A Antropologia Pastoral de Paulo

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A ANTROPOLOGIA

PASTORAL
DE PAULO
tornarle humanos juntos

J. Murphy-
O’Connor
JEROME MURPHY-O 'CONNOR, OP — A ANTROPOLOGIA PASTORAL DE PAULO
O presente livro compõe-se de três partes. A primeira
volta-se para a antropologia de Paulo, porque a intuição
do Apóstolo sobre o que a criatura humana pode e deve ser
é a base de toda a sua aproximação. Isso envolve uma
discussão de sua compreensão de Jesus Cristo, porque foi
nele que Paulo encontrou o modelo histórico concreto de
existência humana autêntica. Vemos, então, que a descri­
ção que Paulo faz da sociedade que encontrou pode ser
aplicada com muito pouca modificação ao nosso mundo
contemporâneo. Ora, se ele viu os problemas que percebe­
mos, não parece haver nenhum motivo para negar que as
soluções que deram certo para ele dariam certo para nós.
A partir disso, a terceira parte apresenta a compreensão
de Paulo referente às estruturas da existência cristã
autêntica no Corpo de Cristo. E aí que emerge a verdadei­
ra natureza da comunidade cristã, de que a liberdade é a
característica primordial.

Jerom e Murphy-O’Connor, OP, é professor d e Novo Testa­


mento na École Biblique de Jerusalém desde 1967. Espe­
cialista em estudos paulinos e nos manuscritos do Mai-
Morto.

ISBN 978-85-349-0069-C

9I7S8534IIS>QO69Q11
I r

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Murphy-0’Connor, Jerome, 1935-


A antropologia pastoral de Paulo: tornar-se humanos juntos/Jerome Murphy-
0'Connor; [tradução João Rezende Costa; revisão H. Dalbosco]. — São Paulo:
Paulus, 1994. — (Coleção temas bíblicos)

ISBN 978-85-349-0069-0

1. Bíblia. NT. - Epístolas de Paulo - Crítica e interpretação 2. Homem (Teologia


cristã) 3. Vida cristã I. Título. II. Série: temas bíblicos.

93-0256 CDD-227.06

índices para catálogo sistemático;


1. Epístolas de Paulo: interpretação e crítica 227.06
2. Paulo: Epístolas: Interpretação e crítica 227.06

Coleção TEMAS BÍBLICOS

• Israel no exílio, R. W. Klein


• A antropologia pastoral de Paulo, J. M. O’Connor, op
• A Igreja doméstica nos escritos de Paulo, V. Branlck
JEROME MURPHY-O’CONNOR, OP

AANTROPOLOGIA
PASTORAL
DE PAULO
Tornar-se humanos juntos

PAULUS
Titulo original
Becoming human together - The Pastoral Anthropology of St. Paul
© Jerome Murphy-O'Connor - The Liturgical Press, Collegeville,
Minnesota, EUA, 1982
ISBN 0 89453-075 5

Tradução
João Rezende Costa

Revisão
H. Dalbosco
Impressão e acabamento
PAULUS

2a edição, 2007

©PAULUS-1994
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 Sao Paulo (Brasil
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br
[email protected]
ISBN 978-85-349-0069-0
PREFÁCIO

Conta-se de um velho e sábio rabi judeu que se lhe


informou que havia pessoas que diziam que o Messias já
viera. Ele não respondeu nada, mas foi à janela e, abrindo-
a, contemplou o mundo. Após um momento, voltou mene­
ando tristemente a cabeça. Se o Messias tivesse vindo
deveras, as coisas haviam de ser diferentes, mas nada
mudara.
Quando nós, cristãos, olhamos o nosso mundo, faze­
mos a experiência de momentos de alegria e admiração;
sua duração, porém, é pouca e sua pungência se intensi­
fica por seu caráter de inesperado. São momentos que
irrompem numa existência tediosa e sem sentido, ainda
que estes momentos assegurem a vitalidade da esperança.
Apesar da onda de pessimismo, as pessoas se acotovelam
junto à janela da promessa. Prosseguem sonhando com
coisas melhores, pois somente este afastar-se da realidade
torna a vida suportável.
Há cerca de dois mil anos, a Igreja vem pregando as
boas novas de nova criação, de mudança radical nas
estruturas da existência humana. Um sem-número de
homens e mulheres, dotados de boa vontade, talento e
energia, dedicaram-se sem reservas a este serviço. No
entanto, existe o que para demonstrá-lo? Muito pouco,
i n felizmente uma vez que desde muitas gerações os cristãos
começaram a desenvolver uma teologia que desviou a
ênfase do resultado para o mero esforço. Pensou-se ser
errado julgar os outros em termos de seu êxito em produzir
mudanças. O fato de terem falhado em levar os outros a

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real encontro com Cristo foi passando em silêncio em
favor do aplauso pelos esforços que fizeram.
/ O resultado último, mas lógico, desta tendência
consistiu no desenvolvimento de um conceito de cristia­
nismo anônimo, em que todos eram considerados serem
cristãos, quer o soubessem ou não, quer o negassem ou
não. Os motivos que levaram à elaboração desta teologia
não foram todos mau$. Isso, porém, não deveria permitir
que se obscurecesse o fato de que se enraíza no pessimismo.
Seus propositores não vêem nenhuma possibilidade real
de criar um mundo melhor. Inevitavelmente, pois, sua
reflexão gira em torno da justificação do status quo. Mal
surpreende que o mundo permaneça imutado.
Felizmente, há cristãos que rejeitam essa aproxima­
ção. A miséria e a infelicidade abalam sua consciência ao
ponto de a complacência tornar-se o pecado extremo. Seu
interesse pelos oprimidos aflora no empenho de mudar as
estruturas da sociedade que são os instrumentos de
opressão. Nenhum cristão deveria desejar fazer menos. O
cristão totalmente autêntico, porém, deve desejar fazer
mais. Estruturas opressoras não serão modificadas com
êxito enquanto os corações não forem mudados.'E verdade
que os seres humanos mudam à medida que novas estru­
turas emergem, mas a lição permanente da história é que
sem genuína conversão as novas estruturas não se pro­
varão menos opressivas. /
A omissão desta verdade tem significado que muitos
cristãos, empenhados em libertar os oprimidos mediante
modificação das estruturas sociais, ficaram desen­
corajados e, em vista, porém, de sua dedicação, o seu
despeito com o passo da mudança tende a se converter em
raiva que redunda numa teologia da revolução. Presume-
se que, removendo os obstáculos causados pela compla­
cência dos ricos, o problema fica resolvido.
A simplicidade desta solução é atraente. Mas quando
se trata da natureza humana, a simplicidade é suspeita.
Uma vez mais, a lição da história é que o desmanche
violento do status quo jamais foi o prelúdio de uma soci­

6
edade melhor. Os pobres carecem de redenção tanto
(¡uanto os ricos. A não ser que se mudem os corações dos
que nada possuem, estes produzirão inevitavelmente
estruturas que inibirão o desenvolvimento humano de
outros.
Todos carecem, portanto, de libertação. Por onde
começar? E se começarmos, existem motivos para otimis­
mo? Refletir sobre essas questões com base única na
realidade em que estamos submersos só pode levar a
pessimismo e desespero, como se evidencia nas obras da
maioria dos filósofos existencialistas. Se devemos prosse­
guir esperando, e sem esperança não se dá luta alguma,
devemos achar outra perspectiva.
Precisamente essa alternativa nos oferece o Novo
Testamento.,\A situação que encaramos não é nova. A
primeira geração de cristãos deparou o mesmo problema..
Constituíam uma pequena minoria e se confrontaram
com a gigantesca tarefa de mudar o mundo, O fato de que
operaram radicais modificações nas estruturas sociais
dá-lhes o direito de nossa atenção que excede o de qual­
quer outro reformador. De todos os teólogos que articula­
ram as dimensões do problema, o apóstolo Paulo ocupa
lugar preeminente. Sua análise da situação contemporâ­
nea com que teve que se haver poderia ser análise de nossa
sociedade. Isso lhe confere ao mesmo tempo extraordiná­
ria credibilidade. Ele conhece as dificuldades. Suas res­
postas, portanto, não estão coloridas pelo utopismo que
suscita excitamento intelectual, mas falha em mover à
açãoi Realismo e responsabilidade são tão características
de sua visão do que a criatura humana pode se tornar que
somos forçados a conceder com Chesterton que o cristia­
nismo não falhou; ele simplesmente não foi tentado a
sério.
Paulo rejeita explicitamente todo ataque frontal às
estruturas da sociedade. Sua visão escatológica foi res­
ponsável por este fato, e nós (se bem que não realistica­
mente) não mais partilhamos de sua crença de que o fim
do mundo é iminente. No entanto, um ponto válido pode

7
I I

<! f

ser extraído desta atitude. E fundamentalmente não-


cristão conceber a própria missão como interessada nos
ricos, nos operários ou nos pobres, porque essa aproxima­
ção reduz efetivamente pessoas ao estado de unidades
numa classe. Falha em respeitar a dignidade de sua
unicidade. Em nível mais prático, tentar tratar o proble­
ma da opressão e liberdade em termos de classes sociais
propõe o problema em perspectiva que o tornam virtual­
mente insolúvel, simplesmente porque os números envol­
vidos são tão vastos.
Se percebemos isso, não o era menos evidente a
Paulo. Seu realismo manifesta-se no fato de reconhecer
que o indivíduo é impotente perante as forças em ação na
sociedade. Os membros de uma sociedade acham-se pro­
fundamente condicionados por sua orientação. Podem,
com efeito, rejeitar certos aspectos, o que lhes dá a impres­
são de liberdade. A visão radical de Paulo não oferece
lugar a essa ilusão ingênua. Ele negava a realidade da
vontade livre aos que eram membros de uma sociedade
inautêntica. Permanecia a possibilidade teórica, mas o
seu interesse voltava-se para a realidade de liberdade. Só
os livres podem libertar escravos^T-
Para sermos livres, temos que ser arrancados à garra
de uma sociedade que nos modela, apesar de nós mesmos,
à sua própria imagem. Fundamentalmente, trata-se de
certa forma de proteção que iniba a influência de pressões
que distorcem nossa própria autocompreensão. Paulo viu
que essa proteção só podia ser providenciada pela cons­
trução de um meio ambiente alternativo no qual estivés­
semos sujeitos a inspirações que nos apoiassem em nossa
busca de autenticidade/Este meio ambiente nada mais é
que a comunidade cristã local, que não só é a forma de
liberdade e salvação, mas também o instrumento crítico
para as mudanças no mundo.
Ainda que sua vocação fosse pregar a Palavra, Paulo
viu claramente que palavras só não modificariam jamais
as estruturas societárias. E muito fácil falar e o mundo
está cansado de meras proclamações. E sequer é suficiente

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para fazer coisas em prol das pessoas. O que importa é o
que os cristãos são de modo especial. O próprio estilo de
vida deles é o poder que cria a possibilidade de mudanças
para outros. Ainda que os cristãos, para existir deste
modo, também careçam de ser robustecidos de poder. Daí
sua mútua dependência na unidade do Corpo de Cristo.
Se a Igreja deve, uma vez mais, lançar o poder que é
efetivo de mudança permanente, deve recuperar o conceito
básico de comunidade cristã, e Paulo, em vista de seu
sucesso, é o primeiro a ter direito de ser nosso guia. O
propósito deste livro é mostrar que a comunidade é o
elemento-chave em seu pensamento. Uma vez compre­
endido isso, tudo o que ele diz em suas epístolas cai em
lugar próprio, tornando-se desafio radical que penetra no
coração do interesse contemporâneo. Somente quando
estivermos convencidos de que a comunidade é a realidade
cristã básica, poderemos dedicar-nos totalmente em levá-
la à existência.
O livro tem três partes. A primeira parte volta-se
para a antropologia de Paulo, porque a intuição do Apóstolo
sobre o que a criatura humana pode e deve ser é a base de
toda a sua aproximação. Isso envolverá uma discussão de
sua compreensão de Jesus Cristo, porque foi nele que
Paulo encontrou o modelo histórico concreto de existência
humana autêntica. E aí que veremos que a descrição de
Paulo da sociedade com que tinha que tratar pode ser
aplicada com muito pouca modificação ao nosso mundo
contemporâneo. Se ele viu os problemas que percebemos,
não parece haver nenhum motivo para negar que as
soluções que deram certo para ele dariam certo para nós.
Daí, na terceira parte, tento apresentar sua compreensão
das estruturas da existência cristã autêntica no Corpo de
Cristo. E aí que veremos a verdadeira natureza da co­
munidade cristã de que a liberdade é a característica
primordial.
A compreensão de Paulo que manifesto neste livro é
resultado de longo período de maturação a que muitos
fatores contribuíram. O ímpeto original para empreender

9
I

este tipo de reflexão foi o convite a dar uma série de


palestras sobre teologia moral paulina ^araoNewEngland
SummerlnstituteforPriests no Colégio de Stonehill, North
Easton, Mass., em 1970. A esta altura estava interessado
em determinar exatamente que peso Paulo atribuía aos
imperativos morais abundantes em suas epístolas. As
conclusões a que chegara foram corrigidas e desenvolvi­
das no diálogo com outros auditorios, e a publicação
preliminar na forma de três artigos em Doctrine and Life
(janeiro, fevereiro e março de 1971) foi eventualmente
ampliada num livro publicado na França sob o título
L’existence chrétienne selon saint Paul (Cerf, Paris, 1974)
e no Brasil sob o título A vida do homem novo (Edições
Paulinas, São Paulo, 1975). Discussões subseqüentes
com auditorios na Irlanda e nos Estados Unidos, no Perú
e no Brasil, na Austrália e na Nova Zelândia revelaram,
porém, que a seção deste livro que tratava de antropologia
e as estruturas de existência inautêntica e autêntica era
muito mais relevante para a situação contemporânea da
Igreja que a pesquisa antes técnica dos imperativos mo­
rais de Paulo. Daí, decidi desenvolver essa seção e publicá-
la separadamente com a esperança de que prestará algum
serviço aos que estão tentando construir a Igreja no
mundo moderno.
Tentei ser tão breve como é consistente com a clareza,
e as notas de roda-pé foram reduzidas ao mínimo neces­
sário. Adotei essa alternativa a um tratado científico em
vista de minha convicção de que o auditório que quero
atingir seria mais receptivo a um estudo que respeita sua
ordem de prioridade/Um diálogo com acadêmicos sobre
pontos minúsculos de interpretação tem pouco valor para
aqueles cuja carga de trabalho nas paróquias e nas
missões lhes faculta um mínimo de lazer. Sinto também
que ao escolher essa aproximação estou pagando uma
dívida. Minha obrigação para com os que escreveram
sobre Paulo é imensa, mas devo mais aos trabalhadores
modestos na linha cujas perguntas urgentes orientaram
minha atenção para aspectos do pensamento de Paulo,

10
cuja importância nem sempre foi reconhecida. O seu
empenho pela “vida” (no sentido paulino) fornece estímu­
lo e crítica que, reconheço com gratidão, jamais poderei
expressar adequadamente.

I
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

A compreensão de Paulo que delineei na primeira


edição deste livro repousou no estado de apenas alguns
aspectos e temas, mas a visão que apresentei necessari­
amente foi além da documentação que então podia contro­
lar. A maioria de minha pesquisa nos cinco anos que
intervieram foi dedicada a estudos pormenorizados de
passagens particulares das cartas paulinas. O resultado
foi uma série de artigos largamente anotados e publica­
dos em Revue Biblique. Journal of Biblical Literature e
Catholic Biblical Quarterly. Nada do que encontrei obri­
gou-me a alterar minha concepção dos padrões básicos do
pensamento de Paulo. Ao contrário, intuição em sua
mente aí desenvolvida capacitou-me para lançar luz nova
sobre textos que há muito tempo tinham sido objeto de
discussão. Minha hipótese, em outras palavras, ultrapas­
sa com êxito o texto clássico; esclarece pontos não consi­
derados na formulação da hipótese. Fui também confir­
mado pelas conclusões convergentes de outros estudiosos,
notadamente J. D. G. Dunn com sua firme rejeição de
qualquer alusão à divindade de Cristo em Paulo, E. P.
Sanders com sua recusa de ver a justificação pela fé como
a chave da teologia de Paulo e F. Mussner com seu tratado
de Pecado e liberdade. Ta ntas alusões de que essa geração
gostaria de ver Paulo liberado finalmente das categorias
alienígenas que apenas serviram para obscurecer sua
relevância.
Além de corrigir erros menores, a generosidade de
meu editor e amigo, Michael Glazier, permitiu-me acres­
centar novo material, cuja maior parte aparece nos caps.

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1 e 3. O primeiro situa Paulo historicamente tentando
especificar quanto ele sabia do ministério terreno de
Jesus. O último trata, talvez bastante brevemente, de
certos conceitos que, sc entendidos equivocadamente,
envolvem necessariamente radical distorção da visão de
Paulo sobre Cristo. Acrescentei também uma seção sobre
“Mulheres em Cristo”no cap. 10, não simplesmente porque
o problema é atual, mas porque uma representação
equivocada da posição de Paulo sobre o tema comprovou-
se como obstáculos para a apreciação simpática de sua
contribuição para nossa compreensão daquilo que a comu­
nidade genuína deve ser.
Em resposta às sugestões de mestres que usam mi­
nha obra como introdução básica ao pensamento paulino,
acrescentei bibliografias no fim de cada capítulo. Não
pretenderam absolutamente ser exaustivas em nenhum
aspecto. Insiro estudos que se evidenciaram formativos de
meu próprio pensamento, mesmo quando não estou de
acordo completamente com eles, e também livros e artigos
que tratam dos mesmos tópicos em perspectiva diferente.
Qualquer tensão entre minhas conclusões e as deles de­
vem servir de estímulo ao pensamento pessoal. Todas as
passagens de ICor a que me refiro são tratadas no con­
texto do meu comentário 1 Corinthians na série “New
Testament Message” (Glazier, Wilmington, 1979); pode
também servir como teste até que ponto a visão de Paulo
aqui apresentada ilumina a leitura de uma de suas cartas.

Jerome Murphy-O’Connor, OP
Ecole Biblique de Jérusalem
Janeiro de 1982

13
I PARTE

O SER HUMANO
PAULO E JESUS

A visão paulina da humanidade enraíza-se em sua


compreensão de Jesus Cristo. Muito do que encontramos
em suas cartas com referências a Cristo é fruto dessa
própria reflexão, mas ele deve ter tido algo em que
meditar. Daí, devemos começar perguntando o que Paulo
sabia realmente do Jesus histórico. Isso tem a dupla
vantagem de delinear suas relações com a Igreja primiti­
va e de enfatizar quão pessoal é sua cristologia.
De dados fornecidos por suas próprias cartas pode­
mos estar seguros de que Paulo tinha três fontes de
informação relativas ao Jesus histórico: a tradição
farisaica, sua experiência de conversão e a tradição das
comunidades cristãs em que passou os primeiros anos
depois de sua conversão.

A tradição farisaica

Em 2Cor 5,16 Paulo fala: “Mesmo se conhecemos


Cristo segundo a carne, agora já não o conhecemos assim”.
Evidentemente se refere ao conhecimento que tinha de
(Iristo no período anterior à sua conversão quando era
perseguidor da Igreja (G1 1,13; F1 3,6; cf. At 9,lss). Para
descobrir onde obtivera este conhecimento, basta-nos
olhar os antecedentes do Apóstolo.

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Ele reclamava orgulhosamente ser “da raça de Israel
da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e, quantc
à Lei, fariseu” (F13,5). Muitos judeus da tribo de Benjamiir
viviam fora das fronteiras da Terra Santa, e Paulo era df
fato de Tarso na costa sul da Ásia Menor (At 22,3), mas £
insistência em que não era apenas israelita, mas tambérr
hebreu (cf. 2Cor 11,22), frisa que era de cepa palestinense
Seus pais, ou no máximo seus avós, eram da Judéia. E
muito provável, pois, que tinha parentes vivendo n£
Judéia e, em conseqüência, não há nada de improvável m
afirmação de Lucas de que tenha sido educado em Jerusa
lém (At 22,3). Este texto diz realmente que ele foi “educa
do” em Jerusalém, que alguns interpretaram significandí
que fez a maior parte de sua educação escolar, e não o sei
treinamento profissional apenas (cf. At 26,4), na Cidade
Santa.
Em todo caso, Paulo foi certamente “fariseu”. /
pretensão de F1 3,6 implicitamente se confirma em G
1,14: “... distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas”
porque segundo Josefo: “Os fariseus tinham imposto a<
povo muitas leis das tradições dos pais não escritas na Le
de Moisés” {Antiguidades 13,297); a importância dada a<
ensino oral tradicional era uma das características qu<
distinguiam o farisaísmo. Isso garante a afirmação d<
Lucas de que Paulo vivia “segundo a seita mais severa d<
nossa religião, como afriseu” (At 26,5) e, sendo este o caso
não existe nenhuma boa razão para duvidar de suí
afirmação de que Paulo tenha estudado sob Gamaliel (A
22,3). '
Este grande mestre viveu e teve êxito em Jerusalén
cerca de 20-50 d.C. Sua fama era tão grande que o Mishm
diz: “Depois do tempo que morreu o rabi Gamaliel, <
Velho, cessou o respeito pela Torá; e a pureza e a abstinêncu
morreram ao mesmo tempo” (Sotah 9,15). Se Paulo fo
estudante rabínico em Jerusalém, não pode escapar d<
sua influência. Os dados se harmonizam perfeitamente
porque a conversão de Paulo deve datar-se de um ano ot
algo aproximado antes de 34 d.C.

18
N;io sabemos sua idade exata, mas pelo tempo de sua
conversão Paulo era certamente mais do que simples
piiliidanté;. De outra forma, sua delegação para desenraizar
ou cristãos em Damasco (At 9,1) seria incompreensível. E
o lo ('• provável que já fosse membro do Sinédrio. O texto-
chnve é At 26,9-11: “Quanto a mim, estava convencido de
que devia fazer muitas coisas contra o nome de Jesus, o
Nuzareu. Foi o que fiz em Jerusalém: a muitos dentre os
Hiintos eu mesmo encerrei nas prisões, recebida a auto­
rização dos chefes dos sacerdotes; e, quando eram mortos,
ou contribuía com o meu voto. Muitas vezes, percorrendo
todas as sinagogas, por meio de torturas quis forçá-los a
blasfemar; e, no excesso do meu furor, cheguei a persegui-
los até em cidades de fora”. Aí se diz que Paulo votou em
casos de sentença capital. Somente o Grande Sinédrio (71
membros) ou o Menor (23 dos 71) tinha competência em
tais casos, e somente membros plenos tinham a faculdade
de votar. Se tomarmos o texto em seu valor de fachada,
I ’aulo era certamente membro do Sinédrio, mas, uma vez
que nem todos concordam com essa interpretação, deve­
mos olhar um pouco mais acuradamente para o valor
histórico da afirmação de Lucas.
Vários estudiosos tentaram trazer argumentos con­
tra a historicidade de At 26,9-11, mas nenhum prova o
asserto:
(1) Paulo, diz-se, era muito jovem para ser membro do
Sinédrio, no qual os fariseus ocupavam somente cerca de
uin terço das cadeiras. De fato, porém, não conhecemos
nada de definido acerca da idade de Paulo — o termo
“j ii ventude” (At 7,58) cobre o grupo etário que vai de 25 aos
dO anos — e ainda menos acerca do método de indicação
para o Sinédrio.
(2) Alternativamente, pretende-se que “lançar um voto”
pode ser usado de forma bastante ampla e pode significar
nada mais do que o vago “consentir” usado em At 8,1 e
22,20. Contudo, a mera possibilidade é apenas uma ad­
vertência, mas não argumento. E igualmente possível que
At 8,1 e 22,20 possa ser interpretado à luz de At 26,10.

19
(3) Neste período, o Sinédrio era incompetente para orde­
nar a execução da sentença capital. Este ponto é ainda
muito controvertido para fornecer argumento válido. O
Sinédrio tinha certamente o direito em teoria e, dada a
atitude judaica para com os romanos, parece provável que
pretendia de fato na prática este direito quando sentia
que podia levá-lo a efeito. Em 62 d.C., durante o interregno
entre a morte do procurador Festo e a chegada de seu
sucessor Albino, o sumo sacerdote Anano “reuniu o
Sinédrio de juízes e trouxe perante eles o irmão de Jesus
chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros. E,
ao formar acusação contra eles como transgressores da
lei, entregou-os para serem apedrejados” (Josefo, Anti­
guidades 20,200).
(4) Finalmente, frisa-se que Atos em nenhuma outra
parte fala de Paulo como tendo perseguido a Igreja em
Jerusalém e em seus arredores. Isso é deveras certo, mas
o argumento do silêncio é anulado por G1 1,22, que sem
ambigüidades implica que Paulo tinha de fato perseguido
os fiéis na Judéia.
Contrastando com estes argumentos inconvincentes,
o contexto de At 26,10b pode-se demonstrar como sendo
solidamente histórico:
(1) Em At 26,10a diz-se que a autoridade de Paulo como
perseguidor especial deriva do “chefe dos sacerdotes”.
Tanto o NT como Josefo concordam que este termo desi­
gnava o grupo que efetivamente controlava o Sinédrio.
Seu papel seria comparável com o do “inner cabinet” em
muitas democracias de hoje, e sua aprovação teria sido
requisito para qualquer ação executiva.
(2) O procedimento usado para desencantoar judeu-cris­
tãos não declarados em At 26,11 é altamente plausível,
pois os profundamente dedicados não agirão contra suas
consciências. Precisamente a mesma técnica foi usada
pelos judeus na Birkat-ha-Minim, e por Plínio na Ásia
Menor {Cartas, livro 10, n. 96).
(3) A referência a “cidades de fora” (At 26,1 lb) não significa
“cidades em países fora da Palestina”, como a tradução

20
pui luguesa da Bíblia de Jerusalém “cidades estrangei-
rim” pareceria implicar. Uma vez que 26,10-11 refere-se a
atividades de Paulo em Jerusalém, a interpretação mais
natural é “cidades fora dc Jerusalém”, das quais havia
numerosas somente na Judéia. É muito mais razoável
admitir que Paulo tenha desempenhado missões menores
na área adjacente a Jerusalém antes de ser aprovado (At
!>,2) para procurar os fiéis nas sinagogas de uma cidade
tão importante como Damasco.
Se o contexto de At 26,10b está tão seguramente
enraizado em fatos conhecidos e afirmações válidas, a
historicidade da pertença de Paulo ao Sinédrio emerge
como solidamente provável.
Assim sendo, Paulo não era apenas discípulo de
(¡amaliel I, mas também colega júnior dele. Ele deve ter
entrado em relação crescente com o seu mestre que
permitia liberdade de intercâmbio negado a mero estu­
dante. Inevitavelmente, deve ter sido admitido às dis­
cussões de outros membros farisaicos do Sinédrio, muitos
dos quais teriam estado presentes no julgamento de
Jesus. Acho impossível imaginar que a figura de Jesus de
Nazaré não tenha sido evocada nos debates que devem ter
acontecido logo que a presença cristã em Jerusalém co­
meçou a se fazer sentida. Apesar dos sobretons teológicos
da narrativa de Lucas nos primeiros capítulos de Atos,
pode haver pouca dúvida de que reflita a reação das
autoridades judaicas ao aparecimento de outro grupo
cismático. Situação muito semelhante houve cerca de
duzentos anos antes, quando os essênios entraram em
cena pela primeira vez, mas agora a ameaça parecia
muito mais séria porque a “fé” (G11,22) deste novo grupo
era diferente: proclamavam que o Messias tinha de fato
vindo. Isso torna ainda menos improvável que o interesse
das autoridades se limitasse ao fenômeno.JDeve ter havi­
do profunda preocupação com suas raízes, ou seja, as
pretensões de Jesus. Para combater o problema, os fariseus
l eriam tido de conhecer exatamente o que se passava, e
Paulo teria sido participante deste diálogo.f

21
Isso nos leva à pergunta mais importante: o que
sabiam os fariseus sobre Jesus? Para responder, não
podemos simplesmente perpassar pelos evangelhos e
combinar todos os episódios em que os fariseus são men­
cionados, porque em muitas ocasiões “fariseu” funciona
como símbolo de oposição a Jesus que na verdade pode ter
vindo de variedade de fontes; isso vale especialmente para
os evangelhos de Mateus e João/Daí, devem-se tomar
precauções rigorosas contra anacronismo, sendo o controle
do que sabemos dos interesses e conceitos dos fariseus de
outras fontes. Fazendo-se isso, emerge um quadro bastante
curioso.
Os fariseus conheceram Jesus como mestre com
discípulos (Mc 2,18). Apesar de falta de treinamento
formal (Jo 7,15), corria o risco de ser tomado por um de
seus membros. Isso criava um perigo para sua autorida­
de, que se baseava em observância ostensivamente estrita
da lei. Daí, sua crítica de associação dele com “pecadores”
(Mc 2,16; Lc 7,36; 15,2), de sua atitude relaxada para com
o “trabalho” no sabbath (Mc 2,24; 3,6; Lc 6,7; 14,1; Jo 9,13)
e de sua negligência das regras da pureza ritual (Mc 7,1).
Contudo, devem ter sabido que em alguns temas ele era
mais rigoroso do que eles próprios, notadamente com
referência ao divórcio (Mc 10,2).
De tais dados, os fariseus dificilmente não teriam
tirado a conclusão de que Jesus agia como se gozasse de
privilegiada posição com respeito à lei, e isso só podia ser
explicado como pretensão de especial relação para com
Deus. Obviamente, era este o cerne da questão, que torna
tanto mais estranho que os fariseus nunca sejam repre­
sentados confrontando-se com este tema diretamente. O
mais perto que chegamos de sua confrontação é sua
exigência de um sinal (Mc 8,11), mas temos uma alusão de
que eles viram o problema em termos de messianismo na
afirmação, relatada pelos discípulos, de que Elias deve vir
primeiro (Mc 9,11), e outro em sua insistência na origem
galilaica de Jesus (Jo 7,52), pois eles esperavam um
Messias davídico (Mt 22,42). Sendo assim, qualquer que

22
iicjn o seu valor histórico, a pergunta do sumo sacerdote
durante o julgamento de Jesus: “És tu o Messias, o Filho
do I )eus Bendito?” (Mc 14,61), deve ter articulado precisa-
mente o que ia pelas mentes dos líderes fariseus. Esse
modo de ver é confirmado pelo fato (veja acima) de que
.losefo, que pretendia ser fariseu, sabia que Jesus era
julgado ser o Messias.
Finalmente, também é provável que os fariseus sa­
biam da pretensão cristã de que Jesus tinha sido ressus­
citado dos mortos. O fato de que isso era elemento cons-
I ante na pregação cristã primitiva dá credibilidade à base
de Mt 28,11-15; os fariseus sustentavam que os discípulos
tinham roubado o corpo, atitude que só é explicável se
Houbessem o que os crentes retinham.
A Assim, apesar do fanatismo do repúdio de Paulo a
• I esus e tudo o que ele defendia, qualquer que se recordasse
de Jesus proporia as seguintes ressonâncias associativas:
(I) uma pretensão à filiação messiânica com suas
conotações de missão e obediência; (2) rejeição da absoluta
autoridade da lei; (3) ressurreição. A primeira vista isso
I»»de parecer resultado bastante magro para uma pesquisa
n m tanto laboriosa^ip contrário, de fato, é verdadeiro,
porque nestes sobretons evocados pelo nome de Jesus
então as sementes de duas idéjas-chave que conformou
l (>( I; i a teologia de Paulo, a saber, a filiação única de Jesus
e o valor meramente relativo da lei.a

A experiência de conversão de Paulo

O próprio Paulo nos fala muito pouco sobre este


acontecimento, e a única chave que ele dá quanto ao seu
dignificado para ele é sua assimilação da experiência com
as aparições depois da ressurreição de Jesus (ICor 9,1;
lí>,8). Obviamente, devemos nos limitar somente ao que

23
tem sido chamado de “cristofanias de reconhecimento”,
porque essas eram, com efeito, experiências de reconversão;
os discípulos tinham de aceitar novamente o Senhor
Ressuscitado. Essas narrativas exibem um padrão muito
claro, que é mais evidente na aparição a Maria Madalena
(Jo 20,11 e 16) e aos Onze (Jo 20,19-20), mas que pode
também ser detectado nas narrativas mais desenvolvidas
(Lc 24,13-35.36-43). Os quatro elementos componentes
são: (1) ausência de qualquer expectativa da parte dos
discípulos; (2) uma iniciativa de Jesus que (3) dá um sinal
de sua identidade; (4) reconhecimento de Jesus pelo(s)
discípulo(s).
Paulo não mais esperava encontrar o Jesus ressusci­
tado da mesma forma que os discípulos, ainda que, como
fariseu, fosse obrigado a crer na ressurreição, e os fariseus
tivessem ouvido a pregação de Jesus. Igualmente, Paulo
apresenta Jesus como tomando a iniciativa; “ele apareceu
a mim” (ICor 15,8), e, na verdade, a narrativa termina
com a aceitação de Jesus. O paralelismo parece se quebrar
no que respeita ao terceiro elemento, que é o elemento
crítico, ou seja, o sinal de identidade dado por Jesus. Paulo
não podia tê-lo “reconhecido” da mesma forma precisa
como os outros discípulos, porque ele jamais o vira na
carne. No entanto, podemos estar certos de que Paulo
tinha uma imagem mental de Jesus. A intensa raiva
dirigida contra os cristãos deve ter assemelhado o seu
líder como alguém que tinha desviado alguns do seu povo.
O estresse assim produzido teria interferido com a
racionalidade normal do Apóstolo e teria elevado sua
susceptibilidade a alguma coisa associada com o foco de
sua emoção. Por causa de sua condição mental, Paulo era
de fato muito mais vulnerável do que normalmente se
concede, fator que reduz enormemente o aparente para­
doxo de sua mudança radical e imediata de fidelidade.
Quando algo aconteceu, e aqui tocamos a fímbria do
mistério, as duas imagens se fundiram e o mundo de
Paulo foi virado de cabeça para baixo.

24
0 fator-chave, como no caso dos outros discípulos, foi
ii convicção de que um morto tinha sido ressuscitado, que
o Jesus crucificado estava vivo de novo). Este fato indiscu­
tível transformou o sistema de valores de Paulo. Se urna
«las três ressonâncias que o nome de Jesus suscitava em
mía mente farisaica era verdade, então as outras duas
iiiirgiam à luz totalmente diferente. Não mais eram elas
as pretensões blasfemas de homem louco, mas verdade
evidente, Se Jesus tinha sido ressuscitado dos mortos, sua
pretensão de ser o Cristo e Filho de Deus não podia ser
negada, e sua atitude para com a lei deve refletir a
vontade de Deus.
Em outras palavras, o encontro de Paulo com o Jesus
vivo na estrada de Damasco deu-lhe a intuição fundamen­
tal sobre a pessoa e a missão de Jesus e, ao mesmo tempo,
abriu-lhe a possibilidade de salvação paraos gentios, pois,
se a lei tinha valor relativo, não era a única vereda para
Deus. Em sentido muito real, pois, o que estava para ser
os dois eixos maiores de sua teologia veio à posse de Paulo
no momento de sua conversão. Vagos e embrionários como
eram nesta fase, estavam não obstante profundamente
enraizados em sua mente e seu coração. Estamos agora
em condições de compreender o que Paulo quis dizer
quando escreveu: “O Evangelho por mim anunciado não é
segundo o homem, pois eu não recebi nem aprendi de
algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo” (G1
1,12)1 Não era como se Jesus lançasse novas idéias em sua
mente. O encontro deu-lhe perspectiva radicalmente nova
sobre idéias que até então rejeitara: idéia que ele não
aprendera pela vontade de mestre de instruir sua mente,
mas idéias que ele tinha ouvido de passagem como exem­
plos de erro orgulhoso. Assim, “ele não o recebeu nem
aprendeu de algum homem”. A experiência do Cristo
vivo acendeu nele a verdade que inconscientemente pos­
suía.

25
A tradição cristã /j

/ Como acabamos de ver, a independência afirmada


em G1 1,12 é justificada ao nível das intuições teológicas
básicas de Paulo. Não é certamente verdade quanto ao
leque completo de seu conhecimento inicial sobre Jesus,
pois após sua conversão ele viveu em comunidades cristãs
antes de empreender trabalho apostólico. Esteve, pois,
em contato com a tradição evangélica em sua fase de
formação e alguns de seus companheiros de fé podem ter
sido testemunhas oculares de partes do ministério terreno
de Jesus.
O dado mais antigo que podemos estabelecer na vida
de Paulo é sua fuga de Damasco quando era controlado
pelo rei nabateu Aretas (2Cor 11,31-32). Com toda proba­
bilidade, isso ocorreu em fins de 37 d.C., e o episódio deve
ser identificado com a partida de Damasco mencionada
em G1 1,17-18, pois não existe nenhuma alusão de que
Paulo tenha voltado a esta cidade uma vez mais. A esta
altura, Paulo vivera em Damasco por “três anos” (G1
1,18), número redondo que, em termos da maneira em que
os antigos contavam anos, podia significar estadia míni­
ma de menos de oito meses. A data mais antiga em que
Paulo possa ter morado em Damasco é o outono de 34 d.C.,
e a mais recente seria algum tempo da primavera de 36
d.C. Antes disso, ele estivera na “Arábia” por tempo não
especificado logo depois de sua conversão (G1 1,16-17)/A
importância dessas datas surge uma vez que se reconhece
que a data mais provável da crucifixão é 3 de abril de 33
d.C., porque somos forçados a concluir que a conversão de
Paulo ocorreu dentro de dois anos desde a morte e ressur­
reição de Jesus. Em outros termos, ele se uniu à Igreja
num tempo em que memórias de Jesus eram ainda
vívidas e antes que as narrativas sobre ele tivessem se
tornado estereotipadas.

26
0 próprio Paulo não nos diz o que ele fez durante este
tempo em Damasco. Lucas, porém, informa-nos que ele
pregava Jesus como Filho de Deus e Messias (At 9,20-22).
Em si nada é mais provável, mas confirmação valiosa do
valor da tradição de Lucas é fornecida pelo que vimos
acima referente ao fundo farisaico de Paulo como crista­
lizado na pergunta do sumo sacerdote: “Es tu o Messias,
o Filho do Deus Bendito?” (Me 14,61). Se o interesse de
Paulo era “provar” que Jesus era o Cristo, o seu argumento
deve ter tomado a forma de demonstração que Jesus era
o cumprimento da profecia. Neste caso, os ditos de Jesus
teriam sido muito menos importantes do que sua pessoa
e atos, pois o AT fala somente do que o Messias haveria de
realizar.. Daí, podemos inferir que Paulo deve ter se
interessado em acumular tanta informação quanto pos­
sível sobre o ministerio terreno de Jesus. Não existe
nenhuma razão para a opinião em geral comum de que
Paulo estava completamente desinteressado no Jesus
histórico.
Nesta perspectiva, pode parecer natural traduzir G1
1,18 como “subi a Jerusalém para conseguir informação
de Cefas”. Este sentido de historêsai certamente não é
impossível, porque a conotação básica do verbo é “inqui­
rir, examinar”, mas é igualmente certo que Paulo não
entendeu este significado porque o seu propósito em G11-
2 é estabelecer sua independência da igreja de Jerusalém.
As exigências do contexto são atendidas plenamente pela
tradução comum que implica que o objetivo de Paulo era
conhecer Pedro,'A implicação é que Paulo sabia da pro­
posição de Pedro — só o título de “Cefas” o prova — e acho
impossível imaginar que Paulo nunca tenha inquirido
porque Pedro tinha esse ofício e onde obtivera este título.
Quer tenha ocorrido isso em Damasco quer em Jerusalém,
é irrelevante em comparação com a alusão de que Paulo
sabia da tradição atrás de Mt 16,13-20, com tudo o que ela
implica sobre comunidade e estrutura.
Há razões fortes para se defender a hipótese de que
G12,7 incorpora o essencial do primeiro encontro de Paulo

27
I

com Pedro. Se isso é correto, temos uma chave valiosa


para outra dimensão da personalidade de Paulo: pelo
tempo de sua chegada a Jerusalém, ele já estava consci­
ente de sua vocação apostólica aos gentios. Não tenho
nenhuma hesitação em ver isso como o crescimento natural
de sua reflexão sobre as implicações da atitude de Jesus
para com a lei. No entanto, seria um tanto irrealístico
imaginar que Pedro e Paulo passaram todo o seu tempo
juntos traçando suas esferas de ministério (G1 2,7). Paulo
deve ter-se interessado na relação de Pedro com o Jesus
histórico tanto quanto estava interessado na maneira
como ele pregava o Cristo ressuscitado. O fato de que as
reminiscências de Pedro já podiam ter começado a tomar
forma estereotipada é menos significativo do que o fato de
que Paulo esteve por duas semanas em contato com um
dos mais íntimos companheiros de Jesus e uma das fontes
primárias da tradição evangélica.
Resumindo este breve levantamento dos contatos de
Paulo com a tradição cristã no início de sua carreira
missionária, podemos dizer (1) que ele esteve em condi­
ções de aprender muito sobre o Jesus histórico de fontes
primárias e (2) que ele teria se interessado pela pessoa e
fatos de Jesus e não meramente pelo seus ditos.
E surpreendente, pois, que as cartas nos digam tão
pouco do que Paulo deve ter sabido. Jesus era judeu (Rm
9,4-5) da linha de Davi (Rm 1,3) que teve uma mãe (G14,4).
Foi traído (ICor 11,23) e crucificado (ICor 2,2 epassim),
como resultado de que morreu e foi sepultado (ICor 15,3-
4). Então Deus o ressuscitou dos mortos (ICor 15,5 e
passim). Devemos, porém, recordar que as cartas de
Paulo não são exposições sistemáticas, mas resposta a
problemas específicos que surgiram nas comunidades
pelas quais era responsável. As cartas foram de mais a
mais endereçadas a crentes formados que se considera­
vam ter assimilado o querigma básico. Paulo não tinha
nenhuma obrigação de repetir tudo, e suas afirmações
ocasionais referentes a aspectos da vida terrena de Jesus
são relacionadas às necessidades de situações específicas.

28
Outro ponto a se reter é o fato de que a historicidade
de Jesus é fundamental para a teologia de Paulo. O
discípulo que escreveu Efésios captou a aproximação de
seu mestre exatamente ao apresentar Jesus como a ver­
dade de Cristo (Ef 4,21). Havia a tendência em certas
comunidades do Apóstolo de separar o Cristo da fé do
Jesus da história. Encontramos Paulo resistindo a essa
atitude em sua insistência em que o Senhor da Glória era
o Jesus crucificado (lCor 2,6), e em sua ênfase em que os
colossenses receberam Cristo “como Jesus o Senhor” (Cl
2,6). A hipótese de que Paulo teria enfatizado este ponto
quando ele era negado é explicitamente excluído por sua
condenação de qualquer que “prega um Jesus diferente da­
quele que vos pregamos” (2Cor 11,4). A frase sublinhada
indica claramente que um retrato do Jesus histórico
formava parte da pregação oral de Paulo: o uso de “Jesus”
sem qualificação sublinha a referência ao ministério
terrestre. Acho impossível admitir que ele se limitava a
uma apresentação da morte e ressurreição, não só por
causa de sua improbabilidade intrínseca, mas também
porque é contradito pelas próprias cartas (cf. supra). Se
Paulo acreditava ser ele mesmo capaz de representar “a
vida de Jesus” (2Cor 4,10), ele deve ter tido uma idéia
muito clara do comportamento de Jesus que manifestava
sua autêntica humanidade.
(/Em que medida Paulo sabia dos ditos de Jesus é terna
muito controvertido. Aqueles que sustentam que o ensino
do Jesus histórico não teve nenhuma influência sobre
Paulo são contraditos por outros que asseveram que ele
constituía a fonte primária de sua instrução ética, A
verdade provavelmente está entre estes dois extremos.
Há somente duas citações diretas de palavras de
Jesus nas cartas, a proibição do divórcio (lCor 7,10-11) e
a diretiva concernente ao sustento dos pastores (lCor
9,14), mas os estudos mais recentes dedicados a estes
textos tendem a mostrar que Paulo sabia não só o dito,
mas também o contexto em que aparece na tradição
sinótica. Aqui não é o lugar para desenvolver este ponto,

29
e um exemplo deve bastar. O tema do sustento dos
pastores aparece em Lc 10 e se tem mostrado que este
capítulo se liga a ICor 9 por toda uma série de termos
comuns: um “apóstolo” que deve (“semear” e) “colher” tem
o “direito” de “recompensa” por sua “pregação da boa
nova”, porque o “operário” tem o direito de “comer” e
“beber”. Os acordos são muito numerosos para formar por
coincidência uma explicação aceitável, particularmente
uma vez que o mesmo tipo de acordo pode se encontrar em
outros blocos de material. Deve-se notar também que os
dois ditos do Senhor que Paulo cita não terminavam como
parte de uma coleção de ditos (tal como a hipotética fonte
Q), mas como parte de uma fonte que continha também
narrativas de ações de Jesus.
Assinalou-se também que, se bem que o farisaísmo
fosse essencialmente movimento urbano e Paulo homem
da cidade, o Apóstolo usa uma proporção extraordinaria­
mente alta de metáforas que refletem uma cultura agrária
(Rm 1,13; 6,21; 7,4-5; 15,28; ICor 3,6-9 [passim]', 15,36-44;
2Cor 9,6-10; G1 5,22; 6,7-9; F1 1,22; 4,17). A explicação
mais convincente é que ele estava familiarizado com a
linguagem das parábolas de Jesus, porque os contatos são
bastante específicos para serem explicados por comum
dependência do Antigo Testamento.
'Daí, os estudos paulinos contemporâneos se inclina­
rem a considerar que Paulo tinha conhecimento bastante
extenso do que veio a se tornar a tradição sinótica. E
característico de sua personalidade, porém, que nunca aduz
este material como fonte autoritarista. O seu método não era
discorrer mediante uso autoritarista de textos de prova, mas
era conduzido pela força persuasiva da verdade calmamente
apresentada. Sua familiaridade com a tradição cristã, que
se desenvolvia, referente ao ministério de Jesus, revela-se
somente pela maneira em que ela condicionou o seu modo
de expressão, mas as perspectivas sobre a humanidade de
Jesus que incorpora permeia o seu pensamento. Suas
reflexões sobre o sentido de Cristo para a Igreja e para o
mundo estão enraizadas na realidade de Jesus de Nazaré.

30

I
LEITURAS SUGERIDAS

li 1miilns, J., Jerusalém no tempo de Jesus, Paulus, São Paulo, 1983,


p,i
I ii Inn it, K.,The History ofthe Jewish People in the Age ofJesus Christ,
II (revisto e editado por G. Vermes, F. Millar e M. Black), Clark,
I dliiiluirgo, 1979, § 26 (fariseus).
.I, well, It., A Chronology of Paul’s Life, Fortress, Filadélfia, 1979.
I hildgrcn, A. J., “Paul’s Pre-Christian Persecutions of the Church:
I lioii Purpose, Locale and Nature”, em Journal ofBiblical Literature
|)B( 1976) 97-111.
I ,i il 11 i u k, G., Paulus vor Damask us, Katholisches Bibelwerk, Estugarda,
11)65 La conversion de saint Paul. Cerf, Paris, 1967.
I Inger, J. G., “Some Notes ou Paul’s Conversion”, em New Testament
Studies 27 (1981) 697-704.
I limgiin, D. G. The Sayings ofJesus in the Churches ofPaul, Fortress,
|,'lli,ili.|(ia, 1971.
HI iimlcly, D., “Pauline Allusions to the Sayings of Jesus”, em Catholic
Biblical Quarterly 23 (1961).
Mnrphy-O’Connor, J., “Pauline Missions before the Jerusalem
I lonforence”, em Revue Biblique, jan. de 1982.

31
2

CRISTO, O CRTTÉRTO

Cristo é o centro da fé cristã. Paulo aceitava plena­


mente isso, de forma que, para ele, Cristo era o começo e
it lim, não só da salvação, mas também de tudo. Sua
perspectiva inteira sobre a realidade estava condicionada
por sua visão de Cristo. Específicamente, sua compreen­
são do que a humanidade podia e devia ser estava enraizada
om sua compreensão da humanidade de Cristo.

('orno a humanidade deveria ser entendida

Como veremos com mais detalhe a seu momento,


estamos condicionados a pensar Cristo em termos de nós
mesmos. Ele é humano e nós somos humanos, e é natural
ir <lo conhecido (nós mesmos) ao desconhecido (Cristo).
Assim, nas cerca de 60.000 biografias de Jesus escritas
durante os sécs. XVIII e XIX, o retrato de Jesus que
emerge está condicionado principalmente pela subjetivi­
dade do autor que cria um herói em conformidade com
suas próprias aspirações/Em conseqüência, Jesus surge
de várias maneiras.como idealista, racionalista, românti­
co, socialista etc. Não surpreende, pois, que os convertidos
de Paulo fossem tentados a agir de forma semelhante.
Somos felizes porque eles o fizeram, porque isso forçou
Paulo a prestar atenção à mudança de perspectiva que
devia seguir à aceitação de Cristo:

33
I Antropofagia pastoral de Paulo
Ora, ele morreu por todos a fim de que aqueles que vivem não
vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por
eles. Por isto, doravante a ninguém conhecemos kata sarka. Mes­
mo se conhecemos Cristo kata sarka, agora já não o conhecemos
assim. Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as
coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova (2Cor 5,15-17).

Deixei a expressão kata sarka em. grego porque o seu


significado tem sido objeto de longo debate. Teoricamen­
te, pode ser entendido quer como advérbio “de modo
carnal” qualificando o verbo “conhecer”, quer como adje­
tivo “na carne” qualificando o nome próprio “Cristo”. Qual
o sentido pretendido por Paulo? Alguns entendem que ele
pretendeu o adjetivo, porque isso significaria então que
tinha encontrado realmente Jesus nos dias de seu minis­
tério terreno. Pretendeu-se até que Paulo era o jovem rico
que recusou o ato de fé (Mc 10,17-22)! Essa posição no
momento perdeu virtualmente todos os que a sustenta­
vam. Quando Paulo usa kata sarka como adjetivo, ele lhe
dá posição diferente na sentença (cf. Rm 4,1; 9,3; ICor
1,26; 10,18). Mais importante, porém, é que se fizermos de
kata sarka adjetivo quando se refere a Cristo, tornamos
sem sentido a frase precedente onde também aparece,
porque deve então ser traduzida: “Não conhecemos nin­
guém na carne”, isto é, não temos nenhum contato huma­
no. Uma leitura de qualquer das cartas mostra que isso é
absurdo. Daí, kata sarka deve se entender como advérbio
qualificando “conhecer”. \
O que, pois, Paulo está dizendo é que ele um dia
conheceu Cristo “de maneira carnal”. Ele possuíra um
tipo inferior de conhecimento sobre Jesus. Tudo isso pode
significar, à luz do que ele diz acerca de sua perseguição
da Igreja (F1 3,6), que ele outrora participara de uma
apreciação de Jesus comum entre os seus contemporâne­
os, ou seja, que ele era mestre herético e agitador turbu­
lento, cujas atividades o tinham levado com justiça ao
cadafalso. Isso, Paulo agora reconhece, era julgamento
falso que ele abandonara. Como isso aconteceu não é
nosso assunto aqui.

34
O que é importante é que abandonou semelhante
maneira de julgar os outros: “Doravante a ninguém conhe­
cemos de maneira carnal”. Sua intenção, obviamente, é
encorajar outros a fazer o mesmo. Porque deve insistir
licará mais claro se fizermos uma digressão por um
11 lamento para examinar o tipo de situação que ele tem em
mente. Em sua carta anterior aos Corintios foi forçado a
escrever:

Quanto a mim, irmãos, não vos pude falar como a homens


espirituais, mas tão-somente como a homens da carne, como a
bebês em Cristo... Com efeito, se há entre vós invejas e rixas, não
sois da carne e andais segundo os homens? Pois quando alguém
declara: “Eu sou de Paulo” e outro: “Eu sou de Apoio”, não sois
homens? (ICor 3,1-4).

[ “Andar” é expressão semita comum e típica para


padrão de comportamento, e no léxico de Paulo “segundo
o homem” significa “segundo a comum avaliação” (Rm 3,5;
ICor 9,8; 15,32; G1 3,5)7 Ao aceitar a inveja, a rixa e as
facções partidárias como parte de seu padrão habitual de
comportamento, os corintios estavam simplesmente se
conformando à avaliação comum do que era normal.
I'!nsas coisas eram tidas como naturais e evidentes, como
I sirte integral da existência humana. Era essa a maneira
de o inundo viver, e não havia nenhuma justificação para
kc ficar chocado ou surpreso. A presença de semelhantes
ntitudes dentro da comunidade era tida como natural
I icios corintios. A reação de Paulo é criticar essa aceitação
como imaturidade infantil, porque eles deviam ter reco-
II hecido que agora têm um padrão que os liberta da tirania
dn “avaliação comum”, determinando que padrão de com­
portamento é apropriado para a criatura humana. Não
esclarece precisamente qual seja este padrão, e conse-
qüentemente não tinha de retornar a este ponto na pas­
sagem de 2Cor que tratamos.
Desta vez não existe nenhuma ambigüidade. A afir­
mação “doravante a ninguém conhecemos de maneira

35
carnal” começa por uma partícula significando “portan­
to”, o que a torna a conseqüência de “Cristo morreu por
todos a fim de aqueles que vivem não vivam mais para si”.
Este altruísmo está em patente contradição com o
egocentrismo que os coríntios julgam natural. O padrão
de comportamento de Cristo é o critério pelo qual os
cristãos devem julgar a qualidade de vida dos outros.
Conseqüentemente, se alguém está “em Cristo”, deve
julgar de maneira nova. “Passaram-se as coisas antigas;
eis que se fez uma realidade nova” significa que o julga­
mento foi renovado, aceitando-se novo critério ou ponto de
referência, a saber, “o amor de Cristo”, pelo qual o próprio
Paulo se sente urgido (2Cor 5,14). Paulo não exagera ao
falar disso como “nova criação”.

Uma aproximação falsa

O que se acabou de dizer ilumina a suma importância


de Cristo na antropologia de Paulo. Não podemos ter
compreensão autêntica da humanidade, a não ser que
primeiro conheçamos Cristo. A aproximação contemporâ­
nea à cristologia, porém, é exatamente o inverso, como o
ilustrarão duas citações, uma de católico e outra de
episcòpaliano:

Para saber quão humano é Cristo, devemos primeiro estabelecer


de modo sumário pelo menos o que é ser um homem. É, eviden­
temente, nascer e crescer amado ou desamado; distinguir-se a si
mesmo (o ego de alguém) do mundo circundante; aprender de
outros a linguagem e embeber-se de atitudes; chegar a uma
consciência de si mesmo e de sua tarefa própria e missãona vida,
e ser livre para realizá-la; lutar para cumprir a própria missão,
pois a luta é o concomitante da liberdade; entregar-se a si mesmo
a Deus na luta e nas trevas. Isso não se deve tomar como lista
exaustiva dos aspectos específicamente humanos da vida do

36
homem nem se está sugerindo que estes aspectos sejam separá­
veis do resto. Estou apenas apontando um fato óbvio: se devemos
tomar como genuína a profissão da Igreja de que Jesus é verda­
deiramente homem, se os aspectos há pouco sublinhados devem
ser levados em co nsideração (1?. de Rosa, Christ and Original Sin,
Londres, 1967, 43).
Podemos perguntar, porém, se podemos falar significativamente
da humanidade de Cristo a não ser se o fazemos com respeito a
ele como tendo sido “um homem como os outros”... Ele deve ter
aprendido como nós aprendemos e ter crescido como crescemos.
Suas alegrias devem ter sido alegrias humanas e suas dores as
dores imemoriáveis de homens como nós mesmos. Ele deve ter
conhecido solidão, frustração, ansiedade, da mesma forma que
nós sentimos. Ele deve ter sentido tentações de duvidar e ter
medo. Ele teria amado os outros da mesma forma que os homens
amam seus companheiros — mais, diremos, mas não diferente­
mente. Ele também teria se abatido diante da morte, do rompi­
mento de laços familiares com coisas queridas. Seu conhecimen­
to de Deus, apesar de toda sua segurança e peculiar intimidade,
feria sido a espécie de conhecimento que é dado aos homens ter
de seu Criador e Pai. Se tudo isso não fosse verdade, poderíamos
chamá-lo de verdadeiro homem? Pois os traços reais do homem
não são sua figura e aparência, ou o modo como ele anda, mas o
modo como ele sente e pensa em seu coração, o modo como
conhece asi mesmo, os outros e Deus (J. Knox, TheHumanity and
Divinity of Christ, Cambridge, 1967,63-68).

Que o tema da humanidade de Cristo tivesse sido


leva ntado desta forma constitui tremenda falha nos estudos
i le teologia paulina que ou ignoramos o problema completa-
inente ou tratam dele inadequadamente. O primeiro toma
como evidente que todos nós sabemos precisamente quais
tiejain as características distintivas da natureza humana.
() ultimo tenta provar a humanidade de Jesus afirmando
que ele nasceu, sentiu fome, sentiu cansaço e morreu. E
difícil decidir se a concessão do primeiro grupo ou a
Ingenuidade do segundo é o mais lamentável. Caracterís-
I ieas que participamos em comum com o reino animal não
nos dizem nada da humanidade de Cristo, e se podemos
ler nossas próprias idéias do que a humanidade é, que
garantias temos que elas correspondem à de Paulo?

37
Os critérios esboçados por Knox e de Rosa são de
tremendo valor quando tratamos de incidentes específi­
cos na vida de Jesus. Permitem-nos ver o batismo como o
começo do progressivo descobrimento por parte de Jesus
do significado de sua missão. Forçam-nos a ver as tenta­
ções e a agonia no jardim como momentos de real decisão
quando Jesus teve de lutar para permanecer fiel à sua
compreensão do que o Pai exigia dele/Em outros termos,
eles nos urgem a levar a humanidade de Jesus a sério.
Nisso podemos ver uma reação contra uma tendência
a subvalorizar a humanidade de Jesus que prevalecera na
Igreja por muitos séculos. A realidade desta humanidade
foi afirmada como questão de princípio, mas a maneira em
que era apresentada com freqüência constituía de fato
uma negação. Assim, por exemplo, Clemente de Alexan­
dria escreveu no fim do século II:

Cristo comeu, não por causa do corpo, que era mantido por uma
santa energia, mas para que não entrasse na mente daqueles que
estavam com ele que tivessem uma opinião diferente dele... Mas
ele era inteiramente impassível, inacessível a todo movimento de
sentimentos, seja de prazer seja de dor.

A intenção aí era enfatizar a perfeição da humanida­


de de Jesus, mas só consegue fazê-la tão inteiramente
diferente que a dimensão humana desaparece. A tendên­
cia que se ilustra aqui ganhou grande ímpeto no séc. IV
com o advento do arianismo, heresia que insistia que
Jesus não passava de homem usado como instrumento
pelo Verbo, a segunda pessoa da Trindade. Em resposta,
a Igreja foi levada a enfatizar a divindade de Cristo. Por
causa das limitações da mente humana, estes dois aspec­
tos de Cristo — humanidade e divindade — estão em
tensão, e o resultado inevitável é que se dá proeminência
a um aspecto. O outro, em conseqüência, se retrai no
fundo do quadro. Desde o tempo de Ario sempre tem sido
essa sorte da humanidade de Jesus. Nunca houve qual­
quer negação direta, mas sua humanidade foi vista à luz

38
i|p ui ui divindade, e como resultado a ela se atribuiu uma
I • i feição que a tirou da órbita do gênero humano tal como
ii i niihecemos. Assim, pretendeu-se que o conhecimento
di’ Jesus não estava sujeito às limitações que nós expe­
li 1111 • 11111 mos, e que o seu corpo sentiu a força do sofrimento,
ui um H(>in sentir dor. Somente neste século houve esforços
Iuii ii restaurar o equilíbrio enfatizando a humanidade de
• Iiviiih. A uns isso pareceu negação da divindade. Mas este
mio é de fato o caso. São esforços no sentido de ser fiel aos
i/o/n aspectos da tradição da Igreja referente a Jesus,
liinlo Knox como de Rosa são dignos representantes
ilentii tarefa teológica contemporânea, mas uma vez que
um afastamento da falsidade não é necessariamente um
passo para a verdade, devemos olhar um pouco mais de
perto os critérios que eles apresentam.
O princípio que subjaz à sua apresentação é afirmado
• sp licitamente por Knox: se Jesus não é como nós, ele não
e lioinem. O próximo passo é olhar para a humanidade
coii I einporânea com o objetivo de abstrair os denominado-
i eu comuns que são então predicados de Jesus. A esta
111111ra, duas questões devem ser propostas. São Knox e de
Rosa fiéis a este método? O método em si mesmo seria tal
pura ser capaz de produzir o resultado desejado?
A resposta à primeira questão deve ser negativa.
Indiferença às necessidades dos outros é mais comum que
iiinor. Inveja e possessividade são tão difusas como soli­
dão e frustração. Em outras palavras, toda uma série de
facetas da humanidade contemporânea são deixadas fora
dii conta. O que Knox e de Rosa nos dão não é visão
objetiva da humanidade como ela é, mas uma visão
unilateral. Em lugar de uma lista completa de facetas
características, eles nos oferecem apenas uma seleção. O
princípio em que se baseia a seleção jamais é explicado,
mas, se olharmos para sua justificação, encontraremos a
resposta à segunda questão, Certas facetas da humanida­
de contemporânea foram deixadas de lado porque se
sentem inapropriadas a Jesus. Knox e de Rosa estavam
conscientes de que o objeto de sua observação é uma

39
humanidade decaída, e como resultado não incluíram
aqueles elementos que lhes pareciam pertencer à nature­
za humana decaída. Como eles sabem o que é quê, nunca
se pode explicar. Da observação objetiva da humanidade
contemporânea jamais se obterá retrato da humanidade
como tal. O melhor que ela pode produzir é um retrato da
humanidade decaída que é inaplicável a Cristo, porque
ele foi sem pecado (Rm 1,4; 2Cor 5,21; Jo 8,46; lJo 3,5; Hb
4,15; lPd 2,22).'À aproximação fenomenológica, portanto,
é viciada em sua própria essência. Ela nunca nos poderá
dizer o que seja a humanidade autêntica, porque o seu
objeto é a humanidade inautêntica. Em consequência,
toda tentativa de discernir as facetas distintivas da hu­
manidade de Cristo emtermos de nossa atual humanida­
de está destinada à falência.

A intenção divina

Se o caminho da observação empírica está fechado


para nós, temos uma via alternativa para determinar o
elemento constituinte da humanidade autêntica? Feliz­
mente, a temos. O fato da criaturidade significa que
podemos dizer que a humanidade verdadeira é o modo de
existir que o Criador teve em mente que suas criaturas
humanas tivessem. Mas o único meio de acesso à intenção
divina é, como Paulo insiste, através das “coisas que
foram feitas” (Rm 1,20). Daí, para descobrir como Deus
pretendeu que a humanidade existisse, temos de olhar a
figura de Adão. Antes da queda, Adão era exatamente
como Deus pretendeu que a humanidade fosse. Ele não é
só o primeiro homem, mas também homem como tal.
A intuição não se originou com Paulo. A tradição
javista, representada por Filon e pela literatura
intertestamentária, cria que Adão antes da queda era a
40
|M'i Icita incorporação da divina intenção para a humani-
i lude. A ideia sobre este ponto seguiu da crença dos judeus
de que existe correspondência entre o começo e o fim.
( ’ <»1 i.seqüenteinente, o que esperavam que haveria de ocor-
i ei no definitivo reinado de Deus se dizia que estava pre-
iii’iile antes da queda. Não podia imaginar que certas
i iiracterísticas que tornavam a vida miserável aqui na
terra encontraria lugar no eschaton. Assim, feiúra, doen­
ça, fraqueza de intelecto e vontade se negavam para a
humanidade renovada do futuro.’Uma vez que Adão deve
ler sido o que os bem-aventurados seriam algum dia, os
opostos destes defeitos eram então predicados dele. Filón
começa sua exposição das qualidades de Adão com estas
palavras:

Parece-me que este primeiro homem nascido da terra, o líder de


toda nossa raça, foi gerado excelente tanto no corpo como na
alma, e que ele se diferenciava enormemente daqueles que
vieram depo is pela supereminente perfeição destes dois constitu-
intes de seu ser. Ele era, na verdade, belo e bom (De opificio
mundi, n. 136).

Filón explica então a perfeição física de Adão, antes


de se voltar para uma representação pormenorizada de
nuas qualidades intelectuais. Ele toca nestes tópicos em
outras obras suas e, reunindo toda a argumentação,
emerge o seguinte retrato. O tamanho de Adão era maior
que o dos contemporâneos. Seus sentidos percebiam mais;
seus olhos em particular eram capazes de ver tudo no céu
e na terra. Movimentava-se no mundo com total confiança,
e jamais era presa do medo. Ele vivia em paz porque não
havia nenhuma ameaça de guerra, e sua felicidade era
sem sombras. Seu intelecto e sua vontade eram fortifica­
dos pelo divino espírito que tinha sido soprado nele em
abundância, e como resultado a vereda da virtude parecia
como grandes estradas, de tal sorte que ele se esforçava
cm todas suas palavras e ações para agradar a Deus.
Adão, portanto, era “superior aos homens de hoje e a todos
41
os que nos precederam, porque nós somos nascidos de
homens, mas ele saiu das mãos de Deus. Quanto melhor
a causa, tanto mais perfeito o produto” (De opificio mundi,
n. 140).
Em sua apresentação, Filón incorpora as intuições de
seus predecessores e antecipa as de seus sucessores. E,
portanto, típico, e a própria linguagem usada é indicação
clara do que está se passando. Não estamos tratando de
fatos, mas do próprio desejo humano de um mundo melhor.
Somos confrontados não com historia, mas com profecia.
O retrato de Adão, portanto, não passa de uma construção
mental desenvolvida pela humanidade decaída, e não
existe a mais leve garantia de que ela se conforme com a
intenção divina. /
------- ---- z--- _ / „- - . z .
Dai, para Paulo, uma nova criação era necessana
para restaurar à humanidade um exemplar autêntico da
divina intenção. Tinha de haver um indivíduo perfeito
que seria tudo o que Deus desejou que a humanidade
fosse, e Paulo o encontrou em Cristo. Ele, como o Ultimo
Adão, era a visibilidade da intenção de Deus. Ele era
aquilo que Adão foi criado para ser.
Isso se manifesta no esboço da história da salvação
que Paulo apresenta em Rm 7,7 a 8,4. Essa é uma
passagem extremamente complicada, mas, ao passo que
os estudiosos divergem significativamente em sua inter­
pretação de pormenor, existe acordo geral em dois pontos:
(1) o “eu” que fala neste texto não é Paulo nem nenhum
jovem judeu típico, mas a humanidade; (2) a história
religiosa da humanidade está dividida em três estágios. O
consenso é mantido com respeito a duas das três fases da
história da salvação: a segunda (7,14-24) trata da huma­
nidade sob o domínio da lei mosaica, enquanto a terceira
(7,25 a 8,4) trata dos benefícios trazidos por Cristo. A
primeira fase, porém, permanece objeto de contenção. Há
os que retêm que se refere à humanidade no período entre
a queda e a promulgação da lei mosaica, mas este modo de
ver se expõe a várias objeções, e não tem apoio sólido no
texto. Se lermos 7,7-13 sem nenhum preconceito quanto

42
no significado da palavra “lei”, ficaremos imediatamente
mirpreendidos pelo número de paralelos com a situação,
descrita por Gn 3, antes da expulsão do jardim do Éden.
I ’ois toda a humanidade está concentrada nas pessoas de
Adão e Eva. O “eu” paulino tem a mesma extensão. Eles
viviam em virtude até Deus dar o mandamento: “Não
poderás comer do fruto da árvore que está no meio do
jardim nem a poderás tocar, senão morrerás” (Gn 3,3).
Este mandamento prometia vida (Rm 7,10), mas sua
própria existência provocava desejos proibidos (Rm 7,7).
O Pecado (Rm 7,8) ou a Serpente (Gn 3,4-5) usou da
oportunidade fornecida pelo mandamento para incitar a
humanidade ao pecado (Gn 3,19; Rm 7,9). Ambas as
passagens, portanto, apresentam os mesmos elementos
na mesma ordem: mandamento — desejo — pecado —
morte. O primeiro estágio da história da salvação deve,
conseqüentemente, se considerar que foi o período antes
da queda. Assim, temos a seqüência:
1. Humanidade antes da queda (7,7-13).
2. Humanidade entre a queda e Cristo (7,14-24).
3. Humanidade depois do advento de Cristo (7,25-8,4).
O primeiro e o terceiro estágio estão ligados por um
denominador comum, uma vez que são caracterizados
pela “vida”. O estágio 1: “Eu estava um dia vivo sem a lei”
(7,9); estágio 3: “A lei do espírito de vida em Jesus Cristo
tomou-se livre” (8,2). O estágio 2, ao invés, é radicalmente
diferente, porque é caracterizado por “morte”: “Homem
lnfoliz que sou eu! Quem me libertará deste corpo de
morte?” (7,24). A sugestão desta cuidadosa estrutura é
(pio n “vida” que Adão gozava antes da queda é restaurada
na possoa de Cristo. Teremos de pesquisar o sentido preciso
do “vida”, e o seu correlativo “morte”, mais tarde, Tudo o que
ou. , interessa a esta altura é a evidência clara, para Paulo,
do <pie Cristo era de fato o que Adão devia ser. A “vida” que
Adito perdeu uma vez mais é representada no mundo, e nela
o intenção divina para a humanidade torna-se manifesta.
Essa conclusão é confirmada por outra passagem em
ipio I ’nulo escreve:

43
... os incrédulos, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligên­
cia, a fim de que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que
é a imagem de Deus. Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus,
Senhor. Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos servos
por causa de Jesus. Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas
brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer
brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de
Cristo (2Cor 4,4-6).

Este texto tem três contatos específicos com a narra­


tiva da criação. O mais óbvio é a apresentação de Cristo
como “a imagem de Deus” (Gn 1,27), e o Deus em questão
é identificado como o Criador da luz (Gn 1,14-18). O
terceiro é a firmação de que Cristo possuía “a glória de
Deus”. Este elemento não é encontrado no Gênesis, mas,
de acordo com tradição judaica, Adão possuía “glória”
antes da queda. No Apocalipse de Moisés (composto antes
de 70 a.C.), Adão, depois de ter comido a maçã, grita a
Eva: “O mulher iníqua! O que eu te fiz para que me tenhas
privado da glória-de Deus?” (21,6XjCristo, portanto, tem
o que Adão perdeu. Ele é o Novo Adão que incorpora
perfeitamente a humanidade autêntica que era a meta do
ato criativo de Deus.
Um texto final associa “imagem de Deus” e “criação”
como predicados de Cristo. De acordo com o hino de Cl
1,15-20, Cristo é “a imagem do Deus invisível, o primogênito
de toda a criação” (1,15). A terminologia deste hino é
cósmica, mas a humanidade está no centro do pensamen­
to do autor porque só ela pode ser o instrumento de
mudança do resto da criação. O que teve em mente o autor
ao proclamar Cristo como “o primogênito de toda a cria­
ção”? O atributo paralelo de “imagem do Deus invisível” é
clara indicação que sua atenção estava focalizada na
humanidade de Cristo. Esta humanidade não cra
preexistente; veio ao ser somente em dado momento da
história (G1 4,4). A frase só pode significar que Deus
estava pensando na humanidade de Cristo quando ele
formou Adão. Isso parece tão paradoxal e sem sentido,

44
mas uma vez que reconhecemos que a categoria de causa-
lidade exemplar foi fornecida pela literatura sapiencial
( Pr 3,19; 8,22.30), o processo mental do autor fica claro.
Para criar Adão, Deus deve ter tido uma idéia da huma­
nidade perfeita/JPara cristãos, a perfeita humanidade foi
real izada somente em Cristo. Cristo, portanto, foi concebido
I >a ra representar a intenção d ivina que veio a ter expressão
histórica na criação de Adão. \
A conclusão a se tirar dos' três textos que estivemos
discutindo é que a antropologia de Paulo-tem uma base
cristológica. Para encontrar a verdadeira e essencial
natureza da humanidade, ele não olhou para os seus
contemporâneos, mas para Cristo, pois que somente ele
incorporou a autenticidade da humanidade/|Era inevitá­
vel, pois, que Paulo insistisse que a humanidade de Cristo
era o critério pelo qual a humanidade de outras criaturas
devia ser julgada.

Autêntica humanidade

Ao apresentar Cristo como o modelo de humanidade


milêntica, Paulo deve ter tido em mente certas facetas
específicas que distinguiram a humanidade de Cristo da de
oiilros. Nossa tarefa agora é determinar quais eram essas.
Se excetuarmos a menção da Ultima Ceia (ICor
I 1,23-25), o único “evento” da vida de Cristo a que chama
n atenção Paulo é sua mortq^E neste ato, jjortanto, que
devemos esperar encontrar as facetas que distinguem a
humanidade de Cristo;.Morte, infelizmente, não é uma
niin pies idéia, mas pode ser entendida de diversas manei-
i na, Em alguns casos, morte é meramente a negação de
cxÍHtôncia, uma passagem de ser para não-ser que torna
11,11 lossível todo progresso ulterior. Mas isso não é verdade
i ui l odos os casos. A morte de um assassino confesso, que

45
espontaneamente se submete a um experimento médico
perigoso, redime o seu passado culpável. A morte de um
alcoólico que, numa rua ocupada por uma multidão, abafa
com o corpo uma granada que explode, dá sentido a uma
vida desperdiçada. Nestes dois exemplos, morte é a con­
sumação de um tempo de vida, porque o “self’ é exaltado
e afirmado no supremo ato de renúncia/tPaulo certamente
incluiria a morte de Cristo nesta categoria porque ele
sublmHa consistentemente que foi morte “por outros” (Rm
5,8; 14,15; ICor 8,11; G1 2,20 etc.)'..Mas existe ainda outra
perspectiva da qual pode ser visualizada a morte. Ela
pode ser vista iluminando a característica dominante do
tempo de uma vida. Que isso estava também na mente de
Paulo sugere-o a fórmula que ele criou, “o morrer de
Jesus” (2Cor 4,10), que evoca a vida culminando na morte
e porta a conotação de que as duas são homogêneas.
Conseqüentemente, ele pode proclamar que “Cristo mor­
reu por todos a fim de aqueles que vivem não mais vivam
para si mesmos” (2Cor 5,15).'O padrão de comportamento
que os cristãos devem imitar (ICor 11,1) é posto em alto
relevo na morte de Cristo que focalizou com clareza
meridiana a opção fundamental de sua vida/’’
Como vimos no primeiro capítulo, Paulo sabia bas­
tante sobre a tradição do ministerio terreno de Jesus que
foi eventualmente posta por escrito nos evangelhos
sinóticos^À primeira vista, isso torna tanto mais surpre­
endente que Paulo tenha estimado a morte de Cristo como
a máxima revelação de sua humanidade, porque tantos
incidentes podiam ter sido usados como ilustrações, par­
ticularmente porque ele queria que os fiéis vivessem como
cristãos, e não apenas morressem como cristãosjT/Sua
razão para agir como ele agiu torna-se evidente se reco­
nhecermos que para Paulo Jesus não devia ter morrido.
Essa idéia aparece na primeira estrofe do hino da carta
aos Filipenses:

Ele que, existindo na imagem de Deus,


não usou na sua própria vantagem este direito de ser
tratado como deus,

46
mas esvaziou-se a si mesmo,
assumindo a condição de escravo (F1 2,6-7).

O fundo contra o qual se torna claro o pensamento


ilosta estrofe fornece-o um texto que já encontramos:
" I )eus criou o homem na incorrupção, e o fez à imagem de
mia própria eternidade” (Sb 2,23). O Sábio, como vimos,
Interpretou a narrativa do Génesis no sentido de que a
unirte não era parte da intenção original de Deus para a
humanidade; ela entrou no mundo somente como punição
para o pecado¿Para Paulo, e os outros teólogos do Novo..
Test amento, Cristo era absolutamente livre de toda man­
cha depecadotRm 1,4; 2Cor5,21; Jo8,46; Uo3,5;Hb4,15;.
Il'd 2,22).'Essa pureza absoluta dava-lhe o direito à
incorruptibilidade, que, segundo a intenção divina, era o
privilégio da humanidadez-No mundo de Paulo, somente
os deuses se pensavam viver para sempre. Em conformi­
dade, o direito ao privilégio da incorruptibilidade era
eletivamente o direito de ser tratado como deus. Cristo,
porém, não fez essa situação servir à sua própria vanta­
gem. Não exigiu o tratamento que sua condição merecia.
Ao invés, ele se entregou a um modo de existência que não
• i a sua, aceitando a condição de escravo, condição que
envolvia sofrimento e morte. A fórmula “esvaziou-se a si
mesmo” e seu correspondente na estrofe seguinte “humi­
lhou-se a si mesmo” frisa que Cristo fez uma escolha. Não
ne tratava de aceitação de algo que fosse por natureza
inevitável.‘Uma vez que essa perspectiva é captada, fica
claro porque Paulo devia ver a morte de Cristo como a
chave do elemento distintivo de sua humanidade, 6,
<) ato de morrer, porém, deriva o seu significado do
motivo que o inspirou. No caso de Cristo, Paulo via esse
motivo como complexo. Em harmonia com a tradição
evangélica, reconhecia que Jesus fora motivado pela von­
tade de seu Pai. Daí encontrarmos afirmações como: "...
• ião poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós”
1 liin 8,32), com correspondente ênfase na “obediência” de

47
Cristo (Rm 5,19; F1 2,8). Nisso, porém, Deus agia por
amor: “Foi, com efeito, quando ainda éramos fracos, que
Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. — Dificil­
mente alguém dá a vida por um justo: por um homem de
bem talvez haja alguém que se disponha a morrer. — Mas
Deus demonstra o seu amor para conosco pelo fato de
Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores”
(Rm 5,6-8). Essa formulação um tanto tortuosa é devida
ao esforço para insinuar que, ainda que a decisão fosse de
Deus, era também de Cristo. Essa dimensão chega a
expressar-se claramente em outra série de textos: “A vida
que agora vivo na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus
que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (G1 2,20;
cf. 1,4; 2Cor 8,9).¿Uma vez que o “e” aí é explicativo, o texto
apresentao autodoar-se de Cristo como expressão de
amorXjO que então- é o amor? A melhor resposta é a
fornecida por John Macquarrie:

Amor, cm seu sentido ontológico, ó deixar ser. Ajnor costuma ser


definido em termos de união, ou do impulso para a união, mas
semelhante definição é muito egocêntrica. Amor leva, com efeito,
à comunidade, mas visar primariamente unir a outra pessoa a si
mesmo, ou a si mesmo a ela, não é o segredo do amor e pode até
ser destrutivo de comunidade genuína. Amor é deixar-ser, não,
com certeza, no sentido de retrair-se de alguém ou algo, mas no
sentido positivo e ativo de capacitar para ser. Quando falamos de
“deixar-ser”, devemos entender ambas as partes desta expressão
com hífen em sentido forte — “deixar” como “dar poder”, “capa­
citar” e “ser” como gozando do máximo fastígio do ser que está
aberto para o ser particular respectivo. Muito tipica­
mente, “deixar-ser” significa ajudar uma pessoa para a plena
realização de suas potencialidades de ser: e o maior amor será
custoso, pois que ele será realizado pelo gastar o próprio ser
(Principies of Christian Theology, Londres, 1966, § 52, p. 310).

/¿Nesta brilhante exploração da intuição do Antigo


Testamento de que amor é poder (SI 62,11-12), vemos que
amor é a mais profunda forma de criatividade aberta à
criatura/A característica distintiva da humanidade au-

48
Imil ica é criatividade que efetivamente abre novos hori­
zontes de ser para os outros. A validade desta intuição é
' onl irinada por breve análise do conceito doAntigoTesta-
1111-11l.o dc “imagem de Deus” que Paulo predica somente de
< ¡iíhLo (2Cor 4,4; Cl 1,15).

1 imagem de Deus

ICm a narrativa do Gênesis, o autor sacerdotal define


11 ' li vezes a humanidade como feita à “imagem de Deus”
K In l,26s; 5,1-3; 9,6). O que precisamente ele quis dizer
I mi essa frase tem sido assunto de intenso debate, e parece
Improvável que se atingirá algum dia plena certeza.
I'odos concordam que a frase quer distinguir a humanida-
'!'■ do resto da criação. As criaturas humanas estão liga­
do i no mundo em que vivem, movem-se e têm o seu ser,
Hino não são parte dele. A visão bíblica do homem, portanto,
"pnc-se, quer à tentativa grega de classificá-lo dentro de
iiiiui realidade unificada como animal racional, quer à
vliifto científica contemporânea que o considera como
fenómeno extraordinariamente complicada da natureza.
I ’nr valioso que isso seja, falha em responder à questão: o
i pie o autor sacerdotal viu ao dizer que o homem tem algo
de comum com Deus? O caminho para a resposta fornece-
ii nutra questão: o que sabemos sobre Deus daquela seção
dn (Jênesis em que aparece a frase? Dois elementos logo
mil i ressaemXEle é Criador e Legislador. Isso sugere que a
i leniel bança da humanidade para com Deus deve-se buscar
II ii Ibrma de certa espécie de criatividade que tem’dimensão
■ •lira.;Alguma leve confirmação para o aspecto de criati­
vidade é fornecido pelo ato realizador antes da queda,
porque os estudiosos do Antigo Testamento entendem o
dar nomes às feras (Gn 2,19-20) como ato criativo, uma
voz que nova forma de relacionamento vem a existir, e com

49
< Alllroptdogta pastoral de Patdo
isso nova possibilidade de existência é ofertada aos ani­
mais. Visto nesta perspectiva, o domínio da humanidade
sobre os animais (Gn 1,28) assume nova dimensão: é
paralelo com o de Deus porque é também baseado cm ato
criativo.
" Paulo, porém, não leu Gênesis separado do corpo da
interpretação tradicional que se desenvolvera em torno
dele. Daí, para poder perceber o que tinha em mente ao
usar a frase, devemos levantar brevemente as diversas
interpretações que eram correntes em seus dias.A
Um ponto apropriado de partida fornece-o Sirac.
Escrito em hebraico na Palestina pelos inícios do séc. II
a.C., foi traduzido para o grego pelo neto do autor em 131
a.C. O fato de se terem encontrado fragmentos tanto em
Qumrã como em Masada mostra que seu ensinamento
tinha larga difusão. Ele oferece interpretação extensa da
narrativa da criação:

■O Senhor criou o homem da terra


e a ela o fez voltar novamente.
2Deu aos homens número preciso de dias e tempo determinado,
deu-lhes poder sobre tudo o que está sobre a terra.
3Revestiu-os de força como a si mesmo,
criou-os à sua imagem.
4A toda carne inspirou o temor do homem,
para que ele domine feras e pássaros.

7Encheu-os de conhecimento e inteligência


e mostrou-lhes o bem e o mal.
8Pôs seu olho sobre seus corações,
para lhes mostrar a grandeza de suas obras.
‘“Eles louvarão o seu santo nome,
narrando a grandeza de suas obras.
“Concedeu-lhes o conhecimento,
repartiu com eles a lei da vida.
l2Fez com eles uma aliança eterna
e deu-lhes a conhecer seus julgamentos.
13Seus olhos viram a grandeza de sua majestade,
seus ouvidos ouviram a magnificência de sua voz (Eclo 17,1-13).

50
O paralelismo do v. 3 mostra que aí “imagem” é
■ 'iiii'i'hida em termos de poder. E questão, pois, de capa-
• liliule para a ação; assim como Deus está nocéu, também
| humanidade está na lerre^O contexto, porém, circuns-
i' vo rigorosamente esta dimensão criativa e inibe todo
rio que faria do homem pequeno deus. Este poder é
a limir da autoridade da humanidade sobre o resto da
i'l lnrao i v. 2), mas este não é o aspecto mais importante.^
I'jiIc poder desenvolve-se na escolha conseqüente ao co­
nhecimento do bem e do mal (v. 7). Até ai estamos dentro
do quadro da narrativa do Génesis, masa última parte da
i ll nçao (vv. 11-13) mostra que o autor impôs uma perspec-
I Iva radicalmente nova ao Gênesis. As alusões à “lei” e à
"aliauça” mostram que ele pensa não na humanidade
i omn tal, mas exclusivamente nos israelitas. São eles
lilimente que são “a imagem de Deus”. E o resto da
Immanidade? Sirac não dá nenhuma resposta explícita,
man a lógica de sua posição o forçaria a concordar com o
nitor judeu que escreveu pelos fins do séc. Ia.C.: “Quanto
mi outras nações que descenderam de Adão, disseste que
i’lan sao nada” (Esd 4,55)££ssa arrogância é compreensí-
• d somente se admitirmos que o autor vê a humanidade
pola perspectiva estritamente moral. Os israelitas são
ilili'i-entes porque somente eles foram agraciados pelo
ilmn <la lei que ilumina as opções criativas que todos
di em fazer. O que a predicação de “imagem de Deus”
i'imui nica é, em consequência, a capacidade para compor-
I amento ético .P
Ainda que permanecendo dentro do mesmo quadro
básico, o livro da Sabedoria, composto em Alexandria na
nogunda metade do séc. I a.C., toma linha diferente:

Deus criou o homem na incorrupção


c o fez imagem de sua própria eternidade,
mas pela inveja do demônio a morte entrou no mundo,
e aqueles que pertencem a seu partido a experimentam
(Sb 2,23-24).

51
Em oposição a Sirac, que cria que Deus deu aos
homens somente “número preciso de dias e tempo deter­
minado” (17,2), o Sábio não creu que a morte era inevitá­
vel. Não foi parto da intenção divina que a criatura
humana deva morrer como os animais e plantas. Ele o
deduz de Gn 2,17 e 3,3, que apresenta a morte como
punição pela desobediência. O corpo, porém, era “perecí­
vel” (SI 9,15), uma vez que fora “feito de terra” (Sb 15,8).
Daí, presumia que antes da queda a criatura humana era
dotada do privilégio da incorruptibilidade, dom divino
que inibia a tendência natural da carne para a dissolução.
Isso fazia a humanidade em certo sentido imortal, e
este paralelo com a eternidade de Deus (Gn 31,33; Is
40,28) justificava a afirmação de que ela era a “imagem de
Deus”.
' A morte, em consequência, anula a imagem de Deus.
Os qng~mõrrem não~podem estar na “imagem de sua
eternidade”.’ Para o Sábio, porém, nem todos morrem
porqiie êle distinguia entre morte “real” e morte “aparen­
te”. Somente os ímpios morrem verdadeiramente; a morte
era a negação de toda sua existência a ponto de sequer
permanecer sua memória (Sb 4,19; 5,14). O justo, ao
invés, somente parecia morrer (Sb 3,2-3), ao passo que de
fato vive para sempre (Sb 4,17; 5,15). Essa diferença é
devida ao fato de que o justo possui a sabedoria que é a raiz
de toda virtude e a segurança de imortalidade (Sb 6,17-21;
8,13-17). Inevitavelmente, essa sabedoria foi concebida
em relação com a lei mosaica (Sb 6,18).
Pareceria, pois, que com respeito a Sirac, o Sábio
impõe ulterior limitação à aplicação da idéia de imagem
de Deus. Enquanto o primeiro a aplicaria a todos ligados
pela aliança, o último a aplicaria somente aos israelitas
que realmente obedeciam à lei. Em outros termos, ao
passo que Sirac relaciona a imagem de Deus à capacidade
de ação, o Sábio a relaciona- à própria ação. Não são
aqueles que são capazes de obedecer à lei que são a
imagem de Deus, mas aqueles que de fato a observam.

52
Emui linha de pensamento é levada um passo adiante
nnfnrinos que o Sábio predica “imagem de Deus” de
'•ui i ii reulidade:

I'iiIii ela <= a Sabedoria) é reflexo da luz eterna,


onpclho nítido da atividade de Deus
i> Imagem de sua bondade.
Hondo uma só, tudo pode;
iioin nada mudar, tudo renova
r, entretanto, nas almas boas de cada geração,
prepara os amigos de Deus e os profetas
(Hb 7,26-27).

/( Encontramos aí o tema comum da literatura sapiencial


que diz que a Sabedoria desempenha um papel na criação
• I I ’r 3,19; 8,22; 22,30), mas como novo matizf.Constitui
pinte da função criativa da Sabedoria oferecer aos seres
luimnnos a possibilidade de novo modo de ser, a saber, o
■ In ner “amigos de Deus”. E a Sabedoria que os capacita a
pimunr do estado onde estavam ligados à morte “real” ao
nitl udo em que possuem “vida” e a segurança de imortali-
i Inde. Como ocorre isso na prática? A resposta do Sábio
I iode ser deduzida de suas afirmações de que “uma multi-
ilAo de sábios é a salvação do mundo... Deixai-vos, pois,
Instruir por minhas palavras e nelas encontrareis provei­
to" (Sb 6,24-25) e “o começo da sabedoria é o desejo mais
sincero de instrução, e interesse pela instrução é amor
ilnlii” (Sb 6,17). A Sabedoria, pois, é medida por aqueles
que a possuem. Mas é precisamente estes que existem “na
i mugem de sua eternidade”. Eles exercem função criativa
un oferecer a outros nova possibilidade de existência^A
sugestão de Gênesis de que “imagem de Deus” carregava
.) conotação de criatividade em dimensão ética foi retoma-
dii pelo Sábio, mas de tal sorte que as implicações são
agud amente focalizad asQ?
A contribuição crítica do autor do livro da Sabedoria
foi relacionar “imagem de Deus” não à existência humana
como tal (como o faz Gênesis), mas a uma qualidade

53
específica de existência. Este ponto encontra eco também
em Filón (20 a.C. a 54 d.C.). A antropologia de Filón é
extremamente complexa, e um resumo pormenorizado
dela não cabe aqui. Ele reserva o predicado de “imagem de
Deus” para o Logos, um intermediário entre Deus e a
humanidade. Desta última ele dirá somente que ela foi
feita “segundo a imagem” do Criador. Falando estrita­
mente, a humanidade é uma imagem da imagem que é o
Logos. ¡A impressão divina está manifesta no intelecto,
mas alguns usam de seu intelecto para seguir a caminho
*fèal da"Sãbédoria, ao passo que outros nao./^ ’

Em conseqüência, há dois tipos de homens, os que existem pelo


espírito divino que raciocina e os que vivem pelo sangue e pelo
prazer da carne. O segundo é modelado de terra, o primeiro é a
impressão fiel da imagem divina (Quis rer. div. n. 57).

Assim, enquanto todos são potencialmente a imagem


de Deus, Filón reserva essa noção aos que manifestam
particular qualidade de existência. Como no caso do
Sábio, o seu critério está baseado não numa visão teórica
da humanidade como tal, mas na experiência de um
padrão vivido de comportamento.
Um breve sumário fornece alguma idéia do complexo
de noções que cercou o conceito de “imagem de Deus” no
tempo de Paulo. Apesar da diversidade de interpretações,
existe, não obstante, certo fundo comum que podemos
tomar como concedido ao determinar o que Paulo signifi­
cou pela frase. Em primeiro lugar, a predicação da frase
“imagem de Deus” foi feita criticamente. Não foi aplicada
indiscriminadamente a todos os seres falantes que andam
eretos sobre duas pernaspA sugestão é que nem todas as
criaturas humanas viviam segundo o critério desejado por
seu Criador.,' Podemos estar certos, no entanto, que no
discurso do dia-a-dia os contemporâneos de Paulo usavam
“imagem de Deus” casualmente e sem pensar como faze­
mos com freqüência. Então, como agora, era confortante

54
pensar de si mesmo como significado por semelhante
l'rase impressionante.
A falta de simpatia de Paulo por semelhante conforto
i lusório é evidente na maneira altamente seletiva em que
usa “imagem de Deus”. Nunca a aplica a si mesmo ou a
qualquer de seus contemporáneos. Em ICor 11,7 visa
evocar Adão antes da queda, como a noção de “gloria” (cujo
Mentido veremos no fim do próximo capítulo) claramente
indica. Precisamente o mesmo conceito se usa para su­
blinhar que Cristo é o Novo Adão em 2Cor 4,4: “a gloria de
< ¡risto que é a imagem de Deus”. Com referência aos fiéis,
Paulo dirá apenas que “nós estamos sendo mudados em
nua imagem de gloria em gloria” (2Cor 3,18), isto é, ele
mantém a esperança de que um dia possamos nos tornar
n “imagem de Deus”.
Portanto, o uso de Paulo revela sua insatisfação para
ruin a definição de humanidade (representada por Sirac)
baseada só na capacidade ou potencialidade. Devemos,
nm consequência, admitir que ele se alinharia com o Sábio
nu com Filón. Não existe nada em suas epístolas; porém,
que sugerisse que ele pensava habitualmente nas cate­
gorias altamente intelectuais de Filón. Onde há contatos
nutre o Apóstolo e o grande filósofo, o primeiro está em
mação a idéias que se podem associar com o último. Por
exclusão chegamos, então, à posição de que Paulo pro­
vavelmente seguia a linha aberta pelo autor do livro da
Sabedoria, conclusão que é confirmada pela influência
(I i fusa do livro nas epístolas paulinas. O título “imagem de
I )eus” é justificado somente quando a criatura é também
■ i i.idor. É oferecendo nova possibilidade de existência a
i a i I ros que a criatura humana é verdadeiramente imagem
de Deus.;Se bem que sua aproximação seja meramente
especulativa, a grande intuição de John Macquarrie o
conduz a um ponto cm que fielmente expressa a intenção
de Paulo:

O sentido pleno da pretensão de que o homem é feito à imagem


de Deus pode ser percebido na linguagem contemporânea da

55
“existência”. O que distingue o homem de outras criaturas é que
ele “existe”, e existir é ter abertura que é talvez a melhor chave
à misteriosa afinidade de Deus e homem. Da mesma forma em
que Deus se abre para a criação e derrama ser, e, portanto, tem
o “deixar-ser” como sua essência, também o homem é mais
verdadeiramente ele mesmo e realiza sua essência na abertura
de inpa existência em que também ele pode deixar-ser, com
responsabilidade, criatividade e amor (Principies of Christian
Theology, § 35, p. 212).

Realidade histórica

Uma vez que Paulo pode ter sido influenciado pelo


livro da Sabedoria, sua compreensão da característica
distintiva da existência autêntica deriva não de aproxi­
mação teórica da natureza humana, mas de sua contem­
plação de indivíduo histórico, Jesus de Nazaré. fO quejviu^
revelado nele tornou-se a norjna que usava ao julgar todos
ós outros.
Este ponto deve ser frisado porque é a única documen­
tação que temos de que a criatividade, que caracteriza a
existência autêntica, é realmente possível. Se Jesus não
tivesse demonstrado esse amor sob as condições da vida
normal, não haveria nenhuma garantia de que não era
ilusão utópica, bela na teoria mas impossível na prática.
No fundo, cremos nós todos que o que a humanidade pode
fazer é o que a humanidade fez. Embora soubéssemos que
era teoricamente possível ir à lua, uma dúvida hesitante
permanecia até que Armstrong andou de fato em sua
superfície. Chegar ao topo do monte Everest foi reconhe­
cido como possibilidade real somente quando Hillary e
Tensing atingiram o cume. O medo do que podia acontecer
ao corpo humano se corresse uma milha em quatro minu­
tos foi banido somente quando Bannister o fez. O que

56

1
ocorreu quando se fizeram tais incursos? Uma atitude
mental diferente foi logo gerada. Indivíduos foram liber-
I mios da inibição do impossível. Aqueles que se mantinham
otras, talvez inconscientemente, por causa do medo de
que aquilo pelo que lutavam era impossível de realização,
loram chamados avante pelo sucesso de outros tais como
eles. Uma nova energia foi lançada pela demonstração de
novo padrão.
Propor como critério de autêntica humanidade um
II mor que continuamente logra dar poder a outros poderia
• icr tão irrealístico como a sugestão de imitar as peripécias
(lo Super-Homem, se não soubéssemos que pelo menos um
indivíduo demonstrou essa possibilidadejqPqrque Jesus
viveu sob as mesmas condições históricas de tempo e
espaço como nós, o modo de existência realizado por ele
permanece desafio perpétuo para um padrão atingível. .

57
LEITURAS SUGERIDAS

Fraser, J. W., “Paul’s Knowledge of Jesus: II Corinthians V. 16 Once


More”, emTVeia Testament Studies 17 (1970-71), 293-313.
Lyonnet, S., “History of Salvation in Romans 7”, em Theology Digest 13
(1965) 35-38.
Pannenberg, W., Jesus — God and Man, SCM, Londres, 1973, cap. 5.
Barret, C. K., From First Adam to Last, Black, Londres, 1962.
Scroggs, R., The Last Adam, Blackwell, Oxford, 1966.
Dunn, J. D. G., Christology in the Making, SCM, Londres, 1979,
cap. 4.
Murphy-O’Connor, J., Christological Anthropology in Phil 2:6-11, em
Revue Biblique 83 ( 1976), 25-50.
Miller, J. M., “In the ‘Image’ and ‘Likeness’ of God”, em Journal of
Biblical Literature 91 (1972), 289-304.

58
JESUS CRISTO E DEUS

A implicação do capítulo anterior é que o que fez


Jesus único para Paulo foi a perfeição de sua humanida­
de; ele foi e é o único homem perfeito?.Então o que dizer
<le sua divindade? Pretende Paulo que Jesus era
preexistente, que ele era o Filho de Deus e que ele devia
se identificar com a Sabedoria? E não são todas essas
indicações sinais da crença em sua divindade? Tais per­
guntas merecem resposta, pelo menos porque evocam
aspectos significativos da cristologia de Paulo. Minha
intenção, porém, é prevenir toda compreensão equivoca­
da destes temas, evitando a distorção ou negação do
conceito de Jesus Cristo como o Novo Adão, que é o
aspecto mais fundamental da cristologia de Paulo. O
desafio de sua pessoa, em que Paulo insiste, é difícil de
enfrentar, e devemos estar cientes da facilidade com que
nossa natureza decaída descobrirá de evitá-lo.
Algumas considerações são fundamentais para a
discussão que segue. O tema não é a divindade de Cristo
como tal. João afirma sem ambigüidades que Jesus era
I )eus e, em minha opinião, também o afirma Mateus, se
bem quede maneira mais indireta. Adivindadede Cristo,
portanto, forma parte do ensinamento formal do Novo
Testamento e não é minha intenção questioná-lo. O ponto
u ser tratado aqui é ponto histórico: Terá Paulo pensado
sobre Jesus em termos de “divindade”?
Esforçando-nos para responder a essa pergunta,
devemos ter em mente que Paulo se situa bastante perto
dos inícios da reflexão teológica cristã. Vimos que ele sabe
de uma quantidade significativa do material mais tarde

59
incorporado nos evangelhos sinóticos. É universalmente
reconhecido que não existe nenhuma evidência de crença
na divindade de Jesus nos estratos primitivos da tradição
evangélica. Assim, não existem motivos para ler Paulo
com a presunção de que os cristãos com os quais entrou em
co nta to criam na divindade de Cristo. Não podemos assumir
uma visão de Jesus que se tornou corrente somente mais
tarde na história da Igreja. Paulo não era discípulo de João!
Devemos lembrar também que Paulo era rabino
treinado. O monoteísmo do seu povo era algo que herdara
irrefletidamente, mas algo que tinha estudado conscien­
temente. Era uma crença à qual ele estava profundamente
entregue. Negação seria extrema heresia. E assim é
precisamente como a afirmação da divindade de Cristo
teria aparecido, o conceito de Deus alargado para incluir
duas pessoas! E difícil para nós agora apreciar a magni­
tude da ruptura com a tradição judaica que isso implica.
Não poderia ter acontecido, particularmente no primeiro
estágio que Paulo representa, sem uma explosão que
certamente teria deixado muito mais traços definidos em
suas cartas do que as alusões incidentais e ambíguas que
são o máximo que sempre se pretendeu encontrar.
¿"O resultado destas observações é sublinhar que uma
sã metodologia exige que supostas referências à divindade
ou preexistência de Cristo nas cartas paulinas sejam
criticamente examinadas, a fim de determinar o que real­
mente dizem e não sejam interpretadas ingenuamente à
luz de preconcepções infundadas. •

A cruz de Romanos 9,5

Em todo o corpus paulino, existe apenas uma passa­


gem que possivelmente se poderia interpretar como
afirmação formal da divindade de Cristo, a saber, Rm 9,5.

60
I nli‘1 ¡/.mente, porém, este versículo pode ser interpretado
ih> numerosas maneiras diversas, dependendo da forma
i ui que for pontuado. As duas principais são:

A. Eles são israelitas... aos quais pertencem os patriarcas, e de


sua raça, segundo a carne, é o Cristo, que é Deus sobre tudo,
bendito para sempre. Amém.
1!. Eles são israelitas... aos quais pertencem os patriarcas, e de
sua raça, segundo a carne, é o Cristo, Deus, que é sobre tudo,
(seja) bendito para sempre. Amém.

Segundo A, Paulo afirma que Cristo é Deus sobre


I iido. Segundo B, diz somente que Cristo é da raça judaica,
neiido a referência a Deus uma doxologia, uma explosão
i iipontânea de louvor.
Qual a pontuação correta? O próprio Paulo não fornece
nenhuma resposta, porque os manuscritos primitivos que
, uhlôm este versículo não têm nenhuma pontuação. Assim,
ui ui vemos reduzidos a pesar a documentação gramatical e
.....11 'xlual disponível^O versículo ocasionou tanta discussão
porque a documentação aponta em diferentes direções, p
Nada na gramática do versículo se opõe à pontuação
A, e aqueles cujos ouvidos estão afinados com o ritmo do
prego acham que o versículo lê-se mais naturalmente se
lho permite fluir continuamente até o “amém”. Assinala-
nii, de mais a mais, que a pontuação B envolve jubilosa
doxologia que está fora de harmonia com o ânimo doloroso
do Apóstolo nesta seção da carta.
Esses argumentos em favor da pontuação A são
i mil raditados por outros derivados do contexto imediato.
Hm 9,5 é o clímax de um parágrafo em que Paulo evoca os
pi i vi légios de Israel. Estes privilégios foram dom de Deus,
r logo antes Paulo evocara o amor de Deus. “(Nada) será
capaz de nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus
nosso Senhor” (Rm 8,39)fAqui Deus e Cristo são distin-
gu idos bastante claramente. O último é a manifestação do
oioor do primeiro, da mesma forma que os privilégios

61
eram a manifestação da solicitude providencial de Deus. ■
Que o pensamento de Paulo continua a se mover dentro do
mesmo quadro é fortemente sugerido por Rm 9,3, que
também faz distinção entre Cristo e Deus. “Quisera eu
mesmo ser anátema e cortado de Cristo em favor de meus
irmãos.” Paulo não podia desejar ser cortado de Deus.
Se os versículos antes do v. 5 distinguem claramente
Deus de Cristo, o mesmo vale para os que seguem. No v.
6 lemos: “E não é que a Palavra de Deus tenha falhado”.
Isso é uma referência anterior às “promessas” do v. 4, e
bastante obviamente a referência é ao Pai, como é o caso
em todas as menções subseqüentes de “Deus” (9,8.11.14.16;
e em particular 9,20, onde “Deus” = o Criador). Em
nenhum destes textos seria natural interpretar “Deus”
como significando Cristo. A consistência deste uso é argu­
mento forte contra a pontuação A, pois só metodologia
exige que o sentido de um versículo polivalente seja
determinado pelo contexto; o significado provável é o que
é requerido pelo contexto. Q
Por toda a seção de 9,1-5, a atenção de Paulo está
focalizada no Pai. A multidão de seus dons, culminando no
envio de Cristo, serve para iluminar a fidelidade de Israel.
E inteiramente natural que o Apóstolo experimentasse
grande angústia ao contemplar o pecado de seu povo. Mas
este é apenas um dos lados da moeda, pois é igualmente
compreensível que a lista dos atos graciosos de Deus
provocasse explosão espontânea de louvor. A ordem
vocabular do v. 5 elevou a mente de Paulo à noção de
providência e, daí, ao Pai e seu caráter de bendito. Uma
versão mais plena da mesma doxologia aparece em Rm
11,36: “Pois procedentes dele e mediante ele e para ele são
todas as coisas. A ele, glória para sempre”. Observe-se a
ordem, providência seguida por glorificação. Balancean­
do, portanto, a documentação favorece a pontuação B e a
probabilidade desta pontuação é confirmada pelo fato de
que nenhuma outra passagem nas cartas de Paulo impli­
ca necessariamente que Cristo é Deus.^De fato, Paulo
afirma explícitamente que Cristo está subordinado a

62
I Fiih: “E, quando todas as coisas lhe tiverem sido subme-
' Idas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo
• h" aiibmcteu, para que Deus seja tudo em todos” (ICor
1 Rm 9,5, portanto, apresenta Cristo como dom de
I Ruiu sem de nenhuma forma afirmar sua divindade.

b'illio de Deus

Das 16 passagens em que Paulo chama Jesus de


Filho”, duas sobressaem porque o título está qualificado
par adjetivo. “Enviando o seu próprio Filho numa carne
oinelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o
1'iM'ndo na carne” (Rm 8,3); “Quem não poupou o seu
próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos
dará (.odas as coisas com ele?” (Rm 8,32). A intenção
• I'' ales textos é frisar a generosidade ilimitada do amor de
I Ii’iih, e este tipo de afirmação tem sentido somente se
I 'nulo entendeu Jesus como situado em especial relacio-
iminento para com Deus¿(O problema, pois, é determinar
n natureza do relacionamento.
Existe amplo acordo de que as duas referências
I »o 111 i nas ao Filho são derivadas do primeiro querigma: “O
nvnngelho concernente ao seu Filho, que era descendente
do I )avi segundo a carne, e constituído Filho de Deus em
pudor segundo o espírito de santidade pela ressurreição
don mortos” (Rm 1,3-4); “Para esperardes do céu o seu
Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus que
DOU livra da ira futura” (lTs 1,10). A análise pormenori-
•■ada destes textos muito debatidos não cabe aqui, mas
dois pontos dificilmente carecem de demonstração. Ne­
nhuma destas passagens alude à preexistência; ao invés,
iunhas associam a filiação de Cristo com a ressurreição.
Existe leve alusão de que a ressurreição é aí recompensa
pola maneira em que Cristo exerceu sua filiáçãqH

63
Essa interpretação é confirmada por duas outras
passagens que apresentam sua filiação em termos de
missão. Rm 8,3 já foi citado; a segunda passagem é G14,4:
“Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou
Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob. a lei, a
fim de que recebêssemos a adoção filial”. “Enviar” nestes
dois textos não tem nenhuma referência à preexistência;
o verbo é regularmente usado em ambos os Testamentos
para dizer comissionamento de um agente humano em
vista de tarefa determinada. Embora partilhando das
desvantagens da humanidade (“nascido de mulher, nas­
cido sob a lei”), Cristo realizou sua missão salvadora,
manifestando assim a obediência que, no padrão hebraico
de pensamento, que Paulo herdou, era o constituinte da
verdadeira filiação; “o Filho de Deus, Jesus Cristo... não
foi ‘sim’ e ‘não’, mas nele foi (sempre) o ‘sim’” (2Cor 1,19-
20). Essa fidelidade foi reconhecida por Deus ao ressusci­
tar Cristo.
Em vista do que vimos referente ao relacionamento
de Paulo com a tradição sinótica, parece provável que
derivou seu ensinamento sobre o “envio” de “o filho” da
pregação de Jesus. O único texto evangélico em que o
envio de um Filho é mencionado é a parábola de Jesus dos
vinhateiros homicidas (Mc 12,1-12), texto que está ligado
a G1 4,4-7 pelos temas ulteriores da escatoíogia (“último”
[éschaton] Mc 12,6; “na plenitude do tempo” G1 4,4) e da
herança (Mc 12,7; G1 4,7)JTantos contatos pareceriam
excluir a coincidência como explicação adequada e, sendo
assim, seria imprudente lei’ mais no texto paulino do que
se pode~ihlerir7fa primitiva tradição sinóticajf)
Indicação ulterior nesta direção é fornecida pela
definição de Paulo do espírito do Filho em termos de
“Abba”(Gl4,6; Rm 8,15). O uso que faz de termo aramaico
reflete sua dependência da tradição sinótica de palavras
próprias de Jesus. Ao usar “Abba”, Jesus expressara o seu
sentimento de íntima filiação (Mc 14,36), mas ao mesmo
tempo o termo proclamava a revelação de Deus como Pai,
não só de próprio Jesus, mas também daqueles aos quais

64
Iiuvi'1'in de comunicar sua filiação (cf. Lc 11,2; 22,29). A
ii|ii'ii|.no é que tal filiação é constituída pela resposta
nmdolnda por aquela de Jesus. Paulo chama-la-á de “a
nliiMlIôncia de fé” (Rm 1,5). E porque somos filhos de Deus
piilii fé e pelo batismo (G1 3,26-27) que instintivamente
ima dirigimos a Deus como “Abba” (G1 4,6; Rm 8,15), da
iMiMHiui forma que o fez Jesu^dUma vez que fomos inseri-
i rm Cristo, podemos usar este termo distintivo ao
Invoi or a Deus. í-
A idéia de “adoção” que Paulo usa ao falar de nossa
Hlliiçno <G1 4,5; Rm 8,15.23) não pode ser urgida para
piovnr diferença radical entre a filiação de Cristo e a
lio tiin, porque Cristo pertencia a um povo, do qual um dos
privilégios era a “adoção” (Rm 9,4). Uma vez mais, isso
Iniiero a compreensão de Paulo a respeito de Jesus como
I í II io de Deus firmemente dentro de um contexto judaico
i iijiiii pressuposições monoteístas devem nos inibir de
liiln pretar semelhante filiação em termos de comunidade
,1, u; dureza. Para Paulo, Jesus era o Pilho de maneira
Unira porque ele realizou as exigências da filiação de
íiu ma sem paralelo com nenhum outro. ; ,

Senhor

Aproximação diferente ao problema da divindade de


1 'listo tem sido desenvolvida com base no uso paulino do
título “Senhor” para Jesus. Na LXX, “Senhor” é o
uubstitutivo normal para o judeu: “Iahweh”, e este uso
a parece nas citações escriturísticas em Rm 4,8; 9,29 etc.
I ’miloaplica a Jesus textos do AT onde “Senhor” designava
Deus (por exemplo, Rm 10,13)ÃSó poderia fazer isso
porque crê que Jesus era divino. ,
Esta linha de argumentação foi com razão abandonada
eomo simplista, porque Paulo não derivou o título do

65
Antigo Testamento; já era corrente na Igreja a que ele se
juntou, como podemos deduzir das fórmulas em forma de
credo em Rm 10,9 e ICor 12,3. O termo “Senhor” não é
sinônimo de Deus. Era usado correntemente no mundo
secular para conotar relacionamente de poder. Não defi­
nia o status de indivíduo tomado em separado, mas evo­
cava seu domínio sobre um grupo ou esfera da vida. Era
perfeitamente aplicável ao Criador, mas não se limitava
a ele. O fato de que os primeiros cristãos olhavam para
Cristo como seu senhor, atitude que começou durante sua
vida terrena como mestre, mas que tomou dimensão
infinitamente mais profunda em sua experiência dele no
período pós-pascal, é suficiente explicação de seu uso de
“Senhor” a respeito dele. Olhavam para ele como a superior
do qual dependiam.
A base do senhorio é o poder, e o poder fruído por
Cristo é o de dar ou recusar o dom dá vida/Prolonga­
do para o futuro, este poder fará dele o juiz universal
(2Ts 1,5-10; Rm 2,16). No Antigo Testamento, domínio
sobre a vida é, com certeza, atributo divino (Dt 32,39);
forma parte da natureza de Deus. Para Paulo, este poder
não pertencia a Cristo por direito; teve de lhe ser dado e
este dom é consistemente apresentado como recompensa
pela fidelidade com que executou sua missão. “Com efeito,
Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e
dos vivos” (Rm 14,9). “Por isso, Deus o sobreexaltou gran­
demente e o agraciou com o nome que está acima de todo
nome... e toda língua confesse que Jesus é ‘Senhor’ ” (F1
2,9-11). O poder de senhorio é dado a Cristo para fim
específico e, quando isso se tiver cumprido, o poder será
entregue (ICor 15,20-28)/ No pensamentpde Paulo, “Igre-
ja’/e“senhorio” de Cristo^estão/ntrinsecamente ligados;
’IgeiTpoaêréopefãtivo em emediante a comunidade cristã.
Quandofno plano de Deus, o tempo da Igreja chegar a seu
fim na parusia, o senhorio de Cristo cessará. p,

66
' <iilx’doria

Com freqüência se trata ICor 10,4 como a expressão


ni 11 ¡ K Ibrmal da crença de Paulo na preexistência de Cristo.
Iínlerindo-se à rocha, de que os israelitas beberam duran-
lii o êxodo (Nm 20,7-11), ele diz: “A rocha era Cristo”.
Antes escrevera que Cristo é a sabedoria de Deus (ICor
I 'M), c a tradição judaica representada por Filón afírma-
• "A rocha dura é a sabedoria de Deus”(LegumAllegoriae
Isso, pretende-se, fornece uma clara cadeia de
nqunções: a rocha Cristo = sabedoria = Cristo. Uma vez
i|iio n rocha preexistiu à vinda de Cristo, ele deve então ter
• s nítido antes de seu nascimento humanoJlSão conside-
i ii,ws como essas que inspiraram a hipótese largamente
illliisã de què~ã idéia de preexistência-chegou ã Paulo
ii11 avós de especulação sobreaSabedoriaesuarelação
i nm Cristo^
Pode haver pouca dúvida de que Paulo era influenci­
ado pela tradição sapiencial, mas duvido muito que ela
I unha exercido o papel dominante que alguns postularam.
I'orna-se cada vez mais claro que seu envolvimento com
i '/ti ui t radição não era algo que ele escolheu conscientemente
porque viu o seu valor para ilustrar o mistério de Cristo,
r oi forçado a ele por causa de desenvolvimentos na comu­
nidade em Corinto. Um grupo de crentes estava conven-
i ido de que possuía sabedoria especulativa que lhe dava
... isso direto a Deus. Em conseqüência, pensavam que
1’i'iim elite espiritual. Não mais precisavam de Paulo e de
ion ensinamento; a instrução era necessária somente
pura aqueles que estavam em plano muito mais baixo.
Apesar de sua sensibilidade, Paulo podia talvez ter vivido
om essa situação, mas uma conseqüência ulterior o
abrigou a reagir vigorosamente. Cristo se tornara
Irrelevante para estes assim chamados cristãos. Sua
luiinanidade e sua sorte eram a antítese da Sabedoria
imaterial e eterna que era sua mãe e guia. Essa atitude

67
estava bastante perto do tipo de teologia associado a
Filón. Porque a rocha no deserto forneceu alimento, ele
pôde vê-la como símbolo da sabedoria especulativa que, do
seu ponto de vista, sustentava as almas dos iluminados.
Paulo não podia partilhar desta perspectiva. Estava
convencido de que Jesus Cristo era o único mediador entre
Deus e a humanidade (ICor 8,6; lTm 2,5); ele era a
revelação da exigência de Deus e o modelo da resposta da
humanidade. Paulo era suficientemente realista para
reconhecer que não podia varrer das mentes dos corintios
idéias que já tinham assimilado. Daí, tinha de redefinir
Cristo de uma forma que acarretaria mudança em sua
maneira de pensar. A única solução possível era insistir
que Cristo era “o poder de Deus e a sabedoria de Deus”
(ICor 1,24; cf. 1,30). Em sua própria pessoa ele era tanto
a manifestação como os meios do plano de salvação de
Deus. Se os corintios desejavam interessar-se pela Sa­
bedoria, deviam focalizar Cristo crucificado, pois a sabe­
doria não mais c expressa em palavras ou ações (ICor
1,22), mas numa pessoa cuja existência corpórea era
integrante de sua missão.
Se tal era a atitude de Paulo, não temos nenhum
direito de supor que ele aceitava a compreensão de Filón
sobre a rocha de que os israelitas beberam. (AoJnvés, é
muito mais provável que estava conscientemente modi­
ficando aquela interpretação ao insistir que a rocha não
era a sabedoria, mas CristoJX) tempo passado lhe foi
forçado pelo fato dê que a rocha não era uma realidade do
presente. A cadeia de equações visando estabelecer a
preexistência de Cristo em ICor 10,4 é uma ilusão; jamais
existiu na mente de Paulo.
A controvérsia com os corintios acrescentou nova
dimensão ao pensamento de Paulo sem modificá-lo de
qualquer forma fundamental. A tradição judaica achava
significativo falar da sabedoria de Deus. Dada a vitalidade
do monoteísmo judaico, é muito improvável que conce­
bessem sua Sabedoria, quer como ser divino, quer como
hipóstase divina. Era uma forma de expressar o

68
envolvimento do Criador transcendente com sua criação;
era consolo crer que havia um plano divino por detrás do
caos sem sentido dos fenômenos. Era o único antídoto ao
pessimismo gerado pelo contato com a realidade. Uma
Vez que sua atenção tinha sido arrastada para esta
perspectiva, Paulo teria visto imediatamente a relevân­
cia para sua situação. Era Cristo que dera sentido à sua
própria vida; mediante ele, tudo entrou em seu lugar.jNão
mais se^falava da Sabedoria meramente falada como
inserida na lei (Eclo 24), ela estava presente em poder. A
especulação sapiencial judaica não levou Paulo a pensar
de Cristo em termos outros que humanos. Ao invés, o fato
de Cristo fornecia a chave para a compreensão correta da
maneira como a Sabedoria de Deus agia no mundo.
< Resumindo. -Filho, Senhor e Sabedoria são usados
mis cartas pauli nas, não para sugerir dimensão supra-
1111 mana em Cristo, mas para iluminar diferentes facetas
ila mediação de Cristo entre Deus e suas criaturas/lSa-
bedoria frisa que Deus tem um plano para a humanidade.
I''ilho mostra que este plano é inspirado no amor. E Senhor
garante o poder necessário para levá-lo a termo. Os três
aspectos estão unificados naquele que desdobra a criati­
vidade do Novo Adão.

69
LEITURAS SUGERIDAS

Knox, J., The Humanity and Divinity of Christ, Cambridge U niversity


Press, 1967.
Brown, R.E., “Does the New Tes tame nt Call Jesus God?” ,emTheological
Studies 26 (1965), 545-576; reimpresso em sua obra Jesus God and
Man, Chapman, Londres, 1968.
Metzger, B. M., “The Punctuation of Rom 9:5”, em Christ and Spirit in
the New Testament. Studies in Honour ofC. F. D. Motile (ed. B. Lindars
and S.S. Samalley), Cambridge University Press, Chicago, 1973, 95-
112.
Dunn, J. D. G., Christology in the Making, SCM, Londres, 1979, ca­
pítulos 2 e 6.
Robinson, J. A. T., The Human Face of God, SCM, Londres, 1973.

70
A DIVISÃO DENTRO
DA HUMANIDADE

Ao ser iluminado pela autenticidade da humanidade


ilo 1 'l isto, o mundo surge dividido em dois campos. Paulo
. .... muitos rótulos para esses grupos. O contraste entre
o "I lo.nem Velho” e o “Homem Novo” (Rm 6,6; C1 3,9-10)
' iii logo à mente. <Sna descrição mais fundamental,
l'oi i in, é o contraste entre “vida” e “morte”. Alguns estão
"vivo.;" e, outros, “mortos”.

"Vida” e “morte”

Uma das dificuldades de entender Paulo é criada por


min tendência a usar o mesmo termo com significados
milito diferentes em vários contextos. Os termos, com que
ngora temos de tratar, fornecem um caso em foco, porque
u|0 usa os nomes “vida” e “morte” (e os verbos correspon­
dentes) em três sentidos diversos.
O primeiro sentido de “vida” é normal, o da existência
do (lia-a-dia, como se ilustra pela afirmação: “Embora
vivamos, somos sempre entregues à morte por causa de
Jesus” (2Cor 4,11; cf. Rm 8,38; lCor 3,22). Este texto
novela também o significado correspondente de “morte”
ri mio o termo da existência terrena^N.estejentido, o uso
i|iic Pauloí Jlmorte” é exatamente paralelo ao
nosso uso contemporâneo

71
I

O segundo sentido de “vida” é a vida eterna. Normal­


mente Paulo emprega a expressão plena “vida eterna”
(Rm 2,7; 5,21; 6,22-23; G1 6,8), mas em duas ocasiões
abrevia esta dizendo simplesmente “vida” (FT 4,3; 2Cor
5,4). E bastante claro pelo contexto que se trata de vida
celeste depois da morte física em ambos os casos.
Correspondendo a este conceito de vida eterna, existe
uma série de textos em que “morte” funciona como fórmu­
la abreviada para o julgamento escatológico negativo que
será pronunciado sobre os pecadores (por exemplo, Rm
6,21; 7,5; 8,13X£fantoJ‘vida” como “morte” neste sentido
são consistentemente apresentadas como realidades do

O terceiro sentido de “vida” e “morte” é o mais difícil


de se determinar. Um ponto claro é que se deve distinguir
dos outros dois. Quando Paulo diz: “Vós que estáveis
mortos... Deus vos fez vivos” (Cl 2,13), é evidente que não
se pode tratar de vida e morte físicas, porque “morte” é
predicada dos que estão físicamente vivos, e daqueles que
estão vivos físicamente se diz que são “feitos vivos” em
outro sentido. E igualmente óbvio que não se pode tratar
de vida e morte eternas, porque estas são realidades do
futuro, ao passo que “vida” e “morte” de que fala esta
afirmação são realidades do passado e do presente. Com
certeza, existe relação entre “vida” e “morte” de que se
trata aqui e a vida/morte eterna, porque são somente os
que estão “vivos” neste sentido que alcançarão a vida
eterna. Daí, poderíamos dizer que “vida” neste sentido é
a “vida eterna em forma embrionária” (como muitos es­
tudiosos fazem), mas essa seria uma solução meramente
verbal, uma resposta aparente, mas não real. Tudo o que
“vida eterna embrionária” pode significar é urna
potencialidade para a vida eterna. O que nos interessa é
a condição em que essa potencialidade se enraíza.
Tradicionalmente, “vida” e “morte” neste terceiro
sentido têm sido entendidas por teólogos e exegetas influ­
enciados por considerações dogmáticas como “vida espiri­
tual” (= graça) e “morte espiritual” (=ausência de graça).

72
Km movimento ulterior, a diferença tem-se expressado na
forma: “vida” = vida sobrenatural, ao passo que “morte” =
vida natural.
Podemos conceder imediatamente que existe pelo
menos um ponto de contato entre a distinção paulina de
"vida” e “morte” e a distinção dos teólogos de “sobrenatu­
ral” e “natural”. Paulo insiste que é impossível à humani-
i Indo passar sem ajuda do estado de “morte” ao de “vida”,
nos teólogos fazem a mesma observação com referência à
passagem do “natural” ao “sobre naturaP^perápsuficiente
nos permitir admitir que o sentido de Paulo é idêntico com
o visado pelos teólogos? O que já vimos em capítulos
anteriores sugeriria que não o é.£
Ao tratar do levantamento da história da salvação em
Km 7,7 a 8,4 (supra p. 43), observou-se que Paulo predica
"vida” de Adão antes da queda (Rm 7,9). Adão, como saiu
• las mãos do Criador, era precisamente o que Deus visava
que fosse. Era essa sua condição “natural” ou “normal”.
Tudo o que Adão possuía antes da queda era natural à
humanidade. Este estado natural foi recriado em Cristo
< Km 8,2), e vimos a insistência de Paulo em que Cristo era
n norma da humanidade. Essas observações tornam claro
que I ‘aulo e os teólogos vêem o que é “natural” de diferentes
perspectivas. Os teólogos tomam o estado decaído da
humanidade como sua condição natural e, em consequên­
cia, são forçados a considerar a “vida” trazida por Cristo
como dom sobrenatural. Paulo, por outro lado, uma vez
que começa, não da humanidade como ela é atualmente,
mau da intenção divina, vê o estado decaído como a
| condição natural da humanidade. A restauração do estado
em í Iristo é dom, mas para ele nada de sobrenatural está
euvolvido./Cristo em sua humanidadejé precisamente o
que Deus visou desde o início, não mais nem menos.
"Vidn” no sentido paulino é, portanto, não graça que eleva
i mifurczã humana a nível nqais^êlêvado, mas simples,-
meiiie o natureza humana emjUAa perfeiçaõy\
~t) que entende entaoPãíãlopeloterrno correspondente
"morte”? Longe de ser o estado natural da humanidade,

73
como pretendem os teólogos, nossas observações prece­
dentes permitem-nos afirmar imediatamente que ele
denota estado não-natural. Se “vida” é a palavra paulina
para a condição normativa da humanidade, então “morte”
visa evocar uma condição anormal. 'Se aqueles que estão
“vivos” são verdadeiramente humanos,-êntãolãgueles que
estão “mortos” são subumanos.

aproximação existencialista à humanidade

A sugestão segundo a qual Paulo considerou grande


segmento da raça humana como subumana é tão estra­
nha que exige ulterior explicação. Temos de perguntar por
que adotou este modo de ver, e a resposta torna-se clara
uma vez que reconhecemos que esse modo de se achegar
à humanidade aproxima-se muito de perto ao do
existencialismo moderno. A primeira vista, pode parecer
anacrônico pretender que a filosofia de Paulo era a do séc.
XX, mas é agora admitido que o existencialismo tem suas
raízes nos mesmos inícios da reflexão humana. Paulo não
era heideggeriano nem seguidor de Kierkegaard ou Sartre,
mas seu tratado básico da natureza humana era paralelo
ao deles e, em conseqüência, as categorias que desenvol­
veram são de grande ajuda para nos capacitar a captar o
que visava.
O ponto de partida_êxjstencialista é fenomenológico. -
Começa com a realidade como observada, mas nem todos
os segmentos da realidade têm o mesmo valor. A distinção
básica é entre coisas e pessoas. Çoisas são aquelas reali­
dades que podem ser agrupadas numa classe sem fazer
nenhuma violência às unidades individuais. Assim, co­
nhecer uma bola de futebol é conhecer todas as bolas de
futebol. Do conhecimento do comportamento de uma bola
de futebol, pode-se predizer a “performance” de todas as

74
mitras bolas de futebol em circunstâncias idênticas. Se a
lioln tle futebol A lançada com força X na condição de vento
V voa em certa trajetória, todas as outras bolas de futebol
lançadas com a mesma força nas mesmas condições de
vimto voará precisamente na mesma trajetória. Isso não
valo das pessoas. Conhecer a reação do indivíduo A em
iluda situação não é nenhuma base para predição
i oncernente à reação do indivíduo B em precisamente a
mesma situaçãofA razão disso é que a pessoa goza de um
I ipo mais complexo de ser que a coisa. Seu ser está sujeito
a modificação de uma forma que o ser de uma coisa não
yntá.ry
A consideração existencialista concentra-se, portan-
lo, na pessoa antes que na natureza em geral, e está tão
impressionada pela diferença entre pessoas e coisas que
no recusa a definir a pessoa de qualquer forma que possa
parecer colocá-la em relação com o mundo não-humano.
I . .11 ocorre quando, por exemplo, a pessoa é definida como
animal racional, porque essa definição toma a pessoa
ramo apenas uma espécie dentro de uma categoria genérica
ipio inclui coisasíyEste existencialismo é mais fiel à visão
bíblica que, ao definiras criaturas humanas como “a
imagem de Deus”, opera radical clivagem entre a pessoa
c o resto da realidade criada. Esta, devemos esperar, seria
linnbém a consideração de pastor tal como era Paulo,
porque o seu interesse visa às pessoas e não às coisas/ '
Em sua observação da pessoa, a consideração
existencialista reconhece que o indivíduo muda continu­
amente. Toda nova situação significa uma experiência
cuja conseqüência é mudada. O indivíduo que passou por
uma guerra, ou uma doença grave, ou um caso de amor,
não é a mesma pessoa depois como antes. Daí, o
existencialismo é forçado a definir a pessoa, não em
lermos estáticos fechados, mas de maneira de finalidade
aberta que leva em conta este fato de experiência. Modi­
ficações, porém, são introduzidas por uma situação vivida
somente à medida que as implicações da situação são
conscientemente assimiladas e então aceitas ou rejeita­

75
das. Reflexão e escolha são essenciais. O existencialismo
define, em conseqüência, a pessoa como possibilidade
determinada pela decisão. Palavras mais gráficas são
fornecidas por estudioso do séc. XV, Giovanni Pico delia
Mirándola, que descreve Deus dizendo ao homem: “Tu,
como um juiz indicado por ser honorável, és o modelador
e fazedor de ti mesmo; tu deves esculpir-te em qualquer
forma que prefiras”. (.Oration on the Dignity ofMati, trad.
A. R. Caponigri, Chicago, 1956, 4-5)¿j\pessoa é entidade
que pode dar-se a si mesma diversas orientações por meio
das escolhas que faz. Como resultado dessas decisões, a
pessoa pode existir em diversas formas, C,
O tipo de decisão que uma pessoa pode fazer é limi­
tado pela estrutura do seu ser. Nenhum ser humano pode
lançar-se do topo de um edifício de vinte andares sem
nenhum equipamento e decidir voar ao chão. Igualmente,
ninguém pode decidir ver através de uma parede de tijolo.
Por outro lado, da divisão fundamental na realidade,
nenhum animal pode decidir escrever um livro. Daí, o
existencialista afirma que cada tipo de natureza é cons­
tituído de um leque fixo de possibilidades. O escopo
atribuído à pessoa é muito maior que aquele que se atribui
ao animal, mas não é infinito.
Este leque de possibilidades serve como critério pelo
qual os existencialistas julgam as decisões que a pessoa
faz, pois nem todas as decisões são do mesmo valor.
Algumas decisões tornam a pessoa autêntica, criam sua
verdadeira identidade, ao passo que outras fazem a pes­
soa inautêntica, porque nelas o verdadeiro eu se perde.
Em outras palavras, a pessoa existe auténticamente se
suas decisões atuam as possibilidades dadas com o seu
ser. Se falha em atuar estas possibilidades, ela existe
mautenticamente. t\
Até este ponto, todos os existencialistas estariam no
essencial de acordo, ainda que suas formas de expressão
se diferenciassem largamente. Mas no momento em que
alguém perguntasse quais são precisamente as possibili­
dades distintivas dadas com a natureza humana, cessaria
i» consenso. Para o cristão, isso dificilmente surpreende,
porque a humanidade, que é o objeto da análise
ienoinenológica, é defectiva. Não é a natureza humana
como tal, mas a natureza humana decaída. Ao recusar
admitir isso, os filósofos se lançam a descrições de autentici­
dade cuja variedade é indicativa de sua subjetividade e cujo
conteúdo evidencia desespero mais do que esperança.
Paulo, porém, estava isento desta triste situação. Por
nua compreensão da revelação tal como se focaliza na
liuinaniade de Cristo, estava convencido de que a
criatividade com respeito aos outros era a possibilidade
distintiva da natureza humana¿A criatura humana foi
I razida ao ser justamente para exercer amor carregado de
imergia que haveria de capacitar os outros a serem cria-
livos na mesma ordem de ser. Os que falham em atuar
essa possibilidade não existem como Deus pretendeu que
existissem. Neste preciso quadro de referência, eles po­
dem ser ditos não-existentes. Essa é uma aproximação
bastante próxima do que o semita entenderia por morte.
Morte não era aniquilação, mas a antítese da vitalidade e
do movimento que caracterizavam os viventes. Os mortos
oram apenas sombras de seus antigos eus ativos. Para
I *aulo, os que não amavam eram nada daquilo que podiam
o deviam ser, e ele simplesmente carregava essa noção até
os limites do realismo, ao proclamá-los “mortos”? É tam­
bém provável que por essa escolha do termo Paulo visasse
I nsinuar que aqueles que tinham optado pela in autenticidade
ii ao podem, sem ajuda, mudar oseusíaíus; os mortos são sem
poder para se ajudarem a si mesmos.
Se os verdadeiramente humanos são aqueles que
atuaram a capacidade de amor criativo inserido em seu
aor, então os que falham em atuar essa potencialidade são
nao-humanos, ou subumanos. Reação instintiva contra
essa conclusão é inevitável. Diz-se que ela tem ressaibos
de filosofia nazista. Levanta-se a objeção de que parece
reduzir a maioria da raça humana ao nível de “coisas”.
Este, de fato, não é o caso, porque inserida em seu ser está
ii permanente possibilidade dese tornarem autenticamente

77
1

humanos. Isso nunca é verdade das “coisas”, porque


somente as pessoas têm a capacidade de modificar o seu
modo de ser. Todas essas expressões da reação portam a
aura de sã respeitabilidade, mas a reação não está
enraizada na atitude de caridade para com outros. É
baseada no medo do desafio que/mediatamente nos con­
fronta, se a conclusão for aceita. E confortante pensar que
todos os que caminham eretos sobre duas pernas e falam
são humanos, e acreditar que a humanidade está dada. E
desconcertante e perturbador descobrir que a humanidade
é de fato algo a ser conseguido, que o único caminho para
esta meta é o esforço continuamente criativo voltado aos
outros. Essa exigência nos amedronta, e nos esforçamos
para transformar o nosso medo em algo socialmente
aceitável, tomando uma posição sobre a dignidade do
homem.
¿'.A atitude de Paulocondena nossacomplacência e
explica a urgência tremenda-cme sentiu em seu apostolado.
Levar o amor criativo de Deus em Cristo a outros não era
um extra gratuito. Era a única maneira de restituir às
pessoas a dignidade da humanidade autêntica- Ele não
viu nenhuma distinção entre cristianismo e humanismo,
porque a única maneira de ser autenticamente humano
era por Cristo. Para sair do estado subumano de “morte”
para a “vida”, ã~pessoa deve receber o amor criativo de
Cristo, e essa possibilidade é percebida somente por
aqueles que exercem a mesma criatividade em benefício
de outros. ■ .

Semelhança

Uma vez que vimos que a natureza humana pode


existir em duas modalidades distintas (que Paulo designa
“vida” e “morte”), torna-se possível entender o que Paulo

78
I

It-'I 'I' ti comunicar ao sugerir a diferença entre Cristo e o


I«1»1' 'ft raça humana. E o que se manifesta em duas
, , mI‘h: “Deus... (enviou) o seu próprio Filho na seme-
ii....... I «In carne pecaminosa” (Rm 8,3) e: “Tendo-se torna-
i|n - - ti iiK^lhança de homens, e tendo sido encontrado na
o, ui a como homem” (FI 3,2).
I in mnbos os textos parece haver curiosa hesitação
11/re icdondamente que Jesus era homem.iNa heresia
In,estos textos receberam grande preeminência por-
i|in pncociam apoiar a pretensão de que Jesus não era
11 I ilndeiramente homem: ele possuía meramente a apa-
...... ui de homem, sem ser homem realmente. Que isso
....... cu intenção de Paulo é claro de suas afirmações que
I. ui i "nasceu de mulher” (G1 4,4), que ele “descendia da
i i, ii ilo Davi segundo a carne” (Rm 1,3) e que possuía
• "i pn de carne” (Cl 1,22).
Existe matiz nestes dois últimos textos que indica o
i iilndciro rumo do pensamento de Paulo. Falam de
, ui lie", ao passo que a passagem que usa “semelhança”
i ,i i do “carne pecaminosa’^iQra/carne” é termo ambíguo
Hu Icxico de Paulo. Pode ser tanto descrição neutra da
dimensão física da existência humana como pode conotar
hllgiunento negativo de valor com referência à qualidade
I i exisl ência. Qúando Paulo diz que Jesus tinha “corpo de
i . ..... ’’, ou que ele era judeu “segundo a carne”, simples-
ineiite evoca a dimensão física de sua existência.(“Carne
|n . iiiiinosa”, por outro lado, implica claramente julga -
IIi ento negativo de valor, e a ênfase de Paulo é que, embora
I ui d il liando da facticidade da existência humana, Jesus
uno caiu sob o julgamento de valor ligado àquela existên-
i tu por causa do pecado humano.
Apoio para essa interpretação fornece-o 2Cor
II: “Aquele que não conhecera o pecado, Deus fez peca­
do por causa de nós”. Para entender essa afirmação
corretamente devemos refinar o nosso conceito de pecado
ilo tal sorte que entre em linha com o de Paulo. Para nós,
pecado nada tem a ver com a “humanidade”, porque todos
nós com muita freqüência entendemos pecado em contexto

79
estritamente legalístico. É ato ilegal que arrasta sobre
nós a ira do legislador (Deus) e nos torna dignos de
punição. Se o ato tem algum efeito sobre nossas pessoas é
o papel que ele exerce na criação ou no reforço dc mau
hábito. Para Paulo, o efeito do pecado era muito mais
profundo. “Se eu faço o que não quero, já não sou eu que
ajo, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7,20)/Pecado
é a alienação do eu autêntico. É rejeição da humanidade
para a qual foi feita a criatura humana, ou como Paulo o
coloca mais graficamente: “O salário do pecado é a morte”
(Rm 6,23), isto é, o efeito do pecado é produzir não-
existência no sentido explicado na seção anterior.;A esta
altura, mas ao nível muito mais profundo, reencontramos
a idéia de pecado como alienação de Deus que integra a
visão cristã. John Macquarrie formula a relação com sua
costumeira clareza:

A medida que o homem decai de seu verdadeiro eu, ele decaiu


também do ser que Deus lhe deu. Está, pois, negando a Deus e se
rebelando contra Deus, cujo mandamento é vida — ou seja, a
existência autêntica para a qual foi criado (Rm 7,10). Alienação
de Deus segue à alienação do eu autêntico 64« Existencialist
Theology, Londres, 1965, 109).

¿(Pela perspectiva de Paulo, portanto, dizer que Jesus


não pecou ao passo que outros o fizeram, é equivalente a
dizer que Jesus não existiu da mesma maneira que eles.^
O seu uso da frase “à semelhança de” é totalmente justi­
ficado porque Jesus estava “vivo”, ao passo que outros
estavam “mortos”. John Knox hesita em ir tão longe e está
inclinado a achar erro em Paulo porque “pecado... perten­
ce tão inseparavelmente à humanidade real”, pelo que
quer dizer que o pecado é “algo na atual natureza do
próprio gênero humano”. Com efeito, pois, ao dizer que
Jesus era sem pecado, Paulo “se acha introduzindo, talvez
sem intenção disso ou mesmo sabendo que estava fazendo
assim, uma alusão à irrealidade da carne” {TheHumanity
and Divinity ofChrist, pp. 50-52). Isso, com certeza, não

80
”• Hi»|>uc absolutamente. Knox lançou-se em impasse
Calhou em distinguir entre os níveis ontológico e
"•illen da natureza humana, e admite que Paulo fala do
nível mitológico quando de fato está interessado somente
", d i ml ico. O nível ontológico é constituído pelo leque
iln pimnibil idades que compõem a natureza humana,, e
i ■ nível Jesus é absolutamente idêntico com os outros
■ I" i•.• i iero humano/A diferença por que se interessa Paulo
• ni no nível ôntico, o domínio da existência real em que
• ii mu possibilidades surgem atualizadas ou não-
ii I HiiI izaclas. O pecado, por comum que possa ser, não está
Implicado na estrutura ontológica da natureza humana.
I iiieramenteuma das opções abertas à criatura humana.
I hiui vez que isso se reconhece, fica imediatamente evi-
• I• iilc que é possível haver um indivíduo perfeito, ou seja,
n||;iiein cuja existência real não está desordenada pelo
prendo./Se Cristo não tivesse sido “diferente”, jamais
poderiamos convencer-nos de que o modo de existência
manifestado pelo mundo não crn a única opção aberta à
limminídade. •'

Humanidade e ressurreição

A essa altura, torna-se possível tratar de outra afir­


mação feita por Knox e que reflete consenso bastante
a iiipio entre os estudiosos de Paulo. Ele retém que “Jesus
tornou-se o Novo Homem na ressurreição” (o.c., p. 84).jA
implicação imediata deste modo de ver é que durante o
Imnpo de sua vida terrena Jesus não exibiu a perfeição da
natureza humana.lsso nunca está claramente afirmado,
mas as insinuações sutis são numerosas. E óbvio que o
modo de ver de Knox está condicionado pelo que admite
(fato notado acima) com respeito à não-pecaminosidade
de Jesus e, em vista do que foi dito, podemos passar sobre

81
este ponto. Em parte, a posição de Knox está baseada na
afirmação paulina segundo a qual Cristo ganhou algo por
sua ressurreição. O Apóstolo pretende que Cristo foi
“constituido Filho-de-Deus-em-poder” (Rm 1,4) e que ele
“se tornou um espírito doador de vida” (ICor 15,45). Se a
sugestão segundo a qual Cristo atingiu a humanidade
perfeita somente como conseqüência de sua ressurreição
deve ser rejeitada, então uma explicação alternativa deve
ser proposta para essas afirmações.
xQs textos que apresentam Jesus como a incorporação
da humanidade autêntica são muito claros para serem
ignorados, e vimos que para Paulo essa autenticidade
chega a suas expressões mais claras na morte de Cristo.(
O problema, pois, é explicar como Paulo pôde falar de
aumento de poder depois da ressurreição. A resposta deve
ser encontrada na convergência de várias linhas de pen­
samento.
O próprio conceito de ressurreição envolve tanto
perda como restauração. Isso está claramente formulado
numa das mais antigas afirmações judaicas referentes ao
significado da ressurreição: “O criador do mundo que
formou o homem em seu nascimento e deu origem a todas
as coisas, é quem vos dará de volta o espírito e a vida, uma
vez que agora fazeis pouco caso de vós mesmos, por amor
às suas leis” (2Mc 7,23). Toda ressurreição é, pois, em
sentido muito real, um ganho.
Deve-se também reter que o único Jesus que Paulo
conhece é o Cristo Ressuscitado, e não é ir além dos limites
de possibilidade razoável presumir que Paulo viu diferença
entre o que Jesus atingiu durante o seu ministério terreno
e o que atingiu no período pós-pascal. A possibilidade é
reforçada pelo que sabemos de seus contatos com a igreja
de Jerusalém (G11,18-19; 2,1-10). A comunidade crescen­
te de Jerusalém, para não dizer nada do próprio sucesso
de Paulo, ter-se-ia situado em saliente contraste com os
Onze e as mulheres que se entregaram a Jesus durante o
período de sua vida terrena. A inferência natural a se tirar
destes fatos era que houvera aumento no poder de doar

82
"viiln” de Cristo, e isso haveria de aparecer inevitável a
nlgiiém habituado a pensar no padrão do Antigo Testa­
mento de humilhação e recompensa, padrão que se ma-
nllbsta claramente em F1 2,6-11 e lTm 3,16.
A reviravolta na evolução só podia ter sido a ressur-
i olçiio, e se deve recordar aqui que Paulo não faz nenhuma
illiil inção radical entre a morte e a ressurreição de Cristo:
t iisto viveu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos
vivos” (Rm 14,9; cf. 4,25; 2Cor 5,15). Dentro do quadro do
pnnsamento semita, a ressurreição era necessária, se o
iitnor doador de “vida”, que fora focalizado em sua mais
nlln intensidade no ato de morrer de Jesus, devia ser
pmnanentemente eficaz.
Essas três linhas de pensamento convergem para
mostrar como Paulo pôde falar como falou. Elas revelam
i|Ue não existe nenhuma contradição intrínseca entre o
ipie se disse com respeito à morte de Cristo como a
Miprema expressão da atitude dominante de sua vida e o
111 nceito de ressurreição com a restauração da humanidade
itlrnvés da ressurreição com o seu poder aumentado de
iImir “vida”/\Um ponto final deve ser frisado. Se é possível
1'H.i outros seres humanos atingirem a humanidade
lilitóiitica dentro do quadro de um mundo pecador, não há
imiihuma razão para negar que Cristo o tivesse feito, e de
lido o fez, mesmo antes de sua ressurreição. E a esse
iwpccto que devemos nos voltar agora.f.

A glória de Deus

( Já tivemos ocasião de notar que, de acordo com a


11 m lição judaica, “a glória de Deus” era uma qualidade que
Atlao perdeu como consequência de seu pecado (p. 44).'Isso
dirigo nossa atenção para uma série de textos em Paulo
ipio nem sempre recebem a atenção merecida.

83
Falando dos que estão “mortos”, Paulo diz: “Todos
pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm
3,23). Os que estão “vivos”, ao invés, são classificados
como “a imagem e glória de Deus” (ICor 11,7). A estranhe­
za dessa linguagem fica um tanto aliviada quando reco­
nhecemos que o genitivo pode ter dois significados bastan­
te distintos. Por um lado, pode ser genitivo subjetivo e
neste caso “glória de Deus” significaria a glória pertencente
a Deus. Este é o sentido normal no Antigo Testamento,
onde a frase denota os concomitantes visíveis da presença
divina. Por outro lado, o genitivo pode ser objetivo e neste
caso “glória de Deus” significaria a glória dada a Deus.
Somente este último sentido se adapta ao contexto dos
textos de que estamos tratando.
Isso está particularmente claro em Rm 3,23, que só
pode significar que os pecadores são incapazes de dar
glória a Deus. O Antigo Testamento fornece um paralelo
próximo: “Um filho honra o pai, um servo teme o seu
senhor. Mas se eu sou pai, onde está minha glória? Se eu
sou senhor, onde está o meu temor? Disse Javé dos
exércitos a vós, os sacerdotes que desprezais o seu Nome”
(Ml 1,6). Um filho dá glória ou, como diríamos, honra a seu
pai por respeito manifestado na obediência. Por sua
desobediência, os sacerdotes de Israel recusam a Deus a
honra que lhe é devida. O profeta pensa dentro do quadro
fornecido pelas prescrições da lei mosaica. Isso não é
verdade de Paulo, que nunca apresenta a lei como critério.
[Os que estão “mortos” são onticamente incapazes de dar
honra a Deus, f)
A capacidade de dar honra a Deus é restaurada
somente através da fé (Rm 3,21-22), e é significativo que
o Apocalipse de Mpisés iguale “glória” com “estado de
justiça” (20,1-2). E somente enquanto restaurada em
Cristo que a humanidade não é apenas a “imagem”, mas
também “a glória de Deus” (ICor 11,7). Por essas duas
formulações, Paulo provavelmente reage contra a idéia,
prevalente em círculos judeus, de que o conceito de “ima­
gem de Deus” primariamente se relacionava com

84
pulmcialidadeJEle acrescenta a noção de “dar glória”
IH i lisa mente para evitar essa interpretação. Um produto
di'li'iliioso não reflete nenhum crédito para o seu produ-
Iiii . A criatura humana, porém, honra aquele que a fez
1111i ndo ela é o que Deus visou que fosse. “Glória”, portanto,
e sinônimo de “vida” entendida no sentido de humani­
dade autêntica. K
Como podíamos ter esperado, Paulo predica “glória”
priinariamente de Cristo (2Cor 3,18; 4,4; 2Ts 2,14), por­
que ele é o exemplar de humanidade autêntica. Ele é a
primeira criatura humana desde a queda a dar perfeita
honra ao Criador simplesmente por ser o que ele era, e por
cousa dele outros indivíduos podem adquirir este status.
A (is lessalon icenses Paulo diz: “Para isso Deus vos chamou
por meio de nosso evangelho, para que obtenhais a glória
de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2,14)L4A meta do
evangelho é permitir à raça humana atingir a humanidade
autêntica. Uma vez que os tessalonicenses aceitaram esse
chamado, já estão na posse da autenticidade:»Essa posse
<• real mas incoativa e progressiva, como Paulo o frisa aos
rui íntios: “Nós todos com face descoberta contemplando a
glória do Senhor somos transformados na mesma imagem
de glória em glória” (2Cor 3,18). Temos aí uma associação
de “imagem” com “glória”, o que também ocorre em ICor
I 1,7, mas o pensamento é aprofundado à medida que
Paulo sublinha a relação entre a humanidade autêntica
de Cristo e a dos fiéis/Ãceitação_daJiumanidade de Cristo
cdino modelo e norma é o início do processo, e é isso que
I ’aulo pretende sugerir pela alusão à contemplação^ Mas
cnnteinplãçãõ”s'ó-hãõ“ e suficiente. Mudança real deve
ocorrer. Eles devem ser “conformados à imagem do seu
Pilho” (Rm 8,29), e tal conformidade acontece somente
mediante imitação: “Vós vos tornastes imitadores de nós
er/o Senhor” (lTs 1.6); “Tornai-vos meus imitadores, como
eu sou imitador de Cristo" (ICor ll,l).\Trata-se de modo
de ser, de padrão de comportamento, como Paulo frisa,
expressamente: “Exorto-vos, portanto, sede meus imita­
dores. Foi em vista disso que vos enviei Timóteo... ele vos

85
recordará minhas normas de vida em Cristo” (ICor 4,16-
17),'A medida que o seu comportamento expressar o amor
criativo que distinguia a humanidade de Cristo, os cren­
tes possuirão a “glória”. Eles dão crédito ao seu Criador.
O interesse de Paulo pela realidade (enquanto oposta
à mera teoria) evidencia-se na frase “de glória em glória”.
A perfeição da humanidade é inaugurada pelo ato da
conversão, mas com ele ainda não é possuída plenamente.
Paulo reconhece que os crentes devem e podem crescer no
amor (F1 1,9), e uma vez que o amor é a pedra de toque da
autenticidade, todo aumento de amor significa aumento
de autenticidade. Paulo foi forçado a essa conclusão pela
experiência das comunidades pelas quais era responsável.
A decisão pela “vida” é uma rejeição absoluta do modo de
ser que ele chama de “morte”, mas ao nível da vida prática
há com muita freqüência desvio, porque as atitudes e os
padrões de comportamento característicos da “morte” não
são erradicados por decisão singular contrária¿^utenti-
cidade real, em conseqüência, é questão de luta contínua,
e numa última seção teremos que discutir as condições
que tornam a vitória possível. •

A essa altura, duas questões surgem naturalmente.


Quais são as estruturas da “morte”, e quais as estruturas
da “vida”? Em outros termos, quais são as manifestações
concretas dos dois modos de ser abertos à criatura huma­
na? As duas partes que seguirão apresentam a resposta de
Paulo a essas questões. Os pormenores, que vêm à luz ao
se enfrentarem essas questões, esclarecerão o que já foi
dito, mas parece apropriado tentar sintetizar aqui as
intuições que conseguimos até o momento.
Ser humano é ser criatura, e assim necessariamente
existir em relação de dependência com o Criadorl.As
criaturas humanas, porém, não são fixadas no seu ser

86
como o são os animais. Não existe nenhum progresso
automático no modo de ser querido pelo Criadoçôp ser das
criaturas humanas é tal que elas podem se dar a si
mesmas diversos modos de existência. Tornam-se o que
Mcòlherem tornar-se, e essa escolha situa-se sob duas
opções fundamentais: “vida”, que é humanidade autêntica,
o “morte”, que é humanidade espúria, Adão um dia pos­
an iu a humanidade autêntica, mas a perdeu e, até Cristo,
Iodos partilhavam dessa perda. A humanidade verdadeira
entrou de novo no mundo na pessoa de Jesus Cristo; em
sendo assim, deve ser a base de toda antropologia cristã
genuína. O que foi distintivo na humanidade de Cristo foi
o amor criativo que realizou plenamente a intenção divina
ao criar os seres humanos à imagem de Deus. A realidade
deste amor, cujo poder Paulo sentiu em sua própria
pessoa, forçou o Apóstolo a constatar que a essa possibi­
lidade inserida no ser humano não se dava nenhum lugar
na compreensão de seus contemporâneos sobre o que
h ignifica ser humano. Sua visão era limitada pelos padrões
de comportamento que eram capazes de observar e, em
conseqüência, aceitavam como normais atitudes que es­
tavam em radical contradição com a criatividade que
I ’aulo via em Cristo.fSua consciência da historicidade da
humanidade de Cristo capacitou a substituir os critérios
de seus contemporâneos com nova visão do que a criatura
humana podia e devia tornar-se. Estava convencido de
nao estar propondo idéia utópico porque houve alguém
q ue o tinha de fato vivido e desse modo morrera. Constatou
que para ser como Cristo foi, a natureza humana precisava
ser capacitada para tanto, mas esse amor se tornou
disponível no amor de Cristo. O único caminho para a
ibrma de humanidade desejada pelo Criador jazia em se
entregar a esse amor.1*

87
LEITURAS SUGERIDAS

Nélis, J., “L’antithèse littéraire zoe-thanatos dans les épitres pau-


liniennes, cm Ephemerides Theologicae Lovanienses 20 ( 1943), 18-35.
Thomas, R. W., “The Meaningof'Life’ and ‘Death’ in the Fourth Gospel
and in Paul”, em Scottish Journal of Theology 21 (1968), 199-212.
Macquarrie, John, An Existentialist Theology, SCM, Londres, 1965,
cap. 2.
Id., Existentialism, World Publishing Co., Nova York, 1972, cap. 3.
Coppens, J., “La gloire des croyants d’après les lettres pauliniennes”,
em Ephemerides Theologicae Lovanienses 46 (1970), 389-392.

88
II PARTE

A SOCIEDADE
O PECADO E O MUNDO

Um livro com o título Pagão e cristão numa era de


iimiit’dade dá a impressão de que deve haver conluio para
combinada em face dos numerosos problemas pro-
iliilores de ansiedade que confrontam nossa geração, a
< un ida armamentista com sua propensão para a guerra
nuclear, falta de alimentos, explosões raciais. O seu
,nitor, E. R. Dodds, é, de fato, historiador e interessa-se
pelos primeiros três séculos de nossa era. Ele tem pouca
dificuldade em mostrar que, a partir do scc. I d.C. em
diante, uma visão profundamente pessimista de huma­
nidade penetrou as diversas culturas do Mediterrâneo
oriental. Havia profunda sensação de que algo ia mal, o
que, quando ligado à admissão da responsabilidade hu­
mana, produzia sentimentos de culpa bastante difusos.
Uma vez que estes não eram focalizados em nenhum objeto
I occiso, dava origem ao sentimento de futilidade, uma vaga
convicção de que a atividade humana não tinha nenhum
sentido real, aquilo que era “absurdo” no sentido de Camus,
que tomou Sísifo como o símbolo do gênero humano — um
herói mítico condenado a passar seus dias rolando uma
i ocha para o cume de um monte somente para vê-la sempre
encapar de novo de sua garra e cair de volta ao sopé.
()s judeus reconheciam o mesmo problema, mas,
pisque criam no Deus que controlava a história, sua
resposta era de esperança resignada? Sua esperança do
advento de um Messias dava-lhes a força para levar as
coisas avante, mas eram tão pessimistas como os seus
vizinhos gentios quanto à possibilidade de mudar a con-

91
dição humana surgida de dentro da situação histórica.
Somente Deus podia criar um mundo novo onde a huma­
nidade seria como o Criador desejava.
Paulo, portanto, não carecia da figura de Cristo para
torná-lo consciente de que a situação humana estava
distorcida e dividida. Essa consciência lhe era comunicada
pelas duas culturas com as quais entrou em contato, e as
condições nas cidades portuárias em que trabalhava di­
ficilmente conduziam a uma visão favorável da natureza
humana. Sua convicção de que a humanidade decaíra não
tinha nada a ver com Cristo. No entanto, sua análise deste
estado decaído está relacionada com sua compreensão de
Cristo de dois modos. Em primeiro lugar, a possibilidade
de existência revelada na humanidade de Cristo deu-lhe
um instrumento que lhe permitiu selecionar e iluminar os
fatores-chave que contribuíram para a atual condição da
humanidade. Onde outros viam tanto erro que não sabi­
am por onde começar, ele era capaz de estabelecer uma
hierarquia nas causas que produziam as condições que
observa va^jEmsegundo lugar, a perspectiva concedida a
ele por Cristo forçou-o a alinhar os judeus com o resto da
humanidade, e a negar a posição privilegiada que eles
pretendiam para simesmos. í.

A humanidade como “morta”

Já tivemos ocasião de falar do levantamento que


Paulo fez da história da salvação em Rm 7,7 a 8,4, mas
naquele momento o nosso interesse voltava-se para o
primeiro e o terceiro estágios que mostravam a relação de
Adão e Cristo com a “vida” (cf. p. 43). O segundo estágio
(Rm 7,14-24) descreve de forma muito gráfica a situação
da humanidade antes da vinda de Cristo, e é a esse que
agora nos voltamos porque ele revela os elementos-chave

92
. n11-11 l urais do estado de “morte”. Ao se ler essa passagem,
■ preciso ter em mente que o “eu” representa não simples
Indivíduo, mas a humanidade. E recurso literário para
produzir quadro mais dramático. Conseqüentemente, a
piiHsagem não pode ser entendida como exercício de
Inlrospecção psicológica^Paulo está interessado com as
angústias e máculas da existência humana, p
Os que estão “mortos” são apresentados como estan­
do cm estado de intolerável tensão. Existem no ponto focal
de tendências radicalmente conflitantes. Não é como se
duos partes diversas da personalidade humana estives-
iiein em guerra mútua, uma parte superior (simbolizada
pelo “homem interior”, “mente”, “vontade”) oposta a uma
porte inferior (simbolizada por “carne”, “pecado”). Ao invés,
lemos de um lado o desejo da humanidade de autenticidade,
o inclinação de um ser criado para ser o que o Criador visou.
"Querer” é dirigido para a “vida”. Este instinto, porém, é
cavalgado por uma estranha orientação que redunda num
"Cozer” que leva à “morte”. “Não faço o bem que quero, mas
pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero,
jn não sou eu que estou agindo, mas sim o Pecado que
liabita em mim” (Rm 7,19-20). Todo o esforço da humani­
dade culmina na perda de sua verdadeira identidade: o “eu”
n ao mais existe; foi totalmente alienado. A humanidade tem
a sensação de não mais estar em controle de seu destino. A
Insistência de Paulo neste ponto é notável, pois a última
parte do versículo há pouco citado é mera repetição do v.
17: “j á não sou eu que estou agindo, mas sim o Pecado que
habita em mim”. A futilidade do esforço humano é ilu­
minada pelo terrível espanto das palavras: “Não entendo
minhas próprias ações” (v. 15). A humanidade sente-se
condenada a uma espécie de escravidão; foi “vendida sob
o Pecado” (v. 14)/T) quadro é estarrecedor, A raça humana
surge como uma sociedade de bonecos manipulados por
uma força que Paulo chama de Pecado.
A questão que surge desta descrição é: o que é pecado?
Mas antes de tentar responder, vale a pena sublinhai’
< pião acuradamente Paulo sentiu o mal-estar que afeta a

93
humanidade e quão relevante é sua descrição para os nossos
dias. A ansiedade inominada que permeia o nosso mundo
está enraizada no sentimento sem esperança de que as
coisas foram longe demais para serem trazidas de volta ao
controle.; Os desdobramentos foram demasiado velozes e
demasiado difusos para o sistema nervoso humano poder
sustá-los com êxito. A sensação de ser manipulado por forças
que não podem ser especificadas acuradamente deu origem
a uma frustrada inquietude cujas múltiplas expressões —
revolução violenta, uso de drogas, doença mental — so­
mente intensificam a sensação de estar perdido.

O pecado e o mundo

A afirmação de que “todos os homens, judeus e gregos,


estão sob (o poder do) Pecado” (Rm 3,9) imediatamente
sugere que por Pecado Paulo quer dizer algo diverso dos
pecados pessoais dos indivíduos. Essa impressão confir­
ma-se por toda uma série de passagens em que o Apóstolo
atribui atividades pessoais ao Pecado. Ele “entrou no
mundo” (Rm 5,12) como ator entrando no palco e “reina”
aí (Rm 5,21; 6,14) como tirano brutal que “escraviza” a
humanidade (Rm 6,6.17.20; G13,22) ou que a compra para
o seu serviço (Rm 7,14). O Pecado paga salários (Rm 6,23)
aos que se submetem à sua lei (Rm 7,23).
O Pecado, portanto, é um símbolo. Mas de quê? A
primeira possibilidade que ocorre à mente é que o Pecado
não passa de outro nome para Satã de que Paulo fala às
vezes(Rm 16,20; lCor5,5;7,5;2Cor2,11; 11,14; 12,7; lTs
2,18; 2Ts 2,9). Essa hipótese, porém, não tem nada para
recomendá-la. Não só Paulo nunca faz essa identificação,
mas também a linguagem que ele usa quando fala de Satã
é bastante diversa daquela que emprega falando do Peca­
do. Mais significativamente, quando fala de Satã é sempre

94
i i'lnl ¡ vo aos quejá são crentes, e ele nunca evoca essa figura
pum explicar a condição da humanidade antes de Cristo.
| A chave de que Paulo tinha em mente é fornecida pela
irlnçno que ele estabelece entre o Pecado c a responsabi
lldude humana:,“Portanto, assim como o Pecado veio ao
mundo através de um só homem e a morte através do
Pecado, também a morte se espalhou a todos na medida
rio que todos pecaram” (Rm 5,12). O pensamento deste
versículo é extremamente condensado, e é complicado
pelo fato de que Paulo usa aí “morte” em dois sentidos. O
primeiro sentido é o de existência inautêntica, mas asso­
ciado com isso está a morte física que é sua conseqüência.
De mais a mais, Paulo está fazendo duas afirmações
diversas: (1) Adão foi responsável pelo modo inautêntico
do existência humana no mundo (“morte”) por-causa de
i leeisão pessoal oposta à vontade do seu Criador (“pecado”)
que teve amplas implicações para todos os outros mem­
bros da raça humana (“Pecado”). (2) Todos os membros da
i nça humana são responsáveis pelo modo inautêntico de
nua própria existência (“morte”) porque realizaram a
condição requerida, a saber, decisões pessoais opostas à
vontade do seu Criador (“pecado”).
O fato de Paulo justapor estas duas afirmações facúlta­
nos supor que existe alguma relação entre elas, mas a
lintureza dessa relação não é especificada além do fato de
que os dois casos são semelhantes (“assim como... tam­
bém”). Todavia, a situação dos que vieram depois não é
Idêntica à de Adão, porque este introduziu na condição
humana algo que não existia antes.6Da letra do texto, jé
Indo o que podemos tirar. Uma visão um tanto mais clara
nr nos fornece se reconhecermos o fundo desde o qual
Paulo está escrevendo./^
O primeiro e talvez o mais crucial ponto é que Paulo
em sua primeira afirmação faz uma escolha entre as
explicações da origem do mal correntes em seus dias.
I'lram três. Segundo a primeira, que se baseava em Gn 6,1-
I, o mal entrou no mundo como conseqüência do intercurso
desnatural que anjos rebeldes tiveram com mulheres. O

95
segundo, com base em Gn 8,21, sustentava que Deus
tinha construído uma “inclinação má” na estrutura da
existência humana. A terceira, com certeza é a história da
queda em Gn 3. As duas primeiras teorias têm uma faceta
em comum que as distingue da terceira. Colocam a res­
ponsabilidade pelo mal fora da raça humana atribuindo-
a aos anjos ou a Deus. Isso está em radical contraste com
a narrativa do paraíso que apresenta a origem do mal
como a conseqüência de decisão humana, cuja liberdade é
frisada pelas condições sob as quais ocorre. A intenção do
mito paradisíaco é frisar que o erro original aconteceu
dentro do quadro histórico da humanidade, e a verdade do
mito não depende de Adão e Eva serem reais figuras da
história.
Assim, ao evocar a queda, Paulo se coloca conscien­
temente na~posrçãra~déqué a humanidade foi responsável
por sua própria condição triste. Ela não poderia evitar
aquela responsabilidade culpando alguma força além
dela. No tempo de Paulo, porém, havia várias opiniões
referentes à relação entre Adão e seus descendentes. E
fácil ilustrá-lo por meio de duas citações de obras judaicas
compostas na segunda metade do séc. I a.C.:

2 Baruc 4 Esdras

Pois, embora Adão tenha pe­ Um grão de semente do


cado primeiro, e tenha últi­ mal foi semeado no cora­
mamente trazido a morte a ção de Adão desde o iní­
todos, contudo daqueles que cio, e quanto fruto de
nasceram dele, cada um deles impiedade ele produziu
preparou para sua alma tor­ até os nossos dias (4,30)!
mento a vir, também cada um Ó Adão, o que fizeste!
deles escolheu para si glórias Pois, embora tenhas sido
a vir... Adão, portanto, não é a tu que pecaste, a queda
causa, senão só para sua alma, não foi tua somente, mas
mas cada um de nós tem sido também nossa que so­
o Adão de sua própria alma mos teus descendentes
(54,15-19). (7,118).

96
A diferença entre os dois textos é óbvia. Para 4 Esdras,
ii i iiça humana é planta brotada de semente podre e, em
i onseqüência, mostra os defeitos de sua origem. Labora
Molí a carga de enfermidade inerente só produtiva de
impiedade. Precisamente isso é negado por 2 Baruc, que
li luiste em que cada qual é capaz de escolher com a mesma
liberdade que Adão gozava.
Paulo não se identifica com nenhuma dessas posi-
■ i íes. Ele não podia aceitar nem o automatismo de 4 Esdras
liem a ingenuidade de 2 Baruc. Em oposição ao primeiro,
deu importância a decisões humanas individuais e negou
ii afirmação do último de que o pecado de Adão não
Introduziu nenhuma modificação na situação humana. O
Inço entre as duas afirmações de Paulo em Rm 5,12
liirnece-o o v. 19 do mesmo capítulo: “Pela desobediência
(Ir um homem, todos foram constituídos pecadores’/ftsso
presume um laço causal. A questão, pois, é: como essa
musa opera? E respondendo a essa questão que descobri-
iiios o que é Pecado.Jj
A resposta sugere-a Gênesis. A ênfase de Gn 3 é que
ii certo ponto na história da humanidade uma falsa
decisão foi tomada. Daí em diante, segundo Gn 4-11, as
coisas foram abaixo em passo sempre crescente. A descri­
ção é a de progressão geométrica do pecado. À medida que
ii humanidade se espalhava, a maldade tornava-se pro-
gressivamente mais endêmica. A impressão imediata é
que os pecadores influenciaram-se mutuamente. Crian­
ças foram condicionadas pelas atitudes de seus pais e
pndrões desenvolvidos de comportamento foram modela­
dos pelos dos antepassados, que por sua vez passaram
lidiante aos seus descendentes.
Temos evidência a partir de ICor 3,1-4 (cf. p. 35) que
Paulo pensou nestas categorias, porque a ênfase desta
passagem é o desagrado de Paulo com o modo de ver a si
próprios como humanos que os corintios tinham herdado.
Assim, parece altamente provável que Paulo concebeu o
Pecado como desorientação massiva da sociedade ou,
mais específicamente, como a poluição corrosiva de en-

97
torno corrupto. Sua perspectiva precisa foi expressa por
H. H. Rowley, se bem que não estivesse tratando do
pensamento de Paulo:

Somos todos em larga medida as criaturas de nossa era, refletin­


do o Zeitgeist de nossos dias. E esse Zeitgeist(= espírito do tempo)
não é algo que exista fora de todos os indivíduos viventes nem
meramente em grande número de indivíduos separados. Ele
inere à totalidade do todo e é operativo em maior ou menor
medida em cada um.
Ele caracteriza os nossos dias, não tendo nascido somente de
nossos dias. Ele é gerado na corrente de vida que une as gerações
anteriores à nossa... Mas se somos mais que indivíduos separa­
dos, se somos membros de uma totalidade mais ampla que abarca
o passado e o presente, isso nos reúne na corrente de sua vida
cada um de nós e opera através de nós, e então uma força
poderosa de mal pode estar na corrente da vida, derivada de
indivíduos, mas transcendendo os indivíduos, embora se encon­
trando em vários graus em indivíduos (The Relevance of Apo-
calyptic, Londres, 1944, p. 151).

•A pressão pausai que Paulo tinha_em. mente é a


exercTda pela~prèssãode~~atitudHs herdadas. Ninguém
existe em situaçao neutra. Todos os indivíduos nascem em
sociedade que os marcaTTLssa sociedade é produto do
passado êcausa Ho faturo^s que são marcados cooperam,
porque, agindo em conformidade com o condicionamento
que receberam, reforçam aquelas atitudes que descem
para a última geração com crescente vigor.
E bastante fácil reduzir essas generalidades a termos
concretos. Numa sociedade em que várias formas de
desonestidade são consideradas comportamento aceitável,
elas se tornam virtudes que são comunidades como coisa
óbvia. Numa sociedade que premia independência e auto-
suficiência, tudo concorre para impressionar os indivídu­
os com a desiderabilidade dessas atitudes. Numa socieda­
de que mede o sucesso pela habilidade de conseguir bens
materiais, todos haverão de desejar essas posses. Essa
lista pode prosseguir ao infinito. O sistema de valores

98
nceito numa sociedade exerce tremenda pressão, como
qualquer que tentar se opor pode testemunhar. O que
lodos fazem não pode estar errado, e os que protestam são
lidos como objetos de chacotas. Apenas os muito fortes
podem pensar em opor alguma resistência. A maioria
uimplesmente aquiesce e, com mais freqüência, sequer
está consciente de que é manipulada.
Quem faz a manipulação? Nenhuma resposta pode
mu- dada, porque nenhuma causa ou complexo de causas
pode se separar no sentido de carregar a responsabilidade.
Não existe ditador a ser culpabilizado. A sensação é a de
ser pego no rolo compressor de uma multidão varrida por
pânico. Ele se movimenta cegamente, sendo todos carre­
gados ao léu nas garras de forças irresponsáveis. É fácil
ver como essa sensação de ser arrastado por forças além
do controle humano podiaz se transformar na crença em
poder sobrenatural mau. E explicação que alivia a carga
de espanto e desesperança. Paulo, como vimos, rejeita
essa opção/^A inteligência, que parece estar dirigindo o
gênero humano "ha veredado mal, não passa do impulso
coletivo de amontoado de decisões individuais dissemi­
nadas através dos séculos. Para ele, a atribuição de culpa
era menos importante do que a delineação correta do
problema, porque o que lhe interessava era encontrar
solução.
Se 0 Pecado é a pressão inexorável de um falso
sistema de valores que permeia a sociedade, não estará
simplesmente no “mundo”, mas é “0 mundo”. Paulo pode
empregar esse termo para designar o universo criado em
geral (por exemplo, Rm 1,20), mas ele 0 faz de maneira
bastante rara, uma vez que a realidade material era
apenas incidental ao seu interesse/Na vasta-maioria dos
casos “mundo” significa a esfera de relações interpessoais.
A “sabedoria do mundo” (ICor 1,20) são as especulações
da raça humana, da mesma forma que o “refugo do
mundo” (ICor 4,13) são os que são tidos em desprezo por
seus companheiros. O “mundo” que Deus reconcilia (2Cor
5,19; Rm 11,15) é o “mundo” que ele julgará (Rm 3,6). O

99
emprego paulino distintivo aparece na pergunta: “Porque
viveis como se pertencêsseis ao mundo?” (Cl 2,20), uma
vez que aí “mundo” é claramente a raça humana em sua
orientação inautêntica. E, em outras palavras, o “presente
mundo mau” (G11,4). Daí, Paulo pode falar do “espírito do
mundo” que leva a entendimento equívoco da condição
humana (ICor 2,12) e — como o Pecado — pode atribuir
a ele tais qualidades humanas como sabedoria (ICor 3,19)
e tristeza (2Cor 7,10). Uma vez que os seres humanos
devem viver “no mundo” (ICor 5,9-10), eles não podem
evitar estar imersos nos “negócios do mundo” (ICor 7,32-
34) e, em conseqüência, ser arrastados pela orientação da
sociedade a que pertencem.(Como Bultmann o expressa
graficamente: “O fato sinistro é que o ‘kosmos’, o mundo
dos homens, constituído pelo que o indivíduo faz e sobre
que ele põe os seus cuidados, ganha o domínio sobre o
indivíduo .(O ‘kosmos’ vem a constituir um superego sobre
os próprios indivíduos” (Theology ofthe New Testament 1,
Londres, p. 256). Isso, com certeza, vale também do
Pecado porque se trata da mesma realidade.

Responsabilidade humana

/.Quando o Pecado é entendido como a desorientação


massiva de toda uma sociedade que se expressa em
sistema falso de valores, sua relação com o “pecar” torna-
se muito mais clara. “Pecar” é ratificar aquele sistema de
valores agindo em conformidade com eleyJDevemos agora
enfrentar a delicada questão da responsabilidade por
essas ações. Fazê-lo nos leva mais a fundo na visão de
Paulo sobre o “mundo” que ele tinha de mudar.
Existe uma carga de evidências para mostrar que
Paulo sustentava que os indivíduos eram responsáveis
por suas decisões inautênticas. O próprio uso da palavra

100
pecado” para descrever essas decisões aponta nessa
lireção, como o faz sua referência à ira de Deus (Rm 1,18;
,,22; Cl 3,6). Essa ira é provocada por “transgressões”. Os
uileus transgridem a lei explícita de Moisés, e os gentios
rnnsgridem a lei escrita em seus corações (Rm 2,12-15).
duo, portanto, “vasos de ira feitos para a destruição” (Rm
,,22). Este tipo de linguagem presume culpabilidade, que é
• correlativo de responsabilidade. Só os que são verdadeira-
neiile responsáveis podem ser considerados culpados.
- Responsabilidade, porém, implicaliberdade de esco-
lin. Os “que fazem o mal” (Rm 2,9) podem ser culpados
ipenas se são livres para fazer o bem. Tocamos aí no nó do
»roblema porque, pára Paulo, os que não se entregaram a
‘l isto na fé não são livres; eles estão “escravizados” pelo
’ecado que “reina” sobre eles. Paulo insiste muitas vezes
•ui que só os que estão “em Cristo” são livres/p que isso
i igni fica é que só os crentes estão em condições de escolher
di’l ivamente o bem/A lógica da perspectiva de Paulo é
pie todos os outros são incapazes de escolher o bem. É
'iisa, de mais a mais, a única conseqüência que se pode
irar do elemento-chave de sua teologia, a saber, que a
(Utenticidade é possível somente por Cristo. A raça hu-
niina é justificada somente pela fé (Rm 1,16 e passim), e
liiltinann percebeu perfeitamente a ênfase de Paulo ao
'iicrever que “é somente como alguém que é justo diante
lo Deus que o homem é o que deve e pode ser” (Existence
iiid Faith, Londres, 1964, p. 178).
Sendo assim, temos em Paulo duas linhas de pensa-
ilento que não convergem e que de fato contradizem-se
niituamente. Numa série de textos, os seres humanos
pie pertencem ao “mundo” são considerados culpáveis, ao
iiikso que numa segunda série de textos está claro que
•les não podem ser considerados culpáveis porque não são
Ivres.
No sentido de definir o problema mais precisamente,
finos de fazer por um momento uma digressão para
ixiiminar a noção de responsabilidade moral. A distinção
lf I leidegger entre possibilidade ontológica e possibilida-

101
de ôntica é ai de grande utilidade. Uma possibilidade
ontológica é a que é dada com um tipo particular de
natureza. Assim, por exemplo, pensamento racional é
uma possibilidade ontológica para os humanos, mas não
para os animais. Igualmente, vôos sem ajuda é possibili­
dade ontológica para pássaros, mas não para humanos.
Possibilidade ontológica não passa de outro nome para
possibilidade teórica. Refere-se ao que é teoricamente
possível para dada natureza, referindo-se assim ao ser
como tal. Possibilidade ôntica, por outro lado, refere-se ao
ser em determinada situação e em circunstâncias espe-
cíficasT/iObviamente, possibilidades ontológica e ôntica.
estão estreitamente conexas. Nada que seja ontolo- .
gicamente impossível pode ser possibilidade ôntica. Ao
passo que o que é ontologicamente possível pode ser.
ònticamente impossível devido a circunstâncias impostas.
ou escolhidas. Assim, permanecendo teoricamente possí­
vel, o pensamento racional pode se tornar ònticamente
impossível para um indivíduo particular por causa de
graves deficiências cerebrais. Tal acidente torna o pen­
samento racional realmente impossível. Escolhas prévias
podem também limitar a realização ôntica de uma pos­
sibilidade ontológica. E ònticamente impossível para o
orador num comício público tomar banho lá e então. Será
realmente possível somente quando voltar para casa.
Liberdade c possibilidade ontológica para todos os
seres humanos. Está inserida na própria estrutura de sua
nãt5fgzã7~E~ãlgo que nunca pode se tirar sem destruir a
natureza humana. A privação da liberdade, portanto,
ocorreino nível ôritico da existência real^odos os seres
humãnóósâó teóricamente livres, mas na prática alguns
não o são. Liberdade real é liberdade ôntica, e os indiví­
duos podem ser privados dela somente através de circuns­
tâncias que tornam impossíveis escolhas genuínas. Tais
limitações podem ser físicas, como no caso dos que estão
no cárcere. Todas as suas decisões são tomadas para eles.
As limitações podem também ser econômicas, como no
caso dos que são tão pobres que não têm nenhuma escolha.

102
Em nossa compreensão, responsabilidade e culpabi­
lidade estão relacionadas, não à liberdade ontológica que
t> dada com a natureza humana, mas à liberdade ôntica.
Tome-se, por exemplo, a situação de urn homem na prisão
que, olhando para fora pelas grades, vê um sádico perverso
molestando uma criança. Ele é moralmente obrigado a ir
o in socorro da criança. Poderá ser culpado por não fazê-lo?
< Hiviamente que não, porque não possui nenhuma liber-
d 11 de para agir desta forma. Doença grave fornece exemplo
paralelo. Um paralítico não pode ser tido como responsável
por nenhuma falha em cumprir uma obrigação que envol­
ve movimentqCfEm ambas essas situações, a realidade da
liberdade estaaestruída por circunstancias e, em conse-
qnôncíãq não sepode imputar culpabilidade.JS
Escolhemos esses exemplos deliberadamente a fim
de aguçarem nossa percepção da situação da humanidade
que Paulo tinha em mente, e a fim de evitar possível
equivocação. Paulo não estava interessado em liberdade
de pensamento, isto é, aquilo que alguns autores designam
"liberdade interior”. Isso não passa da liberdade de pen-
Har idealisticamente sobre o que pode ser. Interessava-se
pela translação do pensamento a ação, pela vivência de
decisão autêntica. Como vimos ao discutir Rm 7,14-24, ele
i \stava inteiramente propenso a conceder que aqueles que
não conheciam a Cristo podiam ter percepção da verdade,
mas era-lhe igualmente claro que eram incapazes de agir
baseando-se naquela intuição: “Eu posso querer o que é
certo, mas eu não posso fazê-lo” (Rm 7,18)f\JPaulo não
podia culpar os gentios por negligenciar a possibilidade de
ConhgCêr~ãTJeus através das coisas criadas por ele (Rm
1,20), se bem que alguns tivessem chegado a tal conhe-

gue eles nada fizeram a essê respeito: “Embora tenham


conhecido a Deus, elesnão o honraram como Deus” (Rm
1,21). Que o seu pensamento se movimenta consistente­
mente ao nível da ação evidencia-se também em sua
afirmação: “Haverá tribulação e angústia para toda pes­
soa que pratica o mal, para o judeu em primeiro lugar,

103
mas também para o grego” (Rm 2,9-10). Nisso, com certe­
za, ele está em completa harmonia com o Antigo Testa­
mento, para o qual o único conhecimento de Deus que tem
algum valor era o que se desdobrava em obediência, e com
o ensino de Jesus que disse: “Que vos parece? Um homem
tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: ‘Filho,
vai trabalhar hoje na vinha’. Ele respondeu: ‘Não quero’;
mas depois, reconsiderando sua atitude, foi. Dirigindo-se
ao segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: ‘Eu irei,
senhor’; mas não foi. Qual dos dois realizou a vontade do
pai? responderam-lhe: ‘O primeiro’”(Mt 21,28-31)/’Numa
visão de autenticidade centrada na criatividade, so ações
contam. Para Paulo, os que não conheciam a Cristo não
podiam escolher um padrão de comportamento em que
sua criatividade fosse desdobrada. A pressão do pecado
era demasiado grande para permiti-lo. Limitando a li­
berdade, o Pecado também destruía a responsabilidade e
a culpabilidade. '

Um dilema

Parece, pois, que Paulo quer ter o seu bolo e comê-lo.


Isso nos força a enfrentar duas questões. Por que ele
imputa culpabilidade quando sua perspectiva a exclui?
Diante da contradição no seu pensamento, que linha
devemos seguir?
Em parte, a resposta à primeira questão deve ser que
Paulo pensava na humanidade em geral, e não em indi­
víduos específicos. Neste nível, era natural que ele pen­
sasse em termos de responsabilidade, porque, como vimos,
a explicação da condição humana que ele aceitava (a
versão do paraíso) insistia que a humanidade era respon­
sável por sua própria situação. Nada fora dela a tinha
feito como era. A conseqüência da decisão histórica era

104
que a humanidade existia em estado contrário ao querido
pelo Criador. Até esta altura, pois, a situação governada
pelo Pecado poderia ser descrita por situação de responsa­
bilidade genérica e culpabilidade genérica. Parece bas­
tante provável que Paulo era também influenciado, talvez
inconscientemente, pela atitude do seu povo para com os
nno-judeusque por eles eram presumivelmente deliberada
e maliciosamente perversos em sua recusa de aceitar a luz
da lei. “Todos os habitantes da terra sabiam quando
estavam transgredindo, mas de Minha Lei eles não sabiam
em razão de seu orgulho” (2Baruc 48,40; cf. 4 Esdras
7,24.72-73)fA combinação destes dois aspectos explicaria
por que ele teria dado a impressão de que indivíduos eram
pessoalmente responsáveis.;,
A afirmação de que indivíduos são pessoalmente
responsáveis não é tão essencial à teologia de Paulo como
a afirmação de que os indivíduos não podem ser pessoal-
incnte responsáveis por seu estado inautêntico. Daí, em
resposta à segunda questão devemos seguir a última
linha. A razão fundamental para isso é que, para Paulo,
Cristo é a chave da autenticidade. Se os que não conhecem
Cristo são livres para escolher a autenticidade sem ne­
nhuma referência a ele, então Cristo não é necessário
para a salvaçãcLtSe_CristO_é a-fonte_da autenticidade,
então os que não o conhecem não têm nenhuma escolha.
Sua liberdade ontológica não pode florescer em liberdade,
ontica sem ele. Dizer que pode é equivalente a dizer que
a justificação é possível sem a fé. Reter que os que estão
sem Cristo são “pecadores” no sentido estrito consiste em
destruir o próprio alicerce da teologia paulina.ÇA
Mas, pode-se objetar, será que a recusa de considerar
a humanidade decaída como “pecadores” não destruiria
outro elemento da teologia paulina, a saber, o caráter
sacrifical da morte dc Cristo? Devemos ser bastante
cuidadosos aqui. Paulo, de fato, diz que “Cristo morreu
por nossos pecados” (ICor 15,3), e que ele foi “exposto
como expiação por seu sangue” (Rm 4,25). Isso, e as
muitas alusões ao “sangue” de Cristo (Rm 3,25; 5,9; ICor

105
10,16; 11,27; Cl 1,20), é certamente linguagem sacrifical
Mas Paulo só uma vez apresenta explicitamente a morte
de Cristo como sacrifício: “Nossa Páscoa, Cristo, foi
sacrificada” (ICor 5,7). A primeira vista, essa linguagem
pareceria insinuar a culpabilidade de indivíduos, mas
este é precisamente o ponto que devemos pisar com
cuidado, não dando por concedido que sabemos o que
Paulo quer dizer.
ÔCLprimeiro ponto a se notar é que Paulo faz muitc
pouco uso de idéias sacrificais relativas a Cristo^xjsso é
surpreendente por causa de seus antecedentes judaicos
porque, antes da destruição do templo, o sacrifício era c
elemento central unificador na vida judaica. Ter-se-ia
esperado que Paulo fizesse uso bastante maior de uma
categoria com a qual estava tão familiarizado. Daí, se nãc
fez assim, pode somente ser porque estava consciente de
que a categoria do sacrifício não era inteiramente
satisfatória para esclarecer o pleno significado da morte
de Cristo.
/'Em segundo lugarLnote-se que na mão de Paulo a
noção judaica de sacrifício passara por transformação.jdá
tivemos ocasião de notar que a morte de Cristo foi vo­
luntária. Para Paulo, ele não devia morrer. Daí, se bem
que Paulo não tenha pessoalmente formulado a carta aos
Efésios, ela traduz o seu pensamento exatamente ac
escrever: “Cristo também vos amou e se entregou por nós
a Deus como oferta e sacrifício de odor suave” (Ef 5,2).
'Jesus é tanto o ofertante como o oferecido, o sacerdote e c
sacrifícior A afirmação de que Cristo nos amou e deu-se a
' si mesmo por nós é paralela a G1 2,20, e esta, nós o vimos,
é o elemento-chave na compreensão de Paulo da morte de
Cristo.'A. idéia de sacrifício é introduzida, não por si
mesma, mas no sentido de sublinhar o valor da morte de
Cristo?Colóca-a naTsuprema categoria dos valores religi-
osos. No processo, com certeza, a tradicional compreensão
judaica de sacrifício foi rompida porque em nenhuma
circunstância no sistema judaico o sacerdote pode ser ele
próprio a vítima. Segue naturalmente que se a noção de

106
s.icrifício foi transformada, então a noção correspondente
de culpabilidade também foi modificada.
Uma vez reconhecido isso, torna-se possível referir a
noção de sacrifício de Paulo à culpabilidade genérica da
humanidade no sentido observado acima. A morte de
Cristo fez pela humanidade o que os sacrifícios da lei
fizeram pelos pecadores dentro do seu sistema. A identi­
dade desta proporção explica o uso por Paulo da lingua­
gem sacrifical, mas identidade proporcional não exige que
os elementos componentes sejam idênticos. “Sacrifício”
muda o seu significado quando aplicado à humanidade.
"Pecadores” são os que estão sob o domínio do Pecadqç/Da
mesma forma que o sacrifício libertava o judeu do seu
pecado, a morte de Cristo rompia os laços do Pecado que
;itavam a humanidade^
Pretender que os que estão sob o poder do Pecado não
são responsáveis por seus “pecados”, não é passar por
cima da necessidade de redenção. Os escravizados ao
Pecado, forçados que são a aceitar um falso sistema de
valores, estão em condição subumana. Carecem de liber­
dade que é a dignidade da humanidade autêntica, e a
influência do Pecado é tão pervasiva de tudo que ninguém
pode escapar/Um.novo atodivino criativo foi necessário
para mudar a situação, e o canal através do qual este
poder tornou-se operativo foi a autenticidade da huma­
nidade de Cristo/X) seu amor, que se concentrou em sua
morte, trouxe “vida” aonde só houvera “morte”.
Neste capítulo descobrimos que, para Paulo, a raiz e
causa da inautenticidade humana era o domínio do Peca­
do. Por causa de seu estado ter-se originado em decisão
livre, a humanidade está em condição de culpabilidade
< >11jetiva; O seu modo de existência é o contrário do que o Cria­
dor quis. A influência da decisão original é perpetuada de
’ forma sempre intensificada pelo falso sistema de valores da
sociedade) Agindo de conformidade com o condicionamento
que receberam, os indivíduos ratificam a desorientação de
seu “mundo”. Não são, porém, culpados porque carecem de
liberdade de escolha devido à sua escravidão ao Pecado.

107
LEITURAS SUGERIDAS

Bultmann, R., “Romans 7 and the Anthropology of Paul”, emExistence


and Faith. Shorter Writings of R. Bultmann (org. S. Ogden), Meridian,
Nova York, 1960, cap. 7.
Id., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965, § 25-26 (Sin
and World).
Macquarrie, J., An Existentialist Theology, SCM, Londres, 1965, § 14
(Fallenness).
Zd., Principles of Christian Theology, SCM, Londres, 1966, § 40 (Sin).
Haag, H., Is Original Sin in Scripture?, Chapman, Londres, 1967.
Sabourin, L., “Original Sin Reappraised”, emBiblical Theology Bulletin
3 (1973), 51-81.
Barrosse, T. A. “Death and Sin in St. Paul’s Epistle to the Romans”, em
Catholic Biblical Quarterly 15 (1953), 438-59.

108
SER ALIENADO

Até o momento consideramos apenas o fato da


mautenticidade e sua raiz e causa, e devemos agora nos
voltar para as manifestações concretas deste modo de ser
romo se manifestam nas cartas paulinas. No mundo, a
humanidade confronta-se com dois tipos radicalmente
diversos de realidade, coisas e pessoas. A humanidade
deve reagir a ambas, e é das decisões que controlam tais
reações que se desenvolvem a autenticidade ou a
mautenticidade. Por causa da clareza, trataremos do
relacionamento cornas coisas neste capítulo, e no próximo
a nosso assunto será o relacionamento para com as pes-
soas/Em ambos, minha intenção é fazer uso da análise de
lleidegger da humanidade contemporânea, porque ela
fornece um quadro que ilumina os elementos salientes do
pensamento de Paulo tanto por confirmação como por
contraste. A linguagem deHeideggerémais compreensível
o nós que a de Paulo, e eles se complementam mutuamente
em grande medida, visto que os dois estavam interessados
cm descrever o mundo como o viam. Todos os observadores,
porém, vêem aquilo a que estão condicionados a ver. Sua
visão é controlada por suas admissões iniciais. Os pres­
supostos de Paulo diferenciavam-se dos de Heidegger e,
conseqüentemente, há diferença em suas visões respecti­
vas da realidade. As conseqüências disso evidenciar-se-ão
no próximo capítulo.
No sentido em que se usa neste capítulo, uma “coisa”
c qualquer realidade não-humana animada ou não-ani­
mada. Heidegger a define como “ser-para-ser-usado”,

109
definição que se harmoniza perfeitamente com a perspec­
tiva bíblica porque, de conformidade com o Gênesis, Deus
deu à humanidade o domínio sobre o resto da criação (Gn
1,26.28; 2,19s). Toda realidade não humana, portanto,
tem caráter instrumental; está a serviço da humanidade.
Não existe para si mesma, mas para a humanidade. Isso
é óbvio no caso de instrumentos feitos para fim específico,
tais como uma caneta ou um automóvel. Mas o sol pode ser
usado para aquecer e as estrelas são usadas na navega­
ção. A natureza é usada para recreação e também como
fonte de matérias-primas/iNq plano da criação, todas as
realidades não-humanas têm essencialmente valor utili-
tário. Isso, com certeza, não significa que nãõabusaremos
da realidade não-humana/jA obrigação a respeitá-la,
porém, não deriva da natureza da coisa mesma, mas do
possível uso que outros, particularmente gerações suces­
sivas, podem derivar dela.
Todos os seres humanos podem tornar-se autênticos
ou inautênticos pelo tipo de decisão que tomam a respeito
das coisas. Uma decisão autêntica é a que reconhece que
uma coisa é inferior à pessoa e lhe dá o uso apropriado à
suã natureza/Uma decisão inautêntica é a que eleva a
coisa a posição de superioridade com relação à pessoa,
porque isso inverte a intenção do Criador. Se a autentici­
dade no tocante às coisas se expressa em relação com o
“eu-coisa”, a inautenticidade que inverte essa relação tem
“coisa-eu”. Como instrumento, a coisa é essencialmente
meio. O seu valor utilitário é negado se ela é tratada como
fim em si mesma.,Isso ocorre quando uma coisa é desejada
por causa de si mesma, quando se torna assunto de último
interess^fAqueles que concentram todo o seu ser, por
exemplo, na aquisição de riqueza ou status social, de fato
definem-se a si mesmos em termos de coisas. Eles alienam
o seu verdadeiro “eu^formando de si mesmos parte de
uma ordem inferior de coisas. Imergem no mundo de
coisas. Percebemos aí outra faceta do modo subumano de
existência que Paulo chama de “mortè”7^\

110
Concupiscência

As coisas adquirem domínio sobre os seres humanos


somente se são intensamente desejadas. Não surpreende,
pois, encontrar Paulo a dizer que a “concupiscência”
(cpithymia, pleoneziá) é uma das atitudes fundamentais
da humanidade inautêntica. E expressão concreta de
“agir de acordo com a carne” (Rm 13,14; G1 5,16-17.24), e
assim é típico do “homem velho” (Cl 3,5), dominado pelo
poder do Pecado^® através da “concupiscência” que a
orientação de um sistema falso de valores toma posse dos
indivíduos. “Não deixeis o Pecado reinarem vossos corpos
para obedecer aos seus desejos” (Rm 6,12).A
A posição crítica que essa atitude ocupa no pensa­
mento de Paulo é evidente de seu esboço da história da
salvação em Rm 7. Na primeira fase (Rm 7,7-13) que trata
da situação de Adão no paraíso, encontramos as palavras:
“Eu não teria sabido o que é concupiscência se a lei não
tivesse dito: ‘Não cobiçarás” (v. 7). A queda, nessa perspec­
tiva, foi devida à “concupiscência”, atitude cujo caráter
radical se sublinha pelo fato de não se especificar nenhum
objeto. O que Paulo teve em mente é bem expresso no
comentário de C. K. Barret sobre esse versículo.; “Desejo
< = ‘concupiscência’) significa precisamente a exaltação do
ego que vimos ser a essência do pecado. fSem levar em
conta o seu lugar na criação e o mandamento de Deus, o
homem deseja, e o seu desejo tornar-se a lei do seu ser.
Pela ‘concupiscência’, as coisas tomam posse de seus
possuidores^maginam que as dominam, mas de fato são—-
dominados pelos objetos de seu desejo imoderado. Em vez
de serem governados por Deus, como a autêntica relação
Criador-criatura o exige, são governados pela ‘concupis-
çênciáf~õ~que implica a busca ansiosa de sifcujo irrestrito
desèjõelêpõsse põe de lado a intenção do Criador”^;
Paulo foi levado a essa intuição, que postula ser a
“concupiscência” uma das atitudes fundamentais da hu-

lll
manidade decaída, por sua^ consciência da importância
deste tema na narrativa do Êxodo, e uma de suas fases foi
chamada de “os túmulos da concupiscência, porque aí
sepultaram os que se entregaram à concupiscência” (Nm
11,34). Após evocar a experiência do Exodo, conclui:
“Essas coisas são avisos para nós, a fim de que não
cobicemos coisas más como eles cobiçaram” (ICor 10,6).
Parece provável que também era influenciado pela classi­
ficação judaica dos gentios como “os que cobiçam”. Essa
idéia encontra-se no Targum palestino sobre Ex 20,17:
“Meu povo, filho de Israel, não sereis cobiçosos nem compa­
nheiros e participantes dos que cobiçam”. Nesta passagem,
“os que cobiçam” são os gentios, homens decaídos por exce­
lência do ponto de vista judaico, como o demonstra o texto do
Talmud babilónico: “Por que são os idólatras cobiçosos?
Porque eles não ficaram no monte Sinai. Pois, quando a
serpente veio a Eva, ela injetou concupiscência nela. Quanto
aos israelitas que ficaram no Sinai, sua concupiscência se
afastou; os idólatras que não ficaram no Sinai, sua concu­
piscência não se afastou” (Schabbath 145b- 146a)/À visão
de Paulo da condição humana é inegavelmente mais
realista, mas a importância do texto é que Paulo também
identificá~“concupiscência”ZcPiiLÍdolatria (Cl 3,5).^
Além de uma nota: “Por que não preferis, antes,
padecer injustiça?” (ICor 6,7) e referências de passagem
no roubo (Rm 2,21; ICor 5,11; 6,10), Paulo não demonstra
grande interesse por bens materiais, mas as “coisas”
englobam também realidades intangíveis, como status
social (2Cor ll,21s; F1 3,4s) e conhecimento (ICor 1,22;
8,1; 2Cor 10,5; Cl 2,8), assim como também o vício de
glutão (Rm 16,18; “Seu deus é sua barriga”, F1 3,19}(Em
última análise, “concupiscência” é a afirmação de si pelo
meio das coisas (2Cor 10,8; G1 6,3) com o objetivo último,
de adquirir glória humana (ITs 2,6; G1 l,10AÉ servir “à
criatura anféFqueaoGriador”(Rní 4r,25) e, assim, equiva­
lente de idolatria. Antítese exata é fornecida pela afirma­
ção de Paulo de sua própria atitude: “Eu não busco o que
é vosso, mas vós” (2Cor 12,14).

112
A expressão concreta da “concupiscência” é “ansieda­
de” ou “cuidado pelas coisas do mundo” (ICor 7,33). A
idéia subjacente é expressa na afirmação do sermão da
montanha: “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde
: i traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam
e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde
nem a traça nem o caruncho corroem e onde os ladrões não
arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí
estará também o teu coração” (Mt 6,19-21)/Esta “preo­
cupação”-tem suas raízes no “medo” (Rm 8,15) que é
ocasionado pela concupiscência instintiva de que algo
ocorreu de errado com a situação humana e pelo reconhe­
cimento de que o que se possui pode ser perdido.'A
“preocupação” desta forma é estar entregue às coisas
como fim de si mesmas; todo o ser de uma pessoa está
localizado nelas. Daí, as exortações de Paulo: “Quero ver-
vos livres de cuidados” (ICor 7,32) e: “Não vos inquieteis
com nada” (F1 4,6).

Observâncias religiosas externas

Certa atitude para com observâncias religiosas é


uma das expressões mais sutis da decisão inautêntica
com respeito a coisas. Paulo pergunta aos colossenses:
“Por que viveis como se ainda pertencêsseis ao mundo?”
(Cl 2,20). Essa é questão que Heidegger teria entendido
sem nenhuma dificuldade, pois implica sua distinção
entre estar “no mundo” e ser “do mundo”. Estar “no
mundo” é um dos dados da existência humana (ICor 5,9).
Não há nenhuma alternativa à situação na qual alguém
o forçado a encontrar tanto as coisas como as pessoas. Ser
“do mundo”, por outro lado, não passa de uma das opções
abertas à humanidade e significa aceitação de “um j ugo de
escravidão” (G1 5,1), isto é, submissão ao domínio do

113
Pecado. No caso dos colossenses, estavam em perigo de se
tornar parte de um mundo alienado de ser porque suas
mentes estavam fixas, não “nas coisas do alto”, e sim nas
“coisas da terra” (Cl 3,2). Paulo não se refere à atenção aos
assuntos humanos que é essencial à vida do dia-a-dia. Sob
essas afirmações gerais subjaz referência a problema
específico de perene atualidade:

Se morrestes com Cristo para os elementos do mundo, por que


viveis como se ainda pertencêsseis ao mundo? Por que vos
sujeitais a preceitos como “não pegues, não proves, não toques”
— referindo a coisas que vão perecer ao serem usadas — segundo
ordens e doutrina humanas? Estas têm aparência, com efeito, de
sabedoria ao propor rigor da devoção e auto-rebaixamento e
severidade com o corpo, mas não têm nenhum valor em reprimir
a indulgência da carne. Se fostes ressuscitados com Cristo,
buscai as coisas que estão no alto, onde Cristo está sentado à mão
direita de Deus. Colocai vossas mentes nas coisas que estão no
alto e não nas coisas que estão sobre a terra (Cl 2,20; 3,2).

Ainda que essa passagem contenha numerosos ele­


mentos que ainda são objeto de viva discussão entre os
exegetas, o ponto principal é claro. Paulo condena
ritualismo que envolve não apenas práticas ascéticas,
mas também o calendário que determina as festas
litúrgicas (Cl 2,16-17).
¿\OhYÍamejQÉeJ_q.que interessa a Paulo não são essas
práticas em si mesmas, senão a importância que os
colossenses lhes atribuíam, bile eleve ter tido razão em
acreditar que a comunidade dava a essas observações
externas uma posição que conflitava com seu valor essen­
cialmente utilitário. Pareceria, pois, que os colossenses
mostravam a tendência de fazer dessas práticas critério
de seu estado diante de Deu^Pensavam nelas, não como
ajuda para a vida cristã, mas como a pedra de toque da
autenticidade. Pervertendo assim a finalidade dessas
observâncias, os colossenses pervertiam-se a si mes­
mos porque, de fato, definiam-se em termos de coisas.,

114
Entregavam-se uma vez mais à inautenticidade. Sua
atitude se tornava a atitude dos que estavam sob o poder
do Pecado.

Obediência d lei

Os colossenses não eram a única comunidade a ter


problemas com “coisas” desta natureza. Paulo viu-se
obrigado a fazer a mesma crítica dos gálatas:

Agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por


Deus, como é possível voltardes novamente a estes fracos e
miseráveis elementos aos quais vos quereis escravizar outra vez?
Observais cuidadosamente dias, meses, estações, anos! Receio
ter-me afadigado em vão por vós (G1 4,9-11).

A situação é muito mais significativa que a dos


colossenses, porque o que está em jogo aí não é heterodoxia
de tipo indeterminado (Cl 2,22), mas a lei de Deus. A
situação na Galácia precisa ser evocada apenas breve-
menteÁíDs gálatas foram convertidos por Paulo, mas,
provavelmente por causa de suas origens célticas, dificil­
mente se encontravam à vontade em seu novo modo de
existência,\As diretivas dadas pelo Apóstolo para que
começassem a trabalhar a partir de padrões de comporta­
mento apropriados à existência autêntica deixavam tanto
a seu próprio discernimento que não podiam encarar a
responsabilidade. Em consequência, estavam predispos­
tos a dar ouvidos a judaizantes, judeu-cristãos que não
podiam aceitar que a salvação era somente através de
Cristo. Insistiam em que, além disso, a lei mosaica devia
ser observada. Fora, afinal, dada pelo próprio Deus,
devendo então ter validade permanente. A reação de

115
Paulo a essa atitude é esboçada na carta aos Gálatas e
completamente articulada na carta aos Romanos e, à
primeira vista, sua posição parece ser autocontraditória.
Por um lado, o respeito pela lei é evidente não só em
sua afirmação formal segundo a qual “tudo o que se
escreveu no passado é para nosso ensinamento que foi
escrito, a fim de que pela perseverança e consolação que
nos proporcionam as Escrituras tenhamos a esperança”
(Rm 15,4; cf. lCor 10,6), mas também enquanto emprega
suas diretivas em seu próprio ensinamento ético (por
exemplo Rm 7,7; 12,19s; 13,9; lCor 9,9; 2Cor 8,15; G1
5,14). Afirma inequivocamente que “a lei é santa e o
mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12) porque
prometia vida (Rm 7,10). Mas, por outro lado, pode qua­
lificar a lei como “lei de pecado e morte" (Rm 8,2), e como
tirano que mantém a humanidade cativa (Rm 7,6).
A resolução desta tensão sugere-a o próprio Paulo ao
escrever: “Verificou-se assim que o preceito, dado para a
vida, produziu a morte” (Rm 7,10). A implicação deste
versículo é que a finalidade original da lei foi pervertida.
Bultmann nota: “Paulo não critica a lei do ponto de vista
de seu conteúdo, mas com relação ao seu significado para
o homem” (Existence and Faith, Londres, 1964, p. 159).
Em outras palavras, a objeção de Paulo à lei baseava-se
não no que ela dizia, e sim no que os judeus dela fizeram.
Sua crítica refere-se à atitude humana para com a lei.lA
A importância da lei para os judeus não carece de
nenhuma ênfase, mas pode-se admiti-lo sem estar intei­
ramente consciente da reverência em que era tida. A
apreciação deste ponto é essencial para captar a posição
de Paulo acuradamente, e se ilustra bem por uma citação
do artigo “Torah” da recente enciclopédia judaica:

Existe uma tradição antiga segunda a qual a Torah existia no céu


não só antes de Deus revelá-la a Moisés, mas mesmo antes de o
mundo ser criado... Era um dos muitos dogmas reais da teologia
rabínica que a Torah vem do céu (Ileb. Torah min ha-shamayn;
Sanh. 10,l;etal.; cf. Ex 20,22 [ 19 |;Dt 4,36), isto é, a Torah em sua
inteireza foi revelada por Deus. Segundo a aggadah, I, Moisés

116
subiu ao céu para pegar a Torah dos anjos (Sanh. 89a, et al.)
Numa das mais antigas afirmações, Simeão, o Justo, ensinava
que (o estudo de) a Torah é uma das três coisas pelas quais o
mundo é sustentado (Avot 1,2). Eleazarben Shammua disse: “Se
não é pela Torah, céu e terra não continuariam existindo” (Pes.
68b; Ned. 32a). Foi calculado que “o mundo em sua inteireza é
somente 1/3200 da Torah” (Er. 21a; cf. TJ, Pe’ah 1,1,15d). Dizia-
se que o próprio Deus estuda a Torah diariamente (Av. Zar. 3b,
et al.).

Obviamente, a afirmação mais surpreendente em


seu sumário é a última de Avoda Zarah: “Há doze horas
no dia; durante as três primeiras o Santo se senta e se
ocupa com a Torah”. Precisamente o mesmo ensinamento
a parece no Targum de Jerusalém sobre Dt 32,4: “Por três
horas ele se ocupa com a Torah”. BereshithRubbah dá um
passo adiantei*Assim como o Altíssimo medita profun­
damente nos mistérios da Torah, também ele cumpre os
seus preceitos” (c. 49). Em que medida este tipo de afir­
mações pode anteceder o séc. III a.C., quando por primeiro
é atestado, pode ser apenas objeto de conjetura. A tendên-
cia que elas representam era certamente operativa nos
tempos de Paulo, se coligimos a atitude para com a lei
exibida pelo SI 118 e a identificação da Sabedoria divina
com a lei em que Eclo 24 insiste. Pouca dúvida pode haver
de que W. D. Davies descreve acuradamente a situação no
séc. I d.C. ao escrever:

Como o dom de Javé e o plano-base do universo, ela (a lei] só podia


ser perfeita e imutável; era impossível que ela fosse um dia
esquecida; jamais surgiria profeta algum que a mudasse, e
nenhum novo Moisés jamais apareceria para introduzir outra lei
que a substituísse (The Setting of the Sermon on Mount,
Cambridge, 1964, pp. 157-158).

Semelhante reverência pela lei fundava-se na crença


de que expressava a plenitude da mente divina em forma
definitiva. A lei era inseparável, porque a lei dava forma

117
permanente e imutável à vontade de Deus e a seu propó­
sito para a humanidade. O próprio Paulo articula essa
atitude:

Ora, se tu te denominas judeu e descansas na lei e te glorias de


Deus, tu que conheces sua vontade e que, instruído pela lei, sabes
discernir o que é melhor, que está convencido de ser o guia dos
cegos, a luz dos que andam nas trevas, educador dos ignorantes
e mestre dos que não sabem, possuindo na lei a expressão da
ciência e da verdade... ora, tu que ensinas aos outros, não ensinas
a ti mesmo! (Rm 2,17-21).

Segundo a opinião comum, essa passagem levanta


apenas a acusação de que os judeus não observavam de
fato a lei que tinham em tão grande estima (cf. Rm 2,21-
24). Isso, porém, não passa do segundo ponto e menos
importante. Sua crítica maior é que fizeram da lei algo em
que “repousar” e sobre o que “gloriar-se”. Estes são dois
dos termos mais condenatorios do léxico de Paulo e car­
regam a aceitação de que a lei expressa a vontade de Deus
e, em conseqüência, é guia seguro para “o que é melhor”
(literalmente: “as coisas que interessam realmente”) e um
critério válido da relação de alguém com Deus<¿Essa
aceitação era, para Paulo, a raiz da inautenticidade do
setor da humanidade governado pela lei./,
~ Em ultima análise, isso se deve ao reconhecimento do
fato de que o respeito exagerado da lei produzia obediên­
cia cega. Na prática, a lei se tornava mais importante que
o Legislador e, sendo assim, uma “coisa” se converteu no
assunto de interesse último. Frisando a completa sub­
missão à lei como a meta da existência humana, os judeus
de fato se definiam a si mesmos em termos de uma “coisa”.
Essa atitude podia ser tomada para parecer extre­
mamente respeitoso. Afinal de tudo, era a lei de Deus\ A
verdade, porém, não era tão elogiosa. Em conformidade
com o plano de Deus Criador, foi dada à humanidade
responsabilidade tanto por si mesma como pelo resto da
criação, responsabilidade que tinha de ser exercida na

118
criatividade. Mas a complexidade da realidade era bas­
tante aterradora, o fardo da responsabilidade bastante
grande, e em face deste medo o pormenor concreto e
preciso da lei fornecia refúgio e sensação de segurança. Os
humanos podiam afastar o olhar da realidade e focalizá-
lo exclusivamente na lei. Pela conseqüente sensação de
alívio pagaram caro.^A lei fornecia refugio somente^com­
prando previamente o direito de decisão. Por reverência
exagerada, a obrigação humana de fazer escolhas genuí­
nas foi cedida à lei. A lei decidia e a criatura se sujeitava^
Algo mais que submissão é necessário para a auten­
ticidade, como os psicólogos de crianças todos reconhecem.
Os pais podem estagnar irremediavelmente a evolução da
criança para a maturidade, tornando todas as decisões
reais, tirando todo o risco da vida. A imagem não é
irrelevante, porque Paulo descreve, de fato, os judeus
como crianças sob “tutoria” da lei (G1 3,24). A lei visava
supervisionar a conduta, guiar para a maturidade na
liberdade, mas, por causa da atitude dos judeus para com
ela, ela os manteve e guardou sob restrição (G1 3,23). O
excessivo respeito manifestado em obediência absoluta
destrói a liberdade que é a condição indispensável da
autenticidade, como o expressa com clareza Tomás de
Aquino em seu comentário sobre 2Cor 3,18:

Quem quer que aja com o seu próprio alvitre age livremente, e
quem quer que seja impelido por outro não é livre. Aquele que
evita o mal, não porque é mal, mas porque um preceito do Senhor
o proíbe, não é livre. Por outro lado, o que evita o mal porque é mal
é livre.

A exatidão desta intuição na mente de Paulo confir­


ma-se pelo que o próprio Apóstolo diz na carta a Filemon.
“... Tendo embora toda liberdade em Cristo de te ordenar
o que convém, prefiro pedir por amor” (Fm 8). O ponto
nesta questão é claro. Paulo quer que Filemon faça o que
convém a respeito de seu escravo fugitivo Onésimo, isto é,
não afirmar o seu direito legal de puni-lo, mas tratá-lo

119
como irmão e mandá-lo de volta a Paulo. Trata-se, pois, da
realização de ato de caridade. O problema é, pois: por que
Paulo se recusa a mandar tal ato? A resposta fornece-a o
v. 14:“... nada quis fazer sem teu consentimento, para que
tua boa ação não fosse como que forçada, mas espontânea”.
Em outros termos, o interesse de Paulo pela autenticidade
cie Filemon fê-lo recusar tomar uma decisão que devia
ser deste último, e isso é o que teria acontecido se desse
ordem que Filemon teria entendido como preceito obriga-
tqrioU
O caso de Filemon não é caso isolado, e a consistência
da atitude de Paulo manifesta-se no caso da coleta para os
pobres de Jerusalém. Depois de cumprimentar os corintios,
diz-lhes bruscamente: “Procurai também distinguir-vos
nesta obra de generosidade” (2Cor 8,7). O verbo tem a
força de imperativo; a forma da afirmação é a de comando.
Mas no próprio versículo seguinte apressa-se em acres­
centar: “Não digo isso para vos impor uma ordem”. Sua
razão? “Cada um dê como dispôs em seu coração, sem pena
nem constrangimento” (2Cor 9,7).
Dada essa perspectiva é bem evidente por que as
obras da lei são sem valor. Porque os judeus acreditavam
que eram obrigados a agir como a lei mandava, agiam por
compulsão/A autenticidade, ao invés, deve ser livremente
escolhida. Não se pode conseguir de qualquer outra ma-
neira. Por süa profissão de reverência pela lei, os judeus
afastavam de si mesmos o desafio de sua humanidade.
Davam ã-lèi uma autoridade que ajudava e encorajava
sua fuga da responsabilidade e, assim, inevitavelmente,
“o preceito, dado para a vida, produziu a morte” (Rm 7,10).
Uma consequência paradoxal da reverência exagera­
da pela lei é que ela era arrastada para a órbita da
“concupiscência”. Era desejada, não para o que devia ser
em relação ao Criador, mas para o que parecia ser em
relação às criaturas, a saber, como algo em que eles po­
diam “repousar” (G1 3,10) e fazê-los “vivos” (G13,21). Sua
existência mesma encorajava as criaturas a presumir
certa autonomia sobre e em face do Criador e, assim,

120
“gloriar-se” (Rm 2,23). Estavam condicionados a formular
o seu próprio conceito de autenticidade em preferência ao
do Criador (Rm 10,3). A conseqüência era a situação
trágica que Paulo esboça em Rm 7,14-24 (cf. p. 90).
Não é difícil captar os matizes de ênfase com que
Paulo proclama: “Cristo é a finalidade da lei, para que
todo o que tiver fé seja justificado” (Rm 10,4)qA autenti­
cidade da humanidade de Cristo põe fim ao período de
esforços confusos quando todo esforço rumo acima só
conseguia afundar ainda mais a humanidade na lama. A
via para a autenticidade, para ser como Deus pretendeu,
passa através da decisão livre da fé inaugurando uma
existência modelada na de Cristo (ICor 11,1). H

Aplicações contemporâneas

Os cristãos sabem que não mais estão ligados à lei


mosaica pelo que Paulo estava tão interessado. Isso nos
pode cegar para o fato de que o seu princípio básico
permanece válido com respeito a qualquer lei/Úferecer
obediência a qualquer diretiva autoritária é colocar-se no.
estado de inautenticidade, porque fazê-lo é entregar a
"própria liberdade no empenho de escapai’ da responsabi­
lidade. .
A ambigüidade de toda lei, tanto religiosa como civil,
é que a um só tempo é necessária e destrutiva. Sem
algumas regras, nenhum grupo humano pode sobreviver
por longo tempo. Um quadro legal abriga os valores que
torna possível a continuidade. Uma sociedade sem ordem
c contradição nos termos. A lei, porém, carece de sentido
a não ser que seja obedecida, e os responsáveis pela
sociedade, no sentido de facilitar sua tarefa, inevitavel­
mente tendem a insistir que algo seja feito simplesmente
porque está na lei. Ignorância não é nenhuma escusa para

121
o não-cumprimento, e sanções são reforçadas contra os
que não se conformam. No fim, a lei assume autonomia
definida sobre e contra os que ela visava servir, tornando-
se assim meio de escapar, para os demasiadamente pre­
guiçosos, de pensar por si mesmosf/Estão satisfeitos de
pensar o seu “dever” e recusam ver de perto a situação em
que devem reagir criativamente. Õ costume estabelecido,
não é necessário dizer, tem a força de lei neste tipo de
desenvolvimento, íf
A situação atual no domínio da lei civil foi finalmente
descrita por Peter G. Hodgson:

Recentes análises do “estado corporativo” da sociedade burocrá­


tico-tecnológica enfatizaram que o mundo social em que vivemos
é altamente legalístico; a lei, porém, não mais serve primaria­
mente como instrumento de justiça e delimitação de poder, mas
como meio livre de valores que permite ao sistema burocrático
funcionar maciamente e manter alto grau de controle institucional.
'As leissãofeitas primariamente para satisfazer a exigências de
administração antes que protegeros direitos dos indivíduos. Por
causa de seü efeito externo, impessoal e com freqüência
desumanizante, a lei tem impacto profundamente alienante em
milhões de cidadãos. Para povos oprimidos de qualquer parte do
mundo, a lei é sentida não apenas como alienante, mas também
como opressiva. Os pobres e sem poder sabem que a lei é feita
contra eles e reforçada contra eles. O papel da lei, primeiro em
legitimar a instituição da espravidão e depois em reforçar pa­
drões de segregação e discriminação, é episódio vergonhoso da
jurisprudência americana. Sociedades racistas tendem a ser
altamente legalísticas (por exemplo, os estados escravagistas
antes da Guerra Civil nos Estados Unidos e a África do Sul atual),
porque a lei fornece meios tanto de repressão social como de
sublimação dos sentimentos de culpa pelas injustiças perpetua­
das (New Birth of Freedon, Filadélfia, 1976, p. 190).

A relação entre inautenticidade e submissão à lei que


devia ser reconhecida como má não precisa ser frisada.
Este lado se tornou extremamente claro nos vários julga­
mentos dos criminosos de guerra nazistas. Pelos princípi­
os de Paulo, porém, a obediência inquestinada a uma lei

122
boa produz inautenticidade. O consenso comum sugeriria
que as leis da Igreja são leis boas, e é precisamente aí que
locamos o cerne do problema.
Ninguém negará que a proibição do assassínio é uma
boa lei. Proíbe algo que é incompatível com a criatividade
positiva, que é a essência da autenticidade. 0 que dizer
então do caso dos cidadãos alemães que conspiraram para
assassinar Hitler? Os que crêem na absoluta supremacia
da lei dizem que erraram. Os que estão mais entrosados
com a lição de vida de Cristo reconhecê-lo-ão como foi, um
esforço de abraçara responsabilidade. A história passada
fornece, porém, apenas exemplos pálidos e, neste caso
particular, a retidão da tentativa dos conspiradores pro­
clamou-se amplamente como evidente. Mas seria Idi
Amin muito diferente de Hitler^Poderíamos ser tentados
a usar o mandamento “não matarás” como escusa para
evitar a responsabilidade? /»
O fim da lei que manda participar da missa aos
domingos certamente c bom. Convem plenamente que as
criaturas adorem o seu Criador regularmente. Mas o que
dizer da situação dos que vão à missa no domingo pura e
simplesmente porque é mandado? Nessa hipótese, vão
exclusivamente pelo medo de cometer pecado. Não só
nada auferem disso, mas também terminam frustrados e
entediados, de sorte que dificilmente são capazes de
palavras de boas maneiras ao saírem. Pense-se nos emo­
cionalmente comprometidos com a liturgia latina pré-
Vaticano II, que se viram impelidos a uma missa de
massas porque é a única a atingir o povo. Acaso diferem
dos colossenses e dos gálatas? Paulo certamente respon­
deria negativamente£Ê’ua_preocupação com uma “coisa”
condena-os à inautenticidade. (\
A bondade dê outrãsTeis da Igreja está mais exposta
a questões, como, por exemplo, a lei que restringe a
ordenação a homens. Mas o assunto mais fundamental
refere-se ao papel da lei positiva dentro de uma comuni­
dade autêntica, que, para Paulo, necessariamente é uma
comunidade cristã. Pareceria ser inferência lógica da

123
posição de Paulo que a Igreja, fazendo legislação obriga­
tória, contribuiria para a inautenticidade de seus mem­
bros. John Knox percebeu bem a perspectiva paulina:
Mas — é de se perguntar— será que a rejeição por parte de Paulo
como vinculando os fiéis é tão radical assim? Não seria a “lei”, que

Í
ele rejeita, simplesmente um código externo, um catálogo de “tu
deves” e “tu não deves”, em particular o código do judaísmo? O
que possa parecer que esteja implicado em alguns de seus
ensinamentos práticos, estou seguro de que na sua “teoria” da
vida cristã Paulo vai muito mais longe. Ainda que, sem dúvida,
amiúde esteja se referindo à lei judaica, não se pode negar a
presença — muitas vezes, senão sempre — de uma inferência
mais radical e mais inclusiva... A lei, como tal, não mais vale
para o cristão {The Ethic of Jesus in the Teaching of the Church,
Londres, 1962, p. 99).

Como veremos, o preceito do amor é o único manda­


mento que vincula os autênticos, e isso porque se exige
pela própria natureza da autenticidade. Não quer dizer,
porém, que Paulo deva se considerar advogando mera
ética de situação. Essa se exclui, como veremos, por sua
compreensão da condição sob o que a autenticidade se
torna possível.

124
LEITURAS SUGERIDAS

Sunders, E. P., Paulo, a Lei e o povo judeu, Paulus, São Paulo, 1990.
Itullmann, R., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965,
§ 27 (The Law).
Itcicke, B., “The Law and This World according to Pau”, em Journal
of Biblical Literature 70 (1951), 259-276.
Sehl ier, IL, Principalities and Powers in the New Testament, Herder,
h'lihurgo, 1961.
Prnnfield, C. E. B., “St Paul and the Law”, em Scottish Journal of
Theology 17 (1964), 43-68.
h'ltzinyer, J. A., “Saint Paul and the Law”, em The Jurist, 1967,18-36.
Itruce, F. F., “Paul and the Law of Moses”, em Bulletin of the John
Uuyfands Library 57 (1974-75), 259-79.
Sunders, E. P., Paul and Palestinian Judaism, Fortress, Filadélfia,
cup. 5, § 4.

125
ISOLAMENTO EGOCÊNTRICO

A afirmação “nenhum homem é uma ilha” articula o


simples fato de experiência de que a existência humana é
um tecido de relacionamentos interpessoais. Não se pode
conceber o ser humano em total isolamento. Vir à existência
implica necessariamente relação pelo menos com duas
outras pessoas. O processo de educação envolve a asso­
ciação com muitos outros mais. As possibilidades da
linguagem e do sexo são exigências de complementaridade,
uma vez que cada indivíduo possui somente uma parte de
um sistema completo reprodutivo e o fim da linguagem é
comunicação com outros. As amenidades da vida do dia-
a-dia dependem da cooperação de grande número de
indivíduos. Minha segurança depende da polícia, meu
transporte dos motoristas e mecânicos, minha recreação
de produtores de cinema e televisão e de autores, meu
alimento de açougueiros e padeiros. A lista poderia ser
estendida infinitamente. Em consequência, assim como
Aristóteles descreveu o homem como “animal racional”,
também Heidegger insiste em que o ser humano neces­
sariamente é um “ser-com-os-outros’^íeste encontro com
os outros, o indivíduo confronta-se com a escolha entre
autenticidade e inautenticidadé^G
Todos os existencialistas estão virtualmente de acordo
em ver a existência social contemporânea como
inautêntica. Evidencia-se na própria terminologia que
empregam. A “multidão” de Kierkegaard, o “rebanho” de
Nietzsche, o “eles” de Heidegger, a “massa” de Jaspers,
todos são termos altamente sugestivos da atitude pejo­
rativa dos filósofos que se enraíza na consciência de que se

127
perde a originalidade do indivíduo no comum da multi­
dão. Ninguém deixará de reconhecer a exatidão da aná­
lise de Heidegger das principais características da exis­
tência contemporânea, assim condensadas por J.
Macquarrie:

Existe “o dia-a-dia”. Já encontramos muitas vezes a expressão


“existência do dia-a-dia”. É termo técnico de Heidegger. Significa
um modo de ser dominado pelo hábito de não pensar, por uma
seqüência mecânica das maneiras de agir que se nos deixaram
numa ordem estabelecida. Existe, então, “medianidade”, ou
mediocridade, que se dá como resultado de uma tendência
niveladora presente no uso por todos de facilidade que fazem
todos iguais; preencher formulários e ficar em filas para esperar
ônibus ou entrar no cinema são exemplos familiares... A publi­
cidade é outra característica relacionada com o modo
despersonalizado de ser. Enquanto o medo isola o indivíduo em
sua facticidade e responsabilidade, em público pode esquecer-se
de si e de sua responsabilidade, diminuindo assim a ansiedade,
identificando-se com a multidão impessoal indeterminada. Pal­
rar é o modo de falar do dia-a-dia, que, ao invés de desvelar as
coisas como realmente são, converter-se no que o público acha que
é. Correspondendo a esse modo de falar inco nsistente, existe uma
literatura popular descuidada que passa a serescrita. O escrever
descuidado e apressado obscurece, com efeito, a verdade, mas
torna-se popular e autoritativo, porque fala às pessoas o que
desejam ouvir. Existe, afinal, a curiosidade. É o desejo de entrar
em experiências sem tomar a resolução de tê-las por si próprio.
O cinema oferece entrada imaginativa ao mundo alegre e suntu­
oso de Hollywood; a leitura excitante dá ao leitor a sensação de
participar das façanhas e ousadias do herói, sem necessidade de
deixar o lado cômodo da lareira; o tipo sensacionalista do jornal
dominical torna possível a entrega vicária ao crime e ao adulté­
rio, ainda que o leitor professe (c creia ele próprio) que fica
horrorizado com as estórias que traz o jornal (An Existencialist
Theology, Londres, 1964, 91-92).

^^A-existência é governada por “eles” sem rosto, que não


é ninguém em particular. “Eles” arruinam a economia.
“Eles” diminuem os padrões de gosto e moralidade. “Eles”
destroem o meio ambiente. “Eles” continuam a corrida

128
armamentista. Os indivíduos não são seres em si mesmos,
mas facetas do multiforme “eles”. Foi deste ponto de vista
que Sartre pôde proclamar que o “Inferno está no alô”
(HeTtisiñKello}.
Era inevitável que o conceito existencialista de au­
tenticidade fosse construído em oposição ao padrão geral.
Se a pessoa inautêntica é aquela que, a fim de se aliviar
da responsabilidade, perde-se na multidão, a pessoa au­
têntica, proclama-se, é aquela que emerge da multidão,
que se afasta da massa por ter a coragem de ser diferente.
A reação à despersonalização é enfatizar o individualis­
mo. Daí, o fenômeno do “drop” de que o próprio Heidegger
fornece um exemplo clássico em sua retirada ao isolamen­
to na Floresta Negra. A não-conformidade das décadas
recentes só pode se estender como busca de autenticidade.
Mas existe apenas número limitado de ser diferente da
massa, e muito depressa o esforço de se distinguir a si
mesmo torna-se objeto da tirania de uma espécie diferen­
te de conformismo. Chegou-se à conclusão de que era
impossível separar-se da multidão, a não ser aliando-se
com outros que também rejeitaram o sistema de valores
da sociedade contemporánea¿Apressao da sociedade era
t ão grande a ponto de produzir o paradoxo de que alguém
sqjodia~ser <<desigual”~sêndo “igual”. Existe menos tole­
rância dentro de grupos não-conformistas do que na
sociedadècòmo um todo.
A experiência, pois, ilumina a precariedade de um
conceito de autenticidade baseado em radical individua­
lismo. Deveria também nos forçar a questionar se a
análise existencialista é de fato descrição acurada da
condição humana. O que impressiona os existencialistas
é a homogeneidade da massa, mas será realmente o
retrato todo? Paulo certamente não estaria de acordo.
Como vimos, ele tinha conceito muito claro de autentici­
dade enquanto enraizado na criatividade. Fato que impli­
ca relacionamento positivo com os outros e, sendo assim,
onde os existencialistas viam só coletivismo, ele via a falta
de comunidade. Em decorrência, estava muito mais cons­

129
ciente do que eles das divisões dentro da humanidade,
considerando essas divisões como os sinais mais óbvios da
inautenticidade.

Blocos opostos

m_A.s afirmações explícitas de Paulo segundo as quais


em Cristo todas as-divisões soeiais foram abolidas são
'suficientgsjSara indicar que,_para ele, constituíam parte
do modo inautêntico da existência humana: “'Aí não há
mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro,
cita, escravo, livre” (Cl 3,11). “Não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (G1
3,28; cf. Rm 10,12; lCor 12,13). Essa listagem,
deceptivamente simples, não c por acaso. Cobre a totali­
dade do mundo então conhecido dos pontos de vista
religioso, econômico, geográfico e sociológico. A oposição
“homem-mulher” sugere imediatamente que estamos a
nos haver com mais do que de descrição neutra. Até um
breve esboço das atitudes do período deixará claro que as
oposições portam sobretons de hostilidade. Deparamos
não com diversidades simplesmente, mas com divisões.
A atitude dos judeus a respeito dos gentios espelha-se
exatamente em Ef 4,17-18: “Na futilidade de seus pensa­
mentos, com entendimento entenebrecido, alienados da
vida de Deus pela sua ignorância e dureza de coração”,
mas muito mais plasticamente descrita em 4 Esdras:
“Tudo isso eu falei diante de ti, Senhor, porque disseste
que por causa de nós criaste este mundo. Mas quanto às
outras nações que são descendentes de Adão, tu disseste
que eram nada e que elas eram como cuspe, e comparaste
a abundância delas como uma gota num copo” (4,55-56).
De conformidade com o mesmo autor, a sorte dos gentios
será o “buraco do tormento” e a “fornalha da geena” (7,36-

130
.’IK), ou então os descreve como sujeitos a um rio de fogo
que “os queima, de tal forma que de repente nada mais se
pode ver da multidão inumerável a não ser apenas pó de
cinzas e cheiro de fumaça” (13,11). Nem todos os autores
do período eram tão venenosos, mas até o mais benigno
viu a salvação dos gentios apenas em termos de peregri­
nação penitente como a descrita em Is 60,3: “As nações
caminharão na tua luz e os reis, no clarão do teu sol
nascente”. ^Assim, por exemplo, lemos nos oráculos
uibilinos:

1 E então todas as ilhas e cidades dirão: Como o Eterno ama estes


homens [isto é, os judeus], Pois todas as coisas agem em simpatia
com eles e os ajudam, o céu e a carruagem de Deus, o sol e a lua.
I Um tom musical doce sairá de suas bocas em hinos. Vinde,
caiamos todos por terra e supliquemos o rei Eterno, o Deus
poderoso e perpétuo, pagamos procissões a seu templo, porque
ele é o único PotentadoTE meditemos na lei do Deus altíssimo,
que é o mais retcT em toda a terra? Mas nós nos afastamos das
veredãs dcrEterno e coín coração insensato adoramos as obras de
mão humana, ídolos e imagens de homens que estão mortos (III,
linhas 716ss).

, Para os gentios, a escolha situava-se, pois, entre a


destruição e a submissão incondicional.
ATãdmlssão arrogante de superioridade, inerente a
uma nação e cultura, sobre todas as outras, não podia
deixar de produzir reação igual e oposta. Em seu Contra
Apião, Josefo recorda a irritação de personagens do séc. I
(I.C., como Queremon (1,288), filósofo estóico que foi tutor
de Nero e chefe da grande biblioteca de Alexandria;
I Jsímaco (1,304), escritor alexandrino; e Apião (2,1), que
ensinou em Roma nos reinados de Tibério, Caligula e
('láudio. Sua malícia expressou-se em acusações visando
ridicularizar os judeus. Não teriam partido por si do Egito
por ocasião do êxodo, mas foram expulsos por serem
leprosos (1,299.290.308). A própria etimologia da palavra
"sabbath” evidenciava que tinham uma doença nas viri­
lhas (2,21). Onde iam, fomentavam sedições (2,68) e todos

131
faziam, juramento de não ter boa vontade alguma para
qualquer não-judeu (2,121). No seu templo, adoravam a
cabeça de um burro (2,80) e praticavam ritos abomináveis:
“Teriam sequestrado um estrangeiro grego, teriam-no
engordado por um ano e depois o teriam matado num
madeiro sacrificando o seu corpo com seu ritual costumeiro,
teriam comido sua carne e, imolando o grego, teriam
jurado hostilidade aos gregos” (2,95).
TTrata-se, dos dois lados, de atitudes genéricas que só.
de quando em vez explodiam em violência,\Mas é precisa-
'mente isso que é importante para entender a visão global
de Paulo. Que os indivíduos judeus e gentios viviam em
mútua harmonia e compreensão é irrelevante ao quadro
geral, porque em tempos de crise não se impedia que
passassem à atitude mais fundamental de hostilidade.
A mesma observação vale também para a oposição
entre varão e mulher. E inegável que em muitos aspectos
judeus e gregos tratavam as mulheres como plenamente
iguais, mas seus sistemas legais viam as mulheres como
subordinadas e inferiores ao varão e a sujeitava a nume­
rosas desqualificações religiosas e sociais. Se ela era
normalmente tratada com cortesia e respeito, essa admis­
são de inferioridade podia a tempos aflorar em amargo
cinismo.(A observação famosa de Demóstenes: “As compa-.
nheiras conservamo-las por causa do prazer; as concubinas
para o cuidado diário de nossas pessoas; as esposas para
nos gerar filhos legítimos e ser as guardiãs confiáveis de
nossos lares”, só podia ser feita numa sociedade que
considerava que as mulheres não tinham mais que valor
utilitário^Os rabis temiam as mulheres como distração e
fonte de tentação. Eram fundamentalmente inconfiáveis
(Shab. 33b) e dotadas de quatro características: concu­
piscência, curiosidade, preguiça e ciúme (Gen. Rabba 45,
5).jfilop, que tinha um pé em ambos os campos, escreveu:
“O progresso nada mais é do que deixar o gênero feminino
trocando-o pelo masculino, pois o gênero feminino é ma­
terial, passivo, corpóreo e perceptivo pelos sentidos, ao
passo que o masculino é ativo, racional, incorpóreo e mais

132
semelhante à mente e ao pensamento” (Quaest, in Ex 1,8).
Sua ênfase é explicar a diferença entre conhecimento
sensitivo e inteligência, mas a alegoria que emprega para
esclarecer a questão é indicação clara da posição da
mulher na sociedade.
■ A posição inferior da mulher estava fundada em
radical misogenia, como se mostra em seu sumário de
antigos provérbios por C. E. Carlstonf •

As mulheres, se devemos confiar na sabedoria antiga, são basi­


camente ineducáveis e de cabeças vazias; vingativas, perigosas
e responsáveis dos pecados dos homens; mentirosas, traidoras e
inconfiáveis; volúveis; têm valor somente por sua relação com os
homens; incapazes de moderação e de bondade espontânea;
preferem o escuro; interessadas só em sexo — a não ser quando
estão com seus maridos, e neste caso (pelo que parece) elas
preferem falar. Breve, as mulheres são, individualmente e todas,
uma ‘série de abutres’, ‘mais bestial’ de todas as bestas na terra
e no mar, e o casamento é na melhor das hipóteses um mal
necessário (Journal of Biblical Literature 99 119801, 95-96).

Os exemplos que ele cita amplamente justificam essa


caricatura viciosa. Os provérbios, deve-se lembrar, eram
(e ainda são) entendidos como representação de aspectos
evidentes por si da experiência humana.
Dada a natureza da sociedade, os provérbios das
mulheres a respeito do sexo oposto ficaram largamente
sem recordação. Seria extremamente ingênuo admitir
que nenhum existiu. O contrário é, de fato, indicado pelo
provérbio, obviamente machista, relatado por Filemon,
poeta do séc. III a.C.: “Quando uma mulher fala com outra
mulher privadamente, um grande tesouro de males jorra
para fora”.. Temos aí uma alusão de que a hostilidade
mostrada pelos homens era plena e reciprocamente
correspondida. Uma confirmação fornece-a as palavras
(pie Sófocles, teatrólogo do séc. V a.C., põe nos lábios de
uma mulher.(

133
Quando somos jovens, na casa de nosso pai, penso que vivemos
a mais doce vida de todas, pois a ignorância sempre nos traz
entretidas prazeirosamente. Mas quando atingimos a idade
madura e sabemos mais, somos lançadas das portas da casa e
vendidas, longe dos deuses de nossos avós e nossos pais, algumas
para casas de estrangeiros, outras para casas de bárbaros,
algumas para casas de estranhos e outras para casas que me­
recem censura. E nesta sorte, depois que uma única noite nos
uniu, temos que aquiescer e pensar que tudo está bem (Tereus
fragm. 524).

¿¿Mal é necessário documentar as atitudes recíprocas


escrauo e senhõrf/Ás vezes havia relacionamento de
mútua confiança, mas a verdadeira posição do escravo é
ilustrada pela fria observação de que, quando o tempo foi
passando, “houve a tendência a dar maior reconhecimento
à personalidade de facto" {Oxford Classical Dictionary,
996). Em outras palavras, houve a tendência crescente a
tratar os escravos como se fossem pessoas. Não tinham
nenhuma personalidade, salvo como extensão da do pa­
trão. Sua posição legal era a de qualquer item material de
posse, pois a posse de direitos formava parte da própria
definição do homem livre. Está calculado que nas cidades
os escravos constituíam um terço da população, e em
última análise eles eram simplesmente usados pelos
livres. No entanto, os escravos devem ter tido sentimentos
para com seus patrões, suas atitudes certamente eram
coloridas pelo desejo de libertação. O ressentimento an­
dava sempre dentro deles. As vezes ele explodia em fuga
e outras vezes chegava às explosões suicidas das revoltas
de escravos. As três maiores ocorreram nos dois séculos
antes do ministério de Paulo e, em conseqüência, a atitude
dos livres sempre era matizada pelo elemento de suspeita
e medo.
. O par final “bárbaro”e “cita” pôs uma dificuldade aos
exegetas porque não é urna antítese esperada, como o são
os outros três agrupamento^/fíugeriu-se que barbaria era
às vezes usado para descrever a costa somali e parte da

134
Etiópia. Neste caso, o contraste seria entre povos do norte
e do sul, ou mesmo entre brancos e negros£§eja o que for,
"bárbaro” era usado tanto para judeus como para gregos
para significar “o de fora”, ou seja, todo aquele cuja
diferença em linguagem, cultura e religião marcava-o
como infeliz inferior. bOs citas, por outro lado, era um
grupo racial específico localizado ao redor do mar Negro,
cuja crueza, cujos excessos e cuja ferocidade faziam deles
o arquétipo dos “bárbaros”(\\mbosostermos, pois, im­
plicam um desprezo cruelmente zombeteiro/»Mesmo se
coubéssemos o que os citas pensavam dos de fora, certa­
mente seria impossível imprimi-lo.
Paulo com grande realismo viu o seu mundo frag­
mentado em blocos opostos. Era um monte de esterco de
liunegante ressentimento em que as moscas do medo, as
larvas da desconfiança e os vermes da inveja prolifera­
vam.'Não seria difícil transpor essas categorias para
caberem em nossa situaçãopO mesmo tipo de corrosiva má
vontade se vê entre as nações desenvolvidas e o Terceiro
Mundo, entre os consumidores e produtores, entre os que
I cm e os que não têm, entre as liberacionistas das mulheres
e os machos chauvinistas. Neste século, as guerras nunca
Coram tão numerosas e tão destrutivas.

/ndivíduos isolados

Paulo, porém, não viu apenas blocos de pessoas


opostas entre si. Olhou para dentro dos agrupamentos e
o quadro resultante foi até menos agradável/jSqssatarefa
aqui é grandemente facilitada pelo fato de que o próprio
Paulo às vezes esboçou listas dos traços que, a seu ver,
caracterizavam os que existiam inautenticamente. Essas
"listas de vícios” aparecem em Rm 1,29-31; 13,13; ICor
b. 10-11; 6,9-10; 2Cor 12,20-21; G1 5,19-21; e Cl 3,5.8.

135
Todas coincidem até certa medida e, sendo assim, a
maneira mais fácil de começar é esboçando uma simples
lista alfabética:

1. Ambição egoísta (2Cor, Gl)


2. Arrogância (Rm)
3. Arrogante (Rm)
4. Assassínio (Rm)
5. Bebedeira (Rm, Gl)
6. Blasfêmia (Cl)
7. Calúnia (Rm, 2Cor)
8. Concupiscência (Rm, lCor, Gl)
9. Contensão (Rm, 2Cor, Gl, Cl)
10. Conversa obscena (Cl)
11. Desobediente (Rm)
12. Dissensão (Gl)
13. Embriaguez (Rm, lCor, Gl)
14. Embuste (Rm)
15. Feitiçaria (Gl)
16. Homossexual (lCor)
17. Idolatria (lCor, Gl)
18. Imoralidade (Rm, lCor, Gl, Cl)
19. Incrédulo (Rm)
20. Injuriador (lCor)
21. Insensato (Rm)
22. Intrigante (Rm, 2Cor)
23. Inveja (Rm, 2Cor, Gl)
24. Ira (2Cor, Gl, Cl)
25. Licenciosidade (Rm, 2Cor, Gl)
26. Malignidade (Rm)
27. Maquinador do mal (Rm)
28. Odiador de Deus (Rm)
29. Paixão sexual (Cl)
30. Pederasta (lCor)
31. Perversidade (Rm)
32. Privado de sensibilidade (Rm)
33. Presunção (2Cor)
34. Rebeldia (lCor)

136
35. Roubo (lCor)
36. Sectarismo (Gl)
37. Sem amor (Rm)
38. Sem misericórdia (Rm)
39. Soberba (Rm)
40. Trapaceiro (lCor)
41. Viciosidade (2Cor, Gl, Cl).

A lista contém uma mistura de nomes abstratos (por


exemplo, “malignidade”) e concretos (por exemplo,
“inj uriador”) que indica que Paulo está interessado na situação
real, ainda que típica.AConsidera-se que as disposições
chegam à expressão na ação e o comportamento é tratado
como indicativo de uma atitude profundamente enraizada.
A técnica das “listas de vícios” era comum no meio em
que Paulo viveu, e é dificilmente surpreendente saber
que, dos termos da lista acima, alguns se encontram em
listas de origem judaica (números 1, 3, 4,9,10,15,17,19,
20, 21, 22, 23, 24,27,30,32,33,34,35,38,40,41), ao passo
que outros constituem parte da tradição helenística po­
pular (números 9, 11, 14, 16, 18, 23, 26, 30, 31, 37). Essa
dependência de Paulo do meio cultural em que trabalhou
só serve para iluminar o fato de que o resto dos 25 por
cento da lista acima é atestado só raramente, se é que o é,
em listas comparáveis do mesmo período, a saber, “arro­
gância”, “bebedeira”, “presunção”, “contenção”, “ma-
quinador do mal”, “dissensão”, “conversa obscena”, “sec­
tarismo”, “ambição egoísta”, “intrigante” e “rebeldia”.
.Todos esses vícios têm uma coisa em comum: tornam
impossível a comunidade genuína. Isso por sua vez chama
nossa atenção para o fato de que a vasta maioria dos itens
na lista acima é deste tipo.-.Três dizem respeito à religião
(nn. 4,16,19), quatro ao sexo (nn. 18, 20, 26, 31) e outros
poucos a sentimentos pessoais (por exemplo, nn. 13, 15,
30) e o resto são vícios sociais.
Este fato faz com que as listas paulinas se distingam
de outros catálogos contemporâneos que são pesadamente
carregados de vícios individualísticos; por exemplo, igno-

137
rância, falta de sensibilidade, covardia, pessimismo, ins­
tabilidade etc. Essa diferença é somente de ênfase, mas é
extremamente importante para a correta compreensão
da perspectiva dc Paulo. Os contemporâneos de Paulo não
eram conscientes da natureza social do homem. Tanto a
tradição grega da responsabilidade cívica como a convicção
judaica da solidariedade de sua raça garantiam que
dessem alguma proeminência aos vícios sociais. O indi­
víduo, não obstante, era primário. Filón, por exemplo,
apresenta sua lista elaborada de 160 vícios (em grande
maioria são individualísticos), como as características de
“quem ama o Prazer” {De sacrificiis Abelis et Caini, n. 32).
Estava influenciado pela tradição estoica, que também
estava na raiz da filosofia moral popular do período. Os
estoicos criam que a virtude está baseada no conhecimento.
Sendo assim, só os sábios podem ser virtuosos. As quatro
virtudes cardeais caracterizam o sábio, e destas Zenão, o
fundador da Stoá, desenvolveu quatro vícios cardeais com
suas exatas contrapartidas, a saber, “insensatez”, “ex­
cesso”, “injustiça” e “timidez”/Édificilmenteinesperado,
portanto, que o indivíduo não estivesse no centro do
quadro. A sociedade entrava na cena somente porque o
indivíduo era forçado a interagir com ela, e a crença era
que a sociedade melhoraria à medida que os indivíduos se
tornavam progressivamente mais virtuosos/''
Paulo não era tão ingênuo, porque estava extrema­
mente consciente do poder do falso sistema de valores
(“Pecado”) hostil à autenticidade. Sua visão da natureza
autêntica da humanidade fê-lo muito mais sensível que os
existencialistas aos fatores que inibem genuína comuni­
cação. Suas “listas de vícios” evidenciam que via o mundo
como o lugar onde os indivíduos separavam-se uns dos
outros por atitudes que tornavam a comunidade impos­
sível. O seu catálogo sugere não só falha em reconhecer o
outro, mas também repulsa ativa do outro. É a negação da
relação “eu-tu”.
(Mjma vez mais, existe estreita correspondência entre
a visão de Paulo e uma avaliação realística dasociedade

138
contemporânea. A solidão é endêmica. O medo legítimo de
ser usado ou abusado produz o medo do envolvimentojyks
pessoas podem ser roubadas nas ruas à plena luz do dia e
ninguém defendê-las-á. As pessoas recusam-se a fazer
amigos com os moradores da casa ou apartamento próximo
porque pode haver exigências que não querem encontrar.
As portas sempre estão trancadas, e preparações para um
feriado são conduzidas com trepidação. O miasma da
suspeita está em toda parte.

139
I

LEITURAS SUGERIDAS

Daniel, J. L., "Anti-Semitism in the Hellenistic-Roman Period” em


Journal of Biblical Literature 98 (1979), 45-65.
Oepke, A., “Woman”, em Theological Dictionary of the New Testament
I, 777-784.
Loewe, R., The Social Position of Women in Judaism, SPCK, Londres,
1966.
Segal, J. B., “The Jewish Attitude towards Womens”, em Journal of
Jewish Studies 30(1979), 121-137.
Pomeroy, S. B., Goddesses, Whores, Wives, Slaves: Women in Classical
Antiquity, Schocken, Nova York, 1976.
Kitto, H., The Greeks, Pelican, Londres, 1957, cap. 12.
Oxford Classical Dictionary, artigos “Slavery, Law of’ e “Slaves”.
Bartchy, S. S., Mallon Chresai: First Century Slavery an the
Interpretation of 1 Corinthians 7:21, SBL, Missoula, 1973.
Finley, M. I., Slavery in Classical Antiquity, Barnes & Noble, Nova
York, 1968.

140
CONCLUSÃO

'A compreensão de Paulo da condição da humanidade


inautêntica é dominada pelo conceito de Pecado, Morte e
Lei. Os três são estreitamente inter-relacionados.'Pecado
é o “mundo” na falsa orientação dada ao gênero humano
pelo pecado de Adão. Essa orientação é ratificada e inten­
sificada pelas atitudes de seus descendentes. Embora
teoricamente livres, todos os nascidos na sociedade de­
sorientada não têm, na realidade, nenhuma escolha a não
ser internalizar sua orientação. Seu padrão de compor­
tamento reflete necessariamente o falso sistema de valores
que receberamZExistem,-portanto, no estado de Morte
que significa que o seu modo de ser não é o pretendido pelo
(lriador._CÇ
Para Paulo, uma das manifestações mais importan­
tes do poder do Pecado foi a avaliação errônea do papel da
hei. Todos os nascidos no mundo judaico de seus dias não
IMídiam senão assimilar a atitude prevalente de exagerado
respeito à Lei que se desdobrava em obediência cega.
( ledendo à Lei sua obrigação inalienável de fazer escolhas
pessoais, os judeus — e, por implicação, todos os outros
que se sujeitavam da mesma maneira à qualquer lei —
destruíam a liberdade de responsabilidade que é a essência
da dignidade humana<Por sua atitude para com a Lei,
reduziam-se à condição subumana da Morte. E por isso
que Paulo pode dizer que o “poder do Pecado é a Lei” (ICor
I5,56ll>
0 Pecado exerceu sua influência no domínio das
relações interpessoais tanto no nível social como no indi-

141
vidual. Os vários blocos herdaram atitudes antagônicas
que os forçaram a se separarem e, dentro destes blocos, os
indivíduos eram sujeitados a condicionamento que tornou
impossível qualquer coisa que fosse além do coletivismo
funcional. O conseqüente isolamento fez os indivíduos
cada vez mais vulneráveis à orientação inautêntica da
sociedade e, como resultado, eles tornaram-se os centros
de seus próprios mundos privados constituídos pelo visí­
vel e tangível. Porque sentiram que podiam controlar e
dominar “coisas”, deram-se rédeas soltas à sua “concupis­
cência”. Isso permitiu que as coisas ganhassem o predomí­
nio e assim intensificassem a alienação do eu inautêntico.
Paradoxalmente, porém, também isso trouxe escravidão
à criação material (Rm 8,21), porque a ordem da natureza
foi distorcida (cf. Lv 26,33-35)JÀ vaidade e corrupção da
criação material é a conseqüência da Morte da humani­
dade. i.
f\O conceito que o Apóstolo tem, portanto, da
inautenticidade é altamente unificada, e o esboço acima
tem o efeito de assinalar o Pecado como o elemento mais
fundamental. Uma vez que a humanidade for livre do
Pecado, seguirá naturalmente sua libertação da Morte e
da Lei, assim como também a libertação das coisas cria-
das. Este ponto focaliza nossa atenção na questão-chave:
como se realiza a libertação do Pecado? E voltamo-nos,
assim, à visão que Paulo tem da existência autêntica.^'

142
III PARTE

A COMUNIDADE
O DOM DE ESCOLHA

. Na transição da inautenticidade para a autenticida­


de, será que a humanidade encontra-se a si mesma ou é
encontrada por outrem?\Os existencialistas replicam que
a humanidade encontra-se a si mesma, mas quando são
impelidos a especificar como isso ocorre de fato suas
respostas não são absolutamente satisfatórias.
A despeito da variedade de perspectiva, todos véem
o morrer como a última realidade, e é da morte que
derivam o seu conceito de autenticidade. Para Heidegger,
a morte é a proeminente possibilidade que todos devem
realizar. Tornamo-nos autênticos vivendo na antecipação
da morte e fazendo dela o fator unificador de nossa
existência. E a morte que dá o sentido à vida, e sua
aceitação liberta-nos do interesse com “coisas” e da tira­
nia da “multidão”. Sartre, porém, assinala que esta expla­
nação é autodestrutiva. Ela livra da inautenticidade
somente desvalorizando toda a existência. Isso, para ele,
tornou-se a chave e ele proclama: “E absurdo que nasce­
mos; é absurdo que morremos”. Ele vê, portanto, a auten­
ticidade como a aceitação do absurdo sem significado da
existência.
O senso comum rebela-se contra essas assim chama­
das “soluções”. Os existencialistas merecem crédito ao
esmagar a ilusória complacência da inautenticidade.
Quando levados a sério, eles tornam impossível aos que
são “mortos” crerem que estão “vivos/ÍMas pela ilusão só
podem substituir o desespero .»Se o presente é sem sentido
e o futuro nada, não pode haver nenhuma esperança e não

145
há nenhuma razão para lutar, a fim de sair da inau-
tenticidade. Fornecendo uma aparência de significado,
uma ilusão pelo menos tem valor e ela não será abando­
nada até que um valor positivo alternativo seja proposto.
Para o filósofo, a aceitação do desespero pode parecer
gesto heróico que separa a pessoa do rebanho, mas ao
senso comum ordinário surge como nada mais que
dramatismo insensato. Em última análise, os existen­
cialistas se vêem forçados a confessar sua impotência em
tratar com a situação. A implicação de suas “soluções” é
que a condição humana é irremediável.
Paulo haveria de concordar, mas só até esta altura,
porque sua aceitação da relação Criador-criatura permi­
tiu-lhe fazer distinção que eles não podiam imaginarzfcle
viu a situação humana como irremediável a partir de
dentro e nao a partir de fora. Dai, frisa consistentemente
que a autenticidade torna-se possível somente por inter­
venção divina como, por exemplo: “Estáveis mortos...
Deus vos vivificou” (Cl 2,13)¿

Novo ato criador

A afirmação de que “Deus vos vivificou” e afirmações


paralelas, como “Deus justifica” (Rm 8,33), devem ser
analisadas mais rigorosamente, porque não podem ser
literalmente verdadeiras. “Vida”, como vimos, é o termo
paulino para a autenticidade. A criatura humana, porém,
é possibilidade determinada por decisão. E uma forma de
ser que se cria por meio de suas opções. Dizer que “Deus
concede justificação” significa que Deus anula a possibi­
lidade fundamental que construiu dentro da criatura
humana. Se fosse este de fato o caso, o Criador contradiria
a si mesmo e traria à existência um tipo de ser inteiramente
distinto. A autenticidade, pois, não pode ser conferida. Só

146
pode ser escolhida. A criatura humana, se é que deve ser
verdadeira para com a própria natureza, deve decidir pela
autenticidade.
. No estado de “morte”, como vimos, o gênero humano
não pode escolher. Sua liberdade é anulada pela escravidão
ao Pecãdó7“A pressão insuperável e inevitável do falso
sistema de valores da sociedade arrasta todos a um
padrão inautêntico de comportamento. A autenticidade
permanece possibilidade ontológica, mas ao nível da vida
da realidade não pode ser escolhida realmente. Daí, a
parte de Deus na transição da “morte” à “vida” consiste em
restaurar a autenticidade ao estado de uma real opção.
Em última análise, a salvação consiste no dom da escolha.
O primeiro passo de Deus no processo consiste em
mandar o seu Filho: “Deus fez o que a lei enfraquecida pela
carne não podia fazer: enviando o seu próprio Filho na
semelhança da carne pecadora e em vista do pecado,
condenou o pecado na carne” (Rm 8,3^jA despeito dessa
real integração na situação histórica (“na semelhança da
carne pecadora”), Cristo não apenas refletiu o que era o
resto da humanidade. Manifestou o que a humanidade
podia Tornar-se. _O mero fato de sua existência como a
i ncorporação da humanidade autêntica demonstrou que o
modo de existência que o mundo considerava normal não
era o único possível/¿Antes do advento de Cristo, somente
a existência inautêntica era visível e, se abstrairmos de
Cristo e dos que o seguiram autenticamente como o fazem
os existencialistas, então o que vemos é a humanidade em
seu modo inautêntico. Dificilmente surpreende, pois, que
os existencialistas deviam ser forçados ao desespero. Sua
abstração da presença de outros Cristos no mundo pode
ser explicada como uma objeção, mas os santos são tão
poucos que nesta conta é difícil faltar a perspectiva
existencialista.
Este ponto, porém, não é o nosso assunto no presente.
Para Paulo, a humanidade autêntica de Cristo era a
revelação de que o modo de ser determinado pelo Pecado
não era a única opção. Os que tinham olhos para ver

147
podiam então perceber que dentro da situação humana
existia não só o isolamento egocêntrico a que se tinha
habituado, mas também um voltar-se criativo para os
outros. ^Sua presença dava à humanidade novo critério
pelo qual julgar-se a si mesma, criando assim a oportu­
nidade de ver a inautenticidade pelo que era realmente.
Forçou também a humanidade a reconhecer que os laços
do Pecado não eram inquebráveis, que a tirania das
atitudes e valores contemporâneos podia ser abalada,^Se
um homem não era sujeito da dominação do Pecado, todos
podiam ficar livres. Paulo não especula como Cristo escapou
da servidão ao Pecado apesar de sua imersão na situação
humana. Foi simplesmente um fato que ele tomou como a
base do seu sistema teológico e, se ele fosse empurrado até
a última instância, suspeito que poderia apenas sugerir
uma disposição providencial.
Estamos agora em condições de apreciar a importância
da insistência de Paulo, para quem a salvação ocorre
dentro da história. E o que se expressa na carta aos
Colossenses. Paulo tinha consciência deste elemento
crucial dos inícios, e em suas cartas anteriores se toma
inteiramente como evidente e concedido. Em Colossas, ao
invés, Paulo tinha razão de temer que este aspecto su­
mamente importante estava sendo deixado fora de vista.
Nosso conhecimento da assim chamada “heresia”
colossense é incompleta e resumida, mas geralmente se
está de acordo que havia a tendência entre os colossenses
e atribuir um papel em sua salvação a seres puramente
espirituais, ou seja, a anjos. Daí, ele tem de insistir:
“Portanto, assim como recebestes a Cristo Jesus corno o
Senhor, assim nele andai, tendo sido arraigados nele,
sobre ele edificados e sendo confirmados na. fé, como
aprendestes” (Cl 2,6). O Cristo, que salva, não é um ser
celeste que opera por meio de poderes do espírito. Sob
Deus, o salvador é o Jesus que se tornou Senhor (cf. Rm
14,9). Apontou-se que Paulo usa “Jesus” para evocar a
historicidade de Cristo. Essa interpretação é confirmada
pelo mais antigo comentário a Cl 2,6: “Vós não aprendestes

148
assim o Cristo, assumindo o que ouvistes (sobre) ele e
fostes ensinados nele no modo em que ele é verdade,
(nomeadamente) em Jesus” (Ef 4,21)?Jesus é a verdade do
Cristo que salva, porque ele é a perfeição de sua huma-
i) idade que é significativa e relevante^Numa variação
sobre este tema, Paulo escreve: “Os que de antemão pré-
conheceu (Deus), ele também predestinou a serem con­
formes à imagem do seu Filho, a fim de que ele fosse o
primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29).
A presença de Cristo no mundo criava uma alterna­
tiva. A inautenticidade agora estava confrontada com a
autenticidade. Aexistência de alternativa, porém, é apenas
pré-condição para a escolha. Não se pode dizer que alguém
escolhe, se não existe nenhuma alternativa. O fazer atual
de uma escolha é assunto diverso, e o realismo teimoso de
Paulo o forçou a reconhecer que o mero fato da existência
de Cristo não tornava realmente possível para a huma­
nidade decidir por ele. A realidade do Pecado não era
destruída pela presença de Cristo, e a pressão que ele
exercia continuava a orientar a humanidade para a
inautenticidade. Os dominadores desta eram apenas
“destinados à destruição” (ICor 2,6). Requeria-se algo
para contrabalançar essa influência; e uma vez que poder
só pode se confrontar com poder, Paulo afirma que Cristo
é “o poder de Deus” (ICor l,24).tSua pessoa não só
propunha, ela capacitava, porque ela incorporava “o amor
de Deus” (Rm 8,35.39). O amor criativo de Deus torna-se
efetivo no amor de Cristo. O poder que trouxe o mundo ao
ser é desdobrado em Cristo para capacitar a humanidade
a conseguir a autenticidade e, assim, o que o Criador
pretendeu. Isso é a graça que torna a decisão de fé possível
(Ef2,8k^

149
O chamado externo

A situação de Paulo era paralela à nossa pelo fato que


teve de tratar com os que nunca conheceram Cristo na
carne. Não obstante, Cristo pemanecia o modelo de huma­
nidade autêntica, e ele exigiu explicitamente reconheci­
mento de Jesus como o Senhor como o primeiro passo na
aquisição da autenticidade: “Se confessares com teus
lábios que Jesus é o Senhor e creres em teu coração que
Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo” (Rm 10,9)JSe
era preciso conhecer a Jesus e experimentar o seu poder,
isso só podia ocorrer de uma maneira: \

/ Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.


A. Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram?
\ E como poderiam crer naquele que não ouviram?
b E como poderiam ouvir sem pregador? (Rm 10,13-14).

A segunda pergunta retórica é altamente condensada


e, como em lTs 2,13, duas idéias diversas são entretecidas.
A lógica do argumento exige: “E como poderiam crer
naquele de que não ouviram?, e isso exerceu influência
determinante em todas as traduções correntes. Que Paulo
tinha em mente essa dimensão, não pode haver dúvida,
porque alhures proclama: “Somos embaixadores no inte­
resse de Cristo” (2Cor 5,20). O que Paulo escreveu real­
mente, porém, é bastante diferente, porque as regras da
gramática grega permitem apenas uma tradução, a saber:
“E como poderiam crer naquele que não ouviram”?/ÍUma
vez que se trata do Senhor, essa tradução implica neces­
sariamente que os que aqui ouvem, ouvem a alguém em
quem são chamados a crer, a saber, Cristo. Na pregação
que leva à autenticidade e Cristo que fala,
O que Paulo quer dizer com isso está claramente
articulado em 2Cor 4,10-11:

150
Sempre trazemos em nosso corpo o morrer de Jesus, a fim de que
a vida de Cristo possa se manifestar em nosso corpo.
Pois continuamente, enquanto vivemos, somos entregues à morte,
a fim de que a vida de Jesus possa se manifestar em nossa carne
mortal.

À primeira leitura, o tom paradoxal desta afirmação


é desconcertante, mas é tão típico de Paulo. O aparente
paradoxo enraíza-se no fato de ele usar “vida” em dois
sentidos diferentes. Por “enquanto vivemos”, ele entende
sua vida física ordinária que é ameaçada por perseguição.
Ainda que esta existência ordinária de Paulo seja capaz de
manifestar “a vida de Jesus”. Tem-se notado que o termo
“Jesus” é maneira de Paulo sublinhar a historicidade
daquele que agora é o Senhor Ressuscitado, e “vida” usa­
se aí no sentido muito significativo de existência autênti­
ca.‘A humanidade autêntica que Jesus incorporou está
agora desdobrada na existência de Paulo. É assim porque
ele carrega no seu corpo, isto é, no seu físico, o “morrer de
Cristo”.
Com freqüência se toma essa frase no sentido de que
a vida do Apóstolo, da mesma forma que a do seu Senhor,
era martírio perpétuo. A base para essa interpretação é a
afirmação no versículo seguinte de que Paulo e seus
coorperadores estão continuamente em perigo de morte.
¿As duas afirmações, porém, são idênticas. Uma trata doj
aspecto factual da situação de Paulo, ao passo que a outra
reprêsénfaa tentativa de expressar o eu significado,- Não
é suficiente pretender, como o fazem alguns exegetas, que
as freqüentes libertações de dificuldade, perigo e morte
são evidência de que Cristo ainda está vivo e tem poder
divino. De ponto de vista meramente profano, essas
escapadelas provariam apenas que Paulo era feliz. De
perspectiva mais religiosa, não provariam nada mais que
ele estava sob proteção divina. Não provam nada a respeito
de Cristo, particularmente em vista da teocentricidade do
ensino de Paulo. Paulo, pelo contrário, evoca explícita­
mente “o morrer de Jesus”. O termo muito raro “o morrer”

151
(nekrosis) sugere vida como culminando na morte. Vimos,
porém, que a morte de Jesus era muito mais que a
terminação de sua existência terrena. Era reveladora da
qualidade de sua vida inteira.JO caráter absoluto da
autodoação iluminado em sua morte demonstrava o amor
criativo altruísta que é a essência da humanidade au­
têntica (Por causa de sua entrega a Cristo — “já não sou
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (G1 2,20;
contraste a Rm 7,20)—que se atualizava em sua dedicação
aos outros enfrentando todas as dificuldades e perigos (cf.
2Cor 11,23-30), Paulo sentia que podia pretender mani­
festar a mesma qualidade de existência. O seu próprio ser,
selado com “o morrer de Jesus”, revelada “a vida de
Jesus”. Sendo assim, ele falava “em Cristo” (2Cor 2,17).
Parece claro que para Paulo a pregação, eficaz ou
carregada de poder, sobre Cristo é possível quando os
pregadores refletem em sua personalidade a qualidade da
humanidade autêntica sobre a qual eles falam. E dificil­
mente poderia ser de outra maneira, uma vez que recor­
damos que o envio de Jesus Cristo inaugurou nova era no
relacionamento Criador-criatura. Jesus não proclamou
apenas como o fizeram os profetas do Antigo Testamento.
Ele era a vontade de Deus para a humanidade (lTs 5,18),
o poder e sabedoria de Deus (ICor 1,24) e, acima de tudo,
o amor de Deus (Rm 8,39>^Apalavra de Deus não mais era
meramente verbal; estava encarnada. Retornar à pro­
clamação puramente verbal, privada de todo reforço
existencial, seria negar a novidade introduzida por Cristo.
Para serem eficazes, os pregadores devem ser como Cristo
foi. Exibindo a humanidade autêntica que era a de Cristo,
demonstravam a viabilidade continuada de uma alter­
nativa à inautenticidade e ao mesmo tempo davam forças
oü poder a outros para escolhê-laf‘{Ainda que eu falasse
"línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a
caridade, seriam como um bronze que soa ou como um
címbalo que tine” (ICor 13,1).
AE preciso frisar queessa representação de Cristo não
se limita aos oficialmente delegados a pregar. E parte

152
II

integral da responsabilidade de todos os que aceitaram


Cristo. Em sua primeira carta, Paulo chama a atenção a
este ponto: /•.

Vós vos tornastes imitadores nossos e do Senhor... de sorte que


vos tornastes modelos para todos os fiéis da Macedonia e da
Acaia. Porque, partindo de vós, se divulgou a Palavra do Senhor,
não apenas pela Macedonia e Acaia, mas propagou-se por toda
parte a fé que tendes em Deus. Não é necessário falarmos disso
(lTs 1,6-8).

Mesmo que concedamos um elemento de exagero


retórico, a última frase é indicativa do impacto da comu­
nidade dos tessalonicenses. O que, porém, é significativo
é que esse impacto era duplo. Era tanto verbal (“a palavra
do Senhor”) como existencial (“a fé que tendes em Deus”).
Em consequência, eles constituíam um exemplo aos outros
fiéis. O termo grego vertido na tradução acima como
“modelos” e aqui explicado como “exemplo” (íypos) é mais
bem traduzido por “padrão”/^Os tessalonicensesexibiam
um padrão de comportamento em que as palavras e as
ações proclamavam a mesma realidade. Nisso mostravam-
se como imitadores, não só de Paulo, mas de Cristo, no
qual palavra e ser estavam totalmente em harmonia/ ■
Em lTs 1,6-8, Paulo trata formalmente só da influ­
ência de uma comunidade cristã em outros, mas seria
errado limitar o sentido de suas palavras a essa situação
somente. A autenticidade dos tessalonicenses também
teria tido impacto sobre o seu entorno gentio. Isso era
certamente verdadeiro no caso dos filipenses:

Fazei tudo sem murmurações nem reclamações, para vos


tornardes irreprováveis e puros, filhos de Deus, sem defeito, no
meio de uma geraçSo má e pervertida, no seio da qual brilhais
como astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida (F1 2,14-
16).

153
0 contraste neste texto entre autenticidade e
inautenticidade expressa-se em termos de luz. Sendo
“puros” ou sinceros, ou seja, todos de um só bloco, sem
nenhuma mistura estranha, os fiéis em Pilipenses de­
monstraram sua diferença com o resto do mundo. Ne­
nhum elemento verbal entra na descrição. Trata-se sim­
plesmente da qualidade de suas vidas e isso só “é levar
avante a Palavra de vida”. Sendo o que são, constituem
demonstração da real possibilidade de novo modo de
existência que difere radicalmente do que era aceito como
normal. Seu evangelho não é teoria, mas fato, razão pela
qual Paulo o designa palavra de “vida”. A lei falava de
autenticidade, mas, uma vez que era apenas uma “coisa”,
faltava-lhe o poder de converter uma possibilidade teórica
em realfSomente viver pode comunicar vida; ela não pode
ser gerada apenas por palavras. O amor criativo, que
enformava a existência dos filípenses, era convite que
criava a possibilidade de resposta. Essa é a frutuosidade
da autenticidade (Cl 1,10; Ef 2,10).

Imitação

Em nenhum lugar, talvez, a dimensão existencial se


manifesta tão claramente como na exortação: “Sede meus
imitadores, como eu mesmo o sou de Cristo” (ICor 11,1; cf.
4,16-17). Esta afirmação extraordinária não é única. O
mesmo tema aparece ao escrever aos tessalonicenses (lTs
1,6), aos gálatas (G1 4,12) e aos filipenses (F1 4,9). As
únicas cartas eclesiais em que não aparece são Romanos
e Colossense^AEsse fato em si mesmo é altamente signi­
ficativo, porque estas duas últimas comunidades eram as
únicas duas que não conheciam Paulo pessoalmente. Não
lhes podia propor imitação, porque imitação exige presença
física/Jgualmente, tinhade propor imitação às comunida-

154
des nas quais tinha pregado, porque não havia nenhuma
outra forma de justificar sua afirmação de que uma nova
forma de existência humana entrava no mundo com
Cristo. Palavras somente podiam esboçar uma possibili­
dade atraente, tantas utopias murcharam ao sopro can­
dente do realismo. Uma possibilidade teórica pode ser
objeto de conversas. Uma possibilidade real tinha de ser
vista. Para justificar sua pretensão referente à realidade
presente do amor criativo de Deus, ele não podia conten­
tar-se com referir-se a um indivíduo do passado. Aqueles
com que tinha de tratar nunca tinham encontrado com
Jesus na carne. Com toda honestidade, pois, não podia
recomendar que o imitassem. Ainda que seus ouvintes
estivessem preparados para aceitar que a humanidade de
Cristo era diferente daquela que eles encontravam ordi­
nariamente, podiam razoavelmente pretender que este
era um caso único e irrepetível/Para ser convincente, Paulo
tinha de dizer: “Em mim vós o vedes”. Se seu auditório não
pudesse perceber a diferença entre Paulo e eles, c se eles nãó
pudessem experimentar a atração de plenitude que os al­
cançava, provavelmente nada aconteceria.^
Paulo era suficientemente realista, porém, para reco­
nhecer que nenhum testemunho se dá a não ser que seja
recebido. Exorta, então, os gaiatas: “Que vos torneis como
eu, pois eu também me tornei como vós” (G1 4,12). Nem
sua pregação nem sua personalidade eram lançadas sobre
quem tinha que convencer. Ele se inseria em sua situação
de forma paralela à inserção de Cristo na situação humana.
Quão longe ele foi, está bem descrito na famosa passagem
onde enuncia o seu princípio de adaptação:
Ainda que livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim
de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como
judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão sujeitos à lei,
fiz-me como se estivesse sujeito à lei — se bem que não esteja
sujeito à lei —, para ganhar aqueles que estão sujeitos à lei —
ainda que não viva sem a lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo
— para ganhar aqueles que vivem sem a lei. Para os fracos, fiz-
me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim
de salvar alguns a todo custo (ICor 9,19-22).

155
A leitura superficial desta passagem dá a impressão
de cruel oportunismo. Que semelhante acusação se levan­
tou de fato contra ele, não resta dúvida (cf. G1 5,11; 2Cor
1,17) e o caráter apaixonado de sua defesa indica que era
sensível a essa acusação precisamente porque havia nela
um elemento de verdade, se bem que falsificado pelo
exagero. A verdade era que Paulo variou em sua consi­
deração das comunidades e dos indivíduos, mas não até o
ponto — ou pelos motivos — que seus adversários lhe
imputavam. Sabia que não existe testemunha absoluta­
mente válida para todos os tempos e todos os lugares. Se
sua representação de Cristo não se integrasse totalmente
com as necessidades e capacidades do indivíduo ou grupo
concreto, não poderia ser convite vital e eficaz à autenti­
cidade. Sendo assim, tinha que saber e entender, partindo
não de fora, mas de dentro. Encontramos aí o contraba­
lanço ao quadro extremamente gélido que o Apóstolo faz
do mundo, pois está claro que sua atitude não era de
desprezo. Via e descrevia a realidade como era, sabendo,
porém, que seus companheiros de humanidade eram
vítimas de erro trágico. Por que não deveria ele sacrificar
o auto-respeito? A conformidade com os princípios seria
vitória barata e fácil. À luta para andar na faixa estreita
que separa flexibilidade de compromisso era batalha que
valia mais a pena. Aceitou o desafio com todos os seus
riscos, porque neste caso o seu amor se punha em total
tensão e seu poder transformava sem se impor. (.

156
LEITURAS SUGERIDAS

Macquarrie, J., Existencialism, World Publishing, Nova York, 1972,


cap. 11 (Authenticity).
M., An Existencial Theology, SCM, Londres, 1965, cap. 6 (Authenticity).
Murphy-O’Connor, J., Paul on Preaching, Sheed & Ward, Nova York,
1964.
Stanley, D. M., “ ‘Become Imitators of Me’: The Pauline Conception of
Apostolic Tradition”, em Diblica 40 (1959), 859-877.
Boer, W. P. de, The Imitation of Paul, Kok, Kämpen, 1962.
Chadwick, H., “All Things to All Men” (ICor 9:22), em New Testament
Studies 1(1954-55), 261-275.

157
LIBERTAÇÃO

A autenticidade enraíza-se na liberdade, que, em


conseqüência, é apresentada por Paulo como a meta da
proclamação da semelhança com Cristo: “Vós fostes cha­
mados à liberdade” (G15,13). O Apóstolo, porém, continua
¡mediatamente a exortar os gálatas: “Não useis vossa
liberdade como oportunidade para a carne” (5,13). Esse
texto adverte-nos que a liberdade tem duas facetas. Mais
fundamentalmente, implica uma falta de freio ou
compulsão, e isso, por sua vez, implica a oportunidade
para a ação^^Asaim, reconhecendo que as duas estão
intimamente associadas, devemos distinguir entre “li­
berdade de” e “liberdade para”./'
Poucos temas estão mais perto do cerne do
existencialismo do que a liberdade. A palavra ocorre com
regularidade quase monótona, mas, ao tentarmos captar
o conceito subjacente, ele foge continuamente. Temos
alguns relances parciais, mas a totalidade nos escapa;lA
razão para isso é que os existencialistas focalizam pri­
mariamente a “liberdade para”, ou seja, ao nível da ação
que está fundada na decisão./Tomam como concedida a
“liberdade de”, e é precisamente aqui que se tornam
evasivos porque sua própria análise da condição humana
contradiz essa suposição. Já vimos como muitos deles
insistem na sujeição do indivíduo ao “rebanho” ou à
“multidão”. Essa dominação nega a “liberdade de” no
nível ôntico, porque o indivíduo está de fato sujeito a freio
e compulsáo¿Na_realidade, portanto, não existe nenhuma
base à “liberdade para”.^A confusão tornou-se possível
pela compreensão dos existencialistas da relação entre o

159
ôntico e o ontológico ¿A liberdade ontológica é dada com a
natureza humana. Não se pode conceber um ser humano
sem essa possibilidade. Os existencialistas deslizam do
ontológico ao ôntico ao assumir que o que é verdade em
teoria deve ser verdade de fato. ,
Paulo estava muito perto da realidade para cometer
esse erro. Tomava a liberdade ontológica como concedida.
O seu interesse voltava-se para a liberdade ôntica, e
proclamava aos fiéis: “Vós que outrora éreis escravos do
Pecado... fostes libertados do Pecado” (Rm 6,17-18)^^
questão é, pois: como o fiel é libertado do Pecado?^

O “como ” da liberdade

Existe vasta literatura dedicada à exposição do con­


ceito paulino de liberdade, mas lê-la com a pergunta
acima na mente é experiência muito desconcertante,
porque uma resposta adequada nunca se apresenta. Na
grande maioria dos casos, a pergunta nunca é feita.
Poucos autores estão isentos da crítica, mas suas respostas
dificilmente podem se considerar satisfatórias. Assim,
por exemplo, em seu livro Teologia e ética em Paulo
(Theology and Ethics in Paul, Nashville, 1968), V. P.
Purnish escreve:

O crente não mais está sob o poder (a lei) do pecado, mas sob o
poder de Deus (a graça). Tem novo Senhor, cujo poder é soberano
sem ser tirânico, pois no serviço de Deus, em ligação com o seu
Senhor, é livre para receber a herança prometida (p. 180).

Tudo o que isso significa é que os crentes não mais


estão escravizados ao Pecado, porque se põem em servi­
dão a Cri sto.O tom paradoxal torna a formulação atraente

160
e dá a impressão de profundidade; mas em vez de focalizar
a “liberdade de” que é o tema crucial, Furnish passa
¡mediatamente à idéia de serviço que forma parte do
domínio da “liberdade para”. Permanece assim no nível
puramente descritivo e deixa sem resposta a pergunta de
como o poder de Cristo age sobre o crente. Bultmann está
exposto à mesma objeção. Com grande exatidão e preci­
são, afirma que a liberdade do Pecado “não é garantia
mágica contra a possibilidade do pecado... mas libertação
da compulsão do pecado” (Theology oftheNew Testament
I, p. 332), mas então continua:

O poder do Espírito manifesta-se no fato de que ele dá ao crente


liberdade, abre a vida futura e eterna. Pois a liberdade não é nada
mais que estar aberto para o futuro genuíno, deixando-se ser
determinado pelo futuro (p. 334).

A possibilidade de ser determinado pelo futuro (o que


quer que possa significar) é certamente uma qualidade da
“liberdade para”{.\£. “liberdade de'’ é concebida como dom
do Espírito, o que é certamente correto, mas o problema de
como essa liberdade é dada se omite.
Outros autores chamam a atenção para o fato de que
Paulo relaciona a liberdade do Pecado muito estreitamente
com o batismo:

Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus


é na sua morte que fomos batizados? Portanto, pelo batismo nós
fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi
ressuscitado entre os mortos pela glória do Pai, assim também
nós vivamos vida nova... sabendo que nosso velho homem foi
crucificado com ele para que fosse destruído este corpo de pecado,
e assim não sirvamos mais ao Pecado. Com efeito, quem morreu
ficou livre do pecado (Rm 6,3-7).

Eles falham, porém, em apreciar o sentido real deste


texto ao interpretá-lo em termos de poder interno comu­

161
nicado ao crent^Z. Isso os leva a incríveis circunvoluções
quando são urgidos a explicar o que ocorre realmente
neste caso. Belo exemplo da espécie de coisa, a que se referiu,
é fornecido por R. Schnackenburg no segundo volume de sua
Existência cristã segundo o Novo Testamento (L'existence
chrétienne selon le Nouveau Testament), Bruges, 1971:

Não se trata de mudança física; as disposições e poderes do


homem natural permanecem. Ao invés, trata-se do fato de que o
batizado recebe o Espírito de Deus como novo poder e capacidade
para banir todo mal e obscuridade... Não se trata de nova
atitude, mas de novo poder dado a nós por Deus, o Espírito
sempre ativo, onipotente em obras e sumamente vivo.
Como homens modernos, é possível que nos deixemos invadir por
uma onda de ceticismo. Será que Deus comunica realmente o seu
Espírito? Será que o homem é criado de novo no batismpT-Sérá
que sentimos algo do poder do Espírito dado a nós? Séria impos­
sível prová-lo a um descrente; e mesmo nós, que recebemos o dom
da fé, nem sempre “sentimos” o Espírito de Deus. Mas se nutrir­
mos nossa vida de fé, se recordarmos na oração o que Deus fez por
nós... (pp. 252-2531.

A última parte dessa citação dá a impressão de que


Schnackenburg aconselha auto-sugestão. Se repetirmos,
com nossos botões que um poder opera dentro de nós,
terminaremos gerando a convicção de que esse poder está
de fato em ação. Assim parece que somos nós que traze­
mos à existência esse poder—modo de ver que não se pode
reconciliar com a perspectiva de Paulo/^
No sentido de manifestar o que está implícito na
posição de Schnackenburg, tomemos um exemplo concreto.
Em nosso mundo é difícil, se não impossível, ter sucesso
nos negócios sem jeitinhos. Se a desonestidade não entra
no processo da produção e venda, existe a tendência a
trapacear nos impostos. Essa atitude é tão difusa, que é
tida inteiramente como concedida. Temos, pois, aí um
bom exemplo do que se quer dizer pela compulsão do
Pecado. Essa desonestidade é relevada pela sociedade e
todos se conformam com prazer. Os cristãos, imbuídos

162
com o espírito do evangelho, tomam ¡mediatamente cons­
ciência dessa pressão ao tentar resistir a ela. Estar sob
pressão, porém, é ser não-livre, porque a “liberdade de"
implica falta de compulsão ou freio. Embora se lhes diga
todo domingo que simplesmente porque foram batizados
são livres e, quando se aventuram em expressar dúvidas,
são meramente informados de que devem fortalecer sua fé
na oração/Ede admirar que alguns se tornem céticos e
achem que a teologia não passa de conversa evasiva? /.-

A comunidade pecadora

A ênfase de Paulo em relacionar a “liberdade de" com


o batismo torna-se clara quando reconhecemos que o
batismo é rito de iniciação. É a entrada solene na comu­
nidade dos fiéis. E focalizando este aspecto que podemos
começar a entender a maneira como o Apóstolo concebeu
a liberdade do Pecado.
APaulo herdou de sua formação judaica a idéia de que
a comunidade escatológica do Messias seria inteiramente
livre do pecado.'Este tema aparece pela primeira vez na
afirmação do trito-Isaías, segundo o qual “todo o meu povo
será justo” (60,21). O que isso significa é esclarecido por
Ezequiel: “Porei no vosso íntimo o meu espírito e farei com
que andeis de acordo com meus estatutos e guardeis as
minhas normas e as pratiqueis... libertar-vos-ei de todas
as vossas impurezas” (36,27-29). O tema é retomado na
literatura sapiencial (por exemplo, “os que agem com
minha ajuda não pecarão”, Eclo 24,22), mas a maior
concentração de testemunhos encontra-se na literatura
apócrifa que florescia nos tempos de Paulo. Não só temos
a insistência contínua dos essênios na santidade de sua
comunidade (especialmente CD 20,2-8 e 1QS 4,20-23),
mas também deparamos afirmações explícitas como:

163
Então será concedida aos eleitos sabedoria e eles todos viverão e
nunca mais pecarão, quer por impiedade quer por soberba... E
eles não mais transgredirão nem pecarão todos os dias de sua
vida (Z Henoc 5,8-9).
Em seu [do Messias] sacerdócio, os gentios serão multiplicados
em conhecimento sobre a terra e iluminados pela graça do
Senhor. E com seu sacerdócio, o pecado chegará ao fim da terra
(Test. Levi 18,9).

A evocação mais impressionante deste tema vem de


autor cristão:

Todo aquele que permanece nele não peca. Todo aquele que peca
não o viu nem o conheceu... Todo aquele que nasceu de Deus não
comete pecado, porque sua semente permanece nele; ele não pode
pecar porque nasceu de Deus(lJo 3,6-9).

A influência do tema em Paulo é claramente insinu­


ada em sua apresentação da comunidade dos crentes
como templo espiritual (ICor 3,16-17; 2Cor 6,16), e ex­
pressa-se explicitamente na exortação: “Purificai-vos do
velho fermento para serdes nova massa, já que sois sem
fermento” (ICor 5,7). A metáfora é explicada no versículo
seguinte, onde “o fermento de malícia e perversidade” é
contrastado com “o pão sem levedo de sinceridade e
verdade/^Ojdeal é que a comunidade fosse inteiramente
sem fermento de iniqüidade. ■
(\jPela perspectiva de Paulo, portanto, a comunidade
cristã é um ambiente em que ninguém peca, em que todos
são autênticos e ninguém é inautêntico: Q Pecado, como
vimos, é a força corrosiva de ambiente corrompido. En­
quanto os indivíduos “formam parte do mundo”, não
podem escapar da orientação da sociedade que integram.
O Pecado não foi destruído com a morte de Cristo. O seu
poder ainda é ativo no mundo. Fundamentalmente, por­
tanto, a liberdade do Pecado deve ser uma forma de
proteção, barreira erigida ao redor dos indivíduos para
prevenir a influência do Pecado de atingi-los. É precisa­
mente isso que a comunidade cristã fornece. Os que
164
“pertencem a Cristo” (lCor 3,23; 15,23; 2Cor 10,7; G13,29;
5,24) não mais se acham “escravizados ao Pecado” (Rm
6,6), porque vivem em meio ambiente que tem autêntica
orientação/A ideia básica é muito simples. A pressão
exercida pelo Pecado não os toca porque não vivem na
companhia de pecadores.! Só essa interpretação faz justiça
ao realismo desenvolvido na citação que Paulo faz do
provérbio grego: “As más companhias corrompem os bons
costumes” (lCqr 15,33).
Uma parábola muito simples pode nos familiarizar
com a ênfase de Paulo. Uma pessoa muito pobre vivia
numa cidade industrial altamente poluída. Os gases tó­
xicos que permeavam toda a atmosfera causaram-lhe
uma doença respiratória, e a cada respiração que fazia
sua condição piorava. Foi ao médico, que lhe informou que
morreria com certeza se não começasse a respirar ar puro.
A pobreza do homem era tão grande, que não podia dar-
se o luxo de mudar para fora daquela cidade, provando-se
assim impossível a obediência a essa diretiva sábia e bem
intencionada. Certo dia, porém, um assistente social veio
lhe dizer que um benfeitor generoso lhe arranjou a pos­
sibilidade de ir morar nas montanhas. Lá, no ar puro e
fresco, ele recuperou depressa a saúde e ficou de novo
inteiramente são.
O homem doente é a humanidade, e a cidade indus­
trial é o mundo. A atmosfera poluída é o sistema falso de
valores da sociedade. O médico é a lei, mas também o
pregador de domingo. A diretiva era boa, mas nada mais
fazia que informar a humanidade dos perigos de sua
situação sob o Pecado, e sua consequência prática foi
tornar a humanidade ainda mais cônscia de sua impotência
para mudar a situação. O assistente social é Paulo, e o
benfeitor generoso é Deus, que “nos arrancou das trevas
e nos~transportou para o Reino do seu Filho amado, no
qual temos a redenção—a remissão dos pecados” (Cl 1,13-
14).
Neste texto vemos claramente o contraste entre dois
ambientes, um caracterizado por trevas e “morte”, o outro

165
por luz e “vida”. Num os indivíduos são contaminados
pelos “mortos”, mas no outro são inspirados pelos “vivos”.
^0 transporte do primeiro para o último é libertação. Os
indivíduos, portanto, gozam de “liberdade de" somente na
medida em que pertencem a uma comunidade autêntica.
Em seu ambiente não se acham sob nenhuma compulsão
a serem diferentes de seu verdadeiro “eu”. Não mais
sujeitos a mau exemplo, são inspirados e encorajados
' pelos exemplos de autenticidade que vêem em toda parte
â seu redor. São livres para ser o que o Criador quis que
fossem.
Evidentemente, essa liberdade não é algo que eles
possuem como indivíduos, mas algo de que partilham
como membros de um todo mais vasto. A liberdade do
indivíduo é conseqüente à autenticidade da comunidade.
0 realismo do conceito de Paulo, que se funda em cons­
ciência aguçada das condições que prevalecem no mundo,
estigmatiza a esterilidade de todas as tentativas de
apresentar a liberdade cristã como poder interno próprio
do indivíduo:iNuma comunidade autêntica, o indivíduo
pode expei'imentar a liberdade. Ele sabe conscientemente
que não mais está sujeito às pressões que outrora o
atiravam ao chão-fA realidade desta liberdade, porém,
depende inteiramente da vitalidade da comunidade que é
o canal encarnatório pelo qual a graça o toca. Aqui reen­
contramos a intuição extremamente perceptiva de
Bultmann: “Tudo indica que pelo termo ‘Espírito’ Paulo
quer dizer a existência escatológica em que o crente é
posto por ter-se apropriado do ato de salvação que acon­
teceu em Cristo” (Theology oftheNew Testament I, p. 335).
1 O poder do Espírito que produz liberdade é a criativida­
de do amor desdobrada pelos outros membros da comuni­
dade. A autenticidade de seu ser é a força que mantém
em xeque o Pecadof »Será lembrado até que ponto Paulo
enfatiza o individualismo como sinal de inautentici-
dade.

166
As crianças e a comunidade

¿LEssa compreensão do que liberdade do Pecado signi­


fica para Paulo lança nova luz numa das mais controver­
tidas passagens de suas cartas.' A ampla variedade de
opiniões quanto ao sentido exato de ICor 7,12-16 deve-se
ao fato de que os comentaristas persistem em tentar
interpretá-la individualisticamente. O que já vimos indi­
ca claramente que essa é explanação falsa. A compreen­
são de Paulo da salvação enraíza-se em sua intuição na
natureza e função da comunidade cristã, e essa deve ser
tomada como a pressuposição de tudo o que ele diz com
respeito aos fiéis. Se admitimos que falava em termos de
comunidade ao escrever ICor 7,12-16, muitos dos proble­
mas, que aborreceram tanto os exegetas, surgem como
problemas falsos. A passagem reza como segue:

I2Aos outros digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem esposa
não-cristã e esta consente em habitar com ele, não a repudie. I3E,
| se alguma mulher tem marido não-cristão e este consente em
habitar com ela, não o repudie. •'’Pois o marido não-cristão é
, santificado pela esposa, e a esposa não-cristã é santificada pelo
marido cristão. Se não fosse assim, os vossos filhos seriam
impuros, quando, na real idade, são santos. lr,Se o não-cristão quer
separar-se, separe-se! O irmão ou a irmã não estão ligados em tal
caso; foi para viver em paz que Deus vos chamou. 3CNa verdade,
como podes ter certeza, ó mulher, que salvarás o teu marido? E
como podes saber, ó marido, que salvarás tua mulher?

Está claro que se trata aqui de caso proposto ao


julgamento de Paulo pela comunidade de Corinto (cf. ICor
7,l).^Parece ter havido um movimento na comunidade
para romper casamentos em que apenas uma das partes
era cristãf.Por que isso deve ter sido assim está claro à luz
do que Paulo ensinara com respeito à liberdade. Os fiéis
criaram uma barreira contra a influência do mundo pela
autenticidade de sua vida comunitária. O incrédulo era

167
por definição inautêntico. Ela ou ele representavam o
mundo do Pecado que eles deixaram atrás. Permitindo a
essa pessoa permanecer em estreito contato com a comu­
nidade, portanto, os fiéis estariam pondo em risco sua
própria liberdade.
' Não havia nenhum dito de Cristo que pudesse ajudar
Paulo a encontrar uma solução e, sendo assim, tinha de
continuar adiante por sua própria conta. O seu primeiro
passo foi fazer uma distinção baseada na qualidade de
relacionamento entre as duas partes. Se o parceiro des­
crente se recusasse a viver com o convertido, concordava
que o casamento devia ser dissolvido (v. 15). De outra
forma haveria uma situação contínua de rixas, e a influ­
ência do Pecado estaria efetivamente presente na comu­
nidade. Se, por outro lado, o crente consentia em viver com
o convertido, rejeitava a dissolução do casamento (w. 12-
13). Suas razões para essa decisão constituem o cerne do
assunto.
’Como podíamos ter esperado, o interesse básico de
Paulo volta-se para a conversão do parceiro não-crente: y
“Pensa nisso: como uma esposa/um esposo pode ser a
salvação do teu marido/tua esposa” (v. 16 NEB). O crente
que exibe a perfeição da humanidade autêntica é chama­
mento existencial à salvação. O pensamento de Paulo
neste ponto é finalmente expresso por outro autor do Novo
Testamento que teve que se haver precisamente com o
mesmo problema:

Da mesma maneira, vós, mulheres, sujeita-vos aos vossos mari­


dos, para que, ainda que alguns não creiam na Palavra, sejam
conquistados, sem palavras, pelo comportamento de suas mulhe­
res, ao observarem o vosso comportamento casto e respeitoso
(lPd 3,1-2).

Dado o mínimo de boa vontade demonstrado pelo


consentimento em viver com o convertido, Paulo viu o
parceiro não-crente arrastado para a esfera de influência
da comunidade através do contato fornecido pelo crente.

168
Ele recusava ver o não-crente como perigo para a comuni­
dade. Antes, apresenta-o(a) como tendo sido mudado(a)
pela comunidade: “O marido não-crente/a esposa não-
crente c santificado!a) por sua esposa/seu esposo” (v. 14).
O que se quer dizer por “santificado” aí? O contexto
imediato fornece apenas uma chave/LO estado de
“santificação” situa-se em algum lugar entre o estado de
“impureza” e o estado de “salvação”./Isso em si mesmo é
curioso porque em outro lugar de Paulo “santificação” se
identifica com “salvação”. A carta, da qual vem o texto em
discussão, é dirigida à “Igreja de Deus, que está em
Corinto, àqueles que foram santificados em Cristo Jesus,
chamados a ser santos” (ICor 1,2) e, mais adiante, diz
deles: “Mas fostes lavados, fostes santificados, fostes
justificados” (ICor 6,11), que é alusão óbvia ao batismo. O
único outro texto em que aparece o mesmo verbo fala do
ministério apostólico de Paulo de apresentar os gentios a
Deus como “santificados pelo Espírito Santo” (Rm 15,16).
O uso que Paulo faz do substantivo correspondente
talvez seja de mais ajuda no esforço de determinar o seu
sentido aqui. “Santificação” é a vontade de Deus para a
humanidade (lTs 4,3), e este estado implica um padrão de
comportamento que se contrasta com o daqueles que são
“mortos”. Assim, em lTs 4,7, “santificação” é oposta a
“impureza”, que designa as atitudes comportamentais
dos gentios (vv. 4-5), e essa idéia recebe um paralelo em
Rm 6,19: “Como outrora entregastes vossos membros à
escravidão da impureza e da desordem para viver desre­
gradamente, assim entregai agora vossos membros a
serviço da justiça para a santificação”. Paulo continua
então: “E que fruto colhestes então daquelas coisas de que
agora vos envergonhais? Pois o seu desfecho é a morte.
Mas agora, libertos do Pecado e postos a serviço de Deus,
tendes vosso fruto para a santificação e, como desfecho, a
vida eterna” (Rm 6,21-22).
' Essas passagens permitem-nos dizer que “santi-
cação” conota um padrão de comportamento adequado à
autenticidade que se torna possível pela liberdade do

169
Pecado^O parceiro não crente, portanto, é santificado por
estar influenciado pelas atitudes existenciais da comuni­
dade crente em Corinto à qual pertence seu(sua)
parceiro(a). A documentação de tal santificação é o modo
como ele ou ela se comporta. Tudo o que está faltando é a
entrega expressa à verdade revelada em Cristo que 2Ts
2,13 apresenta como o concomitante da ‘“santificação”.
/(.Quando os dois elementos estão presentes, “santificação”
torna-se “salvação”;.
O ensinamento de Paulo nesta passagem demonstra
claramente até que ponto o seu pensamento se movia no
nível da realidade. Teoria era importante, mas era o
comportamento que manifestava a separação dos critérios
do “mundo”. Ainda resta, porém, um ponto a ser elucidado.
As afirmações de Paulo referentes à santificação do par­
ceiro não-crente estão expressas no tempo passado. Ainda
que pareça improvável que ele tinha alguma experiência
do que estava ocorrendo realmente. Falava com a certeza
da esperança. Daí, devemos perguntar o que justificava
essa expectativa, e ele próprio dá a resposta: “Se não fosse
assim, vossos filhos seriam impuros, quando, na realida­
de, são santos” (ICor 7,14).
Este versículo deu origem a intensa discussão. Será
que Paulo está se referindo aos filhos da comunidade em
geral ou somente aos de casamento misto? Eram as
crianças batizadas ou não batizadas? Seria impossível
dizer que existe consenso nas respostas a essas pergun­
tas. O que é essencial ao argumento de Paulo é que existe
paralelo real entre a situação das crianças e a do parceiro
não-crente. Isso levou alguns a dizer que as crianças, em
consequência, devem ter sido não batizadas. Isso, para
mim, parece provável, mas não sabemos em que idade o
batismo era conferido no séc. I d.C. Movemo-nos por chão
mais sólido quando nos voltamos ao aspecto da aceitação
de Cristo/¡As crianças, por definição, são incapazes da
entrega madura e adulta a Cristo que é a essência da fé.
'Assim, a questão de quem eram filhos torna-se irrelevante.
Todas as crianças da comunidade de Corinto, portanto.

170
II

estayam era situação paralela à do parceiro não-crente,


porquanto nenhum tomara a decisão que é a base da
autenticidade. Não obstante, as crianças eram “santas” e
não “impuras”.
Somente um sentido é possível aqui. Paulo apela à
experiência comum de que as crianças absorvem as ati­
tudes de seus pais. Crescendo em atmosfera de autenti­
cidade, que as introduzia na vida daqueles que estavam
“no Espírito”, as crianças eram de fato “conduzidas pelo
Espírito” (Rm 8,14) no sentido existencial concreto tão
caro a Paulo. Tendo nascido em liberdade, isto é, num
ambiente no qual não penetrava a influência do Pecado,
elas nunca tinham estado sujeitas ao sistema de valor do
“mundo”. Em outras palavras, elas nunca tinham estado
escravizadas ao Pecado e nunca tinham sido tocadas pela
“impureza”, que é o padrão de comportamento determina­
do pelo Pecado/\Em conseqüência, elas eram “vivas”.
Nunca tinham sido “mortas”, porque, mesmo antes da
idade dãUécisão adulta, tinham participado da liberdade
dos que escolheram a autenticidadepVemos, pois, aí um
exemplo muito concreto do que se significa com a afirma­
ção: “Onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberda­
de” (2Cor 3,17).

A fragilidade da liberdade

Paulo era suficientemente realista para reconhecer


que a perfeita liberdade é situação ideal. E algo em rumo
de que a comunidade cristã deve se esforçar, mas que pode
falhar em ser perfeitamente realizada no presente. Este
fato se lhe tornou consciente pela experiência de suas
próprias comunidades, compostas de convertidos adultos.
O fervor de uma comunidade autêntica protege o crente de
continuar a ser influenciado pelas forças sociais que Paulo

171
designa como Pecado, mas o Apóstolo foi forçado a admitir
que mesmo dentro de uma comunidade cristã podem
permanecer traços residuais do modo inautêntico de ser.
Essa dimensão do seu pensamento chega à mais clara
expressão em G1 5,13-26.
Aquilo por que estavam passando os gálatas cons­
trangeu Paulo a conceder que “a carne tem aspirações
contrárias ao espírito e o espírito, contrárias à carne. Eles
se opõem reciprocamente, de sorte que não fazeis o que
quereis”(v. 17). “Carne” e “espírito” neste contexto conotam
os dois modos de existência que Paulo alhures caracteriza
como “morte” e “vida”, respectivamente, e que interpreta­
mos como significando inautenticidade e autenticidade.
Aqui ele se interessa formalmente pelo efeito que esses
modos de ser têm sobre os indivíduos. “Carne” evoca as
atitudes que absorveram durante o longo período em que
“pertenciam ao mundo” e estavam sob a influência do
Pecado. Tais atitudes são repudiadas no ato de conversão
pelo qual se entregavam a um padrão diverso de compor­
tamento,1^, porém, fato de experiência que hábitos pro­
fundamente arraigados não são erradicados por uma só
decisão contrária/Sendo assim, apesar de seu modo novo
de ser com seu impulso rumo à autenticidade, permane­
ceu um “desejo” das “obras da carne” que se resume na
lista de vícios dos w. 19-21. Isso pode resultar em eles
“usarem da liberdade como uma oportunidade para a
carne”. Um capítulo ulterior fornecerá ocasião mais apro­
priada para determinar o que precisamente significa isso.
A medida que este “desejo” de inautenticidade é contraba­
lançado pela orientação autêntica da comunidade cristã
(“os desejos do Espírito”), dependerá do grau da real
entrega a Cristo e, sobretudo, do êxito dos membros em
levar entrega à prática. Nas próprias palavras de
Paulo: “Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos
também a nossa conduta” (v. 25). Os cristãos são “chama­
dos à liberdade” (v. 13); mas se sua conquista das atitudes
habituais derivadas de seu passado é vitória somente em
princípio, sua liberdade então só existirá em princípio

172
também. A realidade de sua liberdade está condicionada
pela realidade daquela vitória, porque “para a liberdade
Cristo vos libertou. Sede firmes, portanto, e não vos sujeiteis
de novo ao jugo da escravidão” (G1 5,1). O verdadeiro uso
da liberdade — e de fato o seu constituinte último — é ser
“através do amor servos uns dos outros” (v. 13).
■Em vista do caráter comunitário da liberdade cristã,
a liberdade de um membro da comunidade depende do
amor criativo desenvolvido pelos outros/.E este o poder
que mantém afastada a influência do Pecado. Sendo
assim, a falha de um tem implicações significativas para
a própria existência dos outros membros. “Ninguém de
nós vive para si próprio, e nenhum de nós morre para si
próprio” (Rm 14,7)¿0 pecado de um teve dimensão social;
foi pecado contra a comunidade. C >
Os corintios forçaram Paulo a sublinhar formalmente
este ponto. Para demonstrar a liberdade que Paulo pre­
gara com tal convicção, um dos membros foi tão longe que
passou a cohabitar com sua madrasta. Essa era “imora­
lidade de tal espécie que não existe sequer entre gentios”
(ICor 5,1). A particularidade, assim sentiam os corintios,
redundava em glória para a comunidade (w. 2-6). Era
uma manifestação concreta de sua independência com
respeito a todos os que ainda estavam escravizados a
atitudes e convenções de que os corintios tinham sido
libertados. A reação de Paulo descreve precisamente a
situação: “Não sabeis que um pouco de fermento corrompe
grande quantidade de massa? Purificai, pois, o velho
fermento para que sejais uma nova quantidade de massa,
como vós (em teoria) sois sem fermento” (ICor 5,6-7)/1A_
falsa decisão tomada por aquele homem atingira o grupo
tòdó7uAtravés dele, o veneno do Pecado entrara numa
esfera planejada para ser imune de sua influência. Paulo
retorna ao mesmo tema em 2Cor 2,5: “Se alguém causou
dor, causou-o não a mim, mas em certa medida — não para
colocá-lo muito severamente — a todos vós”. Um caso
diferente está em vista, mas a atitude de Paulo é idêntica.

173
Neste último caso, a comunidade, pelo que parece,
tomou atitude, e a situação foi restaurada. Os corintios
tinham aprendido a lição do primeiro episódio, e vale a
pena ver como Paulo tratou da situação porque é extre­
mamente instrutivo:

j Quanto a mim, ausente de corpo mas presente em espírito, eu,


/ como alguém que está presente, julguei aquele que fez esta coisa
/' no nome do Senhor Jesus. Quando estiverdes reunidos estando
j eu convosco em espírito, e fordes envolvidos de poder por nosso
/ Senhor Jesus, tal pessoa deveria ser entregue a Satã para a
/ destruição da carne, a fim de que o espírito possa ser salvo no dia
(—do Senhor (lCor 5,3-5).

O traço mais notável desta passagem é a ênfase de


Paulo em sua presença espiritual. Isso se explica somente
com a admissão de que a comunidade era responsável por
assegurar sua própria liberdade erradicando elementos
que acusavam a presença do Pecado, e a validez dessa
admissão é confirmada pela pergunta retórica: “Não
entrastes antes em luto (e mostrastes a sinceridade de
vossa tristeza empreendendo a ação necessária) para que
aquele que cometeu essa ação fosse afastado de entre
vós?” (v. 2). Uma vez que a comunidade não cumprira sua
obrigação, Paulo, como o fundador, sentiu-se obrigado a
intervir. Mas, como vimos (cf. p. 117), ele tinha consciên­
cia de que a imposição de preceitos autoritativos cria
irresponsabilidade, porque inibe o crescimento que vem
somente de decisões livres. Ele tinha que guiar sem
dominar. Insistindo na presença espiritual, dava-se um
voto nas deliberações da comunidade, contentando-se,
porém, em apontar o que considerava que eles deviam fazer.
, O pecador devia ser expulso. Como o cumprimento das
promessas escatológicas, supunha-se que a comunidade
era sem pecado; Permitir a presença contínua de pecador
contumaz seria fazer da comunidade mentira viva, por­
que ela não mais poderia oferecer aos seus membros
proteção inteiramente eficaz contra as pressões do “mun-

174
do”. Se os corintios tivessem apreciado suficientemente
sua liberdade, teriam sido urgidos a empreender ações
para protegê-la. Sua falha quanto a este ponto óbvio
explica a irritação mostrada pelo grego inepto dessa
passagem.
Mais significativa de tudo é, porém, a compreensão
de Paulo do que implica a excomunhão. E entregar “a Satã
para a destruição da carne, a fim de que o espírito possa
ser salvo no dia do Senhor” (ICor 5,5). Numerosos exegetas
encontram aqui uma alusão a sofrimento físico e mesmo
à morte; mas, se Paulo estivesse pensando nessa linha,
teria se expressado em termos semelhantes aos que se
podem ler em ICor 11,30. Em si, a linguagem não é mais
forte do que a empregada em Rm 6,6-7. De mais a mais, o
contraste entre “carne” e “espírito” interpreta mais na­
turalmente de forma existencial, e a sã metodologia exige
que se explorem outras pistas somente se essa aproximação
se provasse improfícua.
Ao ser expulso da comunidade, o pecador não mais é
protegido por ela. Está exposto sem defesa ao sistema de
valores do “mundo” e, assim, sujeito a pressões hostis ao
seu desenvolvimento autêntico. Aí Paulo usa “Satã” para
conotar a mesma realidade que alhures chama de Pecado.
Deveríamos esperar tal exposição para reforçar os impulsos
da “carne” porque, como vimos, é só na liberdade garanti­
da pela comunidade que o “espírito” tem oportunidade de
dominar os desejos residuais da “carne”. Paulo, ao invés,
pretende que a excomunhão levará à “destruição da car-
ne”¿\Essa contradição aparente serve, no entanto, so­
mente para aprofundar nossa compreensão da maneira
como Paulo concebia a comunidade cristãi>Pela perspecti­
va, a situação do excomungado era um tanto diferente da
situação do não-crente. Este último não tinha nenhuma
possibilidade de escolha real e, sendo assim, o “espírito”
não podia dominar. O excomungado, ao invés, estivera
exposto aos benefícios de pertencer a uma comunidade de
livres, cujos valores são a antítese dos valores apreciados
pelo “mundoVDentro da comunidade, ele era ajudado

175
pelo amor criativo dos outros membros. No “mundo”, só
podia ser uma unidade isolada entre muitos, porque este
amor estaria afastado dele (ICor 5,ll$kUma vez que o
amor criativo é realidade experimentada, sua privação
seria urna forma de sofrimento físico que Paulo esperava
que fizesse o pecado pensar. Esperava que o excomungado
se tornasse aguçadamente consciente da repentina dife­
rença em sua situação pessoal e, em consequência, re­
considerasse o seu comportamento. A essa medida, pois,
a graça de Cristo encarnada na comunidade continuaria
a exercer influência sobre ele, tornando possível para
o “espirito” ser salvo. Paulo não fala de volta para a
comunidade, mas nada no contexto exclui essa possibili­
dade.
A diferença entre a comunidade e a sociedade difí­
cilmente poderia ser mais plasticamente enfatizada do
que pelo que Paulo diz acerca do efeito medicinal da
expulsão. Mostra que a expressão da diferença em termos
de luz e trevas (F1 2,15; C1 1,13) não é nenhum exagero.
Isso nos leva a fazer a pergunta: será que a Igreja local de
hoje sobressai de seu ambiente da mesma forma? Ao
responder a essa pergunta, devemos ter em mente que
pensamos não na situação teórica da Igreja local, mas em
sua situação existencial. E muito óbvio que a ideologia da
comunidade crista é diferente da ideologia do mundo, mas
este não é o nosso assunto¿A pergunta diz respeito ao
padrão de comportamento da comunidade cristã. Trata­
se da Igreja local como ela realmente é, como realidade
visível e tangível.
A importancia da pergunta é a seguinte: se não
existem diferenças perceptíveis entre a comunidade cris­
tã local e o seu meio ambiente, a realidade da liberdade
dos crentes (no sentido paulino) fica exposta à dúvida
séria/Se há hesitação quanto a onde começa precisamente
a comunidade e termina o “mundo”, a solidez da barreira
que deveria proteger o crente da influência do Pecado
torna-se altamente suspeita^Encontro comprovação para
tal hesitação hã atitude contemporânea com respeito à

176
excomunhão. Na prática, essa sanção foi abandonada.
Isso poderia ser interpretado como testemunho de maior
caridade dentro da Igreja, e muitos de fato estão satisfeitos
e orgulhosos de que o pecador seja mais querido que
punido. A severidade do passado foi posta de lado. A
sanção da excomunhão não mais se aplica, porque se viu
que era ineficaz. Não mais produzia o choque existencial
que deveria levar à reconversão. Assim, enquanto afirma
em teoria sua diferença do “mundo”, a Igreja na prática
atesta o fato de que a comunidade supostamente autên­
tica não é significativamente diferente da sociedade
inautêntica em que existe.
Minha ênfase aqui não é argumentar por maior uso
da sanção da excomunhão. Isso seria sem sentido. O meu
único interesse é levantar a pergunta extremamente
séria da realidade da liberdade cristã na Igreja de hoje.
Toda evidência aponta para sua não-existência. O siste­
ma de valores pelo qual os cristãos vivem realmente é o do
“mundo”. Dentro da Igreja e fora dela, encontramos a
mesma falta de interesse pelos pobres e desprivilegiados,
o mesmo desejo de posses materiais, as mesmas hostili­
dades e amarguras. Há, certamente, exceções, mas essas
são estatisticamente insignificantes/Se adotarmos a
perspectiva genérica de Paulo, somos forçados a conceder
que o Pecado reina por toda parte e, se Pecado significa
escravização, onde então há liberdade? Os cristãos não
podem dar por concedido que são livres. As afirmações
magníficas de Paulo forma reduzidas ao estado de pro­
messas, porque sua visão da verdadeira natureza da
comunidade cristã se deixou de ver. E a este ponto,
portanto, que devemos nos voltar agora. /»

177
LEITURAS SUGERIDAS

Jeremias, J., Teologia do Novo Testamento, Paulus, São Paulo, 1991.


Bultmann, R., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965,
38-40 (Freedom).
Macquarrie, J .Jixistencialism, World Publishing, Nova York, 1972, c.
9 (Freedom).
Lynonnet, I. de la Potterie-S, The Christian lives by the Spirit, Staten
Island, Alba, 1971, cap. 7 (Sinless Community).
Murphy-O’Connor, J., “Faith Without Works in 1 Cor 7:14”, em Revue
Biblique 84 (1977), 349-361.
Mussner, F., Theologie der Freiheit nach Paulus, Herder, Freiburg,
1976 (cf. minha recensão em Revue Biblique 83 11976), 618-623).
F orkmann, G., The Limits ofReligious Community. Expulsion from, the
Religious Community within the Qumran Sect, within Rabbinic
Judaism, and within Primitive Christianity, Gleerup, Lund, 1972.

178
O CRISTO VIVO

A expressão mais sucinta da compreensão de Paulo


acerca da natureza da comunidade cristã acha-se numa
passagem da carta aos Gálatas:

' Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos
vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre; pois todos vós sois
um só homem em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois
^-descendência de Abraão, herdeiro segundo a promessa (3,26-29).

Paulo inicia evocando a decisão de fé que converte os


que são inimigos de Deus em seus filhos. Essa decisão,
porém, não é orientação meramente interna, mas atitude
que se exterioriza na forma de entrega especificamente
social por submissão ao rito do batismo * Os crentes são
reconciliados com Deus pela fé porque foram batizados. Fé
e batismo são dois momentos de um só ato; nenhum é
completo sem o outrqçÇSeria equívoco total acerca da
compreensão de Paulo pensar que a fé simplesmente dava
a capacidade de entrar no novo relacionamento social,
porque isso implicaria que uma pessoa podia ter fé sem
sua dimensão sociahjFé, para Paulo, é a escolha de um
modo de ser que é essencialmente social. A fé é nova
niãncirã~dc scr com outros.^ W 0
Este era conceito extremamente difícil para os con­
vertidos de Paulo entenderem porque vieram de um modo
de ser onde o seu relacionamento com outros era carac­
terizado acima de tudo pela divisão. Na II parte, vimos os

179
pormenores da compreensão do Apóstolo acerca da exis­
tência inautêntica que aqui se evoca pela lista de pares
opostos, judeus contra gregos, escravos contra livres,
homens contra mulheres. No novo modo de sei- essas
divisões não mais existem, e é para frisar este ponto que
Paulo emprega uma variedade de expressões diversas
visando evocar a natureza comunitária da existência
autêntica: “Em Cristo”, “vos vestistes de Cristo”, “ser de
Cristo” e do modo mais dramático “todos vós sois um só
homem em Cristo Jesus”¿)Nenhuma palavra poderia
expressar mais plasticamente a diferença radical entre os
modos inautêntico e autêntico de ser. Se divisão é o
constitutivo daquele, unidade é constitutivo deste,-íOb­
serve-se que se trata de “unidade”. “Todos vós sois um só
homem” significa algo hem diverso de “vós estais em
amizade”. Ã não ser que este ponto seja claramente
entendido, o conceito de Paulo de comunidade será
distorcido. Sendo assim, primeiro examinaremos a intuição
paulina sobre a unidade orgânica da comunidade dos
crentes e depois investigaremos o relacionamento desta
comunidade com Cristo.

Unidade orgânica

A glorificação do indivíduo no existencialismo é sin­


tomático de uma perspectiva sobre a humanidade que
caracterizou o pensamento ocidental desde o Renasci­
mento. As crianças são encorajadas a ser independentes
e autônomas, da mesma forma que seus pais consideram
virtude não estarem obrigados a ninguém. A canção com
o título “I did it my way” (“Eu o fiz na minha maneira”),
que Frank Sinatra tornou famosa, foi comprada por mi­
lhões, porque tocava um sentimento profundo. Articulava
o que a vasta maioria acreditava, a saber, que a falta de

180
laços e responsabilidades é a chave da liberdade/O herói
contemporâneo é aquele que tem a coragem de andar
sozinho por seus próprios caminhos. f
Este desvio rumo ao individual pode-se perfeitamen­
te entender pelas estruturas opressivas da sociedade
contemporânea. Existem tantas regras e regulamentos,
tantas pressões econômicas, que todos se sentem cons­
trangidos e peados. Afirmar a própria individualidade é
saltar para a liberdade e assim justificar a convicção
profundamente arraigada de que cada indivíduo é único.
Portanto, todos estamos condicionados a pensar
individualisticamente, e essa atitude é reforçada pela
Igreja. Teólogos insistem na primazia da consciência in­
dividual. .Crê-se largamente que meus pecados se passam
entre mim e Deus, e posso salvar-me sem salvar outros.
Cada um é livre para construir sua teologia pessoal. C
Quanto essa atitude se opõe à de Paulo deveria ser
evidente pelo que dissemos na II parte. Ele via o individu­
alismo como característica da inautenticidade, e o tanto
que o individualismo permeou a Igreja apenas serve para
confirmar o que se disse no último capítulo com referência
ao não-existir da liberdade cristã. Não existe nenhuma
barreira ideal em face ao Pecado, e os valores dos “mortos”
cegos são complacentemente aceitos pelos supostamente
“vivos”. No sentido de entender o que Paulo indica, devemos
fazer esforço muito consciente para depormos essa men­
talidade,^ Sua perspectiva é tão radicalmente diferente
que devemos continuamente nos vigiar para não transpor
seu pensamento em categorias aceitáveis ao nosso pré-
condicionamento i ndividualístico. I'
A modo de introdução aos textos paulinos, reflitamos
por um momento nas implicações da compreensão do
Apóstolo acerca da autenticidade e enquanto fundada na
noção de que a raça humana foi criada à imagem de Deus.
Vimos acima que o ponto formal de semelhança entre o
Criador e suas criaturas humanas situa-se na criativida­
de destas últimas. A criatividade desdobra-se facultando
o amor que torna possível ao outro ser conforme quis o

181
Criador. O exercício de tal criatividade é existência autên­
tica. Mas essa criatividade envolve necessariamente pelo
menos outra pessoa; não pode ser exercida em vazio
individualístico. Sendo assim, sem o outro a criatura
humana não pode existir autenticamente. Para ser como
Deus pretendeu que fôssemos, precisamos amar e ser
amados, dar poder e receber poder/; O outro, em conse-
qüência, entra na própria definição do ser humano autên­
tico. Não se pode ser autêntico e ser só. Existiremos como
Deus pretende somente se estivermos relacionados a
outros na reciprocidade vital da criatividade.ÀO nosso
novo modo de ser, que Paulo designa “vida”, é constituído
por esse intercâmbio de poder. “Se não tenho amor, sou
nada” (ICor 13,2), isto é, eu não existo.
Uma vez percebida essa perspectiva, torna-se sur­
preendentemente claro porque Paulo fala de “homem
novo” e não só de “o homem novo”. Observamos um
exemplo disso já em G13,28: “Todos sois um só homem em
Cristo Jesus”. O outro aparece em carta escrita muitos
anos mais tarde:

’ Depuse stes o vel ho homem com suas práticas e vos revestistes do


, novo homem que está sendo renovado em conhecimento confor­
me a imagem do seu Criador, onde não pode haver grego e judeu,
) circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas
/ Cristo é tudo em todos (Cl 3,9-11).

A ênfase na centralidade de Cristo, a imagem do


“revestir” e a lista de pares opostos ligam essa passagem
muito estreitamente com G1 3,26-29, mostrando assim
que este complexo de idéias estava profundamente ar­
raigado e era consistente no pensamento de Paulo. Ao se
pregar este texto, costuma-se interpretar a alusão a “o
homem, novo” em termos de um indivíduo que se torna
novo adotando novo sistema de atitudes morais. E ilustra­
ção perfeita do efeito de nosso pré-condicionamento a
pensar individualisticamente. Porque nos vem muito
naturalmente, admitimos que Paulo deve ter pensado do

182
mesmo modo. Nada poderia estar mais longe da verdade,
porque a partícula espacial “onde” veda interpretar “o
novo homem” individualisticamentef^O novo homem” só
pode ser um agrupamento onde não existe mais espaço para
diferenças religiosas e sociais. A unidade, que é constitutiva
da autenticidade, é o tipo de unidade orgânica que caracte­
riza um ser humano vivo. Autenticidade exclui autonomia/ ,
A importância deste aspecto para Paulo é clara pela
consistência com que usa imagens orgânicas para expli­
car o nosso relacionamento com Cristo, que é a fonte de
toda autenticidade. Estas estão em surpreendente con­
traste com as imagens estáticas que usa para expressar a
relação dos crentes com Deus. Relativamente a Deus e ao
Espírito, os crentes são “edifício” e “campo” (ICor 3,9) ou
“templo” (ICor 3,16; 6,19; 2Cor 6,16). E de outra forma
com respeito a Cristo. Os crentes são “enxertados” nele
(Rm 6,5) ou são “enraizados” nele (Cl 2,7). Essas imagens
são idênticas com a alegoria da vinha em Jo 15,1-10. A
imagem dominante, porém, é a do corpo humano vivo. Os
crentes são membros do Corpo de Cristo (ICor 10,17;
12,12-27; Rm 12,4-5; Cl 1,18.24; 2,18-19; 3,14-15; Ef 1,22-
23; 2,13-16; 4,4; 11-16).
Ao elaborar este tema, Paulo evoca duas vezes o
paralelo com o corpo físico (ICor 12,12; Rm 12,5). Como se
deve entender o paralelo? O que viu como o ponto formal
de contato entre o corpo físico e a comunidade como o
Corpo de Cristo?'Em vista de nossa orientação para o
individualismo, somos logo tentados a pensar em termos
de coordenação e cooperação. Da mesma forma que as
várias partes do corpo físico operam em relação harmo­
niosa, assim também devem fazer os membros da comu­
nidade/ fíe era isso que pretendia Paulo, é difícil ver
qualquer diferença entre o Corpo de Cristo e toda outra
sociedade, porque a unidade é concebida apenas em ter­
mos funcionais. O atual estado da Igreja, infelizmente, é
altamente propício para conduzir a interpretação ao longo
destas linhas. As divisões entre as várias comunhões
cristãs e as amargas tensões dentro delas aumentam

183
nossa consciência de multiplicidade até ao ponto em que
damos assentimento apenas nacional à unidade e na
melhor das hipóteses a concebemos em nível puramente
funcional.
Isso apenas significa mostrar quão longe estamos do
pensamento de Paulo, porque ele estava tão consciente da
unidade da comunidade que alude à multiplicidade de
seus membros apenas em cláusulas subordinadas. “Nós,
que somos muitos, somos um só corpo, porque um só é o
pão, pois todos nós participamos de um só pão" (ICor
10,17); “Nós, que somos muitos, somos um só corpo em
Cristo” (Rm 12,5). Se, para nós, a multiplicidade é óbvia
e a unidade problemática, o reverso vale de Paulo. A razão
para isso é que ele via o Corpo de Cristo não como unidade
funcional, mas como unidade ao nível do ser. Ele foi
unificado por uma vida partilhada derivada de um só
princípio vital, como afirma sem ambigüidades em sua
exortação aos colossenses que se apegassem à Cabeça “da
qual todo o corpo, nutrido e ligado por suas junturas c
ligamentos, cresce com um crescimento que vem de Cristo”
(2,19; cf. Ef 4.1 l-16)dO que oucorpo físico sugeria a Paulo
era a idéia de coexistência no sentido estrito deste termo,
de que muito se abusa, porque ele comunicava perfeita­
mente sua compreensão da autenticidade?
Õs membros do corpo humano participam todos de
existência comum, porque estão relacionados como partes
integrais de um só todo. Sua própria realidade como
membros é condicionada por ser partes do corpo. Um
membro amputado pode parecer um braço ou uma perna,
mas de fato é algo radicalmente diverso, porque o modo de
existência apropriado a um braço ou uma perna exige
participação na vida partilhada do corpo. Em sua essência
mesma, um braço não é um todo, mas uma parte. Quando
se lhe dá o status de todo, como no caso da amputação, ele
não é mais o que estava destinado a ser. Tem a aparência
de braço, mas não pode realizar nada daquilo para que o
braço foi criado. A animação de vida deu lugar à imobili­
dade da morte.

184
10

O paralelo entre o braço amputado e o ser humano


autêntico dificilmente carece de ênfase. Em ambas as
aparências se desmente a realidade.JJm braço amputado
não pode fazer nada e uma pessoa inautêntica, como
vimos, é incapaz de realizar a possibilidade de tomar
decisão, que é a potencialidade distintiva dada com a
natureza.humana) Um braço amputado está morto, e
Paulo considera os que estão fora do Corpo de Cristo como
“mortos” (2Cor 2,16), “separados de Cristo” (G15,4)(Ambos
exibem apenas aparência de vida/ *
Tudo o que vimos da compreensão de Paulo acerca da
“vida” ou da “morte” indica que, quando ele fala da
comunidade cristã como Corpo, quer ser entendido de
maneira muito literal, ÍA existência autêntica é a existência
da parte dentro do todo. A criatividade recíproca do amor
cria uma “vida” de que partilham os membros. Eles não
possuem. Eles participam^Precisam um do outro da
mesma forma que o braço precisa do corpo. Sem cada um
dos outros, eles não podem ser eles mesmos. E essa a
ênfase toda da afirmação de Paulo de que o corpo precisa
de muitos membros (ICor 12,14), e o significado de sua
afirmação aparentemente críptica de que “nós somos um
só corpo em Cristo e membros uns dos outros" (Rm 12,5).
Essas palavras surpreendentes, que se repetem em Ef
4,25, sublinham formalmente a interdependência dos
membros do Corpo/jA perfeição da autenticidade exige
que nos pertençamos uns aos outros..

A individualidade ctdstã

A ênfase de Paulo na unidade orgânica como


constitutiva da existência autêntica serve de moldura
para os cristãos entenderem sua individualidade. Este é
problema crucial que não recebeu nenhuma atenção, pois

185
se admite que o conceito de individualidade prevalente no
“mundo” vale também para os cristãos. Comumente se
concebe o individuo como entidade tendo existencia inde­
pendente e separada. Essa definição é perfeitamente
verdadeira em nível biológico da existência física. Minha
existência física é separada e independente da de qual­
quer outra. Dado esse fato óbvio, parece lógico falai* de
indivíduo autêntico ou de indivíduo inautêntico. Nenhum
problema surge com respeito à formulação “indivíduo
inautêntico” porque, para Paulo, tal separabilidade é
precisamente o que caracteriza a inautenticidade. A situ­
ação é completamente outra com respeito à formulação
“indivíduo autêntico” porque, como vimos há pouco, au­
tenticidade é condicionada por ser uma parte dependente
e totalmente integrada. A definição, um lugar-comum,
não é aplicável mais a um membro do Corpo de Cristo que
a um braço ou uma perna. Falando estritamente, só é
aplicável a “o novo homem”, porque somente ele tem o
status de entidade completa.XO verdadeiro sujeito da
existência autêntica é a comunidade a que os membros
pertencem, e aquilo que pertence a algo mais como uma
parte não se diz normalmente ser um indivíduo.
Em grande parte, nossa cegueira no tocante a esse
problema é devida à tendência de entender a comunidade
cristã em termos da sociedade secular. Desta perspectiva,
a igreja local surge como uma coleção de indivíduos que
tem muitas coisas em comum com a sociedade local
eventual. A maioria dos crentes dificilmente poderia
definir a diferença entre as duas e certamente se inclina­
ria, no caso de poder definir, a uma definição expressa em
termos funcionais^A Igreja existe para fazer uma coisa, ao
passo que a sociedade eventual existe para fazer~õutra
coisa. O que se disse até essa altura indicaria que a
diferença é, de fato, infinitamente mais radical. A socieda­
de eventual é levada ao ser por indivíduos que se unem
juntos para este propósito. Em conseqüência, os indivídu­
os constituem a sociedade. No pensamento de Paulo,
precisamente o reverso vale da Igreja. A comunidade

186
cristã preexiste aos membros que lhe pertencem, e é a
comunidade que faz o que eles são, facultando-os a se
mover da “morte” para a “vida/^Assim, enquanto os
indivíduos levam uma sociedade eventual ao ser, a comu­
nidade cristã leva os seus membros ao ser, ao novo ser da
autenticidade/ •
O problema em questão concerne, pois, à individuação
deste novo ser, e o ponto preciso é focalizado claramente
na afirmação de Paulo: “Não sou eu mais quem vive, mas
Cristo vive em mim, e a vida que eu vivo agora na carne
eu a vivo pela fé” (G1 2,20). Temos aqui a negação do “eu”
individual, que é a conseqüência lógica da unidade orgânica
do Corpo no qual Paulo pertence, e logo na próxima
respiração o mesmo “eu” aparece como sujeito. Essa
tensão é óbvia. Paulo reconhece que é Cristo quem é o
verdadeiro sujeito, mas ao mesmo tempo o quadro físico,
que é a infra-estrutura da existência autêntica, leva-o a se
ver como indivíduo.
A tensão é significativamente diminuída se fizermos
(distinção entre realidade e a percepção desta realidade.
Um braço não tem existência separada. Coexiste com os
outros componentes do corpo. Não obstante, pode ser
~considerado separadamente. De modo semelhante, no
Corpo de Cristo os membros não têm existências separadas,
mas podem ainda ser considerados separadamenteÇÇa-
receria seresta a única maneira de dar sentido à formulação
muito obscura de Paulo em lCor 12,27, que pode ser
parafraseada: “Vós sois o Corpo de Cristo e, considerados
separadamente, membros dele”. O contexto mostra que
Paulo pensa em termos da contribuição diversa que cada
membro aporta ao todo (lCor 12,7). Existe diversidade
dentro do Corpo, mas essa diversidade enraíza-se na
unidade e existe para promover a unidade (lCor 14,26). A
variedade de dons espirituais, de que Paulo fala com
freqüência em contexto que enfatiza a unidade orgânica
do Corpo (lCor 12,4-31; Rm 12,3-87; Ef 4,1-16), não passa
de facetas do amor (lCor 13), o poder criativo que anima
o “novo homem”.

187
A singularidade do dom concedido por Deus a cada
pessoa implica que as pessoas podem ser consideradas
separadamente dos outros. Podem ser tratadas como se
fossem indivíduos separados. Isso as expõe ao perigo
inevitável de pensar de si mesmo como indivíduos e, em
conseqüência, de substituir afirmação por serviço. Caso
isso ocorra, a realidade como percebida é confundida com
a realidade como é de fato. No quadro paulino, nenhum
cristão pode dizer “eu penso, logo existo”, porque isso
implica individuação divisiva. O que o cristão pode dizer
é “eu existo para te servir”, porque aqui encontramos
individuação que está ao mesmo tempo submergida na
unidade do amor criativo. O eu é sacrificado porque o ser
inteiro de um volta-se para o outro^O cristão éjndividu-
alizado apenas como capacidade distintiva de autodoação
em imitação de Cristo, que revelou o modo autêntico de
existência humana “esvaziando-se a si mesmo” (F1 2, 7)^

O novo homem é Cristo

Dizer que Paulo viu a unidade da comunidade como


primária e visualizou os indivíduos como sendo mudados
pela absorção naquela unidade pode parecer na melhor
das hipóteses um paradoxo sem sentido e, no pior dos
casos, denegrir infundadamente o papel de Cristo. Acaso
não atribui à comunidade uma função que pertence pro­
priamente ao Cristo salvador^Paulo responderia nega­
tivamente, porque, para ele, a comunidade é Cristo./'
Este ponto surge da forma mais clara na afirmação
que introduz sua exposição do Corpo de Cristo em ICor
12,12: “Pois assim como o corpo é um e tem muitos
membros, e todos os membros do corpo, embora sejam
muitos, são um só corpo, assim também é Cristo”. Dizendo
“Cristo” antes que “Corpo de Cristo”, não se pode pretender

188
que Paulo fez um desvio acidental cuja importância não
deveria ser exagerada, porque precisamente a mesma
idéia aparece antes na mesma carta: “Não sabeis que
nossos corpos são membros de Cristo?” (ICor 6,15). A
forma de pergunta deste versículo é altamente significa­
tiva porque é geralmente entendida para denotar uma
doutrina com a qual Paulo sentia que seus convertidos
estariam familiarizados/A. aplicação dojiome de “Cristo”
à comunidade deve, em conseqüência, ser considerada ter
formado parte do vocabulário habitual de Paulo. \\
Este fato dirige nossa atenção à famosa fórmula “em
Cristo”, que aparece 155 vezes nas cartas paulinas. Se­
jamos, porém, cuidadosos, porque a fórmula nem sempre
tem o mesmo valor. Em certos casos, Paulo tem certamente
em vista a pessoa individual de Jesus Cristo. Nesta série
de textos, o “em” conota ou instrumentalidade (por exemplo,
“por meio da redenção que está em Cristo Jesus que Deus
expôs como expiação”, Rm 3,24; cf. ICor 15,22; 2Cor 5,19;"
lTs 2,14) ou o objeto do ato (p. ex., “fé em Cristo Jesus”, G1
3,26; cf. Rm 15,17; F1 3,3). Paulo também pode usar a
fórmula em sentido bastante fraco, como quando diz: “Eu
falo a verdade em Cristo” (Rm 8,9; cf. ICor 4,10)AExiste,
no entanto, uma série toda de textos em que “em Cristo”
entende-se mais naturalmente como referido à comunidade: [

Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos


para Deus em Cristo Jesus (Rm 6,11).
Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em
Cristo Jesus. A lei do espírito de vida em Cristo Jesus nos libertou
da lei do pecadoe da morte (Rm 8,1-2).
Saudai Prisca e Aquila, meus colaboradores em Cristo Jesus (Rm
16,3).
Eles estavam em Cristo antes de mim (Rm 16,7).
Os santificados em Cristo Jesus (ICor 1,2; cf. F1 1,1; Cl 1,2; Ef
1,1).
Por Ele sois em Cristo Jesus (ICor 1,30).
(Para os judeus) o véu permanece. Ele não é retirado, porque é em
Cristo que ele desaparece (2Cor 3,14).
Se alguém está em Cristo, é nova criatura (2Cor 5,17).
Em Cristo Jesus nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão,
mas a fé agindo pelo amor (G1 5,6).

189
Essa lista pretende ser representativa mais que
exaustiva, e logo evidencia-se em que medida se evocam
muitos dos temas antes discutidos. Em alguns casos, pode
haver dúvida se o “em” é instrumental ou local. Assim, por
exemplo, ICor 1,30 poderia ser traduzido: “Por Ele vós
sois em Cristo Jesus”. Essa tradução põe ênfase em “vós
sois”, iluminando, assim, o aspecto do novo “ser” que se
manifesta em 2Cor 5,17. Mas pode-se perguntar imedia­
tamente como ocorre isso, e a resposta nos força a voltar
à comunidade, pois é aí que esse novo ser se torna possível.
O mesmo vale de 2Cor 3,14, mas o contexto imediato (v.
16) mostra que o véu é levantado para indivíduos somente
por conversão que necessariamente implica pertença como
membros na comunidade. Rm 16,7 e outros textos, como ICor
3,1; 2Cor 12,2; lTs 4,16, poderiam parecer à primeira vista que
seriam mais bem traduzidos por“cristâo’^masocristãoéalguém
que pertence a um tipo específico de comunidade. ¡
Só o reconhecimento do fato de que Paulo às vezes
designa a comunidade “Cristo” ajuda-nos a dar sentido à
expressão “ser batizado em Cristo” (Rm 6,3; G1 3,27).
Significa simplesmente ser admitido na comunidade
submetendo-se ao rito sacramental de iniciação (cf. ICor
12,13). O poder do Cristo Ressuscitado é operativo através
deste ato comunitário que nos faculta morrer para o Pecado
e ressuscitar para uma “novidade de vida” (Rm 6,4). Essa
nova vida define-se em G13,27 como “revestistes Cristo” (cf.
Rm 13,14). Em si, a frase poderia significar várias coisas,
mas o que Paulo tem em mente é esclarecido pela expressão
paralela: “Revestistes o novo homem” (Cl 3,10), porque, como
vimos, o “novo homem” só pode ser a comunidade/Cristo é o
novo homem que é a comunidade. Devemos, porém, sempre
perguntar o que isso significa na prática, e Paulo não nos
falta com_a resposta, porque em Colossenses logo passa a
especificar o que está envolvido ao exortar: l\

Portanto, como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos de


sentimentos de compaixão, de bondade, humildade, mansidão,
longanimidade, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos
mutuamente; como o Senhor vos perdoou, assim também fazei
190
vós. Mas sobre tudo isso, revesti-vos do amor, que tudo liga
juntamente em perfeita harmonia. E reine em vossos corações a
paz de Cristo, à qual fostes chamados em um só corpo (Cl 3,12-
15).

Em concreto, o ser o Corpo do Novo Homem constitui-


se por um complexo de virtudes sociais (cf. G15,22-23; lCor
13,4-7) que não passam de facetas do amor. E a força
criativa que liga os membros diversamente dotados numa
unidade acabada. Revestir de “Cristo” é revestir um amor
voltado ao outro, da mesma forma que ser “enraizado em
Cristo” (Cl 2,6) é ser “enraizado no amor” (Ef 3,17).
Seria absurdo imaginar que, ao predicar “Cristo” da
comunidade, Paulo pretendesse identificar a comunidade
como o indivíduo histórico Jesus Cristo. Em Cl 1,18, ele
faz a distinção explícita entre a Cabeça e o Corpo que está
implícita em várias cartas anteriores. Se uma explicação
em termos estáticos se exclui aí, somos forçados a consi­
derar uma explicação em termos de função. Nesta pers­
pectiva, o nome “Cristo” poderia ser predicado da comu­
nidade se for possível conceber Cristo e a comunidade
como realizando a mesma função idêntica. Uma vez que o
problema foi posto desta forma, torna-se fácil ver como a
mente de Paulo trabalhou.
(jA comunidade medeia Cristo para o mundo. A pala^.
vra que ele falou não se ouve em nosso mundo contem­
porâneo, a não ser que seja proclamada pela comunidade.'),
O poder que emanava dele no sentido de facultar a
resposta não mais é efetivo, a não ser manifestado pela
comunidade. Assim como Deus outrora agiu por Cristo,
agora ele age (2Cor 5,19-20) por aqueles que são “con­
formados à imagem do seu Filho” (Rm 8,29; cf. 2Cor 3,18)
e cujos padrões de comportamento são em imitação do dele
(lTs 1,6 8; lCor 11,1). O que Cristo fez no e pelo mundo de
seus dias por sua presença física, a comunidade faz no e
pelo seu mundo. O imperativo que exigia aquela autenti­
cidade que ele manifestou dentro da moldura de sua his­
tória permanece válido. Para continuar a exercer sua

191
função salvífica, o Cristo Ressuscitado deve ser eficaz­
mente representado dentro do contexto de uma existência
real por autenticidade que é modelada pela sua. Somente
os que se revestiram de Cristo aceitando a exortação “que
tudo o que fazeis se faça no amor” (ICor 16,14) pode
demonstrar a realidade continuada do “amor de Deus em
Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8,39), pois são somente
eles que “levam avante a palavra de vida” (F1 2,16).

Isto é meu corpo

,'A dimensão existencial do relacionamento íntimo


entre a Cabeça, que é o Cristo Ressuscitado, e o Corpo, que
é Cristo no mundo, emerge claramente na explicação que
Paulo faz-daeuearistiaLyy

Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na


noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois
de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós;
fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, após a ceia,
também tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança em
meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memó­
ria de mim”. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis
desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha (ICor
11,23-26).

O primeiro versículo dessa citação contém os termos


técnicos “receber” e “transmitir”, que colocam Paulo como
intermediário numa cadeia de tradição. Os mesmos ver­
bos aparecem a propósito do credo querigmático em ICor
15,3, mas apenas aqui Paulo designa explícitamente
aquele de quem recebeu a tradição: “Eu recebi do Senhor".
A fórmula em questão, porém, acusa sinais característi­
cos do uso litúrgico numa comunidade grecófona. Em que

192
sentido, pois, pode Paulo dizer que recebeu as palavras da
instituição do Senhor? Para alguns peritos, Paulo sim­
plesmente quis evocar Jesus como a origem remota de
uma tradição que ele recebera realmente de outros ho­
mens. Outros exegetas compreendem a frase como afir­
mação de que as palavras da instituição foram-lhe
comunicadas diretamente numa visão do Cristo Ressus­
citado. Esses dois modos de ver apresentam dificuldades
óbvias. Na primeira, relativamente às características da
fórmula institucional, faz violencia às palavras de Paulo.
A segunda, fazendo justiça à afirmação de Paulo, ignora,
não obstante, o colorido litúrgico da fórmula. Uma solução
muito mais satisfatória sugere-a o que vimos na seção
precedente./Cristo não é só o fundador da comunidade dos
crentes, mas, em sentido realfèle é a comunidade, porque
é por meio da comunidade que a realidade salvadora de
Cristo se torna eficaz no mundo./ .0 que Paulo, pois,
recebeu da comunidade, ele recebeu de Cristo. Em si
mesma, esta é uma chave valiosa para a perspectiva em
que Paulo visualiza aqui a eucaristia.
A chave mais significativa, porém, é o fato de que
Paulo acrescentou a segunda ordem de realizar o rito “em
memória” de Jesus. Pretendeu, portanto, frisar esse as­
pecto, e isso propõe a questão acerca do que Paulo entendeu
por “memória”. Felizmente, ele próprio responde à ques­
tão no v. 26: “Todas as vezes, pois, que comeis deste pão e
bebeis deste cálice, anunciais a morte do Senhor até que
ele venha”. A opinião segundo a qual Paulo viu o pão
partido e o vinho derramado como separação simbólica do
corpo e sangue e, sendo assim, uma declaração da morte
de Jesus, é sem fundamento. Daí, numerosos peritos
insistirem, à primeira vista justificadamente, que o verbo
“anunciar” envolve necessariamente um elemento verbal
e em conseqüência pretendem que o versículo deve ser
entendido como alusão ao reconto da paixão ou, pelo
menos, à seção referente à última ceia, durante a celebra­
ção da eucaristia. Nada parece mais natural que a paixão
deva ter sido evocada em tal ocasião; mas se fosse isso que

193
Paulo tinha em mente, certamente teria se expressado de
outra forma. A impressão dada por essa formulação é que
a proclamação se realiza mediante uma ação de comer e
beber. A ação é uma afirmação e o que é “dito” é a morte
de Cristo. A proclamação é existencial (cf. lTs 1,6-8; F1
2,14-16) e, em conseqüência, a “memória” deve ser algo
mais do que um olhar intelectual rumo ao passado.
O que Paulo tem em mente acede a foco mais claro
quando recordamos sua compreensão da morte de Cristo
como lição a demonstrar como o gênero humano devia
viver auténticamente, “ele morreu por todos, para que os
que vivem não mais vivam para si mesmos” (2Cor 5,15).
Genuína memória é articulada em imitação. O propósito
do esforço de Paulo em evocar a memória de seus caminhos
em Cristo entre os corintios era para que eles também
fizessem o mesmo (ICor 4,16-17). Se eles o imitassem,
também imitariam a Cristo (ICor 11,1 )//Ao re memorar
em Cristo, reconhecem a exigência implícita na morte que
tornou possível o seu novo modo de ser/vPor seu compor­
tamento, eles proclamam aquela possibilidade a outros. O
que eles são é iluminado na unidade do ato sacramental,
e Cristo torna-se realidade no mundo. Eles encarnam o
amor salvador expresso em sua morte e continuarão a
exercer essa função até que ela se torne desnecessária por
seu retorno, “até que ele venha”. Essa evocação da presença
física de Cristo no éschaton reforça a interpretação exis­
tencial da proclamação de sua morte. O amor dá substân­
cia às palavras da instituição eucarística e só o amor pode
fazê-lo.
Até o momento discutimos o que poderia ser designado
abordagem teórica de Paulo acerca da eucaristia, isto é, o
que aconteceria se a eucaristia fosse celebrada numa
comunidade ideal. A situação real em Corinto era muito
diferente. Os corintios estavam longe de ser perfeitos, não
no sentido de que não tivessem ainda atingido o ideal, mas
no sentido de que sua confiança exagerada os levara a
entender equívocamente o modo como a eucaristia atinge
o seu efeito. Eles imaginavam-se em estado definitivo de

194
autenticidade, ao passo que na realidade eram apenas
parte de processo que podia abortar. E por isso que Paulo
prefacia sua exposição da eucaristia em ICor 10 esboçando
o paralelo entre a situação dos coríntios e a dos israelitas
no deserto. A autenticidade não é privilégio concedido
uma vez por todas.ÚA relevância d a meação de Paulo à
nossa situação contemporânea, onde muitas das assim
chamadas comunidades não têm nenhuma vida orgânica,
dificilmente se pode enfatizar demais. /.
— À situação em Corinto é descrita com pormenor
explícito. “Em primeiro lugar, quando vos reunis para
encontro eclesial, ouço dizer que existem divisões entre
vós” (ICor 11,18). A ausência de qualquer “em segundo
lugar” na continuação do texto sugere que “em primeiro
lugar” foi pretendido por Paulo para frisar o que primei­
ramente o surpreendeu sobre a situação dos coríntios.
Que o fato de divisões tenha chamado sua atenção é
perfeitamente compreensível à luz de sua compreensão
de autenticidade e inautenticidade. As divisões, de que se
trata aí, não são os partidos mencionados em ICor 1,12 e
3,4, mas subgrupos criados pelo egocentrismo. “Pois ao
comer, cada um vai adiante com sua própria refeição, e um
está com fome e outro está bêbado. O quê? Acaso não tendes
casas para comer e beber nelas? Ou desprezais a casa de
Deus e humilhais os que nada têm?” (ICor 11,21-22).
Dessa atitude Paulo tira a conclusão: “Quando, pois,
vos reunir juntos não é para comer a ceia do Senhor” (ICor
11,20). Nesta tradução literal, o versículo dá a impressão
de que Paulo se refere à intenção dos coríntios. Reúnem-
se não em vista de comer a ceia do Senhor, mas com outro
propósito na mente. Esta interpretação é insustentável,
porque o que Paulo critica é o modo de celebrar a ceia do
Senhor. Sendo assim, a única interpretação viável
é: “Quando vos reunis juntos, não é a ceia do Senhor que
comeis’<^Não importa o que os coríntios pensem estar
fazendo, eles não estão de fato comendo a ceia do Senhor,
porque a atitude de uns para com os outros o excluem. O
ser partilhado, que é o seu novo modo de existência em

195
Cristo, devia chegarà expressão no cuidado prático_para_
que nenhum fique em necessidade. O egoísmo dos coríntios
é a antítese do que deveria ser e, sendo assim, torna a
celebração da eucaristia impossível. í ■
Uma vez que a transformação do pão e do vinho no
corpo e sangue de Cristo é o que diferencia a ceia do
Senhor de refeição comum, a impossibilidade deve deri­
var do fato de que as palavras da instituição eucarística
não têm nenhuma validade quando ditas numa situação
caracterizada por divisões egocêntricas. Isso é inteira­
mente congruente com a identificação existencial que o
Apóstolo faz da comunidade dos crentes com Cristo. Em
teoria, a comunidade é Cristo, mas Paulo não está inte­
ressado pelo aspecto especulativo. Sua função como pas­
tor era assegurar que a comunidade fosse de fato Cristo,
verdadeiramente animada por sua vida, inteiramente
penetrada por seu espíritoJÇomo tal, a comunidade podia
agir com o poder de Cristo, e podia falar com a autoridade
de Cristo. Numa comunidade inautêntica, como era
Corinto, Cristo não estava presente.iAs palavras da ins­
tituição eucarística eram dele, mas a voz que as falava não
o era. A autoridade transformadora estava faltando e em
conseqüência nada acontecia. As palavras da instituição
eucarística não efetuavam o que elas significavam.
É impossível provar apoditicamente que era esse o
modo de ver de Paulo, mas nada do que diz contradiz a
essa interpretação, que é a única que se harmoniza com
sua explanação existencial. Como traduzido pela RSV,
ICor 11,27 poderia parecer objeção: “Todo aquele, portanto,
que come o pão e bebe do cálice do Senhor de maneira
indigna será culpado de profanar o corpo e o sangue do
Senhor”. A implicação dessa versão é que o participante
indigno da eucaristia comete sacrilégio ao consumir o
corpo e o sangue de Cristo que estão lá sob as espécies
sacramentais em virtude somente das palavras e sem
referência à atitude da comunidade. Essa interpretação
depende, porém, do verbo “profanar”, que não aparece no
texto grego que diz simplesmente “será culpado do corpo

196
e do sangue do Senhor”. Isso sugere uma explicação bem
diferente porque “ser culpado do sangue de alguém”
entende-se mais naturalmente como significando ser
responsável pela morte daquela pessoa (cf. Dt 19,10). A
verdadeira intenção do versículo, portanto, é enfileirar o
participante indigno entre os responsáveis pelo assassí­
nio de Jesus (cf. Hb 6,6; 10,29).
' Idealmente, a eucaristia deveria ser proclamação da
mortede Cristo (lCor 11,26), mas a atitude dos partid--
palites podem fazê-la ocasião de assassínio (lCor 11,27).
A inautenticidade alcançou o seu apogeu na crucifixão de
Cristo (lCor 2,8), e a atitude daqueles que destroem a
unidade da Comunidade-Cristo por seu egocentrismo,
merece a mesma condenação. São classificados entre os
que mataram Jesus, porque negam a realidade de Cristo
no mundo. Em vez de emanar vida, trazem morte. Seria
difícil encontrar uma apresentação mais plástica da res-,
ponsabilidade assumida pelos que participam da eucaris­
tia. A preocupação dc Paulo com a atitude existencial dos
participantes frisa-se, de mais a mais, pela ênfase na
necessidade de auto-exame, e o critério a se usar é formal­
mente articulado: “Todo aquele que come e bebe sem
discernir o corpo, come e bebe juízo sobre si” (lCor 11,29). /'.
Alguns tomam “o corpo” aqui no sentido de corpo
físico de Cristo sob as espécies sacramentais, como se a
falha dos corintios fosse ter confundido a eucaristia com o
alimento ordinário. Não existe nenhuma alusão a isso no
contexto. O interesse de Paulo volta-se para divisões
dentro da comunidade, e isso só sugeriria que “o corpo”
deve se entender como referindo à comunidade como
Corpo de Cristo — tema que já fora introduzido e precisa­
mente em contexto referente à eucaristia (lCor 10,17). A
alusão ao “julgamento” confirma essa interpretação,
porque lemos no v. 33: “Assim, pois, meus irmãos, quando
vos reunir juntos para comer, esperai uns pelos outros...
a não ser que vos reunis para o julgamento^Os que não
se incomodam com os membros, seus companheiros, bãõ
discernem o Corpo,. \

197
Os corintios deram assentimento nacional ao concei­
to da comunidade como o Corpo de Cristo, mas seu
compor-tamento revelou de maneira bastante clara que
não compreendiam deveras as exigencias que impunha.
Sua tolerância de invejas e rixas dentro da comunidade
(ICor 3,1-4) era indicio de que não lograram apreciar quão
realisticamente Paulo pretendera que se devia entender
sua ênfase na unidade orgânica. Felizmente cometeram
esse erro, porque de outra forma estaríamos privados do
aumento de claridade que vem de teoria reduzida à
prática. O desafio da abordagem da eucaristia por Paulo
não deixa lugar à fuga. A não ser que os membros da
comunidade não amem atualmente uns aos outros, Cristo
não está presente na eucaristia e não está presente no
mundo< A não ser que estejam unidos organicamente
como partes de um todo vivo, não têm amor nenhum e são
nada (ICor 13,2). Em conseqüência, não podem conseguir
nada, sequer na oração litúrgica da assembléia./,

Mulheres em Cristo

Na Igreja de hoje seria caso altamente extraordinário


para qualquer comunidade tolerar a desagradável dis­
criminação em termos de alimentos e bebidas que negava
a eucaristia em Corinto. Existem, porém, formas de dis­
criminação que manifestam a mesma falta de amor, e é só
o amor que transforma a assembléia na comunidade que
é Cristo. A discriminação mais difusa da Igreja contem­
porânea torna-se evidente na atitude oficial no tocante à
participação ativa de mulheres na liturgia, atitude que é
avalizada por muitos homens. Ninguém subscreveria a
caricatura viciosa esboçada na p. 133, mas a comunidade
tem que examinar-se quanto ao prejuízo causado pela
perpetuação das divisões que, para Paulo, caracterizava

198
1

a humanidade não redimida (G13,28). Pode ser a explica­


ção por que a eucaristia produziu tão poucos frutos! Uma
vez que o Apóstolo é citado comfreqüência em apoio dessa
discriminação, é importante determinar qual foi realmente
sua atitude para com as mulheres, e isso nos leva à seção
de lCor 11 que precede imediatamente sua discussão da
eucaristia.
A ICoí’ 11,2-16 normalmente se confere um título que
dá a impressão de que Paulo esteja interessado na passa­
gem somente pelo tema das mulheres na comunidade,
como, por exemplo, “penteado das mulheres” (New
American Bible) ou “comportamento das mulheres na
liturgia” (Jerusalem Bible). A ênfase de seu argumento
presume-se ser que as mulheres devem usar véu porque
são inferiores e subordinadas aos homens. A leitura
honesta da passagem revela que isso é falso¿)Paulo faz
muitas afirmações também acerca dos homens, e a pala­
vra “véu” não aparece absolutamente no texto grego./'
Nosso primeiro interesse, portanto, deve ser determinar
qual era o problema em Corinto. Só então poderemos
começar a entender o que Paulo tentava fazer em torno
dele.
Ele critica todo varão que oficia “com algo dependu­
rado de sua cabeça” (v. 4a). Isso se entende mais natural­
mente como referindo a cabelos longos, inferência que se
confirma pela última afirmação de que “se um homem usa
cabelos longos é uma desonra para ele” (v. 14)ÔÉ_fácil
acumular textos do séc. I a.C. em que autores gregos e
romanos mostram que cabelos longos eram associados
com a homossexualidadejSDeixavam os cabelos crescerem
a fim de ajeitá-los adequadamente. Filón, por exemplo,
condena “a maneira provocativa como enrolam e arru­
mam os cabelos” (Spec. Leg. 3,36). O menor exagero era
interpretado como sinal de efeminação; declarava sexu­
alidade ambígua.
Ao invés, era natural para as mulheres terem cabelos
longos (v. 15a), mas Paulo insiste que lhes foram dados
como “proteção” (v. 15b). Moedas e medalhas romanas

199
tornam claro o sentido deste termo não usual, pois mos­
tram mulheres cujos cabelos cacheados estão ligados em
torno do tipo da cabeça para dar a aparência de pequeno
boné. É essa a “cobertura” de que Paulo fala no v. 6a. Em
consequência, uma mulher que oficia “descoberta” (v. 5a)
é simplesmente mulher cujo cabelo não está arrumado na
moda costumeira. Nessa medida, não é feminino. Ne­
nhum texto antigo sugere que cabelo não arrumado numa
mulher tinha a mesma conotação de desvio como os
cabelos longos no caso dos homens. Ele era “não mascu­
lino” em sentido muito específico; ela é “não feminina” só
em sentido genérico. Mas a associação dos dois induziu
Paulo a afirmar, com ironia bastante pesada, que se a
mulher se recusa a ser “feminina”, então ela devia caminhar
o caminho completo e parecer “varonil” (v. 6).
O que parece ter acontecido é que alguns corintios
tomaram Paulo literalmente quando proclamou que em
Cristo “não há mais varão e mulher” (G13,28), e o resto da
comunidade não fez objeçãoÇiPaulo achou o infantilismo
(cf. ICor 3,1; 14,20) desta resposta intolerável porque
projetava falsa imagem da natureza da comunidade cristã.
A distinção entre os sexos era obscurecida de forma que só
podia anular o valor de testemunho da comunidade.
Sendo assim, teve de argumentar que a distinção entre os
sexos era importante e devia ser respeitada. E este o seu
único interesse em ICor 11,2-16. Seu argumento, porém,
não é tão claro como se desejaria, porque ele sentia o
embaraço que muitos sentiam ao tratar da homossexu­
alidade, mas os pontos-chave se detectam facilmente uma
vez que se sabe qual era o problema.
Em primeiro lugar, é óbvio que ele não visa provar
que a mulher é subordinada ao homem; isso não serviria
absolutamente a seu propósito. De fato, ele repudia ex­
plícitamente essa interpretação do papel da mulher ba­
seada em Gn 2,18-23 e que era corrente no judaísmo.
Segundo o historiador judeu Josefo: “A mulher, diz a lei,
é em todas as coisas inferior ao homem. Que ela seja em
conformidade submissa, não para sua humilhação, mas

200
1

que possa ser dirigida, pois a autoridade foi dada por Deus
ao varão” (Contra Apião 2,201). Se o homem foi a fonte do
ser da mulher (v. 3b), a mulher agora é a fonte do ser do
homem, e isso cra justo enquanto vontade de Deus (v. 12).
Assim, “no Senhor, isto é, em Cristo, a mulher não é
diversa do homem, e o homem diverso da mulher” (v. 11);
em termos de papéis dentro da Igreja, ambos estavam no
mesmo pé. Nesta perspectiva, a ênfase dos w. 7-9 deve ser
que, se Deus não teve em mente nenhuma distinção entre
os sexos, ele os teria criado da mesma maneira/lNq
entanto, visto que Gn 2,18-23 revela diferença no modo de
criação, então a distinção foi querida por Deus e deve,
portanto, ser respeitada. ■
Somente essa aproximação nos permite perceber o
sentido do enigmático v. 10: “A mulher deve ter autorida­
de em sua cabeça por causa dos anjos”. A pressuposição de
Paulo em toda essa discussão é que a mulher pode exercer
papel de liderança na assembléia litúrgica (v. 4). Ela,
portanto, tem uma autoridade que lhe foi negada na
interpretação judaica da lei. Os anjos que agiram como
mediadores na doação da lei (G1 3,19) observavam o que
se passava neste mundo (lCor 4,9) e faziam relação das
violações da lei (Jubileus 4,6; cf. 1 Enoc 99,3). Como
membros da corte celeste, ficaram sabendo da mudança
de status das mulheres, mas deviam ficar perturbados se
vissem esta nova autoridade sendo exercida por um ser de
sexo indeterminado^! Foi dado à mulher precisamente
como mulher e seu exercício deve proclamar sua femini­
lidade pela maneira como ela arruma seus cabelos; é neste
sentido que sua arrumação dos cabelos simboliza aqui
autoridade para orar e profetizar. Deve-se notar que a
igualdade das mulheres em termos de autoridade ecle­
siástica era tão evidente para Paulo e os corintios que
podia servir como a ba¡se de argumento pela distinção dos
sexos! -ZN
O que Paulo quer dizer por “profecia” está claro em
lCor 14. “Aquele que profetiza fala aos homens com vistas
a edificação, encorajamento e consolo” (v. 3). E “um sinal

201
para os crentes” (v. 22), de tal sorte que “todos possam
aprender e ser encorajados” (v. 31). É, portanto, um
ministério da palavra e, dado o modo em que o termo era
usado nos tempos de Paulo, dizia respeito à exposição das
Escrituras. Seria impossível justificar distinção entre
profecia neste sentido e nossa homilia litúrgica contem­
porânea. Em outras palavras, Paulo afirma que mulheres
têm uma autoridade dada por Deus para pregar na
assembléia litúrgica. Pode-se obter muito menor evi dência
com respeito à natureza da “oração”, mas o contexto
social, estabelecido pelo que se disse sobre “profecia”,
claramente indica que a referência é com a prece inspirada
que cristalizava a fé da comunidade e à qual se dava
assentimento público pela palavra “amém” da assembléia
(ICor 14,16; 2Cor 1,20). Alguns dos hinos do Novo Tes­
tamento (Kl 2,6-11; Cl 1,15-20; lTm 3,16) podem ser
típicos dessa prece (cf. Cl 3,16).
Na prática, portanto, Paulo era inteiramente fiel à
teoria enunciada em Cl 3,28. Da mesma forma que teve
problemas com o modo como algumas arrumavam os
cabelos, ele não podia negar os direitos da mulher. Ao
invés, explícitamente os defende/ÍIsso dá nova e mais
profunda dimensão à igualdade das mulheres implícita
em sua contribuição no estabelecimento das comunidades
paulinas/lNenhuma distinção se faz entre Evódia ou
Síntique e Clemente como “cooperadores” de Paulo (F1
4,2-3; cf. 1,5), e não existe nenhuma justificação para
postular papéis diferentes para Gaio (Rm 16,23) e Ninfas
(Cl 4,15) na direção de suas respectivas igrejas domés­
ticas.
Infelizmente, a intuição sábia de Paulo sobre o signi­
ficado prático do mandamento do amor (ICor 13,1-7) não
prevaleceu. Depois que ele desapareceu de cena, tendên­
cias reacionárias afirmaram-se rapidamente. Tanto ICor
14,34-35 como lTm 2,11-15 — nenhum destes textos foi
escrito por Paulo — reduziram o papel das mulheres ao
papel passivo de que gozavam sob a lei. A entrega às
exigências de uma cultura cujos critérios são condenados

202
pelo evangelho vem tendo sérias consequências para a
unidade do Corpo de Cristo; não existe nenhuma razão em
duvidar da realidade do amor que liga a todos em perfeita
harmonia (Cl 3,14). Onde isso deixa a Igreja em termos de
lCor 13,2?

203
LEITURAS SUGERIDAS

Bast, E., One Baby in Christ, SPCK, Londres, 1955.


Gundry, R. H., Soma in Biblical Theology with Enphasis on Pauline
Anthropology, CUP, Cabridge, 1976.
Schweitzer, E., The Church as Body of Christ, SPCK, Londres, 1965.
Ahern, B. M., “The Christian’s Union with the Body of Christ in
Corinthians, Galatians, an Romans”, em Catholic Biblical Quarterly
23(1961), 199-209.
Panikulam, G.,Koinonia in the New Testament, Biblical Institute, Roma,
1979.
Furnish, V. P., The Love-Commandment in the New Testament,
Abingdon, Nashville, 1972.
Banks, R., Paul’s Idea of Community, Paternoster, Exeter, 1980.
Judge, E. A., The Social Pattern of Christian Groups in the First
Century, Tyndale, Londres, 1960.
Tod, M. N., “Clubs and Societies in the Greek World", em Sidelights on
Greek History, OUP, Londres, 1932, 71-96.
Filson, F. V., “The Significance of Early Church Houses”, em Journal
of Biblical Literautre 58(1939), 105-112.
Peterson, J. M.,“House-Churches in Rom, em Vigiliae Christ ianae 23
(1969), 264-272.
Malherbe, A. J., “House-Churches and Their Problems”, em Social
Aspects ofEarly Christianity, Louisiana State University, Baton Rouge,
1977.
Koenig, J., Charismata: God’s Gifts for God’s People, Westminster,
Filadélfia, 1978.
Dunn, J. D. G., Jesus and the Spirit, SCM, Londres, 1975.
Kàsemann, E.,“ The Cry for Liberty in the Worship of the Church”, em
His Perspectives on Paul, SCM, Londres, 1971, 122-137.
Murphy-O’Connor, J., “Eucharistand Community inFirst Corinthians”,
em Worship 50 (1976), 370-385; 51 (1977), 56-69.
Id., “Sex and Logic in 1 Corinthians 11:2-16”, em Catholic Biblical
Quarterly 42 (1980), 482-500.

204
A MENTE DE CRISTO

Do ponto de vista de Paulo, como vimos, a autentici­


dade começa com a escolha de um modo altamente espe­
cífico de ser ¿Os crentes pela fé entregam-se a urna forma
de existência que é essencialmente social. Assumem as­
sim responsabilidade pelo próprio ser de outros na comu­
nidade e também pela transformação do mundo. O exer­
cício dessa responsabilidade envolve necessariamente
outras decisões. Isso nos leva à área de juízos morais que
é o ponto mais crítico da compreensão que Paulo tem da
natureza da comunidade cristã. Como uma multiplicidade
de decisões correspondente ao número dos crentes pode se
relacionar com a unidade orgânica do Corpo? Estamos
interessados aqui com o uso da liberdade por parte dos que
fizeram a experiência da “liberdade de”.

Nenhum preceito obrigatório

Existe uma maneira óbvia de assegurar que a prática


dos membros reflita a unidade do Corpo a que pertencem,
a saber, regulaçãqrigorosa de seus atos por meio de
legislação, obrigatória:.Essa solução era inaceitável para
Paulo pelas razões que esboçamos no cap. 6. Para os
cristãos, prestar obediência plena à nova lei situa-nos na
posição dos judeus cujo respeito exagerado à lei mosaica

205
os condenava à inautenticidade<zTudo o que a legislação
pode conseguir é uniformidade de ação. Ela é incapaz de
produzir o dom do eu autêntico que é a própria essência da
unidade. O ensino de Paulo não contem apenas as semen­
tes do antinomismo, como alguns sustentaram; ela é
fundamental e radicalmente antinomista. Este ponto foi
estabelecido da forma mais clara e precisa por John Knox:

Mas, deve-se perguntar, a rejeição que Paulo faz da lei como


obrigatória ao crente é tão radical assim? Não é a “lei”, mas
somente um código externo que rejeita, uma lista de “deves” e
“não deves”, em particular o código do judaísmo? O que quer que
pareça estar implicado em alguns de seus ensinamentos práti­
cos, sinto que na “teoria” d a vida cristã Paulo foi muito mais longe
do que isso. Ainda que, sem dúvidas, esteja se referindo à lei
judaica, não se pode negar a presença — muitas vezes, se não
sempre — de referência mais radical e mais inclusiva... A lei,
como tal, não mais é válida para o cristão (The Ethic of Jesus in
the Teaching of the Church, Londres, 1962, 98-99).

Este modo de ver é altamente desconcertante para


qualquer pessoa educada em ambiente tradicional cristão
em que os mandamentos exerceram papel importante, e
não surpreende que houvesse reações a isso. Em artigo
com o título de “Obrigação na Ética de Paulo” publicado na
coletânea oferecida a John Knox (Cambridge, 1967, 392-
393), C. F. D. Moule tenta mostrar que Paulo usava o
termo “lei” em duas conotações diversas que ele designa
“revelatória” e “legalística” e sustenta que o Apóstolo não
estava interessado na lei em si mesma, mas com duas
atitudes com referência à lei(£Uma é o reconhecimento da
lei como a revelação da vontade e intenção de Deus; e a
outra é a tentativa de usar da lei para estabelecer a
própria justiça./O cristão, argumenta, deve-se submeter
às exigências da lei enquanto revelação da vontade de
Deus, rejeitando ao mesmo tempo toda tentação de colocá-
la a serviço de sua própria ambição egoísta.
Essa distinção é sem sentido em termos práticos.
Quando visualizadas como excertos da divina vontade, as

206
diretivas morais só se podem entender como obrigatórias
absolutamente, o que torna inevitável uma atitude
legalística. Não há escolha alguma senão submeter-se, e
a atenção inteira do crente focalizará na satisfação de
obrigações específicas. E precisamente quando a lei é
entendida como revelatória que temos a situação que
Paulo condena tão radicalmente em Rm 2,17-20 (cf. supra
p. 118).
1 O argumento genérico confirma-se pelo levantamen­
to das passagens em que Paulo menciona a vontade de
Deus em contexto ético! D objeto específico da vontade de
Deus é o ser autêntico (lTs 4,3), a que a humanidade é
exortada por “chamamento” (lTs 4,7). Dentro do contexto
global estabelecido pela obediência da fé (Rm 1,5), espera-
se que os crentes ajam a partir das exigências específicas
da vontade de Deus para com ele (Cl 1,9; 4,12), e isso se
manifesta como o fruto de transformação interna (Rm
12,2) que não passa de um aspecto do dom do eu autêntico
(2Cor 8,3-5). Duas vezes imperativos morais se justapõem
a referências à vontade divina (lTs 4,3; Rm 12,2), mas em
nenhum lugar existe a menor alusão que os dois devem
ser identificados. Correspondentemente, Paulo jamais
fala de obediência a uma lei ou preceito específico. Nas
cartas, obediência é sempre sinônimo de fé (Rm 6,16;
10,17; 15,18; 16,26; 2Cor 10,5; 2Ts 1,8), a saber, aceitação
do modo de existência demonstrada por Cristo (Rm 5,19;
F1 2,8).
recusa dej’aulo da aquiescência cega a qualquer
diretiva autoritária foi um princípio pelo qual viveu real-
mente(?Sua prática torna certo o que deduzimos ser sua
posição teórica. Dada a posição central que Cristo tem na
teologia de Paulo, pode-se admitir que se alguma diretiva
portasse autoridade obrigatória, seria uma ordem do
Senhor. Isso ilumina a importância da forma em que
Paulo reagiu às duas ordens do Senhor que cita. A primei­
ra diz respeito à atitude dos pregadores. “O Senhor orde­
nou que os que proclamam o evangelho, ganhem a vida
pelo evangelho” (ICor 9,14). Em outros termos, os ministros

207
do evangelho deviam dedicar sua atenção toda à sua
tarefa e não deviam desperdiçar tempo ganhando a vida;
Paulo recusou-se a reconhecer essa ordem como “obriga­
ção” e a reclassificou como um “direito” (ICor 9,12.18), do
qual se gloriou de não usar (ICor 9,15). Fez uma prática
de ganhar a própria vida, desobedecendo assim aberta­
mente à ordem do Senhor. Sentiu que receber apoio
Financeiro obscureceria o fato de ele pregar por inteira
convicção (ICor 9,16). Encontramos aí, de outro ponto de
vista, uma vez mais o aspecto existencial do apostolado a
que Paulo atribuía tanta importância. A segunda diretiva
referia-se ao divórcio. Este era proibido em forma de
preceito negativo que não permitia nenhuma exceção
(ICor 7,10-11), mas Paulo, visualizando um caso que
justificava fazer exceção, permitiu divórcio (ICor 7,15).
/¿.Nos dois casos em que Paulo se confrontou .com.
preceitos do Senhor, não os tratou como tendo força
vinculante, mas os submeteu à avaliação crítica. Quando
achava apropriados, ele os aceitava (cf. F1 4,14-20; ICor
7,1 la) e, quando inapropriados, simplesmente os deixava
de lado. Élejsra consistentemente fiel ao aviso que dera
aos tessalonicenses: “Testai tudo" (lTs 5,21)/-,

A função de diretivas morais

Se Paulo recusou considerar as diretivas da lei e de


Jesus como preceitos, dificilmente é lógico imaginar que
pretendesse que suas próprias diretivas impusessem
obrigação vinculante. Sendo assim, precisamos descobrir
qual o valor que ele lhes atribuía. De mais a mais, uma vez
que muitos dos convertidos foram formados numa atitude
para com a lei que o Apóstolo repudiava como caracterís­
tica da inautenticidade, precisamos determinar por que
enfrentou o risco de dar tais diretivas.

208
I

\A maneira mais simples de responder a essas pergun­


tas consiste em olhar para a lista típica de diretivas que
Paulo deu em sua carta mais antiga: Al

'Finalmente, meus irmãos, vos pedimos e exortamos no Senhor


Jesus que tenhais ouvido de nós como deveis viver para agradar
a Deus, e assim já viveis; todavia, deveis ainda progredir. 2Pois
conheceis as instruções que vos demos da parte do Senhor Jesus.
"Porquanto é esta a vontade de Deus: a vossa santificação, que
vos aparteis da luxúria, "'que cada qual saiba tratar o próprio
corpo com santidade e respeito, 5sem se deixar levar pela paixão
do desejo, como os gentios, que não conhecem a Deus. GNessa
matéria ninguém fira ou lese a seu irmão, porque de tudo isso se
vinga o Senhor, como já vos temos dito e assegurado. TPois Deus
não nos chamou para a impureza, mas sim para a santidade.
"Portanto, quem desprezar estas instruções não despreza um
homem, mas Deus, que vos infundiu o seu Espírito Santo. 9Não
precisamos vos escrever sobre o amor fraterno pois aprendestes
pessoalmente de Deus a amar-vos mutuamente; 10e é o que fazer
muito bem para com todos os irmãos em toda a Macedônia. Mas
vos exortamos, irmãos, a progredir cada vez mais. "Empenhai a
vossa honra em levar vida tranqüila, ocupar-vos de vossos
negócios e trabalhar com vossas mãos, conforme nossas diretri­
zes. 12Assim levareis vida honrada aos olhos dos de fora e não
tereis necessidade de nada (lTs 4,1-12).

Essa lista contém diretivas, quer negativas quer


positivas, que precisam ser examinadas com certo porme­
nor para nos assegurarmos que suas implicações se en­
tendem corretamente:
i V. 3: É difícil determinar o sentido preciso de “imora­
lidade” (porneia)}-No grego ordinário, seu uso designa a
prostituição comercial e/ou cultual. No uso bíblico, o leque
de significados é mais amplo, pois inclui incesto, adulté­
rio, homossexualidade, bestialidade, idolatria e em geral
qualquer coisa que é proibido pela lei. “Imoralidade”, pois,
é termo genérico que descreve a existência centrada em si
mesma que não leva em conta os direitos do Criador e dos

209
putros ou que usa os outros como instrumentos de sua
própria gratificação/,Não surpreende, portanto, que é
elemento constante (junto com seu correlativo “impure­
za”, v. 7) nas listas de vícios que Paulo usa para catalogar
as características da existência inautêntica.z<
Vv. 4-5: Encontramos aqui um contraste explícito
entre a existência dos crentes e a existência dos não-
crentes. JEstes são dominados pela “paixão do desejo”.
“Desejo” aí traduz o termo grego que alhures traduzimos
por “concupiscência” (cf. p. 111 supra). Pode ter conotação
sexualj mas por si mesmo não se limita a essa área de
comportamento. No léxico de Paulo,_eyoca os desejos
fundamentalmente egoístas fomentados pelas pressões
do Pecado ao qual os inautênticos estão escravizados. Por
sua incorporação na comunidade, os crentes estão livres
de sua pressão, mas, a fim de dar realidade a essa
liberdade, têm que adquirir domínio sobre os instintos de
seus corpos. Por causa de sua longa dominação por forças
externas a si mesmos, têm que aprender o “autocontrole”
(G1 5,23) que é a antítese de autogratificação.
V. 6: E impossível determinar com certeza o que
significa exatamente “essa matéria”. O_ que, porém, é
claro é que envolve uma injúria feita ao companheiro na
comunidade. Isso se exclui porque é incompatível com o
amor que cada um deve ao outro e que dá poder para
promover o outro.
y. 9:“Amor fraterno” é o fator constituinte da exis­
tência autêntica e, com respeito a esta faceta essencial de
suas vidas, Paulo diz que os tessalonicenses fo­
ram “ensinados por Deus”,: Alguns vêem uma referência a
discursos inspirados de profetas cristãos nas assembléias
litúrgicas, ao passo que outros encontram alusão ao anún­
cio do querigma ou ao conhecimento das palavras de
Jesus. Sc Paulo tivesse em mente alguma dessas possibi­
lidades, seguramente ter-se-ia expresso de forma diferen­
te. O termo “ensinados por Deus” ocorre só aqui nos
escritos paulinos e a analogia mais próxima se pode
encontrar em ICor 2,13, em que Paulo pretende falar “em

210
palavras ensinadas pelo Espírito”. Seu sentido aí é escla­
recido pelo versículo precedente: “Não recebemos o espí­
rito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus para
podermos entender os dons concedidos a nós por Deus”.
Assim como um tipo de conhecimento é dado com a
existência inautêntica (“o mundo”), também outro é dado
com a existência autêntica (“o Espírito”). A humanidade
decaída adota instintivame nte as estruturas daquele modo
de ser. O novo ser em Cristo é devido à iniciativa de Deus
e, consequentemente, o conhecimento instintivo dado com
ele deve-se atribuir a ele. Todo o que aceitou Cristo não
pode fugir da importância primordial do amor/A existência
inautêntica é inconcebível sem o reconhecimento do outro
como “irmão”. O interesse de Paulo é tornar totalmente
consciente o que já está presente e em particular iluminar
a dimensão prática.,
Vu. 10-11: Tanto a estrutura da frase como a forma
deste parágrafo revela que Paulo não fala sobre algo
distinto do amor fraterno. Trata-se de frisar algumas de
suas virtualidades. Uma vez que lTs 3,10 provavelmente
pertence a outra carta, não acho nenhuma razão que leve
a relacionar essas admoestações a uma situação específi­
ca em Tessalônica. A conversão pode ser experiência
pesada e perturbadora, e a intenção de Paulo é ir contra
a tendência natural ao exagero por conselhos de prudên­
cia e moderação. O entusiasmo religioso derivado da
conversão é fundamentalmente concentrado em si, por­
que a experiência é só do indivíduo. Como tal, opõe-se à
existência partilhada que se supõe ser o modo de ser do
crente. Ficar calmo, cuidar dos próprios assuntos e traba­
lhar não são necessariamente expressões do amor frater-
noÁO interesse de Paulo é levar os novos convertidos ao
quadro de pensamento em que o amor mútuo pudesse se

Duas conclusões importantes emergem desta análise


de Tfs 4,3-12. Primeiro, não se faz nenhuma tentativa de
cobrir todas as possibi lidades. Tudo o que se fornece é uma
série de indicadores muito genéricos. Segundo, todas as

211
1

injunções se relacionam com a compreensão que Paulo


tem dos dois modos de ser abertas à humanidade. Adverte
contra o comportamento que acusa o egoísmo da concu­
piscência e contra a curiosidade e a preguiça que são
notoriamente destruidoras da vida comunitária. Encora­
ja o autocontrole indispensável em relações interpessoais
e advoga atitudes que permitem genuíno interesse pelos
outro^/Em outras palavras, suas diretivas são essencial­
mente educativas. Visa orientar os que passaram do modo
egocêntrico de existência do “mundo” ao modo, diversa­
mente direcionado, do ser “em Cristo”. A mudança foi tão
radical que os convertidos precisavam ser guiados na
produção de um padrão de comportamento apropriado a
seu novo estado.
O texto também deixa claro que essas diretivas foram
dadas por Paulo como parte de sua pregação oraKlTs 4,1-
2) e isso permanece verdadeiro se, como parece provável,
lTs 2,11-12 era a introdução original à lista. Que essa era
sua prática habitual é atestado por 2Ts 3,10 e G1 5,21.
Estes textos iluminam o absurdo da pretensão de que
Paulo dava diretivas morais só quando se desenvolviam
perturbações em suas comunidades ou só quando ele se
via confrontado com problemas postos pela demora da
parusia. Em nenhuma parte seu sentimento da iminência
do éschaton é mais evidente do que na carta aos
Tessalonicenses. /Seu bom senso indicava que os novos
convertidos estariam jogados ao mar por algum tempo em
seus esforços para dar expressão prática ao ideal que
aceitaram, e o seu interesse se desdobrou numa série de
diretivas indicadas que, esperava ele, os facultaria a
encontrar pé quanto antes possível. Isso era imperativo
também se Cristo havia de voltar depois de um intervalo
de apenas algumas semanas ou meses. ''
Asituação produzida assim era bastante delicada. As
diretivas indicadoras poderiam não funcionar como Paulo
pretendia, a não ser que fossem levadas a sério, e essa é
a razão por que as repete, ainda que esteja seguro de que
os tessalonicenses não agem de outra forma (lTs 4,1.10).

212
Contudo, se fossem tomadas muito a sério e adquirissem
o status de preceitos vinculantes, o crescimento na auten­
ticidade seria completamente frustrado. O risco, porém,
deve ser tido, porque a consideração realista não podia
ditar nenhum outro curso.
Precisamente porque a posição de Paulo era tão sutil
que estava largamente aberta a compreensões equivoca­
das, e as duas reações possíveis estão exemplificadas
pelos gálatas e pelos corintios. Os primeiros sentiram a
insegurança que Paulo esperava, mas ela os apanhou com
intensidade que ele não podia antecipar. Suas diretivas
iluminaram certas áreas de comportamento, mas deixa­
ram muita coisa a seu próprio juízo. Uma vez que sua
mentalidade era a dos que aspiravam a qualificar antes
que exceder, queriam estar inteiramente seguros e assim
elevaram suas diretivas indicadoras ao status de obriga­
ções vinculantes. Nada mais pode explicar as boas-vindas
que deram aos judaizantes que chegaram com os 613
preceitos da lei. A fileira de mandamentos preenchia
todas as áreas escuras que Paulo tinha deliberadamente
deixado em branco para que pudessem eles próprios
exercer sua iniciativa determinando o comportamento
que cabia a um membro de Cristo. Daí, a tremenda
insistência na “liberdade” que encontramos em Gálatas.
Paulo é categórico em sua insistência para que aceitassem
a responsabilidade da liberdade, porque de outra forma os
seus trabalhos em favor deles serão em vão (G14,11). Daí,
nesta carta o seu maior interesse é mostrar que os crentes
agora existem numa forma diferente e que a submissão a
leis vinculantes é coisa do passado. 'Seus esforços são
dirigidos a corrigir atitude fundamental que comprome­
tia tudo o que se tinha conseguido./'.

213
O erro dos corintios

A situação em Corinto era diametralmente oposta ao


que sucedia na Galácia. A insegurança dos gálatas estava
inteiramente ausente entre os corintios. Com hipercon-
fiança exuberante, agarravam-se ardentemente na res­
ponsabilidade de assumir decisões por si mesmos. Uma
vez que era isso que Paulo queria fundamentalmente, seu
tom na correspondência aos corintios é bem diverso do
tom da carta aos Gálatas. Nesta última encontramos a
brusca exasperação provocada por um erro em tema
básico. Abriga a simples mensagem: sois agora diferentes.
Não mais estais escravizados ao Pecado e à lei. Sendo
assim, deveis agir em liberdade. Os corintios, por outro
lado, estavam certos na teoria, mas errados na prática e,
em conseqüência, a exposição de Paulo é muito mais
raciocinada. Têm grandes dificuldades para mostrar-lhes
em pormenor por que certas decisões eram incompatíveis
com aquelas a que se comprometeram.
A base da exposição aos corintios era sua aceitação do
ensinamento de Paulo de que foram libertados do Pecado.
Essa liberdade é absoluta/Numa comunidade autêntica,
os crentes não mais estão ligados à escravidão de falso
sistema de valores. Não estão sob nenhuma restrição que
os impeça da fidelidade a seus próprios eus verdadeiros/
Os corintios, porém, transferiram este caráter absoluto à
“liberdade a" (cf. p.159 ) e creram estar livres para fazer
exatamente o que lhes desse na telha, como proclamava o
seu slogan,-. “Todas as coisas são legais para mim” (ICor
6,12; 10,23). Aplicavam esse princípio em pelo menos dois
domínios, o uso de sua faculdade sexual e o uso de sua
razão em assuntos morais. Por causa de dois impulsos
fundamentais estarem envolvidos, Paulo argumenta so­
bre esses casos bastante difusamente no sentido de mos­
trar aos corintios que “liberdade a” não é ilimitada e que,
se essa é levada longe demais, o resultado é a perda da

214
“liberdade de”¿\Ele afirma claramente que a liberdade
está enraizada na unidade e, uma vez rompida a unidade,
desvanece a liberdade. /
No primeiro caso, os corintios fizeram uma escolha
errada ao decidir que era permitido ao cristão dormir com
prostituta (ICor 6,12-20). Seria muito mais fácil seguir a
discussão de Paulo se soubéssemos exatamente que argu­
mentos os corintios usaram para apoiar essa conclusão.
Como está, temos que deduzir sua posição do que ele diz,
e isso introduz inevitavelmente um elemento de incerte­
za. Pareceria, contudo, que os corintios faziam distinção
aguda entre o corpo e o espírito e sustentavam que,
enquanto seus espíritos estavam unidos ao Senhor, seus
corpos poderiam seguir suas inclinações naturais. Daí,
assim como o corpo pode satisfazer sua necessidade de
alimento e bebida ocasionalmente, assim também pode
satisfazer seu desejo de relações sexuais (v. 13). No seu
modo de ver, união carnal com a prostituta estava em
relação inteiramente neutra com a união espiritual com o
Senhor.
Em resposta, Paulo argumenta que a dicotomia pro­
posta entre corpo e espírito é insustentável. O corpo é
parte integral da pessoa humana, e prova-se-o pelo fato de
que ele ressuscitará dentre os mortos (v. 14). Mais signi­
ficativamente, os corpos dos cristãos constituem a dimen­
são física da presença de Cristo no mundo (v. 15). E
através da atividade do corpo que o comprometimento do
espírito adquire realidade e eficácia (v. 20b). Embora o
corpo e o espírito difiram, constituem parte juntos do
serviço de Cristo. A função do corpo é precisamente servir
como a manifestação concreta do amor criativo a que o
comprometimento da fé une a pessoa. Sendo assim, a
união física efetuada pelo intercurso visa expressar o
amor que tem o poder de unir as duas pessoas em autên­
tica unidade (v. lSb/'O coito com uma prostituta é, pois,
coisa errada, porque este comprometimento com o outro
como pessoa está excluído (v. 15). O próprio ser do cristão
édar, mas na fornicação casual ele apenas toma/A outra

215
pessoa é usada e, dessa forma, se lhe dá o estado de “coisa”,
para gratificação egoísta. /.
Entregando-se a si mesmos a uma forma de compor­
tamento que corresponde à cgocentricidade do mundo (cf.
ICor 6,9-10), os corintios estão em perigo próximo de uma
vez mais se tornarem escravizados ao Pecado. Sendo
assim, Paulo faz duas adições ao slogan dos corintios: “Nem
todas as coisas são para mim o melhor” e “eu não ficarei
escravizado por nada” (ICor 6,12). Certas ações não são
para o melhor porque por sua própria natureza implicam
retorno à inautenticidade. Como membros de Cristo, os
corintios devem afirmar existencialmente a verdade: “Não
pertenceis a vós mesmos” (ICor 6,19b), se querem salva­
guardar sua liberdade/lEntrega exclusivamente intelec­
tual à unidade é sem sentido.,

no segundo caso, porque nele os corintios tomaram uma


decisão teoricamente correta (ICor 8,1-13; 10,23-30). O
ponto em foco era: podiam os cristãos comprar e comer
carne que formara parte de sacrifícios gentílicos? Alguns
membros da comunidade respondiam afirmativamente,
baseando-se em verdades especulativas, tais como “um
ídolo não tem existência real”, “não há senão um Deus”
(ICor 8,4) e “a terra é do Senhor e tudo nela” (ICor 10,26).
Paulo não encontrou nenhuma falha neles por sua inici­
ativa em fazer um juízo moral um tanto delicado. Tinham
aceitado a responsabilidade de sua liberdade. Também
não se acha em desacordo com sua solução. O alimento é
moralmente neutro (ICor 8,8) e, assim, os cristãos podem
consumir o que quer que encontrem no mercado de carnes
(ICor 10,25) e o que quer que se lhes ofereça nas casas dos
não-crentes (ICor 10,27)/Isso,.porém, é verdade somente
em teoria, e a natureza da comunidade cristã exige que se
leve em conta outro fator antes de essa teoria poder ser
legítimamente transferida para a prática:/'

Tomai cuidado, porém, para que essa vossa liberdade não se


torne ocasião de queda para os fracos. Se alguém se vê sentado à

216
mesa em um templo de ídolo, a ti que tens a consciência.esclarecida,
porventura a consciência dele, que é fraco, não será induzido a
comer carnes imoladas aos ídolos? E, assim, por causa de tua
ciência perecerá o fraco, esse irmão pelo qual Cristo morreu!
(ICor 8,9-11).

A situação que Paulo visa está claramente indicada.


Podem existir alguns na comunidade que, tendo em vista
seu prévio condicionamento, não estejam convencidos
pelos argumentos teóricos, mas que foram levados a
comer dessa carne porque não podem resistir à autorida­
de dos membros que possuem mente mais forte. Eles estão
sujeitos à pressão de fazer o que sentem estar errado, agir
violando suas próprias convicções. Do ponto de vista de
Paulo, o fato de que a perspectiva dos fracos seja objeti­
vamente errônea é totalmente irrelevante. O seu direito,
por causa da natureza da comunidade, é ser munidos de
poder, e não ser destruídosjfSendo assim, p fator primário
numa decisão moral cristã deve ser o efeito sobre ou tros da
ação visadaTUma ação teoricamente apropriada ao novo
ser do cristão pode ser errada na prática se causa ofensa
a outros. .
Paulo estava plenamente consciente da habilidade
do amor próprio em dar-se verniz de respeitabilidade por
meio de princípios especulativos. “Mas a ciência exata
incha; é a caridade que edifica” (ICor 8,1). Raciocínio
especulativo pode gerar sentimento de orgulho e
autoconfiança que dá aos crentes a sensação de indepen­
dência. Se sua importância for exagerada, é totalmente
destrutivo da unidade da comunidade. Os que sentem que
podem se apoiar somente em princípios estão a indicar
que não necessitam realmente dos outros e, assim, negam
a verdadeira base de sua existência autêntica em Cristo.
Üma decisão autenticamente moral é decisão que inten­
sifica a unidade da comunidade/“Ninguém procure satis­
fazer aos seus próprios interesses, mas aos do próximo”
(ICor 10,24ylÜma escolha não pode ser boa para um

217
cristão, a não ser que seja também boa para os outros na
comunidade a que pertence. A pedra de toque da verdade
moral é a edificação da comunidade (ICor 10,23)/’.

A renovação da mente

Estamos agora em posição em que podemos começar


a perceber que, ainda que Paulo recuse a validade de toda
lei vinculante para a comunidade cristã, o seu ensinamen­
to moral não é mera ética de situação. Apresentações
correntes da ética de situação (por exemplo, E. Fletcher)
concebem o sujeito moral como indivíduo confrontado com
uma única situação. Na medida em que ele via a exigência
de Deus manifestada pelas necessidades dos outros em
situação concreta, Paulo era situacionista, mas ele recu­
sava admitir que o indivíduo poderia ser adequado sujeito
moral. A lógica de sua compreensão da natureza da
comunidade cristã não podia lhe permitir fazer diversa-
mente/CLpróprio ser dos crentes era o de partes dentro de
um todo. Como membros do Corpo, eles só participavam
da vida de uma unidade orgânica. Não podiam, portanto,
ser totalmente independentes em seus juízos morais)) Se
a unidade da comunidade devia ser fato e não sonho, o
julgamento moral do cristão podia ser apenas participa­
ção em e reflexão sobre o julgamento moral da comunida­
de. Para Paulo, portanto, a comunidade era o verdadeiro
sujeito moral. Isso aparece com particular clareza em
duas passagens.
A mais formal e explícita ocorre em Colossenses:

Revestistes o homem novo que está sendo renovado em conheci­


mento segundo a imagem de seu criador (3,10).

218
A última frase indica claramente que Paulo tem em
mente a narrativa do Gênesis e, em particular, as pala­
vras da serpente a Eva: “Deus sabe que, quando comerdes
dela, sereis como Deus, sabendo o bem e o mal” (Gn 3,5).
A humanidade foi criada à imagem de Deus, mas caiu,
mediante buscar conhecimento moral, em maneira con­
trária à vontade de Deus. Como resultado, seu senso
moral se inutilizou. Para os judeus, este defeito só foi um
tanto remediado pelo dom da lei, de sorte que seus efeitos
só eram totalmente evidentes nos gentios, como o afirma
o mais antigo comentário a esse versículo: “Não andeis
mais como andam os demais gentios, na futilidade de seus
pensamentos, com entendimento entenebrecido, aliena­
dos da vida de Deus pela sua ignorância e pela dureza dos
seus corações” (Ef 4,17-18)/}Reçriados_em_Cristo (2Çor
5,17; G1 6,15), que é a imagem de Deus (Cl 1,15), o novo
homem recupera sua capacidade de juízo moral. Mas,
como vimos, este novo homem não é o crente individual,
mas a comunidade cristã (cf. p.l88).( '•
O contraste entre o “velho homem” e o “novo homem”
e a ênfase na qualidade progressiva do conhecimento
moral (“está sendo renovado”) ligam Cl 2,10 muito estrei­
tamente com o segundo texto:

Não vos conformeis com esta era, mas transformai-vos renovando


vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de
Deus, o que é bom, aceitável e perfeito (Rm 12,2).

O contraste aí está entre “esta era”, que é sinônimo


paulino para o “mundo”, e o Corpo de Cristo (cf. Rm 12,5).
O que Paulo tem em mente emerge bastante claro se
levarmos em conta Rm 1,18-32, passagem que manifesta
surpreendente paralelo em vocabulário e conceito com
Rm 12,1-12. Com conseqüência de sua rejeição da exigên­
cia de Deus implícita em sua criaturidade, os gentios “se
tornaram fúteis em seus raciocínios e seu coração sem
discernimento foi entenebrecido” (Rm 1,21). A mesma

219
idéia aparece um pouco mais adiante, mas desta vez
expressa de modo semítico que abstrai da distinção entre
causa primária e secundária: “Deus os entregou a uma
mente aviltada para fazerem o que não convém” (Rm
1,28). Ô paralelo entre “coração” e “mente” indica que
Paulo pensa na faculdade racional, não, porém, isolada,
mas precisamente na medida que dá orientação à perso­
nalidade inteira. Neste tipo de contexto, portanto, ambos
se traduzem melhor por “mentalidade” em vista da sutil
fusão do coletivo com o individual./‘Coração” é coletivo no
v. 21, mas o individual manifesta-se com o uso do plural
no v. 24: “Deus os entregou aos desejos de seus corações”.
De modo semelhante, “mente” é coletivo no v. 28, mas o
plural “mentes, raciocínios” aparece no v. 21. Isso é
perfeitamente compreensível à luz do que vimos com
respeito à relação das criaturas inautênticas ao “mundo”
(cf. cap. 4)¿'Elas estão dominadas pela orientação
corporativa que reforçam por sua conformidade. “A men­
te aviltada”, portanto, é a “mentalidade” do mundo que
Lodos assimilam inconscientemente e revelam em seus
“raciocínios” individuais (cf. Ef 4,17-19). p
Se a “mente aviltada” é a mentalidade que domina o
modo inautêntico de ser, “sendo mente renovada” (Rm
12,2; Ef 4,23) é a mentalidade de sua antítese, ou seja, a
comunidade que é o Corpo de Cristo. Nas próprias pala­
vras de Paulo, é “a mente de Cristo” (ICor 2,16). O uso do
coletivo torna-se imperativo pela unidade orgânica da
comunidade<lA “mente de Cristo” é a perspectiva própria
do Homem Novo do qual os indivíduos são apenas mem-

O que isso significa pode se definir um pouco mais


precisamente se nos voltarmos por um momento para a
única outra passagem em que Paulo evoca a idéia de
“transformação”.

E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num


espelho a glória do Senhor, estamos sendo transformados na
mesma imagem de glória em glória (2Cor 3,18).

220
Como em Rm 12,23, o passivo “sendo transformados”
mostra que os crentes não são os agentes primários de sua
própria transformação/Deus age_em e por meio da comu­
nidade salvífica. Por sua abertura a Cristo, a comunidade
é transformada em sua imagem? Note-se a mesma com­
binação de Rm 12,2 de verbos plurais e p substantivo-
chave (“mente” — “imagem”) no singular. A medida que a
comunidade aprofunda seu comprometimento com o ide­
al, a atitude existencial de Cristo (cf. F1 2,5) torna-se
progressivamente mais manifesta, primariamente na co­
munidade e como derivativo nos indivíduos que a consti­
tuem. A medida que a comunidade exemplifica a humani­
dade autêntica manifestada por Cristo, ela julga do ponto
de vista de Cristo. E nesse sentido que se pode dizer que
ela possui “a mente de Cristo”. A posse, porém, não é
cumprimento estático de uma vez por todas, mas processo
continuado que se harmoniza com o crescimento do Corpo
(Cl 2,19; Ef 4,13).'»
Somente nesta perspectiva torna-se possível enten­
der como pode Paulo definir “a vontade de Deus” que é o
objeto da atividade corporativa da mente como o que é
“bom e aceitável e perfeito” (Rm 12,2). Os comentadores
comumente admitem que o ponto inexpresso de referên­
cia é Deus, tanto porque “aceitável a Deus” aparece no
versículo anterior como porque “aceitável” alhures em
Paulo é sempre usado em conjunção com “a Deus” (Rm
14,18; F1 3,18) ou “ao Senhor” (2Cor 5,9; Cl 3,20). Certa­
mente este argumento pode agir da outra forma. Se Paulo
insere habitualmente o ponto de referência, sua omissão
aqui deve ser deliberada e, portanto, significativa. Os três
adjetivos substantivados “bom, aceitável, perfeito” estão
em oposição a “a vontade de Deus”, e assim se relacio­
nam diretamente com “julgar” e mais precisamente com
“testar” a menteZ^_que Paulo quer dizer, pois, é que tudo
o que a mente corporativa testar e achar que é “bom, acei­
tável e perfeito” é de fato a vontade de Deusf.C. H. Doddo
percebeu e notou em seu comentário sobre este versí­
culo:

221
A vontade de Deus para o homem não é certa forma misteriosa e
irracional de santidade... Consiste naquela espécie de vida que
a mente renovada do cristão pode ver que é boa em si mesma,
satisfatória e completa.

Ele não é inteiramente preciso, contudo, ao sugerir


que esta mente é a posse do crente individual, porque,
como Paulo insiste, “nós somos um só Corpo em Cristo e
individualmente membros uns dos outros” (Rm 12,5)<XA_
avaliação moral da comunidade é a mais alta na intenção
do Apóstolo, e isso age como que verificando os julgamen­
tos dos crentes individuais que possuem a “mente de
Cristo” apenas enquanto o seu ser está verdadeiramente
enraizado “em Cristo”. São dirigidos pelo “Espírito de
Cristo” na medida em que “pertencem a ele” (Rm 8,9).
A perspectiva que desenvolvemos é uma das idéias
que, sendo muito claras na teoria, parecem evaporar
quando se tenta reduzi-las ao nível prático. E muito claro
que Paulo não tem em mente um consenso moral explícito
que todos devem subscrever, porque isso seria equiva­
lente a outra lei. Como ele a conceberia positivamente é
outro assunto, e aqui ele nos dá somente uma chave:

Minha prece é que vosso amor possa abundar mais e mais em


conhecimento e todo discernimento, de modo que possais julgar
as coisas que realmente interessam (F1 1,9-10).

A formulação dessa prece evoca imediatamente Rm


2,17-18, à qual se opõe diametralmente (cf. p,188)XA
diferença essencial está na fonte do conhecimento moraL
Pará ojudeu, derivava da lei; mas, para o cristão, deriva
do amor. Tocamos aqui o cerne do pensamento de Paulo
quanto à intuição, que habilita os crentes a discernir a
exigência da parte de Deus na situação concreta e flui do
mesmo amor que dá poder que cria a unidade orgânica da
comunidade. Só o amor pode dissipar a ameaça à unidade

222
posta pela “liberdade a”/|jma decisão moral, verdadeira­
mente inspirada pelo amor que se autodoa, que animava
Cristo (2Cor 5,15), afirma e confirma o próprio ser da
comunidade, e assim a dependência do crente no ser é
atualizada na liberdade.(“Portai os fardos uns dos outros,
e assim cumpri a lei de Cristo” (G16,2), cujo único preceito
é o do amor.

Modelo de decisão autêntica

Muito do que consideramos está perfeitamente resu­


mido num caso em que podemos ver Paulo trabalhando
um problema moral pessoal. Escrevendo da prisão em
Efeso, ele diz:

A minha expectativa e a esperança é de que em nada serei


confundido, mas com toda a ousadia, agora como sempre, Cristo
será engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois
para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na
carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que
escolher. Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e ir estar
com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na
carne é mais necessário por vossa causa. Convencido disso, sei
que ficarei e continuarei com todos vós, para proveito vosso e para
alegria de vossa fé (F1 1,20-25).

ÕO que interessa a Paulo é que sua existência física


possa ser manifestação da compaixão e do amor de Cristo,
que Cristo possa se tornar palpável em sua pessoa/Ussa
manifestação pode ocorrer tanto por sua vida apostólica
como pela maneira de sua morte. Paulo não sabe qual será
a decisão dos que o prenderam e, assim, inquire se deve
desejar viver ou morrer. Acha difícil formular uma deci­
são, porque existem argumentos de ambas as partes. Uma

223
vez que toda sua existência está focalizada em Cristo, e
uma vez que percebe a morte como caminho para mais
íntima união com Cristo, ele acha que morrer é “muito
melhor”. Nada no contexto sugere repugnância pelo fardo
da vida. Do modo de ser de que Paulo goza agora, Cristo
passou a outra vida que o Apóstolo deseja partilhar. Em
teoria, nada podia ser tão simples, e assim Paulo
conclui: “Meu desejo é partir e ir estar com Cristo”.
Perfeição teórica, porém, nunca pode ser o critério
primário no julgamento moral de um cristão; também não
pode sê-lo a preferência pessoal, não importando quão
próxima possa estar relacionada com o ideal abstrato.
Sendo assim, Paulo decide por fim em favor de viver,
porque “é mais necessário por vossa causa... para proveito
vosso e para alegria de vossa fé”. A vida em Cristo é
existência partilhada, e o único critério de uma decisão
autêntica é: o que contemplo concretizará e realizará
aquela partilha? As necessidades dos outros devem, por­
tanto, sempre ter precedência à satisfação pessoal, por
mais justificável que possa ser esta última. No caso
presente, Paulo acha-se colocado entre o ideal em sua
perfeição abstrata e o ideal em sua realização embrioná­
ria, entre Cristo em si mesmo e Cristo na comunidade.
Sua situação é análoga à dos coríntios, que se confrontavam
com a escolha entre a verdade de princípios e a verdade da
realidade^Mas onde optaram erroneamente pela simpli­
cidade do abstrato, Paulo seTlecide pela complexidade do
real, participando plenamente da “mente de Cristo”, cujo
critério é fornecido pelo auto-sacrifício da cruz, cuja pro-
lundidade derivacla acumulação da experiência viva da
comunidade e cuja clareza aperfeiçoa-se mediante parti­
lha contínua no amor.; .

224
LEITURAS SUGERIDAS

Byrne, B., Paulo e a mulher cristã, Paulus, São Paulo, 1993.


Patte, Y).,Paulo, sua fée a força do Evangelho, Paulus, São Paulo, 1987.
Dräne, J., Paulo — Um documento ilustrado sobre a vida e os escritos
de uma figura chaue dos primórdios do cristianismo, Paulus, São
Paulo, 1982.
Holmberg, B., Paul and Power. The Structure of Authority in the
Primitive Church as reflected in the Pauline Epistles, Gleerup, Lund,
1978.
Schütz, J. H., Paul and the Anatomy of Apostolic Authority, CUP,
Cabridge, 1975.
Hay, D. M., “Paul’s Indifference to Authority”, era Journal of Biblical
Literature 88 (19691, 36-44.
Dungan, D. G., The Sayings ofJesus in the Churches ofPaul, Fortress,
Filadélfia, 1971.
Murphy-O’Connor, J., L’existence chrétienne selon saint Paul, Cerf,
Paris, 1974, caps. 4-6.
Id., Corinthian Slogans in 1 Cor 6:12-20, em Catholic Biblical Quarterly
40(1978), 391-396.
Id., “Freedom or the Ghetto (1 Cor 8:1-13; 10,23-11,1)”, em Revue
Biblique 85 (1978), 543-574.
Id., “The Divorced Woman in 1 Cor 7:10-11”, em Journal of Biblical
Literature 100 (1981), 601-606.
McDonagh, E.,“The Structure and Basisofthe Moral Experience”, em
Irish Theological Quarterly 38 (1971) 3-20.
Id., “The Moral Subject”, em Irish Theological Quarterly 39 ( 1972), 3-
22.
Therrien, G., Le discernement dans les écrits pauliniens, Gabalda,
Paris, 1973.
Furnish, V. P., Theology an.dEthi.es in Paul, Abingdon, Nashville, 1968.

225
INDICE

5 Prefácio
12 Prefácio à segunda edição

Primeira parte: O ser humano

17 1. PAULO E JESUS
17 A tradição farisaica
(23> A experiência de conversão de Paulo
26 A tradição cristã
31 Leituras sugeridas
33 2. CRISTO, 0 CRITÉRIO
33 Como a humanidade deveria ser entendida
36 Uma aproximação falsa
'40 A intenção divina
45 Autêntica humanidade
A imagem de Deus
56 Realidade histórica
58 Leituras sugeridas

59 3. JESUS CRISTO E DEUS


A cruz de Romanos 9,5
Filho de Deus
65 Senhor
67 Sabedoria
70 Leituras sugeridas

71 4. A DIVISÃO DENTRO DA HUMANIDADE


71 “Vida” e “Morte”
74 A aproximação existencialista à humanidade
78 Semelhança
Humanidade e ressurreição
<83 A glória de Deus
88 Leituras sugeridas
Segunda parte: A sociedade

91 5. O PECADO E O MUNDO
92 A humanidade como “morta”
94 O pecado e o mundo
100- Responsabilidade humana
104 Um dilema
108 Leituras sugeridas

109 6. SER ALIENADO


111 Concupiscência
Observâncias religiosas externas
115 Obediência à lei
121 Aplicações contemporâneas
125 Leituras sugeridas

127 7. ISOLAMENTO EGOCÊNTRICO


130 Blocos opostos
135 Indivíduos isolados
Leituras sugeridas
Conclusão
Terceira parte: A comunidade

145 8. O DOM DE ESCOLHA


<Í4 Novo ato criador
150 O chamado externo
154 Imitação
157 Leituras sugeridas

159 9. LIBERTAÇÃO
160 O “como” da liberdade
163 A comunidade pecadora
As crianças e a comunidade
K171 ' A fragilidade da liberdade
178 Leituras sugeridas

179 10. O CRISTO VIVO


Unidade orgânica
A individualidade cristã
O novo homem é Cristo
Isto é meu corpo
Mulheres em Cristo
204 Leituras sugeridas
205 11. A MENTE DE CRISTO
2Q¡> Nenhum preceito obrigatório
208 A função de diretivas morais í'"—

214 O erro dos corintios -----


218 A renovação da mente 11—
223 Modelo de decisão autêntica
225 Leituras sugeridas

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