoada ou de não ser encontradas
quando o bando passar de volta?, preferem o ar livre, mirando o céu, à
procura dos seus, ou, desde o chão, deixando passar os bandos rasteiros
nos quais não se reconhecem. (REZENDE, 2014, p. 218).

Perder-se durante a migração, aguardando pelo resgate de seus seme-


lhantes, limita esse símbolo da liberdade ao estado de espera, de suspensão;

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não nas alturas, mas ao rés do chão, misturando-se a outros tantos que estão
na mesma condição de perdidos, cansados ou até mesmo extraviados. No pro-
jeto sem método de Alice, que deixa sua vida segura para viver em bandos de
pássaros que só miram o céu, mas não têm rumo para seguirem caminho, há
um desejo de ouvir a narrativa do outro e ver a expressão de suas experiên-
cias: “andava só pra não voltar, eu, rebelde peão de xadrez a correr atrás de um
peão de obra imaginário, a ouvir histórias de gente quase reduzida a corpo e
dor, quase” (REZENDE, 2014, p. 218). Não se trata, como já ficou evidente,
de um heroísmo de alguém que dá as costas definitivamente ao seu lugar na
camada média da sociedade, pois, assim como a protagonista de Carroll, Alice
retorna para a vida que permite inclusive o tempo de recolhimento e conforto
para escrever. Porém, de fato há um entrelugar que projeta essa performance
de Alice: mulher aposentada, portanto gozando a sobrevivência ao mundo do
trabalho, é reconduzida ao lugar de sujeitada (“avó profissional”) e ao aban-
dono em razão da idade; a aposentadoria não é vista então como coroamento
social e sabedoria, mas como índice de improdutividade.

Experiência e pensamento de viagem

Em Quarenta dias, vemos se desenrolar uma história de aprendizado


que se dá com o enfrentamento de um outro tipo de experiência do real –
“Lola, Arturo, foram só os primeiros, depois vieram tantos outros! Fui apren-
dendo, ficando mais e mais igual a eles” (REZENDE, 2014, p. 237). Narrativa
de formação, aposta-se na negação (ainda que temporária) de si e na poten-
cialidade do encontro entre essa mulher desterrada, que não quer se sujeitar
ao papel de avó profissional em uma casa sem identidade, e os sujeitos invisi-
bilizados que percorrem uma cidade misteriosa para a migrante recém-che-
gada. Nesse encontro com a cidade, Alice tem uma experiência identitária
e “cria uma narrativa de experimentação de outra vida social” (RESENDE;
DAVID, 2016, p. 20).
A vida na “sala de visitas” da cidade, com seus “lustres de cristais, seus
tapetes de veludo, almofadas de cetim”, entrevista por Carolina Maria de Jesus,
é também miséria. Cercada de bens de consumo, a subjetividade se encontra
atacada pelo excesso de informações, pela despersonalização das relações e
pela aceleração do tempo, por exemplo, para atuar em prol de uma sociabi-
lidade produtiva. A vida nas metrópoles exige, portanto, uma sensibilidade e
uma vida psíquica capazes de adequação à heterogeneidade de estímulos e aos
revezes da velocidade. Qualquer desvio poderá ser empurrado, por exemplo,
para o lugar da loucura.

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No centro dessa discussão está a noção de experiência, trabalhada em
diversos textos de Walter Benjamin (1987; 1991; 2000; 2012). A experiência
autêntica, mais coletiva, partilhada, transmissível e durável – em razão de sua
transmissibilidade – está ligada a uma noção de memória, pois a experiência
opera a ligação entre a memória individual e a memória coletiva. A experiên-
cia individual, de caráter mais imediato, desvinculada de um passado coletivo
(portanto, não narrável), fundamenta o encolhimento da experiência na mo-
dernidade, sendo, assim, uma redução à condição de vivência momentânea.
Em síntese, essa experiência sôfrega do presente, a vivência, que se dá sobre-
tudo de forma individual e solitária, se opõe à noção de experiência, que é
comunicável e coletiva.
Se a modernidade nos faz ficar pobres em experiências comunicáveis,
resta-nos confessar que “essa pobreza não é apenas pobreza de experiências
privadas, mas em experiências da humanidade em geral” (BENJAMIN, 2012,
p. 125). Mas o que fazer com essa avaliação? Desistir da possibilidade de expe-
rienciar a vida de outra forma? Absolutamente. Benjamin chama atenção para
o entendimento do caráter histórico e da necessidade de o narrador agir como
um trapeiro: é a partir dos restos, dos vestígios, que poderemos ter a constru-
ção de algo com potência para enfrentar essa violência do cotidiano moderno.
Conforme já apontado, vemos a narradora do romance partir da situa-
ção do conforto material acompanhado do mal-estar social diante do aban-
dono, sendo a solidariedade com uma amiga o que a mobiliza, descobrindo
outra forma de vida em fissuras do tecido social que desconhecia, recons-
truindo a experiência a partir da destruição e do vestígio. Estar sozinha no
apartamento por sete dias depois da notícia da mudança de planos da filha,
espécie de túmulo de sua morte simbólica, é o que prepara Alice para as ruas.
Nas ruas, Alice se abastece das narrativas dos outros, pois, ainda que já seja
uma mulher idosa, sente vergonha de ter renunciado à sua autonomia em
nome de uma relação que se mostra frágil, que nega uma possível sabedoria
acumulada. Em retrospectiva, seu diário mostra uma série de indícios de que
não havia esse respeito à condição social de saber associado à sua idade – a fi-
lha chega a avaliar que a vida da mãe já acabou, então poderia ceder e ajudá-la
a construir sua própria família.
Alice ingressa nessa nova realidade garantindo (por meio da compra)
itens essenciais para viver nas ruas: roupas íntimas, uma pequena toalha e
livros. Depois passa a recolher no lixo alguns itens essenciais, como um gran-
de plástico para proteger-se do frio. Porém, a ação que mais a aproxima de
Carolina quanto ao recolhimento de coisas das ruas diz respeito ao hábito de

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recolher citações em sebos. Recolhe, ao mesmo tempo, como o colecionador
e o trapeiro benjaminiano, resíduos de enunciados que abrem fissuras na rea-
lidade circundante.
Importante notar ainda uma diferença significativa entre os dois diá-
rios: Carolina impõe a regra do gênero quanto à notação marcada no tempo,
com entradas datadas. No diário ficcional, Alice não evidencia os dias, sendo
possível saber qual a passagem de tempo de uma entrada para outra por ou-
tros marcadores. Uma das escolhas formais para isso nesse diário de retorno
é a citação em cada uma das entradas, totalizando 33 autores citados. Essas
epígrafes teriam sido recolhidas na quarentena nas ruas, em passeios a sebos,
recolhidos de forma escamoteada em cópias em pedaços de papel ou guarda-
napos roubados, porque a narradora reconhece nessa literatura um saber so-
bre si: “dei com um trecho que falava de mim naquele momento” (REZENDE,
2014, p. 176).
A intimidade com a literatura, espécie de oráculo, resulta na coleta de
trechos significativos sobre a escrita de si, a relação com a memória e a expe-
riência urbana. Incluir essas citações, recolhidas em pedaços de papel que de-
veriam ser descartados, é uma forma de fazer falar uma coletividade. Todavia,
essa incorporação se figura por meio dos fragmentos, ou seja, na impossibi-
lidade de fazer de fato o outro falar, a narradora coleciona o discurso desses
diferentes sujeitos que, por sua vez, também tentaram fazer falar as cidades,
seus habitantes e até mesmo seus silêncios.
O recolhimento por furto lembra a proposição de Benjamin sobre a
necessidade de sermos bárbaros, ou melhor, da proposição de uma nova ideia,
positiva, de barbárie que promova rupturas com a estrutura social:

Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o


impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com
pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a
esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens impla-
cáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. (BENJAMIN, 2012,
p. 125).

Pobreza da experiência é ainda experiência; ou seja, é possível partir


desse pouco, encontrar lacunas e transformá-las em potência, como Alice te-
ria feito ao abandonar a vida de segurança na cidade de alvenaria para viver
nas ruas, e mesmo ao buscar em diversos livros (lidos por meio de uma série
de subterfúgios) o que teria sido escrito sobre sua experiência complexa de
abandono de si com a finalidade de autodescoberta.

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O indivíduo isolado e solitário da experiência urbana moderna é des-
possuído das experiências compartilhadas que permitem a rememoração no
sentido benjaminiano. Para Benjamin, a possibilidade de rememoração esta-
ria nas imagens do burguês (colecionador) e do trapeiro (poeta). Sem poder
deixar seus vestígios na multidão, o burguês acumula no lar uma série de ob-
jetos de consumo para deixar algum rastro; o trapeiro, por sua vez, torna-se
um herói nas metrópoles: é visto como a escória social, mas é ele quem reúne
o que é rejeitado pela cidade, atividade constante diante da enormidade de
objetos que precisam ser descartados para impulsionar nova produção e mais
consumo: trapeiro ou poeta, o lixo diz respeito a ambos, em atividades feitas
enquanto a burguesia dorme (BENJAMIN, 2000). Alice é trapeira, ao recolher
da cidade o descartado – memórias dos moradores de rua e citações em livros
preteridos em sebos –, e colecionadora, pela lógica burguesa, ao incorporar
esses fragmentos como epígrafes em cada entrada de sua narrativa privada.
Recorrendo à discursividade alheia para encabeçar seu registro de si, as
mais de trinta citações criam um percurso a mais no romance, como vemos
no poema de Mário de Andrade, de Lira paulistana:

Esse homem que vai sozinho


Por estas praças, por estas ruas,
Tem consigo um segredo enorme,
É um homem.

Essa mulher igual às outras


Por estas ruas, por estas praças,
Traz uma surpresa cruel.
É uma mulher.

A mulher encontra o homem,


Fazem ar de riso, e trocam de mão,
A surpresa e o segredo aumentam.
Violentos.

Mas a sombra do insofrido


Guarda o mistério na escuridão.
A morte ronda com sua foice.
Em verdade, é noite. (ANDRADE, 1946, p. 16).

Note-se que no romance temos apenas a primeira estrofe, mas o poema


inteiro é a síntese do encontro de Alice e Arturo. A epígrafe, justamente na
parte em que esse personagem é apresentado, aponta para a humanidade e a

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solidão profunda de Arturo, mas esconde o tema maior do poema, que é o en-
contro entre duas solidões, encontro econômico de gestos que faz a surpresa e
o segredo aumentarem violentamente, em uma noite de porvires misteriosos
rondados pela morte.
O fragmento, nesse caso, funciona como uma espécie de pista, talvez
um aceno oracular da lagarta de Aventuras de Alice no país das maravilhas
(2002). Em outro momento, temos uma citação de um conto de Alice Munro:
“Porém ela sabia agora que havia épocas em que o feio e o bonito serviam exa-
tamente para o mesmo propósito, quando qualquer coisa para a qual se olha é
apenas um pino onde pendurar as sensações descontroladas de seu corpo e os
bocados e pedaços de sua mente” (MUNRO, 2013 apud REZENDE, 2014, p.
213). Vemos aí a relação com os objetos descrita por Benjamin, os quais, es-
pécie de totens da valoração na vida moderna, carregam um modo de operar
na relação eu-mundo.
Aceitando ainda mais o convite às charadas, cabe comentar outros três
momentos a fim de retornarmos ao tema da viagem e da imigração. O escri-
tor André Ricardo Aguiar está presente no romance com a seguinte epígrafe:
“Puxar ruas pelos olhos, ver vidas e dobraduras, esquinas e vias, altos e bai-
xos. Gosto da ideia de estar com a vestimenta interna de uma cidade noutra
cidade. Estar nas beiradas, por assim dizer. E estar rente a dar um passo pra o
improviso” (AGUIAR, s/a, apud REZENDE, 2014, p. 65). Esse olhar que anali-
sa e busca entender o espaço, mas esconde a presença interna de outra cidade,
deixando o sujeito sempre na margem que provoca a ação súbita, acompanha
o turista e mesmo o migrante que tenta reconstruir sua vida em espaço es-
tranho. O olhar apreensivo de quem se desloca é percebido em um poema
de Lêdo Ivo, “Os pobres na estação rodoviária”, recortado e apresentado em
dois momentos do diário. O eu-lírico nesse caso assume o lugar de quem vê
o pobre viajando e não compreende sua angústia, como mostra a abertura do
poema incluído no romance de Maria Valéria Rezende: “Os pobres viajam. /
Na estação rodoviária / eles alteiam os pescoços como gansos para olhar / os
letreiros dos ônibus. E seus olhares são / de quem teme perder alguma coisa”.
O poema é violento na exposição do mal-estar de quem olha e de quem revida
o olhar: os pobres temem perder coisas e a própria viagem; os que dormem
nos bancos da rodoviária não sonham e até o pesadelo é um privilégio; nas
filas, seu ar grave “une temor, impaciência e submissão”, espantados por não
saberem “o caminho do salão da vida” (IVO, 2004, p. 527). Toda essa cena da
viagem serve para concluir que os “pobres são grotescos! E como os seus odo-
res / nos incomodam mesmo à distância!” (IVO, 2004, p. 528), inconvenientes

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na rodoviária, mas, sobretudo, incompetentes para vestir-se e morar (“não
têm noção do conforto / embora alguns deles possuam até televisão”). O poe-
ma constrói um percurso que desemboca na experiência repulsiva da morte
e seu encerramento é a segunda passagem citada em Quarenta dias: “Na ver-
dade os pobres não sabem nem morrer. / (Têm quase sempre uma morte feia
e deselegante.) / E em qualquer lugar do mundo eles incomodam, / viajantes
importunos que ocupam os nossos lugares mesmo quando estamos / sentados
e eles viajam de pé” (IVO, 2004, p. 529). A presença incômoda do pobre o
faz ser associado ao viajante inoportuno – é a presença de Carolina Maria de
Jesus, vista como elemento externo que viaja pela cidade. Mais que o pobre, o
migrante pobre é aquele que deveria ser escondido pela cidade e, na impossi-
bilidade de escondê-los, é útil invisibilizá-los.
Alice figura a narradora viajante descrita por Benjamin (2012) e suas
duas viagens colocam em cena a noção de vivência e de experiência: a mu-
dança da Paraíba para o Rio Grande do Sul e a que decide fazer para reformar
sua sensibilidade rumo à Porto Alegre das bordas, sinalizando para o valor da
errância em oposição à ideia de enraizamento.
A imagem de rizoma criada por Deleuze e Guattari (1995) em contraste
com a de raiz vai fundamentar a ideia de poética da relação do escritor mar-
tinicano Édouard Glissant (2011), espécie de caminho epistemológico capaz
de promover alguma compreensão de estruturas simbólicas dos sujeitos as-
sujeitados ao processo de colonização. A negação da raiz, única, fundamento
da sedentariedade, ocorre em favor de uma rede de enraizamentos múltiplos
do rizoma, proporcionadora do nomadismo enquanto possibilidade de liber-
tação do ser.
No entanto, percebe Glissant (2011), nem todo nomadismo ocorre
por desejo de liberdade, mas por contingências sociais. O modelo invasor do
período colonial fez com que as nações que se libertassem do colonialismo
apresentassem a tendência a se formarem em torno da ideia de poder en-
quanto “pulsão totalitária da raiz única, e não de uma relação fundadora com
o Outro. O pensamento cultural de si era dual, opondo o cidadão ao bárbaro”
(GLISSANT, 2011, p. 24). Os invasores exportam sua identidade como valor,
obrigando os conquistados a saírem em busca de uma identidade por oposi-
ção6, o que configura um limite trágico nessa busca de si, já que a “dualidade
do pensamento de si (há o cidadão, e há o estrangeiro) repercute-se na ideia

6  “Se no Ocidente a nação é antes de mais um ‘contrário’, para os povos colonizados a iden-
tidade será, em primeiro lugar um ‘oposto a’, isto é, em princípio, uma limitação” (GLISSANT,
2011, p. 22).

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que se tem do Outro (há o visitante e o visitado; aquele que parte e aquele que
permanece; o conquistador e a conquista)” (GLISSANT, 2011, p. 27).
Essa dualidade está no que Glissant chama de “pensamento do territó-
rio e de si”, estágio anterior ao do “pensamento da viagem e do outro”, quando
nos propomos a reconhecer as diferenças, compreendendo a multiplicidade
– mas há ainda aí o cultivo de “subtis hierarquias do universal generalizante”.
Para entender essa crítica, é importante voltar a outro momento da teoria da
relação de Glissant. Para ele, toda vez que tentamos compreender o outro,
estamos conformando-o a certas estruturas e, portanto, incluindo-o em uma
rede hierárquica de representações. Por isso Glissant invoca o direito à opaci-
dade, ou seja, de um movimento intelectual que admita a impossibilidade de
compreensão do Outro.
Por fim, o passo seguinte a essa compreensão do “pensamento da via-
gem” está no “pensamento da errância e da totalidade”, que é relacional e
dialético. O errante é aquele que mergulha na opacidade do mundo ao qual
se aproxima – “A generalização é totalitária: elege, do mundo, um painel de
ideias ou de factos que destaca e que tenta impor, fazendo viajar os modelos.
O pensamento da errância concebe a totalidade, mas renuncia de bom grado
à pretensão de a comandar ou de a possuir” (GLISSANT, 2011, p. 29), afastan-
do-o do totalitário. Assim, o desenraizamento pode contribuir para a identi-
dade, tornando o exílio proveitoso, se for vivido como uma procura do Outro:

A errância não provém de uma renúncia nem de uma frustração em


relação a uma situação de origem que se tivesse deteriorado (desterri-
torialização) – não é um ato de recusa, nem uma pulsão incontrolável
de abandono. Por vezes, é abordando os problemas do outro que nos
encontramos a nós mesmos. (GLISSANT, 2011, p. 27).

Essa tríplice exploração da noção de viagem é interessante para reto-


marmos os projetos de Quarto de despejo e Quarenta dias. Carolina Maria de
Jesus está engajada em seu diário no descobrimento de si em relação a um ter-
ritório; já Alice, personagem narradora do romance, está presa no pensamen-
to de viagem, propondo o conhecimento do outro. O pensamento da errância,
que mostra que a identidade não está só na raiz, mas na relação, mergulhado
na opacidade do mundo, parece estar no horizonte do projeto de Alice, que
se desabriga para a procura do outro, mas não renuncia a uma perspectiva de
“compreensão” do outro.
Seu gesto de escrita é ficção bem realizada do retorno ao íntimo e
pessoal que expulsa o outro para as “ruas de papel”. Assim como a Alice de

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Lewis Carroll, que entra na toca do coelho e descobre outro mundo, a Alice de
Quarenta dias encontra na favela e nas ruas a possibilidade de ser maior, ser
menor, ser invisível, ser uma outra pessoa.

Referências

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BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 2012.
BENJAMIN, W. Rua de mão Única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres; José Carlos
Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução: José
Carlos Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense,
1991.
BENJAMIN, W. A modernidade e os modernos. Tradução: Heindrun Krieger Mendes
da Silva; Arlete Brito; Tânia Jatobá. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
CARROLL, L. Alice comentada: aventuras de Alice no país das maravilhas & Através
do Espelho. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge
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DALCASTAGNÉ, R. Sombras da cidade: o espaço na narrativa brasileira contempo-
rânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 21, p. 33–53,
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Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: 34, 1995.
GLISSANT, E. Poética da relação. Tradução: Manuela Mendonça. Lisboa: Sextante,
2011.
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IVO, L. Poesia Completa: 1940-2004. Rio de Janeiro: TopBook, 2004.
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REZENDE, M. V. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
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Entre o deslocamento e a imobilidade: as mulheres
exiladas de Com armas sonolentas, de Carola Saavedra

Gínia Maria Gomes1

Estar em um país estrangeiro e não falar a língua local é estar


alheio e encapsulado no espaço, no tempo, no corpo e na alma.
Noemi Jaffe

Constato que se não tenho um espaço meu do lado de fora, meus


pensamentos não me pertencem.
Paloma Vidal

Preâmbulo

Com armas sonolentas (2018) é o mais recente romance de Carola


Saavedra. Com vários títulos publicados2, ela já teve reconhecimento por par-
te da crítica, o que demonstram os prêmios literários, sejam aqueles em que
se sagrou vencedora, sejam aqueles nos quais foi finalista. Embora nascida no
Chile, de onde veio aos três anos, ela se considera brasileira, sendo o Rio de
Janeiro o seu lugar de pertencimento.
Com armas sonolentas é objeto deste ensaio. Inicia-se pelo título. Na
contracapa, Heloisa Buarque de Holanda mostra que esse vem de um verso de
“Primero Sueño”, de sor Juana Inés de la Cruz, poeta emblemática, cujos poe-
mas apresentam o sonho de liberdade. A uma rápida leitura, logo percebe-se
que os sonhos impulsionam cada uma das personagens do romance: Anna, o
de tornar-se uma grande atriz; Maike, o de encontrar as origens; e a avó, o de

1  Professora titular de Literatura Brasileira no Instituto de Letras da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul. Realizou doutorado em Letras pelo PPG-Letras da
UFRGS e estágio pós-doutoral pela Paris III – Sorbonne Nouvelle (2009 e 2019-2020).
E-mail: [email protected].
2  A carreira da escritora tem início em 2005, com a publicação do livro de contos Do lado
de fora. A essa estreia logo seguem-se vários romances: Toda terça (2007), Flores azuis (2008),
Paisagem com dromedário (2010), O inventário das coisas ausentes (2014), Com armas sonolentas
(2018).

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ser resgatada da vida serviçal, limitadora, por um amor. Essa é uma possibi-
lidade de interpretar-se o título, tendo por base os versos da poeta. É muito
importante também se considerar o termo “armas”. E aqui se pode olhar sob
uma dupla abordagem: as armas concretas e as armas simbólicas. No que con-
cerne à primeira, são mencionados uma faca e um revólver. O termo também
pode ser visto em uma perspectiva simbólica e, nesse sentido, representaria a
dominação. Uma dominação a que as três mulheres são submetidas, seja ela
mais sutil ou mais explícita.
Um outro dado em relação ao título é a sua complementação: “um ro-
mance de formação”3. Essa parte aparece apenas na segunda página interna.
Em entrevista, Carola afirma que, ao constatar a quase inexistência de roman-
ces com personagens femininas que se incluíssem nessa linhagem, enquan-
to proliferam aqueles com personagens masculinas, ela decidiu escrever um
protagonizado por mulheres. As três personagens se enquadram no gênero:
iniciam as suas trajetórias muito jovens – Anna e Maike por volta dos dezoito
anos, e a avó com catorze –, e amadurecem. É justamente esse amadureci-
mento que lhes dá condições de um olhar crítico ao qual submetem o pas-
sado, um olhar destituído da ingenuidade com que iniciaram as respectivas
caminhadas. Esse componente do título, embora de fora da capa, não é menos
importante que o outro.
Sobre o romance, ele está dividido em duas partes: “O lado de fora”
e “O lado de dentro”. Esses títulos têm relação com a fita de Moebius, que
perpassa o romance, o que é comentado em vários momentos. É uma fita
unindo as pontas; o lado de fora passa a ser o lado de dentro. Em “O lado
de fora”, as personagens ou estão em outro lugar, onde são estrangeiras, ou,
não tendo efetuado um deslocamento geográfico, igualmente não se sentem
integradas ao lugar de origem. É nessa parte que elas vivenciam a “condição
exílica” (NOUSS, 2015, p. 09), seja pelo deslocamento geográfico – Anna e a
avó –, seja pelo desencontro consigo mesma e o desajuste em relação aos pais
– caso de Maike.
Em “O lado de dentro”, as personagens retornam à terra de origem:
Anna está de volta ao país e, como artista consagrada, se apresenta em um
teatro no centro do Rio de Janeiro; Maike viaja para o Brasil em busca das
origens, mobilizada pelo amigo Max, que lhe afirma que é nesse país que suas
raízes se encontram; quanto à avó, ela foge da clínica em que mora e dirige-se

3  O ensaio “Deslocamento, abandono e (não) pertencimento no romance Com armas sono-


lentas: um romance de formação, de Carola Saavedra”, escrito por Cristiane da Silva Alves (2020),
aborda essa questão.

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ao teatro no qual a filha fará a estreia, pois, em suas fantasias/alienação, é pos-
sível fazer o retorno para o local de onde saíram os ancestrais.
Este ensaio tem como proposta examinar a condição de exílio em que
vivem essas mulheres. Embora a situação de cada uma seja diferente – a avó
é obrigada pela mãe a migrar, Anna faz o deslocamento movida pelo desejo
de realizar-se como atriz, e Maike, em contrapartida, permanece no mesmo
lugar – as três sentem-se exiladas e sofrem devido a essa condição.

Anna, o sentimento de estraneidade

A história de Anna tem início quando ela se encontra na Alemanha, so-


frendo uma solidão devastadora. Nesse momento, as expectativas de tornar-se
atriz, que a mobilizaram ao deslocamento, já se frustraram, porque o diretor
famoso com quem se casou não tem planos para ela em seus projetos. E como
ápice de seus desencontros – ela engravida, gravidez indesejada – que ela se
vê como fardo, visto que acentuaria ainda mais o seu enclausuramento, tor-
nando remota a possibilidade de romper esse circuito. A sua história mantém
um distanciamento com os fatos narrados, o que permite um olhar crítico, às
vezes de uma ironia corrosiva, em relação ao seu passado. O narrador, colado
à personagem, reproduz algumas de suas falas.
No Brasil, o sonho de ser atriz é muito forte, porém, a sua carreira não
deslancha, mesmo depois de ter sido elogiada por um crítico, que lhe proje-
tara um “futuro brilhante” por sua atuação: “É verdade que havia feito uma
ponta num filme premiado, era a sua maior façanha, um crítico elogiara a sua
beleza incomum e a pungência de sua atuação, profetizando um futuro bri-
lhante pela frente” (SAAVEDRA, 2018, p. 13-14). Ao conhecer Heiner, um di-
retor de cinema famoso, vê nele a oportunidade de finalmente tornar-se atriz.
Por isso não hesita em aceitar o convite para morar com ele na Alemanha.
Parecia-lhe que sua grande chance havia chegado e que a sorte lhe sorrira. As
observações dos amigos refletem sua própria projeção: “Tirou a sorte gran-
de, diziam ao saber do seu novo destino, um verdadeiro conto de fadas, não
diferindo muito do que ela própria imaginava” (SAAVEDRA, 2018, p. 14).
Ele sendo “um dos mais importantes cineastas de sua época […]”, ela imagi-
na que um futuro “muito melhor do que os seus mais extravagantes sonhos”
(SAAVEDRA, 2018, p. 27) estivesse se abrindo para ela. Um futuro em que ela
se transformaria em atriz, a musa do aclamado cineasta. Esse momento é as-
sim sintetizado: “Ir embora era como ter uma segunda chance” (SAAVEDRA,
2018, p. 27).

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Os seus sonhos logo se frustram. Essa frustração já é apresentada nos
parágrafos iniciais do romance em que uma Anna mais madura, muito dis-
tante da jovem que, iludida, atravessou o Atlântico na expectativa de trilhar o
caminho da fama, faz avaliações críticas àquela jovem que se deixou enganar
por expectativas que nunca se confirmaram. Não se sabe quando isso acon-
tece, em que época de vida sua história começa a ser contada, mas há uma
distância temporal entre esses dois momentos. As lembranças de sua chegada,
quando ainda no aeroporto, da sua ansiedade, e, principalmente, do conforto
por estar ao lado de um homem como Heiner, “um deus nórdico”, logo são
contrapostas a sua avaliação cáustica desse olhar ingênuo da jovem que ela
fora um dia: “Heiner, um deus, como pôde ser tão ridícula, se perguntaria
muitas vezes nos anos que se seguiriam, mas naquela época ela era muito
jovem e ainda não havia aprendido a ver por trás dos traiçoeiros ornamentos
de um homem” (SAAVEDRA, 2018, p. 14).
A primeira imagem do país estrangeiro é a do clima inóspito: “e ela
sentiu o ar seco e gélido atingindo o seu rosto como uma bofetada. Então
era aquilo estar em outro país” (SAAVEDRA, 2018, p. 29). Essa “bofetada”
que a atinge prefigura a sua recepção no novo lugar, onde ela não realizará os
sonhos acalentados e nem receberá a esperada oportunidade. A ruptura de
suas expectativas se inicia logo à chegada. Heiner a leva para um apartamento
situado em uma casa fora do centro de uma cidade pequena. Ao entrar, en-
cantada com o que vê, logo projeta uma vida social intensa: “O apartamento
parecia cenário de um filme, imaginou-o cheio de amigos, festas, recepções”
(SAAVEDRA, 2018, p. 32). Ao contrário, esse apartamento não será palco de
nenhuma festa. Nele, ela vive absolutamente sozinha, porque “Heiner viajava
praticamente o tempo todo, e ela passava os seus dias entre as aulas na univer-
sidade e a espera de um telefonema ou uma mensagem do famoso e ocupado
cineasta com quem se casara” (SAAVEDRA, 2018, p. 36). Nele, ela fica à espe-
ra, à disposição do marido famoso.
A situação não mudava quando das visitas de Heiner. Permaneciam em
casa e as conversas que entreteciam não eram nada satisfatórias para Anna,
porque ao marido não agradava falar sobre o filme que estava realizando, fi-
cando “mal-humorado” quando ela trazia o assunto – “respondia com monos-
sílabos” (SAAVEDRA, 2018, p. 38). Por isso ela parou de insistir, e as conversas
passaram a se restringir “aos seus pequenos progressos nas aulas de alemão e
questões do dia a dia: a casa, o jardim, o supermercado” (SAAVEDRA, 2018,
p. 38).

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E o sonho de ser sua musa, de definitivamente transformar-se em atriz,
não se concretiza. Ao demandar-lhe um papel, ele apõe a barreira da língua,
argumentando que essa situação mudará tão logo ela a domine: “Heiner dizia
que, assim que ela dominasse minimamente o idioma, ele poderia incluí-la
em seus projetos e passariam a viajar juntos, mas por que você não inclui uma
personagem estrangeira no seu filme da Amazônia?” (SAAVEDRA, 2018, p.
36) – demanda não é atendida.
Não ter o domínio da língua é fundamental para sua “condição exí-
lica”. Não falar o alemão constitui-se óbice para qualquer comunicação. Ela
tem consciência do que isso significa logo após o primeiro contato com os
vizinhos, quando Heiner faz a mediação entre eles: “E, pela primeira vez, ela
se deu conta do que significava não falar alemão. E foi tomada pelo mais pro-
fundo terror” (SAAVEDRA, 2018, p. 31). Não entender a língua é uma ex-
periência muito desconfortável. Isso é o que lembra Edward Said (2004, p.
262), ao relatar um episódio vivido no Líbano: estava com alguns jovens que
“trocaram brincadeiras e piadas num dialeto árabe que era claramente a sua
língua, mas não era a minha.” O desconhecimento desse dialeto é fundamen-
tal para sua “sensação de isolamento” (SAID, 2004, p. 262), que logo se impôs.
Certamente esse é o mesmo desconforto vivenciado por Anna.
Sem falar a língua, que restringe sua sociabilidade, com um marido au-
sente, que apenas a visita e não acede ao seu desejo de acompanhá-lo, e sem
atuar, porque esse diretor famoso não lhe dá oportunidade, o sentimento exí-
lico de Anna se expõe em toda sua crueza. Nela, pode-se constatar a “fratura
do ser”, sobre a qual reflete Said (2003, p. 46) em outro texto: “O exílio nos
compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele
é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e
seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada”. Embora
a personagem seja, stricto sensu, uma expatriada, pois ela realizou volunta-
riamente o deslocamento (BURKE, 2017, p. 113), ela sofre nesse outro lugar,
onde sequer consegue se reconhecer.
As transformações que percebe em si são sintomáticas dessa conjun-
tura: “Anna se olhava no espelho e não se reconhecia, a Alemanha, o clima,
ou o que quer que fosse que havia por lá, a transformara em outra pessoa.
As roupas de inverno que insistiam em cobri-la até o pescoço davam ao seu
corpo um acanhamento insuspeito” (SAAVEDRA, 2028, p. 37). O exemplo
aponta para a experiência do “ser descontínuo”, a que se refere Said (2003, p.
50): “O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado
de ser descontínuo.” Nem seus sonhos, que antes a impeliram à travessia do

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Atlântico, conseguem mobilizá-la – ao contrário, inclusive colocam em xe-
que o seu potencial artístico: “talvez ela não fosse tão incrível assim, talvez
Heiner, iludido pelo entusiasmo solar da cidade maravilhosa, houvesse se en-
ganado, e só percebido o engano ao olhar para ela, ali, em Mainz-Gosenheim”
(SAAVEDRA, 2018, p. 37).
As frustrações dos sonhos de uma vida de glamour e a falta de perspec-
tiva “naquele fim do mundo” (SAAVEDRA, 2018, p. 38) revelam-se no corpo,
nas “dores de cabeça” que a obrigam a uma consulta médica:

No início nem percebia que se tratava de raiva, ódio até, sentia ape-
nas um incômodo, uma inquietação, depois dores de cabeça, cada vez
piores, que a faziam parar num hospital, soro, descanso, enxaqueca,
diagnosticara o médico, prescrevendo-lhe um tratamento para evitá-la,
analgésicos fortíssimos que a deixavam com sono e a sensação ainda
mais forte de estar em outro lugar.” (SAAVEDRA, 2018, p. 37-38).

O término do trecho é eloquente, não deixando dúvidas quanto a sua


condição de estrangeira, mas sobretudo do sentimento de estraneidade que a
avassala. As circunstâncias exteriores não se modificam, por isso o estado de
Anna agrava-se ainda mais. Pode-se observar essa situação em dois momen-
tos: em uma reunião na casa de um colega do curso de alemão (SAAVEDRA,
2018, p. 39-44) e em uma viagem a Paris (SAAVEDRA, 2018, p. 45-47).
Na reunião, Anna percebe-se diferente, uma “versão” (SAAVEDRA,
2018, p. 40) piorada de si mesma, porque os aspectos considerados negati-
vos, como sua timidez e insegurança, e que até então ela conseguira esconder,
nesse momento se impõem. Circulando entre os convidados, ela ouve o nome
do marido: uma jovem o elogia e também menciona que “ele tivera um caso
com uma brasileira” (SAAVEDRA, 2018, p. 40). Ouvir que seu relacionamen-
to é visto como um caso já acontecido provoca-lhe um choque, uma reação
no corpo que não é capaz de disfarçar. É de tal ordem que é percebida por
uma das jovens que conversavam, a qual lhe pergunta: “você está se sentindo
bem?” (SAAVEDRA, 2018, p. 40). Diante do que escuta, Anna faz uma re-
flexão cáustica sobre sua condição: “como se as palavras da garota fossem a
prova daquilo que ela havia muito suspeitava, mas se recusava a admitir, ela,
Anna Mariani, não existia, desaparecera ao cruzar o Atlântico” (SAAVEDRA,
2018, p. 40). Essa consciência é muito amarga e contundente, porque, além de
estar vivendo em quase completo isolamento (a reunião fora uma exceção),
“ela não existia” para o outro. Ainda nessa reunião, a conversa com Jennifer,
proprietária de uma agência de casamento, a deixa impactada, fazendo aflorar
“uma tristeza difusa, uma névoa cobrindo-lhe os olhos” (SAAVEDRA, 2018,

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p. 43). No entanto, ela está consciente de que essa conversa não é a causa,
mas é responsável por fazer irromper aquilo que já estava nela latente. Nesse
momento, é tomada pelo “desânimo” e pela “melancolia” (SAAVEDRA, 2018,
p. 43-44). O corpo manifesta essa dor na dificuldade de mover-se: no banho,
permanece encolhida por um tempo que não sabe precisar se foram minu-
tos ou horas. Depois, “se arrastou para fora do boxe” (SAAVEDRA, 2018, p.
44), com a consciência de que “[p]recisava fazer alguma coisa, ligou chorando
para Heiner, algo estava dando muito errado em sua vida, pensou, precisava
conversar com ele, mas o celular estava desligado, como sempre àquela hora”
(SAAVEDRA, 2018, p. 44). O esforço de sair do box e o choro são manifes-
tações físicas do seu sofrimento. É, pois, o corpo que dá a dimensão do seu
estado emocional.
Na viagem a Paris sua tristeza também se expõe de forma contundente.
Apesar de estar nessa cidade, seu estado emocional está em desacordo ao espe-
rado para uma tal circunstância: “Anna pensava, que incrível, estou em Paris,
deveria estar se sentindo a mulher mais feliz do mundo, quem não venderia
a alma para estar em Paris, os cafés, os boulevards, a ópera” (SAAVEDRA,
2018, p. 45). Esse sentimento não é amenizado no diálogo com Heiner. Em
um passeio à beira do Sena, ele lhe comunica que, quando do retorno dessa
viagem, ele logo partiria para Berlim, onde trabalharia incansavelmente. Ela
decide acompanhá-lo “quisesse Heiner ou não, tinha medo de voltar a Mainz-
Gonsenheim” (SAAVEDRA, 2018, p. 46). Ele contrapõe-se a sua decisão e
argumenta sobre a necessidade de ela continuar os estudos de alemão, pois
“assim que ela dominasse a língua tudo se resolveria, iriam juntos a Berlim, e
quanto mais ele repetia que tudo se resolveria, mais ela tinha certeza de que
nada se resolveria” (SAAVEDRA, 2018, p. 46). Diante da irredutibilidade do
marido, ela tem a amarga compreensão de que “Heiner não a queria por per-
to” (SAAVEDRA, 2018, p. 46). Note-se que ela deseja apenas acompanhá-lo
– nessa ocasião ela sequer está lhe cobrando um papel de atriz.
Eles retornam da viagem; Heiner vai para Berlim e Anna permanece
em Mainz-Gonsenheim. Sozinha em um apartamento que ela não reconhece
como seu, a sensação é de não pertencimento, mesmo morando nele há algum
tempo; mesmo espalhando “enfeites que dispunha estrategicamente pelos
cantos, por mais que ela andasse nua por todos os cômodos, continuava sendo
o apartamento do Heiner” (SAAVEDRA, 2018, p. 51). É muito significativa a
expressão “apartamento do Heiner”, porque evidencia que, nele, ela se sente
“desalojada”, o que, segundo Pierre Ouellet (2013, p. 144), configura-se como
característica da contemporaneidade. Some-se a isso a carreira estagnada,

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porque o marido não lhe dá chance de atuar, e a inexistência de outros vín-
culos afetivos – exceto a transitória amizade com Birgit. Nessa circunstância,
ela vivencia a situação do estrangeiro representada por Julia Kristeva (1994,
p. 15): “Não pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor. A ori-
gem perdida, o enraizamento impossível, a memória imergente, o presente em
suspenso. O espaço do estrangeiro é um trem em marcha, um avião em pleno
ar, a própria transição que exclui a parada.” Esse presente em suspenso é o
que Anna está vivenciando: não tem uma relação de pertencimento com seu
apartamento; não tem o domínio da língua; e não atua como atriz.
Em tal conjuntura, a notícia da gravidez tem um grande impacto sobre
Anna. Logo ao recebê-la, é tomada pelo choro. A frase “[o] mundo inteiro
começou a se desintegrar” (SAAVEDRA, 2018, p. 54) parece ser a síntese da-
quele momento. Para ela, as circunstâncias externas eram adversas para um
filho: “morando num país estrangeiro, sem amigos, sem família, sem falar a
língua e casada com um homem que não amava e que nunca estava em casa”
(SAAVEDRA, 2018, p. 56). Na realidade, sentindo-se exilada, o filho viria ma-
ximizar sua situação, afastando-a ainda mais da possibilidade de realização
profissional: “Ela era uma atriz, tinha estudado, se preparado para isso, e ago-
ra tudo parecia ruir” (SAAVEDRA, 2018, p. 56). Um filho a absorveria com
cuidados e “ela ficaria para sempre emaranhada” (SAAVEDRA, 2018, p. 56),
mergulhada nas amarguras desse exílio, o qual era agravado pela sua mais
profunda solidão. As agruras da sua situação não se modificam com o nasci-
mento da filha. A bebê em nada contribui para a melhora do seu estado emo-
cional. Ao contrário, a restrição da liberdade que seu nascimento lhe impõe é
decisiva para a rejeição e abandono da recém-nascida.

Maike, a angústia de estar “fora do lugar”

A história de Maike se passa inicialmente na Alemanha, onde ela nas-


ceu. Narrada em primeira pessoa, é através do seu olhar, com as lacunas a ele
inerentes, que o relato é feito. Não se sabe em que momento de sua vida ele
é escrito, porém há uma distância entre a jovem de dezoito anos, imersa nos
acontecimentos, e o tempo da escrita. Por isso, expressões do tipo “até aquele
momento” (SAAVEDRA, 2018, p. 66), “até então” (SAAVEDRA, 2018, p. 66),
“mas naquele dia” (SAAVEDRA, 2018, p. 70), “naquela noite” (SAAVEDRA,
2018, p. 89) são recorrentes. Elas pressupõem a posição privilegiada da nar-
radora, que, afastada dos fatos, tem uma visão mais abrangente, sabendo
mais do que a protagonista. Ela, no ambiente familiar, vive o desconforto de

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sentir-se “fora do lugar” (SAID, 2004), deslocada, com a impressão “de que
havia algo errado” (SAAVEDRA, 2018, p. 66), insubmisso a sua compreensão.
O capítulo inicial sobre Maike abre com a frase “Tudo começou no dia
em que eu decidi estudar português” (SAAVEDRA, 2018, p. 66), a qual repre-
senta um momento fundamental em sua vida: aquele em que teve “a certeza
de que havia algo errado, e o que até então não passava de angústia indefinida
adquiriu a forma de uma pequena revelação” (SAAVEDRA, 2018, p. 66). Esse
momento é definitivo! A percepção “de que algo estava errado” (SAAVEDRA,
2018, p. 66) vem atrelada à consciência da necessidade de que “precisava fazer
alguma coisa” (SAAVEDRA, 2018, p. 66). A escolha do curso é o início desse
processo, embora não saiba as razões que a motivaram. Não seguir o projeto
dos pais, ao qual até então havia aderido, pois se “deixara levar pela inércia”
(SAAVEDRA, 2018, p. 66), certamente é o primeiro passo dessa transfor-
mação. Insurgir-se contra esse “caminho já traçado” (SAAVEDRA, 2018, p.
66) é um movimento importante em seu autoconhecimento. O “gesto banal”
(SAAVEDRA, 2018, p. 66) propicia o reconhecimento do quanto ela não esta-
va sendo verdadeira, o que fica implícito ao comparar sua situação com a de
uma personagem que recita falas que não são suas.
Esse momento é, pois, um marco em sua trajetória. No entanto, é im-
portante ressaltar que, apesar de somente nessa ocasião específica ela ter to-
mado consciência de que “algo estava errado”, havia uma intuição sobre isso,
o que ela compreende nesse dia ao entender que a “angústia” (SAAVEDRA,
2018, p. 66) que a assolava tinha um significado. No mesmo plano, a tristeza
que a acomete desde sua lembrança mais remota é reveladora. Nela, há a refe-
rência ao acidente de duas crianças, pelo qual ela se culpa. É interessante sua
percepção de que esse episódio remoto já é permeado pela tristeza: “Nessa
primeira lembrança, a que me inaugurava, já havia uma névoa que a encobria,
uma tristeza que se interpunha entre as palavras e as imagens” (SAAVEDRA,
2018, p. 90).
Na continuidade, essa lembrança primeira é associada a outro episó-
dio, aquele em que Max, o amigo de infância, de forma intempestiva, lhe dá
uma facada. Então, a tristeza que lhe é inerente é desdobrada em dor: “Assim,
muito antes do episódio da faca, a tristeza estava ali. Eu sentia que a violência
inesperada daquele ato apenas confirmava uma dor incrustada no corpo, e a
faca nada mais fizera do que abrir uma marca que já estava lá” (SAAVEDRA,
2018, p. 90-91). Essa tristeza/dor que ela percebe nesses episódios, os mais re-
motos de que tem lembrança, talvez pela carga emocional de que são portado-
res, contribui para ressaltar o quanto tal sentimento é inerente ao seu ser. Isso

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fica explícito em momento anterior, em que a personagem, ao refletir sobre a
sua atração por “pocilgas” (SAAVEDRA, 2018, p. 73), comenta sobre o fato de
a tristeza a impregnar: “Uma tristeza que eu não entendia de onde vinha, mas
que permeava tudo o que eu pensava, as mínimas atitudes, e mesmo nos mo-
mentos em que eu estava alegre a tristeza continuava lá, agarrando-se à ale-
gria, a morte que a todo instante surgia nas entrelinhas da vida” (SAAVEDRA,
2018, p. 73). A tristeza que a acompanha e macula até mesmo sua alegria pre-
figura que havia “algo errado”. As palavras de Kristeva (1994, p. 9) são adequa-
das para a percepção da personagem antes da “revelação”: “Estranhamente, o
estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço
que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e
a simpatia.” Sua estrangeiridade passa pelo desconhecimento das origens, a
qual, apenas intuída, está manifesta nesse “algo errado”.
Além disso, a relação com os pais também é fator responsável pelo
seu desconforto, isso devido à falta de sintonia que existe entre Maike e eles.
Desconforto esse que é anterior à “revelação”. Ao correr para a biblioteca logo
após a aula de português, ela lembra-se que esses espaços se constituíam um
refúgio, onde se sentia protegida dos “olhares inquisidores” (SAAVEDRA,
2018, p. 67) da mãe. Essa imagem negativa da mãe, ao ressignificar seus cui-
dados com uma avaliação que os descola do amor materno, mostra o quanto a
convivência com ela é difícil. Da mãe, ela ainda lembra do seu brilho ofuscan-
te e do seu lado sombrio: “minha mãe, uma aparição que tudo ofuscava, mas
por baixo, por dentro, aquela massa escura de enganos, de gestos pela metade”
(SAAVEDRA, 2018, p. 68). Aqui se está diante de uma avaliação crítica da
narradora, cuja percepção excede a que é possível à protagonista. A esta cabe
apenas buscar o amparo nesses locais: “E então a biblioteca, esse refúgio onde
eu me instalava, feito um inseto sob uma folha protegendo-se para a tempes-
tade” (SAAVEDRA, 2018, p. 68). Comparar-se com um inseto dá a dimensão
do que representava para ela o confronto com o autoritarismo materno.
Depois do ingresso na universidade, um jantar em família novamente
mostra esse desencontro entre os pais e a filha. Cursar direito seria o cami-
nho natural para ela, caminho esse incentivado pelos pais, ambos advoga-
dos. Maike, até então, não havia questionado tal planejamento. Isso fica claro
quando ela, diante do catálogo das disciplinas que deveria escolher, expres-
sa sua falta de interesse por essa profissão: “A verdade era que eu não tinha
o menor interesse naquele mundo, eu apenas me deixara levar pela inércia,
era tão fácil se deixar acariciar pelos meandros de um caminho já traçado, e,
pensando bem, que mais eu poderia fazer?” (SAAVEDRA, 2018, p. 66). Essas

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observações deixam explícito o quanto eles interferiram em sua escolha pro-
fissional e ela se deixara levar pelo projeto deles. Durante esse jantar, a mãe,
ainda sem saber que ela havia desistido do direito pelo português, afirma: “–
O direito está no sangue – anunciou a mãe” (SAAVEDRA, 2018, p. 70). A fra-
se não tem ressonância, não havendo qualquer interlocução motivada por ela:
Maike se cala e o pai apenas retribui com um “sorriso torto” (SAAVEDRA,
2018, p. 71), e o silêncio se instala, logo quebrado pela mãe, que pigarreia.
Não há qualquer sintonia entre eles. A narradora assim descreve a situação:
“Havia um claro desconforto, eles sabiam que não, que o direito não estava
no sangue, ao contrário, meu sangue era feito de outro material, mais pesado,
mais lento. Mas era preciso não dizer, era preciso flores e fogos de artifícios”
(SAAVEDRA, 2018, p. 71). Na continuidade, os pais se dizem orgulhosos da
filha e a mãe brinda ao seu “futuro brilhante” (p. 71). A essa euforia da mãe,
que lhe antecipa um porvir de sucesso, seguem-se reflexões críticas sobre a
figura materna, as quais ressaltam o quanto ela primava pela exterioridade,
desejando que tudo se conformasse aos seus padrões, a filha estando incluída
nessa imagem construída, o que o episódio da escolha da profissão revela.
Considerando que a mãe (e certamente também o pai) sequer se preocupa
com os reais interesses da filha ao lhe incutir a profissão, que não se importa
em saber da sua escolha, pois pressupõe que ela tenha se conformado ao que
ela (mãe) determinara, percebe-se que o desencontro e o distanciamento mar-
cam a sua relação com os pais.
O relacionamento amoroso com Lupe também contribui para ressaltar
o distanciamento entre ela e os pais – em um café da manhã, na presença da
namorada, eles a tratam por “sua amiga” (SAAVEDRA, 2018, p. 95, grifos da
autora), ou seja, de forma distanciada, como se não houvesse vínculos en-
tre ambas; sobretudo a mãe se sente claramente incomodada, incômodo esse
que ela procura disfarçar com um tom bem educado. A presença de Lupe
permite-lhe ver os pais sob uma outra ótica. A “distância intransponível”
(SAAVEDRA, 2018, p. 96) que existe entre eles lhe é revelada sem os enco-
brimentos que antes a disfarçavam. O que “até então apenas vislumbrava”
(SAAVEDRA, 2018, p. 96) aparece sem subterfúgios, impondo uma consciên-
cia arguta em que se constituía a relação com os pais.
O desencontro com os pais é estendido à casa, que pode ser percebida
como uma extensão deles. Nota-se um explícito desconforto em relação a ela,
à qual não se sentia pertencer: “Eu olhava para a nossa casa e me sentia nas
páginas de uma revista, num mostruário, eu, uma foto bidimensional num
mostruário em que tudo era limpo, arrumado, as cortinas, as almofadas sobre

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o sofá. Eu, uma foto numa linda casa de papel” (SAAVEDRA, 2018, p. 72).
Sentir-se em uma “casa de papel” evidencia o seu não pertencimento a essa
casa, por não lhe propiciar aconchego. Nessa, em que “[a]té mesmo o po-
rão parecia artificial” (SAAVEDRA, 2018, p. 72), a protagonista, “desde muito
cedo”, sabia-se deslocada:

Havia algo em mim, eu sempre tivera essa impressão, desde pequena,


que destoava daquele mundo, daquela falsa tranquilidade. Eu, um obje-
to descombinado. Eu não sabia onde me colocar. E, mesmo que minha
mãe me espanasse e recobrisse com as melhores roupas, eu era um ras-
tro de descontrole. Desde muito cedo. (SAAVEDRA, 2018, p. 73).

Ao sentimento de desajuste entre protagonista e espaço se sobrepõe a


avaliação crítica da narradora ao destacar a “falsa tranquilidade” da casa. Nela,
a impressão da personagem de estar “fora do lugar” mostra-se na metáfo-
ra “objeto descombinado” que, atribuída a si, põe em foco o desconforto de
não estar em sintonia com aquele espaço. Ela está desajustada nesse ambiente,
apesar das iniciativas maternas na tentativa de integrá-la, que não logram êxi-
to. O seu desajuste, desconforto e não pertencimento parecem dialogar com
a sensação de Said (2004), expressa no livro Fora do lugar: memórias. Nele, o
autor mostra o quanto esse sentimento permeou sua vida. Ressalta que, mes-
mo depois dos muitos anos de residência nos Estados Unidos, isso não se mo-
dificou: “O fato de viver em New York com a sensação do provisório apesar de
37 anos de residência aqui salienta mais a desorientação do que as vantagens
que auferi” (SAID, 2004, p. 328). Apesar disso, sua avaliação dessa circunstân-
cia é positiva: “O fato de não me sentir nunca em casa, nem mesmo em Mount
Hermon, de me ver fora do lugar em praticamente todos os sentidos, deu-me
o incentivo para encontrar meu território, não social, mas intelectualmente”
(SAID, 2004, p. 341).
A relação com os pais e com a casa permite perceber a importância da
compreensão que nesse dia irrompe como uma “revelação”. Ela até então se
sentia alguém obrigada a proferir falas alheias, ou seja, a conformar-se à ima-
gem construída pelos projetos maternos:

para que eu fosse a pessoa que eu deveria ser, uma aluna exemplar, uma
filha exemplar, um exemplo de diligência e serena alegria, em suma,
para que o mundo jamais perdesse os contornos que ela havia lhe dado,
pois ao mínimo passo em falso tudo poderia desmoronar, nesse mo-
mento percebe-se a si mesma. (SAAVEDRA, 2018, p. 72).

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Nessa projeção, a tristeza que lhe é inalienável não teria espaço, porque
a alegria dá o tom da proposta materna. Esse projeto é determinante para sua
alienação do que de fato a constitui, pois, estimulada a representar um papel,
o papel escrito pela mãe, ela reprime o seu eu mais profundo. É por essa razão
que, em se tratando da sua homossexualidade, a qual está latente, ela não a
percebe, porém, os que estão de fora notam em sua aparência esses traços que
a marcam. Até conhecer Lupe, seu desejo inexistia. Ela tentava compensar a
falta de emoção em sua vida assistindo a filmes de terror, nos quais “buscava
era outra coisa, algo intenso, alguma emoção que se sobrepusesse à inércia
que me acompanhava, feito sombra, feito esquecimento, nem que fosse atra-
vés do medo ou de um susto inesperado, mas isso nunca vinha, a intensidade”
(SAAVEDRA, 2018, p. 89-90).
Aspecto fundamental para Maike é a revelação da sua identidade se-
xual. Isso acontece por meio de Lupe, que a inicia na descoberta do próprio
corpo. Ao primeiro toque físico – a amiga coloca a mão sobre a sua – é domi-
nada pela emoção: “Meu coração batia tão forte que tive medo que ela ouvis-
se” (SAAVEDRA, 2018, p. 81). Ela está surpresa com as manifestações do seu
corpo: “Tudo em mim se liquefazia, os órgãos internos, e senti até a cicatriz
nas costas, uma dor leve, porém aguda, eu era apenas uma casca mole e úmi-
da” (SAAVEDRA, 2018, p. 81). O primeiro beijo é tão emocionante quanto
o toque de mãos: “Eu fechei os olhos e me deixei afundar, como um náufra-
go que, após horas lutando com as águas, desiste e finalmente submerge. O
alívio da batalha perdida” (SAAVEDRA, 2018, p. 83). Em casa, reflete sobre
esse beijo, mas principalmente sobre o significado de ter se sentido atraída
por uma mulher, e questiona-se sobre o fato de não ter percebido antes sua
homossexualidade.
A criação austera da mãe, que desejava uma filha conformada aos pa-
drões rígidos que estabelecera, não permitia que ela rompesse as amarras do
papel previamente composto para si. Talvez, por isso, para se manter de acor-
do com as expectativas da mãe, ela tenha embotado os seus desejos homosse-
xuais. A assunção do relacionamento com Lupe, a quem logo apresenta para
os pais, está em consonância com sua vontade de romper as amarras de um
papel que lhe haviam imposto. Pode-se dizer que assumir esse relacionamen-
to é tão importante quanto a escolha da profissão. Ao não estar de acordo
consigo mesma, conformando-se à imagem criada previamente pela mãe, ela
acirrava seu sentimento de deslocamento.
Esses movimentos são transformadores. E ela já não se sente a mesma:
“De uma hora para outra, ou ao menos me pareceu assim, tive a certeza de

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que a pessoa que habitava aquela casa não existia mais” (SAAVEDRA, 2018,
p. 97). Em outro momento, em conversa com Lupe, ela reforça essa mudança:
“Eu não quero voltar a ser a pessoa que eu era, porque a pessoa que eu era não
sou eu, e o que restou de mim eu desconheço, você entende?” (SAAVEDRA,
2018, p. 104). Soma-se a eles a decisão de morar sozinha, que ocorre um mês
depois.
Maike está em um processo muito importante. Um processo que não
para com as conquistas já realizadas, todas elas na contramão das posições
paternas. Embora tenha dado passos fundamentais, restam questões não res-
pondidas, que já existiam e que se manifestavam no corpo; questões que se
apresentavam na relação com os pais por meio dos silêncios encobridores;
questões que, nesse momento do seu processo, ela deseja encarar:

Porque sair da casa dos meus pais em nada resolvera os meus proble-
mas, de certa forma até os aguçara. Sentia que minha vida estava cheia
de elipses, palavras não ditas, verdades escamoteadas, que se materia-
lizavam numa angústia, uma inquietação constante. E se até então eu
vivera alheia a isso, anestesiada, ou fingindo que nada acontecia, agora,
pela primeira vez, eu queria saber, mesmo sem ter certeza de que havia
realmente algo a descobrir, eu precisava saber. (SAAVEDRA, 2018, p.
100-101).

Ela intui uma verdade que se esconde nos subterfúgios, uma verda-
de silenciada pelos pais. Lembra-se de Max, o amigo que, em meio a uma
discussão infantil, lhe deu uma facada. Max e o acontecimento sofreram um
silenciamento: “Jamais podia mencioná-lo, nem ele nem nada que pudesse
remeter ao acontecido” (SAAVEDRA, 2018, p. 104). Nesse episódio, ele disse
palavras reveladoras sobre a origem de Maike, por isso a repressão a que foi
submetido. Porém, ser reprimido não significa que tenha sido apagado. Ouvir
as palavras reveladoras do amigo e, na sequência, receber a facada são inscri-
tos como eventos traumáticos. Seguindo Freud, J. Laplanche e J.-B. Pontalis
(2013, p. 500, tradução minha) mostram que em tais circunstâncias “[o]
afluxo de energia é excessivo em relação à tolerância do aparelho psíquico”.
Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 48), também na esteira de Freud, ressalta
que essa experiência “não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre.”
É justamente isso o que aconteceu com Maike: ela não consegue assimilar o
evento traumático, o qual permaneceu reprimido por muitos anos. No entan-
to, ele ficou latente, por isso aflora em um momento em que ela está preparada
para encarar essas “verdades escamoteadas”.

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O encontro com Max é da maior relevância! A “verdade” que ela pres-
sentia nas palavras não ditas e escamoteadas, que ela intuía no corpo, nas
manifestações de angústia, tristeza e dor, sintomas de seu deslocamento e des-
conforto, é revelada por Max. Nessa conversa, ele lhe dá as informações que
ela procurava. Informações essas que ele havia exposto por ocasião do último
encontro, o que as palavras do amigo indiciam: “– Falei, sim, Maikezinha,
não é culpa minha se você reprimiu a informação, aliás, esse parece ser o seu
maior talento” (SAAVEDRA, 2018, p. 121). Embora aqui ele esteja se referin-
do ao fato de então ter mencionado o Brasil, pode-se inferir que ele lhe disse
mais coisas, e que ela as reprimiu.
Nesse encontro, Max reitera a “verdade” revelada na infância: que ela
era adotada e que sua “origem está em outro lugar, qualquer um com um pou-
co de entendimento percebe isso. Basta olhar para você” (SAAVEDRA, 2018,
p. 120). Essa questão da sua aparência é essencial, pois ela se irritava por lhe
perguntarem de onde ela era. Essa irritação decorre de esses questionamentos
irem ao encontro das intuições que permeiam sua trajetória.
No que concerne à adoção, esse é o tema do manuscrito que Max está
copiando, o qual dialoga com a história de Maike: “– Sobre uma moça ado-
tada, que, apesar de não saber que é adotada, intui que há algo errado em
sua vida. E é também sobre a genealogia dessa moça” (SAAVEDRA, 2018, p.
118). De fato, ela não sabe dessa adoção, porém, o sentimento de estar “fora
do lugar” é muito revelador. Sua intuição de que ele teria informações sobre
sua origem é verdadeira. Ele lhe revela a “verdade”. No entanto, suas palavras
a deixam profundamente abalada. O que ouve lhe é tão impactante, que ela
resolve fazer os quase trinta quilômetros entre a clínica e Zurique a pé.
Aspecto interessante é a forma desse discurso: são quatro páginas e
meia constituídas de vírgulas e alguns pontos de interrogação, os quais indi-
cam o não fechamento de um pensamento, apresentado um fluxo contínuo.
Essa pontuação registra o estado emocional da personagem, cuja ansiedade é
sintomática do impacto das revelações. O discurso fragmentado, que encena
um debate com o recém-ouvido e oscila entre a negação e a aceitação das
palavras de Max, mostra o quanto ficou afetada. O seu primeiro impulso é
um olhar racional: considerando-o louco, ela destitui-lhe a possibilidade de
crédito. O outro impulso é um olhar emocional: aceita o que ouviu, porque
são palavras que estão em sintonia com suas intuições.
Em uma perspectiva racional Maike procura desconstruir a fala do
amigo, taxando-o de “louco e obcecado” (SAAVEDRA, 2018, p. 124) e “cabe-
ça transtornada” (SAAVEDRA, 2018, p. 124). Apesar de procurar afirmar-se

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nessa racionalidade, a dúvida logo se instaura: “eu estava dando muita impor-
tância às palavras de Max, ou será que eu me recusava a encarar a verdade?”
(SAAVEDRA, 2018, p. 124). Esse questionamento mostra o quão dividida
ela se encontrava. Mais adiante, ela reconhece que as palavras do amigo de
infância estabelecem um diálogo com as dúvidas que a angustiavam: “mas
algo em mim me afundava nessa areia movediça, algo em mim estava errado”
(SAAVEDRA, 2018, p. 124-125). Aos poucos, entre recuos e avanços, entre
negação e afirmação, ela vai lhe dando razão, o que é confirmado ao sen-
tir-se esfaqueada pela segunda vez: “tentava me apaziguar, mas sentia como
se Max houvesse enfiado uma segunda faca em mim, nas minhas costas.”
(SAAVEDRA, 2018, p. 125). Logo dando-lhe razão (repete suas palavras):
“sim, ele tinha razão, eu que não estava aqui” (SAAVEDRA, 2018, p. 125); e,
mais adiante, ao começar a pensar na possibilidade de viajar para o Brasil, rei-
tera essa posição. O capítulo finaliza com sua consciência de que seu “espírito
está, em algum outro lugar, porque aqui tudo escapa” (SAAVEDRA, 2018, p.
127) e aventa para a possibilidade de estar também ela louca.
Maike, na Alemanha, sentia-se “fora do lugar”, intuindo sua estrangei-
ridade, a qual se revelava no olhar dos outros, quando manifestavam surpresa
quando ela se dizia alemã. A verdade sobre sua origem, revelada na infância,
permaneceu recalcada por muitos anos. Foi necessário um longo processo
para aceitar a verdade sobre si e mobilizar-se para a busca do país de origem.

A avó, a irremissível solidão

A história da avó tem início quando a mãe lhe impõe a migração. A


família – constituída pela progenitora, avó4 e irmãos – vive na mais comple-
ta precariedade. Alguns signos dessa condição estão explícitos na narrativa:
o espaço exíguo era constituído de “um só cômodo e uma cozinha acopla-
da na parede e o banheiro que ficava do lado de fora” (SAAVEDRA, 2018,
SAAVEDRA, 2018, p. 136); um único colchão era dividido por todos; o ali-
mento era insuficiente, por isso, muitas vezes “ela, a avó e a mãe ti[nham]
que pular a janta” (SAAVEDRA, 2018, p. 132). Essa conjuntura é determi-
nante para a migração da personagem. É, pois, a carência econômica que
a impulsiona. Esse é um estímulo que mobiliza muitas pessoas à movência
(ROLLEMBERG, 1999, 42-43).
A personagem não deseja sair do seu lugar de origem, apesar das vi-
cissitudes a que se sujeita diuturnamente. Mesmo as palavras que lhe acenam

4  Nessa parte, duas protagonistas são denominadas avó: a protagonista e a avó desta.

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para uma vida melhor não a demovem da vontade de permanecer entre os
seus. Em tentativa de convencimento, a mãe lhe aponta a beleza da cidade
onde iria morar – Rio de Janeiro –, já vista na televisão; e para o fato de que
teria “um quarto só para você” (SAAVEDRA, 2018, p. 131). No entanto, ela
não cede diante dessas palavras sedutoras, e o choro configura-se como a ma-
nifestação do seu desagrado a essas injunções, apesar das agruras que a cons-
trangem. Na realidade, é nesse espaço precário, entre seus familiares, que ela
se sente pertencente.
Expulsá-la dele, o que a mãe faz (SAAVEDRA, 2018, p. 134), é alijá-la
das suas raízes. Os estudos de Simone Weil (2001, p. 43) mostram o quanto
essas raízes são essenciais para o ser humano, pois elas pressupõem “sua par-
ticipação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva
vivos certos pressentimentos do futuro”. No caso da protagonista, é na família
que se encontram esses elos de convivência, não obstante as surras da mãe, as
brigas com os irmãos e a fala incompreensível da avó. São esses elos que ela
deseja manter, por isso ela chora, choro que é representativo do sofrimento
que tal ruptura lhe acarreta. A mãe é implacável, não se comovendo com o so-
frimento da garota de quatorze anos e, com a frase “quem manda em você sou
eu” (SAAVEDRA, 2018, p. 132), sela seu destino. Frase a qual completa com:
“se você não for eu vou lhe bater até te matar, entendeu?” (SAAVEDRA, 2018,
p. 132). Diante do irremediável, ela parte para o Rio de Janeiro, realizando um
deslocamento alheio à sua vontade.
Durante a viagem, a bondade e a religiosidade dos futuros patrões
são exaltadas por dona Neusa, considerando-a “uma menina de sorte”
(SAAVEDRA, 2028, p. 134) por ir trabalhar em uma família com tais qua-
lidades. Apesar disso, a protagonista está atemorizada, “intimidada com
essa palavra, patrões” (SAAVEDRA, 2018, p. 137). Ao chegar, o abraço de
dona Clotilde parece confirmar as palavras da sua interlocutora. Aliviada
com essa recepção, “ela começou a achar que não seria tão ruim assim ali
em Copacabana” (SAAVEDRA, 2018, p. 138). Todavia, esse lado acolhedor
da dona da casa é logo colocado em xeque ao transmitir-lhe suas atribuições,
quando a ameaça de a enviar de volta caso não as cumpra a contento. A prota-
gonista fica apreensiva, temerosa com as palavras da mãe que, nesse instante,
são rememoradas: eu te mato a pauladas se você fizer alguma besteira por lá”
(SAAVEDRA, 2018, p. 138). Mais que isso, a patroa logo se revela extrema-
mente autoritária, controladora e, sobretudo, exploradora. Não permite que
ela converse com a outra empregada, Dodô, o que acontece apenas quando
a patroa não se encontra por perto. Mesmo o bombom que a outra lhe traz

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quando retorna ao serviço nas segundas deve ser escondido: “não deixa a pa-
troa ver que ela me mata” (SAAVEDRA, 2018, p. 141). Esse bombom tem
muita importância. Além de gesto afetivo a acalentá-la, ele se transforma na
“continuidade da conversa” (SAAVEDRA, 2018, p. 141).
O deslocamento para o Rio de Janeiro está longe de configurar-se como
uma vida melhor, pelo menos não no plano emocional, pois esse movimen-
to foi responsável pelo desenraizamento da personagem, lhe ocasionando
sofrimento. De acordo com as reflexões de Tzvetan Todorov (1999, p. 27),
“O homem desenraizado, arrancado de seu meio, de seu país, sofre mais em
um primeiro momento: é muito mais agradável viver entre os seus.” A per-
sonagem do romance de Saavedra se enquadra na perspectiva discutida pelo
pesquisador. Nessa conjuntura, a constante saudade dos familiares se impõe:

mas ao que não se acostumava nunca, mesmo com o passar dos meses,
era a distância da mãe, e especialmente da avó, e até mesmo dos irmãos
brigando e ela brigando com eles e a mãe brigando com ela, sentia falta
até das coisas de que não gostava, da mãe batendo nela com o cabo de
vassoura, porque mesmo batendo ainda era a mãe, e ali não tinha nin-
guém, só Dodô e aqueles fragmentos de conversa quando dona Clotilde
não estava olhando, que dona Clotilde não gostava de conversinhas en-
tre os serviçais. (SAAVEDRA, 2018, p. 141).

No exemplo, é salientado que até situações de que “não gostava” eram


valorizadas, uma vez que elas compõem o seu espaço de pertencimento, do
qual foi afastada. Esse sentimento, provocado pelo distanciamento dos seus,
é ressaltado em outra ocasião: “E os dias foram passando, talvez até anos, ela
já não sabia mais, só sabia da saudade de casa, que nunca passava, nesses
dias que se misturavam uns aos outros se tornando um dia só” (SAAVEDRA,
2018, p. 143). Da imposição de partir a que foi submetida decorre o “mal do
exílio” (QUEIROZ, 1998, p. 20), que está relacionado “ao espectro dos males
da ausência. Vinculado à ideia de perda e desarraigamento, podem traduzir,
se não uma, todas as infinitas acepções da saudade portuguesa, da morriña
galega, da soledad castelhana, da Sehnsucht germânica” (QUEIROZ, 1998, p.
20). A saudade dos familiares, o sentimento de desenraizamento que está vi-
vendo, lhe permite avaliar o sofrimento da sua avó, cuja situação é similar a
sua: “Pensava muito na avó, pensava que ela devia ter se sentido assim quan-
do saiu lá da terra dela no meio do mato, e pouco a pouco foi esquecendo as
coisas de lá e aquela tristeza que não ia embora” (SAAVEDRA, 2018, p. 141).
Logo se inicia sua rotina de trabalho. Como a então adolescente não
consegue realizar as tarefas no ritmo previamente estabelecido, Dona Clotilde

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“decidiu então que ela trabalharia até terminar o serviço não importando o
avançado da hora, assim ela trabalhava das seis da manhã às dez da noite, e
estava sempre cansada e como estava cansada fazia as coisas cada vez mais
devagar” (SAAVEDRA, 2018, p. 140-141). Considerando que o trabalho não
era alheio do cotidiano da menina, pois, quando no interior, tinha os irmãos
sob sua responsabilidade, estar “sempre cansada” dá a dimensão do número
excessivo das tarefas que tinha que cumprir no decorrer do dia. Tarefas essas
que exigiam muito tempo para serem realizadas. Não obstante isso, suas ati-
vidades se estendiam de segunda à sábado, apenas tendo folga aos domingos.
Dona Clotilde, que nas palavras da prima é “uma mulher admirável,
muito boa, muito religiosa” (SAAVEDRA, 2018, p. 134), revela-se insensível
quando ocorre a morte da avó. Não se comove diante da sua dor, não lhe per-
mitindo o extravasamento da sua tristeza: “pois não é porque alguém morreu
que eu vou ficar com a casa suja e bagunçada, onde já se viu” (SAAVEDRA,
2018, p. 144).
Outro desdobramento dessa tradição patriarcal é o abuso de que é víti-
ma. Abuso esse perpetrado por Renan, um dos filhos do casal. Antes de deter-
-se nesse fato, é importante lembrar seu gosto por assistir a filmes, programa
imprescindível dos domingos. Muito provavelmente essas histórias de amor
permeavam seus sonhos recônditos. Isso é o que indicia uma das que gostou
muito, a qual ela procura comentar com Renan:

sobre uma moça muito boa e muito bonita, mas muito pobre, ela vende
flores na rua para sobreviver, e que conhece um homem muito lindo
e rico e ele se apaixona por ela, e os dois são tão lindos juntos, e no
final ela casa com ele feito um príncipe, e ela aprende a comer direito e
falar direito e a vestir roupas bonitas, e ficam felizes para sempre […].
(SAAVEDRA, 2018, p. 143).

O filme projeta seu desejo de ser resgatada da sua condição precária,


permitindo-lhe ascender ao mundo dos ricos. O amor lhe oportunizaria essa
ascensão. É significativo que a única história comentada tenha por tema uma
moça pobre remida de sua circunstância subalterna por um homem rico. É
nesse contexto, em que realidade e fantasia se cruzam, que o abuso perpetra-
do por Renan se torna muito mais insidioso, pois, há uma dupla violação: do
corpo e da alma (aqui representada como as expectativas da jovem).
Antes da consumação do ato sexual, Renan a cumprimenta, às vezes
fala com ela, tanto é assim que a protagonista se sente estimulada a comen-
tar um dos filmes a que assistiu. Certamente a circunstância mais importante
dessa interação é por ocasião da morte da avó, quando as palavras retóricas

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do rapaz – “sinto muito” (SAAVEDRA, 2018, p. 144) – são entendidas lite-
ralmente. Essa expressão de condolências lhe causa uma emoção genuína: “e
ela sentiu uma vertigem ao saber que ele sentia muito por ela” (SAAVEDRA,
2018, p. 144). Dando ao comentário banal um sentido que ele não tem, ela é
tomada pela “vertigem”. Na sequência, ele a elogia, o que não é compreendido
imediatamente, tal o inusitado da situação e, também, pela inexperiência da
jovem. Quando ele repete o elogio, seu corpo reage:

ela ficou muda e imóvel e com um frio na barriga, sem saber o que di-
zer, quase não aguentando de tanta felicidade que era Renan achar ela
bonita, […] e sentiu seu corpo desmontar inteiro e achou que ia ficar
sem ar quando ele olhou com atenção para o seu corpo desmanchado
[…]. (SAAVEDRA, 2018, p. 145).

Ato contínuo, ele pega em sua mão e a conduz para o quarto. Na cena
de estupro, observam-se duas posições diferenciadas: a de Renan e a da prota-
gonista. Ele pressupõe que ela goste dele, porque afirma ter percebido que ela
o observa – como se a suposta afeição lhe desse prerrogativas para a efetivação
do ato. Mesmo suas palavras caindo no vazio, sem ocorrer uma interlocu-
ção por parte dela, ele prossegue no ato, o qual tem em vista unicamente sua
satisfação pessoal. Observe-se a posição da protagonista: mantém os olhos
fechados, pois “tinha medo de ver o que estava acontecendo” (SAAVEDRA,
2018, p. 145); permanece muda, sem responder aos seus questionamentos; e
fica “apavorada ao perceber que ele havia abaixado a calça e guiava a mão dela
em direção àquele pedaço duro de carne que os homens têm entre as pernas”
(SAAVEDRA, 2018, p. 145). Ela não é ingênua quanto ao ato, pois os filmes
lhe propiciaram ver cenas similares. No entanto, apesar de se imaginar uma
das heroínas do cinema, apenas sente dor, uma dor que lhe era desconhecida.
A memória desse ato abusivo está inscrita no corpo. É muito significativo que
a lembrança da dor física sempre se imponha. De acordo com as reflexões de
Aleida Assmann (2011, p. 265), “A memória corporal de feridas e cicatrizes é
mais confiável que a memória mental.” Em várias ocasiões, Renan a procura,
mas apenas com o intuito de se satisfazer. Terminado o ato, ele veste-se e vai
embora.
Aspecto cruel é o comportamento do rapaz depois do abuso: ele pas-
sa a ignorá-la, não fala com ela e “passava por ela como se ela não estivesse
ali” (SAAVEDRA, 2018, p. 146). Diante dessa atitude a jovem fica perplexa,
o que interferiu no desempenho das suas atividades e lhe acarretou falta de
vontade até de ir ao cinema, cujos filmes eram essenciais a sua sobrevivência.

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Não fosse a gravidez, esse abuso certamente teria tido continuidade, pois era
uma forma confortável de o rapaz saciar seus desejos. A atitude de Renan
não deixa dúvidas quanto ao distanciamento entre as histórias dos filmes, em
que as barreiras sociais eram rompidas, e a realidade da protagonista relegada
à condição de subserviência, para quem não existia a possibilidade de esses
limites serem quebrados. A única aproximação possível é através do sexo, mas
este com vistas ao prazer do filho dos patrões.
Outro capítulo dessa dominação é representado pela posição dos pa-
trões, quando da descoberta da gravidez. Logo que percebe que a emprega-
da está grávida, dona Clotilde parte para a agressão física e verbal. Sua pri-
meira reação é dar-lhe um “tapa na cara” (SAAVEDRA, 2018, p. 147) e, na
sequência, atribuir-lhe termos que a distanciam do papel de vítima, que lhe
cabe: “sua putinha descarada […], sua vagabunda, rameira, piranha desgra-
çada” (SAAVEDRA, 2018, p. 147). A imagem da mulher bondosa e religiosa
(aquela que lhe foi apresentada por dona Neusa) se esfumaça diante dessa
outra, que deixa extravasar raiva e descontrole, e que não hesita em culpar
a empregada, ingênua e subserviente, pela violência do filho. Mas os abusos
contra a serviçal não param aí. O casal propõe-se a assumir “todas as despe-
sas” (SAAVEDRA, 2018, p. 149) em troca do seu mais absoluto silêncio sobre
a paternidade. Além disso, uma terrível ameaça sela o acordo: “agora, se você,
por motivo que for, disser, para quem quer que seja, que o filho é do Renan,
bom, nesse caso nós daremos um jeito de te colocar na cadeia pelo resto da
vida e você nunca mais verá a criança, está claro?” (SAAVEDRA, 2018, p.
149). Essa é uma intimidação típica de quem tem o poder e é conhecedor de
artimanhas que poderiam incriminar a jovem. Ela, não tendo condições de
sustentar a criança sozinha e temendo pelo cumprimento da ameaça, acede.
Nem à filha, depois de adulta, revela a paternidade.
A ruptura das raízes, a rotina de exploração e os abusos – que ressaltam
as diferenças e, como tal, o distanciamento entre ela e a família – relegam a
personagem a uma posição de não pertencimento, da qual ela tem consciên-
cia. Isso está explícito em diálogo com o fantasma da avó, que antecipa o fato
de a jovem estar grávida de uma menina e lhe prefigura um destino de “nunca
ter um lugar seu” (SAAVEDRA, 2018, 150); então, a protagonista pensa que
“também [ela] não tinha um lugar que fosse seu e que tampouco sabia quem
era” (SAAVEDRA, 2018, p. 151). Essas palavras mostram que sua movência
a manteve em uma situação de não pertencimento. Sem “conhecer ninguém”
(SAAVEDRA, 2018, p. 142), não podendo conversar com Dodô, pois foram
proibidas de se comunicarem no serviço, e apenas trocando algumas palavras

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esparsas com o vendedor de sorvetes, ela passa a vivenciar um “exílio interior”
(ILIÉ, 1981; NOUSS, 2015; OUELLET, 2013).
Paul Ilié (1981) afirma que essa é uma condição que atinge aqueles
que se deslocam para outros países, seja como exilados, seja como emigra-
dos. Independentemente de esses movimentos serem involuntários ou volun-
tários, os dois grupos apresentam “as mesmas cicatrizes” (ILIÉ, 1981, p. 9),
não importando se havia ou não a opção de retornar, pois ambos manifestam
sentimentos similares. Nesse sentido, “el exilio es un estado de ánimo cuyas
emociones y valores responden a la separación y ruptura como condiciones
en sí mismas” (ILIÉ, 1981, p. 8). No entanto, as reflexões do autor não se
restringem àqueles que partiram, mas também àqueles que permaneceram,
os quais viveram “un exilio tan cualitativo como aquellos que se trasladaron
fisicamente” (ILIE, 1981, p. 30). Ele é logo apresentado como “un vacío que es-
pera ser colmado” (ILIE, 1981, p. 31). Para o estudioso, não há distinção entre
permanecer ou partir – fossem as motivações políticas (exilados), econômicas
(emigrados) ou filosóficas (“transterrados”) (ILIE, 1981, p. 20) –, porque to-
dos experienciavam o sentimento de “exílio interior”. Alexis Nouss (2015, p.
57, tradução minha) também mostra a importância do “exílio interior”, por-
que este se manifesta na interioridade do sujeito – “antes de tocar o corpo
deslocado, imprime a marca psicológica dessa ruptura, de uma exclusão vi-
vida primeiro na interioridade, uma consciência, antes de uma condição.” Na
continuidade de sua discussão, o pesquisador afirma: “o eu sente-se exilado
no sentido de que ele não se insere ou se insere pouco ou mal no novo siste-
ma que lhe é proposto” (NOUSS, 2015, p. 57). Ainda se poderia considerar a
proposta do “exílio ontológico” de Pierre Ouellet (2013, p. 146). Segundo o
pesquisador, o deslocamento é característico do homem contemporâneo, que
se sente desabrigado e apenas consegue exibir sua condição de estrangeiro,
“sem mais o sentimento de pertencimento a uma história e a um território de
onde [se sente] expulso” (OUELLET, 2013, p. 146).
Tais reflexões revelam-se um importante subsídio para a análise da pro-
tagonista do romance de Saavedra. O translado para o Rio de Janeiro não lhe
oportunizou a construção de novos laços afetivos, nem de amizade e nem
amorosos. A comunicação com a família rompeu-se quase completamente
(exceção feita pelo dinheiro que enviava mensalmente para a mãe), porém, a
saudade dos seus não amainou com o transcorrer do tempo. Os dias em que
era proibida de falar se alternam com as noites em que não tinha com quem
falar. É assim que, no exíguo “quarto sem janela” (SAAVEDRA, 2018, p. 139),
a solidão da personagem se torna contundente. É interessante notar que, todas

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as vezes a que esse espaço é referido, o seu atributo “sem janela” é reiterado.
Poderia ele ser a representação da sua falta de perspectiva? Conhecendo-se a
trajetória da personagem, pode-se afirmar que sim. Nele ela vivencia o “exílio
interior”. Alheia ao lugar onde mora, volta-se para um espaço perdido, para o
qual está impossibilitada de retornar. É nesse “quarto sem janela” que a má-
xima expressão de seu exílio se evidencia: as conversas com a avó, morta há
alguns meses5, permitem ter a dimensão do seu estado emocional. A preca-
riedade da sua condição é um terreno fértil para a construção de um mundo
paralelo, no qual recebe a visita da avó e, com ela, entretece as conversas que
lhe são proibidas na realidade cotidiana.
As visitas do fantasma da avó afiguram-se normais. Nessas aparições, ela
se apresenta como guardiã de uma sabedoria ancestral, alguém que a orienta
e, muitas vezes, até antecipa acontecimentos vindouros (não mais aquela cuja
fala, quando viva, era incompreensível). Inclusive, na última parte, ela dispen-
de boa parte do tempo das visitas lendo, o que também contraria seu anal-
fabetismo de quando era viva. Como já se observou, a presença do espectro
pode ser vista como decorrente do seu exílio, pois, não mantendo qualquer
sociabilidade, ela necessita de uma âncora que lhe permita a sobrevivência.
Essas conversas com a avó são sintomáticas da sua alienação. A perso-
nagem é vista pelos outros sob a perspectiva da doença. Na história de Anna,
em sua peça teatral autobiográfica, ela relata um episódio em que a alienação
da mãe assume proporções drásticas. Nessa, ela relata que, em uma ocasião, a
encontrou em estado catatônico: “minha mãe estava sentada na cama, imóvel,
com uma expressão estranha, parecia um sorriso, mas os olhos voavam ocos,
mãe, mãe? Eu acho que sua mãe amalucou de vez das ideias, disse Dodô num
sussurro” (SAAVEDRA, 2018, p. 172). A avaliação de Dodô é muito significa-
tiva, porque dá indício de que alguns sintomas já eram perceptíveis. Ao refe-
rir-se a um momento posterior da vida da mãe, Anna alude à “leveza de uma
loucura branda. Há muitos anos aquela loucura branda, um olhar perdido,
aquela meiguice, e um carinho que eu não sei como retribuir” (SAAVEDRA,
2018, p. 188).
A migração da personagem não significa efetivamente melhora de vida.
No entanto, considerando-se exclusivamente o plano econômico, pode-se
pensar que sim, afinal, ela tem alimento, um quarto próprio e, ainda, com
o que ganha, dá-se o luxo de comprar um chapéu, acessório completamente

5  Não se pretende discutir a questão do fantástico, leitura muito oportuna no romance. A


questão interessa apenas no intuito de comprovar-se sua falta de conexão da personagem com
seu espaço-tempo, do qual se aliena.

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inútil. Porém, há que se examinar a questão afetiva. Afastada dos familiares,
do seu local de pertencimento, ela não consegue criar outros laços, o que tem
como consequência seu “exílio interior”, que toma uma forma mais drástica
em sua alienação. Nesse sentido, as conversas com o fantasma da avó, por ela
relatadas, e sua crise, percebida pelos outros como doença, são decorrentes da
sua extrema solidão.

Nota conclusiva

Ao percorrer as histórias dessas três mulheres, constatou-se que, em-


bora elas tenham realizado diferentes movimentos migratórios, ou mesmo
quando não se tenham deslocado, elas se sentem desconfortáveis, não perten-
centes ao lugar onde se encontram. Refletindo sobre os diversos tipos de des-
locamento, Nouss (2015, p. 22, tradução minha) propõe o termo exilado para
abarcar todos esses movimentos, porque “a experiência exílica representa um
núcleo existencial comum a todos esses fenômenos de mobilidade restrita” e,
nesse sentido, “a noção de exílio pode, de alguma forma, modalizar todas as
outras noções sem as recobrir tipologicamente”. Ressalta o pesquisador que se
pode substituir o “léxico da migração por um pensamento fundado nas no-
ções de condição exílica e exiliência” (NOUSS, 2015, p. 22, tradução minha).
Essas são noções mais abrangentes, pois não ficam restritas a uma determi-
nada realidade exterior, porém estão atreladas a “níveis mais profundos da
interioridade do indivíduo” (NOUSS, 2015, p. 22, tradução minha).
Essa é a situação experimentada pelas mulheres de Com armas sono-
lentas, seja a avó, obrigada a migrar, seja Anna, que optou pelo deslocamento,
seja Maike, que não saiu do lugar – isso considerando a primeira parte do
romance. Afastadas das origens, sem laços afetivos, elas se isolam: a avó no
“quarto sem janela”; Anna no apartamento de Heiner; e Maike na “casa de pa-
pel” construída pelos pais. Na condição de expatriadas, migrantes ou simples-
mente de deslocadas, as três experimentam o “exílio interior”, motivado pela
não integração e pelo desabrigo de um lugar que não as inclui. Três mulheres
que em “O lugar de fora” vivenciam o desconforto por se encontrarem “fora
do lugar”.

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to no romance Com armas sonolentas: um romance de formação, de Ca-
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O exílio e a adoção: perspectivas de
alteridade em A resistência, de Julián Fuks

Luciana Paiva Coronel1

Ao José, argentino em cujas raízes


nasceram asas, que o levaram ao mar.

À Aimée e à Sylvie, migrantes de Cuba e Canadá,


pela oferta afetuosa do olhar teórico sobre o exílio.
E por me levarem à festa de Yemanjá, onde pude sentir
um pouco mais da força da cultura popular do meu país.

A temática do exílio representada em A resistência, de Julián Fuks,


constitui uma forma particular de ocorrência do fenômeno da migrância, que
cria identidades cujo movimento através de fronteiras, ao mesmo tempo po-
líticas e culturais, acaba por engendrar perfis humanos abertos, disponíveis à
autoconstrução a partir do cruzamento de espaços de referência. No romance,
o trânsito exílico entre países latino-americanos situa-se no interior de uma
densa moldura de espelhamentos entre o eu e o outro, através da qual o nar-
rador investiga as possibilidades de contar a história alheia, tornando-se outro
em relação a si mesmo no empenho de (re)compor, através da palavra, o frágil
vínculo afetivo estabelecido com o irmão, adotado na Argentina antes da par-
tida dos pais ao Brasil por motivos políticos no final dos anos 1970.
A narrativa apresenta forte teor autoalusivo, expondo a tensa procura
da forma justa para fazer presente no texto o irmão ausente na cena domésti-
ca: “Como se o livro fosse uma longa carta para ele, uma carta que ele jamais
leria […]. Mas o livro não é uma longa carta para ele […], preciso contar a
história dele” (FUKS, 2015, p. 70-71). Segundo o narrador, em constante exa-
me de autocrítica ao longo do percurso narrativo, falharam todos no resgate
do menino evadido na própria morada: “desconfio que não procurássemos

1  Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professora no


curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG). E-mail: [email protected].

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realmente uma forma de chegar a ele, de […] guiá-lo para fora do quarto, para
dentro da vida” (FUKS, 2015, p. 73).
O exílio e a adoção são abordados neste ensaio como perspectivas de
alteridade relacionadas respectivamente aos pais e ao irmão do narrador de A
resistência. A transposição do próprio para o alheio configura-se formalmente
no interior do romance por meio da aproximação imediata da voz enunciati-
va em relação à migrância daqueles entre os países e, igualmente, através do
projeto que emoldura a narrativa, identificado com a procura insistentemente
reiterada pela mesma de aproximação do irmão, que manifestara, desde o iní-
cio, imensa dificuldade para realizar a migrância afetiva para o seio da família
que o quisera junto de si.
Se “os exilados são sempre excêntricos que sentem sua diferença […]
como um tipo de orfandade”, como quer Edward Said (2003, p. 55), é possível
entender o abrigo oferecido pelo país de acolhida como uma espécie de ado-
ção. Unificam-se, dessa forma, os tópicos em discussão, sendo possível então
considerar que neste artigo são enfocados o deslocamento exílico dos pais em
questão, que resultou em sua adoção pelo Brasil, e a aflita demanda do nar-
rador por estar junto ao irmão, que não se deixou adotar nem pela família e,
tampouco, pelo país. A produtividade do texto autoficcional enquanto locus
de renovação da ficção brasileira contemporânea é confirmada na narrativa
de Julián Fuks, que parece instaurar um modo peculiar de narrativa de si en-
quanto instância atravessada pela experiência íntima da alteridade.
Buscando enxergar o que escapava à vista no cotidiano familiar dani-
ficado, o narrador recorre em certo ponto a retratos antigos. É nítido seu es-
forço em desvendar a opacidade do presente a partir de imagens do passado,
nas quais perscruta gestos, expressões faciais. Diante de uma fotografia em
que o pai tem um cigarro à boca – sendo comicamente imitado pelo menino
a seu lado, que segura um lápis entre os lábios, espelhando o gesto de fumar –
indaga-se: “Como agora eles têm tão pouco em comum, é o que exclamo em
silêncio, ressalvados os olhos azuis confundidos por tantos. Em que momento
meu irmão preferiu se distinguir daquele homem, deixar de se reconhecer em
sua figura, desertar seus gestos e hábitos?” (FUKS, 2015, p. 105). Um deser-
tor da linhagem paterna, eis o que o retrato não mostra, um filho que não se
deixou adotar pelos pais, um filho que resistiu à própria adoção: “enfim chego
a entender quanto mentem as fotos com seu silêncio” (FUKS, 2015, p. 65),
reconhece o mesmo.
Com a intenção de investigar o que permanecia oculto nas imagens que
os álbuns guardavam, o irmão mais jovem torna-se autor do livro que lemos,

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recorrendo às palavras com a “vontade de forjar sentidos que a vida se recusa
a dar” (FUKS, 2015, p. 95). Nesse contexto, apresenta-se um dos mais impor-
tantes significados de resistência que comparecem no romance, a resistência
ao silêncio: “Queria tratar do presente, desta perda sensível de contato, desta
distância que surgiu entre nós” (FUKS, 2015, p. 95). A história que desdobra
esse comprometimento com o outro aspira construir uma possibilidade de
contato mais efetiva (e afetiva) entre os irmãos. Trata-se de tarefa extrema,
dado que em certas circunstâncias “calar é resistir” (FUKS, 2015, p. 52), cons-
tata o narrador, que tateia entre o propósito da palavra e seu interdito, moti-
vado também pelo afeto. Para Maria Zilda Cury, sua busca se corporaliza no
texto que lemos:

Desde as primeiras páginas, o processo de escrita é colocado em pri-


meiro plano: no final das contas, o narrador constrói um relato, engaja
o leitor em uma discussão metatextual sobre a forma que vai tomando
lentamente o texto, assim como as pesquisas que faz sobre o irmão, que
resultam finalmente na forma de um livro que o narrador intenta ofe-
recer ao irmão no final do romance. (CURY, 2020, p. 67).

Para a estudiosa, essa corporalização anuncia-se desde a epígrafe, re-


tirada de livro de mesmo título, La resistencia, do autor argentino Ernesto
Sabato: “Creio que há que resistir: este foi o meu lema. Mas quantas vezes
me questionei como encarnar esta palavra?” (FUKS, 2015, s/p). São muitos
os sentidos assumidos pelo termo nas páginas do romance de Julián Fuks,
que promove diálogo intertextual com a obra anterior, tomada como ponto
de partida da sua própria procura do modo mais adequado para “encarnar”
a palavra: “aqui, mais uma vez, constata-se uma ligação estreita entre o corpo
físico e o corpo do texto” (CURY, 2020, p. 66). Contraditórios entre si, os dois
sentidos de resistir assumidos pelo personagem escritor – resistir ao silêncio
e à palavra – dizem respeito à instância narrativa propriamente dita: “Tenho a
idade que meu pai tinha naquela época – o bastante para saber que as armas
dele não são as minhas, que não me cabe empunhá-las e fazer dele um irmão
em armas, que só me resta sondar conceitos, tentar compreendê-las” (FUKS,
2015, p. 38-39).
“Vida que remotamente persigo” (FUKS, 2015, p. 56), considera o nar-
rador – trata-se da vida do irmão, cuja ausência consolidada na casa instituía
um silêncio que acabou produzindo em si a necessidade reativa do engaja-
mento na escrita romancesca. Motivada por dramas íntimos, essa ficção con-
forma o que Leonor Arfuch (2010, p. 11, grifo do autor) chama de “espaço
biográfico”: gênero discursivo marcado pela articulação das instâncias pública

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e privada, no qual “a categoria de valor biográfico adquire um novo caráter de
protagonista no traçado narrativo que dá coerência à própria vida”. Tal feição
é nitidamente identificável nas páginas do romance: “Aqui quero falar do meu
irmão; e do irmão que fui numa noite insensata, uma noite desastrada, e do
irmão que desde então eu não soube ser, do irmão que não pude ser mais”
(FUKS, 2015, p. 46).
Os conflitos da família Fuks lançam luz sobre o arbítrio da ditadura
argentina: “estou escrevendo um livro […] um livro sobre essa criança, meu
irmão, sobre dores e vivências de infância, mas também sobre perseguição e
resistência, sobre terror, tortura e desaparecimentos” (FUKS, 2015, p. 57-58).
Alcançando certa estabilidade apenas no início dos anos 1980, quando o nas-
cimento da filha brasileira permitiu sua permanência no país, o casal sairia da
clandestinidade em contexto de distensão no Brasil. Tratava-se de uma família
feliz, “semelhante a todas as famílias felizes, mas visitada pelo sentimento do
exílio, um vento frio a lhes trazer dores longínquas, a sussurrar em seus ouvi-
dos relatos de um horror sem término iminente” (FUKS, 2015, p. 107).
Esse cotidiano ameno era tumultuado também pela dor próxima do
primogênito, cujo desajuste à nova vida tinha ásperas raízes indefinidas no
passado que quiseram deixar para trás ao partir: o filho adotivo afirmava-
-se no não pertencimento ao seu entorno. A entrada outrora possível em seu
território é narrada pelo caçula como o cruzamento de uma fronteira: “Me
exilava a cada noite em seu quarto” (FUKS, 2015, p. 46). Pierre Ouellet (2012,
p. 13) entende a sensibilidade da migrância como passível de abarcar “lugares,
físicos e psíquicos, assim como temporalidades, memoriais e históricas, [que]
não são propriamente cerníveis, mas se interpenetram e emaranham”. O nar-
rador, em sintonia com essa concepção, entende seu ingresso no reduto do
irmão como movimento análogo à chegada dos pais na cidade de São Paulo:

Um dia tudo é alheio. Você caminha por uma rua desconhecida e ela
perfaz uma curva inesperada, sem nenhuma esquina se torna outra rua,
assume outro nome, e você está perdido naquele que deveria ser o seu
bairro. Um dia tudo é alheio. Você encontra enfim um café, embora
não queira tomar um café, e sim ficar ali sentado; o garçom lhe traz
uma xícara e parece aguardar sua saída com alguma ansiedade, pois ali
tomar um café tem um sentido literal que não inclui a permanência por
longas horas. No início estranhávamos um pouco, dizem meus pais e
eu os entendo pelo avesso, porque já estranhei as ruas retas e os cafés de
toda uma tarde. (FUKS, 2015, p. 85).

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O estranhamento decorrente do encontro com os padrões culturais da
nova terra, muito distintos daqueles do país de origem, é representado no
romance de modo espelhado, na chegada dos pais ao Brasil e, inversamente,
na posterior inserção do filho brasileiro no país daqueles. Ouellet (2012, p.
1) define a condição do exilado exatamente a partir de sua relação com as
categorias de espaço e tempo, as quais entende que o ser que migra sente no-
tadamente “dificuldade de ocupar plenamente […] de aí permanecer e residir
de outra forma que não a de estrangeiro, sem mais o sentimento de pertenci-
mento a uma história e a um território de onde [se] sent[e] expulso.”
Tal perfil se apresenta nas linhas de A resistência, em cuja trama a situa-
ção inicial de “alheamento” de cada um diante da outridade é verificada em
relação ao traçado das ruas e ao período usualmente despendido à mesa do
bar para “tomar um café”. O apreço por determinado modo de circulação ur-
bana e por uma disponibilidade específica para a permanência no espaço do
bar reforçam a matriz identitária argentina dos pais, e brasileira do filho. Mas
a este cabe ainda representar a dificuldade de ocupar plenamente o espaço/
tempo do irmão, que se mantinha confinado em espaço exíguo, marcado pela
“imobilidade angustiante” e pelo tempo arruinado de um “presente vazio”
(FUKS, 2015, p. 134). O romance constitui, dessa forma, recurso último acio-
nado pelo personagem ficcionista para dividir com o irmão uma mesma his-
tória, um mesmo território, nem que fosse no interior da instância ficcional.
A rotina estabilizada no novo país propiciaria aos pais argentinos a
incorporação progressiva dos hábitos brasileiros; a descontinuidade essen-
cial dos exilados parecia estar sendo de algum modo atenuada, chegando ao
ponto de, no final da história, criar-se mais um desenraizamento, dessa vez
envolvendo a família inteira, que revela o bem-sucedido desprendimento da
matriz cultural anterior: “Reparo que, depois de tantos anos, chegamos a ser
mais brasileiros, ou mais alheios ao que alguma vez fomos: sobremesas agora
são as frutas que colorem os nossos pratos, não as mãos que gesticulam com
leveza, não as palavras ágeis que dispensamos” (FUKS, 2015, p. 134). Trata-se,
segundo Ouellet, de uma trajetória exílica bem-sucedida, em cuja conclusão a
identidade daqueles que chegaram foi alterada, transformando-os em outros
em relação a si mesmos:

É uma passagem ao outro, um movimento progressivo do Um em di-


reção ao Outro, que infringe as leis do próprio, transpõe as fronteiras
da propriedade ou da individualidade, para ir além, sempre, do lugar
de onde se vem e de onde se extrai a identidade, para melhor desfazer
esse laço imaginário e reatá-lo cada vez em um novo destino, um outro
tornar-se que também é um tornar-se outro. (OUELLET, 2012, p. 09).

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O filho brasileiro, que narrara estranhar as cenas típicas da vida por-
tenha, acompanha na sequência os passos dos pais no processo de abertu-
ra às peculiaridades da vida paulistana, vivenciando a incorporação do ou-
tro no próprio, no sentido inverso ao da sua experiência em solo argentino.
Desdobra-se ele na outridade dos genitores para chegar com eles ao que de
fato era seu próprio ponto de partida, o cenário brasileiro, que passa a ser ob-
servado com a estranheza de quem vem de fora. O caráter expatriado de sua
identidade pode ser atribuído ao ofício de escritor: “Agrimensores do mundo
interior das línguas e das fábulas, os seres de palavra são ‘gente de viagem’,
sensíveis aos deslocamentos que nossa história recente e nossos territórios
novos nos obrigam a viver, sem mais ancoragem nem fixação senão à beira
das palavras” (OUELLET, 2012, p. 3). Nessa perspectiva, é narrado de dentro
o movimento de lenta suspensão das reservas postas pelos estrangeiros em
relação à sua própria terra:

Um dia tudo é provisório. Ele está no Brasil só enquanto não partem


para o México, para ali retomar a batalha com outros companheiros
exilados. Ela está no Brasil só enquanto não partem para a Espanha,
para ali retomar a vida e tantos planos que já se atrasam. Porque não se
decidem é que vão ficando, os meses se alongam como as ruas sinuo-
sas, e o sabor do café até que agrada. Um dia você dá uma informação
a um homem que passa e descobre que sabe o nome da rua onde está,
que aquele afinal pode ser o seu bairro, que o que era alheio se tornou
próprio, ou quase. Você nem se importa que o homem não entenda o
seu sotaque, você gesticula e o homem ainda perdido lhe devolve um
sorriso simpático – aqui há pesares, é claro, aqui é uma ditadura como
lá, aqui a miséria se vê em cada esquina que não há, e no entanto há
gente sorridente por toda parte. (FUKS, 2015, p. 85-6).

O processo de (re)construção identitária dos pais apresenta-se através


do lento abandono dos planos iniciais de cada um, até que, com agradável
surpresa, passam pela experiência de sentir-se diferentes do que uma vez fo-
ram; as coisas alheias parecendo tornar-se próprias “ou quase”. A alteridade do
Brasil começa a diluir-se no sentimento de aceitação gradual do que antes se
mostrava estranho. A experiência é narrada através de uma pessoa genérica
(“você”), que engloba a ambos e generaliza o alcance do sentido. O narrador,
cético, julga que a família “crê entender, embora não entenda, algo sobre aque-
la gente” (FUKS, 2015, p. 85). Talvez a ilusão de entender já baste para que
tomem a decisão de permanecer entre a gente brasileira, na qual está incluído
o filho autor, abarcável também nesse “você”, que mais uma vez se olha a par-
tir de fora. Não fora sentirem por vezes “a culpa própria dos que se salvaram”

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(FUKS, 2015, p. 88), se poderia considerar que tinham afinal um lar no qual
haviam reconstruído suas vidas rompidas.
O sentimento de desapego em relação à raiz argentina tivera início
durante o trajeto inicial, feito pela estrada: “Ali compreendeu, ou começou
a compreender, que nem tudo se reduzia aos bairros que ele habitara algu-
ma vez, tomados de terror e sobressalto. Ali começou a compreender que o
mundo era muito mais vasto, feito de largas planícies e infinitos horizontes”
(FUKS, 2015, p. 83). No percurso, o pai percebeu que se despedir de Buenos
Aires, cujos bairros estavam tomados de terror, significava construir uma
perspectiva de sobrevivência para todos. Ouellet aborda a situação da passa-
gem na circunstância da migração como “um vasto corredor no tempo, que
liga um passado morto e um futuro ainda não nascido, em um presente sobre-
carregado de ausências, sem presença verdadeira senão profundamente esbu-
racada pelos lugares abandonados e por aqueles que não lhe são ainda dados”
(OUELLET, 2012, p. 4).
O casal de militantes estrangeiros acabou transpondo diferenças e ins-
talando-se em solo brasileiro. Muito mais difícil de superar mostrava-se a es-
treita barreira doméstica que isolava o “outro” dentro de sua própria casa. O
quarto do irmão mais velho era visto como território estrangeiro pelo caçu-
la, um enclave argentino na casa paulistana, se poderia pensar, não tivesse o
mesmo se tornado indevassável também aos pais, oriundos dessa terra. Hostil
ao convívio, surpreendeu a todos o modo como o menino usualmente cala-
do comemorou espontânea e efusivamente com seu sotaque o gol da equipe
Albiceleste que arruinaria o Brasil na Copa do Mundo de 1986. Aquele que
parecia tudo negar afirmava-se finalmente por meio do grito patriótico lança-
do à sala onde se encontravam vários brasileiros desolados com a eliminação
da sua seleção.
Havia um pibe argentino na família, não seria mais possível negá-lo.
Pela ação mais do que pelo discurso ele se revelava, como seria sua marca
pessoal de conduta, pois o grito fora acompanhado de um chute forte para
as pernas mirradas através do qual ele imitava o goleador Kemps no micro-
cosmos do círculo de amigos que assistia à partida de futebol, provocando o
riso da audiência. Essa diferença era sentida pelos irmãos: “Talvez fosse algo
que invejássemos, essa autonomia da sua identidade, que ele não precisasse
batalhar tanto por sua argentinidade. Ele nascera lá, seria sempre mais ar-
gentino do que nós, por menos que isso significasse” (FUKS, 2015, p. 19). A
“argentinidade” como invejada âncora em que o irmão pudesse afirmar-se se
mostraria ilusória. Ele deixaria de acompanhar a família nas visitas frequentes
à cidade natal assim que pudesse exercer essa vontade.

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Tratava-se, dessa forma, de uma “argentinidade” problemática, assu-
mida pela criança para isolar-se no seio familiar, sem possibilidades de des-
dobramento em vínculo com homens e mulheres nascidos no mesmo país.
Sua argentinidade era vivida como anteparo de defesa e de fechamento, sendo
usada basicamente como motivo para a recusa da partilha afetiva com aqueles
que o rodeavam. Se o movimento migratório faz o sujeito “se emancipa[r] da
origem ou da identidade primeira, em uma espécie de tradução ou translação
de si em outro” (OUELLET, 2012, p. 09), pode-se considerar que o persona-
gem resistiu à migração. Já o narrador, conforme a atividade de ficcionista lhe
permite, emancipa-se com facilidade da própria origem para mimetizar, no
primeiro plano de seu fazer literário, o drama alheio:

Não quero imaginar um galpão amplo, gélido, sombrio, o silêncio as-


severado pela mudez de um menino franzino. Não quero imaginar a
mão robusta que o agarra pelas panturrilhas, os tapas ríspidos que o
atingem até que ressoe o choro aflito. Não quero imaginar a estridência
desse choro, o desespero do menino em seu primeiro sopro, o anseio
pelo colo de quem o receba: um colo que não lhe será servido. Não
quero imaginar os braços de uma mãe em agonia, mais um pranto aba-
fado pelo estrondo de botas contra o piso, botas que partem e o levam
consigo: some a criança, resta a amplidão do galpão, resta o vazio. […]
Prefiro deixar que essas imagens se dissipem no inaudito dos pesade-
los, pesadelos que me habitam ou que habitaram uma cama vizinha à
minha. (FUKS, 2015, p. 11).

O interdito à fala é descumprido, como se constata, e a cena terrível do


parto como despedida é narrada, dada a pretensão de corporificar o irmão
no texto, o que justifica que o narrador contrarie os escrúpulos anunciados.
É necessário pudor para avançar no terreno turvo do nascimento do outro.
Ainda uma vez, ele demonstra a “paixão do outro” que caracteriza o estado
de migrância, movendo-se em sua direção, dedicando-se a suas questões, de-
batendo-se em razão de seus pesadelos: “Se posso ser sincero comigo, prefiro
não me deixar absorver pelas imagens desse nascimento” (FUKS, 2015, p. 12),
admite, reconhecendo ser preciso resistir ao enredo que sua imaginação ali-
menta em relação à cena. Ele não resiste, como se viu; a demanda de cuidado
reconfigura-se, e o nascimento é anunciado a partir de um deslocamento tem-
poral que faculta à história do irmão um início promissor:

Para conceder a esse nascimento o devido tom de alegria, o tom que eu


gostaria que ele merecesse, que meu irmão merecesse como toda vida
merece, eu teria que apelar aos sorrisos dos que logo se viram diante

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dele, dos que enfim se prestaram a chamá-lo de filho. Devem ter sido
amplos esses sorrisos, digno desfalecer dos nervos que caracteriza todo
ansiado alívio. (FUKS, 2015, p. 12).

Narrar o início da vida do irmão mostra-se tarefa sofrida, realizada sob


autossuspeição constante e severa vigilância, para que o mesmo não ficasse
exposto “numa jaula cujas barras são estas linhas” (FUKS, 2015, p. 73). É di-
lemático o processo narrativo em curso; mal conclui o relato, o narrador logo
o suspende por meio de rasura à versão anterior, que é desnarrada com um
recuo típico de imagem cinematográfica em marcha à ré. A cena do parto,
momento possivelmente traumático2 para o irmão, é afirmada como indevas-
sável. Sua enunciação, em fraterna cumplicidade, incorpora a tensão inerente
à fala de quem sofreu o trauma e precisa contá-lo sem ter como fazê-lo, dada a
irrepresentabilidade do horror vivido. Mais uma vez, esse que narra incorpora
o outro em si, e, pretendendo sentir como sua a dor alheia, recua, realizando
movimento de desnarrar a cena do parto, que não pode, não deve ser referida,
em respeito ao mesmo compromisso ético que o fizera inicialmente querer
narrá-la:

O parto eu não posso inventar, do parto nada se sabe. Pondero agora,


passadas tantas páginas, que deveria ter sido fiel ao impulso de supri-
mir aqueles pobres cenários imaginários, que deveria ter cedido à he-
sitação e calado sobre esse acontecimento insondável. Não foi assim,
não foi narrável o nascimento do meu irmão. O quarto branco ou o
opressivo pavilhão, o som de botas contra o piso ou as mãos doutas em
inspeção, basta, já chega, são todas ficções descartáveis, são meras de-
turpações. Que baixe os braços a mulher que os estendia em desrazão,
a mulher e sua ruína […]. Que se ignore também o menino, o menino
e seu desabrigo, o menino e sua salvação, aquele menino que também
não era meu irmão. O parto eu não posso inventar. Repito, do parto
não há informação.

Meu irmão nasceu dois dias depois de seu parto, nasceu numa casa
longínqua nos arredores de Buenos Aires [… ] descrevo por suposição.
(FUKS, 2015, p. 59).

2  O trauma é entendido aqui a partir de Aleida Assman (2011, p. 279) como parte inalienável
do homem que, ainda assim “não é assimilável na estrutura identitária da pessoa, é um corpo
estranho que estoura as categorias da lógica tradicional: ao mesmo tempo interna e externamen-
te, presente e ausente.”

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O nascimento do outro é dito inenarrável dentro da própria narração,
eis o modo como a representação do trauma do menino adotado surge dentro
do discurso literário do irmão escritor, que sofre de “um possível trauma por
compaixão” (FUKS, 2011, p. 21), conforme considera o narrador do roman-
ce anterior do autor, Procura do romance. As “botas” (possivelmente recur-
so metonímico de alusão aos militares) que levam a criança fazem parte de
seu grande receio – “fiz de um temor longínquo uma solene fantasia” (FUKS,
2015, p. 130), reconheceria ao final. Não havendo comprovação de sequestro,
crime reiteradamente praticado durante a ditadura argentina, cumpre-lhe re-
tirar o irmão da cena imaginária do trauma e instalá-lo no conforto da casa
onde era desejado: no modo de verdade da ficção, o filho mais velho do casal
Fuks nascera dois dias depois do parto, no aconchego do amor dos pais. Nem
mesmo esse início de vida alvissareiro, no entanto, mostra-se capaz de abrir
caminho para que o irmão se faça presente no texto:

Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre
um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de
mundo que costumamos chamar realidade – e uma inexorável dispo-
sição fabular […]. Nem mesmo com esse duplo artifício alcanço o que
pensava desejar. (FUKS, 2015, p. 95).

O fracasso é autoproclamado mais de uma vez, ainda que A resistência


traga a combinação de dados verídicos com elementos imaginários que ca-
racteriza a criação ficcional do autor, a qual se apresenta em sínteses sempre
novas. No interior do romance, essa hibridez é seguidamente apontada:“Essa
história poderia ser muito diferente se dela eu me lembrasse” (FUKS, 2015,
p. 20). A fusão do repertório da memória com a invenção ficcional cria um
projeto literário seguidamente problematizado pela voz enunciadora, e tam-
bém questionado por parte dos envolvidos no enredo, pais e irmãos, na con-
dição de personagens, conforme consta no penúltimo capítulo do livro. Se
nem mesmo lutando com suas melhores armas o narrador consegue inserir
o irmão em seu artesanato meticuloso, o autoenunciado malogro não deve
ser atribuído a qualquer falha no método da escrita, sugerindo muito mais a
insuficiência da literatura como instrumento de superação da precariedade
da vida:

Procurei meu irmão no pouco que escrevi até o momento e não o


encontrei em parte alguma. Alguma ideia talvez lhe seja justa, algu-
ma descrição porventura o evoque, dissipei em parágrafos sinuosos
uns poucos dados ditos verídicos, mais nada. Não se depreenda desta

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observação desnecessária, ao menos por enquanto, a minha ingenui-
dade: sei bem que nenhum livro jamais poderá contemplar ser huma-
no nenhum, jamais constituirá em papel e tinta sua existência feita de
sangue e de carne. Mas o que digo aqui é algo mais grave, não é um
formalismo literário: falei do temor de perder meu irmão e sinto que o
perco a cada frase. (FUKS, 2015, p. 23).

A perda do irmão durante o trajeto discursivo poderia situar o romance


dentro do que Alcir Pécora (apud FUKS, 2011) chama a “tradição agônica
de ficcionistas modernos (Joice, Kafka, Camus)”, que compõem uma literatu-
ra que “se mira num desafiador espelho crítico e se vê como um simulacro”.
Ocorre que a alegada falta de êxito literário acabaria por encorajar o narrador
a prosseguir sua busca no terreno implacável da vida, o único no qual a rei-
vindicação de afeto é passível de ser atendida. Esse aspecto parece dotar essa
ficção de lúcida autoconsciência acerca dos seus próprios limites, traço que a
afasta da tradição referida. Para pavimentar o caminho do texto para o real, o
narrador debate-se acerca do estatuto do discurso em processo de construção,
gerando impasse narrativo que vem à tona, ficcionalizado e desdobrado nas
páginas do romance enunciações autodefinidoras contraditórias. “Isso não é
uma história. Isso é história” (FUKS, 2015, p. 23), afirma a voz, mais adiante
mostrando-se indecisa nesse sentido: “Não consigo decidir se isto é uma his-
tória” (FUKS, 2015, p. 25).
O narrador de A resistência manifesta, assim, estar ciente de que o acer-
vo de sua memória particular fundamenta a perspectiva histórica pretendida
pela narrativa: “Isso é história e, no entanto, quase tudo que tenho ao meu
dispor é a memória, noções fugazes de dias remotos, impressões anteriores
à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malver-
sar em palavras” (FUKS, 2015, p. 23). Tal noção coincide com a concepção
de memória coletiva de Maurice Halbwachs (2006, p. 72), segundo a qual “o
mundo histórico é como um oceano no qual todas as histórias parciais desá-
guam. […] A história pode parecer ser a memória universal do ser humano.
Entretanto, não existe memória universal. Cada memória coletiva tem como
portador um grupo limitado” em termos de tempo e espaço.
Na narrativa de Fuks, as questões individuais e familiares efetivamente
deságuam no mundo histórico, permitindo ao leitor conhecer um pouco do
arbítrio das ditaduras latino-americanas a partir da trajetória de seus pais,
em relação aos quais o narrador demonstra notável abertura, logrando se-
guidas vezes reter um pouco deles em si e em sua própria focalização enun-
ciativa, como se viu. Já em relação ao irmão, a passagem ao outro mostra-se

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desafiadora, sendo o motivo maior da escrita do romance, e somente se rea-
lizando em relances que presentificam ao narrador o sentido das negativas
alheias no próprio espaço que as originou. Há no enredo, no entanto, situa-
ções em que o narrador vivencia distanciamento insuperável também em rela-
ção à perspectiva dos pais, como na cena da partida de Buenos Aires, relatada
com angustiada assintonia:

Dessa viagem não sei muito, há algo nela que me escapa, não faço ideia
do que conversavam – não sei se a partida era melancólica ou desespe-
rada, ou se já se prenunciava um momento de maior tranquilidade, o
acolhimento que o Brasil lhes daria, a eles, que nem planejavam ficar.
Imagino o carro singrando a planície ensolarada e é como se meu olhar
se afastasse, como se visse do alto, paisagem com carro em velocidade.
Acirra-se assim a consciência de que ali eu não estava, de que ali eu não
podia estar, de que aquela travessia apressada é só um acontecimento
ancestral da minha própria história, essencial por algum motivo que
não sei explicar bem, ou que não vem ao caso. (FUKS, 2015, p. 82).

Em tensionado embate entre o próprio e o alheio, o filho narra de fora,


“como se visse do alto” (FUKS, 2015, p. 82) a saída dos pais de sua terra. De
outra forma, cenas anteriores, marcadas pelas ameaças que rondavam o casal
em solo argentino, e que acabariam, inclusive, precipitando a sua fuga, são
narradas de um ponto de vista muito próximo: “Conheço, ainda que indireta-
mente, a sensação de casa tomada” (FUKS, 2015, p. 52). De perto ou de longe,
o filho acompanha no percurso narrativo a trajetória espacial e sentimental
dos pais, alternando sucessivamente de posição. Trata-se de uma metamor-
fose representativa da identidade migrante, que muitas vezes extrapola a na-
tureza geocultural, assumindo natureza ontológica e simbólica, “uma vez que
caracteriza o próprio deslocamento do sentido e do ser na experiência íntima
da alteridade” (OUELLET, 2012, p. 4).
Intimamente motivado pelo outro, o narrador parece habitar em sua
escrita um “buraco no tempo e no espaço, onde vive e sobrevive entre uma
memória e uma esperança” (OUELLET, 2012, p. 4), ambas relacionadas, na
construção do romance, à figura do irmão, dizendo respeito respectivamen-
te à sua origem turva e ao encontro que a forma bem-sucedida da narrativa
viabilizaria entre ambos. Os pais aí surgem na condição de tronco comum
entre ambos e base em relação à qual o protagonista tanto se orienta quanto se
distancia. Filho orgulhoso de um guerrilheiro de esquerda, o mesmo constata
comparativamente “a própria inércia” (FUKS, 2015, p. 38), mas logo reconhe-
ce uma instância cotidiana da militância daqueles com a qual se identifica: “o

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hábito de questionar, disputar, discutir. Agora que assim os vejo, sinto que não
me diferencio, ou que neste momento não o desejo. […] Estou com meus pais
[…]. Que se limite a insubordinação ao ato reflexivo (FUKS, 2015, p. 109).
Igual e diverso de si, constituindo-se no mergulho naquilo que não lhe
pertence, com especial interesse na vida familiar, esse narrador escritor realiza
a migração metafórica que a alteridade própria à experiência estética permite
(OUELLET, 2012, p. 17). Dos pais, faz-se próximo e também distante, como
na revelação de pontos opacos em seu vínculo: “Quase tudo o que me dizem,
retiram; quase tudo o que quero lhes dizer se prende à garganta e me desa-
lenta” (FUKS, 2015, p. 40). Trata-se de uma identidade narrativa migrante,
que se modela no espaço e tempo de sua própria história, sob o olhar do ou-
tro, “sujeito a uma dupla propensão à concordância e à discordância, às con-
vergências e às divergências, enfim, às identificações e as diferenciações – às
identificações ao outro, pelo que ele se altera, e às diferenciações do outro, pelo
que ele se identifica” (OUELLET, 2012, p. 10).
A experiência do exílio que marca a família também os une e os separa,
visto que os pais haviam sofrido um corte abrupto em sua história de vida,
e aos filhos coube a perda simbólica de um país que lhes surgiu já no hori-
zonte da saudade dos genitores, constituindo a perda de algo que nunca fora
seu. “Pode um exílio ser herdado? Seríamos nós, os pequenos, tão expatriados
quanto nossos pais? Devíamos nos considerar argentinos privados do nos-
so país, da nossa pátria? Estará também a perseguição política submetida às
normas da hereditariedade?” (FUKS, 2015, p. 19), indaga-se o filho brasileiro,
buscando entender as condições de existência da segunda geração de exilados,
abarcável no conceito de “pós-memória”, o qual, segundo Marianne Hirsch
(2014, p. 339 tradução nossa), “descreve a relação que as gerações seguintes
ou as testemunhas contemporâneas distantes mantêm com o trauma pessoal,
coletivo e cultural de outros […].”3
Sem ter de fato vivido o trauma dos pais, o filho não deixa de estar
sujeito a seus desdobramentos, não apenas por ter recebido algo de seu desa-
brigo como herança, mas principalmente por ter, como se viu, o perfil identi-
tário complexo do migrante ao colocar em narrativa a ficção de si em relação
íntima com a alteridade. Acompanhando os passos dos pais em boa parte das
páginas de A resistência, o narrador pretende-se legítimo portador de suas
lembranças: “sinto que sou em parte um ser que moldaram para contá-los,
minha memória é feita de sua memória, e minha história haverá sempre de

3  “Postmemory describes the relation-ship that later generations or distant contemporary wit-
nesses bear to the personal, collective, and cultural trauma of others […]”

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conter a sua história” (FUKS, 2015, p. 104). Para Ouellet, o espaço-tempo do
migrante coincide com uma abertura a espaços e memórias mais amplos que
os da sua raiz identitária individual:

As narrativas da migração são histórias de despossessão e expropriação,


a menos que não sejam vividas em um modo disfórico ou negativo: a
perda do si antes acrescenta ao sujeito uma alteridade a ele mesmo, que
o libera de suas raízes, estende-o no tempo e no espaço, dando-lhe um
outro lugar e uma outra memória, de modo que suas fronteiras interio-
res e exteriores transpõem-se uma após outra, liberando a passagem a
tudo que pode transformá-lo, dar-lhe forma novamente, a partir de um
outro fundo. (OUELLET, 2012, p. 16).

A perda de si nas situações citadas acrescenta ao narrador a alterida-


de da memória familiar argentina, que, ao invés de liberá-lo de suas raízes,
estendendo-o no tempo e no espaço para receber lugares e memórias novas,
reforça dentro de si vínculos que recompõem o laço que o exílio dos pais rom-
pera. Ele se torna, assim, um ser cujas fronteiras interiores não são transpostas
à frente, mas combinadas em um movimento para trás, que lhe dá forma a
partir de um fundo conhecido que deve ser confrontado em sua construção
identitária particular. Tal situação já comparecia na obra de estreia, em cujo
enredo o protagonista, um aspirante a escritor nascido no Brasil, deslocava-
-se até Buenos Aires para compor uma voz autoral buscando reconhecimen-
to “por identificação ou diferença, de seu passado e de suas origens” (FUKS,
2011, p. 21).
Em A resistência, a circunstância se prolonga – o personagem, já autor
de ficção, mantém-se em constante interrogação sobre o peso da raiz estran-
geira na conformação de seu imaginário pessoal, como se viu. Fora da diegese
romanesca, a profunda inserção na cultura argentina permitiu a Julián Fuks
encarregar-se da tradução do romance para a edição em espanhol publica-
da no país vizinho. Pode-se considerá-lo, assim, um escritor “errante entre as
línguas” (SAID, 2003, p. 46), pertencente ao que George Steiner, citado por
Edward Said em “Reflexões sobre o exílio”, entende ser uma vertente “extrater-
ritorial” de literatura, que seria feita por exilados e sobre exilados, símbolo da
era do refugiado. Confirmariam a pertinência da designação à narrativa em
foco a circunstância autoral de exilado por herança, a temática e sobretudo a
focalização narrativa marcada pelo desejo do narrador de estar com os pais e
principalmente com o irmão nos impasses que atrelam suas vidas à conjuntu-
ra histórica do arbítrio ditatorial argentino.

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Seria possível apontar em A resistência, portanto, a perspectiva da “ex-
traterritorialidade” como derivada do movimento através do qual a instância
narrativa do romance orienta-se para o outro identificado com o núcleo fami-
liar estrangeiro, pautando centralmente o tópico do exílio, no caso dos pais, e
o da adoção, no que toca ao irmão. A condição de viajante no terreno da fic-
ção não parece bastar ao narrador para contemplar a individualidade fechada
deste, que, mesmo vivendo sob o mesmo teto, mantinha-se fora de alcance no
lar brasileiro. Para encontrá-lo, o caçula precisa viajar à sua terra, realizando
migração contrária àquela realizada pelos pais com sua criança no passado,
“autoexilando-se” voluntariamente no país de onde precisaram exilar-se aque-
les.
Na cidade de onde partiram os três, mais do que informações, parece
buscar recordações de um passado com o qual se identifica por julgar como
irresistivelmente próprias as questões alheias: “como antes pelo texto, parto
por esse apartamento à procura de rastros do meu irmão, atrás de algo que
me restitua a sua realidade” (FUKS, 2015, p. 24). Trata-se de lembranças da
vida familiar, lembranças que Maria Zilda Ferreira Cury (2020, p. 68) entende
ocuparem “espaço limiar entre o factual e o imaginário.” Percorrer os primei-
ros cenários de vida do irmão constituía um modo de reviver algo do seu pas-
sado cerca de trinta anos depois que fora levado do país ainda bebê, em uma
investigação muito mais interna do que exterior: “Procuro esse apartamento,
o apartamento onde viveram meus pais. Procuro esse apartamento embora
saiba que não poderei entrar” (FUKS, 2015, p. 56).
Confirmado o endereço, e avistado o prédio em que a família vivera, o
narrador parece já ter alcançado o que precisava para compor o cenário dos
meses iniciais do irmão em Buenos Aires, o cenário do enredo que está escre-
vendo: “Precisei me isolar nesta cidade velha, precisei me pôr a escrever ve-
lhas histórias (FUKS, 2015, p. 120). O comentário alude ao livro que estamos
lendo, no qual escreve a história da família, investigando dentro dela o lugar
do irmão, o seu lugar: “Sou eu, e não ele, que desejo encontrar um sentido,
sou eu que desejo redimir minha imobilidade, sou eu que desejo pertencer
ao lugar que nunca pertenci” (FUKS, 2015, p. 130-131), comenta. O desejo
de pertencimento ao território argentino confirma a “paixão do outro” que
caracteriza o imaginário migrante do narrador, aproximando-o do irmão e
confundindo-se com a vontade de superação da distância que os separava.
“Menos estrangeiro no lugar que no momento…” diz Caetano Veloso
na canção “Estrangeiro”, constante do álbum de mesmo nome (1989), o que
revela muito da situação desse protagonista. No incessante movimento que

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realiza em direção ao que lhe é diverso, o mesmo reconhece o próprio “sensí-
vel fracasso em sentir” (FUKS, 2015, p. 60), decorrência de um temperamento
muito mais apto “ao exame obsessivo dos sentimentos” (FUKS, 2015, p. 133)
do que propriamente à experiência dos mesmos. Ainda que já soubesse que “o
corpo [se] aproxima do cerne muito mais do que a razão, pois o corpo é mais
urgente, não vê razão na continência, não perde tempo em mentir” (FUKS,
2015, p. 60), será no território distante do primogênito que, perscrutando os
sentimentos do irmão, inaugurará novos sentidos acerca da resistência do
mesmo em ocupar aquele espaço:

Caminho pelas ruas de Buenos Aires, observo o rosto das pessoas.


Escrevi um livro inteiro a partir da experiência de caminhar pelas ruas
de Buenos Aires e observar o rosto das pessoas. Queria que me ser-
vissem de espelho, que em cada esquina me replicassem, que eu me
descobrisse argentino pela simples aptidão de me camuflar, e que assim
pudesse enfim passear entre iguais. Nunca pensei como seria para meu
irmão caminhar pelas ruas de Buenos Aires. Que incerta aflição corre-
rá por sua espinha a cada traço reconhecível, a cada gesto habitual, a
cada olhar mais fixo, a cada figura que lhe pareça familiar. Que imenso
receio – ou que cruel expectativa – de que algum dia um rosto se lhe
revele espelho, que à sua frente de fato apareça um igual, e que esse
igual se replique em tantos mais. (FUKS, 2015, p. 18).

O irmão mais novo é tomado em Buenos Aires pela ideia do outro,


do qual se aproxima por meio de sua presumida dor: “É nessa espécie de
mergulho em si mesmo que o outro se revelará” (OUELLET, 2012, p. 17).
Incorporando os receios alheios em si, pode identificar as razões pelas quais
o irmão argentino possivelmente tenha se desfeito do próprio país. Para os
pais exilados e seus filhos brasileiros, as frequentes estadias em Buenos Aires
eram “longas temporadas em que tratávamos de recobrar aquele algo que nos
fora, indiretamente talvez, roubado” (FUKS, 2015, p. 19). Junto à irmã, ele en-
tende-se muito afinado aos pais no sentimento de ligação ao país vizinho. Ao
irmão, unido aos pais pela nacionalidade, não parecia ser possível recuperar o
que quer que fosse na terra natal, recusa que o protagonista começa em dado
momento a entender:

Súbito compreendo, ou creio compreender, porque meu irmão deixou


de frequentar essa cidade que nunca soubemos abandonar. De Buenos
Aires meus pais foram expulsos quando ele não somava nem seis meses
de idade, de Buenos Aires nos sentíamos todos alijados enquanto não
lhes permitiam retornar – mesmo que alguns de nós, minha irmã e eu,

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nem sequer houvéssemos pousado os pés mínimos em suas calçadas.
(FUKS, 2015, p. 18-19).

Avançando por suposição e projeção no terreno invariavelmente obs-


curo da alteridade, o irmão mais jovem entende, ou parece entender, como
gosta de dizer, na severidade com que costuma julgar a si e aos outros, a rejei-
ção do mais velho à cidade em que nascera. Existe um ponto cego à frente, do
qual seus pés se recusam a aproximar-se: “caminho sem conseguir me situar,
desenho círculos retos na cidade quadriculada. Estou perdido, mas demoro a
achar que estou perdido, demoro a acreditar que possa me perder em meio a
tal rigor topográfico” (FUKS, 2015, p. 128). Perder-se desse modo sinaliza no
personagem uma resistência em avançar que provém da angústia do outro in-
tuída em si naquele espaço: “Se estou perdido e caminho em círculos em uma
cidade tão lógica, pondero em plena marcha, é porque não quero chegar a um
ponto central, é porque resisto a alcançar o destino que escolhi, é porque fujo
de algo que me espera no final” (FUKS, 2015, p. 128).
O caminho que o protagonista relutava seguir levava à Sede das Mães
da Praça de Maio, em cuja porta se paralisam seus movimentos, como antes
à porta do apartamento. Existe um aprendizado em curso, e este está ligado
ao sentimento do irmão, que se apossa de si: “Hesito um instante na porta,
não me decido a entrar. Já estive ali outras vezes. […] Agora descubro que
não quero entrar, que estou parado na porta e não queria estar parado na
porta. Que estou parado na porta porque queria que meu irmão estivesse em
meu lugar (FUKS, 2015, p. 19). Sentindo como sua a ferida alheia, o narrador
passa a desejar que o irmão adotado no final dos anos 1970 não necessitasse
padecer, como julga que padecesse, diante das mulheres que incansavelmente
buscaram por décadas, e seguem buscando, seus filhos e netos desaparecidos.
Tocado pelo outro, o narrador representa na escrita a premência do corpo na
última etapa da busca do irmão:

Agora não sei mais por onde ir. Agora paraliso diante das letras e não
sei quais escolher. Agora sim, por um instante, posso sentir: queria
que meu irmão estivesse aqui, a pousar sua mão sobre a minha nuca, a
apertar meu pescoço com seus dedos alternados, tão suaves, tão sutis, a
me indicar a direção que devo seguir. (FUKS, 2015, p. 96).

Está por encerrar-se o percurso de resgate do irmão através da escrita.


Tendo finalmente atingido o próprio “sentir”, o narrador pode abandonar a
atividade demiúrgica do texto, que demonstra ter cumprido sua função: “Falar
da família, […] escrever sobre a família e refletir tanto sobre ela não equivale

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a vivê-la, a partilhar sua rotina, a habitar seu presente” (FUKS, 2015, p. 133).
O personagem precisa então oferecer ao irmão o volume que corporifica sua
busca, demonstração incontestável de afeto resistente, em cujo processo de
composição contou com a cumplicidade dos leitores. Para tal, conta com o
apoio possível do pai, que manifesta franco constrangimento em relação ao
que julga uma exposição excessiva dos conflitos caseiros, mas ainda assim lhe
dá o aval indispensável à divulgação do romance: “vá em frente, Sebastián,
você fez o que tinha que fazer” (FUKS, 2015, p. 137).
A voz que narra passa a gozar, a partir desse momento, do prestígio de
um nome em virtude do reconhecimento paterno, que, através do batizado,
lhe atribui identidade de autor no interior da trama. Está pronto, enfim. Nada
lhe falta além do que precisa descobrir ao final do corredor de seu aparta-
mento. Sebastián decide então avançar na direção do quarto do outro, sem
saber ainda ao certo o que pretende ali. O menino que tantas vezes relutou
à porta está consigo, o passado inteiro comparece no bater de seus dedos à
porta – “neles ecoa uma longa jornada de medos e irresoluções” (FUKS, 2015,
p. 138) que está por concluir-se. Tomado de um medo e uma insegurança
imemoriais, com o livro debaixo do braço, o irmão adentra o quarto no qual
antes se exilara, supondo a partir desse momento poder ali se sentir em casa:

Entro de cabeça baixa no quarto e é como se o ocupasse, como se não


restasse espaço para mais nada; noto que no quarto não cabem as pa-
lavras. Em segundos lhe darei o livro, e talvez as palavras encontrem o
seu lugar. Por ora, agora sim, me limito a olhar meu irmão, ergo a ca-
beça e meu irmão está lá, abro bem os olhos e meu irmão está lá, quero
conhecer o meu irmão, quero ver o que nunca pude enxergar. (FUKS,
2015, p. 139).

As palavras não se prestam para nada no interior do quarto, elas apenas


abriram-lhe o caminho para ali entrar: “No espaço de uma dor cabe apenas o
silêncio” (FUKS, 2015, p. 75), dissera o protagonista. Também no espaço da
ânsia que antecede o encontro com o desconhecido cabe apenas o silêncio.
Não é à toa que, no trajeto de narrar o irmão, o personagem escritor confi-
denciara desejar que seu texto “falasse como dois olhos” (FUKS, 2015, p. 96),
se expressasse como corpo, corporificasse o sentido de sua reivindicação por
inserir-se na vida do outro. Agora é ele que precisa abrir bem os seus olhos
para poder, afinal, enxergar o irmão que está à sua frente, um corpo firme
disponível ao abraço finalmente possível.
A resistência encerra-se, dessa forma, com o convite de que o irmão
possa arriscar-se no terreno sempre instável dos vínculos da afetividade, ao

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menos iniciando o trajeto dificílimo da migração para a família que queria
estar consigo, e para o país que o recebera sem ter sido reconhecido como seu
chão. Assim poderia ser adotado por ambos, deixando de resistir na condição
de estrangeiro em que sempre se protegera, mas permitindo que se abrissem
fendas na alteridade intransigente que o constituía, o que viabilizaria a si e
aos demais a experiência do encontro com o outro, que inaugura novas pos-
sibilidades de vida em cada um. Trata-se de uma possibilidade apenas aber-
ta pela literatura, à qual o irmão poderia, sem dúvida, manter-se em franca
resistência.

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.


Tradução: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cul-
tural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011.
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Um mundo com fronteiras: deslocamentos
e relocalizações em Adriana Lisboa

Vander Vieira de Resende1

viajam em busca de um lugar que não existe.


Maria Izabel Pires

Um dia, no nosso país – esse que ficou para trás sem que tenha-
mos conseguido colocar outro no lugar –, o tempo era ainda de
delicadeza. E era Dia de Todos os Santos.
Adriana Lisboa

Deslocados em busca de um lugar

Entre inúmeras narrativas brasileiras contemporâneas em que persona-


gens surgem deslocadas fora das fronteiras nacionais, os romances de Adriana
Lisboa possibilitam analisar representações de consequências sociais e cultu-
rais, tantas vezes nefastas, de mobilidades e trânsitos globais. De modos por
vezes dissonantes, esses romances flagram complexos processos de desloca-
mentos (espaciais, nacionais, culturais, identitários, subjetivos, afetivos), em
múltiplos tipos (por viajantes, turistas, expatriados, emigrados, exilados, refu-
giados, retornados), espaços, tempos e vozes, ao representar personagens que,
inicialmente, seriam paradigmáticos da condição contemporânea expressa em
“narrativas de deslocamentos”: sujeitos deslocados fora de suas nações (de)
partida2, vivenciando, tantas vezes, a intensificação da falência das relações
familiares e comunitárias, em meio a conflitos subjetivos e identitários.

1  Doutor em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. Foi um dos vencedores do 1º Prêmio
“Construindo a Igualdade de Gênero”, promovido pela então Secretaria Especial de Políticas
para Mulheres (SPM) da Presidência da República. Atualmente é professor da rede pública esta-
dual do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
2  O conceito de “nação (de) partida” foi desenvolvido em tese de doutorado, sobretudo, no
capítulo “Narrativas de deslocamentos e a nação (de) partida” (RESENDE, 2020). Resumida-
mente: “nação partida” se refere aos conflitos causados por perseguições político-ideológicas e
outras formas de violência estrutural, em que sujeitos deslocados não percebem mais a nação de

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Representações de deslocamentos para além das fronteiras nacionais
têm sido uma constante na série literária brasileira. Embora distingam-se pe-
culiaridades de contextos históricos, ideológicos e culturais, conforme moti-
vações e tipos diversos de mobilidades internacionais, tais representações po-
dem ser identificadas em menor grau desde séculos passados, em romances de
escritores “românticos” como José de Alencar, “naturalistas” como Aluísio de
Azevedo, “realistas” como Machado de Assis, “modernistas” como Oswald de
Andrade, ampliando-se nas narrativas dos anos 1970 e explodindo na ficção
brasileira contemporânea (RESENDE, 2020). Mesmo que encontrados desde
séculos passados, houve um aumento exponencial do número de representa-
ções de deslocamentos para fora do Brasil nas últimas décadas, em trânsitos
associados ao recrudescimento da globalização, às crises da nação partida, às
fragmentações de identidades culturais, aos múltiplos descentramentos de su-
jeitos.
Conforme Zolin (2018), por exemplo, entre 88 romances escritos por
mulheres3, de 2000 a 2015, nada menos que 21 deles, ou seja quase 25%, re-
presentavam personagens, sobretudo femininas, a deslocar-se para fora das
fronteiras nacionais. São tantas essas narrativas que muitos estudiosos da lite-
ratura chegam a definir as representações de personagens brasileiras desloca-
das pelo globo como uma nova vertente da literatura brasileira, denominada,
até mesmo, como “literatura de emigração” (PIRES, 2014). Entre distintos es-
tudos literários que abordam tais romances, destaquem-se trabalhos que ana-
lisam aqueles produzidos por brasileiros residentes: no Brasil, mas escrevendo
transnacionais “narrativas de deslocamento” (BRASILEIRO, 2014); nos EUA,
produzindo “narrativas brazucas” (IRISH, 2016); e, ainda, em vários lugares
do mundo, elaborando uma “literatura da diáspora brasileira” (VIEIRA, 2015).
Nessas análises, constata-se a ampliação de uma vertente de deslocamentos na
série literária.
Em um rol não exaustivo, de representação de mobilidades de tipos e
por razões diversas, nas duas primeiras décadas do século XXI, foram publica-
dos: Todos os Santos (2019), Adriana Lisboa; Com armas sonolentas (2018), de
Carola Saavedra; A noite da espera (2017), de Milton Hatoum; Como se estivés-
semos em palimpsesto de putas (2016), de Elvira Vigna; Enigmas da Primavera

nascimento ou adoção enquanto comunidade imaginada; “nação de partida” decorre da saída


para fora das fronteiras nacionais de personagens em crises subjetivas e afetivas, que os levam a
um intenso sentimento de desespero, desamparo e/ou melancolia.
3  Embora extenso, Zolin restringe seu corpus a romances publicados, apenas, em três grandes
editoras: Companhia das Letras, Rocco e Record.

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(2015), de João Almino; Flores Artificiais (2014), de Luiz Ruffato; Vidas Pro-
visórias (2013), de Edney Silvestre; Nihonjin (2011), Oscar Nakasato; Algum
lugar (2009), de Paloma Vidal; A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy;
Samba Dreamers (2006), de Kathleen de Azevedo; Cinzas do Norte (2005), de
Milton Hatoum; Até o dia em que o cão morreu (2007), de Daniel Galera; Mon-
gólia (2003), de Bernardo Carvalho; Budapeste (2003), de Chico Buarque; Ber-
keley em Bellagio (2002), de João Gilberto Noll.
Em sintonia com essa linha de publicações, a editora Companhia das
Letras lançou o projeto multimídia “Amores Expressos”. A editora enviou 16
escritores brasileiros para 16 países diferentes para criarem histórias que ne-
les se passassem. Entre as narrativas do projeto, algumas das mais analisadas
pelos estudos literários são: Cordilheira (2008), de Daniel Galera; O filho da
Mãe (2009), de Bernardo Carvalho; Estive em Lisboa e lembrei de você (2009),
de Luiz Ruffato; O único final feliz para uma história de amor é um acidente,
de João Paulo Cuenca (2010); O livro de Praga (2011), de Sergio Sant’Anna. Na
maioria desses romances, foram narradas experiências amorosas e de trânsitos
de personagens brasileiras, em complexos contatos transculturais. A coleção
“Amores Expressos” tornou-se exemplar da representação das mobilidades
globais de brasileiros, o que atestava, além de valores literários, culturais, per-
formáticos, um valor mercadológico das “narrativas de deslocamentos”.
Ao discutir a representação de viajantes, em um sentido amplo, na li-
teratura brasileira, Maria Isabel Edom Pires (2014) identifica quatro tipos ca-
racterísticos em momentos diversos: viajantes-naturalistas europeus no Brasil,
sobretudo no século XVIII, na literatura não ficcional; viajantes mundanos
brasileiros na Europa, no século XIX; imigrantes no Brasil, no século XX; e
brasileiros emigrados, com níveis diversos de consciência de exílio e de contato
com a clandestinidade, na contemporaneidade. Após caracterizar rapidamen-
te os três primeiros, Pires analisa quatro romances que ilustrariam viajantes
na literatura de emigração: Lorde (2004), de João Gilberto Noll; Algum lugar
(2009), de Paloma Vidal; Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), de Luiz
Ruffato; e Azul corvo (2010), de Adriana Lisboa. A pesquisadora segue a refle-
xão de Paloma Vidal ao considerar que tais narrativas representariam como a
“viagem […] não facilitaria o encontro do eu, mas encaminharia o personagem
ao estranhamento e à deformação” (PIRES, 2014, p. 392). Em contraste com
os “momentos” anteriores, essas representações de viajantes contemporâneos
emergiriam em “paisagens rasuradas, distanciando-se do cenário pitoresco, da
implantação das ideias liberais, da construção da nação” (PIRES, 2014, p. 401).
Ainda segundo Pires, em comum, tais romances configurariam personagens

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em condições várias de clandestinidade, não lugar, instabilidade, estrangeiri-
dade, desapego, desvinculação de raízes, modelos de família e de nações.
Além desses, há alguns outros aspectos diferenciais que, nem sempre,
têm sido considerados pela maior parte de uma cada vez mais extensa for-
tuna crítica concernente aos romances de Adriana Lisboa, constituindo uma
incerta diferença no modo de construir narrativas não só de deslocamentos,
mas, sobretudo, de relocalizações. Nesse sentido, este estudo investiga uma das
peculiaridades de romances de Lisboa na representação de personagens viven-
ciando deslocamentos transfronteiriços, ao focar a disseminação de reergui-
mento e recrudescimento de fronteiras e barreiras, em um pretenso “mundo
sem fronteiras”.

Recrudescimento das fronteiras

se o capital circula, hoje, livremente, em todos os países, o mes-


mo não ocorre com o trabalho, cujos entraves de circulação são
por demais evidentes, continuando nosso mundo a ser marcado
por uma globalização desigual e assimétrica.
(Maria Zilda Cury)

Ao introduzir um diálogo entre Gayatri Spivak e Judith Butler acerca


de Quem canta o Estado-nação?, Vanderlei Zachi e Sandra Almeida (2018, p.
9) assinalam que “toda essa movimentação, em escala global, tem contribuído
também para o esmaecimento das fronteiras nacionais e para o destaque do
caráter transitório dessas fronteiras”. De várias formas, Adriana Lisboa figura
esse caráter transitório de fronteiras, em termos culturais, históricos e linguís-
ticos:

Minha mãe ganhava a vida dando aulas de inglês para os mexicanos


que migravam de volta para o Novo México – tempos depois de os ame-
ricanos terem migrado para lá, como ela gostava de dizer. Quem era
estrangeiro ali, quem era local? Que língua a terra falava? (Na essência,
não falava inglês nem espanhol, porque os povos que estavam ali quan-
do os exploradores e os conquistadores chegaram eram navajo e anasazi
e ute. E outros. E outros antes desses. Mas nenhum com o sobrenome
de Coronado ou Oñate, nenhum conhecido pela alcunha de Cabeza de
Vaca. Ou Billy the Kid) (LISBOA, 2014b4, p. 37).

4  Obra com primeira edição publicada em 2010.

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De forma condensada, a narradora-protagonista Vanja problematiza o
estatuto dúbio de estrangeiro, de locais, de nações, o processo de conquista
e exploração do oeste distante5 estadunidense, bem como a transitoriedade
das fronteiras, a mobilidade das línguas e, em certo sentido, as invenções de
tradições.
Em perspectiva similar, a multiplicidade de deslocamentos e a ampla
mobilidade por dezenas de personagens de romances de Adriana Lisboa pos-
sibilitam repensar um outro fator enfatizado por Zachi e Almeida: o “esmae-
cimento” das fronteiras. Joachim Blatter também descreve um processo simi-
lar, em que se estaria “Desfronteirizando os Estados-Nações”6: “[o] sistema
westfaliano de estados-nação soberanos está sendo desafiado à medida que
as administrações nacionais perdem seu ‘papel de guardiãs dos portões’ en-
tre as políticas domésticas e internacionais” (BLATTER, 2001, p. 175)7. Em
meio à proliferação de teorias e críticas transdisciplinares, a leitura de Blatter é
uma entre muitas que expressaram, nas últimas décadas, a utopia liberal de um
“mundo sem fronteiras”, sobretudo nos anos 1990, após o colapso da URSS
e da queda do Muro de Berlim. Embora tal leitura pudesse ser, naquele mo-
mento, adequada em relação ao espaço da União Europeia – foco da análise de
Blatter –, seria ela pertinente para considerar as fronteiras ao redor do mundo?
Como esclarece Achille Mbembe (2019), ao discutir um utópico mun-
do sem fronteiras para além da perspectiva kantiana ou individualista liberal
[ou neoliberal], “se você tem um passaporte americano, basicamente pode ir
aonde quiser. O mundo pertence a você. Mas não é assim que funciona para
todo habitante do nosso planeta”. Talvez haja, nesse sentido, um mundo sem
fronteiras, mas apenas para sujeitos que possuem identidades, passaportes,
qualificações, recursos e/ou contatos adequados, ou para “o capital, os bens e
os serviços” (MBEMBE, 2019).
Vários pensadores das ciências sociais, geografia e filosofia (HARDT;
NEGRI, 2001; NEWMAN, 2006; MBEMBE, 2019; SANTOS, 2019) questio-
nam um discurso (neo)liberal de um mundo sem fronteiras, ao problematiza-
rem uma crença de que a globalização ampliaria as possibilidades de trânsito
e a mobilidade das pessoas em termos irrestritos, gerais e globais. Contudo,

5  “Far West”, ou faroeste, extremo oeste.


6  Tradução livre de “Debordering the Nation-States”, título do artigo de Blatter. Doravante, as
traduções de textos originais em inglês são de minha autoria.
7  “The Westphalian system of sovereign nation-states is being challenged as national administra-
tions lose their ‘gate-keeper-role’ between domestic and international politics” (BLATTER, 2001,
p. 175).

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tal crença permanece mesmo que a prática seja cada vez mais distinta, tanto
nos estados-nação capitalistas centrais e desenvolvidos (a exemplo dos EUA,
Inglaterra, Itália, Espanha, França, Austrália), quanto em estados periféricos,
semiperiféricos ou em desenvolvimento (a exemplo de Grécia, Hungria, Co-
lômbia, Turquia, Índia, China). Embora de modos diversos, cada um desses
estados-nação restringe o trânsito de sujeitos de e para seus territórios, ao
mesmo tempo em que colocam em prática os princípios do neoliberalismo em
termos econômicos e ampliam os fluxos de mercadorias, produtos financeiros
e a desregulamentação do Estado (ABDALA JR., 2013; DOWBOR, 2017). Ma-
nuel Castells (2010) é direto e contundente:

[s]e há uma economia global, deveria haver um Mercado de trabalho


global e uma força de trabalho global. No entanto, como muitas de tais
afirmações óbvias, tomadas em seu sentido literal, é empiricamente er-
rado e analiticamente incorreto. Enquanto o capital flui livremente nos
circuitos eletrônicos das redes financeiras globais, o trabalho ainda é
altamente constrangido, e continuará a ser no futuro previsível, por ins-
tituições, cultura, fronteiras, polícia e xenofobia. 8

Haveria, portanto, um seletivo processo de controle de fronteiras, em


meio à expansão do capitalismo financeiro transnacional, em relação ao qual
as fronteiras financeiras e comerciais se abririam cada vez mais. Entretanto,
na última década, há ressalvas até mesmo a essas modalidades de trânsitos
globais, ao se considerar os fortes indícios de que, desde 2016, intensifica-se
uma “nova guerra fria”, no momento, início da década de 2020, ainda, apenas,
comercial e tecnológica, entre EUA e China, por exemplo.
Quanto aos deslocamentos humanos, mesmo nos anos 1990, havia a
recorrência de fronteiras relativamente seletivas para migrantes e expatriados,
favorecendo-se trânsitos de funcionários de empresas transnacionais ou orga-
nizações supranacionais sediadas em cidades-globais (SASSEN, 2004), princi-
palmente do Ocidente, e incentivando-se a mobilidade de estudantes e profis-
sionais altamente qualificados provenientes da periferia e da semiperiferia, em
um processo de drenagem de cérebros.
Contudo, ainda que se considerem seletivas, abertas, fechadas, líquidas
ou densas, as fronteiras têm se constituído como barreiras, algo que contra-

8  No original: “If there is a global economy, there should be a global labor Market and a global
labor force. Yet, as many such obvious statements, taken in its literal sense it is empirically wrong
and analytically mis-leading. While capital flows freely in the electronic circuits of global financial
networks, labor is still highly constrained, and will be for the foreseeable future, by institutions,
culture, borders, police, and xenophobia” (CASTELLS, 2010, p. 247).

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diria a concepção idealizada de um “mundo sem fronteiras”. Segundo Avtar
Brah (1996, p. 152), as fronteiras internas dos países da União Europeia foram
oficialmente derrubadas em 1993, “[c]om a intenção de permitir a livre circu-
lação de capitais, bens, serviços e certas categorias de pessoas”9. Destaque-se
a expressão “certas categorias de pessoas”, e registre-se que uma das principais
razões alegadas por aqueles que votaram pela saída da Grã-Bretanha da União
Europeia, em 2016, o renomado Brexit, foi justamente a questão das migra-
ções, sobremaneira aquelas provenientes dos países do leste europeu para a
Inglaterra.
Um brevíssimo tour por algumas das nações da Europa Ocidental e
EUA propicia uma série de anedotas que permitem vislumbrar a disseminação
de um discurso de densificação das fronteiras nacionais: na França, o partido
xenófobo e anti-imigrante Front National, liderado por Marine Le Pen, a cada
eleição aumenta sua margem de votos; na Inglaterra, em 2019, o conservador
Boris Johnson, um dos líderes do movimento pelo Brexit, foi eleito primeiro-
-ministro, e Nigel Farage – um dos fundadores do eurocético UKIP (Partido
da Independência do Reino Unido)10 que defende, desde os anos 2000, a saída
da União Europeia e o controle mais intenso das fronteiras – foi um dos eu-
rodeputados mais votados; na Itália, Mateo Salvini – líder da Liga Norte –,
quando foi Ministro do Interior em um governo de coalizão, transformou em
política de estado a perseguição inclemente e sistemática de refugiados que
tentavam alcançar a Europa, via Mediterrâneo, ao fugir de conflitos e guerras
civis na Líbia, Egito, Tunísia e Sudão; na Espanha, o partido VOX defende a
intensificação dos controles fronteiriços, com o slogan nacionalista “Tornar a
Espanha Grande de Novo”, sendo o partido que mais cresceu nas eleições espa-
nholas de novembro de 2019 ao se tornar o terceiro com mais representantes
no parlamento espanhol; nos EUA, na fronteira sul com o México, Donald
Trump e seu “Faça a América Grande de Novo” (MAGA)11 investe na caça aos
migrantes, ao promover a construção de uma barreira de concreto entre EUA e
México: The Wall. Reitere-se que esses governantes ou líderes nacionalistas em
ascensão e seus respectivos partidos políticos defendem, como uma de suas
principais bandeiras, a contenção da imigração, do exílio e da concessão de
refúgio.

9  No original: “with the intent of allowing the free movement of capital, goods, services and
certain categories of people”
10  No original: “United Kingdon Independency Party”.
11  No original: “Make American Great Again”.

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A propósito, ressalta uma matéria fotográfica do periódico internacio-
nal El País, em sua versão brasileira: “Barreiras fronteiriças são construídas
para evitar a entrada de migrantes, traficantes ou inimigos. Depois da queda
do Muro de Berlim, restavam apenas 11 deles no mundo. Atualmente, a cifra
subiu para 70” (EL PAÍS, 2017). Com efeito, apreende-se que, em um mundo
reiteradamente qualificado como “pós-nacional” e “sem fronteiras”, a cada ano
crescem as barreiras entre as nações. Isto é, nas últimas décadas, para os mi-
grantes empobrecidos, bem como para exilados e refugiados, as fronteiras têm
sido erguidas cada vez mais altas e mais sólidas.
Assim, como se observa no documentário Fluxos Humanos (WEIWEI,
2017), há um contexto global no qual se erguem novos muros, com os quais se
busca, seletivamente, interromper trânsitos. Construídas em espaços de fron-
teiras, em tantos cantos do mundo, tais “barreiras” emergem paralelamente,
por vezes em contraponto à expansão da globalização e ao aumento massivo do
número absoluto de deslocamentos internacionais. Barreiras essas construídas
para conter aquele “resto” que vem de fora do ocidente (HALL, 2003), ou o
“refugo da globalização” (BAUMAN, 2005). Conforme os dados da Agência de
Refugiados da ONU, em 2019, havia no mundo 285 milhões de migrantes in-
ternacionais12 (UNHCR, 2019). Deslocados internacionais que, muitas vezes,
não possuem recursos, documentos ou vistos, elementos mínimos necessários
para atravessar legalmente as fronteiras dos estados-nacionais.
De acordo com David Newman, as “fronteiras deveriam ser vistas por
seu potencial de constituir pontes e pontos de contato, por mais que tenham
tradicionalmente se constituído como barreiras ao movimento e à comunica-
ção” (NEWMAN, 2006, p. 1)13. Assim sendo, as controvérsias envolvendo o
tema salientam o surgimento, desde ao menos os anos 1990, de várias contra-
narrativas que demandam a reconsideração quanto ao uso generalizado e não
problematizado da concepção de “mundo sem fronteiras”.

Um mundo sem fronteiras em narrativas de deslocamentos

Na série literária brasileira, no geral, ao deslocarem-se para além de


fronteiras nacionais, muitas personagens parecem viver em um utópico mun-

12  Curiosamente, segundo a mesma fonte, “85% das pessoas deslocadas estão em países em
desenvolvimento”, e não nos EUA, ou nos países da Europa Ocidental.
13  No original: “borders should be seen for their potential to constitute bridges and points of
contact, as much as they have traditionally constituted barriers to movement and communication”
(NEWMAN, 2006, p. 1).

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do sem fronteiras. Embora haja exceções, na ampla maioria das narrativas de
deslocamentos, as personagens expressam o desejo de sair da nação e, sem
muitas delongas, surgem a viver suas desventuras em países como Argenti-
na, Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Inglaterra, Noruega, Rússia,
Mongólia, China, Tailândia, Japão, Estados Unidos e México.
Em termos históricos, ressalte-se que, apesar da lentidão dos trânsitos
marítimos, a facilidade de atravessar fronteiras nacionais estava presente, por
exemplo, em deslocamentos de personagens que saíram de suas nações desde
o século XIX. A propósito, citem-se os romances Lucíola (ALENCAR, 1988), O
Mulato (AZEVEDO, 2003), Memórias Póstumas de Brás Cubas (MACHADO
DE ASSIS, 1994), Dom Casmurro (MACHADO DE ASSIS, 1994), Memórias
Sentimentais de João Miramar (ANDRADE, 1971) e inúmeros outros. Cada
um dos deslocados nesses romances foi à Europa, local de passagem preferen-
cial, como viajante, turista, estudante ou expatriado, em grande parte com pra-
zos pré-definidos, em deslocamentos representados, majoritariamente, en pas-
sant, ou meramente referenciados como parte da contextualização inicial de
personagens tantas vezes problemáticas para a moral vigente em suas épocas.
Já na segunda metade do século XX e no início do XXI, a velocidade
de empreender deslocamentos internacionais aludiriam aos desenvolvimen-
tos dos meios de transporte. Já a quantidade e a diversidade de tipos relacio-
nariam-se, entre outros aspectos, à exacerbação do processo de globalização
contemporânea e a crises de impérios e nações. No entanto, a facilidade de
atravessar fronteiras, muitas vezes, parece decorrer, sobremaneira, da não pro-
blematização narrativa do tema da transposição de fronteiras ou, mais sutil-
mente, da condição social dos deslocados representados – tantas vezes, cos-
mopolitas ricos ou de classe média.
Ao considerar-se o contexto geopolítico, sociológico e literário destaca-
do, como tem sido a representação desses trânsitos fronteiriços nos romances
de Adriana Lisboa? E, mais especificamente, a representação de fronteiras nos
romances da autora seguiria a tradição e reforçaria a perspectiva de um mun-
do “sem” fronteiras, ou permitiria incitar o debate a respeito de um mundo
“com” fronteiras?
Em Fios da memória (LISBOA, 1999), embora a jovem narradora-me-
morialista Beatriz Brasil finque raízes em um casarão, na cidade Rio de Janeiro,
do qual não sairia – senão em seus deslocamentos imaginários –, tios e primos
viajam pelo Brasil e, reiteradamente, para o exterior. E os pais da narradora,
além de a cada viagem, desde os anos 1960, “espichar[em]-se no hemisfério
sul” (LISBOA, 1999, p. 214), ao final da narrativa, que se passa no final dos

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anos 1990, após uma viagem ao Recife, “partiram direto para o México”, sendo,
segundo os mesmos, “preciso voltar a viajar” (LISBOA, 1999, p. 216).
Também em Sinfonia em Branco (LISBOA, 2013a14), a narrativa se pas-
sa no Brasil, mas há uma quantidade extensa de referências a deslocados de
passagem por locais fora do Brasil que segue a tradição de representação do
mundo sem fronteiras: a tia que dá de presente para Otacília um sapato de
casamento comprado em Paris; os pais de Tomás, que se exilaram nos anos
1970, no Chile, a fugir da ditadura militar brasileira; o vecchio Azzopardi, com
sua vila na Toscana e suas amantes em trânsitos pela Europa e pelos Estados
Unidos; Maria Inês, sua filha Eduarda e seu marido João Miguel, com viagens
aos EUA e à Europa, principalmente à Itália; uma prima que comprara uma
blusa em um “sebo” londrino; o cantor transnacional Bernardo Águas e seu
mapa-múndi pontilhado com namoradas.
E, mesmo que em menor quantidade, em Um beijo de Colombina (LIS-
BOA, 2003), o narrador-protagonista referencia uma viagem turística interna-
cional. Antes de conhecer sua companheira-escritora Teresa, ela havia viajado
para fora do Brasil, com uma ex-namorada, também de nome Teresa. Esta

tinha uma filha que morava na Tailândia:


Gozado, comentei quando Teresa me contou.
Não é?, ela concordou.
A gente costuma ouvir dizer que as pessoas foram morar nos Estados
Unidos, na Inglaterra, em Portugal, mas nunca conheci ninguém que
tivesse ido morar na Tailândia.
Pois é, mas lá é tão bonito, eu e Teresa fomos visitar a filha dela faz dois
anos. (LISBOA, 2003, p. 20).

Observe-se, ainda, Rakushisha (LISBOA, 2014a15), em que a história de


Haruki se inicia com sua chegada ao Consulado japonês, onde vai requisitar
um visto para “atividades culturais”: “Por pouco não impediram Haruki de
subir ao décimo andar, onde ficava o Consulado Geral do Japão no Rio de Ja-
neiro” (LISBOA, 2014a, p. 14). O quase impedimento foi devido, meramente,
à questão do horário, pois faltavam poucos minutos para o encerramento do
expediente. No mais, a tensão e a ansiedade com a visita ao consulado ocorre-
ram, principalmente, por causa da sensação de desconforto decorrente da falta
de conexão do ilustrador com a terra de seus antepassados, sobretudo com a
língua. Contudo, conseguiu o visto sem mais delongas. Essa necessidade de

14  Obra com primeira edição publicada em 2001.


15  Obra com primeira edição publicada em 2007.

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pedido de visto para entrar no Japão expõe a permanência de fronteiras, em-
bora elas pareçam ter baixa densidade e ser meramente burocráticas. Quanto
à outra protagonista, Celina, não há nenhuma referência à documentação de
viagem ou ao modo como ela conseguiu o visto. Assim, para ela, como para
Haruki, o visto emerge como mera formalidade, sendo obtido em menos de
uma semana, como turista. A pluralidade de turistas estrangeiros em Quioto
também corrobora a perspectiva se não de um mundo sem fronteiras, pelo
menos, de que, se seguidos os trâmites legais e burocráticos, não haveria mui-
tos obstáculos para aqueles que desejassem atravessar o mundo.
Há, em cada um desses exemplos de Fios da Memória, Sinfonia em Bran-
co, Um beijo de Colombina e Rakushisha rápidos flashes que são referências a
deslocamentos internacionais e transnacionais, mas sem a representação de
experiências de longo prazo vividas no estrangeiro, ou de dificuldades associa-
das à transposição das fronteiras internacionais, de modo bastante próximo,
nesse aspecto específico, à vertente das “narrativas de deslocamentos” na série
literária brasileira.

Um mundo com e sem fronteiras, em narrativas de deslocamentos e


relocalizações

No geral, em relação a narrativas de deslocamentos, a representação


de problemas na travessia de fronteiras nacionais ainda parece ser incipiente.
Quanto aos estudos literários que abordam tal questão, mesmo que en passant,
Shirley Carreira e Paulo Oliveira (2018, p. 44) analisam O filho da mãe (2009),
de Bernardo Carvalho, declarando que, “em um mundo marcado pela pro-
messa moderna da mobilidade para todos, intensificada na era da globaliza-
ção, as personagens do romance estão cada vez mais circunscritas a espaços de
clausura”. Ressalte-se que Reprodução (2013), também de autoria de Bernardo
Carvalho, é outra narrativa que complexifica a representação das fronteiras,
bem como Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), Flores Artificiais (2014),
de Luiz Ruffato, e Vidas provisórias (2013), de Edney Silvestre.
Aprofundando tal visada crítica, Adriana Lisboa, em Azul corvo e Ha-
nói, problematiza a seletividade e a densidade das fronteiras. Em Azul corvo
(LISBOA, 2014b), os múltiplos deslocamentos transfronteiriços da narrado-
ra-protagonista Vanja foram bastante variados, com ampla mobilidade trans-
continental. Ela nasceu nos Estados Unidos e foi trazida para o Brasil no início
dos anos 1990, aos dois anos, por sua mãe, a brasileira-estadunidense Suza-
na. Um ano depois da morte da mãe, Vanja, aos 13 anos, retorna ao país em
que nascera, em busca de Daniel, seu pai biológico, com a ajuda de Fernando.

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Nos EUA, vai morar com o brasileiro Fernando, em Lakewood, uma cidade
no subúrbio de Denver, Colorado. Nos anos 1980, Fernando fora casado com
Suzana e, embora já separados há algum tempo, quando Vanja nasceu ele a
registrara como sua filha. A partir de então, até seus vinte e dois anos, reside
e estuda em Lakewood, trabalha como bibliotecária em Denver e viaja para
Abidjan, na Costa do Marfim, para, finalmente, conhecer Daniel, sua madrasta
e meios-irmãos, bem como para o Rio de Janeiro, para rever amigas e sua tia
Eliza, irmã adotiva de sua mãe.
Esses trânsitos demonstrariam o privilégio de possuir a cidadania es-
tadunidense e dariam a impressão, à primeira vista, de que ela viveria em um
mundo sem fronteiras. Mesmo sem muitos recursos financeiros, Vanja podia
ir e vir, para dentro e para fora dos EUA, apesar de o seu retorno ter ocorrido
no pós-9/11 – um acontecimento que marcou o acirramento dos controles e
da segurança nas fronteiras estadunidenses, devido ao ataque às Torres Gê-
meas, em Nova York, e do início da Guerra ao Terror (NEWMAN, 2006). Des-
se modo, por ter nascido nos EUA e possuir os documentos adequados, Vanja
podia atravessar fronteiras sem muitos empecilhos.
Ainda que a jovem narradora critique acidamente os “cidadãos do mun-
do […] que viajam por esporte” (LISBOA, 2014b, p. 41) e se sinta tantas ve-
zes em “lugar nenhum”, deslocada tanto no Brasil, quanto nos EUA, expressa
uma condição deslocada transnacional de alguém que parece viver e viajar
como se habitasse um mundo sem fronteiras, em um contexto pós-nacional.
No entanto, a crítica de Vanja aos cidadãos do mundo talvez tenha como alvo
cosmopolitas ricos e deslocados transnacionais, ao estilo de Bernardo Águas.
Personagem de Sinfonia em Branco (LISBOA, 2013a), o cantor internacional
declara à amante, Maria Inês, em um de seus encontro, “já pensou se eu com-
prasse um mapa-múndi e começasse a marcar todos os lugares onde já tive
alguma namorada? E começou a enumerar: Rio, São Paulo, Curitiba, Londres,
Louvain, Paris, Milão…” (LISBOA, 2013a, p. 74).
Em contraste com a condição deslocada privilegiada de Águas, de Ma-
ria Inês e, a seu modo, de Vanja, destaca-se a situação periclitante de Carlos e
de sua família. Migrante ilegal nos EUA, temia inclusive atravessar fronteiras
interestaduais, como exemplifica a reação do menino salvadorenho ao ser con-
vidado por Vanja e Fernando para uma viagem do Colorado ao Novo México:

Os olhos do Carlos brilhavam como se alguém os tivesse acendido no


interruptor. Mas a preocupação cotidiana o levou a perguntar se não
precisava de papeles para ir ao Novo México, e se precisasse como é que
ia fazer.

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O bigode do pai dele falou, num espanhol espremido, que não era para
o Carlos ficar dizendo por aí coisas como aquela. As pessoas denuncia-
vam as outras (não, ele não se referia a nós – claro que não – nós éramos
amigos – mas o Carlos tinha a língua solta). E num caso desses, no caso
de uma denúncia, eles teriam que ir embora. IR. EMBORA. (LISBOA,
2014b, p. 187, grifos da autora).

Além de viver sob o temor de ser preso e deportado, o menino lenta-


mente perdia os poucos vínculos afetivos com sua terra natal, pois não podia,
por exemplo, visitar seus avós e primos em El-Salvador. Se regressasse ao país
em que nascera, não teria permissão para retornar aos EUA e ficaria separado
de seus pais e da irmã.
Ademais, a preocupação cotidiana o assombrava, inclusive, em situa-
ções corriqueiras; por exemplo, quando Fernando estacionou o carro, irregu-
larmente, em um posto de gasolina:

Carlos leu em voz alta VAGAS EXCLUSIVAS PARA CLIENTES TEXA-


CO E 7-ELEVEN. Ficou preocupado porque estávamos ocupando uma
vaga e não éramos clientes Texaco nem 7-Eleven. Fernando disse que
ele podia ficar tranquilo. Mas ele continuou olhando meio desconfia-
do ao redor. Talvez imaginasse um policial vindo nos avisar da nossa
transgressão e pedindo os papeles dos três, enquanto batucava com o
cassetete no carro – como nos filmes. Carlos suaria frio, depois choraria
e depois seria deportado. Como nos filmes. (LISBOA, 2014b, p. 208-9,
grifos da autora).

A ansiedade e o medo faziam parte da vida do pequeno salvadorenho.


Diferentemente de seu amigo Carlos e de sua família salvadorenha de migran-
tes sin papeles, Vanja não precisava temer a prisão ou a deportação. Sua di-
ficuldade para entrar nos EUA fora “comparecer ao guichê de um oficial de
imigração e passar pelo chato protocolo das fronteiras” (LISBOA, 2014b, p.
259). Enquanto ela, com sua identidade hifenizada, brasileira-estadunidense,
portava passaporte e documentos que lhe permitiam transitar entre fronteiras
internacionais, sem obstáculos maiores, Carlos fixava-se dentro das fronteiras
do Colorado, com temor, até mesmo de atravessar fronteiras interestaduais.
Nick, ex-namorado de Vanja, surge como outra personagem de Azul
corvo que pode atravessar fronteiras sem muitos obstáculos: “a família dele se
mudou, ele saiu da escola, em algum ponto reconsiderou suas ideias, recente-
mente me falaram que se tornou fuzileiro naval” (LISBOA, 2014b p. 296). Au-
tointitulado “ecoanarquista” na adolescência, como um militar estadunidense
talvez o mundo não fosse, também, um mundo sem fronteiras. No entanto, ha-

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veria poucas que ele não poderia atravessar, e poucas nações que não poderia
“visitar”. E quanto aos habitantes das nações hipoteticamente “visitadas”, em
muitos casos, receberiam esse estadunidense mesmo não aceitando sua pre-
sença. Lembre-se de que os fuzileiros navais estadunidenses, Marines, exercem
suas atividades em centenas de bases militares ao redor do mundo.
As experiências de Fernando também expressam a figuração da relativi-
dade das fronteiras. Ainda no início dos anos 1970, saiu por algum tempo do
Brasil, para ser treinado em técnicas de guerrilha.

Sua viagem até a China de Mao Tsé-Tung tinha começado dez meses
antes, e com um propósito bem definido. […]. De Brasília, onde mora-
va, ele tinha ido para São Paulo, ficado ali por uma temporada, tentando
disfarçar as próprias pegadas, e dali a Paris, idem, e então até Pequim.
(LISBOA, 2014b, p. 58-9).

E, no retorno ao país: “Chico [codinome de Fernando] entrou no Brasil


pela fronteira com a Bolívia, a pé, depois de passar pela Europa. Fez escalas em
várias cidades brasileiras” (LISBOA, 2014b, p. 62). Desse modo, a necessidade
de esconder o destino à China, na ida, e a proveniência, na volta, demanda-
ram o uso de uma série de ardilosas táticas para atravessar fronteiras. Tem-
pos depois, na condição de exilado, fugiu para a Inglaterra, após desertar da
Guerrilha do Araguaia e, nos anos 1980, emigrou para os EUA. Contudo, não
há nenhuma referência às possíveis e certas dificuldades relacionadas a esses
dois deslocamentos transcontinentais. Ocorre, portanto, uma seletividade na
representação dos trânsitos que emerge como um aspecto bastante produtivo
de Azul Corvo, demonstrando como as fronteiras são mais ou menos líquidas
para, como já discutido, “certa categoria de pessoas” (BRAH, 1996).
Já em Hanói (LISBOA, 2013b), as fronteiras surgem ainda mais seletivas
e densas. No caso do brasileiro Luiz, pai de David (um dos protagonistas da
narrativa), as fronteiras estavam obstruídas e demandaram uma série de peri-
pécias para entrar nos Estados Unidos. Embora Luiz tivesse emigrado ilegal-
mente com a intenção de retornar a sua terra natal, a necessidade de documen-
tos aduaneiros, os custos e os perigos da viagem ilegal, através das fronteiras
do México, bem como o risco de não conseguir voltar, fizeram com que ele
fincasse raízes nos EUA por mais de duas décadas. Diferentemente da mãe e da
avó da vietnamita-estadunidense Alex (outra protagonista do romance), que
conseguiram a cidadania americana após prova de língua e de conhecimen-
tos, a inabilidade de Luiz com a língua inglesa o impedira, inclusive, de tentar
conseguir a cidadania. Caso tentasse e não conseguisse, arriscaria ser expulso.

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Isso fez com que vivesse durante décadas em um país no qual tinha poucos
contatos sociais e, ainda menos, direitos legais.
A permanência de Luiz nos EUA, mesmo com todos os percalços, pode-
ria ser explicada (simplificando uma série de motivações complexas) pela bus-
ca de realizar o “sonho americano”; depois, pelo casamento com a mexicana
Guadalupe; e, após se separarem, pela necessidade de criar David. Questão é
que a vida precária e o medo da fronteira impediram-no de, até mesmo, visi-
tar o Brasil, pois arriscaria a vida e poderia ser preso e deportado se tentasse
novamente atravessar a fronteira de forma ilegal. Em Hanói, são referenciados
outros empecilhos vivenciados por brasileiros para entrar nos EUA, mesmo de
forma legal. Próximo ao tempo da narração, um primo de David, proveniente
da região de Governador Valadares, tentou conseguir visto no Brasil para en-
trar legalmente nos EUA. Como reclama, mesmo após ter pago as altas taxas
burocráticas, seu visto foi negado.
Nos anos 1970, para alcançar os Estados Unidos, também os vietna-
mitas Trung, Linh e Huong enfrentaram várias peripécias, ocasionadas pelo
status compartilhado de refugiados da Guerra do Vietnã. Contudo, nesses ca-
sos, as dificuldades enfrentadas referiam-se a problemas relativos à saída do
Vietnã. Já questões associadas à viagem transoceânica e à entrada nos EUA
não são referenciadas no romance. Nos anos 2000, a facilidade para transpor
fronteiras é ainda maior, ou ao menos não são referenciados imbróglios para
entrada e saída de turistas estadunidenses no Vietnã, como na viagem de Alex,
Max e Bruno, ao final da narrativa.
Em síntese, a pluralidade de experiências de deslocamento e de buscas
de relocalizações, por tantas personagens, torna-se um aspecto relevante dos
romances de Adriana Lisboa, aqui referidos como textos privilegiados para o
estudo da complexidade e da variabilidade na representação das mobilidades e
da relatividade das fronteiras contemporâneas.

Fronteiras: deslocamentos e relocalizações

Em “Um mundo com fronteiras”, durante um tempo de globalização


assimétrica intensa, discute-se a concepção de mundo sem fronteiras – concei-
to dos mais recorrentemente empregados, na contemporaneidade, em tantos
estudos literários que se debruçam sobre a vertente de “narrativas de desloca-
mentos” na literatura brasileira. E a investigação, mesmo que bastante breve e
pontual, de “narrativas de deslocamentos e relocalizações”, de Adriana Lisboa,
possibilita considerar algumas nuances da complexidade das representações

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de travessias de fronteiras, pois os romances de Lisboa em alguns casos se-
guem, em outros divergem da série literária.
Há semelhanças com o modo tradicional de representações desses trân-
sitos em que figuram, desde ao menos o século XIX, geralmente, cosmopolitas
ricos ou, nas últimas décadas, de classe média, que resolvem viajar e, voilá,
surgem vivendo suas aventuras e desventuras em locais de passagem, cidades
cosmopolitas e globais, novos e velhos pontos turísticos internacionais, como
ocorre, predominantemente, em Fios da Memória (1999), Sinfonia em Branco
(2013a) e Beijo de Colombina (2003). Narrativas em que não há referências
a contratempos associados à transposição de fronteiras. Nessa perspectiva,
sobretudo Fios da Memória e Sinfonia em Branco, possibilitam vislumbrar a
rota tradicional dos trânsitos para fora do Brasil na série literária brasileira
e algumas de suas razões: demonstração de status social, formação cultural,
cosmopolitismo e mundanidade. Em Rakushisha (2014a), ocorre certa proble-
matização, mas esta diz respeito, quando muito, aos trâmites burocráticos para
aquisição do visto para turismo e atividades culturais.
Já em Azul corvo (2014b) e Hanói (2013b), há deslocados que são “cos-
mopolitas pobres” (SANTIAGO, 2004), sujeitos menos privilegiados em ter-
mos de condições legais, financeiras ou de pertencimento à determinada ca-
mada social ou identidade cultural, que, em alguns casos, vivem sob o signo
do medo de serem presos e extraditados a qualquer momento. No caso de
Azul corvo, em contraste com as experiências de Vanja, as condições precárias
e subalternas vivenciadas cotidianamente levaram Carlos e sua família salva-
dorenha a viver sin papeles em um mundo repleto de fronteiras, com pouca
liberdade de optar por onde estabelecer sua residência, com recursos escassos
e a viver ansiosos e tensos. Esses aspectos, entre outros, não lhes possibilitaram
deslocar-se livremente ou viver sem o temor constante da extradição. Em Azul
corvo, sobretudo em relação a Carlos, e em Hanói, principalmente quanto a
Luiz, em tempos de globalização assimétrica e de seletividade de fronteiras,
cada limitação às liberdades de escolha e de movimento emerge como um con-
traponto, talvez irônico, ao discurso neoliberal hegemônico de um mundo sem
fronteiras construído ao redor dos deslocamentos espaciais contemporâneos.
Observam-se, portanto, nuances, pois Azul corvo e Hanói representam
diversos tipos de travessias, de forma mais ou menos complexas, desde aquelas
de deslocados que transpõem as fronteiras sem quaisquer impasses, deman-
dando, aparentemente, apenas o ato volitivo, até aquelas travessias em que,
para sair, fugir ou exilar-se fora da nação partida, personagens arriscam, in-
clusive, suas vidas para atravessar ilegalmente fronteiras nacionais. Essas duas

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narrativas complexificam, portanto, o discurso de um mundo pós-nacional, de
trânsitos irrestritos e sem fronteiras, ao figurar variações nos tipos e motiva-
ções dos deslocamentos e re-localizações, bem como diferenças e constrangi-
mentos vivenciados na travessia de fronteiras nacionais. Tais aspectos incen-
tivam que se questione, no mínimo, o uso generalizado do conceito liberal de
mundo sem fronteiras, ao se escrutinar como as fronteiras são seletivas e rela-
tivamente densas para personagens que tentam fazer a travessia de fronteiras
geográficas e culturais, mas encontram muros e barreiras, bem como outras
fronteiras culturais e simbólicas, na busca de deixar a nação partida e alcançar
a tão almejada “terra dos sonhos e das oportunidades”.
Nessas “narrativas de deslocamentos e relocalizações”, de Adriana Lis-
boa, portanto, observa-se as fronteiras sendo figuradas com semelhanças e di-
ferenças em relação à série literária, mediante a representação de um mundo
com e sem fronteiras, repleto de turistas, expatriados, emigrantes, refugiados,
exilados, retornados, que se confrontam com níveis distintos de constrangi-
mentos nas travessias de fronteiras. Assim sendo, a leitura desses romances
possibilita vislumbrar um contexto repleto de transformações em configura-
ções geopolíticas e em relações local-global e centro-periferia, da guerra fria
ao pós-9/11, com ênfase no recrudescimento das fronteiras no início do século
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load/41656/pdf. Acesso em: 17 mar. 2020.

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(I)migração, barbárie e silêncio em
A noite da espera, de Milton Hatoum

Sheila Katiane Staudt1

Considerações iniciais

Brasília, capital do Brasil, é palco e testemunha no romance A noite da


espera, publicado em 2017, primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio,
do escritor Milton Hatoum. Ambientada nas décadas de 1960 e 1970, a narra-
tiva desvela os trânsitos ora espaciais, ora pela memória protagonizados pelas
personagens, sinalizando para um tempo em que o cerceamento da palavra
fica evidente e toda a ação demanda cautela e prudência, pois qualquer mo-
vimento em falso poderia custar a própria vida. A peculiaridade da capital
nacional, em se tratando de seus habitantes nesse período, traduz um pouco da
sua identidade: imatura e, ao mesmo tempo, diversificada. Brasília foi povoada
por migrantes oriundos de diferentes regiões do país, entre eles operários da
construção civil que se fixaram nas suas margens, as cidades-satélites.
A trajetória do jovem Martim, que migra para a capital federal, vivida
sob a égide da ditadura militar brasileira, é apresentada aos olhos do leitor
na forma de uma colagem, composta por fotografia, diários, cartas, anotações
avulsas, lacunas, que deixa mostras de um período oscilante envolto por ins-
tabilidade, transições e muitas incertezas. A espera por respostas move a per-
sonagem na tentativa de montar um quebra-cabeça desafiador, haja vista as
muitas peças faltantes para sua completude, exercício este realizado durante o
seu exílio em Paris. Os vazios que ecoam da narrativa reverberam na própria
História do país, repleta de não ditos e silêncios emanados a partir de Brasília
e espraiados a cada canto da nação sitiada, acompanhando a personagem exi-
lada como fantasmas do passado.

1  Pós-doutora pela Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 (2017-2018). Professora do


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus
Canoas. Organizou os livros Crônicas de viagem do século XXI: olhares sobre as cidades
(2014), Feira das Cidades: travessias do século XXI (2018) e Haikaizando as cidades (2020).
E-mail: [email protected].

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Na recente produção da literatura brasileira contemporânea2, vêm re-
percutindo, entre outros temas, acontecimentos verídicos da história oficial
como matéria primeira de romances, contos, poemas, enfim, textos que emer-
gem como forma de registro simbólico de episódios dolorosos (re)visitados
através do trabalho com a linguagem. É o que ocorre no texto em análise, o
qual rememora a própria História do Brasil, repleta de segredos e mistérios, na
qual ecoam mais perguntas que respostas. Desse modo,

A literatura e a cultura podem configurar-se, assim, como um espaço


cultual de enorme potência em relação aos restos, aos despojos, às ruí-
nas e às destruições do passado, proporcionando uma monumentalida-
de alternativa que, em tempos de comemorações declamatórias ou de
embates ideológicos, torna-se indispensável resgatar. (VECCHI; DAL-
CASTAGNÈ, 2014, p. 12).

O serviço prestado pela nova geração de escritores do século XXI resga-


ta e traz à tona uma parte da nossa história que permanece obscura até os dias
atuais. Com isso, a ficcionalização de fatos reais tem o poder de chegar ao leitor
de forma mais atrativa se comparada aos textos não literários, já que expande
sobremaneira as possibilidades interpretativas diante do mesmo acontecimen-
to. Através da obra de arte literária, é possível ter acesso às redes invisíveis
que conectam as vidas representadas ressignificando pessoas, lugares e eventos
por meio dos inúmeros trânsitos ora temporais, ora espaciais impressos nessas
narrativas.
Neste ensaio, intentamos, na esteira da personagem, recompor as pe-
ças do mosaico que dão origem à composição polifônica do romance, a fim
de analisar os rastros da barbárie impressos no texto a partir do exercício da
rememoração de episódios obscuros perpetrados em solo nacional, além de
compreender os motivos das diversas fugas protagonizadas pelas personagens
dentro e fora do país, como também a fuga do silêncio para o universo da
escrita.

2  Vide romances: Palavras cruzadas (2015), de Guiomar de Grammont, K.: relato de uma
busca (2013), de Bernardo Kucinski, Mulheres que mordem (2015), de Beatriz Leal, Silêncio na
cidade (2017), de Roberto Seabra, entre outros.

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Cicatrizes da movência

Nem sempre quem tem casa tem lar.


Sérgio Vaz

Sujeito migratório, Martim é personagem e protagonista em uma trama


que revela um dos capítulos mais obscuros por que passara a sociedade brasi-
leira com a consolidação do golpe militar de 1964. Após a separação dos pais,
Martim viaja de São Paulo para Brasília de ônibus3 e passa a morar com o pai,
engenheiro de profissão, que o acompanha na viagem, em janeiro de 1968. Em
1972, com o cerco fechando sobre aqueles que discordavam das imposições do
governo, o rapaz deixa a capital e, em 1977, exila-se em Paris.
De acordo com o pesquisador Alberto Rodrigues de Carvalho (2008,
p. 11), “migrar é uma experiência diretamente ligada à identidade e à subje-
tividade de um indivíduo. Ao migrar uma pessoa ou grupo familiar têm sua
vida radicalmente transformada. Trata-se de um momento crítico, que […]
inaugura uma nova etapa de vida”. Nesse sentido, os traumas nascidos a partir
da e pela migrância são como cicatrizes que marcam o sujeito, o qual carrega
consigo os estigmas da travessia. Segundo o estudioso, o processo migratório
tem relação direta com o luto, uma vez que o migrante deixa “para trás: pa-
rentes, amigos, paisagens, cheiros, gostos, sons” (CARVALHO, 2008, p. 11).
Afastar-se, separar-se e distanciar-se, seja de familiares, seja da terra natal, são
ocorrências singulares que não deixam ilesos aqueles que (i)migram, caso de
Martim que, primeiramente, migra e, depois, imigra. Ser migrante e imigrante
parece duplicar os embates da personagem na tentativa de compreender as
razões de sua movência, bem como de conhecer a si mesmo.
A princípio, as anotações feitas pela personagem iniciam-se desde as
vésperas de sua chegada a Brasília com o intuito de entender, de alguma forma,
a razão pela qual ele ficara com o pai, e não com a mãe, que fora morar com um
artista em um lugar por ele ignorado. Martim refere-se, em muitos momentos,
a seus progenitores pelos nomes próprios – Lina e Rodolfo. A forma de trata-
mento utilizada para falar dos pais sinaliza um distanciamento entre eles, si-
tuação que se agrava a cada dia. Lina, a mãe de Martim, é a grande dúvida que
orbita a vida do jovem. Outras interrogações também afligem a personagem
ao longo da trama, como a frieza e o silêncio paternos; o paradeiro da mãe e de
seu companheiro; a simetria da capital que encobre muitas outras assimetrias;
o medo constante; os meandros do poder; entre outras.

3  O romance de Hatoum abre com uma fotografia antiga, em preto e branco, de um ônibus
com o letreiro “Brasília-São Paulo” estacionado em uma rodovia. Não há créditos da imagem.

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Todas as cidades por que Martim passara deixaram-lhe marcas profun-
das carregadas de dor, tormentos e muita solidão. O primeiro contato com a
nova cidade é descrito por Martim em uma carta destinada à sua mãe logo que
chega na capital:

Brasília é uma cidade para quem tem asas ou pode voar. […] Os bairros
e avenidas têm siglas com letras e números, me perdi no primeiro pas-
seio pelas superquadras da Asa Sul, parecia que estava no mesmo lugar,
olhando os mesmos edifícios. São bonitos, cercados por um gramado
que cresce no barro; essa beleza repetida também me confundiu. Tudo
confunde, nada lembra lugar algum. O céu é mais baixo e luminoso, e as
pessoas sumiram da cidade. (HATOUM, 2017, p. 28).

A cartografia da cidade confunde a personagem. Toda a simetria car-


tesiana do seu traçado futurístico faz com que o corpo de carne e pedra4 eli-
mine a chama5 de que é feita a cidade, isto é, as pessoas. O estranhamento do
jovem rapaz recém-chegado à também jovem capital da nação sinaliza para a
grandiosa arquitetura de uma “cidade surgida a partir do nada” (CARVALHO,
2008, p. 10) que encobre muitas outras assimetrias debaixo de sua simetria
sem fim. Brasília, recém-criada e inaugurada antes mesmo de estar pronta,
reforça a sensação de imediatismo, das coisas feitas para ontem, sem estarem
terminadas e sem o discernimento necessário para educar uma geração de jo-
vens, muitos deles acostumados a receber tudo sem muito esforço6.
A mudança para Brasília parece apenas acentuar algo que já existia na
relação pai e filho. A figura paterna amedrontava o jovem Martim, que, duran-
te sua breve passagem pela prisão, em virtude de ter adormecido no lago Para-
noá e acordado com seu bote atracado na frente do Palácio da Alvorada, pensa
no sentimento de medo que o próprio pai lhe causava ainda em São Paulo, sua
cidade-natal: “Não temia os loucos que fugiam do manicômio de Vila Mariana
e perambulavam, perdidos, nas ruas do Paraíso; temia o ruído da chave na fe-

4  Título do livro de Richard Sennett Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental
(1994).
5  Referência ao texto de Italo Calvino Seis propostas para o próximo milênio.
6  Acerca dessa questão, no romance Silêncio na cidade (2017), de Roberto Seabra, também
ambientado em Brasília, a personagem Tino Torres revela quem eram os habitantes da capital
federal: “Naquele tempo, não havia grandes diferenças entre os jovens. Éramos quase todos
iguais: filhos de trabalhadores e servidores públicos, que se misturavam nas escolas e nas ruas.
Com o tempo, foi surgindo uma nova classe em Brasília: a das famílias dos políticos, dos altos
servidores públicos, inclusive dos militares de alta patente, e dos primeiros grandes empresários
da cidade. Formavam a elite brasiliense” (SEABRA, 2017, p. 120).

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chadura: o ruído forte, metálico, antecipava a visão do rosto tenso do meu pai
em muitas noites da infância” (HATOUM, 2017, p. 43). A partir daquele acon-
tecimento desafortunado, a relação pai e filho torna-se ainda mais silenciosa
e distante. Rodolfo repreende o rapaz e diz que vai investigar se a versão por
ele contada é verdadeira: “Perdi a porcaria desse bote, mas isso é o de menos.
E se eu perder o emprego por tua causa? Algum colega da tua escola foi pre-
so? Só você? Vou descobrir isso” (HATOUM, 2017, p. 46). Feridas abertas na
alma, que nunca cicatrizaram, machucam e contaminam a harmonia daquela
família já fragmentada e estilhaçada. As desconfianças mútuas aumentam ao
migrarem para Brasília, corroendo o respeito pelo outro. Como estranhos, pai
e filho trilham caminhos opostos, distanciando-se e silenciando cada dia mais.
No verão de 1969, Brasília ficou vazia devido às férias de julho, perío-
do em que os migrantes retornavam para suas cidades de origem, exceto “os
forasteiros sem família, ou sem lugar para onde ir” (HATOUM, 2017, p. 66),
caso de Martim e seu pai. Sabendo de seu isolamento e da ausência da amiga
Dinah, o Nortista convida o colega para um almoço, mas Martim recusa a
oferta: “Disse que ia comer em casa, com meu pai. Uma mentira, mais que uma
desculpa. Vivemos sob o mesmo teto, mas longe um do outro. Aceitamos isso,
talvez por sabermos que já estamos separados, como dois prisioneiros em celas
vizinhas” (HATOUM, 2017, p. 67). Além de sofrer com a ausência da mãe, o
jovem não consegue se aproximar do pai. Imerso na solidão, ele desabafa suas
dores ao papel confidente, que também lhe serve de interlocutor ao longo de
suas penosas travessias.
A relação distante entre Martim e seu pai parece ainda mais fria e frágil
dia após dia. O jovem indaga-se constantemente se “seria possível vivermos
juntos sem palavras?” (HATOUM, 2017, p. 34), haja vista o mutismo esta-
belecido entre eles. Em um dos raros rompantes de Martim, ele quebra esse
silêncio avassalador e consegue verbalizar ao pai que este havia sido “traído
por um artista de merda” (HATOUM, 2017, p. 52). A partir daí a relação já
estremecida entre pai e filho emudece cada dia mais: “O silêncio entre nós
parece obedecer a uma lei” (HATOUM, 2017, p. 54). O débil relacionamento
entre eles faz com que o jovem associe diretamente o silêncio paterno à figura
da mãe, que abandonara a ambos – esposo e filho – por um novo amor:

Jantei no Palácio da Fome e voltei ao apartamento; Rodolfo trabalhava


na sala, não respondeu ao boa-noite. O silêncio dele seria uma recon-
ciliação surda de um embate? Depois, no quarto, pensei nesse silêncio
como um desprezo, ou ódio calado; pensei que minha mãe fazia parte
desse silêncio e comecei a escrever sobre a solidão.
Senti vergonha, parei de escrever. (HATOUM, 2017, p. 76).

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Após cogitar outras razões para a frieza recebida por parte do pai, Mar-
tim culpa a ausência materna pela solidão de pai e filho ou, como Rodolfo já
havia reiterado diversas vezes, a traição de Lina que enganara ambos. Imersos
no silêncio, pai e filho, de costas um para o outro, enxergam a vida de ângulos
opostos. A tentativa frustrada de escrever sobre o sentimento de solidão na
capital do país faz com que o jovem sinta vergonha e interrompa a escrita.
Entretanto, em uma anotação datada de abril de 1970, Martim perce-
be a vigilância paterna sobre a sua vida, contradizendo a certeza que possuía
acerca do desinteresse e do desprezo do pai a seu respeito: “Você ainda traba-
lha na Encontro? Não sabe que esse livreiro vermelho é perigoso?” Livreiro
vermelho! O que Rodolfo sabia de Jorge Alegre? Meu pai não anda tão alheio
à minha vida. […] No silêncio da capital, rostos invisíveis vigiam e depois
caluniam, acusam, delatam…” (HATOUM, 2017, p. 99). A estranheza causada
após refletir acerca das palavras em tom de aviso ou aconselhamento por parte
do pai faz com que Martim note a vigilância de Rodolfo mesmo a distância,
mesmo aparentando estar completamente alheio à sua vida. Mais uma dúvida
que paira sobre o frágil relacionamento entre pai e filho…
O (des)encontro com a mãe, após sua mudança para Brasília, marcado
em um hotel na cidade de Goiânia, é a causa principal para guardar desse
local a segunda grande frustração de sua vida – aquela triste e “longa noite
da espera” (HATOUM, 2017, p. 98), em que aguardava a visita de Lina e teria
outra vez o calor do seu abraço: “Dessa cidade ainda recordo o canto melodio-
so de mulheres, a leitura de um romance magnífico, um homem caído ao pé
de um monumento, um parque perto da rodoviária, um relógio branco, um
quarto vazio e uma grande frustração” (HATOUM, 2017, p. 98, grifos nossos).
O sentimento de abandono parece redobrar após essa tentativa de rever a mãe
depois do último adeus em São Paulo há mais de dois anos. Frustrado e ten-
tando entender ainda mais o mistério que cercava a vida e as escolhas da mãe,
Martim, exilado em Paris em 1978, viaja através da memória, retorna àquele
sábado de 1970 e toma consciência da pressa com que o recepcionista do hotel
anotara o recado telefônico de seu tio Dácio, o qual continha erros de grafia:
“Viajem cancelada tua mãe vai ti escrever. Dacio” (HATOUM, 2017, p. 95, sic).
Apenas por meio da releitura desse bilhete, e ao revisitar o passado traumático,
a personagem consegue notar os erros e reflete:

Só agora, ao reler e datilografar esse bilhete colado na página de um


caderno de Brasília, notei os erros na mensagem escrita pelo recepcio-
nista. Naquele sábado de 1970, apenas estranhei o ritmo da frase, veloz
como o de um coração disparado.

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[…] nosso último encontro na Flor do Paraíso adquiria outro significa-
do, a distância e o tempo constroem artifícios.
Percebo isso na solidão deste estúdio, no fim da noite parisiense. Mas não
tinha essa percepção na noite goiana […]. (HATOUM, 2017, p. 96-97).

O olhar aguçado àquelas reminiscências do passado penetra as sutilezas


daquela permanente ausência materna que parece associar-se, de certo modo,
à impossibilidade de sua aparição física. Para o estudioso Davi Pimentel (2018,
p. 73), os erros de grafia apontam “para a continuidade de erros que se tor-
nou a vida de Martim logo após a separação de seus pais”. Para além dessa in-
terpretação, acreditamos que tais erros pessoais reflitam, em alguma medida,
nos desacertos nacionais, uma vez que a imaturidade da personagem à época
impedia-lhe de enxergar a gravidade da situação em que se encontrava o seu
próprio país há dez anos. Dessa forma, atentar apenas no exílio àquela grafia
repleta de falhas revela os descaminhos políticos da própria nação, os quais
condicionam os percalços de Martim em suas (i)migrâncias, sobrevivendo em
um ambiente hostil e violento. As distâncias temporal e espacial propiciam ao
jovem o discernimento necessário acerca de seu próprio passado e da História
de seu país.
O último Natal em família, na casa dos avós, em Santos, litoral paulista,
também é um misto de silêncio e tristeza:

Passei o Natal de 67 com Lina e tio Dácio no chalé dos meus avós ma-
ternos, em Santos. […]
O fim da noite natalina foi fúnebre: Ondina saiu da mesa e avisou que
não ia festejar o Ano-Novo. […] meu avô bem-humorado, sugeriu um
passeio até o porto.
“Nessa escuridão?”
“Lá fora está menos escuro que nesta sala, Dácio. Parece que apagaram
tudo aqui dentro. Martim vem comigo?” (HATOUM, 2017, p. 20).

Ondina, mãe de Lina, não aceitava a separação dos pais de Martim, dei-
xando bem claro a todos a sua discordância em relação à decisão tomada pela
filha e culpando-a por sua “fraqueza moral e sentimental” (HATOUM, 2017, p.
20). Sobre a questão, Lina discordava da mãe, mas não queria discutir o assun-
to na frente do filho de 16 anos. Apesar de ser uma data festiva que se pretendia
iluminada junto de pessoas queridas, o tom sombrio e a penumbra parecem
invadir a celebração com a certeza de Lina acerca do seu divórcio. Mais uma
cicatriz que impregna sua trajetória de sentimentos confusos. Por onde quer
que vá, Martim, náufrago solitário, à espera de um resgate, deixa um rastro de
solidão e silêncio.

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É na condição de exilado que Martim tenta organizar suas memórias e
juntar os pedaços de sua própria história pessoal que reflete, e muito, a história
de sua pátria: confusa, obscura e estilhaçada. É de Paris que Martim rememo-
ra e revisita o passado para entender e processar o presente ao lado de outros
amigos brasileiros, também em exílio, na capital francesa nos anos de 1970. Ao
mesmo tempo em que tenta orientar a sua própria vida, ele ensaia recompor o
mundo pré-migrância, próximo das pessoas e dos lugares queridos de outrora.
Apesar de estar em Paris, Martim não deixa de pensar no Brasil e, con-
sequentemente, naqueles que deixou para trás. É em solo europeu que ele or-
ganiza suas memórias ou “a papelada de Brasília e São Paulo: cadernos, foto-
grafias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases rabiscadas, cartas e
diários de amigos, quase todos distantes; alguns perdidos, talvez para sempre”
(HATOUM, 2017, p. 16-17, grifos nossos). Ao retomar as anotações e “dati-
lografar os manuscritos” (HATOUM, 2017, p. 17), Martim revive o passado
e se desloca no tempo e no espaço, pois, segundo ele, “o pensamento de um
exilado quase nunca abandona seu lugar de origem. E não apenas por sentir
saudade, mas antes por saber que o caminho tortuoso e penoso do exílio é, às
vezes, um caminho sem volta” (HATOUM, 2017, p. 14-15). Mesmo longe, ele
está perto; mesmo ausente da pátria, ele revisita muitas outras ausências que,
quiçá, apenas a distância seja capaz de restaurar. Vislumbrar as entrelinhas de
tempos obscuros vividos quando adolescente ao lado do pai – figura sombria e
ausente – e saudoso da mãe distante, apenas aumenta o desejo de colocar uma
ordem em meio à desordem pessoal em que estava submerso.
A atitude de recompor o passado ao datilografar suas anotações acerca
do Brasil aponta para um esforço da personagem de encontrar a si mesmo:
órfão, solitário e à deriva em solo estrangeiro. Nas palavras do narrador, “tal-
vez seja isto o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com
a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras…”
(HATOUM, 2017, p. 210). Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2010, p. 185),
“esse passado que insiste em perdurar de maneira não reconciliada no pre-
sente, que se mantém como dor e tormento, esse passado não passa”. As cica-
trizes e as dores de um tempo que se quer esquecer, mas que permanece vivo
através da memória, assombrando o presente, ferem e fazem sofrer. Revisitar
o passado realizando o devido ajuste de contas é condição sine qua non para
redesenhar um futuro livre das amarras pregressas.
Inúmeras rupturas afetivas afligem a personagem-protagonista em seus
trânsitos intranacionais e internacionais. Separado da mãe, distante do pai –
mesmo vivendo sob o mesmo teto –, longe dos avós, dos novos amigos, da sua

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cidade natal e, posteriormente, do seu país, Martim ensaia movimentos in-
trospectivos com vistas a encontrar alguma explicação para tantas separações
alheias à sua vontade. Decifrar o indecifrável penetrando terrenos sinuosos, a
partir da reescrita de sua própria história, mostra uma tentativa de retorno às
origens, um esforço de recobrar a consciência, tomando as rédeas do próprio
destino. A esperança que transcende as diversas esperas da personagem en-
saia reaver a estabilidade perdida, os tempos pré-golpe, a vida antes do caos.
Martim não perde a esperança de um reencontro com suas origens – com sua
mãe, símbolo de sua própria pátria raptada –, das quais precisa afastar-se para
melhor compreendê-las. Exilado e solitário, tendo apenas a viagem como com-
panhia, ele peregrina e aprende que “fugir é [também] uma aprendizagem”
(HATOUM, 2017, p. 235).

Memórias da barbárie: a escrita como forma de resistência ao silêncio

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
“Cálice”, Chico Buarque e
Milton Nascimento

A tentativa de organizar “a papelada de Brasília e São Paulo” (HATOUM,


2017, p. 16) está diretamente relacionada aos acontecimentos sombrios expe-
rienciados por Martim em sua terra natal nos anos de chumbo. A narrativa
em tom memorialístico inicia no fim de 1967 e adentra o tenso ano de 1968,
marcado por muitas lutas tanto no Brasil quanto na França, seguindo até de-
zembro de 1972, ano da fuga do jovem para São Paulo. Entretanto, o tempo de
escrita e (re)organização de suas memórias acontece entre os anos de 1977 e
1979, quando se exila em Paris.
O formato de diário, (re)escrito e organizado durante o exílio, revela a
escrita do “eu” para si mesmo, um olhar ao mesmo tempo atento e espontâneo,
já que o único interlocutor é o próprio sujeito. Segundo Ana Amélia Costa
(2014, p. 360), a escrita de um diário é o “paroxismo do solitário confronto
com a imagem de si mesmo, do anonimato obtido através do rosto e voz da
solidão”, um tipo de escrita privada do “eu” para si mesmo, o qual, uma vez
iniciado, está pronto a comunicar a um outro, fato que torna “a prática dia-
rística […] o lugar dum duplo movimento, de interiorização e exteriorização”
(ROCHA, 1992, p. 29, sic). Nesse sentido, Martim reelabora os acontecimen-

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tos vividos interiorizando-os e externando-os ao papel com o distanciamento
necessário para realizar uma análise capaz de esclarecer as questões obscuras
e veladas do passado. Os fragmentos que compõem a narrativa são reorgani-
zados com vistas a ordenar os dias como migrante em Brasília desde o início
de 1968.
O primeiro registro de um episódio curioso com todos os requintes de
crueldade acontece no terceiro mês após a sua mudança para Brasília, três dias
depois do assassinato do estudante Edson Luís7, no Rio de Janeiro. O que se
passa após a aproximação de Martim do Cine Cultura é mais uma cena que fica
registrada em sua lembrança e sobre a qual ele não encontra respostas:

Fui até a Igrejinha […]. Só então li o panfleto. Falava do assassinato do


estudante no Rio, a palavra “liberdade” apareceu seis vezes. Dinah tinha
escrito o texto? Um Dauphine branco passava devagar pela W1 e brecou
perto de uma Veraneio na contramão. O motorista da Veraneio acendeu
o farol alto, mas ainda não estava escuro. Dois homens à paisana saíram
da Veraneio e agarraram o motorista do Dauphine; outro homem, mais
forte, fisgou do banco traseiro uma moça baixinha e magra. Algemou-a
e enganchou no pescoço dela o polegar e o indicador, feito uma forqui-
lha. O motorista do Dauphine foi arrastado até a frente da Veraneio, o
clarão dos faróis o cegava enquanto ele se defendia dos socos e ponta-
pés; a moça magra foi arrastada até o clarão, depois o corpo amolecido
e ensanguentado do motorista do Dauphine foi jogado no porta-malas
da camionete, a moça e os policiais sentaram no banco traseiro e a Ve-
raneio tomou rumo do Eixo Rodoviário. Tudo ficou silencioso, o carro
branco no mesmo lugar, portas abertas. Vomitei a gororoba do almoço,
joguei o panfleto no gramado seco. O desejo de ver Dinah na Igrejinha
era tão grande quanto o medo. Eu queria sair dali, […] os imensos es-
paços livres de Brasília são uma armadilha. (HATOUM, 2017, p. 40).

A violência disseminada para conter os ânimos daqueles que eram con-


trários ao regime é captada pelos olhos do jovem rapaz ao testemunhar possí-

7  Era a primeira de muitas manifestações, num crescendo de insatisfação com o governo


militar que só seria abafada com a decretação em 13 de dezembro do Ato Institucional nº, o
AI-5, que endureceu ainda mais o regime militar. Mas o marco inicial das grandes mobilizações
estudantis de 1968 foi a morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto, na noite do dia 28
de março, com um tiro no peito, disparado à queima-roupa por um soldado da Polícia Militar
no Restaurante Central dos Estudantes, o Restaurante do Calabouço. A notícia foi publicada na
primeira página do jornal no dia seguinte: “Estudante morre a tiro no Calabouço”. “[D]esde o
golpe militar, quando a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi posta na clandestinidade, até
março de 1968, o restaurante foi o centro da ebulição da resistência à ditadura. De motivos tri-
viais, como a comida podre, às lutas mais encarniçadas, de lá partiram passeatas que desafiaram
os generais e entraram para a História” (CARNEIRO, 2018).

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veis desaparecimentos humanos, crimes comuns durante a ditadura. Contudo,
Martim, à época, era incapaz de discernir o que de fato ali ocorrera. O flagran-
te lembra cenas de um filme de suspense em que ecoam muito mais dúvidas e
mistério que respostas. Ao relembrar o acontecimento e reescrevê-lo no exílio,
dez anos depois, a personagem, privada do simples direito de ir e vir, parece
entender, embora tardiamente, o apelo desesperado pela antiga liberdade es-
crito por Dinah e seus colegas nos panfletos.
A morte do estudante, no Rio de Janeiro, acirra os protestos estudantis
por todo o país e é retratada nas anotações de Martim, que, alheio aos aconte-
cimentos do país, em sua tenra idade de 16 anos, ia ao cinema na tarde de 31
de março de 1968:

Dinah distribuía panfletos e me chamou. […] consegui dizer que ia ver


um filme no Cultura.
“Filme? Ontem a polícia matou um estudante do Rio. Não é hora de ir
pro cinema. Mais tarde o Geólogo vai fazer um comício perto da Escola
Parque. O Nortista e o Fabius vão pra lá.”
“Ângela e Vana também vão?”
“Vana está indecisa, Ângela não vai. Ela protesta sozinha no apartamen-
to do pai dela, o senador.”
[…] me afastei desse barulho, decidido a ir no cinema, […] quando me
aproximava do Cine Cultura, vi a Escola Parque e a praça Vinte e Um
de Abril cercadas por viaturas policiais; a sirene de uma radiopatrulha
me assustou, corri na direção da W1 […] Por que estava fugindo e me
escondendo? (HATOUM, 2017, p. 40).

Os amigos de Brasília eram oriundos de diversas classes sociais e, mui-


tos deles, possuíam ligação com personalidades do governo, como Ângela,
filha de um senador da República, e Fabius, filho do embaixador Faisão. A
composição humana da cidade aponta para as diferenças de classe que, pouco
a pouco, se acentuavam na nova capital do país. Lázaro – filho da cozinheira
do casal Faisão – morava nos arrabaldes de Brasília e fazia parte do grupo de
amigos de Martim, visto como um dos estudantes mais combatentes contra os
desmandos do regime: “ele desafia a morte todas as noites, a polícia do GDF
senta o sarrafo nos pobres da Ceilândia e das outras cidades-satélites. Dinah
me disse que Lázaro recebe bilhetes com ameaças desde a encenação de Pro-
meteu acorrentado” (HATOUM, 2017, p. 206). O tratamento desigual dado aos
mais pobres sinaliza para os meandros do poder e os privilégios concedidos a
uns em detrimento de outros.
Em dezembro de 1968, a felicidade que invade a expressão de Rodolfo
é notada por Martim ao perceber “no rosto do meu pai um regozijo mudo, só

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para ele. […] uma sombra passava pela sala, perscrutava meu quarto e sumia
no corredor. Só no dia 14 entendi o motivo do jubilo paterno: o Ato Institucio-
nal número 5” (HATOUM, 2017, p. 55). Um dos períodos mais severos e auto-
ritários da História do Brasil causa a alegria paterna. Momento que, segundo
Beatriz de Moraes Vieira (2010, p. 157), significou

a consolidação da violência de Estado, sobretudo após o Ato Institucio-


nal n°5 (AI-5) em 1968, cimentando uma camada a mais sobre a já tão
violenta história brasileira, e não apenas no campo político, mas abran-
gendo os espectros da vida econômica, cotidiana e simbólica, atingia as
raias do insuportável.

A simpatia de Rodolfo com as práticas do regime pode revelar os por-


quês do distanciamento entre pai e filho e também das discordâncias com
Lina, sua ex-mulher. Martim notava certa insanidade nas atitudes do pai:

Asa Norte, Brasília, 29 de dezembro, 1968

Nesta última semana de dezembro, Rodolfo empilhou revistas e jornais


na mesa da sala e recortou fotografias do rosto de buldogue pelancudo
do marechal Costa e Silva; coleciona rostos militares e civis (o ministro
da Justiça que redigiu o AI-5, magistrados e políticos bajuladores) e ras-
ga com raiva as fotos de políticos cassados. A mesa da sala ficou coberta
de imagens de heróis do meu pai, e o chão repletos de rostos de papel,
cortados em tiras finas, como serpentinas de uma festa macabra. Tive
uma vaga consciência de que Rodolfo estava enlouquecendo, percebia
sintomas de loucura nos gestos e atitudes dele, e me perguntava quem,
ou o quê, ele odiava. (HATOUM, 2017, p. 55).

Talvez o ódio paterno percebido pelo filho se projete em todos aque-


les que fossem contrários às decisões dos militares. Os inimigos do pai eram,
portanto, os mesmos inimigos do regime. A idolatria cega da personagem aos
líderes do governo fazia com que Martim percebesse, aos poucos, a verdadeira
índole paterna, que se afastava da razão e embriagava-se na loucura.
A censura é recorrente no romance de Hatoum. Apagar, despistar, aba-
far, silenciar, esconder são os verbos de ordem em um dos períodos mais obs-
curos da história nacional, os “anos de chumbo”. Palavras não ditas e autocen-
sura surgem a todo instante e dão pistas de um tempo de repressão e medo
constantes. O grupo de teatro dirigido por Damiano Acante sofre cortes no
texto da peça Prometeu, encenada pelos alunos de Artes Cênicas da UnB, após
terem ensaiado na presença de censores:

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O texto de Prometeu foi liberado com alterações e cortes. A censura ex-
cluiu cinquenta e duas frases e substituiu várias palavras: “inferno” por
“mundo subterrâneo e abrasivo”; “Brasília” por “Cidade Invernal”; “os
Três Poderes” por “As Três Instituições”; “Planalto Central” por “meseta
do hemisfério Norte”. […] A tela desenhada por Damiano foi totalmen-
te vetada […]
“Esses merdas transformaram o texto numa alegoria de um país nórdi-
co”, disse Damiano. “Brasília virou uma cidade fictícia da Escandinávia.
Mesmo assim, acho que vale a pena encenar.” (HATOUM, 2017, p. 117).

A inversão completa das ideias iniciais dos artistas acontece através da


censura direta ao texto e ao cenário. De acordo com Maria Helena Moreira Al-
ves (1985, p. 169), “a censura e o domínio exercido sobre as instituições cultu-
rais como universidades, cinemas, teatro, TV e jornais impuseram o silêncio e
estimularam a autocensura, difundiram a sensação de isolamento e descrença
e foram fortes elementos dissuasivos”. Os registros captados pelo jovem em seu
diário ratificam as palavras de Alves, uma vez que era sentida uma permanente
vigilância em tom ameaçador sobre toda e qualquer produção artístico-cul-
tural daqueles estudantes universitários. Tal peça fora assistida pelo próprio
general Médici, na noite da estreia, gerando ainda mais tensão no grupo: “‘Caí-
mos numa cilada’, disse Fabius. ‘A peça vai ser nossa prisão e o espancamento
de todos nós’. ‘Não é melhor adiar a estreia?’, disse a voz medrosa de Vana. […]
‘Covardia é não encenar’, disse Damiano” (HATOUM, 2017, p. 118). A aflição
toma conta de todos ao saberem da presença do general na plateia. Contudo,
muitas falas foram mantidas pelos atores conforme o texto original como for-
ma velada de protesto e, mesmo assim, “Médici aplaudiu de pé” (HATOUM,
2017, p. 119). Martim, que atuava no coro, esquecera suas falas, consequên-
cia direta da presença dos representantes do alto escalão militar na audiência.
Autocensurar-se era uma das retaliações autoimpostas pelo cidadão frente ao
medo advindo da repressão militar.
Pessoas infiltradas nas escolas e nas universidades também atuavam
como censores ou repressores, pois através delas era sabido sobre cada passo
dos alunos, bem como de professores e funcionários insatisfeitos com as deci-
sões arbitrárias do regime:

Saímos do ateliê e vimos o Geólogo de pé numa mesinha; segurava um


megafone e dizia que o professor Romero Blanco tinha sido um falan-
gista durante a Guerra Civil Espanhola.
“Esse falangista bagunçou o lançamento do primeiro número da Tribo”,
disse o Nortista. […]
“Romero Blanco não é antropólogo nem cientista social”, continuou o

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Geólogo. “Esse charlatão é um dos contatos entre o vice-reitor e a re-
pressão. Enviava ao Dops e ao comando da Polícia Militar do DF listas
com nomes de professores, estudantes e funcionários.”
[…] quando Lázaro ia subir na mesinha para discursar, seis homens
armados saíram de uma sala da reitoria e rodearam um moreno bigo-
dudo, […] os seguranças o conduziram a um Aero-Willys preto, Rome-
ro Blanco reagia às vaias […]. A primeira bomba de gás caiu perto do
corpo de Lázaro, a fumaça me cegou por um instante, consegui tocar
as costas de Dinah, mas fui empurrado e caí […]. Agentes à paisana
estavam infiltrados no protesto, ondas de ódio e pavor por toda parte…
(HATOUM, 2017, p. 122).

A vigilância constante era comum em todas as instituições durante a


ditadura. A prática de uma “cultura do medo” incutia nos cidadãos o respei-
to necessário ao estabelecimento da ordem tão cara aos propósitos militares.
Martim, aluno da UnB, presenciou isso de perto ao sofrer, junto com os demais
colegas e professores, a reprimenda violenta por parte da polícia ao manifesto
pacífico liderado pelo Geólogo.
Os acontecimentos dos intensos 1968 deixam marcas indeléveis na ci-
dade e nas pessoas que nela habitam. Nas trocas de correspondência com a
mãe, Martim revela a crueldade vivida na capital federal, que consegue des-
truir a beleza arquitetônica tão característica dessa cidade:

Por que passei mais de dois meses sem enviar uma palavra para minha
mãe? Para punir com o silêncio o silêncio dela?
Escrevi uma longa carta, que começou com meu sonho recente. […]
Também sonhei mais uma vez com você. Não foi um sonho sereno num
lago imenso, e sim um dos pesadelos nas noites na capital: você, outras
mães e Dinah apareciam juntas num protesto contra o fechamento da
escola onde estudei. Quando ia te abraçar, soldados do Exército repri-
miram o protesto e as pessoas sumiram numa poeira cinzenta. Você
também sumiu.
Não me machucaram quando fui detido em março de 68. Mas os pesa-
delos, a violência, e tudo que vem acontecendo na vida de muitas pes-
soas dão a Brasília um sentimento de destruição e morte que nem sequer
os palácios, a Catedral, as cúpulas do Congresso e todas as curvas desta
arquitetura conseguem dissipar. (HATOUM, 2017, p. 150, grifos nos-
sos).

A transformação destrutiva da cidade é fato. A repressão instaurada


torna o locus amoenus em locus horrendus a cada nova ameaça, a cada novo
amanhecer sem a liberdade de outrora. Os eventos cruéis dão o tom ambíguo à

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cidade, ameaçando a sua simetria. A barbárie que emana de tempos sombrios
impregna a cidade e o país, exalando medo e apreensão em seus habitantes.
Resistir através da força da palavra, ora nas correspondências com a mãe e
a avó, ora em tom confessional nas páginas do diário, faz com que Martim
consiga transcender as angústias de tempos de rupturas e ausências várias,
contrariando uma época em que o calar era imperativo.
Ao final do romance, quase no mesmo local da primeira cena de tortura,
“na calçada do Cine Cultura” (HATOUM, 2017, p. 228), Martim é mais uma
vez testemunha ocular de um evento que permanecerá em sua memória: a
prisão dos colegas e amigos colaboradores da revista Tribo:

Meus amigos e outros participantes da Tribo, enfileirados, de braços


erguidos ou com as mãos na nuca, entravam devagar num camburão.
Contei oito ou nove pessoas, reconheci apenas Fabius e Vana. Um po-
licial à paisana, baixo e atarracado, segurava o braço de uma moça que
tentava se afastar da fila. […] voltei sem apressar o passo, seria impru-
dente correr ou olhar para trás. […] Subi pela escada e toquei a cam-
painha da área de serviço. “Todos presos”, eu disse a Dinah. “Se tivesse
saído quinze ou vinte minutos antes, estaria com eles. […]”
“Por que foram presos?”, ela perguntou. “Lázaro é o único líder estudan-
til da nossa turma, e ele não estava lá.”
Maquinamos os motivos da prisão: os textos da Tribo criticados por
Lina em sua carta? Um artigo sobre o Cinema Novo, as entrevistas com
Lúcio Costa e um diretor de teatro? A foto do Boal, no exílio?
Dinah sentiu minhas mãos geladas e percebeu que eu estava apavorado,
mas não se alarmou: me deu uma toalha, e disse que minha roupa era
só barro e lama. “O Fabius marcou uma reunião da Tribo na tarde do
dilúvio.” (HATOUM, 2017, p. 228-229).

Achar respostas na violência gratuita advinda dos policiais aos jovens é


o que faziam Martim e Dinah após o ocorrido com o grupo de amigos. No dia
seguinte, Martim recebe uma ligação da Baronesa, tia de Vana, que, através da
mãe de Fabius, sabia que ele estava na casa de Dinah e pedia-lhe para deixar
Brasília o quanto antes:

Terça-feira, 12 de dezembro, 1972

“A mãe de Fabius me deu a notícia, Martim. […] Como tu escapaste? A


polícia vai te encontrar”, advertiu a Baronesa no telefone, com uma voz
que não deixava dúvida.
“O que eu fiz? Publiquei poemas e traduções na revista. É por isso?”
“Interessa o motivo? Não sei onde a Vana e os outros estão detidos, mas

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conversei com um advogado e com vários políticos. Já falaste com teu
pai?”
“Não.”
[…]
“Então vai embora de Brasília o quanto antes. Viaja para São Paulo. É
a tua cidade. Contrato um chofer de confiança para te levar a Goiânia.”
(HATOUM, 2017, p. 231).

A incapacidade demonstrada pela personagem, ao tentar enxergar al-


gum crime na simples publicação de poemas e traduções em uma revista orga-
nizada por jovens universitários, vai de encontro à lógica impressa pelo regime
ditatorial:

Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros


apreendidos, as músicas censuradas, alguém desaparecia. Em suma, a
lei era suspensa. Uma ditadura que se servia da legalidade para trans-
formar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas,
de assassinar opositores em um arbítrio absolutamente traumático. Pois
neste tipo de situação nunca se sabe quando se está fora da lei, já que o
próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer
momento, direito e ausência de direito. (TELES, SAFATLE, 2010, p. 11,
grifos nossos).

Mudar as regras do jogo conforme os próprios interesses era apenas


uma das artimanhas adotadas pelos militares para a manutenção do poder.
A falta de consciência de Martim acerca da gravidade de sua permanência na
capital após o cárcere dos amigos e idealizadores da Tribo dialoga com a ideia
de nunca se saber o que é lícito ou ilícito, haja vista as atitudes arbitrárias to-
madas pelo governo.
No capítulo 22, Martim coloca a data “Paris, inverno, 1978” e relembra
de uma das cartas recebidas de sua mãe no ano de 1972: “‘Um jovem sem mãe
e sem país… na noite surda e na fuga da felicidade…’ É um texto tão boni-
to quanto estranho. Você se sente assim? Triste, abandonado, desesperado?”
(HATOUM, 2017, p. 165, grifos nossos). A interpretação da personagem Lina,
na resposta posterior à enorme carta escrita pelo filho, sinaliza tanto para uma
problematização pessoal de Martim (nível micro) quanto para uma questão
maior que se refere à desilusão com o próprio rumo da nação (nível macro).
Martim sem sua mãe é, em outras palavras, o filho sem pátria, sem norte, sem
casa, largado à própria sorte, sentimento experimentado por grande parte dos
brasileiros durante o regime ditatorial, em especial pelas centenas de exila-
dos, vítimas de perseguições políticas ou familiares de desaparecidos durante

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a ditadura. Acerca dessa questão, o historiador Lewis Mumford (1991, p. 621)
esclarece que a ligação entre a cidade e a figura materna é manifesta, visto que
“a suprema função da cidade é o engrandecimento de todas as dimensões da
vida, em busca da plena realização do humano”, pois ela possui “funções ma-
ternais, nutridoras da vida”. A cidade acolhedora e que provê todas as necessi-
dades de seus habitantes associa-se assim à imagem da mãe que nutre o filho e
o educa para seu aprimoramento. No caso de Martim, a cada nova cidade, um
novo enfrentamento se apresenta. Local de embates desde o mito babélico, as
cidades, ao mesmo tempo, atraem e repelem, sem distinção, seus nativos e não
nativos, tal qual a mãe que expulsa o filho de suas entranhas.
O final do romance retrata a fuga da personagem de Brasília, após a
prisão dos amigos e de integrantes da revista Tribo no final de 1972, época
reconhecida como o auge da repressão por parte do governo militar. Martim
sente-se um desertor por não ficar e lutar ao lado de seus companheiros. Acer-
ca dessa questão, a pesquisadora Eurídice Figueiredo (2020, p. 05, grifos nos-
sos) esclarece que

o momento de partida rumo ao exílio configura essa tomada de posição


atormentada em que o sujeito parece abandonar a causa, ainda que sai-
ba que precisa salvar sua vida, que sua morte de nada servirá diante da
derrota que se afigura no horizonte. […] Partir para o exílio é também
resistir, resistir a se submeter à prisão e à morte.

Resistir e lutar, mesmo que à distância, são estratagemas utilizados pe-


los exilados na esperança de restituir o mundo pré-golpe, a vida pré-ditadu-
ra. Manter-se vivo, longe da perseguição instaurada, é também sinônimo de
resistência. Exilar-se foi a forma através da qual Martim e outros brasileiros
encontraram para resistir: longe da pátria, da violência e, consequentemente,
da morte.
A resistência dessa personagem (i)migrante acontece pela escrita. É o
ato de escrever, propriamente dito, que o mantém vivo, tanto no Brasil quanto
no país estrangeiro; espaços inóspitos onde consegue resistir através da for-
ça da palavra. O romance começa com a escrita do diário em Paris, no final
do ano de 1977. Na capital francesa, Martim sobrevive dando aulas de Portu-
guês do Brasil e tocando violão no metrô. Após descrever a “cidade gelada”
(HATOUM, 2017, p. 11) e um breve diálogo com seu aluno francês que quis
saber um pouco mais sobre o Brasil, Martim caminha pela cidade e é sur-
preendido por flashes do passado:

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O bate-papo, de início besta, aos poucos rondou um assunto mais cabe-
ludo, que ficou logo grave; para ir da gravidade ao terror político bas-
taram duas xícaras de café e uns biscoitos. No fim, meu aluno, mudo,
pagou os quarenta francos da aula e me deu dez de gorjeta. Foi o lucro
desta tarde fria e cinzenta.
Embolsei os francos e caminhei pelo Bois de Boulogne […]. A quietude
foi assaltada por lembranças de lugares e pessoas em tempos distintos:
Lázaro e sua mãe no barraco de Ceilândia, a voz do Geólogo no campus
da Universidade de Brasília, a aparição de uma mulher no quarto de um
hotel em Goiânia, o embaixador Faisão recitando versos de um poeta
norte-americano […]. (HATOUM, 2017, p. 11-12).

Transportado por suas memórias, a personagem revive acontecimentos


reais e imaginários em sua terra natal. Talvez a conversa com seu aluno te-
nha sido o estopim para aflorar essas reminiscências de um passado repleto de
traumas e dor. Acerca disso, o filósofo Friedrich Nietzsche (apud GAGNEBIN,
2006, p. 140) reitera que “somente o que não cessa de doer fica guardado na
memória”. São os fatos dolorosos e amargos que ressurgem como fantasmas à
espreita e assombram Martim, desterrado e exilado. As escolhas por fixar essas
lembranças no diário reforçam a necessidade de compreensão de tudo aquilo
que vivera nos tempos de repressão no Brasil.
Na última noite ao lado da amada Dinah, Martim relembra a triste des-
pedida de sua mãe e os desencontros provocados pelos trânsitos todos alheios
à sua vontade:

Enquanto escrevo, penso nesta separação indesejável e recordo o adeus


da minha mãe. Li no primeiro caderno o que meu avô tinha dito na
noite natalina de 1967: “Você ouviu tua mãe dizer que ela não pode mais
viver com o teu pai. O destino dela está nessas palavras”. Em São Paulo,
longe do meu pai, estaria mais perto dela, mesmo sem saber onde mora.
Dinah não sabia o que dizer sobre o silêncio da minha mãe, talvez não
quisesse arriscar uma opinião, com medo de me ferir. Várias vezes me
perguntou por que Lina não me dizia onde morava, e essa é a pergunta
que eu tenho feito o tempo todo para mim mesmo. (HATOUM, 2017,
p. 234)

O ato de escrever é a forma de resistência encontrada pela personagem,


que tenta desvendar os mistérios familiares que retumbam em muitos outros
segredos da nação. Trabalhar os seus próprios traumas, tentando decifrar as
incógnitas de sua vida, ao mesmo tempo em que ensaia entender os aconte-
cimentos de seu país, é o esforço hercúleo de Martim, símbolo dos percalços
vividos por toda uma geração exposta às barbáries do regime militar.

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Considerações finais

A novíssima capital federal, inaugurada em 1960, com seus edifícios


“construídos às pressas” (HATOUM, 2017, p. 28), como assevera o engenheiro
Rodolfo, pai de Martim, serve de arena para os enfrentamentos pós-golpe de
1964. Martim mescla presente – em Paris – e passado – no Brasil – nas páginas
dos seus diários, atentando à cronologia dos acontecimentos vividos.
Martim é o arquétipo de um tempo em que falar significava desapare-
cer. Como ele, tantos outros exilados, advindos de “países que os abortaram”8
(HIDALGO, 2016, p. 15), tentaram reexistir em território estrangeiro, rees-
crevendo suas histórias, (sobre)vivendo às intempéries e resistindo contra os
reveses da ditadura. A escolha pelo registro em forma de diário dialoga com
um período em que o cerceamento de toda e qualquer forma de expressão
vigorava, uma das consequências diretas do caráter de exceção.
A partir da escrita memorialística, o romance traça um mapeamento
histórico do Brasil em um dos períodos mais sombrios da ditadura. Os si-
lêncios percebidos e escutados pelo protagonista, que reconfiguram e (re)
desenham a cartografia urbana da capital federal, ecoam na própria História
nacional repleta de não ditos e segredos. Das veias e das artérias brasilienses
emanam crimes encobertos, verdades escondidas, culpados à solta, vítimas in-
justiçadas, enfim, delitos encravados para sempre na genealogia de uma cidade
que serve de exemplo a outros milhares de cidades brasileiras. Uma cidade que
ouve, vê e testemunha casos hediondos e despóticos, a exemplo das prisões ar-
bitrárias e desaparecimentos em plena luz do dia, não consegue sair incólume
dessa experiência-limite. Sua criação urbana, repleta de beleza e modernidade
arquitetônica, leva consigo as marcas indeléveis desses ataques bárbaros, trans-
formando-a em um lugar ambíguo, estigmatizado desde os primórdios com as
marcas do bem e do mal, da guerra e da paz, do amor e do ódio, da corrupção
e da honestidade, máscaras reversíveis que Brasília utiliza a seu bel-prazer.
A estrutura do texto aponta para uma composição vertiginosa, na qual
vemos inúmeros trânsitos, tanto de ordem física quanto de ordem linguística.
Notamos a presença de um diário dentro do outro – Martim escreve em Paris
acerca de acontecimentos datados e ocorridos em Brasília –; de uma cidade
dentro da outra – Santos e São Paulo dentro de Brasília, Goiânia dentro de
Brasília, todas dentro de Paris –; de um país dentro do outro – Brasil dentro
da França –; de um silêncio dentro do outro – Lina e seu silêncio dentro do si-
lêncio de Rodolfo, dentro dos silêncios da nação –; do passado dentro do pre-

8  Frase do romance Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo, publicado em 2016.

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sente, enfim, como “bonecas russas que vão saindo umas de dentro das outras.
Como as pessoas que somos, e que vão saindo umas de dentro das outras ao
longo dos anos. Ao longo das horas” (LISBOA, 2015, p. 13), a sensação de uma
estrutura mise en abyme surge como tentativa de escavar as camadas subterrâ-
neas de memórias traumáticas em busca de respostas escondidas, enterradas.
Sujeito em trânsito, Martim move-se tal qual um ser autômato, deixando-se
levar pelas decisões dos familiares, dos novos colegas e depois do próprio re-
gime, sendo empurrado para as margens e levando consigo as marcas da tra-
vessia. Além de protagonizar inúmeras fugas, Martim está rodeado por outros
fugitivos, a exemplo da mãe sobre a qual não sabe sequer o paradeiro e do
diretor de teatro Damiano Acante, também exilado em Paris.
O teor obscuro da narrativa, expresso desde os títulos tanto do primei-
ro volume – A noite da espera – quanto da trilogia – O lugar mais sombrio
–, sinaliza para acontecimentos e experiências soturnas, ocultas e, portanto,
difíceis de serem decifradas. A palavra “noite” e a expressão “lugar mais som-
brio” acentuam sobremaneira a nebulosidade que impregna cada movimento
das personagens submersas em tempos obscuros de repressão e censura da
palavra. Sendo assim, o ato de escrever passa a ser, em si mesmo, um ato de
resistência. É através da escrita e da reescrita de suas memórias que Martim
toma consciência de uma fração importante dos fatos históricos de sua pátria,
ao mesmo tempo em que passa a entender o seu papel enquanto sujeito da
própria História.
A solidão, que transborda das páginas do romance, preenche as lacunas
de vidas esvaziadas, ocas, corrompidas. Martim e seus colegas carregam as in-
sígnias de tempos em que a justiça não era igual para todos. Os mais fracos e,
portanto, distantes do poder sofriam os desmandos daqueles que orbitavam
um governo ditador e autoritário. Alheio ao paradeiro da própria mãe e dos
rumos da nação, expatriado, ele intenta desvendar os enigmas de sua própria
história encobertos dentro de tantos outros silêncios abafados na capital fe-
deral. Martim, submerso no silêncio, em fuga, transformado em sombra de
si mesmo e à procura de outras sombras, passa a reexistir a partir da arte lite-
rária, a qual “resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imagi-
nando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia” (BOSI, 1977,
p. 145). Utopia ou não, narrar o passado para reescrever o presente/futuro é a
mais bela missão da arte enquanto transgressão do real.

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Referências

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.


CARNEIRO, Paulo Luiz. Morte do estudante Edson Luís em 1968 deflagra protestos
no país contra ditadura. O Globo, Rio de Janeiro, 30 mar., 2018. Disponível em:
https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/morte-do-estudante-edson-
-luis-em-1968-deflagra-protestos-no-pais-contra-ditadura-22470751. Acesso
em: 10 jul. 2020.
CARVALHO, Alberto R. C. de. Migrantes em Brasília: os motivos, as dores e os sonhos
numa perspectiva clínica. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e Cul-
tura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
COSTA, Ana Amélia G. Rakushisha: heterotopias, não-lugares e silêncio. Letrônica,
Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 351-365, jan./jun., 2014.
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esta obra foi composta
em Minion Pro 11/14
pela Editora Zouk e impressa
em papel Pólen Soft 80g/m2
pela gráfica Odisséia
em setembro de 2021

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