SEVCENKO, N. Literatura e História-1-6
SEVCENKO, N. Literatura e História-1-6
SEVCENKO, N. Literatura e História-1-6
7 ediçãorevísla
e amp/inda
Copyright ©i983, zoo3 by Nicolau Sevcenko
Sumário
Capa
Dupla Design sobre Avenida Ceníra] c. ]906, Río de /queira
foto de Marc Ferrez(detalhe reproduzido na quarta capa)
Índice remissivo
Frederico Dentello
Preparação
Frederico Dentello
Revisão
MaysaMonção
Ana Mana Barbosa
\
Sevcenko, Nicolau 11
Agradecimentos .....
Literatura como missão : tensões sociais e criação cultural na
PrimeiraRepública/ Nicolau Sevcenko. 2' ed. SãoPaulo : Com- Prefácio à primeira edição Francisco de AssimBarbosa i5
panhia dasLetras, 2003.
21
Nota de reedição
Bibliografia.
SBN 85-359-0409-3 Introdução . z7
03-4402 coo-869.909
3.O inferno social 7z
Índice para catálogo sistemático:
1.Literatura brasileira: História ecrítica 869.909
ii. O exercíciointe]ectua] como atitude política
os escritores-cidadãos . . . . 95
1. 0s "mosqueteirosintelectuais" 96
[Zoo3] 2. Paladinosmalogrados io7
Todos os direitos desta edição reservados à
ED l TO RA SCH WARCZ LT DA .
3. Transformação social, crise da literatura
Rua Bandeira Paulista 702cj. 3z e fragmentaçãoda intelectualidade n7
o4532-002 São Paulo sp
Telefone(u) 37o735oo
Fax (n) 37o7 35ot
in. Euclides da Cunha e Lama Barreto
www. comp anhiadasletras.com .br sintonias e antinomias i39
Ficou numa atitude inerte, espavorida;
Introdução
ó meu pai, jú ttão vês o olhar?", perguntou Tsila;
Respondeu:"Não me larga a tétrico pupilas'l
Victor Hugo, "A consciência:
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r
Fonte do prazer e do medo, essasubstância impessoal é um conjunto de significados condensados na sua dimensão social.'
recurso poderoso para a existência humana, mas significa tam- Afinal, todo escritor possui uma espéciede liberdade condicio
bém um dos seusprimeiros limites. As potencialidadesdo ho nal de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, nor-
mem só fluem sobre a realidade atravésdas âssuras abertas pe mas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade
las palavras.' Falar, nomear, conhecer, transmitir, esseconjunto e seu tempo e é destes que eles falam.' Fora de qualquer dú
de atou se formaliza e se reproduz incessantemente por meio da vida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, des
nlxaçãode uma regularidade subjacentea toda ordem social: o tinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma
discurso. A palavra organizada em discurso incorpora em si, des- árvore sem raízes,ou como pode a qualidade dos seusâ'utos não
se modo, toda sorte de hierarquias e enquadramentos de valor depender das característicasdo solo, da natureza do clima e das
intrínsecos às estruturas sociais de que eÍnanam. Daí por que o condições ambientais?
discurso searticula em função de regrase formas convencionais, C) estudo da literatura conduzido no interior de uma pes
cuja contravenção esbarra em resistências firmes e imediatas.' quina historiográfica, todavia, preenche-se de significados muito
Maior, pois, do que a a6lnidadeque se supõe existir entre as pa- peculiares. Sea literatura moderna é uma õonteira extrema do dis-
lavras e o real, talvez seja a homologia que elas guardam com o curso e o proscênio dos desajustados,mais do que o testemunho
ser social. da sociedade, ela deve trazer em si a revelação dos seus focos mais
Dentre as muitas formas que assumea produção discursiva, candentes de tensão e a mágoa dos aflitos. Deve traduzir no seu
a que nos interessa aqui, a que motivou estetrabalho, é a litera- âmago mais um anseio de mudança do que os mecanismos da
tura, particularmente a literatura moderna. Ela constitui possi- permanência. Sendo um produto do desejo, seu compromisso é
velmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discur- maior com a fantasia do que com a realidade. Preocupa-se com
so, o espaçoonde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, aquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do
mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e que com o seu estado real.
da perplexidade. É por onde o desafiam também os inconforma- Nesse sentido, enquanto a Historiogra6la procura o ser das
dos e os socialmente mal-ajustados. Essaé a razão por que ela estruturas sociais, a literatura fornece uma expectativa do seu
aparececomo um ângulo estratégico notável, para a avaliação vir-a-ser. Uma autoridade tão conspícua quanto Aristóteles já se
havia dado conta dessecontraste. Comentava ele na sua Poética:
das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determina-
da estrutura social.Tornou-sehoje em dia quaseque um truís-
mo a afirmação da interdependência estreita existente entre os Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem
estudos literários e as ciências sociais.: verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as
A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser de história, se
se regrada a posições reducionistas anteriores, é de que se preser fosseem verso o que eram em prosa) -- diferem, sim, em que diz
um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.'
ve toda a riqueza estética e comunicativa do texto literário, cui-
dando igualmente para que a produção discursiva não perca o
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Ocupa-se portanto o historiador da realidade, enquanto o consumidas. A produção dessa Historiogra6la teria, por conse-
escritor é atraído pela possibilidade.Eis aí, pois, uma diferença quência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram
crucial, a ser devidamente considerada pelo historiador que se marginais ao sucessodos fatos. Estranhos ao êxito mas nem por
serve do material literário.
isso ausentes, eles formaram o fundo humano de cujo abandono
Mas e se invertermos as perspectivas: qual a posição do es- e prostraçãosealimentou a literatura. Foi sempreclara aospoe'
critor diante da história? Quem nos responde é um crítico con- tas a relação intrínseca existente entre a dor e a arte." Esse é o ca
temporâneo. minho pelo qual a literatura sepresta como um índice admirá-
vel, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da
A História, então, diante do escritor, é como o advento de uma história social.
opção necessáriaentre várias morais da.linguagem;
L
ela o obriga a O casoem estudo é típico. As duas primeiras décadasdesse
significar a Literatura segundopossíveisque ele não domina.' século experimentaram a vigência e o predomínio de correntes
realistasde nítidas intenções sociais. Inspiradas naslinhagens in-
A história, assim,ao envolver um escritor, o arroja contra- telectuais características da Be//e Époqzze-- utilitarismo, libera-
ditoriamente para fora de si. Paraque ele cumpra o papel e o des- lismo, positivismo, humanitarismo --, faziam assentar toda a sua
tino que Ihe cabem, é necessárioque se perca nos meandros de energia sobre conceitos éticos bem de6lnidos e de larga difusão
possíveisinviáveis. Desejos inexeqüíveis, projetos impraticáveis: em todo esseperíodo. Assim, abstratos universaiscomo os de hu-
todos, porém, produtos de situações concretas de carência e pri- manidade, nação, bem, verdade e justiça operavam como os pa
vação, e que encontram aí o seu âmbito social de correspondên- drões de referência básicos, as unidades semânticas constitutivas
cia, propensoa transformar-seem público leitor. dessaprodução artística. O dilema entre o impulso de colaborar
A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história para a composição de um acervo literário universal e o anseio de
que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, so- interferir na ordenação da sua comunidade de origem assinalou
bre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho tris- a crise de consciência maior dessesintelectuais.
te, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. A leitura dos seus textos literários nos levou a perscrutar o
Mas será que toda a realidade da história se resume aos fatos e ao seucotidiano, familiarizando-nos com o meio social em que con-
seu sucesso? Felizmente, um filósofo bastante audacioso nos re-
viviam: a cidadedo Rio de Janeirono limiar do séculoxx. As pos-
dimiu dessa compreensão,tão estreita, condenando "o 'poder da turas, as ênfases,as críticas presentes nas obras nos serviram como
história: que, praticamente, se transforma, a todo instante, numa guias de referência para compreendermos e analisarmos as suas
admiração nua do êxito que leva à idolatria dos fatos'l'' tendências mais marcantes, seusníveis de enquadramentos sociais
Segundo um outro pensador, essenosso contemporâneo, "o e sua escala de valores. O material compulsado: a imprensa perió-
real não se subordina ao possível; o contingente não se opõe ao dica (jornais, magazines), crónicas, biografias e opúsculos. Ato
necessário':''Pode-se,portanto, pensarnuma história dos dese contínuo, essematerial vultoso nos forneceu indicações precio-
jos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não sas,que urgiram a releitura e a reinterpretação das obras literá-
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rias. Dessaforma, os textos narrativos nos ajudaram a iluminar cial repousava sobre insólitas clivagens existentes no interior do
a realidade que lhes era imediatamente subjacente,e o conheci- universosocialda Primeira República,com que as suasobras se
solidarizavam. Seus livros distinguem-se ainda por isso, pela
mento desta contribuiu para deslindar os interstícios da produ-
ção artística. transparência com que resumem nas propostas e respostasesté
ricas os conflitos mais agõnicos que marcaram a sociedadebra-
Uma pesquisaabrangente dos meios intelectuais, com uma
sileira nessa fase. Cada um deles é como que uma síntese das al-
amostragemgeral da suaprodução no tocante aostemas,crité
ternativas históricas possíveis,que secolocavam diante dos olhos
rios, objetivos e disposições,permitiu-nos avaliar as peculiarida-
dos autores, pelas quais lutaram energicamente, derrubando
des dessapequena comunidade e a sua ânsia de enraizar-se num
moinhos de vento para o sorriso desconfortáveldos poderosos.
substrato social mais amplo. Demonstrou-nos igualmente o quan
Esta é a história daquela batalha contra os moinhos e da sua três
to a sua produção se vincava conforme o ritmo e o sentido das
te derrota.
transformações históricas que agitaram a sociedadecarioca nes-
se período. Orientaram-nos, nessemomento da pesquisa,não só
a leitura de obrasexpressivas,mastambém uma sondagemmais
completa das práticas de edição, das expectativas do público, da
atmosfera cultural criada na cidade, dos pontos de encontro, as
sociações de interesse e rivalidades que distinguiam a comunida
de dos homens de letras.
Do interior dessepanorama mais complexo que entrecruza
os níveis social e cultural, sobressaem-secom grande destaqueas
obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Nenhuma outra apre-
sentavatantos e tão significativos elementospara a elucidação,
quer das tensõeshistóricas cruciais do período, quer dos seusdi-
lemas culturais. Mas mais notável ainda que o seu relevo indivi-
dual era a contradição irremissível que opunha a obra de um à de
outro. Contraste centrado nos processosde elocução radicalmen-
te opostos de cada escritor, ele se estendia para todo o conjunto
da sua produção literária, atestando um estranho e completo di-
vórcio intelectual entre dois autores, cujas condições gerais de
vida e cuja militância pública denotavamuma enorme seme
Ih..,.
niaiiya
O estudo mais detido de cadaum dessesconjuntos de tex-
tos deixaria entrever com clareza que o seu antagonismo essen-
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