A Antropologia Pastoral de Paulo
A Antropologia Pastoral de Paulo
A Antropologia Pastoral de Paulo
PASTORAL
DE PAULO
tornarle humanos juntos
J. Murphy-
O’Connor
JEROME MURPHY-O 'CONNOR, OP — A ANTROPOLOGIA PASTORAL DE PAULO
O presente livro compõe-se de três partes. A primeira
volta-se para a antropologia de Paulo, porque a intuição
do Apóstolo sobre o que a criatura humana pode e deve ser
é a base de toda a sua aproximação. Isso envolve uma
discussão de sua compreensão de Jesus Cristo, porque foi
nele que Paulo encontrou o modelo histórico concreto de
existência humana autêntica. Vemos, então, que a descri
ção que Paulo faz da sociedade que encontrou pode ser
aplicada com muito pouca modificação ao nosso mundo
contemporâneo. Ora, se ele viu os problemas que percebe
mos, não parece haver nenhum motivo para negar que as
soluções que deram certo para ele dariam certo para nós.
A partir disso, a terceira parte apresenta a compreensão
de Paulo referente às estruturas da existência cristã
autêntica no Corpo de Cristo. E aí que emerge a verdadei
ra natureza da comunidade cristã, de que a liberdade é a
característica primordial.
ISBN 978-85-349-0069-C
9I7S8534IIS>QO69Q11
I r
ISBN 978-85-349-0069-0
93-0256 CDD-227.06
AANTROPOLOGIA
PASTORAL
DE PAULO
Tornar-se humanos juntos
PAULUS
Titulo original
Becoming human together - The Pastoral Anthropology of St. Paul
© Jerome Murphy-O'Connor - The Liturgical Press, Collegeville,
Minnesota, EUA, 1982
ISBN 0 89453-075 5
Tradução
João Rezende Costa
Revisão
H. Dalbosco
Impressão e acabamento
PAULUS
2a edição, 2007
©PAULUS-1994
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 Sao Paulo (Brasil
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br
[email protected]
ISBN 978-85-349-0069-0
PREFÁCIO
5
real encontro com Cristo foi passando em silêncio em
favor do aplauso pelos esforços que fizeram.
/ O resultado último, mas lógico, desta tendência
consistiu no desenvolvimento de um conceito de cristia
nismo anônimo, em que todos eram considerados serem
cristãos, quer o soubessem ou não, quer o negassem ou
não. Os motivos que levaram à elaboração desta teologia
não foram todos mau$. Isso, porém, não deveria permitir
que se obscurecesse o fato de que se enraíza no pessimismo.
Seus propositores não vêem nenhuma possibilidade real
de criar um mundo melhor. Inevitavelmente, pois, sua
reflexão gira em torno da justificação do status quo. Mal
surpreende que o mundo permaneça imutado.
Felizmente, há cristãos que rejeitam essa aproxima
ção. A miséria e a infelicidade abalam sua consciência ao
ponto de a complacência tornar-se o pecado extremo. Seu
interesse pelos oprimidos aflora no empenho de mudar as
estruturas da sociedade que são os instrumentos de
opressão. Nenhum cristão deveria desejar fazer menos. O
cristão totalmente autêntico, porém, deve desejar fazer
mais. Estruturas opressoras não serão modificadas com
êxito enquanto os corações não forem mudados.'E verdade
que os seres humanos mudam à medida que novas estru
turas emergem, mas a lição permanente da história é que
sem genuína conversão as novas estruturas não se pro
varão menos opressivas. /
A omissão desta verdade tem significado que muitos
cristãos, empenhados em libertar os oprimidos mediante
modificação das estruturas sociais, ficaram desen
corajados e, em vista, porém, de sua dedicação, o seu
despeito com o passo da mudança tende a se converter em
raiva que redunda numa teologia da revolução. Presume-
se que, removendo os obstáculos causados pela compla
cência dos ricos, o problema fica resolvido.
A simplicidade desta solução é atraente. Mas quando
se trata da natureza humana, a simplicidade é suspeita.
Uma vez mais, a lição da história é que o desmanche
violento do status quo jamais foi o prelúdio de uma soci
6
edade melhor. Os pobres carecem de redenção tanto
(¡uanto os ricos. A não ser que se mudem os corações dos
que nada possuem, estes produzirão inevitavelmente
estruturas que inibirão o desenvolvimento humano de
outros.
Todos carecem, portanto, de libertação. Por onde
começar? E se começarmos, existem motivos para otimis
mo? Refletir sobre essas questões com base única na
realidade em que estamos submersos só pode levar a
pessimismo e desespero, como se evidencia nas obras da
maioria dos filósofos existencialistas. Se devemos prosse
guir esperando, e sem esperança não se dá luta alguma,
devemos achar outra perspectiva.
Precisamente essa alternativa nos oferece o Novo
Testamento.,\A situação que encaramos não é nova. A
primeira geração de cristãos deparou o mesmo problema..
Constituíam uma pequena minoria e se confrontaram
com a gigantesca tarefa de mudar o mundo, O fato de que
operaram radicais modificações nas estruturas sociais
dá-lhes o direito de nossa atenção que excede o de qual
quer outro reformador. De todos os teólogos que articula
ram as dimensões do problema, o apóstolo Paulo ocupa
lugar preeminente. Sua análise da situação contemporâ
nea com que teve que se haver poderia ser análise de nossa
sociedade. Isso lhe confere ao mesmo tempo extraordiná
ria credibilidade. Ele conhece as dificuldades. Suas res
postas, portanto, não estão coloridas pelo utopismo que
suscita excitamento intelectual, mas falha em mover à
açãoi Realismo e responsabilidade são tão características
de sua visão do que a criatura humana pode se tornar que
somos forçados a conceder com Chesterton que o cristia
nismo não falhou; ele simplesmente não foi tentado a
sério.
Paulo rejeita explicitamente todo ataque frontal às
estruturas da sociedade. Sua visão escatológica foi res
ponsável por este fato, e nós (se bem que não realistica
mente) não mais partilhamos de sua crença de que o fim
do mundo é iminente. No entanto, um ponto válido pode
7
I I
<! f
8
para fazer coisas em prol das pessoas. O que importa é o
que os cristãos são de modo especial. O próprio estilo de
vida deles é o poder que cria a possibilidade de mudanças
para outros. Ainda que os cristãos, para existir deste
modo, também careçam de ser robustecidos de poder. Daí
sua mútua dependência na unidade do Corpo de Cristo.
Se a Igreja deve, uma vez mais, lançar o poder que é
efetivo de mudança permanente, deve recuperar o conceito
básico de comunidade cristã, e Paulo, em vista de seu
sucesso, é o primeiro a ter direito de ser nosso guia. O
propósito deste livro é mostrar que a comunidade é o
elemento-chave em seu pensamento. Uma vez compre
endido isso, tudo o que ele diz em suas epístolas cai em
lugar próprio, tornando-se desafio radical que penetra no
coração do interesse contemporâneo. Somente quando
estivermos convencidos de que a comunidade é a realidade
cristã básica, poderemos dedicar-nos totalmente em levá-
la à existência.
O livro tem três partes. A primeira parte volta-se
para a antropologia de Paulo, porque a intuição do Apóstolo
sobre o que a criatura humana pode e deve ser é a base de
toda a sua aproximação. Isso envolverá uma discussão de
sua compreensão de Jesus Cristo, porque foi nele que
Paulo encontrou o modelo histórico concreto de existência
humana autêntica. E aí que veremos que a descrição de
Paulo da sociedade com que tinha que tratar pode ser
aplicada com muito pouca modificação ao nosso mundo
contemporâneo. Se ele viu os problemas que percebemos,
não parece haver nenhum motivo para negar que as
soluções que deram certo para ele dariam certo para nós.
Daí, na terceira parte, tento apresentar sua compreensão
das estruturas da existência cristã autêntica no Corpo de
Cristo. E aí que veremos a verdadeira natureza da co
munidade cristã de que a liberdade é a característica
primordial.
A compreensão de Paulo que manifesto neste livro é
resultado de longo período de maturação a que muitos
fatores contribuíram. O ímpeto original para empreender
9
I
10
cuja importância nem sempre foi reconhecida. O seu
empenho pela “vida” (no sentido paulino) fornece estímu
lo e crítica que, reconheço com gratidão, jamais poderei
expressar adequadamente.
I
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
12
1 e 3. O primeiro situa Paulo historicamente tentando
especificar quanto ele sabia do ministério terreno de
Jesus. O último trata, talvez bastante brevemente, de
certos conceitos que, sc entendidos equivocadamente,
envolvem necessariamente radical distorção da visão de
Paulo sobre Cristo. Acrescentei também uma seção sobre
“Mulheres em Cristo”no cap. 10, não simplesmente porque
o problema é atual, mas porque uma representação
equivocada da posição de Paulo sobre o tema comprovou-
se como obstáculos para a apreciação simpática de sua
contribuição para nossa compreensão daquilo que a comu
nidade genuína deve ser.
Em resposta às sugestões de mestres que usam mi
nha obra como introdução básica ao pensamento paulino,
acrescentei bibliografias no fim de cada capítulo. Não
pretenderam absolutamente ser exaustivas em nenhum
aspecto. Insiro estudos que se evidenciaram formativos de
meu próprio pensamento, mesmo quando não estou de
acordo completamente com eles, e também livros e artigos
que tratam dos mesmos tópicos em perspectiva diferente.
Qualquer tensão entre minhas conclusões e as deles de
vem servir de estímulo ao pensamento pessoal. Todas as
passagens de ICor a que me refiro são tratadas no con
texto do meu comentário 1 Corinthians na série “New
Testament Message” (Glazier, Wilmington, 1979); pode
também servir como teste até que ponto a visão de Paulo
aqui apresentada ilumina a leitura de uma de suas cartas.
Jerome Murphy-O’Connor, OP
Ecole Biblique de Jérusalem
Janeiro de 1982
13
I PARTE
O SER HUMANO
PAULO E JESUS
A tradição farisaica
17
Ele reclamava orgulhosamente ser “da raça de Israel
da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e, quantc
à Lei, fariseu” (F13,5). Muitos judeus da tribo de Benjamiir
viviam fora das fronteiras da Terra Santa, e Paulo era df
fato de Tarso na costa sul da Ásia Menor (At 22,3), mas £
insistência em que não era apenas israelita, mas tambérr
hebreu (cf. 2Cor 11,22), frisa que era de cepa palestinense
Seus pais, ou no máximo seus avós, eram da Judéia. E
muito provável, pois, que tinha parentes vivendo n£
Judéia e, em conseqüência, não há nada de improvável m
afirmação de Lucas de que tenha sido educado em Jerusa
lém (At 22,3). Este texto diz realmente que ele foi “educa
do” em Jerusalém, que alguns interpretaram significandí
que fez a maior parte de sua educação escolar, e não o sei
treinamento profissional apenas (cf. At 26,4), na Cidade
Santa.
Em todo caso, Paulo foi certamente “fariseu”. /
pretensão de F1 3,6 implicitamente se confirma em G
1,14: “... distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas”
porque segundo Josefo: “Os fariseus tinham imposto a<
povo muitas leis das tradições dos pais não escritas na Le
de Moisés” {Antiguidades 13,297); a importância dada a<
ensino oral tradicional era uma das características qu<
distinguiam o farisaísmo. Isso garante a afirmação d<
Lucas de que Paulo vivia “segundo a seita mais severa d<
nossa religião, como afriseu” (At 26,5) e, sendo este o caso
não existe nenhuma boa razão para duvidar de suí
afirmação de que Paulo tenha estudado sob Gamaliel (A
22,3). '
Este grande mestre viveu e teve êxito em Jerusalén
cerca de 20-50 d.C. Sua fama era tão grande que o Mishm
diz: “Depois do tempo que morreu o rabi Gamaliel, <
Velho, cessou o respeito pela Torá; e a pureza e a abstinêncu
morreram ao mesmo tempo” (Sotah 9,15). Se Paulo fo
estudante rabínico em Jerusalém, não pode escapar d<
sua influência. Os dados se harmonizam perfeitamente
porque a conversão de Paulo deve datar-se de um ano ot
algo aproximado antes de 34 d.C.
18
N;io sabemos sua idade exata, mas pelo tempo de sua
conversão Paulo era certamente mais do que simples
piiliidanté;. De outra forma, sua delegação para desenraizar
ou cristãos em Damasco (At 9,1) seria incompreensível. E
o lo ('• provável que já fosse membro do Sinédrio. O texto-
chnve é At 26,9-11: “Quanto a mim, estava convencido de
que devia fazer muitas coisas contra o nome de Jesus, o
Nuzareu. Foi o que fiz em Jerusalém: a muitos dentre os
Hiintos eu mesmo encerrei nas prisões, recebida a auto
rização dos chefes dos sacerdotes; e, quando eram mortos,
ou contribuía com o meu voto. Muitas vezes, percorrendo
todas as sinagogas, por meio de torturas quis forçá-los a
blasfemar; e, no excesso do meu furor, cheguei a persegui-
los até em cidades de fora”. Aí se diz que Paulo votou em
casos de sentença capital. Somente o Grande Sinédrio (71
membros) ou o Menor (23 dos 71) tinha competência em
tais casos, e somente membros plenos tinham a faculdade
de votar. Se tomarmos o texto em seu valor de fachada,
I ’aulo era certamente membro do Sinédrio, mas, uma vez
que nem todos concordam com essa interpretação, deve
mos olhar um pouco mais acuradamente para o valor
histórico da afirmação de Lucas.
Vários estudiosos tentaram trazer argumentos con
tra a historicidade de At 26,9-11, mas nenhum prova o
asserto:
(1) Paulo, diz-se, era muito jovem para ser membro do
Sinédrio, no qual os fariseus ocupavam somente cerca de
uin terço das cadeiras. De fato, porém, não conhecemos
nada de definido acerca da idade de Paulo — o termo
“j ii ventude” (At 7,58) cobre o grupo etário que vai de 25 aos
dO anos — e ainda menos acerca do método de indicação
para o Sinédrio.
(2) Alternativamente, pretende-se que “lançar um voto”
pode ser usado de forma bastante ampla e pode significar
nada mais do que o vago “consentir” usado em At 8,1 e
22,20. Contudo, a mera possibilidade é apenas uma ad
vertência, mas não argumento. E igualmente possível que
At 8,1 e 22,20 possa ser interpretado à luz de At 26,10.
19
(3) Neste período, o Sinédrio era incompetente para orde
nar a execução da sentença capital. Este ponto é ainda
muito controvertido para fornecer argumento válido. O
Sinédrio tinha certamente o direito em teoria e, dada a
atitude judaica para com os romanos, parece provável que
pretendia de fato na prática este direito quando sentia
que podia levá-lo a efeito. Em 62 d.C., durante o interregno
entre a morte do procurador Festo e a chegada de seu
sucessor Albino, o sumo sacerdote Anano “reuniu o
Sinédrio de juízes e trouxe perante eles o irmão de Jesus
chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros. E,
ao formar acusação contra eles como transgressores da
lei, entregou-os para serem apedrejados” (Josefo, Anti
guidades 20,200).
(4) Finalmente, frisa-se que Atos em nenhuma outra
parte fala de Paulo como tendo perseguido a Igreja em
Jerusalém e em seus arredores. Isso é deveras certo, mas
o argumento do silêncio é anulado por G1 1,22, que sem
ambigüidades implica que Paulo tinha de fato perseguido
os fiéis na Judéia.
Contrastando com estes argumentos inconvincentes,
o contexto de At 26,10b pode-se demonstrar como sendo
solidamente histórico:
(1) Em At 26,10a diz-se que a autoridade de Paulo como
perseguidor especial deriva do “chefe dos sacerdotes”.
Tanto o NT como Josefo concordam que este termo desi
gnava o grupo que efetivamente controlava o Sinédrio.
Seu papel seria comparável com o do “inner cabinet” em
muitas democracias de hoje, e sua aprovação teria sido
requisito para qualquer ação executiva.
(2) O procedimento usado para desencantoar judeu-cris
tãos não declarados em At 26,11 é altamente plausível,
pois os profundamente dedicados não agirão contra suas
consciências. Precisamente a mesma técnica foi usada
pelos judeus na Birkat-ha-Minim, e por Plínio na Ásia
Menor {Cartas, livro 10, n. 96).
(3) A referência a “cidades de fora” (At 26,1 lb) não significa
“cidades em países fora da Palestina”, como a tradução
20
pui luguesa da Bíblia de Jerusalém “cidades estrangei-
rim” pareceria implicar. Uma vez que 26,10-11 refere-se a
atividades de Paulo em Jerusalém, a interpretação mais
natural é “cidades fora dc Jerusalém”, das quais havia
numerosas somente na Judéia. É muito mais razoável
admitir que Paulo tenha desempenhado missões menores
na área adjacente a Jerusalém antes de ser aprovado (At
!>,2) para procurar os fiéis nas sinagogas de uma cidade
tão importante como Damasco.
Se o contexto de At 26,10b está tão seguramente
enraizado em fatos conhecidos e afirmações válidas, a
historicidade da pertença de Paulo ao Sinédrio emerge
como solidamente provável.
Assim sendo, Paulo não era apenas discípulo de
(¡amaliel I, mas também colega júnior dele. Ele deve ter
entrado em relação crescente com o seu mestre que
permitia liberdade de intercâmbio negado a mero estu
dante. Inevitavelmente, deve ter sido admitido às dis
cussões de outros membros farisaicos do Sinédrio, muitos
dos quais teriam estado presentes no julgamento de
Jesus. Acho impossível imaginar que a figura de Jesus de
Nazaré não tenha sido evocada nos debates que devem ter
acontecido logo que a presença cristã em Jerusalém co
meçou a se fazer sentida. Apesar dos sobretons teológicos
da narrativa de Lucas nos primeiros capítulos de Atos,
pode haver pouca dúvida de que reflita a reação das
autoridades judaicas ao aparecimento de outro grupo
cismático. Situação muito semelhante houve cerca de
duzentos anos antes, quando os essênios entraram em
cena pela primeira vez, mas agora a ameaça parecia
muito mais séria porque a “fé” (G11,22) deste novo grupo
era diferente: proclamavam que o Messias tinha de fato
vindo. Isso torna ainda menos improvável que o interesse
das autoridades se limitasse ao fenômeno.JDeve ter havi
do profunda preocupação com suas raízes, ou seja, as
pretensões de Jesus. Para combater o problema, os fariseus
l eriam tido de conhecer exatamente o que se passava, e
Paulo teria sido participante deste diálogo.f
21
Isso nos leva à pergunta mais importante: o que
sabiam os fariseus sobre Jesus? Para responder, não
podemos simplesmente perpassar pelos evangelhos e
combinar todos os episódios em que os fariseus são men
cionados, porque em muitas ocasiões “fariseu” funciona
como símbolo de oposição a Jesus que na verdade pode ter
vindo de variedade de fontes; isso vale especialmente para
os evangelhos de Mateus e João/Daí, devem-se tomar
precauções rigorosas contra anacronismo, sendo o controle
do que sabemos dos interesses e conceitos dos fariseus de
outras fontes. Fazendo-se isso, emerge um quadro bastante
curioso.
Os fariseus conheceram Jesus como mestre com
discípulos (Mc 2,18). Apesar de falta de treinamento
formal (Jo 7,15), corria o risco de ser tomado por um de
seus membros. Isso criava um perigo para sua autorida
de, que se baseava em observância ostensivamente estrita
da lei. Daí, sua crítica de associação dele com “pecadores”
(Mc 2,16; Lc 7,36; 15,2), de sua atitude relaxada para com
o “trabalho” no sabbath (Mc 2,24; 3,6; Lc 6,7; 14,1; Jo 9,13)
e de sua negligência das regras da pureza ritual (Mc 7,1).
Contudo, devem ter sabido que em alguns temas ele era
mais rigoroso do que eles próprios, notadamente com
referência ao divórcio (Mc 10,2).
De tais dados, os fariseus dificilmente não teriam
tirado a conclusão de que Jesus agia como se gozasse de
privilegiada posição com respeito à lei, e isso só podia ser
explicado como pretensão de especial relação para com
Deus. Obviamente, era este o cerne da questão, que torna
tanto mais estranho que os fariseus nunca sejam repre
sentados confrontando-se com este tema diretamente. O
mais perto que chegamos de sua confrontação é sua
exigência de um sinal (Mc 8,11), mas temos uma alusão de
que eles viram o problema em termos de messianismo na
afirmação, relatada pelos discípulos, de que Elias deve vir
primeiro (Mc 9,11), e outro em sua insistência na origem
galilaica de Jesus (Jo 7,52), pois eles esperavam um
Messias davídico (Mt 22,42). Sendo assim, qualquer que
22
iicjn o seu valor histórico, a pergunta do sumo sacerdote
durante o julgamento de Jesus: “És tu o Messias, o Filho
do I )eus Bendito?” (Mc 14,61), deve ter articulado precisa-
mente o que ia pelas mentes dos líderes fariseus. Esse
modo de ver é confirmado pelo fato (veja acima) de que
.losefo, que pretendia ser fariseu, sabia que Jesus era
julgado ser o Messias.
Finalmente, também é provável que os fariseus sa
biam da pretensão cristã de que Jesus tinha sido ressus
citado dos mortos. O fato de que isso era elemento cons-
I ante na pregação cristã primitiva dá credibilidade à base
de Mt 28,11-15; os fariseus sustentavam que os discípulos
tinham roubado o corpo, atitude que só é explicável se
Houbessem o que os crentes retinham.
A Assim, apesar do fanatismo do repúdio de Paulo a
• I esus e tudo o que ele defendia, qualquer que se recordasse
de Jesus proporia as seguintes ressonâncias associativas:
(I) uma pretensão à filiação messiânica com suas
conotações de missão e obediência; (2) rejeição da absoluta
autoridade da lei; (3) ressurreição. A primeira vista isso
I»»de parecer resultado bastante magro para uma pesquisa
n m tanto laboriosa^ip contrário, de fato, é verdadeiro,
porque nestes sobretons evocados pelo nome de Jesus
então as sementes de duas idéjas-chave que conformou
l (>( I; i a teologia de Paulo, a saber, a filiação única de Jesus
e o valor meramente relativo da lei.a
23
tem sido chamado de “cristofanias de reconhecimento”,
porque essas eram, com efeito, experiências de reconversão;
os discípulos tinham de aceitar novamente o Senhor
Ressuscitado. Essas narrativas exibem um padrão muito
claro, que é mais evidente na aparição a Maria Madalena
(Jo 20,11 e 16) e aos Onze (Jo 20,19-20), mas que pode
também ser detectado nas narrativas mais desenvolvidas
(Lc 24,13-35.36-43). Os quatro elementos componentes
são: (1) ausência de qualquer expectativa da parte dos
discípulos; (2) uma iniciativa de Jesus que (3) dá um sinal
de sua identidade; (4) reconhecimento de Jesus pelo(s)
discípulo(s).
Paulo não mais esperava encontrar o Jesus ressusci
tado da mesma forma que os discípulos, ainda que, como
fariseu, fosse obrigado a crer na ressurreição, e os fariseus
tivessem ouvido a pregação de Jesus. Igualmente, Paulo
apresenta Jesus como tomando a iniciativa; “ele apareceu
a mim” (ICor 15,8), e, na verdade, a narrativa termina
com a aceitação de Jesus. O paralelismo parece se quebrar
no que respeita ao terceiro elemento, que é o elemento
crítico, ou seja, o sinal de identidade dado por Jesus. Paulo
não podia tê-lo “reconhecido” da mesma forma precisa
como os outros discípulos, porque ele jamais o vira na
carne. No entanto, podemos estar certos de que Paulo
tinha uma imagem mental de Jesus. A intensa raiva
dirigida contra os cristãos deve ter assemelhado o seu
líder como alguém que tinha desviado alguns do seu povo.
O estresse assim produzido teria interferido com a
racionalidade normal do Apóstolo e teria elevado sua
susceptibilidade a alguma coisa associada com o foco de
sua emoção. Por causa de sua condição mental, Paulo era
de fato muito mais vulnerável do que normalmente se
concede, fator que reduz enormemente o aparente para
doxo de sua mudança radical e imediata de fidelidade.
Quando algo aconteceu, e aqui tocamos a fímbria do
mistério, as duas imagens se fundiram e o mundo de
Paulo foi virado de cabeça para baixo.
24
0 fator-chave, como no caso dos outros discípulos, foi
ii convicção de que um morto tinha sido ressuscitado, que
o Jesus crucificado estava vivo de novo). Este fato indiscu
tível transformou o sistema de valores de Paulo. Se urna
«las três ressonâncias que o nome de Jesus suscitava em
mía mente farisaica era verdade, então as outras duas
iiiirgiam à luz totalmente diferente. Não mais eram elas
as pretensões blasfemas de homem louco, mas verdade
evidente, Se Jesus tinha sido ressuscitado dos mortos, sua
pretensão de ser o Cristo e Filho de Deus não podia ser
negada, e sua atitude para com a lei deve refletir a
vontade de Deus.
Em outras palavras, o encontro de Paulo com o Jesus
vivo na estrada de Damasco deu-lhe a intuição fundamen
tal sobre a pessoa e a missão de Jesus e, ao mesmo tempo,
abriu-lhe a possibilidade de salvação paraos gentios, pois,
se a lei tinha valor relativo, não era a única vereda para
Deus. Em sentido muito real, pois, o que estava para ser
os dois eixos maiores de sua teologia veio à posse de Paulo
no momento de sua conversão. Vagos e embrionários como
eram nesta fase, estavam não obstante profundamente
enraizados em sua mente e seu coração. Estamos agora
em condições de compreender o que Paulo quis dizer
quando escreveu: “O Evangelho por mim anunciado não é
segundo o homem, pois eu não recebi nem aprendi de
algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo” (G1
1,12)1 Não era como se Jesus lançasse novas idéias em sua
mente. O encontro deu-lhe perspectiva radicalmente nova
sobre idéias que até então rejeitara: idéia que ele não
aprendera pela vontade de mestre de instruir sua mente,
mas idéias que ele tinha ouvido de passagem como exem
plos de erro orgulhoso. Assim, “ele não o recebeu nem
aprendeu de algum homem”. A experiência do Cristo
vivo acendeu nele a verdade que inconscientemente pos
suía.
25
A tradição cristã /j
26
0 próprio Paulo não nos diz o que ele fez durante este
tempo em Damasco. Lucas, porém, informa-nos que ele
pregava Jesus como Filho de Deus e Messias (At 9,20-22).
Em si nada é mais provável, mas confirmação valiosa do
valor da tradição de Lucas é fornecida pelo que vimos
acima referente ao fundo farisaico de Paulo como crista
lizado na pergunta do sumo sacerdote: “Es tu o Messias,
o Filho do Deus Bendito?” (Me 14,61). Se o interesse de
Paulo era “provar” que Jesus era o Cristo, o seu argumento
deve ter tomado a forma de demonstração que Jesus era
o cumprimento da profecia. Neste caso, os ditos de Jesus
teriam sido muito menos importantes do que sua pessoa
e atos, pois o AT fala somente do que o Messias haveria de
realizar.. Daí, podemos inferir que Paulo deve ter se
interessado em acumular tanta informação quanto pos
sível sobre o ministerio terreno de Jesus. Não existe
nenhuma razão para a opinião em geral comum de que
Paulo estava completamente desinteressado no Jesus
histórico.
Nesta perspectiva, pode parecer natural traduzir G1
1,18 como “subi a Jerusalém para conseguir informação
de Cefas”. Este sentido de historêsai certamente não é
impossível, porque a conotação básica do verbo é “inqui
rir, examinar”, mas é igualmente certo que Paulo não
entendeu este significado porque o seu propósito em G11-
2 é estabelecer sua independência da igreja de Jerusalém.
As exigências do contexto são atendidas plenamente pela
tradução comum que implica que o objetivo de Paulo era
conhecer Pedro,'A implicação é que Paulo sabia da pro
posição de Pedro — só o título de “Cefas” o prova — e acho
impossível imaginar que Paulo nunca tenha inquirido
porque Pedro tinha esse ofício e onde obtivera este título.
Quer tenha ocorrido isso em Damasco quer em Jerusalém,
é irrelevante em comparação com a alusão de que Paulo
sabia da tradição atrás de Mt 16,13-20, com tudo o que ela
implica sobre comunidade e estrutura.
Há razões fortes para se defender a hipótese de que
G12,7 incorpora o essencial do primeiro encontro de Paulo
27
I
28
Outro ponto a se reter é o fato de que a historicidade
de Jesus é fundamental para a teologia de Paulo. O
discípulo que escreveu Efésios captou a aproximação de
seu mestre exatamente ao apresentar Jesus como a ver
dade de Cristo (Ef 4,21). Havia a tendência em certas
comunidades do Apóstolo de separar o Cristo da fé do
Jesus da história. Encontramos Paulo resistindo a essa
atitude em sua insistência em que o Senhor da Glória era
o Jesus crucificado (lCor 2,6), e em sua ênfase em que os
colossenses receberam Cristo “como Jesus o Senhor” (Cl
2,6). A hipótese de que Paulo teria enfatizado este ponto
quando ele era negado é explicitamente excluído por sua
condenação de qualquer que “prega um Jesus diferente da
quele que vos pregamos” (2Cor 11,4). A frase sublinhada
indica claramente que um retrato do Jesus histórico
formava parte da pregação oral de Paulo: o uso de “Jesus”
sem qualificação sublinha a referência ao ministério
terrestre. Acho impossível admitir que ele se limitava a
uma apresentação da morte e ressurreição, não só por
causa de sua improbabilidade intrínseca, mas também
porque é contradito pelas próprias cartas (cf. supra). Se
Paulo acreditava ser ele mesmo capaz de representar “a
vida de Jesus” (2Cor 4,10), ele deve ter tido uma idéia
muito clara do comportamento de Jesus que manifestava
sua autêntica humanidade.
(/Em que medida Paulo sabia dos ditos de Jesus é terna
muito controvertido. Aqueles que sustentam que o ensino
do Jesus histórico não teve nenhuma influência sobre
Paulo são contraditos por outros que asseveram que ele
constituía a fonte primária de sua instrução ética, A
verdade provavelmente está entre estes dois extremos.
Há somente duas citações diretas de palavras de
Jesus nas cartas, a proibição do divórcio (lCor 7,10-11) e
a diretiva concernente ao sustento dos pastores (lCor
9,14), mas os estudos mais recentes dedicados a estes
textos tendem a mostrar que Paulo sabia não só o dito,
mas também o contexto em que aparece na tradição
sinótica. Aqui não é o lugar para desenvolver este ponto,
29
e um exemplo deve bastar. O tema do sustento dos
pastores aparece em Lc 10 e se tem mostrado que este
capítulo se liga a ICor 9 por toda uma série de termos
comuns: um “apóstolo” que deve (“semear” e) “colher” tem
o “direito” de “recompensa” por sua “pregação da boa
nova”, porque o “operário” tem o direito de “comer” e
“beber”. Os acordos são muito numerosos para formar por
coincidência uma explicação aceitável, particularmente
uma vez que o mesmo tipo de acordo pode se encontrar em
outros blocos de material. Deve-se notar também que os
dois ditos do Senhor que Paulo cita não terminavam como
parte de uma coleção de ditos (tal como a hipotética fonte
Q), mas como parte de uma fonte que continha também
narrativas de ações de Jesus.
Assinalou-se também que, se bem que o farisaísmo
fosse essencialmente movimento urbano e Paulo homem
da cidade, o Apóstolo usa uma proporção extraordinaria
mente alta de metáforas que refletem uma cultura agrária
(Rm 1,13; 6,21; 7,4-5; 15,28; ICor 3,6-9 [passim]', 15,36-44;
2Cor 9,6-10; G1 5,22; 6,7-9; F1 1,22; 4,17). A explicação
mais convincente é que ele estava familiarizado com a
linguagem das parábolas de Jesus, porque os contatos são
bastante específicos para serem explicados por comum
dependência do Antigo Testamento.
'Daí, os estudos paulinos contemporâneos se inclina
rem a considerar que Paulo tinha conhecimento bastante
extenso do que veio a se tornar a tradição sinótica. E
característico de sua personalidade, porém, que nunca aduz
este material como fonte autoritarista. O seu método não era
discorrer mediante uso autoritarista de textos de prova, mas
era conduzido pela força persuasiva da verdade calmamente
apresentada. Sua familiaridade com a tradição cristã, que
se desenvolvia, referente ao ministério de Jesus, revela-se
somente pela maneira em que ela condicionou o seu modo
de expressão, mas as perspectivas sobre a humanidade de
Jesus que incorpora permeia o seu pensamento. Suas
reflexões sobre o sentido de Cristo para a Igreja e para o
mundo estão enraizadas na realidade de Jesus de Nazaré.
30
I
LEITURAS SUGERIDAS
31
2
CRISTO, O CRTTÉRTO
33
I Antropofagia pastoral de Paulo
Ora, ele morreu por todos a fim de que aqueles que vivem não
vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por
eles. Por isto, doravante a ninguém conhecemos kata sarka. Mes
mo se conhecemos Cristo kata sarka, agora já não o conhecemos
assim. Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as
coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova (2Cor 5,15-17).
34
O que é importante é que abandonou semelhante
maneira de julgar os outros: “Doravante a ninguém conhe
cemos de maneira carnal”. Sua intenção, obviamente, é
encorajar outros a fazer o mesmo. Porque deve insistir
licará mais claro se fizermos uma digressão por um
11 lamento para examinar o tipo de situação que ele tem em
mente. Em sua carta anterior aos Corintios foi forçado a
escrever:
35
carnal” começa por uma partícula significando “portan
to”, o que a torna a conseqüência de “Cristo morreu por
todos a fim de aqueles que vivem não vivam mais para si”.
Este altruísmo está em patente contradição com o
egocentrismo que os coríntios julgam natural. O padrão
de comportamento de Cristo é o critério pelo qual os
cristãos devem julgar a qualidade de vida dos outros.
Conseqüentemente, se alguém está “em Cristo”, deve
julgar de maneira nova. “Passaram-se as coisas antigas;
eis que se fez uma realidade nova” significa que o julga
mento foi renovado, aceitando-se novo critério ou ponto de
referência, a saber, “o amor de Cristo”, pelo qual o próprio
Paulo se sente urgido (2Cor 5,14). Paulo não exagera ao
falar disso como “nova criação”.
36
homem nem se está sugerindo que estes aspectos sejam separá
veis do resto. Estou apenas apontando um fato óbvio: se devemos
tomar como genuína a profissão da Igreja de que Jesus é verda
deiramente homem, se os aspectos há pouco sublinhados devem
ser levados em co nsideração (1?. de Rosa, Christ and Original Sin,
Londres, 1967, 43).
Podemos perguntar, porém, se podemos falar significativamente
da humanidade de Cristo a não ser se o fazemos com respeito a
ele como tendo sido “um homem como os outros”... Ele deve ter
aprendido como nós aprendemos e ter crescido como crescemos.
Suas alegrias devem ter sido alegrias humanas e suas dores as
dores imemoriáveis de homens como nós mesmos. Ele deve ter
conhecido solidão, frustração, ansiedade, da mesma forma que
nós sentimos. Ele deve ter sentido tentações de duvidar e ter
medo. Ele teria amado os outros da mesma forma que os homens
amam seus companheiros — mais, diremos, mas não diferente
mente. Ele também teria se abatido diante da morte, do rompi
mento de laços familiares com coisas queridas. Seu conhecimen
to de Deus, apesar de toda sua segurança e peculiar intimidade,
feria sido a espécie de conhecimento que é dado aos homens ter
de seu Criador e Pai. Se tudo isso não fosse verdade, poderíamos
chamá-lo de verdadeiro homem? Pois os traços reais do homem
não são sua figura e aparência, ou o modo como ele anda, mas o
modo como ele sente e pensa em seu coração, o modo como
conhece asi mesmo, os outros e Deus (J. Knox, TheHumanity and
Divinity of Christ, Cambridge, 1967,63-68).
37
Os critérios esboçados por Knox e de Rosa são de
tremendo valor quando tratamos de incidentes específi
cos na vida de Jesus. Permitem-nos ver o batismo como o
começo do progressivo descobrimento por parte de Jesus
do significado de sua missão. Forçam-nos a ver as tenta
ções e a agonia no jardim como momentos de real decisão
quando Jesus teve de lutar para permanecer fiel à sua
compreensão do que o Pai exigia dele/Em outros termos,
eles nos urgem a levar a humanidade de Jesus a sério.
Nisso podemos ver uma reação contra uma tendência
a subvalorizar a humanidade de Jesus que prevalecera na
Igreja por muitos séculos. A realidade desta humanidade
foi afirmada como questão de princípio, mas a maneira em
que era apresentada com freqüência constituía de fato
uma negação. Assim, por exemplo, Clemente de Alexan
dria escreveu no fim do século II:
Cristo comeu, não por causa do corpo, que era mantido por uma
santa energia, mas para que não entrasse na mente daqueles que
estavam com ele que tivessem uma opinião diferente dele... Mas
ele era inteiramente impassível, inacessível a todo movimento de
sentimentos, seja de prazer seja de dor.
38
i|p ui ui divindade, e como resultado a ela se atribuiu uma
I • i feição que a tirou da órbita do gênero humano tal como
ii i niihecemos. Assim, pretendeu-se que o conhecimento
di’ Jesus não estava sujeito às limitações que nós expe
li 1111 • 11111 mos, e que o seu corpo sentiu a força do sofrimento,
ui um H(>in sentir dor. Somente neste século houve esforços
Iuii ii restaurar o equilíbrio enfatizando a humanidade de
• Iiviiih. A uns isso pareceu negação da divindade. Mas este
mio é de fato o caso. São esforços no sentido de ser fiel aos
i/o/n aspectos da tradição da Igreja referente a Jesus,
liinlo Knox como de Rosa são dignos representantes
ilentii tarefa teológica contemporânea, mas uma vez que
um afastamento da falsidade não é necessariamente um
passo para a verdade, devemos olhar um pouco mais de
perto os critérios que eles apresentam.
O princípio que subjaz à sua apresentação é afirmado
• sp licitamente por Knox: se Jesus não é como nós, ele não
e lioinem. O próximo passo é olhar para a humanidade
coii I einporânea com o objetivo de abstrair os denominado-
i eu comuns que são então predicados de Jesus. A esta
111111ra, duas questões devem ser propostas. São Knox e de
Rosa fiéis a este método? O método em si mesmo seria tal
pura ser capaz de produzir o resultado desejado?
A resposta à primeira questão deve ser negativa.
Indiferença às necessidades dos outros é mais comum que
iiinor. Inveja e possessividade são tão difusas como soli
dão e frustração. Em outras palavras, toda uma série de
facetas da humanidade contemporânea são deixadas fora
dii conta. O que Knox e de Rosa nos dão não é visão
objetiva da humanidade como ela é, mas uma visão
unilateral. Em lugar de uma lista completa de facetas
características, eles nos oferecem apenas uma seleção. O
princípio em que se baseia a seleção jamais é explicado,
mas, se olharmos para sua justificação, encontraremos a
resposta à segunda questão, Certas facetas da humanida
de contemporânea foram deixadas de lado porque se
sentem inapropriadas a Jesus. Knox e de Rosa estavam
conscientes de que o objeto de sua observação é uma
39
humanidade decaída, e como resultado não incluíram
aqueles elementos que lhes pareciam pertencer à nature
za humana decaída. Como eles sabem o que é quê, nunca
se pode explicar. Da observação objetiva da humanidade
contemporânea jamais se obterá retrato da humanidade
como tal. O melhor que ela pode produzir é um retrato da
humanidade decaída que é inaplicável a Cristo, porque
ele foi sem pecado (Rm 1,4; 2Cor 5,21; Jo 8,46; lJo 3,5; Hb
4,15; lPd 2,22).'À aproximação fenomenológica, portanto,
é viciada em sua própria essência. Ela nunca nos poderá
dizer o que seja a humanidade autêntica, porque o seu
objeto é a humanidade inautêntica. Em consequência,
toda tentativa de discernir as facetas distintivas da hu
manidade de Cristo emtermos de nossa atual humanida
de está destinada à falência.
A intenção divina
42
no significado da palavra “lei”, ficaremos imediatamente
mirpreendidos pelo número de paralelos com a situação,
descrita por Gn 3, antes da expulsão do jardim do Éden.
I ’ois toda a humanidade está concentrada nas pessoas de
Adão e Eva. O “eu” paulino tem a mesma extensão. Eles
viviam em virtude até Deus dar o mandamento: “Não
poderás comer do fruto da árvore que está no meio do
jardim nem a poderás tocar, senão morrerás” (Gn 3,3).
Este mandamento prometia vida (Rm 7,10), mas sua
própria existência provocava desejos proibidos (Rm 7,7).
O Pecado (Rm 7,8) ou a Serpente (Gn 3,4-5) usou da
oportunidade fornecida pelo mandamento para incitar a
humanidade ao pecado (Gn 3,19; Rm 7,9). Ambas as
passagens, portanto, apresentam os mesmos elementos
na mesma ordem: mandamento — desejo — pecado —
morte. O primeiro estágio da história da salvação deve,
conseqüentemente, se considerar que foi o período antes
da queda. Assim, temos a seqüência:
1. Humanidade antes da queda (7,7-13).
2. Humanidade entre a queda e Cristo (7,14-24).
3. Humanidade depois do advento de Cristo (7,25-8,4).
O primeiro e o terceiro estágio estão ligados por um
denominador comum, uma vez que são caracterizados
pela “vida”. O estágio 1: “Eu estava um dia vivo sem a lei”
(7,9); estágio 3: “A lei do espírito de vida em Jesus Cristo
tomou-se livre” (8,2). O estágio 2, ao invés, é radicalmente
diferente, porque é caracterizado por “morte”: “Homem
lnfoliz que sou eu! Quem me libertará deste corpo de
morte?” (7,24). A sugestão desta cuidadosa estrutura é
(pio n “vida” que Adão gozava antes da queda é restaurada
na possoa de Cristo. Teremos de pesquisar o sentido preciso
do “vida”, e o seu correlativo “morte”, mais tarde, Tudo o que
ou. , interessa a esta altura é a evidência clara, para Paulo,
do <pie Cristo era de fato o que Adão devia ser. A “vida” que
Adito perdeu uma vez mais é representada no mundo, e nela
o intenção divina para a humanidade torna-se manifesta.
Essa conclusão é confirmada por outra passagem em
ipio I ’nulo escreve:
43
... os incrédulos, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligên
cia, a fim de que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que
é a imagem de Deus. Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus,
Senhor. Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos servos
por causa de Jesus. Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas
brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer
brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de
Cristo (2Cor 4,4-6).
44
mas uma vez que reconhecemos que a categoria de causa-
lidade exemplar foi fornecida pela literatura sapiencial
( Pr 3,19; 8,22.30), o processo mental do autor fica claro.
Para criar Adão, Deus deve ter tido uma idéia da huma
nidade perfeita/JPara cristãos, a perfeita humanidade foi
real izada somente em Cristo. Cristo, portanto, foi concebido
I >a ra representar a intenção d ivina que veio a ter expressão
histórica na criação de Adão. \
A conclusão a se tirar dos' três textos que estivemos
discutindo é que a antropologia de Paulo-tem uma base
cristológica. Para encontrar a verdadeira e essencial
natureza da humanidade, ele não olhou para os seus
contemporâneos, mas para Cristo, pois que somente ele
incorporou a autenticidade da humanidade/|Era inevitá
vel, pois, que Paulo insistisse que a humanidade de Cristo
era o critério pelo qual a humanidade de outras criaturas
devia ser julgada.
Autêntica humanidade
45
espontaneamente se submete a um experimento médico
perigoso, redime o seu passado culpável. A morte de um
alcoólico que, numa rua ocupada por uma multidão, abafa
com o corpo uma granada que explode, dá sentido a uma
vida desperdiçada. Nestes dois exemplos, morte é a con
sumação de um tempo de vida, porque o “self’ é exaltado
e afirmado no supremo ato de renúncia/tPaulo certamente
incluiria a morte de Cristo nesta categoria porque ele
sublmHa consistentemente que foi morte “por outros” (Rm
5,8; 14,15; ICor 8,11; G1 2,20 etc.)'..Mas existe ainda outra
perspectiva da qual pode ser visualizada a morte. Ela
pode ser vista iluminando a característica dominante do
tempo de uma vida. Que isso estava também na mente de
Paulo sugere-o a fórmula que ele criou, “o morrer de
Jesus” (2Cor 4,10), que evoca a vida culminando na morte
e porta a conotação de que as duas são homogêneas.
Conseqüentemente, ele pode proclamar que “Cristo mor
reu por todos a fim de aqueles que vivem não mais vivam
para si mesmos” (2Cor 5,15).'O padrão de comportamento
que os cristãos devem imitar (ICor 11,1) é posto em alto
relevo na morte de Cristo que focalizou com clareza
meridiana a opção fundamental de sua vida/’’
Como vimos no primeiro capítulo, Paulo sabia bas
tante sobre a tradição do ministerio terreno de Jesus que
foi eventualmente posta por escrito nos evangelhos
sinóticos^À primeira vista, isso torna tanto mais surpre
endente que Paulo tenha estimado a morte de Cristo como
a máxima revelação de sua humanidade, porque tantos
incidentes podiam ter sido usados como ilustrações, par
ticularmente porque ele queria que os fiéis vivessem como
cristãos, e não apenas morressem como cristãosjT/Sua
razão para agir como ele agiu torna-se evidente se reco
nhecermos que para Paulo Jesus não devia ter morrido.
Essa idéia aparece na primeira estrofe do hino da carta
aos Filipenses:
46
mas esvaziou-se a si mesmo,
assumindo a condição de escravo (F1 2,6-7).
47
Cristo (Rm 5,19; F1 2,8). Nisso, porém, Deus agia por
amor: “Foi, com efeito, quando ainda éramos fracos, que
Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. — Dificil
mente alguém dá a vida por um justo: por um homem de
bem talvez haja alguém que se disponha a morrer. — Mas
Deus demonstra o seu amor para conosco pelo fato de
Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores”
(Rm 5,6-8). Essa formulação um tanto tortuosa é devida
ao esforço para insinuar que, ainda que a decisão fosse de
Deus, era também de Cristo. Essa dimensão chega a
expressar-se claramente em outra série de textos: “A vida
que agora vivo na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus
que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (G1 2,20;
cf. 1,4; 2Cor 8,9).¿Uma vez que o “e” aí é explicativo, o texto
apresentao autodoar-se de Cristo como expressão de
amorXjO que então- é o amor? A melhor resposta é a
fornecida por John Macquarrie:
48
Imil ica é criatividade que efetivamente abre novos hori
zontes de ser para os outros. A validade desta intuição é
' onl irinada por breve análise do conceito doAntigoTesta-
1111-11l.o dc “imagem de Deus” que Paulo predica somente de
< ¡iíhLo (2Cor 4,4; Cl 1,15).
1 imagem de Deus
49
< Alllroptdogta pastoral de Patdo
isso nova possibilidade de existência é ofertada aos ani
mais. Visto nesta perspectiva, o domínio da humanidade
sobre os animais (Gn 1,28) assume nova dimensão: é
paralelo com o de Deus porque é também baseado cm ato
criativo.
" Paulo, porém, não leu Gênesis separado do corpo da
interpretação tradicional que se desenvolvera em torno
dele. Daí, para poder perceber o que tinha em mente ao
usar a frase, devemos levantar brevemente as diversas
interpretações que eram correntes em seus dias.A
Um ponto apropriado de partida fornece-o Sirac.
Escrito em hebraico na Palestina pelos inícios do séc. II
a.C., foi traduzido para o grego pelo neto do autor em 131
a.C. O fato de se terem encontrado fragmentos tanto em
Qumrã como em Masada mostra que seu ensinamento
tinha larga difusão. Ele oferece interpretação extensa da
narrativa da criação:
50
O paralelismo do v. 3 mostra que aí “imagem” é
■ 'iiii'i'hida em termos de poder. E questão, pois, de capa-
• liliule para a ação; assim como Deus está nocéu, também
| humanidade está na lerre^O contexto, porém, circuns-
i' vo rigorosamente esta dimensão criativa e inibe todo
rio que faria do homem pequeno deus. Este poder é
a limir da autoridade da humanidade sobre o resto da
i'l lnrao i v. 2), mas este não é o aspecto mais importante.^
I'jiIc poder desenvolve-se na escolha conseqüente ao co
nhecimento do bem e do mal (v. 7). Até ai estamos dentro
do quadro da narrativa do Génesis, masa última parte da
i ll nçao (vv. 11-13) mostra que o autor impôs uma perspec-
I Iva radicalmente nova ao Gênesis. As alusões à “lei” e à
"aliauça” mostram que ele pensa não na humanidade
i omn tal, mas exclusivamente nos israelitas. São eles
lilimente que são “a imagem de Deus”. E o resto da
Immanidade? Sirac não dá nenhuma resposta explícita,
man a lógica de sua posição o forçaria a concordar com o
nitor judeu que escreveu pelos fins do séc. Ia.C.: “Quanto
mi outras nações que descenderam de Adão, disseste que
i’lan sao nada” (Esd 4,55)££ssa arrogância é compreensí-
• d somente se admitirmos que o autor vê a humanidade
pola perspectiva estritamente moral. Os israelitas são
ilili'i-entes porque somente eles foram agraciados pelo
ilmn <la lei que ilumina as opções criativas que todos
di em fazer. O que a predicação de “imagem de Deus”
i'imui nica é, em consequência, a capacidade para compor-
I amento ético .P
Ainda que permanecendo dentro do mesmo quadro
básico, o livro da Sabedoria, composto em Alexandria na
nogunda metade do séc. I a.C., toma linha diferente:
51
Em oposição a Sirac, que cria que Deus deu aos
homens somente “número preciso de dias e tempo deter
minado” (17,2), o Sábio não creu que a morte era inevitá
vel. Não foi parto da intenção divina que a criatura
humana deva morrer como os animais e plantas. Ele o
deduz de Gn 2,17 e 3,3, que apresenta a morte como
punição pela desobediência. O corpo, porém, era “perecí
vel” (SI 9,15), uma vez que fora “feito de terra” (Sb 15,8).
Daí, presumia que antes da queda a criatura humana era
dotada do privilégio da incorruptibilidade, dom divino
que inibia a tendência natural da carne para a dissolução.
Isso fazia a humanidade em certo sentido imortal, e
este paralelo com a eternidade de Deus (Gn 31,33; Is
40,28) justificava a afirmação de que ela era a “imagem de
Deus”.
' A morte, em consequência, anula a imagem de Deus.
Os qng~mõrrem não~podem estar na “imagem de sua
eternidade”.’ Para o Sábio, porém, nem todos morrem
porqiie êle distinguia entre morte “real” e morte “aparen
te”. Somente os ímpios morrem verdadeiramente; a morte
era a negação de toda sua existência a ponto de sequer
permanecer sua memória (Sb 4,19; 5,14). O justo, ao
invés, somente parecia morrer (Sb 3,2-3), ao passo que de
fato vive para sempre (Sb 4,17; 5,15). Essa diferença é
devida ao fato de que o justo possui a sabedoria que é a raiz
de toda virtude e a segurança de imortalidade (Sb 6,17-21;
8,13-17). Inevitavelmente, essa sabedoria foi concebida
em relação com a lei mosaica (Sb 6,18).
Pareceria, pois, que com respeito a Sirac, o Sábio
impõe ulterior limitação à aplicação da idéia de imagem
de Deus. Enquanto o primeiro a aplicaria a todos ligados
pela aliança, o último a aplicaria somente aos israelitas
que realmente obedeciam à lei. Em outros termos, ao
passo que Sirac relaciona a imagem de Deus à capacidade
de ação, o Sábio a relaciona- à própria ação. Não são
aqueles que são capazes de obedecer à lei que são a
imagem de Deus, mas aqueles que de fato a observam.
52
Emui linha de pensamento é levada um passo adiante
nnfnrinos que o Sábio predica “imagem de Deus” de
'•ui i ii reulidade:
53
específica de existência. Este ponto encontra eco também
em Filón (20 a.C. a 54 d.C.). A antropologia de Filón é
extremamente complexa, e um resumo pormenorizado
dela não cabe aqui. Ele reserva o predicado de “imagem de
Deus” para o Logos, um intermediário entre Deus e a
humanidade. Desta última ele dirá somente que ela foi
feita “segundo a imagem” do Criador. Falando estrita
mente, a humanidade é uma imagem da imagem que é o
Logos. ¡A impressão divina está manifesta no intelecto,
mas alguns usam de seu intelecto para seguir a caminho
*fèal da"Sãbédoria, ao passo que outros nao./^ ’
54
pensar de si mesmo como significado por semelhante
l'rase impressionante.
A falta de simpatia de Paulo por semelhante conforto
i lusório é evidente na maneira altamente seletiva em que
usa “imagem de Deus”. Nunca a aplica a si mesmo ou a
qualquer de seus contemporáneos. Em ICor 11,7 visa
evocar Adão antes da queda, como a noção de “gloria” (cujo
Mentido veremos no fim do próximo capítulo) claramente
indica. Precisamente o mesmo conceito se usa para su
blinhar que Cristo é o Novo Adão em 2Cor 4,4: “a gloria de
< ¡risto que é a imagem de Deus”. Com referência aos fiéis,
Paulo dirá apenas que “nós estamos sendo mudados em
nua imagem de gloria em gloria” (2Cor 3,18), isto é, ele
mantém a esperança de que um dia possamos nos tornar
n “imagem de Deus”.
Portanto, o uso de Paulo revela sua insatisfação para
ruin a definição de humanidade (representada por Sirac)
baseada só na capacidade ou potencialidade. Devemos,
nm consequência, admitir que ele se alinharia com o Sábio
nu com Filón. Não existe nada em suas epístolas; porém,
que sugerisse que ele pensava habitualmente nas cate
gorias altamente intelectuais de Filón. Onde há contatos
nutre o Apóstolo e o grande filósofo, o primeiro está em
mação a idéias que se podem associar com o último. Por
exclusão chegamos, então, à posição de que Paulo pro
vavelmente seguia a linha aberta pelo autor do livro da
Sabedoria, conclusão que é confirmada pela influência
(I i fusa do livro nas epístolas paulinas. O título “imagem de
I )eus” é justificado somente quando a criatura é também
■ i i.idor. É oferecendo nova possibilidade de existência a
i a i I ros que a criatura humana é verdadeiramente imagem
de Deus.;Se bem que sua aproximação seja meramente
especulativa, a grande intuição de John Macquarrie o
conduz a um ponto cm que fielmente expressa a intenção
de Paulo:
55
“existência”. O que distingue o homem de outras criaturas é que
ele “existe”, e existir é ter abertura que é talvez a melhor chave
à misteriosa afinidade de Deus e homem. Da mesma forma em
que Deus se abre para a criação e derrama ser, e, portanto, tem
o “deixar-ser” como sua essência, também o homem é mais
verdadeiramente ele mesmo e realiza sua essência na abertura
de inpa existência em que também ele pode deixar-ser, com
responsabilidade, criatividade e amor (Principies of Christian
Theology, § 35, p. 212).
Realidade histórica
56
1
ocorreu quando se fizeram tais incursos? Uma atitude
mental diferente foi logo gerada. Indivíduos foram liber-
I mios da inibição do impossível. Aqueles que se mantinham
otras, talvez inconscientemente, por causa do medo de
que aquilo pelo que lutavam era impossível de realização,
loram chamados avante pelo sucesso de outros tais como
eles. Uma nova energia foi lançada pela demonstração de
novo padrão.
Propor como critério de autêntica humanidade um
II mor que continuamente logra dar poder a outros poderia
• icr tão irrealístico como a sugestão de imitar as peripécias
(lo Super-Homem, se não soubéssemos que pelo menos um
indivíduo demonstrou essa possibilidadejqPqrque Jesus
viveu sob as mesmas condições históricas de tempo e
espaço como nós, o modo de existência realizado por ele
permanece desafio perpétuo para um padrão atingível. .
57
LEITURAS SUGERIDAS
58
JESUS CRISTO E DEUS
59
incorporado nos evangelhos sinóticos. É universalmente
reconhecido que não existe nenhuma evidência de crença
na divindade de Jesus nos estratos primitivos da tradição
evangélica. Assim, não existem motivos para ler Paulo
com a presunção de que os cristãos com os quais entrou em
co nta to criam na divindade de Cristo. Não podemos assumir
uma visão de Jesus que se tornou corrente somente mais
tarde na história da Igreja. Paulo não era discípulo de João!
Devemos lembrar também que Paulo era rabino
treinado. O monoteísmo do seu povo era algo que herdara
irrefletidamente, mas algo que tinha estudado conscien
temente. Era uma crença à qual ele estava profundamente
entregue. Negação seria extrema heresia. E assim é
precisamente como a afirmação da divindade de Cristo
teria aparecido, o conceito de Deus alargado para incluir
duas pessoas! E difícil para nós agora apreciar a magni
tude da ruptura com a tradição judaica que isso implica.
Não poderia ter acontecido, particularmente no primeiro
estágio que Paulo representa, sem uma explosão que
certamente teria deixado muito mais traços definidos em
suas cartas do que as alusões incidentais e ambíguas que
são o máximo que sempre se pretendeu encontrar.
¿"O resultado destas observações é sublinhar que uma
sã metodologia exige que supostas referências à divindade
ou preexistência de Cristo nas cartas paulinas sejam
criticamente examinadas, a fim de determinar o que real
mente dizem e não sejam interpretadas ingenuamente à
luz de preconcepções infundadas. •
60
I nli‘1 ¡/.mente, porém, este versículo pode ser interpretado
ih> numerosas maneiras diversas, dependendo da forma
i ui que for pontuado. As duas principais são:
61
eram a manifestação da solicitude providencial de Deus. ■
Que o pensamento de Paulo continua a se mover dentro do
mesmo quadro é fortemente sugerido por Rm 9,3, que
também faz distinção entre Cristo e Deus. “Quisera eu
mesmo ser anátema e cortado de Cristo em favor de meus
irmãos.” Paulo não podia desejar ser cortado de Deus.
Se os versículos antes do v. 5 distinguem claramente
Deus de Cristo, o mesmo vale para os que seguem. No v.
6 lemos: “E não é que a Palavra de Deus tenha falhado”.
Isso é uma referência anterior às “promessas” do v. 4, e
bastante obviamente a referência é ao Pai, como é o caso
em todas as menções subseqüentes de “Deus” (9,8.11.14.16;
e em particular 9,20, onde “Deus” = o Criador). Em
nenhum destes textos seria natural interpretar “Deus”
como significando Cristo. A consistência deste uso é argu
mento forte contra a pontuação A, pois só metodologia
exige que o sentido de um versículo polivalente seja
determinado pelo contexto; o significado provável é o que
é requerido pelo contexto. Q
Por toda a seção de 9,1-5, a atenção de Paulo está
focalizada no Pai. A multidão de seus dons, culminando no
envio de Cristo, serve para iluminar a fidelidade de Israel.
E inteiramente natural que o Apóstolo experimentasse
grande angústia ao contemplar o pecado de seu povo. Mas
este é apenas um dos lados da moeda, pois é igualmente
compreensível que a lista dos atos graciosos de Deus
provocasse explosão espontânea de louvor. A ordem
vocabular do v. 5 elevou a mente de Paulo à noção de
providência e, daí, ao Pai e seu caráter de bendito. Uma
versão mais plena da mesma doxologia aparece em Rm
11,36: “Pois procedentes dele e mediante ele e para ele são
todas as coisas. A ele, glória para sempre”. Observe-se a
ordem, providência seguida por glorificação. Balancean
do, portanto, a documentação favorece a pontuação B e a
probabilidade desta pontuação é confirmada pelo fato de
que nenhuma outra passagem nas cartas de Paulo impli
ca necessariamente que Cristo é Deus.^De fato, Paulo
afirma explícitamente que Cristo está subordinado a
62
I Fiih: “E, quando todas as coisas lhe tiverem sido subme-
' Idas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo
• h" aiibmcteu, para que Deus seja tudo em todos” (ICor
1 Rm 9,5, portanto, apresenta Cristo como dom de
I Ruiu sem de nenhuma forma afirmar sua divindade.
b'illio de Deus
63
Essa interpretação é confirmada por duas outras
passagens que apresentam sua filiação em termos de
missão. Rm 8,3 já foi citado; a segunda passagem é G14,4:
“Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou
Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob. a lei, a
fim de que recebêssemos a adoção filial”. “Enviar” nestes
dois textos não tem nenhuma referência à preexistência;
o verbo é regularmente usado em ambos os Testamentos
para dizer comissionamento de um agente humano em
vista de tarefa determinada. Embora partilhando das
desvantagens da humanidade (“nascido de mulher, nas
cido sob a lei”), Cristo realizou sua missão salvadora,
manifestando assim a obediência que, no padrão hebraico
de pensamento, que Paulo herdou, era o constituinte da
verdadeira filiação; “o Filho de Deus, Jesus Cristo... não
foi ‘sim’ e ‘não’, mas nele foi (sempre) o ‘sim’” (2Cor 1,19-
20). Essa fidelidade foi reconhecida por Deus ao ressusci
tar Cristo.
Em vista do que vimos referente ao relacionamento
de Paulo com a tradição sinótica, parece provável que
derivou seu ensinamento sobre o “envio” de “o filho” da
pregação de Jesus. O único texto evangélico em que o
envio de um Filho é mencionado é a parábola de Jesus dos
vinhateiros homicidas (Mc 12,1-12), texto que está ligado
a G1 4,4-7 pelos temas ulteriores da escatoíogia (“último”
[éschaton] Mc 12,6; “na plenitude do tempo” G1 4,4) e da
herança (Mc 12,7; G1 4,7)JTantos contatos pareceriam
excluir a coincidência como explicação adequada e, sendo
assim, seria imprudente lei’ mais no texto paulino do que
se pode~ihlerir7fa primitiva tradição sinóticajf)
Indicação ulterior nesta direção é fornecida pela
definição de Paulo do espírito do Filho em termos de
“Abba”(Gl4,6; Rm 8,15). O uso que faz de termo aramaico
reflete sua dependência da tradição sinótica de palavras
próprias de Jesus. Ao usar “Abba”, Jesus expressara o seu
sentimento de íntima filiação (Mc 14,36), mas ao mesmo
tempo o termo proclamava a revelação de Deus como Pai,
não só de próprio Jesus, mas também daqueles aos quais
64
Iiuvi'1'in de comunicar sua filiação (cf. Lc 11,2; 22,29). A
ii|ii'ii|.no é que tal filiação é constituída pela resposta
nmdolnda por aquela de Jesus. Paulo chama-la-á de “a
nliiMlIôncia de fé” (Rm 1,5). E porque somos filhos de Deus
piilii fé e pelo batismo (G1 3,26-27) que instintivamente
ima dirigimos a Deus como “Abba” (G1 4,6; Rm 8,15), da
iMiMHiui forma que o fez Jesu^dUma vez que fomos inseri-
i rm Cristo, podemos usar este termo distintivo ao
Invoi or a Deus. í-
A idéia de “adoção” que Paulo usa ao falar de nossa
Hlliiçno <G1 4,5; Rm 8,15.23) não pode ser urgida para
piovnr diferença radical entre a filiação de Cristo e a
lio tiin, porque Cristo pertencia a um povo, do qual um dos
privilégios era a “adoção” (Rm 9,4). Uma vez mais, isso
Iniiero a compreensão de Paulo a respeito de Jesus como
I í II io de Deus firmemente dentro de um contexto judaico
i iijiiii pressuposições monoteístas devem nos inibir de
liiln pretar semelhante filiação em termos de comunidade
,1, u; dureza. Para Paulo, Jesus era o Pilho de maneira
Unira porque ele realizou as exigências da filiação de
íiu ma sem paralelo com nenhum outro. ; ,
Senhor
65
Antigo Testamento; já era corrente na Igreja a que ele se
juntou, como podemos deduzir das fórmulas em forma de
credo em Rm 10,9 e ICor 12,3. O termo “Senhor” não é
sinônimo de Deus. Era usado correntemente no mundo
secular para conotar relacionamente de poder. Não defi
nia o status de indivíduo tomado em separado, mas evo
cava seu domínio sobre um grupo ou esfera da vida. Era
perfeitamente aplicável ao Criador, mas não se limitava
a ele. O fato de que os primeiros cristãos olhavam para
Cristo como seu senhor, atitude que começou durante sua
vida terrena como mestre, mas que tomou dimensão
infinitamente mais profunda em sua experiência dele no
período pós-pascal, é suficiente explicação de seu uso de
“Senhor” a respeito dele. Olhavam para ele como a superior
do qual dependiam.
A base do senhorio é o poder, e o poder fruído por
Cristo é o de dar ou recusar o dom dá vida/Prolonga
do para o futuro, este poder fará dele o juiz universal
(2Ts 1,5-10; Rm 2,16). No Antigo Testamento, domínio
sobre a vida é, com certeza, atributo divino (Dt 32,39);
forma parte da natureza de Deus. Para Paulo, este poder
não pertencia a Cristo por direito; teve de lhe ser dado e
este dom é consistemente apresentado como recompensa
pela fidelidade com que executou sua missão. “Com efeito,
Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e
dos vivos” (Rm 14,9). “Por isso, Deus o sobreexaltou gran
demente e o agraciou com o nome que está acima de todo
nome... e toda língua confesse que Jesus é ‘Senhor’ ” (F1
2,9-11). O poder de senhorio é dado a Cristo para fim
específico e, quando isso se tiver cumprido, o poder será
entregue (ICor 15,20-28)/ No pensamentpde Paulo, “Igre-
ja’/e“senhorio” de Cristo^estão/ntrinsecamente ligados;
’IgeiTpoaêréopefãtivo em emediante a comunidade cristã.
Quandofno plano de Deus, o tempo da Igreja chegar a seu
fim na parusia, o senhorio de Cristo cessará. p,
66
' <iilx’doria
67
estava bastante perto do tipo de teologia associado a
Filón. Porque a rocha no deserto forneceu alimento, ele
pôde vê-la como símbolo da sabedoria especulativa que, do
seu ponto de vista, sustentava as almas dos iluminados.
Paulo não podia partilhar desta perspectiva. Estava
convencido de que Jesus Cristo era o único mediador entre
Deus e a humanidade (ICor 8,6; lTm 2,5); ele era a
revelação da exigência de Deus e o modelo da resposta da
humanidade. Paulo era suficientemente realista para
reconhecer que não podia varrer das mentes dos corintios
idéias que já tinham assimilado. Daí, tinha de redefinir
Cristo de uma forma que acarretaria mudança em sua
maneira de pensar. A única solução possível era insistir
que Cristo era “o poder de Deus e a sabedoria de Deus”
(ICor 1,24; cf. 1,30). Em sua própria pessoa ele era tanto
a manifestação como os meios do plano de salvação de
Deus. Se os corintios desejavam interessar-se pela Sa
bedoria, deviam focalizar Cristo crucificado, pois a sabe
doria não mais c expressa em palavras ou ações (ICor
1,22), mas numa pessoa cuja existência corpórea era
integrante de sua missão.
Se tal era a atitude de Paulo, não temos nenhum
direito de supor que ele aceitava a compreensão de Filón
sobre a rocha de que os israelitas beberam. (AoJnvés, é
muito mais provável que estava conscientemente modi
ficando aquela interpretação ao insistir que a rocha não
era a sabedoria, mas CristoJX) tempo passado lhe foi
forçado pelo fato dê que a rocha não era uma realidade do
presente. A cadeia de equações visando estabelecer a
preexistência de Cristo em ICor 10,4 é uma ilusão; jamais
existiu na mente de Paulo.
A controvérsia com os corintios acrescentou nova
dimensão ao pensamento de Paulo sem modificá-lo de
qualquer forma fundamental. A tradição judaica achava
significativo falar da sabedoria de Deus. Dada a vitalidade
do monoteísmo judaico, é muito improvável que conce
bessem sua Sabedoria, quer como ser divino, quer como
hipóstase divina. Era uma forma de expressar o
68
envolvimento do Criador transcendente com sua criação;
era consolo crer que havia um plano divino por detrás do
caos sem sentido dos fenômenos. Era o único antídoto ao
pessimismo gerado pelo contato com a realidade. Uma
Vez que sua atenção tinha sido arrastada para esta
perspectiva, Paulo teria visto imediatamente a relevân
cia para sua situação. Era Cristo que dera sentido à sua
própria vida; mediante ele, tudo entrou em seu lugar.jNão
mais se^falava da Sabedoria meramente falada como
inserida na lei (Eclo 24), ela estava presente em poder. A
especulação sapiencial judaica não levou Paulo a pensar
de Cristo em termos outros que humanos. Ao invés, o fato
de Cristo fornecia a chave para a compreensão correta da
maneira como a Sabedoria de Deus agia no mundo.
< Resumindo. -Filho, Senhor e Sabedoria são usados
mis cartas pauli nas, não para sugerir dimensão supra-
1111 mana em Cristo, mas para iluminar diferentes facetas
ila mediação de Cristo entre Deus e suas criaturas/lSa-
bedoria frisa que Deus tem um plano para a humanidade.
I''ilho mostra que este plano é inspirado no amor. E Senhor
garante o poder necessário para levá-lo a termo. Os três
aspectos estão unificados naquele que desdobra a criati
vidade do Novo Adão.
69
LEITURAS SUGERIDAS
70
A DIVISÃO DENTRO
DA HUMANIDADE
"Vida” e “morte”
71
I
72
Km movimento ulterior, a diferença tem-se expressado na
forma: “vida” = vida sobrenatural, ao passo que “morte” =
vida natural.
Podemos conceder imediatamente que existe pelo
menos um ponto de contato entre a distinção paulina de
"vida” e “morte” e a distinção dos teólogos de “sobrenatu
ral” e “natural”. Paulo insiste que é impossível à humani-
i Indo passar sem ajuda do estado de “morte” ao de “vida”,
nos teólogos fazem a mesma observação com referência à
passagem do “natural” ao “sobre naturaP^perápsuficiente
nos permitir admitir que o sentido de Paulo é idêntico com
o visado pelos teólogos? O que já vimos em capítulos
anteriores sugeriria que não o é.£
Ao tratar do levantamento da história da salvação em
Km 7,7 a 8,4 (supra p. 43), observou-se que Paulo predica
"vida” de Adão antes da queda (Rm 7,9). Adão, como saiu
• las mãos do Criador, era precisamente o que Deus visava
que fosse. Era essa sua condição “natural” ou “normal”.
Tudo o que Adão possuía antes da queda era natural à
humanidade. Este estado natural foi recriado em Cristo
< Km 8,2), e vimos a insistência de Paulo em que Cristo era
n norma da humanidade. Essas observações tornam claro
que I ‘aulo e os teólogos vêem o que é “natural” de diferentes
perspectivas. Os teólogos tomam o estado decaído da
humanidade como sua condição natural e, em consequên
cia, são forçados a considerar a “vida” trazida por Cristo
como dom sobrenatural. Paulo, por outro lado, uma vez
que começa, não da humanidade como ela é atualmente,
mau da intenção divina, vê o estado decaído como a
| condição natural da humanidade. A restauração do estado
em í Iristo é dom, mas para ele nada de sobrenatural está
euvolvido./Cristo em sua humanidadejé precisamente o
que Deus visou desde o início, não mais nem menos.
"Vidn” no sentido paulino é, portanto, não graça que eleva
i mifurczã humana a nível nqais^êlêvado, mas simples,-
meiiie o natureza humana emjUAa perfeiçaõy\
~t) que entende entaoPãíãlopeloterrno correspondente
"morte”? Longe de ser o estado natural da humanidade,
73
como pretendem os teólogos, nossas observações prece
dentes permitem-nos afirmar imediatamente que ele
denota estado não-natural. Se “vida” é a palavra paulina
para a condição normativa da humanidade, então “morte”
visa evocar uma condição anormal. 'Se aqueles que estão
“vivos” são verdadeiramente humanos,-êntãolãgueles que
estão “mortos” são subumanos.
74
mitras bolas de futebol em circunstâncias idênticas. Se a
lioln tle futebol A lançada com força X na condição de vento
V voa em certa trajetória, todas as outras bolas de futebol
lançadas com a mesma força nas mesmas condições de
vimto voará precisamente na mesma trajetória. Isso não
valo das pessoas. Conhecer a reação do indivíduo A em
iluda situação não é nenhuma base para predição
i oncernente à reação do indivíduo B em precisamente a
mesma situaçãofA razão disso é que a pessoa goza de um
I ipo mais complexo de ser que a coisa. Seu ser está sujeito
a modificação de uma forma que o ser de uma coisa não
yntá.ry
A consideração existencialista concentra-se, portan-
lo, na pessoa antes que na natureza em geral, e está tão
impressionada pela diferença entre pessoas e coisas que
no recusa a definir a pessoa de qualquer forma que possa
parecer colocá-la em relação com o mundo não-humano.
I . .11 ocorre quando, por exemplo, a pessoa é definida como
animal racional, porque essa definição toma a pessoa
ramo apenas uma espécie dentro de uma categoria genérica
ipio inclui coisasíyEste existencialismo é mais fiel à visão
bíblica que, ao definiras criaturas humanas como “a
imagem de Deus”, opera radical clivagem entre a pessoa
c o resto da realidade criada. Esta, devemos esperar, seria
linnbém a consideração de pastor tal como era Paulo,
porque o seu interesse visa às pessoas e não às coisas/ '
Em sua observação da pessoa, a consideração
existencialista reconhece que o indivíduo muda continu
amente. Toda nova situação significa uma experiência
cuja conseqüência é mudada. O indivíduo que passou por
uma guerra, ou uma doença grave, ou um caso de amor,
não é a mesma pessoa depois como antes. Daí, o
existencialismo é forçado a definir a pessoa, não em
lermos estáticos fechados, mas de maneira de finalidade
aberta que leva em conta este fato de experiência. Modi
ficações, porém, são introduzidas por uma situação vivida
somente à medida que as implicações da situação são
conscientemente assimiladas e então aceitas ou rejeita
75
das. Reflexão e escolha são essenciais. O existencialismo
define, em conseqüência, a pessoa como possibilidade
determinada pela decisão. Palavras mais gráficas são
fornecidas por estudioso do séc. XV, Giovanni Pico delia
Mirándola, que descreve Deus dizendo ao homem: “Tu,
como um juiz indicado por ser honorável, és o modelador
e fazedor de ti mesmo; tu deves esculpir-te em qualquer
forma que prefiras”. (.Oration on the Dignity ofMati, trad.
A. R. Caponigri, Chicago, 1956, 4-5)¿j\pessoa é entidade
que pode dar-se a si mesma diversas orientações por meio
das escolhas que faz. Como resultado dessas decisões, a
pessoa pode existir em diversas formas, C,
O tipo de decisão que uma pessoa pode fazer é limi
tado pela estrutura do seu ser. Nenhum ser humano pode
lançar-se do topo de um edifício de vinte andares sem
nenhum equipamento e decidir voar ao chão. Igualmente,
ninguém pode decidir ver através de uma parede de tijolo.
Por outro lado, da divisão fundamental na realidade,
nenhum animal pode decidir escrever um livro. Daí, o
existencialista afirma que cada tipo de natureza é cons
tituído de um leque fixo de possibilidades. O escopo
atribuído à pessoa é muito maior que aquele que se atribui
ao animal, mas não é infinito.
Este leque de possibilidades serve como critério pelo
qual os existencialistas julgam as decisões que a pessoa
faz, pois nem todas as decisões são do mesmo valor.
Algumas decisões tornam a pessoa autêntica, criam sua
verdadeira identidade, ao passo que outras fazem a pes
soa inautêntica, porque nelas o verdadeiro eu se perde.
Em outras palavras, a pessoa existe auténticamente se
suas decisões atuam as possibilidades dadas com o seu
ser. Se falha em atuar estas possibilidades, ela existe
mautenticamente. t\
Até este ponto, todos os existencialistas estariam no
essencial de acordo, ainda que suas formas de expressão
se diferenciassem largamente. Mas no momento em que
alguém perguntasse quais são precisamente as possibili
dades distintivas dadas com a natureza humana, cessaria
i» consenso. Para o cristão, isso dificilmente surpreende,
porque a humanidade, que é o objeto da análise
ienoinenológica, é defectiva. Não é a natureza humana
como tal, mas a natureza humana decaída. Ao recusar
admitir isso, os filósofos se lançam a descrições de autentici
dade cuja variedade é indicativa de sua subjetividade e cujo
conteúdo evidencia desespero mais do que esperança.
Paulo, porém, estava isento desta triste situação. Por
nua compreensão da revelação tal como se focaliza na
liuinaniade de Cristo, estava convencido de que a
criatividade com respeito aos outros era a possibilidade
distintiva da natureza humana¿A criatura humana foi
I razida ao ser justamente para exercer amor carregado de
imergia que haveria de capacitar os outros a serem cria-
livos na mesma ordem de ser. Os que falham em atuar
essa possibilidade não existem como Deus pretendeu que
existissem. Neste preciso quadro de referência, eles po
dem ser ditos não-existentes. Essa é uma aproximação
bastante próxima do que o semita entenderia por morte.
Morte não era aniquilação, mas a antítese da vitalidade e
do movimento que caracterizavam os viventes. Os mortos
oram apenas sombras de seus antigos eus ativos. Para
I *aulo, os que não amavam eram nada daquilo que podiam
o deviam ser, e ele simplesmente carregava essa noção até
os limites do realismo, ao proclamá-los “mortos”? É tam
bém provável que por essa escolha do termo Paulo visasse
I nsinuar que aqueles que tinham optado pela in autenticidade
ii ao podem, sem ajuda, mudar oseusíaíus; os mortos são sem
poder para se ajudarem a si mesmos.
Se os verdadeiramente humanos são aqueles que
atuaram a capacidade de amor criativo inserido em seu
aor, então os que falham em atuar essa potencialidade são
nao-humanos, ou subumanos. Reação instintiva contra
essa conclusão é inevitável. Diz-se que ela tem ressaibos
de filosofia nazista. Levanta-se a objeção de que parece
reduzir a maioria da raça humana ao nível de “coisas”.
Este, de fato, não é o caso, porque inserida em seu ser está
ii permanente possibilidade dese tornarem autenticamente
77
1
Semelhança
78
I
79
estritamente legalístico. É ato ilegal que arrasta sobre
nós a ira do legislador (Deus) e nos torna dignos de
punição. Se o ato tem algum efeito sobre nossas pessoas é
o papel que ele exerce na criação ou no reforço dc mau
hábito. Para Paulo, o efeito do pecado era muito mais
profundo. “Se eu faço o que não quero, já não sou eu que
ajo, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7,20)/Pecado
é a alienação do eu autêntico. É rejeição da humanidade
para a qual foi feita a criatura humana, ou como Paulo o
coloca mais graficamente: “O salário do pecado é a morte”
(Rm 6,23), isto é, o efeito do pecado é produzir não-
existência no sentido explicado na seção anterior.;A esta
altura, mas ao nível muito mais profundo, reencontramos
a idéia de pecado como alienação de Deus que integra a
visão cristã. John Macquarrie formula a relação com sua
costumeira clareza:
80
”• Hi»|>uc absolutamente. Knox lançou-se em impasse
Calhou em distinguir entre os níveis ontológico e
"•illen da natureza humana, e admite que Paulo fala do
nível mitológico quando de fato está interessado somente
", d i ml ico. O nível ontológico é constituído pelo leque
iln pimnibil idades que compõem a natureza humana,, e
i ■ nível Jesus é absolutamente idêntico com os outros
■ I" i•.• i iero humano/A diferença por que se interessa Paulo
• ni no nível ôntico, o domínio da existência real em que
• ii mu possibilidades surgem atualizadas ou não-
ii I HiiI izaclas. O pecado, por comum que possa ser, não está
Implicado na estrutura ontológica da natureza humana.
I iiieramenteuma das opções abertas à criatura humana.
I hiui vez que isso se reconhece, fica imediatamente evi-
• I• iilc que é possível haver um indivíduo perfeito, ou seja,
n||;iiein cuja existência real não está desordenada pelo
prendo./Se Cristo não tivesse sido “diferente”, jamais
poderiamos convencer-nos de que o modo de existência
manifestado pelo mundo não crn a única opção aberta à
limminídade. •'
Humanidade e ressurreição
81
este ponto. Em parte, a posição de Knox está baseada na
afirmação paulina segundo a qual Cristo ganhou algo por
sua ressurreição. O Apóstolo pretende que Cristo foi
“constituido Filho-de-Deus-em-poder” (Rm 1,4) e que ele
“se tornou um espírito doador de vida” (ICor 15,45). Se a
sugestão segundo a qual Cristo atingiu a humanidade
perfeita somente como conseqüência de sua ressurreição
deve ser rejeitada, então uma explicação alternativa deve
ser proposta para essas afirmações.
xQs textos que apresentam Jesus como a incorporação
da humanidade autêntica são muito claros para serem
ignorados, e vimos que para Paulo essa autenticidade
chega a suas expressões mais claras na morte de Cristo.(
O problema, pois, é explicar como Paulo pôde falar de
aumento de poder depois da ressurreição. A resposta deve
ser encontrada na convergência de várias linhas de pen
samento.
O próprio conceito de ressurreição envolve tanto
perda como restauração. Isso está claramente formulado
numa das mais antigas afirmações judaicas referentes ao
significado da ressurreição: “O criador do mundo que
formou o homem em seu nascimento e deu origem a todas
as coisas, é quem vos dará de volta o espírito e a vida, uma
vez que agora fazeis pouco caso de vós mesmos, por amor
às suas leis” (2Mc 7,23). Toda ressurreição é, pois, em
sentido muito real, um ganho.
Deve-se também reter que o único Jesus que Paulo
conhece é o Cristo Ressuscitado, e não é ir além dos limites
de possibilidade razoável presumir que Paulo viu diferença
entre o que Jesus atingiu durante o seu ministério terreno
e o que atingiu no período pós-pascal. A possibilidade é
reforçada pelo que sabemos de seus contatos com a igreja
de Jerusalém (G11,18-19; 2,1-10). A comunidade crescen
te de Jerusalém, para não dizer nada do próprio sucesso
de Paulo, ter-se-ia situado em saliente contraste com os
Onze e as mulheres que se entregaram a Jesus durante o
período de sua vida terrena. A inferência natural a se tirar
destes fatos era que houvera aumento no poder de doar
82
"viiln” de Cristo, e isso haveria de aparecer inevitável a
nlgiiém habituado a pensar no padrão do Antigo Testa
mento de humilhação e recompensa, padrão que se ma-
nllbsta claramente em F1 2,6-11 e lTm 3,16.
A reviravolta na evolução só podia ter sido a ressur-
i olçiio, e se deve recordar aqui que Paulo não faz nenhuma
illiil inção radical entre a morte e a ressurreição de Cristo:
t iisto viveu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos
vivos” (Rm 14,9; cf. 4,25; 2Cor 5,15). Dentro do quadro do
pnnsamento semita, a ressurreição era necessária, se o
iitnor doador de “vida”, que fora focalizado em sua mais
nlln intensidade no ato de morrer de Jesus, devia ser
pmnanentemente eficaz.
Essas três linhas de pensamento convergem para
mostrar como Paulo pôde falar como falou. Elas revelam
i|Ue não existe nenhuma contradição intrínseca entre o
ipie se disse com respeito à morte de Cristo como a
Miprema expressão da atitude dominante de sua vida e o
111 nceito de ressurreição com a restauração da humanidade
itlrnvés da ressurreição com o seu poder aumentado de
iImir “vida”/\Um ponto final deve ser frisado. Se é possível
1'H.i outros seres humanos atingirem a humanidade
lilitóiitica dentro do quadro de um mundo pecador, não há
imiihuma razão para negar que Cristo o tivesse feito, e de
lido o fez, mesmo antes de sua ressurreição. E a esse
iwpccto que devemos nos voltar agora.f.
A glória de Deus
83
Falando dos que estão “mortos”, Paulo diz: “Todos
pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm
3,23). Os que estão “vivos”, ao invés, são classificados
como “a imagem e glória de Deus” (ICor 11,7). A estranhe
za dessa linguagem fica um tanto aliviada quando reco
nhecemos que o genitivo pode ter dois significados bastan
te distintos. Por um lado, pode ser genitivo subjetivo e
neste caso “glória de Deus” significaria a glória pertencente
a Deus. Este é o sentido normal no Antigo Testamento,
onde a frase denota os concomitantes visíveis da presença
divina. Por outro lado, o genitivo pode ser objetivo e neste
caso “glória de Deus” significaria a glória dada a Deus.
Somente este último sentido se adapta ao contexto dos
textos de que estamos tratando.
Isso está particularmente claro em Rm 3,23, que só
pode significar que os pecadores são incapazes de dar
glória a Deus. O Antigo Testamento fornece um paralelo
próximo: “Um filho honra o pai, um servo teme o seu
senhor. Mas se eu sou pai, onde está minha glória? Se eu
sou senhor, onde está o meu temor? Disse Javé dos
exércitos a vós, os sacerdotes que desprezais o seu Nome”
(Ml 1,6). Um filho dá glória ou, como diríamos, honra a seu
pai por respeito manifestado na obediência. Por sua
desobediência, os sacerdotes de Israel recusam a Deus a
honra que lhe é devida. O profeta pensa dentro do quadro
fornecido pelas prescrições da lei mosaica. Isso não é
verdade de Paulo, que nunca apresenta a lei como critério.
[Os que estão “mortos” são onticamente incapazes de dar
honra a Deus, f)
A capacidade de dar honra a Deus é restaurada
somente através da fé (Rm 3,21-22), e é significativo que
o Apocalipse de Mpisés iguale “glória” com “estado de
justiça” (20,1-2). E somente enquanto restaurada em
Cristo que a humanidade não é apenas a “imagem”, mas
também “a glória de Deus” (ICor 11,7). Por essas duas
formulações, Paulo provavelmente reage contra a idéia,
prevalente em círculos judeus, de que o conceito de “ima
gem de Deus” primariamente se relacionava com
84
pulmcialidadeJEle acrescenta a noção de “dar glória”
IH i lisa mente para evitar essa interpretação. Um produto
di'li'iliioso não reflete nenhum crédito para o seu produ-
Iiii . A criatura humana, porém, honra aquele que a fez
1111i ndo ela é o que Deus visou que fosse. “Glória”, portanto,
e sinônimo de “vida” entendida no sentido de humani
dade autêntica. K
Como podíamos ter esperado, Paulo predica “glória”
priinariamente de Cristo (2Cor 3,18; 4,4; 2Ts 2,14), por
que ele é o exemplar de humanidade autêntica. Ele é a
primeira criatura humana desde a queda a dar perfeita
honra ao Criador simplesmente por ser o que ele era, e por
cousa dele outros indivíduos podem adquirir este status.
A (is lessalon icenses Paulo diz: “Para isso Deus vos chamou
por meio de nosso evangelho, para que obtenhais a glória
de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2,14)L4A meta do
evangelho é permitir à raça humana atingir a humanidade
autêntica. Uma vez que os tessalonicenses aceitaram esse
chamado, já estão na posse da autenticidade:»Essa posse
<• real mas incoativa e progressiva, como Paulo o frisa aos
rui íntios: “Nós todos com face descoberta contemplando a
glória do Senhor somos transformados na mesma imagem
de glória em glória” (2Cor 3,18). Temos aí uma associação
de “imagem” com “glória”, o que também ocorre em ICor
I 1,7, mas o pensamento é aprofundado à medida que
Paulo sublinha a relação entre a humanidade autêntica
de Cristo e a dos fiéis/Ãceitação_daJiumanidade de Cristo
cdino modelo e norma é o início do processo, e é isso que
I ’aulo pretende sugerir pela alusão à contemplação^ Mas
cnnteinplãçãõ”s'ó-hãõ“ e suficiente. Mudança real deve
ocorrer. Eles devem ser “conformados à imagem do seu
Pilho” (Rm 8,29), e tal conformidade acontece somente
mediante imitação: “Vós vos tornastes imitadores de nós
er/o Senhor” (lTs 1.6); “Tornai-vos meus imitadores, como
eu sou imitador de Cristo" (ICor ll,l).\Trata-se de modo
de ser, de padrão de comportamento, como Paulo frisa,
expressamente: “Exorto-vos, portanto, sede meus imita
dores. Foi em vista disso que vos enviei Timóteo... ele vos
85
recordará minhas normas de vida em Cristo” (ICor 4,16-
17),'A medida que o seu comportamento expressar o amor
criativo que distinguia a humanidade de Cristo, os cren
tes possuirão a “glória”. Eles dão crédito ao seu Criador.
O interesse de Paulo pela realidade (enquanto oposta
à mera teoria) evidencia-se na frase “de glória em glória”.
A perfeição da humanidade é inaugurada pelo ato da
conversão, mas com ele ainda não é possuída plenamente.
Paulo reconhece que os crentes devem e podem crescer no
amor (F1 1,9), e uma vez que o amor é a pedra de toque da
autenticidade, todo aumento de amor significa aumento
de autenticidade. Paulo foi forçado a essa conclusão pela
experiência das comunidades pelas quais era responsável.
A decisão pela “vida” é uma rejeição absoluta do modo de
ser que ele chama de “morte”, mas ao nível da vida prática
há com muita freqüência desvio, porque as atitudes e os
padrões de comportamento característicos da “morte” não
são erradicados por decisão singular contrária¿^utenti-
cidade real, em conseqüência, é questão de luta contínua,
e numa última seção teremos que discutir as condições
que tornam a vitória possível. •
86
como o são os animais. Não existe nenhum progresso
automático no modo de ser querido pelo Criadoçôp ser das
criaturas humanas é tal que elas podem se dar a si
mesmas diversos modos de existência. Tornam-se o que
Mcòlherem tornar-se, e essa escolha situa-se sob duas
opções fundamentais: “vida”, que é humanidade autêntica,
o “morte”, que é humanidade espúria, Adão um dia pos
an iu a humanidade autêntica, mas a perdeu e, até Cristo,
Iodos partilhavam dessa perda. A humanidade verdadeira
entrou de novo no mundo na pessoa de Jesus Cristo; em
sendo assim, deve ser a base de toda antropologia cristã
genuína. O que foi distintivo na humanidade de Cristo foi
o amor criativo que realizou plenamente a intenção divina
ao criar os seres humanos à imagem de Deus. A realidade
deste amor, cujo poder Paulo sentiu em sua própria
pessoa, forçou o Apóstolo a constatar que a essa possibi
lidade inserida no ser humano não se dava nenhum lugar
na compreensão de seus contemporâneos sobre o que
h ignifica ser humano. Sua visão era limitada pelos padrões
de comportamento que eram capazes de observar e, em
conseqüência, aceitavam como normais atitudes que es
tavam em radical contradição com a criatividade que
I ’aulo via em Cristo.fSua consciência da historicidade da
humanidade de Cristo capacitou a substituir os critérios
de seus contemporâneos com nova visão do que a criatura
humana podia e devia tornar-se. Estava convencido de
nao estar propondo idéia utópico porque houve alguém
q ue o tinha de fato vivido e desse modo morrera. Constatou
que para ser como Cristo foi, a natureza humana precisava
ser capacitada para tanto, mas esse amor se tornou
disponível no amor de Cristo. O único caminho para a
ibrma de humanidade desejada pelo Criador jazia em se
entregar a esse amor.1*
87
LEITURAS SUGERIDAS
88
II PARTE
A SOCIEDADE
O PECADO E O MUNDO
91
dição humana surgida de dentro da situação histórica.
Somente Deus podia criar um mundo novo onde a huma
nidade seria como o Criador desejava.
Paulo, portanto, não carecia da figura de Cristo para
torná-lo consciente de que a situação humana estava
distorcida e dividida. Essa consciência lhe era comunicada
pelas duas culturas com as quais entrou em contato, e as
condições nas cidades portuárias em que trabalhava di
ficilmente conduziam a uma visão favorável da natureza
humana. Sua convicção de que a humanidade decaíra não
tinha nada a ver com Cristo. No entanto, sua análise deste
estado decaído está relacionada com sua compreensão de
Cristo de dois modos. Em primeiro lugar, a possibilidade
de existência revelada na humanidade de Cristo deu-lhe
um instrumento que lhe permitiu selecionar e iluminar os
fatores-chave que contribuíram para a atual condição da
humanidade. Onde outros viam tanto erro que não sabi
am por onde começar, ele era capaz de estabelecer uma
hierarquia nas causas que produziam as condições que
observa va^jEmsegundo lugar, a perspectiva concedida a
ele por Cristo forçou-o a alinhar os judeus com o resto da
humanidade, e a negar a posição privilegiada que eles
pretendiam para simesmos. í.
92
. n11-11 l urais do estado de “morte”. Ao se ler essa passagem,
■ preciso ter em mente que o “eu” representa não simples
Indivíduo, mas a humanidade. E recurso literário para
produzir quadro mais dramático. Conseqüentemente, a
piiHsagem não pode ser entendida como exercício de
Inlrospecção psicológica^Paulo está interessado com as
angústias e máculas da existência humana, p
Os que estão “mortos” são apresentados como estan
do cm estado de intolerável tensão. Existem no ponto focal
de tendências radicalmente conflitantes. Não é como se
duos partes diversas da personalidade humana estives-
iiein em guerra mútua, uma parte superior (simbolizada
pelo “homem interior”, “mente”, “vontade”) oposta a uma
porte inferior (simbolizada por “carne”, “pecado”). Ao invés,
lemos de um lado o desejo da humanidade de autenticidade,
o inclinação de um ser criado para ser o que o Criador visou.
"Querer” é dirigido para a “vida”. Este instinto, porém, é
cavalgado por uma estranha orientação que redunda num
"Cozer” que leva à “morte”. “Não faço o bem que quero, mas
pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero,
jn não sou eu que estou agindo, mas sim o Pecado que
liabita em mim” (Rm 7,19-20). Todo o esforço da humani
dade culmina na perda de sua verdadeira identidade: o “eu”
n ao mais existe; foi totalmente alienado. A humanidade tem
a sensação de não mais estar em controle de seu destino. A
Insistência de Paulo neste ponto é notável, pois a última
parte do versículo há pouco citado é mera repetição do v.
17: “j á não sou eu que estou agindo, mas sim o Pecado que
habita em mim”. A futilidade do esforço humano é ilu
minada pelo terrível espanto das palavras: “Não entendo
minhas próprias ações” (v. 15). A humanidade sente-se
condenada a uma espécie de escravidão; foi “vendida sob
o Pecado” (v. 14)/T) quadro é estarrecedor, A raça humana
surge como uma sociedade de bonecos manipulados por
uma força que Paulo chama de Pecado.
A questão que surge desta descrição é: o que é pecado?
Mas antes de tentar responder, vale a pena sublinhai’
< pião acuradamente Paulo sentiu o mal-estar que afeta a
93
humanidade e quão relevante é sua descrição para os nossos
dias. A ansiedade inominada que permeia o nosso mundo
está enraizada no sentimento sem esperança de que as
coisas foram longe demais para serem trazidas de volta ao
controle.; Os desdobramentos foram demasiado velozes e
demasiado difusos para o sistema nervoso humano poder
sustá-los com êxito. A sensação de ser manipulado por forças
que não podem ser especificadas acuradamente deu origem
a uma frustrada inquietude cujas múltiplas expressões —
revolução violenta, uso de drogas, doença mental — so
mente intensificam a sensação de estar perdido.
O pecado e o mundo
94
i i'lnl ¡ vo aos quejá são crentes, e ele nunca evoca essa figura
pum explicar a condição da humanidade antes de Cristo.
| A chave de que Paulo tinha em mente é fornecida pela
irlnçno que ele estabelece entre o Pecado c a responsabi
lldude humana:,“Portanto, assim como o Pecado veio ao
mundo através de um só homem e a morte através do
Pecado, também a morte se espalhou a todos na medida
rio que todos pecaram” (Rm 5,12). O pensamento deste
versículo é extremamente condensado, e é complicado
pelo fato de que Paulo usa aí “morte” em dois sentidos. O
primeiro sentido é o de existência inautêntica, mas asso
ciado com isso está a morte física que é sua conseqüência.
De mais a mais, Paulo está fazendo duas afirmações
diversas: (1) Adão foi responsável pelo modo inautêntico
do existência humana no mundo (“morte”) por-causa de
i leeisão pessoal oposta à vontade do seu Criador (“pecado”)
que teve amplas implicações para todos os outros mem
bros da raça humana (“Pecado”). (2) Todos os membros da
i nça humana são responsáveis pelo modo inautêntico de
nua própria existência (“morte”) porque realizaram a
condição requerida, a saber, decisões pessoais opostas à
vontade do seu Criador (“pecado”).
O fato de Paulo justapor estas duas afirmações facúlta
nos supor que existe alguma relação entre elas, mas a
lintureza dessa relação não é especificada além do fato de
que os dois casos são semelhantes (“assim como... tam
bém”). Todavia, a situação dos que vieram depois não é
Idêntica à de Adão, porque este introduziu na condição
humana algo que não existia antes.6Da letra do texto, jé
Indo o que podemos tirar. Uma visão um tanto mais clara
nr nos fornece se reconhecermos o fundo desde o qual
Paulo está escrevendo./^
O primeiro e talvez o mais crucial ponto é que Paulo
em sua primeira afirmação faz uma escolha entre as
explicações da origem do mal correntes em seus dias.
I'lram três. Segundo a primeira, que se baseava em Gn 6,1-
I, o mal entrou no mundo como conseqüência do intercurso
desnatural que anjos rebeldes tiveram com mulheres. O
95
segundo, com base em Gn 8,21, sustentava que Deus
tinha construído uma “inclinação má” na estrutura da
existência humana. A terceira, com certeza é a história da
queda em Gn 3. As duas primeiras teorias têm uma faceta
em comum que as distingue da terceira. Colocam a res
ponsabilidade pelo mal fora da raça humana atribuindo-
a aos anjos ou a Deus. Isso está em radical contraste com
a narrativa do paraíso que apresenta a origem do mal
como a conseqüência de decisão humana, cuja liberdade é
frisada pelas condições sob as quais ocorre. A intenção do
mito paradisíaco é frisar que o erro original aconteceu
dentro do quadro histórico da humanidade, e a verdade do
mito não depende de Adão e Eva serem reais figuras da
história.
Assim, ao evocar a queda, Paulo se coloca conscien
temente na~posrçãra~déqué a humanidade foi responsável
por sua própria condição triste. Ela não poderia evitar
aquela responsabilidade culpando alguma força além
dela. No tempo de Paulo, porém, havia várias opiniões
referentes à relação entre Adão e seus descendentes. E
fácil ilustrá-lo por meio de duas citações de obras judaicas
compostas na segunda metade do séc. I a.C.:
2 Baruc 4 Esdras
96
A diferença entre os dois textos é óbvia. Para 4 Esdras,
ii i iiça humana é planta brotada de semente podre e, em
i onseqüência, mostra os defeitos de sua origem. Labora
Molí a carga de enfermidade inerente só produtiva de
impiedade. Precisamente isso é negado por 2 Baruc, que
li luiste em que cada qual é capaz de escolher com a mesma
liberdade que Adão gozava.
Paulo não se identifica com nenhuma dessas posi-
■ i íes. Ele não podia aceitar nem o automatismo de 4 Esdras
liem a ingenuidade de 2 Baruc. Em oposição ao primeiro,
deu importância a decisões humanas individuais e negou
ii afirmação do último de que o pecado de Adão não
Introduziu nenhuma modificação na situação humana. O
Inço entre as duas afirmações de Paulo em Rm 5,12
liirnece-o o v. 19 do mesmo capítulo: “Pela desobediência
(Ir um homem, todos foram constituídos pecadores’/ftsso
presume um laço causal. A questão, pois, é: como essa
musa opera? E respondendo a essa questão que descobri-
iiios o que é Pecado.Jj
A resposta sugere-a Gênesis. A ênfase de Gn 3 é que
ii certo ponto na história da humanidade uma falsa
decisão foi tomada. Daí em diante, segundo Gn 4-11, as
coisas foram abaixo em passo sempre crescente. A descri
ção é a de progressão geométrica do pecado. À medida que
ii humanidade se espalhava, a maldade tornava-se pro-
gressivamente mais endêmica. A impressão imediata é
que os pecadores influenciaram-se mutuamente. Crian
ças foram condicionadas pelas atitudes de seus pais e
pndrões desenvolvidos de comportamento foram modela
dos pelos dos antepassados, que por sua vez passaram
lidiante aos seus descendentes.
Temos evidência a partir de ICor 3,1-4 (cf. p. 35) que
Paulo pensou nestas categorias, porque a ênfase desta
passagem é o desagrado de Paulo com o modo de ver a si
próprios como humanos que os corintios tinham herdado.
Assim, parece altamente provável que Paulo concebeu o
Pecado como desorientação massiva da sociedade ou,
mais específicamente, como a poluição corrosiva de en-
97
torno corrupto. Sua perspectiva precisa foi expressa por
H. H. Rowley, se bem que não estivesse tratando do
pensamento de Paulo:
98
nceito numa sociedade exerce tremenda pressão, como
qualquer que tentar se opor pode testemunhar. O que
lodos fazem não pode estar errado, e os que protestam são
lidos como objetos de chacotas. Apenas os muito fortes
podem pensar em opor alguma resistência. A maioria
uimplesmente aquiesce e, com mais freqüência, sequer
está consciente de que é manipulada.
Quem faz a manipulação? Nenhuma resposta pode
mu- dada, porque nenhuma causa ou complexo de causas
pode se separar no sentido de carregar a responsabilidade.
Não existe ditador a ser culpabilizado. A sensação é a de
ser pego no rolo compressor de uma multidão varrida por
pânico. Ele se movimenta cegamente, sendo todos carre
gados ao léu nas garras de forças irresponsáveis. É fácil
ver como essa sensação de ser arrastado por forças além
do controle humano podiaz se transformar na crença em
poder sobrenatural mau. E explicação que alivia a carga
de espanto e desesperança. Paulo, como vimos, rejeita
essa opção/^A inteligência, que parece estar dirigindo o
gênero humano "ha veredado mal, não passa do impulso
coletivo de amontoado de decisões individuais dissemi
nadas através dos séculos. Para ele, a atribuição de culpa
era menos importante do que a delineação correta do
problema, porque o que lhe interessava era encontrar
solução.
Se 0 Pecado é a pressão inexorável de um falso
sistema de valores que permeia a sociedade, não estará
simplesmente no “mundo”, mas é “0 mundo”. Paulo pode
empregar esse termo para designar o universo criado em
geral (por exemplo, Rm 1,20), mas ele 0 faz de maneira
bastante rara, uma vez que a realidade material era
apenas incidental ao seu interesse/Na vasta-maioria dos
casos “mundo” significa a esfera de relações interpessoais.
A “sabedoria do mundo” (ICor 1,20) são as especulações
da raça humana, da mesma forma que o “refugo do
mundo” (ICor 4,13) são os que são tidos em desprezo por
seus companheiros. O “mundo” que Deus reconcilia (2Cor
5,19; Rm 11,15) é o “mundo” que ele julgará (Rm 3,6). O
99
emprego paulino distintivo aparece na pergunta: “Porque
viveis como se pertencêsseis ao mundo?” (Cl 2,20), uma
vez que aí “mundo” é claramente a raça humana em sua
orientação inautêntica. E, em outras palavras, o “presente
mundo mau” (G11,4). Daí, Paulo pode falar do “espírito do
mundo” que leva a entendimento equívoco da condição
humana (ICor 2,12) e — como o Pecado — pode atribuir
a ele tais qualidades humanas como sabedoria (ICor 3,19)
e tristeza (2Cor 7,10). Uma vez que os seres humanos
devem viver “no mundo” (ICor 5,9-10), eles não podem
evitar estar imersos nos “negócios do mundo” (ICor 7,32-
34) e, em conseqüência, ser arrastados pela orientação da
sociedade a que pertencem.(Como Bultmann o expressa
graficamente: “O fato sinistro é que o ‘kosmos’, o mundo
dos homens, constituído pelo que o indivíduo faz e sobre
que ele põe os seus cuidados, ganha o domínio sobre o
indivíduo .(O ‘kosmos’ vem a constituir um superego sobre
os próprios indivíduos” (Theology ofthe New Testament 1,
Londres, p. 256). Isso, com certeza, vale também do
Pecado porque se trata da mesma realidade.
Responsabilidade humana
100
pecado” para descrever essas decisões aponta nessa
lireção, como o faz sua referência à ira de Deus (Rm 1,18;
,,22; Cl 3,6). Essa ira é provocada por “transgressões”. Os
uileus transgridem a lei explícita de Moisés, e os gentios
rnnsgridem a lei escrita em seus corações (Rm 2,12-15).
duo, portanto, “vasos de ira feitos para a destruição” (Rm
,,22). Este tipo de linguagem presume culpabilidade, que é
• correlativo de responsabilidade. Só os que são verdadeira-
neiile responsáveis podem ser considerados culpados.
- Responsabilidade, porém, implicaliberdade de esco-
lin. Os “que fazem o mal” (Rm 2,9) podem ser culpados
ipenas se são livres para fazer o bem. Tocamos aí no nó do
»roblema porque, pára Paulo, os que não se entregaram a
‘l isto na fé não são livres; eles estão “escravizados” pelo
’ecado que “reina” sobre eles. Paulo insiste muitas vezes
•ui que só os que estão “em Cristo” são livres/p que isso
i igni fica é que só os crentes estão em condições de escolher
di’l ivamente o bem/A lógica da perspectiva de Paulo é
pie todos os outros são incapazes de escolher o bem. É
'iisa, de mais a mais, a única conseqüência que se pode
irar do elemento-chave de sua teologia, a saber, que a
(Utenticidade é possível somente por Cristo. A raça hu-
niina é justificada somente pela fé (Rm 1,16 e passim), e
liiltinann percebeu perfeitamente a ênfase de Paulo ao
'iicrever que “é somente como alguém que é justo diante
lo Deus que o homem é o que deve e pode ser” (Existence
iiid Faith, Londres, 1964, p. 178).
Sendo assim, temos em Paulo duas linhas de pensa-
ilento que não convergem e que de fato contradizem-se
niituamente. Numa série de textos, os seres humanos
pie pertencem ao “mundo” são considerados culpáveis, ao
iiikso que numa segunda série de textos está claro que
•les não podem ser considerados culpáveis porque não são
Ivres.
No sentido de definir o problema mais precisamente,
finos de fazer por um momento uma digressão para
ixiiminar a noção de responsabilidade moral. A distinção
lf I leidegger entre possibilidade ontológica e possibilida-
101
de ôntica é ai de grande utilidade. Uma possibilidade
ontológica é a que é dada com um tipo particular de
natureza. Assim, por exemplo, pensamento racional é
uma possibilidade ontológica para os humanos, mas não
para os animais. Igualmente, vôos sem ajuda é possibili
dade ontológica para pássaros, mas não para humanos.
Possibilidade ontológica não passa de outro nome para
possibilidade teórica. Refere-se ao que é teoricamente
possível para dada natureza, referindo-se assim ao ser
como tal. Possibilidade ôntica, por outro lado, refere-se ao
ser em determinada situação e em circunstâncias espe-
cíficasT/iObviamente, possibilidades ontológica e ôntica.
estão estreitamente conexas. Nada que seja ontolo- .
gicamente impossível pode ser possibilidade ôntica. Ao
passo que o que é ontologicamente possível pode ser.
ònticamente impossível devido a circunstâncias impostas.
ou escolhidas. Assim, permanecendo teoricamente possí
vel, o pensamento racional pode se tornar ònticamente
impossível para um indivíduo particular por causa de
graves deficiências cerebrais. Tal acidente torna o pen
samento racional realmente impossível. Escolhas prévias
podem também limitar a realização ôntica de uma pos
sibilidade ontológica. E ònticamente impossível para o
orador num comício público tomar banho lá e então. Será
realmente possível somente quando voltar para casa.
Liberdade c possibilidade ontológica para todos os
seres humanos. Está inserida na própria estrutura de sua
nãt5fgzã7~E~ãlgo que nunca pode se tirar sem destruir a
natureza humana. A privação da liberdade, portanto,
ocorreino nível ôritico da existência real^odos os seres
humãnóósâó teóricamente livres, mas na prática alguns
não o são. Liberdade real é liberdade ôntica, e os indiví
duos podem ser privados dela somente através de circuns
tâncias que tornam impossíveis escolhas genuínas. Tais
limitações podem ser físicas, como no caso dos que estão
no cárcere. Todas as suas decisões são tomadas para eles.
As limitações podem também ser econômicas, como no
caso dos que são tão pobres que não têm nenhuma escolha.
102
Em nossa compreensão, responsabilidade e culpabi
lidade estão relacionadas, não à liberdade ontológica que
t> dada com a natureza humana, mas à liberdade ôntica.
Tome-se, por exemplo, a situação de urn homem na prisão
que, olhando para fora pelas grades, vê um sádico perverso
molestando uma criança. Ele é moralmente obrigado a ir
o in socorro da criança. Poderá ser culpado por não fazê-lo?
< Hiviamente que não, porque não possui nenhuma liber-
d 11 de para agir desta forma. Doença grave fornece exemplo
paralelo. Um paralítico não pode ser tido como responsável
por nenhuma falha em cumprir uma obrigação que envol
ve movimentqCfEm ambas essas situações, a realidade da
liberdade estaaestruída por circunstancias e, em conse-
qnôncíãq não sepode imputar culpabilidade.JS
Escolhemos esses exemplos deliberadamente a fim
de aguçarem nossa percepção da situação da humanidade
que Paulo tinha em mente, e a fim de evitar possível
equivocação. Paulo não estava interessado em liberdade
de pensamento, isto é, aquilo que alguns autores designam
"liberdade interior”. Isso não passa da liberdade de pen-
Har idealisticamente sobre o que pode ser. Interessava-se
pela translação do pensamento a ação, pela vivência de
decisão autêntica. Como vimos ao discutir Rm 7,14-24, ele
i \stava inteiramente propenso a conceder que aqueles que
não conheciam a Cristo podiam ter percepção da verdade,
mas era-lhe igualmente claro que eram incapazes de agir
baseando-se naquela intuição: “Eu posso querer o que é
certo, mas eu não posso fazê-lo” (Rm 7,18)f\JPaulo não
podia culpar os gentios por negligenciar a possibilidade de
ConhgCêr~ãTJeus através das coisas criadas por ele (Rm
1,20), se bem que alguns tivessem chegado a tal conhe-
103
mas também para o grego” (Rm 2,9-10). Nisso, com certe
za, ele está em completa harmonia com o Antigo Testa
mento, para o qual o único conhecimento de Deus que tem
algum valor era o que se desdobrava em obediência, e com
o ensino de Jesus que disse: “Que vos parece? Um homem
tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: ‘Filho,
vai trabalhar hoje na vinha’. Ele respondeu: ‘Não quero’;
mas depois, reconsiderando sua atitude, foi. Dirigindo-se
ao segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: ‘Eu irei,
senhor’; mas não foi. Qual dos dois realizou a vontade do
pai? responderam-lhe: ‘O primeiro’”(Mt 21,28-31)/’Numa
visão de autenticidade centrada na criatividade, so ações
contam. Para Paulo, os que não conheciam a Cristo não
podiam escolher um padrão de comportamento em que
sua criatividade fosse desdobrada. A pressão do pecado
era demasiado grande para permiti-lo. Limitando a li
berdade, o Pecado também destruía a responsabilidade e
a culpabilidade. '
Um dilema
104
que a humanidade existia em estado contrário ao querido
pelo Criador. Até esta altura, pois, a situação governada
pelo Pecado poderia ser descrita por situação de responsa
bilidade genérica e culpabilidade genérica. Parece bas
tante provável que Paulo era também influenciado, talvez
inconscientemente, pela atitude do seu povo para com os
nno-judeusque por eles eram presumivelmente deliberada
e maliciosamente perversos em sua recusa de aceitar a luz
da lei. “Todos os habitantes da terra sabiam quando
estavam transgredindo, mas de Minha Lei eles não sabiam
em razão de seu orgulho” (2Baruc 48,40; cf. 4 Esdras
7,24.72-73)fA combinação destes dois aspectos explicaria
por que ele teria dado a impressão de que indivíduos eram
pessoalmente responsáveis.;,
A afirmação de que indivíduos são pessoalmente
responsáveis não é tão essencial à teologia de Paulo como
a afirmação de que os indivíduos não podem ser pessoal-
incnte responsáveis por seu estado inautêntico. Daí, em
resposta à segunda questão devemos seguir a última
linha. A razão fundamental para isso é que, para Paulo,
Cristo é a chave da autenticidade. Se os que não conhecem
Cristo são livres para escolher a autenticidade sem ne
nhuma referência a ele, então Cristo não é necessário
para a salvaçãcLtSe_CristO_é a-fonte_da autenticidade,
então os que não o conhecem não têm nenhuma escolha.
Sua liberdade ontológica não pode florescer em liberdade,
ontica sem ele. Dizer que pode é equivalente a dizer que
a justificação é possível sem a fé. Reter que os que estão
sem Cristo são “pecadores” no sentido estrito consiste em
destruir o próprio alicerce da teologia paulina.ÇA
Mas, pode-se objetar, será que a recusa de considerar
a humanidade decaída como “pecadores” não destruiria
outro elemento da teologia paulina, a saber, o caráter
sacrifical da morte dc Cristo? Devemos ser bastante
cuidadosos aqui. Paulo, de fato, diz que “Cristo morreu
por nossos pecados” (ICor 15,3), e que ele foi “exposto
como expiação por seu sangue” (Rm 4,25). Isso, e as
muitas alusões ao “sangue” de Cristo (Rm 3,25; 5,9; ICor
105
10,16; 11,27; Cl 1,20), é certamente linguagem sacrifical
Mas Paulo só uma vez apresenta explicitamente a morte
de Cristo como sacrifício: “Nossa Páscoa, Cristo, foi
sacrificada” (ICor 5,7). A primeira vista, essa linguagem
pareceria insinuar a culpabilidade de indivíduos, mas
este é precisamente o ponto que devemos pisar com
cuidado, não dando por concedido que sabemos o que
Paulo quer dizer.
ÔCLprimeiro ponto a se notar é que Paulo faz muitc
pouco uso de idéias sacrificais relativas a Cristo^xjsso é
surpreendente por causa de seus antecedentes judaicos
porque, antes da destruição do templo, o sacrifício era c
elemento central unificador na vida judaica. Ter-se-ia
esperado que Paulo fizesse uso bastante maior de uma
categoria com a qual estava tão familiarizado. Daí, se nãc
fez assim, pode somente ser porque estava consciente de
que a categoria do sacrifício não era inteiramente
satisfatória para esclarecer o pleno significado da morte
de Cristo.
/'Em segundo lugarLnote-se que na mão de Paulo a
noção judaica de sacrifício passara por transformação.jdá
tivemos ocasião de notar que a morte de Cristo foi vo
luntária. Para Paulo, ele não devia morrer. Daí, se bem
que Paulo não tenha pessoalmente formulado a carta aos
Efésios, ela traduz o seu pensamento exatamente ac
escrever: “Cristo também vos amou e se entregou por nós
a Deus como oferta e sacrifício de odor suave” (Ef 5,2).
'Jesus é tanto o ofertante como o oferecido, o sacerdote e c
sacrifícior A afirmação de que Cristo nos amou e deu-se a
' si mesmo por nós é paralela a G1 2,20, e esta, nós o vimos,
é o elemento-chave na compreensão de Paulo da morte de
Cristo.'A. idéia de sacrifício é introduzida, não por si
mesma, mas no sentido de sublinhar o valor da morte de
Cristo?Colóca-a naTsuprema categoria dos valores religi-
osos. No processo, com certeza, a tradicional compreensão
judaica de sacrifício foi rompida porque em nenhuma
circunstância no sistema judaico o sacerdote pode ser ele
próprio a vítima. Segue naturalmente que se a noção de
106
s.icrifício foi transformada, então a noção correspondente
de culpabilidade também foi modificada.
Uma vez reconhecido isso, torna-se possível referir a
noção de sacrifício de Paulo à culpabilidade genérica da
humanidade no sentido observado acima. A morte de
Cristo fez pela humanidade o que os sacrifícios da lei
fizeram pelos pecadores dentro do seu sistema. A identi
dade desta proporção explica o uso por Paulo da lingua
gem sacrifical, mas identidade proporcional não exige que
os elementos componentes sejam idênticos. “Sacrifício”
muda o seu significado quando aplicado à humanidade.
"Pecadores” são os que estão sob o domínio do Pecadqç/Da
mesma forma que o sacrifício libertava o judeu do seu
pecado, a morte de Cristo rompia os laços do Pecado que
;itavam a humanidade^
Pretender que os que estão sob o poder do Pecado não
são responsáveis por seus “pecados”, não é passar por
cima da necessidade de redenção. Os escravizados ao
Pecado, forçados que são a aceitar um falso sistema de
valores, estão em condição subumana. Carecem de liber
dade que é a dignidade da humanidade autêntica, e a
influência do Pecado é tão pervasiva de tudo que ninguém
pode escapar/Um.novo atodivino criativo foi necessário
para mudar a situação, e o canal através do qual este
poder tornou-se operativo foi a autenticidade da huma
nidade de Cristo/X) seu amor, que se concentrou em sua
morte, trouxe “vida” aonde só houvera “morte”.
Neste capítulo descobrimos que, para Paulo, a raiz e
causa da inautenticidade humana era o domínio do Peca
do. Por causa de seu estado ter-se originado em decisão
livre, a humanidade está em condição de culpabilidade
< >11jetiva; O seu modo de existência é o contrário do que o Cria
dor quis. A influência da decisão original é perpetuada de
’ forma sempre intensificada pelo falso sistema de valores da
sociedade) Agindo de conformidade com o condicionamento
que receberam, os indivíduos ratificam a desorientação de
seu “mundo”. Não são, porém, culpados porque carecem de
liberdade de escolha devido à sua escravidão ao Pecado.
107
LEITURAS SUGERIDAS
108
SER ALIENADO
109
definição que se harmoniza perfeitamente com a perspec
tiva bíblica porque, de conformidade com o Gênesis, Deus
deu à humanidade o domínio sobre o resto da criação (Gn
1,26.28; 2,19s). Toda realidade não humana, portanto,
tem caráter instrumental; está a serviço da humanidade.
Não existe para si mesma, mas para a humanidade. Isso
é óbvio no caso de instrumentos feitos para fim específico,
tais como uma caneta ou um automóvel. Mas o sol pode ser
usado para aquecer e as estrelas são usadas na navega
ção. A natureza é usada para recreação e também como
fonte de matérias-primas/iNq plano da criação, todas as
realidades não-humanas têm essencialmente valor utili-
tário. Isso, com certeza, não significa que nãõabusaremos
da realidade não-humana/jA obrigação a respeitá-la,
porém, não deriva da natureza da coisa mesma, mas do
possível uso que outros, particularmente gerações suces
sivas, podem derivar dela.
Todos os seres humanos podem tornar-se autênticos
ou inautênticos pelo tipo de decisão que tomam a respeito
das coisas. Uma decisão autêntica é a que reconhece que
uma coisa é inferior à pessoa e lhe dá o uso apropriado à
suã natureza/Uma decisão inautêntica é a que eleva a
coisa a posição de superioridade com relação à pessoa,
porque isso inverte a intenção do Criador. Se a autentici
dade no tocante às coisas se expressa em relação com o
“eu-coisa”, a inautenticidade que inverte essa relação tem
“coisa-eu”. Como instrumento, a coisa é essencialmente
meio. O seu valor utilitário é negado se ela é tratada como
fim em si mesma.,Isso ocorre quando uma coisa é desejada
por causa de si mesma, quando se torna assunto de último
interess^fAqueles que concentram todo o seu ser, por
exemplo, na aquisição de riqueza ou status social, de fato
definem-se a si mesmos em termos de coisas. Eles alienam
o seu verdadeiro “eu^formando de si mesmos parte de
uma ordem inferior de coisas. Imergem no mundo de
coisas. Percebemos aí outra faceta do modo subumano de
existência que Paulo chama de “mortè”7^\
110
Concupiscência
lll
manidade decaída, por sua^ consciência da importância
deste tema na narrativa do Êxodo, e uma de suas fases foi
chamada de “os túmulos da concupiscência, porque aí
sepultaram os que se entregaram à concupiscência” (Nm
11,34). Após evocar a experiência do Exodo, conclui:
“Essas coisas são avisos para nós, a fim de que não
cobicemos coisas más como eles cobiçaram” (ICor 10,6).
Parece provável que também era influenciado pela classi
ficação judaica dos gentios como “os que cobiçam”. Essa
idéia encontra-se no Targum palestino sobre Ex 20,17:
“Meu povo, filho de Israel, não sereis cobiçosos nem compa
nheiros e participantes dos que cobiçam”. Nesta passagem,
“os que cobiçam” são os gentios, homens decaídos por exce
lência do ponto de vista judaico, como o demonstra o texto do
Talmud babilónico: “Por que são os idólatras cobiçosos?
Porque eles não ficaram no monte Sinai. Pois, quando a
serpente veio a Eva, ela injetou concupiscência nela. Quanto
aos israelitas que ficaram no Sinai, sua concupiscência se
afastou; os idólatras que não ficaram no Sinai, sua concu
piscência não se afastou” (Schabbath 145b- 146a)/À visão
de Paulo da condição humana é inegavelmente mais
realista, mas a importância do texto é que Paulo também
identificá~“concupiscência”ZcPiiLÍdolatria (Cl 3,5).^
Além de uma nota: “Por que não preferis, antes,
padecer injustiça?” (ICor 6,7) e referências de passagem
no roubo (Rm 2,21; ICor 5,11; 6,10), Paulo não demonstra
grande interesse por bens materiais, mas as “coisas”
englobam também realidades intangíveis, como status
social (2Cor ll,21s; F1 3,4s) e conhecimento (ICor 1,22;
8,1; 2Cor 10,5; Cl 2,8), assim como também o vício de
glutão (Rm 16,18; “Seu deus é sua barriga”, F1 3,19}(Em
última análise, “concupiscência” é a afirmação de si pelo
meio das coisas (2Cor 10,8; G1 6,3) com o objetivo último,
de adquirir glória humana (ITs 2,6; G1 l,10AÉ servir “à
criatura anféFqueaoGriador”(Rní 4r,25) e, assim, equiva
lente de idolatria. Antítese exata é fornecida pela afirma
ção de Paulo de sua própria atitude: “Eu não busco o que
é vosso, mas vós” (2Cor 12,14).
112
A expressão concreta da “concupiscência” é “ansieda
de” ou “cuidado pelas coisas do mundo” (ICor 7,33). A
idéia subjacente é expressa na afirmação do sermão da
montanha: “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde
: i traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam
e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde
nem a traça nem o caruncho corroem e onde os ladrões não
arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí
estará também o teu coração” (Mt 6,19-21)/Esta “preo
cupação”-tem suas raízes no “medo” (Rm 8,15) que é
ocasionado pela concupiscência instintiva de que algo
ocorreu de errado com a situação humana e pelo reconhe
cimento de que o que se possui pode ser perdido.'A
“preocupação” desta forma é estar entregue às coisas
como fim de si mesmas; todo o ser de uma pessoa está
localizado nelas. Daí, as exortações de Paulo: “Quero ver-
vos livres de cuidados” (ICor 7,32) e: “Não vos inquieteis
com nada” (F1 4,6).
113
Pecado. No caso dos colossenses, estavam em perigo de se
tornar parte de um mundo alienado de ser porque suas
mentes estavam fixas, não “nas coisas do alto”, e sim nas
“coisas da terra” (Cl 3,2). Paulo não se refere à atenção aos
assuntos humanos que é essencial à vida do dia-a-dia. Sob
essas afirmações gerais subjaz referência a problema
específico de perene atualidade:
114
Entregavam-se uma vez mais à inautenticidade. Sua
atitude se tornava a atitude dos que estavam sob o poder
do Pecado.
Obediência d lei
115
Paulo a essa atitude é esboçada na carta aos Gálatas e
completamente articulada na carta aos Romanos e, à
primeira vista, sua posição parece ser autocontraditória.
Por um lado, o respeito pela lei é evidente não só em
sua afirmação formal segundo a qual “tudo o que se
escreveu no passado é para nosso ensinamento que foi
escrito, a fim de que pela perseverança e consolação que
nos proporcionam as Escrituras tenhamos a esperança”
(Rm 15,4; cf. lCor 10,6), mas também enquanto emprega
suas diretivas em seu próprio ensinamento ético (por
exemplo Rm 7,7; 12,19s; 13,9; lCor 9,9; 2Cor 8,15; G1
5,14). Afirma inequivocamente que “a lei é santa e o
mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12) porque
prometia vida (Rm 7,10). Mas, por outro lado, pode qua
lificar a lei como “lei de pecado e morte" (Rm 8,2), e como
tirano que mantém a humanidade cativa (Rm 7,6).
A resolução desta tensão sugere-a o próprio Paulo ao
escrever: “Verificou-se assim que o preceito, dado para a
vida, produziu a morte” (Rm 7,10). A implicação deste
versículo é que a finalidade original da lei foi pervertida.
Bultmann nota: “Paulo não critica a lei do ponto de vista
de seu conteúdo, mas com relação ao seu significado para
o homem” (Existence and Faith, Londres, 1964, p. 159).
Em outras palavras, a objeção de Paulo à lei baseava-se
não no que ela dizia, e sim no que os judeus dela fizeram.
Sua crítica refere-se à atitude humana para com a lei.lA
A importância da lei para os judeus não carece de
nenhuma ênfase, mas pode-se admiti-lo sem estar intei
ramente consciente da reverência em que era tida. A
apreciação deste ponto é essencial para captar a posição
de Paulo acuradamente, e se ilustra bem por uma citação
do artigo “Torah” da recente enciclopédia judaica:
116
subiu ao céu para pegar a Torah dos anjos (Sanh. 89a, et al.)
Numa das mais antigas afirmações, Simeão, o Justo, ensinava
que (o estudo de) a Torah é uma das três coisas pelas quais o
mundo é sustentado (Avot 1,2). Eleazarben Shammua disse: “Se
não é pela Torah, céu e terra não continuariam existindo” (Pes.
68b; Ned. 32a). Foi calculado que “o mundo em sua inteireza é
somente 1/3200 da Torah” (Er. 21a; cf. TJ, Pe’ah 1,1,15d). Dizia-
se que o próprio Deus estuda a Torah diariamente (Av. Zar. 3b,
et al.).
117
permanente e imutável à vontade de Deus e a seu propó
sito para a humanidade. O próprio Paulo articula essa
atitude:
118
criatividade. Mas a complexidade da realidade era bas
tante aterradora, o fardo da responsabilidade bastante
grande, e em face deste medo o pormenor concreto e
preciso da lei fornecia refúgio e sensação de segurança. Os
humanos podiam afastar o olhar da realidade e focalizá-
lo exclusivamente na lei. Pela conseqüente sensação de
alívio pagaram caro.^A lei fornecia refugio somente^com
prando previamente o direito de decisão. Por reverência
exagerada, a obrigação humana de fazer escolhas genuí
nas foi cedida à lei. A lei decidia e a criatura se sujeitava^
Algo mais que submissão é necessário para a auten
ticidade, como os psicólogos de crianças todos reconhecem.
Os pais podem estagnar irremediavelmente a evolução da
criança para a maturidade, tornando todas as decisões
reais, tirando todo o risco da vida. A imagem não é
irrelevante, porque Paulo descreve, de fato, os judeus
como crianças sob “tutoria” da lei (G1 3,24). A lei visava
supervisionar a conduta, guiar para a maturidade na
liberdade, mas, por causa da atitude dos judeus para com
ela, ela os manteve e guardou sob restrição (G1 3,23). O
excessivo respeito manifestado em obediência absoluta
destrói a liberdade que é a condição indispensável da
autenticidade, como o expressa com clareza Tomás de
Aquino em seu comentário sobre 2Cor 3,18:
Quem quer que aja com o seu próprio alvitre age livremente, e
quem quer que seja impelido por outro não é livre. Aquele que
evita o mal, não porque é mal, mas porque um preceito do Senhor
o proíbe, não é livre. Por outro lado, o que evita o mal porque é mal
é livre.
119
como irmão e mandá-lo de volta a Paulo. Trata-se, pois, da
realização de ato de caridade. O problema é, pois: por que
Paulo se recusa a mandar tal ato? A resposta fornece-a o
v. 14:“... nada quis fazer sem teu consentimento, para que
tua boa ação não fosse como que forçada, mas espontânea”.
Em outros termos, o interesse de Paulo pela autenticidade
cie Filemon fê-lo recusar tomar uma decisão que devia
ser deste último, e isso é o que teria acontecido se desse
ordem que Filemon teria entendido como preceito obriga-
tqrioU
O caso de Filemon não é caso isolado, e a consistência
da atitude de Paulo manifesta-se no caso da coleta para os
pobres de Jerusalém. Depois de cumprimentar os corintios,
diz-lhes bruscamente: “Procurai também distinguir-vos
nesta obra de generosidade” (2Cor 8,7). O verbo tem a
força de imperativo; a forma da afirmação é a de comando.
Mas no próprio versículo seguinte apressa-se em acres
centar: “Não digo isso para vos impor uma ordem”. Sua
razão? “Cada um dê como dispôs em seu coração, sem pena
nem constrangimento” (2Cor 9,7).
Dada essa perspectiva é bem evidente por que as
obras da lei são sem valor. Porque os judeus acreditavam
que eram obrigados a agir como a lei mandava, agiam por
compulsão/A autenticidade, ao invés, deve ser livremente
escolhida. Não se pode conseguir de qualquer outra ma-
neira. Por süa profissão de reverência pela lei, os judeus
afastavam de si mesmos o desafio de sua humanidade.
Davam ã-lèi uma autoridade que ajudava e encorajava
sua fuga da responsabilidade e, assim, inevitavelmente,
“o preceito, dado para a vida, produziu a morte” (Rm 7,10).
Uma consequência paradoxal da reverência exagera
da pela lei é que ela era arrastada para a órbita da
“concupiscência”. Era desejada, não para o que devia ser
em relação ao Criador, mas para o que parecia ser em
relação às criaturas, a saber, como algo em que eles po
diam “repousar” (G1 3,10) e fazê-los “vivos” (G13,21). Sua
existência mesma encorajava as criaturas a presumir
certa autonomia sobre e em face do Criador e, assim,
120
“gloriar-se” (Rm 2,23). Estavam condicionados a formular
o seu próprio conceito de autenticidade em preferência ao
do Criador (Rm 10,3). A conseqüência era a situação
trágica que Paulo esboça em Rm 7,14-24 (cf. p. 90).
Não é difícil captar os matizes de ênfase com que
Paulo proclama: “Cristo é a finalidade da lei, para que
todo o que tiver fé seja justificado” (Rm 10,4)qA autenti
cidade da humanidade de Cristo põe fim ao período de
esforços confusos quando todo esforço rumo acima só
conseguia afundar ainda mais a humanidade na lama. A
via para a autenticidade, para ser como Deus pretendeu,
passa através da decisão livre da fé inaugurando uma
existência modelada na de Cristo (ICor 11,1). H
Aplicações contemporâneas
121
o não-cumprimento, e sanções são reforçadas contra os
que não se conformam. No fim, a lei assume autonomia
definida sobre e contra os que ela visava servir, tornando-
se assim meio de escapar, para os demasiadamente pre
guiçosos, de pensar por si mesmosf/Estão satisfeitos de
pensar o seu “dever” e recusam ver de perto a situação em
que devem reagir criativamente. Õ costume estabelecido,
não é necessário dizer, tem a força de lei neste tipo de
desenvolvimento, íf
A situação atual no domínio da lei civil foi finalmente
descrita por Peter G. Hodgson:
122
boa produz inautenticidade. O consenso comum sugeriria
que as leis da Igreja são leis boas, e é precisamente aí que
locamos o cerne do problema.
Ninguém negará que a proibição do assassínio é uma
boa lei. Proíbe algo que é incompatível com a criatividade
positiva, que é a essência da autenticidade. 0 que dizer
então do caso dos cidadãos alemães que conspiraram para
assassinar Hitler? Os que crêem na absoluta supremacia
da lei dizem que erraram. Os que estão mais entrosados
com a lição de vida de Cristo reconhecê-lo-ão como foi, um
esforço de abraçara responsabilidade. A história passada
fornece, porém, apenas exemplos pálidos e, neste caso
particular, a retidão da tentativa dos conspiradores pro
clamou-se amplamente como evidente. Mas seria Idi
Amin muito diferente de Hitler^Poderíamos ser tentados
a usar o mandamento “não matarás” como escusa para
evitar a responsabilidade? /»
O fim da lei que manda participar da missa aos
domingos certamente c bom. Convem plenamente que as
criaturas adorem o seu Criador regularmente. Mas o que
dizer da situação dos que vão à missa no domingo pura e
simplesmente porque é mandado? Nessa hipótese, vão
exclusivamente pelo medo de cometer pecado. Não só
nada auferem disso, mas também terminam frustrados e
entediados, de sorte que dificilmente são capazes de
palavras de boas maneiras ao saírem. Pense-se nos emo
cionalmente comprometidos com a liturgia latina pré-
Vaticano II, que se viram impelidos a uma missa de
massas porque é a única a atingir o povo. Acaso diferem
dos colossenses e dos gálatas? Paulo certamente respon
deria negativamente£Ê’ua_preocupação com uma “coisa”
condena-os à inautenticidade. (\
A bondade dê outrãsTeis da Igreja está mais exposta
a questões, como, por exemplo, a lei que restringe a
ordenação a homens. Mas o assunto mais fundamental
refere-se ao papel da lei positiva dentro de uma comuni
dade autêntica, que, para Paulo, necessariamente é uma
comunidade cristã. Pareceria ser inferência lógica da
123
posição de Paulo que a Igreja, fazendo legislação obriga
tória, contribuiria para a inautenticidade de seus mem
bros. John Knox percebeu bem a perspectiva paulina:
Mas — é de se perguntar— será que a rejeição por parte de Paulo
como vinculando os fiéis é tão radical assim? Não seria a “lei”, que
Í
ele rejeita, simplesmente um código externo, um catálogo de “tu
deves” e “tu não deves”, em particular o código do judaísmo? O
que possa parecer que esteja implicado em alguns de seus
ensinamentos práticos, estou seguro de que na sua “teoria” da
vida cristã Paulo vai muito mais longe. Ainda que, sem dúvida,
amiúde esteja se referindo à lei judaica, não se pode negar a
presença — muitas vezes, senão sempre — de uma inferência
mais radical e mais inclusiva... A lei, como tal, não mais vale
para o cristão {The Ethic of Jesus in the Teaching of the Church,
Londres, 1962, p. 99).
124
LEITURAS SUGERIDAS
Sunders, E. P., Paulo, a Lei e o povo judeu, Paulus, São Paulo, 1990.
Itullmann, R., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965,
§ 27 (The Law).
Itcicke, B., “The Law and This World according to Pau”, em Journal
of Biblical Literature 70 (1951), 259-276.
Sehl ier, IL, Principalities and Powers in the New Testament, Herder,
h'lihurgo, 1961.
Prnnfield, C. E. B., “St Paul and the Law”, em Scottish Journal of
Theology 17 (1964), 43-68.
h'ltzinyer, J. A., “Saint Paul and the Law”, em The Jurist, 1967,18-36.
Itruce, F. F., “Paul and the Law of Moses”, em Bulletin of the John
Uuyfands Library 57 (1974-75), 259-79.
Sunders, E. P., Paul and Palestinian Judaism, Fortress, Filadélfia,
cup. 5, § 4.
125
ISOLAMENTO EGOCÊNTRICO
127
perde a originalidade do indivíduo no comum da multi
dão. Ninguém deixará de reconhecer a exatidão da aná
lise de Heidegger das principais características da exis
tência contemporânea, assim condensadas por J.
Macquarrie:
128
armamentista. Os indivíduos não são seres em si mesmos,
mas facetas do multiforme “eles”. Foi deste ponto de vista
que Sartre pôde proclamar que o “Inferno está no alô”
(HeTtisiñKello}.
Era inevitável que o conceito existencialista de au
tenticidade fosse construído em oposição ao padrão geral.
Se a pessoa inautêntica é aquela que, a fim de se aliviar
da responsabilidade, perde-se na multidão, a pessoa au
têntica, proclama-se, é aquela que emerge da multidão,
que se afasta da massa por ter a coragem de ser diferente.
A reação à despersonalização é enfatizar o individualis
mo. Daí, o fenômeno do “drop” de que o próprio Heidegger
fornece um exemplo clássico em sua retirada ao isolamen
to na Floresta Negra. A não-conformidade das décadas
recentes só pode se estender como busca de autenticidade.
Mas existe apenas número limitado de ser diferente da
massa, e muito depressa o esforço de se distinguir a si
mesmo torna-se objeto da tirania de uma espécie diferen
te de conformismo. Chegou-se à conclusão de que era
impossível separar-se da multidão, a não ser aliando-se
com outros que também rejeitaram o sistema de valores
da sociedade contemporánea¿Apressao da sociedade era
t ão grande a ponto de produzir o paradoxo de que alguém
sqjodia~ser <<desigual”~sêndo “igual”. Existe menos tole
rância dentro de grupos não-conformistas do que na
sociedadècòmo um todo.
A experiência, pois, ilumina a precariedade de um
conceito de autenticidade baseado em radical individua
lismo. Deveria também nos forçar a questionar se a
análise existencialista é de fato descrição acurada da
condição humana. O que impressiona os existencialistas
é a homogeneidade da massa, mas será realmente o
retrato todo? Paulo certamente não estaria de acordo.
Como vimos, ele tinha conceito muito claro de autentici
dade enquanto enraizado na criatividade. Fato que impli
ca relacionamento positivo com os outros e, sendo assim,
onde os existencialistas viam só coletivismo, ele via a falta
de comunidade. Em decorrência, estava muito mais cons
129
ciente do que eles das divisões dentro da humanidade,
considerando essas divisões como os sinais mais óbvios da
inautenticidade.
Blocos opostos
130
.’IK), ou então os descreve como sujeitos a um rio de fogo
que “os queima, de tal forma que de repente nada mais se
pode ver da multidão inumerável a não ser apenas pó de
cinzas e cheiro de fumaça” (13,11). Nem todos os autores
do período eram tão venenosos, mas até o mais benigno
viu a salvação dos gentios apenas em termos de peregri
nação penitente como a descrita em Is 60,3: “As nações
caminharão na tua luz e os reis, no clarão do teu sol
nascente”. ^Assim, por exemplo, lemos nos oráculos
uibilinos:
131
faziam, juramento de não ter boa vontade alguma para
qualquer não-judeu (2,121). No seu templo, adoravam a
cabeça de um burro (2,80) e praticavam ritos abomináveis:
“Teriam sequestrado um estrangeiro grego, teriam-no
engordado por um ano e depois o teriam matado num
madeiro sacrificando o seu corpo com seu ritual costumeiro,
teriam comido sua carne e, imolando o grego, teriam
jurado hostilidade aos gregos” (2,95).
TTrata-se, dos dois lados, de atitudes genéricas que só.
de quando em vez explodiam em violência,\Mas é precisa-
'mente isso que é importante para entender a visão global
de Paulo. Que os indivíduos judeus e gentios viviam em
mútua harmonia e compreensão é irrelevante ao quadro
geral, porque em tempos de crise não se impedia que
passassem à atitude mais fundamental de hostilidade.
A mesma observação vale também para a oposição
entre varão e mulher. E inegável que em muitos aspectos
judeus e gregos tratavam as mulheres como plenamente
iguais, mas seus sistemas legais viam as mulheres como
subordinadas e inferiores ao varão e a sujeitava a nume
rosas desqualificações religiosas e sociais. Se ela era
normalmente tratada com cortesia e respeito, essa admis
são de inferioridade podia a tempos aflorar em amargo
cinismo.(A observação famosa de Demóstenes: “As compa-.
nheiras conservamo-las por causa do prazer; as concubinas
para o cuidado diário de nossas pessoas; as esposas para
nos gerar filhos legítimos e ser as guardiãs confiáveis de
nossos lares”, só podia ser feita numa sociedade que
considerava que as mulheres não tinham mais que valor
utilitário^Os rabis temiam as mulheres como distração e
fonte de tentação. Eram fundamentalmente inconfiáveis
(Shab. 33b) e dotadas de quatro características: concu
piscência, curiosidade, preguiça e ciúme (Gen. Rabba 45,
5).jfilop, que tinha um pé em ambos os campos, escreveu:
“O progresso nada mais é do que deixar o gênero feminino
trocando-o pelo masculino, pois o gênero feminino é ma
terial, passivo, corpóreo e perceptivo pelos sentidos, ao
passo que o masculino é ativo, racional, incorpóreo e mais
132
semelhante à mente e ao pensamento” (Quaest, in Ex 1,8).
Sua ênfase é explicar a diferença entre conhecimento
sensitivo e inteligência, mas a alegoria que emprega para
esclarecer a questão é indicação clara da posição da
mulher na sociedade.
■ A posição inferior da mulher estava fundada em
radical misogenia, como se mostra em seu sumário de
antigos provérbios por C. E. Carlstonf •
133
Quando somos jovens, na casa de nosso pai, penso que vivemos
a mais doce vida de todas, pois a ignorância sempre nos traz
entretidas prazeirosamente. Mas quando atingimos a idade
madura e sabemos mais, somos lançadas das portas da casa e
vendidas, longe dos deuses de nossos avós e nossos pais, algumas
para casas de estrangeiros, outras para casas de bárbaros,
algumas para casas de estranhos e outras para casas que me
recem censura. E nesta sorte, depois que uma única noite nos
uniu, temos que aquiescer e pensar que tudo está bem (Tereus
fragm. 524).
134
Etiópia. Neste caso, o contraste seria entre povos do norte
e do sul, ou mesmo entre brancos e negros£§eja o que for,
"bárbaro” era usado tanto para judeus como para gregos
para significar “o de fora”, ou seja, todo aquele cuja
diferença em linguagem, cultura e religião marcava-o
como infeliz inferior. bOs citas, por outro lado, era um
grupo racial específico localizado ao redor do mar Negro,
cuja crueza, cujos excessos e cuja ferocidade faziam deles
o arquétipo dos “bárbaros”(\\mbosostermos, pois, im
plicam um desprezo cruelmente zombeteiro/»Mesmo se
coubéssemos o que os citas pensavam dos de fora, certa
mente seria impossível imprimi-lo.
Paulo com grande realismo viu o seu mundo frag
mentado em blocos opostos. Era um monte de esterco de
liunegante ressentimento em que as moscas do medo, as
larvas da desconfiança e os vermes da inveja prolifera
vam.'Não seria difícil transpor essas categorias para
caberem em nossa situaçãopO mesmo tipo de corrosiva má
vontade se vê entre as nações desenvolvidas e o Terceiro
Mundo, entre os consumidores e produtores, entre os que
I cm e os que não têm, entre as liberacionistas das mulheres
e os machos chauvinistas. Neste século, as guerras nunca
Coram tão numerosas e tão destrutivas.
/ndivíduos isolados
135
Todas coincidem até certa medida e, sendo assim, a
maneira mais fácil de começar é esboçando uma simples
lista alfabética:
136
35. Roubo (lCor)
36. Sectarismo (Gl)
37. Sem amor (Rm)
38. Sem misericórdia (Rm)
39. Soberba (Rm)
40. Trapaceiro (lCor)
41. Viciosidade (2Cor, Gl, Cl).
137
rância, falta de sensibilidade, covardia, pessimismo, ins
tabilidade etc. Essa diferença é somente de ênfase, mas é
extremamente importante para a correta compreensão
da perspectiva dc Paulo. Os contemporâneos de Paulo não
eram conscientes da natureza social do homem. Tanto a
tradição grega da responsabilidade cívica como a convicção
judaica da solidariedade de sua raça garantiam que
dessem alguma proeminência aos vícios sociais. O indi
víduo, não obstante, era primário. Filón, por exemplo,
apresenta sua lista elaborada de 160 vícios (em grande
maioria são individualísticos), como as características de
“quem ama o Prazer” {De sacrificiis Abelis et Caini, n. 32).
Estava influenciado pela tradição estoica, que também
estava na raiz da filosofia moral popular do período. Os
estoicos criam que a virtude está baseada no conhecimento.
Sendo assim, só os sábios podem ser virtuosos. As quatro
virtudes cardeais caracterizam o sábio, e destas Zenão, o
fundador da Stoá, desenvolveu quatro vícios cardeais com
suas exatas contrapartidas, a saber, “insensatez”, “ex
cesso”, “injustiça” e “timidez”/Édificilmenteinesperado,
portanto, que o indivíduo não estivesse no centro do
quadro. A sociedade entrava na cena somente porque o
indivíduo era forçado a interagir com ela, e a crença era
que a sociedade melhoraria à medida que os indivíduos se
tornavam progressivamente mais virtuosos/''
Paulo não era tão ingênuo, porque estava extrema
mente consciente do poder do falso sistema de valores
(“Pecado”) hostil à autenticidade. Sua visão da natureza
autêntica da humanidade fê-lo muito mais sensível que os
existencialistas aos fatores que inibem genuína comuni
cação. Suas “listas de vícios” evidenciam que via o mundo
como o lugar onde os indivíduos separavam-se uns dos
outros por atitudes que tornavam a comunidade impos
sível. O seu catálogo sugere não só falha em reconhecer o
outro, mas também repulsa ativa do outro. É a negação da
relação “eu-tu”.
(Mjma vez mais, existe estreita correspondência entre
a visão de Paulo e uma avaliação realística dasociedade
138
contemporânea. A solidão é endêmica. O medo legítimo de
ser usado ou abusado produz o medo do envolvimentojyks
pessoas podem ser roubadas nas ruas à plena luz do dia e
ninguém defendê-las-á. As pessoas recusam-se a fazer
amigos com os moradores da casa ou apartamento próximo
porque pode haver exigências que não querem encontrar.
As portas sempre estão trancadas, e preparações para um
feriado são conduzidas com trepidação. O miasma da
suspeita está em toda parte.
139
I
LEITURAS SUGERIDAS
140
CONCLUSÃO
141
vidual. Os vários blocos herdaram atitudes antagônicas
que os forçaram a se separarem e, dentro destes blocos, os
indivíduos eram sujeitados a condicionamento que tornou
impossível qualquer coisa que fosse além do coletivismo
funcional. O conseqüente isolamento fez os indivíduos
cada vez mais vulneráveis à orientação inautêntica da
sociedade e, como resultado, eles tornaram-se os centros
de seus próprios mundos privados constituídos pelo visí
vel e tangível. Porque sentiram que podiam controlar e
dominar “coisas”, deram-se rédeas soltas à sua “concupis
cência”. Isso permitiu que as coisas ganhassem o predomí
nio e assim intensificassem a alienação do eu inautêntico.
Paradoxalmente, porém, também isso trouxe escravidão
à criação material (Rm 8,21), porque a ordem da natureza
foi distorcida (cf. Lv 26,33-35)JÀ vaidade e corrupção da
criação material é a conseqüência da Morte da humani
dade. i.
f\O conceito que o Apóstolo tem, portanto, da
inautenticidade é altamente unificada, e o esboço acima
tem o efeito de assinalar o Pecado como o elemento mais
fundamental. Uma vez que a humanidade for livre do
Pecado, seguirá naturalmente sua libertação da Morte e
da Lei, assim como também a libertação das coisas cria-
das. Este ponto focaliza nossa atenção na questão-chave:
como se realiza a libertação do Pecado? E voltamo-nos,
assim, à visão que Paulo tem da existência autêntica.^'
142
III PARTE
A COMUNIDADE
O DOM DE ESCOLHA
145
há nenhuma razão para lutar, a fim de sair da inau-
tenticidade. Fornecendo uma aparência de significado,
uma ilusão pelo menos tem valor e ela não será abando
nada até que um valor positivo alternativo seja proposto.
Para o filósofo, a aceitação do desespero pode parecer
gesto heróico que separa a pessoa do rebanho, mas ao
senso comum ordinário surge como nada mais que
dramatismo insensato. Em última análise, os existen
cialistas se vêem forçados a confessar sua impotência em
tratar com a situação. A implicação de suas “soluções” é
que a condição humana é irremediável.
Paulo haveria de concordar, mas só até esta altura,
porque sua aceitação da relação Criador-criatura permi
tiu-lhe fazer distinção que eles não podiam imaginarzfcle
viu a situação humana como irremediável a partir de
dentro e nao a partir de fora. Dai, frisa consistentemente
que a autenticidade torna-se possível somente por inter
venção divina como, por exemplo: “Estáveis mortos...
Deus vos vivificou” (Cl 2,13)¿
146
pode ser escolhida. A criatura humana, se é que deve ser
verdadeira para com a própria natureza, deve decidir pela
autenticidade.
. No estado de “morte”, como vimos, o gênero humano
não pode escolher. Sua liberdade é anulada pela escravidão
ao Pecãdó7“A pressão insuperável e inevitável do falso
sistema de valores da sociedade arrasta todos a um
padrão inautêntico de comportamento. A autenticidade
permanece possibilidade ontológica, mas ao nível da vida
da realidade não pode ser escolhida realmente. Daí, a
parte de Deus na transição da “morte” à “vida” consiste em
restaurar a autenticidade ao estado de uma real opção.
Em última análise, a salvação consiste no dom da escolha.
O primeiro passo de Deus no processo consiste em
mandar o seu Filho: “Deus fez o que a lei enfraquecida pela
carne não podia fazer: enviando o seu próprio Filho na
semelhança da carne pecadora e em vista do pecado,
condenou o pecado na carne” (Rm 8,3^jA despeito dessa
real integração na situação histórica (“na semelhança da
carne pecadora”), Cristo não apenas refletiu o que era o
resto da humanidade. Manifestou o que a humanidade
podia Tornar-se. _O mero fato de sua existência como a
i ncorporação da humanidade autêntica demonstrou que o
modo de existência que o mundo considerava normal não
era o único possível/¿Antes do advento de Cristo, somente
a existência inautêntica era visível e, se abstrairmos de
Cristo e dos que o seguiram autenticamente como o fazem
os existencialistas, então o que vemos é a humanidade em
seu modo inautêntico. Dificilmente surpreende, pois, que
os existencialistas deviam ser forçados ao desespero. Sua
abstração da presença de outros Cristos no mundo pode
ser explicada como uma objeção, mas os santos são tão
poucos que nesta conta é difícil faltar a perspectiva
existencialista.
Este ponto, porém, não é o nosso assunto no presente.
Para Paulo, a humanidade autêntica de Cristo era a
revelação de que o modo de ser determinado pelo Pecado
não era a única opção. Os que tinham olhos para ver
147
podiam então perceber que dentro da situação humana
existia não só o isolamento egocêntrico a que se tinha
habituado, mas também um voltar-se criativo para os
outros. ^Sua presença dava à humanidade novo critério
pelo qual julgar-se a si mesma, criando assim a oportu
nidade de ver a inautenticidade pelo que era realmente.
Forçou também a humanidade a reconhecer que os laços
do Pecado não eram inquebráveis, que a tirania das
atitudes e valores contemporâneos podia ser abalada,^Se
um homem não era sujeito da dominação do Pecado, todos
podiam ficar livres. Paulo não especula como Cristo escapou
da servidão ao Pecado apesar de sua imersão na situação
humana. Foi simplesmente um fato que ele tomou como a
base do seu sistema teológico e, se ele fosse empurrado até
a última instância, suspeito que poderia apenas sugerir
uma disposição providencial.
Estamos agora em condições de apreciar a importância
da insistência de Paulo, para quem a salvação ocorre
dentro da história. E o que se expressa na carta aos
Colossenses. Paulo tinha consciência deste elemento
crucial dos inícios, e em suas cartas anteriores se toma
inteiramente como evidente e concedido. Em Colossas, ao
invés, Paulo tinha razão de temer que este aspecto su
mamente importante estava sendo deixado fora de vista.
Nosso conhecimento da assim chamada “heresia”
colossense é incompleta e resumida, mas geralmente se
está de acordo que havia a tendência entre os colossenses
e atribuir um papel em sua salvação a seres puramente
espirituais, ou seja, a anjos. Daí, ele tem de insistir:
“Portanto, assim como recebestes a Cristo Jesus corno o
Senhor, assim nele andai, tendo sido arraigados nele,
sobre ele edificados e sendo confirmados na. fé, como
aprendestes” (Cl 2,6). O Cristo, que salva, não é um ser
celeste que opera por meio de poderes do espírito. Sob
Deus, o salvador é o Jesus que se tornou Senhor (cf. Rm
14,9). Apontou-se que Paulo usa “Jesus” para evocar a
historicidade de Cristo. Essa interpretação é confirmada
pelo mais antigo comentário a Cl 2,6: “Vós não aprendestes
148
assim o Cristo, assumindo o que ouvistes (sobre) ele e
fostes ensinados nele no modo em que ele é verdade,
(nomeadamente) em Jesus” (Ef 4,21)?Jesus é a verdade do
Cristo que salva, porque ele é a perfeição de sua huma-
i) idade que é significativa e relevante^Numa variação
sobre este tema, Paulo escreve: “Os que de antemão pré-
conheceu (Deus), ele também predestinou a serem con
formes à imagem do seu Filho, a fim de que ele fosse o
primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29).
A presença de Cristo no mundo criava uma alterna
tiva. A inautenticidade agora estava confrontada com a
autenticidade. Aexistência de alternativa, porém, é apenas
pré-condição para a escolha. Não se pode dizer que alguém
escolhe, se não existe nenhuma alternativa. O fazer atual
de uma escolha é assunto diverso, e o realismo teimoso de
Paulo o forçou a reconhecer que o mero fato da existência
de Cristo não tornava realmente possível para a huma
nidade decidir por ele. A realidade do Pecado não era
destruída pela presença de Cristo, e a pressão que ele
exercia continuava a orientar a humanidade para a
inautenticidade. Os dominadores desta eram apenas
“destinados à destruição” (ICor 2,6). Requeria-se algo
para contrabalançar essa influência; e uma vez que poder
só pode se confrontar com poder, Paulo afirma que Cristo
é “o poder de Deus” (ICor l,24).tSua pessoa não só
propunha, ela capacitava, porque ela incorporava “o amor
de Deus” (Rm 8,35.39). O amor criativo de Deus torna-se
efetivo no amor de Cristo. O poder que trouxe o mundo ao
ser é desdobrado em Cristo para capacitar a humanidade
a conseguir a autenticidade e, assim, o que o Criador
pretendeu. Isso é a graça que torna a decisão de fé possível
(Ef2,8k^
149
O chamado externo
150
Sempre trazemos em nosso corpo o morrer de Jesus, a fim de que
a vida de Cristo possa se manifestar em nosso corpo.
Pois continuamente, enquanto vivemos, somos entregues à morte,
a fim de que a vida de Jesus possa se manifestar em nossa carne
mortal.
151
(nekrosis) sugere vida como culminando na morte. Vimos,
porém, que a morte de Jesus era muito mais que a
terminação de sua existência terrena. Era reveladora da
qualidade de sua vida inteira.JO caráter absoluto da
autodoação iluminado em sua morte demonstrava o amor
criativo altruísta que é a essência da humanidade au
têntica (Por causa de sua entrega a Cristo — “já não sou
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (G1 2,20;
contraste a Rm 7,20)—que se atualizava em sua dedicação
aos outros enfrentando todas as dificuldades e perigos (cf.
2Cor 11,23-30), Paulo sentia que podia pretender mani
festar a mesma qualidade de existência. O seu próprio ser,
selado com “o morrer de Jesus”, revelada “a vida de
Jesus”. Sendo assim, ele falava “em Cristo” (2Cor 2,17).
Parece claro que para Paulo a pregação, eficaz ou
carregada de poder, sobre Cristo é possível quando os
pregadores refletem em sua personalidade a qualidade da
humanidade autêntica sobre a qual eles falam. E dificil
mente poderia ser de outra maneira, uma vez que recor
damos que o envio de Jesus Cristo inaugurou nova era no
relacionamento Criador-criatura. Jesus não proclamou
apenas como o fizeram os profetas do Antigo Testamento.
Ele era a vontade de Deus para a humanidade (lTs 5,18),
o poder e sabedoria de Deus (ICor 1,24) e, acima de tudo,
o amor de Deus (Rm 8,39>^Apalavra de Deus não mais era
meramente verbal; estava encarnada. Retornar à pro
clamação puramente verbal, privada de todo reforço
existencial, seria negar a novidade introduzida por Cristo.
Para serem eficazes, os pregadores devem ser como Cristo
foi. Exibindo a humanidade autêntica que era a de Cristo,
demonstravam a viabilidade continuada de uma alter
nativa à inautenticidade e ao mesmo tempo davam forças
oü poder a outros para escolhê-laf‘{Ainda que eu falasse
"línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a
caridade, seriam como um bronze que soa ou como um
címbalo que tine” (ICor 13,1).
AE preciso frisar queessa representação de Cristo não
se limita aos oficialmente delegados a pregar. E parte
152
II
153
0 contraste neste texto entre autenticidade e
inautenticidade expressa-se em termos de luz. Sendo
“puros” ou sinceros, ou seja, todos de um só bloco, sem
nenhuma mistura estranha, os fiéis em Pilipenses de
monstraram sua diferença com o resto do mundo. Ne
nhum elemento verbal entra na descrição. Trata-se sim
plesmente da qualidade de suas vidas e isso só “é levar
avante a Palavra de vida”. Sendo o que são, constituem
demonstração da real possibilidade de novo modo de
existência que difere radicalmente do que era aceito como
normal. Seu evangelho não é teoria, mas fato, razão pela
qual Paulo o designa palavra de “vida”. A lei falava de
autenticidade, mas, uma vez que era apenas uma “coisa”,
faltava-lhe o poder de converter uma possibilidade teórica
em realfSomente viver pode comunicar vida; ela não pode
ser gerada apenas por palavras. O amor criativo, que
enformava a existência dos filípenses, era convite que
criava a possibilidade de resposta. Essa é a frutuosidade
da autenticidade (Cl 1,10; Ef 2,10).
Imitação
154
des nas quais tinha pregado, porque não havia nenhuma
outra forma de justificar sua afirmação de que uma nova
forma de existência humana entrava no mundo com
Cristo. Palavras somente podiam esboçar uma possibili
dade atraente, tantas utopias murcharam ao sopro can
dente do realismo. Uma possibilidade teórica pode ser
objeto de conversas. Uma possibilidade real tinha de ser
vista. Para justificar sua pretensão referente à realidade
presente do amor criativo de Deus, ele não podia conten
tar-se com referir-se a um indivíduo do passado. Aqueles
com que tinha de tratar nunca tinham encontrado com
Jesus na carne. Com toda honestidade, pois, não podia
recomendar que o imitassem. Ainda que seus ouvintes
estivessem preparados para aceitar que a humanidade de
Cristo era diferente daquela que eles encontravam ordi
nariamente, podiam razoavelmente pretender que este
era um caso único e irrepetível/Para ser convincente, Paulo
tinha de dizer: “Em mim vós o vedes”. Se seu auditório não
pudesse perceber a diferença entre Paulo e eles, c se eles nãó
pudessem experimentar a atração de plenitude que os al
cançava, provavelmente nada aconteceria.^
Paulo era suficientemente realista, porém, para reco
nhecer que nenhum testemunho se dá a não ser que seja
recebido. Exorta, então, os gaiatas: “Que vos torneis como
eu, pois eu também me tornei como vós” (G1 4,12). Nem
sua pregação nem sua personalidade eram lançadas sobre
quem tinha que convencer. Ele se inseria em sua situação
de forma paralela à inserção de Cristo na situação humana.
Quão longe ele foi, está bem descrito na famosa passagem
onde enuncia o seu princípio de adaptação:
Ainda que livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim
de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como
judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão sujeitos à lei,
fiz-me como se estivesse sujeito à lei — se bem que não esteja
sujeito à lei —, para ganhar aqueles que estão sujeitos à lei —
ainda que não viva sem a lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo
— para ganhar aqueles que vivem sem a lei. Para os fracos, fiz-
me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim
de salvar alguns a todo custo (ICor 9,19-22).
155
A leitura superficial desta passagem dá a impressão
de cruel oportunismo. Que semelhante acusação se levan
tou de fato contra ele, não resta dúvida (cf. G1 5,11; 2Cor
1,17) e o caráter apaixonado de sua defesa indica que era
sensível a essa acusação precisamente porque havia nela
um elemento de verdade, se bem que falsificado pelo
exagero. A verdade era que Paulo variou em sua consi
deração das comunidades e dos indivíduos, mas não até o
ponto — ou pelos motivos — que seus adversários lhe
imputavam. Sabia que não existe testemunha absoluta
mente válida para todos os tempos e todos os lugares. Se
sua representação de Cristo não se integrasse totalmente
com as necessidades e capacidades do indivíduo ou grupo
concreto, não poderia ser convite vital e eficaz à autenti
cidade. Sendo assim, tinha que saber e entender, partindo
não de fora, mas de dentro. Encontramos aí o contraba
lanço ao quadro extremamente gélido que o Apóstolo faz
do mundo, pois está claro que sua atitude não era de
desprezo. Via e descrevia a realidade como era, sabendo,
porém, que seus companheiros de humanidade eram
vítimas de erro trágico. Por que não deveria ele sacrificar
o auto-respeito? A conformidade com os princípios seria
vitória barata e fácil. À luta para andar na faixa estreita
que separa flexibilidade de compromisso era batalha que
valia mais a pena. Aceitou o desafio com todos os seus
riscos, porque neste caso o seu amor se punha em total
tensão e seu poder transformava sem se impor. (.
156
LEITURAS SUGERIDAS
157
LIBERTAÇÃO
159
ôntico e o ontológico ¿A liberdade ontológica é dada com a
natureza humana. Não se pode conceber um ser humano
sem essa possibilidade. Os existencialistas deslizam do
ontológico ao ôntico ao assumir que o que é verdade em
teoria deve ser verdade de fato. ,
Paulo estava muito perto da realidade para cometer
esse erro. Tomava a liberdade ontológica como concedida.
O seu interesse voltava-se para a liberdade ôntica, e
proclamava aos fiéis: “Vós que outrora éreis escravos do
Pecado... fostes libertados do Pecado” (Rm 6,17-18)^^
questão é, pois: como o fiel é libertado do Pecado?^
O “como ” da liberdade
O crente não mais está sob o poder (a lei) do pecado, mas sob o
poder de Deus (a graça). Tem novo Senhor, cujo poder é soberano
sem ser tirânico, pois no serviço de Deus, em ligação com o seu
Senhor, é livre para receber a herança prometida (p. 180).
160
e dá a impressão de profundidade; mas em vez de focalizar
a “liberdade de” que é o tema crucial, Furnish passa
¡mediatamente à idéia de serviço que forma parte do
domínio da “liberdade para”. Permanece assim no nível
puramente descritivo e deixa sem resposta a pergunta de
como o poder de Cristo age sobre o crente. Bultmann está
exposto à mesma objeção. Com grande exatidão e preci
são, afirma que a liberdade do Pecado “não é garantia
mágica contra a possibilidade do pecado... mas libertação
da compulsão do pecado” (Theology oftheNew Testament
I, p. 332), mas então continua:
161
nicado ao crent^Z. Isso os leva a incríveis circunvoluções
quando são urgidos a explicar o que ocorre realmente
neste caso. Belo exemplo da espécie de coisa, a que se referiu,
é fornecido por R. Schnackenburg no segundo volume de sua
Existência cristã segundo o Novo Testamento (L'existence
chrétienne selon le Nouveau Testament), Bruges, 1971:
162
com o espírito do evangelho, tomam ¡mediatamente cons
ciência dessa pressão ao tentar resistir a ela. Estar sob
pressão, porém, é ser não-livre, porque a “liberdade de"
implica falta de compulsão ou freio. Embora se lhes diga
todo domingo que simplesmente porque foram batizados
são livres e, quando se aventuram em expressar dúvidas,
são meramente informados de que devem fortalecer sua fé
na oração/Ede admirar que alguns se tornem céticos e
achem que a teologia não passa de conversa evasiva? /.-
A comunidade pecadora
163
Então será concedida aos eleitos sabedoria e eles todos viverão e
nunca mais pecarão, quer por impiedade quer por soberba... E
eles não mais transgredirão nem pecarão todos os dias de sua
vida (Z Henoc 5,8-9).
Em seu [do Messias] sacerdócio, os gentios serão multiplicados
em conhecimento sobre a terra e iluminados pela graça do
Senhor. E com seu sacerdócio, o pecado chegará ao fim da terra
(Test. Levi 18,9).
Todo aquele que permanece nele não peca. Todo aquele que peca
não o viu nem o conheceu... Todo aquele que nasceu de Deus não
comete pecado, porque sua semente permanece nele; ele não pode
pecar porque nasceu de Deus(lJo 3,6-9).
165
por luz e “vida”. Num os indivíduos são contaminados
pelos “mortos”, mas no outro são inspirados pelos “vivos”.
^0 transporte do primeiro para o último é libertação. Os
indivíduos, portanto, gozam de “liberdade de" somente na
medida em que pertencem a uma comunidade autêntica.
Em seu ambiente não se acham sob nenhuma compulsão
a serem diferentes de seu verdadeiro “eu”. Não mais
sujeitos a mau exemplo, são inspirados e encorajados
' pelos exemplos de autenticidade que vêem em toda parte
â seu redor. São livres para ser o que o Criador quis que
fossem.
Evidentemente, essa liberdade não é algo que eles
possuem como indivíduos, mas algo de que partilham
como membros de um todo mais vasto. A liberdade do
indivíduo é conseqüente à autenticidade da comunidade.
0 realismo do conceito de Paulo, que se funda em cons
ciência aguçada das condições que prevalecem no mundo,
estigmatiza a esterilidade de todas as tentativas de
apresentar a liberdade cristã como poder interno próprio
do indivíduo:iNuma comunidade autêntica, o indivíduo
pode expei'imentar a liberdade. Ele sabe conscientemente
que não mais está sujeito às pressões que outrora o
atiravam ao chão-fA realidade desta liberdade, porém,
depende inteiramente da vitalidade da comunidade que é
o canal encarnatório pelo qual a graça o toca. Aqui reen
contramos a intuição extremamente perceptiva de
Bultmann: “Tudo indica que pelo termo ‘Espírito’ Paulo
quer dizer a existência escatológica em que o crente é
posto por ter-se apropriado do ato de salvação que acon
teceu em Cristo” (Theology oftheNew Testament I, p. 335).
1 O poder do Espírito que produz liberdade é a criativida
de do amor desdobrada pelos outros membros da comuni
dade. A autenticidade de seu ser é a força que mantém
em xeque o Pecadof »Será lembrado até que ponto Paulo
enfatiza o individualismo como sinal de inautentici-
dade.
166
As crianças e a comunidade
I2Aos outros digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem esposa
não-cristã e esta consente em habitar com ele, não a repudie. I3E,
| se alguma mulher tem marido não-cristão e este consente em
habitar com ela, não o repudie. •'’Pois o marido não-cristão é
, santificado pela esposa, e a esposa não-cristã é santificada pelo
marido cristão. Se não fosse assim, os vossos filhos seriam
impuros, quando, na real idade, são santos. lr,Se o não-cristão quer
separar-se, separe-se! O irmão ou a irmã não estão ligados em tal
caso; foi para viver em paz que Deus vos chamou. 3CNa verdade,
como podes ter certeza, ó mulher, que salvarás o teu marido? E
como podes saber, ó marido, que salvarás tua mulher?
167
por definição inautêntico. Ela ou ele representavam o
mundo do Pecado que eles deixaram atrás. Permitindo a
essa pessoa permanecer em estreito contato com a comu
nidade, portanto, os fiéis estariam pondo em risco sua
própria liberdade.
' Não havia nenhum dito de Cristo que pudesse ajudar
Paulo a encontrar uma solução e, sendo assim, tinha de
continuar adiante por sua própria conta. O seu primeiro
passo foi fazer uma distinção baseada na qualidade de
relacionamento entre as duas partes. Se o parceiro des
crente se recusasse a viver com o convertido, concordava
que o casamento devia ser dissolvido (v. 15). De outra
forma haveria uma situação contínua de rixas, e a influ
ência do Pecado estaria efetivamente presente na comu
nidade. Se, por outro lado, o crente consentia em viver com
o convertido, rejeitava a dissolução do casamento (w. 12-
13). Suas razões para essa decisão constituem o cerne do
assunto.
’Como podíamos ter esperado, o interesse básico de
Paulo volta-se para a conversão do parceiro não-crente: y
“Pensa nisso: como uma esposa/um esposo pode ser a
salvação do teu marido/tua esposa” (v. 16 NEB). O crente
que exibe a perfeição da humanidade autêntica é chama
mento existencial à salvação. O pensamento de Paulo
neste ponto é finalmente expresso por outro autor do Novo
Testamento que teve que se haver precisamente com o
mesmo problema:
168
Ele recusava ver o não-crente como perigo para a comuni
dade. Antes, apresenta-o(a) como tendo sido mudado(a)
pela comunidade: “O marido não-crente/a esposa não-
crente c santificado!a) por sua esposa/seu esposo” (v. 14).
O que se quer dizer por “santificado” aí? O contexto
imediato fornece apenas uma chave/LO estado de
“santificação” situa-se em algum lugar entre o estado de
“impureza” e o estado de “salvação”./Isso em si mesmo é
curioso porque em outro lugar de Paulo “santificação” se
identifica com “salvação”. A carta, da qual vem o texto em
discussão, é dirigida à “Igreja de Deus, que está em
Corinto, àqueles que foram santificados em Cristo Jesus,
chamados a ser santos” (ICor 1,2) e, mais adiante, diz
deles: “Mas fostes lavados, fostes santificados, fostes
justificados” (ICor 6,11), que é alusão óbvia ao batismo. O
único outro texto em que aparece o mesmo verbo fala do
ministério apostólico de Paulo de apresentar os gentios a
Deus como “santificados pelo Espírito Santo” (Rm 15,16).
O uso que Paulo faz do substantivo correspondente
talvez seja de mais ajuda no esforço de determinar o seu
sentido aqui. “Santificação” é a vontade de Deus para a
humanidade (lTs 4,3), e este estado implica um padrão de
comportamento que se contrasta com o daqueles que são
“mortos”. Assim, em lTs 4,7, “santificação” é oposta a
“impureza”, que designa as atitudes comportamentais
dos gentios (vv. 4-5), e essa idéia recebe um paralelo em
Rm 6,19: “Como outrora entregastes vossos membros à
escravidão da impureza e da desordem para viver desre
gradamente, assim entregai agora vossos membros a
serviço da justiça para a santificação”. Paulo continua
então: “E que fruto colhestes então daquelas coisas de que
agora vos envergonhais? Pois o seu desfecho é a morte.
Mas agora, libertos do Pecado e postos a serviço de Deus,
tendes vosso fruto para a santificação e, como desfecho, a
vida eterna” (Rm 6,21-22).
' Essas passagens permitem-nos dizer que “santi-
cação” conota um padrão de comportamento adequado à
autenticidade que se torna possível pela liberdade do
169
Pecado^O parceiro não crente, portanto, é santificado por
estar influenciado pelas atitudes existenciais da comuni
dade crente em Corinto à qual pertence seu(sua)
parceiro(a). A documentação de tal santificação é o modo
como ele ou ela se comporta. Tudo o que está faltando é a
entrega expressa à verdade revelada em Cristo que 2Ts
2,13 apresenta como o concomitante da ‘“santificação”.
/(.Quando os dois elementos estão presentes, “santificação”
torna-se “salvação”;.
O ensinamento de Paulo nesta passagem demonstra
claramente até que ponto o seu pensamento se movia no
nível da realidade. Teoria era importante, mas era o
comportamento que manifestava a separação dos critérios
do “mundo”. Ainda resta, porém, um ponto a ser elucidado.
As afirmações de Paulo referentes à santificação do par
ceiro não-crente estão expressas no tempo passado. Ainda
que pareça improvável que ele tinha alguma experiência
do que estava ocorrendo realmente. Falava com a certeza
da esperança. Daí, devemos perguntar o que justificava
essa expectativa, e ele próprio dá a resposta: “Se não fosse
assim, vossos filhos seriam impuros, quando, na realida
de, são santos” (ICor 7,14).
Este versículo deu origem a intensa discussão. Será
que Paulo está se referindo aos filhos da comunidade em
geral ou somente aos de casamento misto? Eram as
crianças batizadas ou não batizadas? Seria impossível
dizer que existe consenso nas respostas a essas pergun
tas. O que é essencial ao argumento de Paulo é que existe
paralelo real entre a situação das crianças e a do parceiro
não-crente. Isso levou alguns a dizer que as crianças, em
consequência, devem ter sido não batizadas. Isso, para
mim, parece provável, mas não sabemos em que idade o
batismo era conferido no séc. I d.C. Movemo-nos por chão
mais sólido quando nos voltamos ao aspecto da aceitação
de Cristo/¡As crianças, por definição, são incapazes da
entrega madura e adulta a Cristo que é a essência da fé.
'Assim, a questão de quem eram filhos torna-se irrelevante.
Todas as crianças da comunidade de Corinto, portanto.
170
II
A fragilidade da liberdade
171
designa como Pecado, mas o Apóstolo foi forçado a admitir
que mesmo dentro de uma comunidade cristã podem
permanecer traços residuais do modo inautêntico de ser.
Essa dimensão do seu pensamento chega à mais clara
expressão em G1 5,13-26.
Aquilo por que estavam passando os gálatas cons
trangeu Paulo a conceder que “a carne tem aspirações
contrárias ao espírito e o espírito, contrárias à carne. Eles
se opõem reciprocamente, de sorte que não fazeis o que
quereis”(v. 17). “Carne” e “espírito” neste contexto conotam
os dois modos de existência que Paulo alhures caracteriza
como “morte” e “vida”, respectivamente, e que interpreta
mos como significando inautenticidade e autenticidade.
Aqui ele se interessa formalmente pelo efeito que esses
modos de ser têm sobre os indivíduos. “Carne” evoca as
atitudes que absorveram durante o longo período em que
“pertenciam ao mundo” e estavam sob a influência do
Pecado. Tais atitudes são repudiadas no ato de conversão
pelo qual se entregavam a um padrão diverso de compor
tamento,1^, porém, fato de experiência que hábitos pro
fundamente arraigados não são erradicados por uma só
decisão contrária/Sendo assim, apesar de seu modo novo
de ser com seu impulso rumo à autenticidade, permane
ceu um “desejo” das “obras da carne” que se resume na
lista de vícios dos w. 19-21. Isso pode resultar em eles
“usarem da liberdade como uma oportunidade para a
carne”. Um capítulo ulterior fornecerá ocasião mais apro
priada para determinar o que precisamente significa isso.
A medida que este “desejo” de inautenticidade é contraba
lançado pela orientação autêntica da comunidade cristã
(“os desejos do Espírito”), dependerá do grau da real
entrega a Cristo e, sobretudo, do êxito dos membros em
levar entrega à prática. Nas próprias palavras de
Paulo: “Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos
também a nossa conduta” (v. 25). Os cristãos são “chama
dos à liberdade” (v. 13); mas se sua conquista das atitudes
habituais derivadas de seu passado é vitória somente em
princípio, sua liberdade então só existirá em princípio
172
também. A realidade de sua liberdade está condicionada
pela realidade daquela vitória, porque “para a liberdade
Cristo vos libertou. Sede firmes, portanto, e não vos sujeiteis
de novo ao jugo da escravidão” (G1 5,1). O verdadeiro uso
da liberdade — e de fato o seu constituinte último — é ser
“através do amor servos uns dos outros” (v. 13).
■Em vista do caráter comunitário da liberdade cristã,
a liberdade de um membro da comunidade depende do
amor criativo desenvolvido pelos outros/.E este o poder
que mantém afastada a influência do Pecado. Sendo
assim, a falha de um tem implicações significativas para
a própria existência dos outros membros. “Ninguém de
nós vive para si próprio, e nenhum de nós morre para si
próprio” (Rm 14,7)¿0 pecado de um teve dimensão social;
foi pecado contra a comunidade. C >
Os corintios forçaram Paulo a sublinhar formalmente
este ponto. Para demonstrar a liberdade que Paulo pre
gara com tal convicção, um dos membros foi tão longe que
passou a cohabitar com sua madrasta. Essa era “imora
lidade de tal espécie que não existe sequer entre gentios”
(ICor 5,1). A particularidade, assim sentiam os corintios,
redundava em glória para a comunidade (w. 2-6). Era
uma manifestação concreta de sua independência com
respeito a todos os que ainda estavam escravizados a
atitudes e convenções de que os corintios tinham sido
libertados. A reação de Paulo descreve precisamente a
situação: “Não sabeis que um pouco de fermento corrompe
grande quantidade de massa? Purificai, pois, o velho
fermento para que sejais uma nova quantidade de massa,
como vós (em teoria) sois sem fermento” (ICor 5,6-7)/1A_
falsa decisão tomada por aquele homem atingira o grupo
tòdó7uAtravés dele, o veneno do Pecado entrara numa
esfera planejada para ser imune de sua influência. Paulo
retorna ao mesmo tema em 2Cor 2,5: “Se alguém causou
dor, causou-o não a mim, mas em certa medida — não para
colocá-lo muito severamente — a todos vós”. Um caso
diferente está em vista, mas a atitude de Paulo é idêntica.
173
Neste último caso, a comunidade, pelo que parece,
tomou atitude, e a situação foi restaurada. Os corintios
tinham aprendido a lição do primeiro episódio, e vale a
pena ver como Paulo tratou da situação porque é extre
mamente instrutivo:
174
do”. Se os corintios tivessem apreciado suficientemente
sua liberdade, teriam sido urgidos a empreender ações
para protegê-la. Sua falha quanto a este ponto óbvio
explica a irritação mostrada pelo grego inepto dessa
passagem.
Mais significativa de tudo é, porém, a compreensão
de Paulo do que implica a excomunhão. E entregar “a Satã
para a destruição da carne, a fim de que o espírito possa
ser salvo no dia do Senhor” (ICor 5,5). Numerosos exegetas
encontram aqui uma alusão a sofrimento físico e mesmo
à morte; mas, se Paulo estivesse pensando nessa linha,
teria se expressado em termos semelhantes aos que se
podem ler em ICor 11,30. Em si, a linguagem não é mais
forte do que a empregada em Rm 6,6-7. De mais a mais, o
contraste entre “carne” e “espírito” interpreta mais na
turalmente de forma existencial, e a sã metodologia exige
que se explorem outras pistas somente se essa aproximação
se provasse improfícua.
Ao ser expulso da comunidade, o pecador não mais é
protegido por ela. Está exposto sem defesa ao sistema de
valores do “mundo” e, assim, sujeito a pressões hostis ao
seu desenvolvimento autêntico. Aí Paulo usa “Satã” para
conotar a mesma realidade que alhures chama de Pecado.
Deveríamos esperar tal exposição para reforçar os impulsos
da “carne” porque, como vimos, é só na liberdade garanti
da pela comunidade que o “espírito” tem oportunidade de
dominar os desejos residuais da “carne”. Paulo, ao invés,
pretende que a excomunhão levará à “destruição da car-
ne”¿\Essa contradição aparente serve, no entanto, so
mente para aprofundar nossa compreensão da maneira
como Paulo concebia a comunidade cristãi>Pela perspecti
va, a situação do excomungado era um tanto diferente da
situação do não-crente. Este último não tinha nenhuma
possibilidade de escolha real e, sendo assim, o “espírito”
não podia dominar. O excomungado, ao invés, estivera
exposto aos benefícios de pertencer a uma comunidade de
livres, cujos valores são a antítese dos valores apreciados
pelo “mundoVDentro da comunidade, ele era ajudado
175
pelo amor criativo dos outros membros. No “mundo”, só
podia ser uma unidade isolada entre muitos, porque este
amor estaria afastado dele (ICor 5,ll$kUma vez que o
amor criativo é realidade experimentada, sua privação
seria urna forma de sofrimento físico que Paulo esperava
que fizesse o pecado pensar. Esperava que o excomungado
se tornasse aguçadamente consciente da repentina dife
rença em sua situação pessoal e, em consequência, re
considerasse o seu comportamento. A essa medida, pois,
a graça de Cristo encarnada na comunidade continuaria
a exercer influência sobre ele, tornando possível para
o “espirito” ser salvo. Paulo não fala de volta para a
comunidade, mas nada no contexto exclui essa possibili
dade.
A diferença entre a comunidade e a sociedade difí
cilmente poderia ser mais plasticamente enfatizada do
que pelo que Paulo diz acerca do efeito medicinal da
expulsão. Mostra que a expressão da diferença em termos
de luz e trevas (F1 2,15; C1 1,13) não é nenhum exagero.
Isso nos leva a fazer a pergunta: será que a Igreja local de
hoje sobressai de seu ambiente da mesma forma? Ao
responder a essa pergunta, devemos ter em mente que
pensamos não na situação teórica da Igreja local, mas em
sua situação existencial. E muito óbvio que a ideologia da
comunidade crista é diferente da ideologia do mundo, mas
este não é o nosso assunto¿A pergunta diz respeito ao
padrão de comportamento da comunidade cristã. Trata
se da Igreja local como ela realmente é, como realidade
visível e tangível.
A importancia da pergunta é a seguinte: se não
existem diferenças perceptíveis entre a comunidade cris
tã local e o seu meio ambiente, a realidade da liberdade
dos crentes (no sentido paulino) fica exposta à dúvida
séria/Se há hesitação quanto a onde começa precisamente
a comunidade e termina o “mundo”, a solidez da barreira
que deveria proteger o crente da influência do Pecado
torna-se altamente suspeita^Encontro comprovação para
tal hesitação hã atitude contemporânea com respeito à
176
excomunhão. Na prática, essa sanção foi abandonada.
Isso poderia ser interpretado como testemunho de maior
caridade dentro da Igreja, e muitos de fato estão satisfeitos
e orgulhosos de que o pecador seja mais querido que
punido. A severidade do passado foi posta de lado. A
sanção da excomunhão não mais se aplica, porque se viu
que era ineficaz. Não mais produzia o choque existencial
que deveria levar à reconversão. Assim, enquanto afirma
em teoria sua diferença do “mundo”, a Igreja na prática
atesta o fato de que a comunidade supostamente autên
tica não é significativamente diferente da sociedade
inautêntica em que existe.
Minha ênfase aqui não é argumentar por maior uso
da sanção da excomunhão. Isso seria sem sentido. O meu
único interesse é levantar a pergunta extremamente
séria da realidade da liberdade cristã na Igreja de hoje.
Toda evidência aponta para sua não-existência. O siste
ma de valores pelo qual os cristãos vivem realmente é o do
“mundo”. Dentro da Igreja e fora dela, encontramos a
mesma falta de interesse pelos pobres e desprivilegiados,
o mesmo desejo de posses materiais, as mesmas hostili
dades e amarguras. Há, certamente, exceções, mas essas
são estatisticamente insignificantes/Se adotarmos a
perspectiva genérica de Paulo, somos forçados a conceder
que o Pecado reina por toda parte e, se Pecado significa
escravização, onde então há liberdade? Os cristãos não
podem dar por concedido que são livres. As afirmações
magníficas de Paulo forma reduzidas ao estado de pro
messas, porque sua visão da verdadeira natureza da
comunidade cristã se deixou de ver. E a este ponto,
portanto, que devemos nos voltar agora. /»
177
LEITURAS SUGERIDAS
178
O CRISTO VIVO
' Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos
vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre; pois todos vós sois
um só homem em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois
^-descendência de Abraão, herdeiro segundo a promessa (3,26-29).
179
pormenores da compreensão do Apóstolo acerca da exis
tência inautêntica que aqui se evoca pela lista de pares
opostos, judeus contra gregos, escravos contra livres,
homens contra mulheres. No novo modo de sei- essas
divisões não mais existem, e é para frisar este ponto que
Paulo emprega uma variedade de expressões diversas
visando evocar a natureza comunitária da existência
autêntica: “Em Cristo”, “vos vestistes de Cristo”, “ser de
Cristo” e do modo mais dramático “todos vós sois um só
homem em Cristo Jesus”¿)Nenhuma palavra poderia
expressar mais plasticamente a diferença radical entre os
modos inautêntico e autêntico de ser. Se divisão é o
constitutivo daquele, unidade é constitutivo deste,-íOb
serve-se que se trata de “unidade”. “Todos vós sois um só
homem” significa algo hem diverso de “vós estais em
amizade”. Ã não ser que este ponto seja claramente
entendido, o conceito de Paulo de comunidade será
distorcido. Sendo assim, primeiro examinaremos a intuição
paulina sobre a unidade orgânica da comunidade dos
crentes e depois investigaremos o relacionamento desta
comunidade com Cristo.
Unidade orgânica
180
laços e responsabilidades é a chave da liberdade/O herói
contemporâneo é aquele que tem a coragem de andar
sozinho por seus próprios caminhos. f
Este desvio rumo ao individual pode-se perfeitamen
te entender pelas estruturas opressivas da sociedade
contemporânea. Existem tantas regras e regulamentos,
tantas pressões econômicas, que todos se sentem cons
trangidos e peados. Afirmar a própria individualidade é
saltar para a liberdade e assim justificar a convicção
profundamente arraigada de que cada indivíduo é único.
Portanto, todos estamos condicionados a pensar
individualisticamente, e essa atitude é reforçada pela
Igreja. Teólogos insistem na primazia da consciência in
dividual. .Crê-se largamente que meus pecados se passam
entre mim e Deus, e posso salvar-me sem salvar outros.
Cada um é livre para construir sua teologia pessoal. C
Quanto essa atitude se opõe à de Paulo deveria ser
evidente pelo que dissemos na II parte. Ele via o individu
alismo como característica da inautenticidade, e o tanto
que o individualismo permeou a Igreja apenas serve para
confirmar o que se disse no último capítulo com referência
ao não-existir da liberdade cristã. Não existe nenhuma
barreira ideal em face ao Pecado, e os valores dos “mortos”
cegos são complacentemente aceitos pelos supostamente
“vivos”. No sentido de entender o que Paulo indica, devemos
fazer esforço muito consciente para depormos essa men
talidade,^ Sua perspectiva é tão radicalmente diferente
que devemos continuamente nos vigiar para não transpor
seu pensamento em categorias aceitáveis ao nosso pré-
condicionamento i ndividualístico. I'
A modo de introdução aos textos paulinos, reflitamos
por um momento nas implicações da compreensão do
Apóstolo acerca da autenticidade e enquanto fundada na
noção de que a raça humana foi criada à imagem de Deus.
Vimos acima que o ponto formal de semelhança entre o
Criador e suas criaturas humanas situa-se na criativida
de destas últimas. A criatividade desdobra-se facultando
o amor que torna possível ao outro ser conforme quis o
181
Criador. O exercício de tal criatividade é existência autên
tica. Mas essa criatividade envolve necessariamente pelo
menos outra pessoa; não pode ser exercida em vazio
individualístico. Sendo assim, sem o outro a criatura
humana não pode existir autenticamente. Para ser como
Deus pretendeu que fôssemos, precisamos amar e ser
amados, dar poder e receber poder/; O outro, em conse-
qüência, entra na própria definição do ser humano autên
tico. Não se pode ser autêntico e ser só. Existiremos como
Deus pretende somente se estivermos relacionados a
outros na reciprocidade vital da criatividade.ÀO nosso
novo modo de ser, que Paulo designa “vida”, é constituído
por esse intercâmbio de poder. “Se não tenho amor, sou
nada” (ICor 13,2), isto é, eu não existo.
Uma vez percebida essa perspectiva, torna-se sur
preendentemente claro porque Paulo fala de “homem
novo” e não só de “o homem novo”. Observamos um
exemplo disso já em G13,28: “Todos sois um só homem em
Cristo Jesus”. O outro aparece em carta escrita muitos
anos mais tarde:
182
mesmo modo. Nada poderia estar mais longe da verdade,
porque a partícula espacial “onde” veda interpretar “o
novo homem” individualisticamentef^O novo homem” só
pode ser um agrupamento onde não existe mais espaço para
diferenças religiosas e sociais. A unidade, que é constitutiva
da autenticidade, é o tipo de unidade orgânica que caracte
riza um ser humano vivo. Autenticidade exclui autonomia/ ,
A importância deste aspecto para Paulo é clara pela
consistência com que usa imagens orgânicas para expli
car o nosso relacionamento com Cristo, que é a fonte de
toda autenticidade. Estas estão em surpreendente con
traste com as imagens estáticas que usa para expressar a
relação dos crentes com Deus. Relativamente a Deus e ao
Espírito, os crentes são “edifício” e “campo” (ICor 3,9) ou
“templo” (ICor 3,16; 6,19; 2Cor 6,16). E de outra forma
com respeito a Cristo. Os crentes são “enxertados” nele
(Rm 6,5) ou são “enraizados” nele (Cl 2,7). Essas imagens
são idênticas com a alegoria da vinha em Jo 15,1-10. A
imagem dominante, porém, é a do corpo humano vivo. Os
crentes são membros do Corpo de Cristo (ICor 10,17;
12,12-27; Rm 12,4-5; Cl 1,18.24; 2,18-19; 3,14-15; Ef 1,22-
23; 2,13-16; 4,4; 11-16).
Ao elaborar este tema, Paulo evoca duas vezes o
paralelo com o corpo físico (ICor 12,12; Rm 12,5). Como se
deve entender o paralelo? O que viu como o ponto formal
de contato entre o corpo físico e a comunidade como o
Corpo de Cristo?'Em vista de nossa orientação para o
individualismo, somos logo tentados a pensar em termos
de coordenação e cooperação. Da mesma forma que as
várias partes do corpo físico operam em relação harmo
niosa, assim também devem fazer os membros da comu
nidade/ fíe era isso que pretendia Paulo, é difícil ver
qualquer diferença entre o Corpo de Cristo e toda outra
sociedade, porque a unidade é concebida apenas em ter
mos funcionais. O atual estado da Igreja, infelizmente, é
altamente propício para conduzir a interpretação ao longo
destas linhas. As divisões entre as várias comunhões
cristãs e as amargas tensões dentro delas aumentam
183
nossa consciência de multiplicidade até ao ponto em que
damos assentimento apenas nacional à unidade e na
melhor das hipóteses a concebemos em nível puramente
funcional.
Isso apenas significa mostrar quão longe estamos do
pensamento de Paulo, porque ele estava tão consciente da
unidade da comunidade que alude à multiplicidade de
seus membros apenas em cláusulas subordinadas. “Nós,
que somos muitos, somos um só corpo, porque um só é o
pão, pois todos nós participamos de um só pão" (ICor
10,17); “Nós, que somos muitos, somos um só corpo em
Cristo” (Rm 12,5). Se, para nós, a multiplicidade é óbvia
e a unidade problemática, o reverso vale de Paulo. A razão
para isso é que ele via o Corpo de Cristo não como unidade
funcional, mas como unidade ao nível do ser. Ele foi
unificado por uma vida partilhada derivada de um só
princípio vital, como afirma sem ambigüidades em sua
exortação aos colossenses que se apegassem à Cabeça “da
qual todo o corpo, nutrido e ligado por suas junturas c
ligamentos, cresce com um crescimento que vem de Cristo”
(2,19; cf. Ef 4.1 l-16)dO que oucorpo físico sugeria a Paulo
era a idéia de coexistência no sentido estrito deste termo,
de que muito se abusa, porque ele comunicava perfeita
mente sua compreensão da autenticidade?
Õs membros do corpo humano participam todos de
existência comum, porque estão relacionados como partes
integrais de um só todo. Sua própria realidade como
membros é condicionada por ser partes do corpo. Um
membro amputado pode parecer um braço ou uma perna,
mas de fato é algo radicalmente diverso, porque o modo de
existência apropriado a um braço ou uma perna exige
participação na vida partilhada do corpo. Em sua essência
mesma, um braço não é um todo, mas uma parte. Quando
se lhe dá o status de todo, como no caso da amputação, ele
não é mais o que estava destinado a ser. Tem a aparência
de braço, mas não pode realizar nada daquilo para que o
braço foi criado. A animação de vida deu lugar à imobili
dade da morte.
184
10
A individualidade ctdstã
185
se admite que o conceito de individualidade prevalente no
“mundo” vale também para os cristãos. Comumente se
concebe o individuo como entidade tendo existencia inde
pendente e separada. Essa definição é perfeitamente
verdadeira em nível biológico da existência física. Minha
existência física é separada e independente da de qual
quer outra. Dado esse fato óbvio, parece lógico falai* de
indivíduo autêntico ou de indivíduo inautêntico. Nenhum
problema surge com respeito à formulação “indivíduo
inautêntico” porque, para Paulo, tal separabilidade é
precisamente o que caracteriza a inautenticidade. A situ
ação é completamente outra com respeito à formulação
“indivíduo autêntico” porque, como vimos há pouco, au
tenticidade é condicionada por ser uma parte dependente
e totalmente integrada. A definição, um lugar-comum,
não é aplicável mais a um membro do Corpo de Cristo que
a um braço ou uma perna. Falando estritamente, só é
aplicável a “o novo homem”, porque somente ele tem o
status de entidade completa.XO verdadeiro sujeito da
existência autêntica é a comunidade a que os membros
pertencem, e aquilo que pertence a algo mais como uma
parte não se diz normalmente ser um indivíduo.
Em grande parte, nossa cegueira no tocante a esse
problema é devida à tendência de entender a comunidade
cristã em termos da sociedade secular. Desta perspectiva,
a igreja local surge como uma coleção de indivíduos que
tem muitas coisas em comum com a sociedade local
eventual. A maioria dos crentes dificilmente poderia
definir a diferença entre as duas e certamente se inclina
ria, no caso de poder definir, a uma definição expressa em
termos funcionais^A Igreja existe para fazer uma coisa, ao
passo que a sociedade eventual existe para fazer~õutra
coisa. O que se disse até essa altura indicaria que a
diferença é, de fato, infinitamente mais radical. A socieda
de eventual é levada ao ser por indivíduos que se unem
juntos para este propósito. Em conseqüência, os indivídu
os constituem a sociedade. No pensamento de Paulo,
precisamente o reverso vale da Igreja. A comunidade
186
cristã preexiste aos membros que lhe pertencem, e é a
comunidade que faz o que eles são, facultando-os a se
mover da “morte” para a “vida/^Assim, enquanto os
indivíduos levam uma sociedade eventual ao ser, a comu
nidade cristã leva os seus membros ao ser, ao novo ser da
autenticidade/ •
O problema em questão concerne, pois, à individuação
deste novo ser, e o ponto preciso é focalizado claramente
na afirmação de Paulo: “Não sou eu mais quem vive, mas
Cristo vive em mim, e a vida que eu vivo agora na carne
eu a vivo pela fé” (G1 2,20). Temos aqui a negação do “eu”
individual, que é a conseqüência lógica da unidade orgânica
do Corpo no qual Paulo pertence, e logo na próxima
respiração o mesmo “eu” aparece como sujeito. Essa
tensão é óbvia. Paulo reconhece que é Cristo quem é o
verdadeiro sujeito, mas ao mesmo tempo o quadro físico,
que é a infra-estrutura da existência autêntica, leva-o a se
ver como indivíduo.
A tensão é significativamente diminuída se fizermos
(distinção entre realidade e a percepção desta realidade.
Um braço não tem existência separada. Coexiste com os
outros componentes do corpo. Não obstante, pode ser
~considerado separadamente. De modo semelhante, no
Corpo de Cristo os membros não têm existências separadas,
mas podem ainda ser considerados separadamenteÇÇa-
receria seresta a única maneira de dar sentido à formulação
muito obscura de Paulo em lCor 12,27, que pode ser
parafraseada: “Vós sois o Corpo de Cristo e, considerados
separadamente, membros dele”. O contexto mostra que
Paulo pensa em termos da contribuição diversa que cada
membro aporta ao todo (lCor 12,7). Existe diversidade
dentro do Corpo, mas essa diversidade enraíza-se na
unidade e existe para promover a unidade (lCor 14,26). A
variedade de dons espirituais, de que Paulo fala com
freqüência em contexto que enfatiza a unidade orgânica
do Corpo (lCor 12,4-31; Rm 12,3-87; Ef 4,1-16), não passa
de facetas do amor (lCor 13), o poder criativo que anima
o “novo homem”.
187
A singularidade do dom concedido por Deus a cada
pessoa implica que as pessoas podem ser consideradas
separadamente dos outros. Podem ser tratadas como se
fossem indivíduos separados. Isso as expõe ao perigo
inevitável de pensar de si mesmo como indivíduos e, em
conseqüência, de substituir afirmação por serviço. Caso
isso ocorra, a realidade como percebida é confundida com
a realidade como é de fato. No quadro paulino, nenhum
cristão pode dizer “eu penso, logo existo”, porque isso
implica individuação divisiva. O que o cristão pode dizer
é “eu existo para te servir”, porque aqui encontramos
individuação que está ao mesmo tempo submergida na
unidade do amor criativo. O eu é sacrificado porque o ser
inteiro de um volta-se para o outro^O cristão éjndividu-
alizado apenas como capacidade distintiva de autodoação
em imitação de Cristo, que revelou o modo autêntico de
existência humana “esvaziando-se a si mesmo” (F1 2, 7)^
188
que Paulo fez um desvio acidental cuja importância não
deveria ser exagerada, porque precisamente a mesma
idéia aparece antes na mesma carta: “Não sabeis que
nossos corpos são membros de Cristo?” (ICor 6,15). A
forma de pergunta deste versículo é altamente significa
tiva porque é geralmente entendida para denotar uma
doutrina com a qual Paulo sentia que seus convertidos
estariam familiarizados/A. aplicação dojiome de “Cristo”
à comunidade deve, em conseqüência, ser considerada ter
formado parte do vocabulário habitual de Paulo. \\
Este fato dirige nossa atenção à famosa fórmula “em
Cristo”, que aparece 155 vezes nas cartas paulinas. Se
jamos, porém, cuidadosos, porque a fórmula nem sempre
tem o mesmo valor. Em certos casos, Paulo tem certamente
em vista a pessoa individual de Jesus Cristo. Nesta série
de textos, o “em” conota ou instrumentalidade (por exemplo,
“por meio da redenção que está em Cristo Jesus que Deus
expôs como expiação”, Rm 3,24; cf. ICor 15,22; 2Cor 5,19;"
lTs 2,14) ou o objeto do ato (p. ex., “fé em Cristo Jesus”, G1
3,26; cf. Rm 15,17; F1 3,3). Paulo também pode usar a
fórmula em sentido bastante fraco, como quando diz: “Eu
falo a verdade em Cristo” (Rm 8,9; cf. ICor 4,10)AExiste,
no entanto, uma série toda de textos em que “em Cristo”
entende-se mais naturalmente como referido à comunidade: [
189
Essa lista pretende ser representativa mais que
exaustiva, e logo evidencia-se em que medida se evocam
muitos dos temas antes discutidos. Em alguns casos, pode
haver dúvida se o “em” é instrumental ou local. Assim, por
exemplo, ICor 1,30 poderia ser traduzido: “Por Ele vós
sois em Cristo Jesus”. Essa tradução põe ênfase em “vós
sois”, iluminando, assim, o aspecto do novo “ser” que se
manifesta em 2Cor 5,17. Mas pode-se perguntar imedia
tamente como ocorre isso, e a resposta nos força a voltar
à comunidade, pois é aí que esse novo ser se torna possível.
O mesmo vale de 2Cor 3,14, mas o contexto imediato (v.
16) mostra que o véu é levantado para indivíduos somente
por conversão que necessariamente implica pertença como
membros na comunidade. Rm 16,7 e outros textos, como ICor
3,1; 2Cor 12,2; lTs 4,16, poderiam parecer à primeira vista que
seriam mais bem traduzidos por“cristâo’^masocristãoéalguém
que pertence a um tipo específico de comunidade. ¡
Só o reconhecimento do fato de que Paulo às vezes
designa a comunidade “Cristo” ajuda-nos a dar sentido à
expressão “ser batizado em Cristo” (Rm 6,3; G1 3,27).
Significa simplesmente ser admitido na comunidade
submetendo-se ao rito sacramental de iniciação (cf. ICor
12,13). O poder do Cristo Ressuscitado é operativo através
deste ato comunitário que nos faculta morrer para o Pecado
e ressuscitar para uma “novidade de vida” (Rm 6,4). Essa
nova vida define-se em G13,27 como “revestistes Cristo” (cf.
Rm 13,14). Em si, a frase poderia significar várias coisas,
mas o que Paulo tem em mente é esclarecido pela expressão
paralela: “Revestistes o novo homem” (Cl 3,10), porque, como
vimos, o “novo homem” só pode ser a comunidade/Cristo é o
novo homem que é a comunidade. Devemos, porém, sempre
perguntar o que isso significa na prática, e Paulo não nos
falta com_a resposta, porque em Colossenses logo passa a
especificar o que está envolvido ao exortar: l\
191
função salvífica, o Cristo Ressuscitado deve ser eficaz
mente representado dentro do contexto de uma existência
real por autenticidade que é modelada pela sua. Somente
os que se revestiram de Cristo aceitando a exortação “que
tudo o que fazeis se faça no amor” (ICor 16,14) pode
demonstrar a realidade continuada do “amor de Deus em
Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8,39), pois são somente
eles que “levam avante a palavra de vida” (F1 2,16).
192
sentido, pois, pode Paulo dizer que recebeu as palavras da
instituição do Senhor? Para alguns peritos, Paulo sim
plesmente quis evocar Jesus como a origem remota de
uma tradição que ele recebera realmente de outros ho
mens. Outros exegetas compreendem a frase como afir
mação de que as palavras da instituição foram-lhe
comunicadas diretamente numa visão do Cristo Ressus
citado. Esses dois modos de ver apresentam dificuldades
óbvias. Na primeira, relativamente às características da
fórmula institucional, faz violencia às palavras de Paulo.
A segunda, fazendo justiça à afirmação de Paulo, ignora,
não obstante, o colorido litúrgico da fórmula. Uma solução
muito mais satisfatória sugere-a o que vimos na seção
precedente./Cristo não é só o fundador da comunidade dos
crentes, mas, em sentido realfèle é a comunidade, porque
é por meio da comunidade que a realidade salvadora de
Cristo se torna eficaz no mundo./ .0 que Paulo, pois,
recebeu da comunidade, ele recebeu de Cristo. Em si
mesma, esta é uma chave valiosa para a perspectiva em
que Paulo visualiza aqui a eucaristia.
A chave mais significativa, porém, é o fato de que
Paulo acrescentou a segunda ordem de realizar o rito “em
memória” de Jesus. Pretendeu, portanto, frisar esse as
pecto, e isso propõe a questão acerca do que Paulo entendeu
por “memória”. Felizmente, ele próprio responde à ques
tão no v. 26: “Todas as vezes, pois, que comeis deste pão e
bebeis deste cálice, anunciais a morte do Senhor até que
ele venha”. A opinião segundo a qual Paulo viu o pão
partido e o vinho derramado como separação simbólica do
corpo e sangue e, sendo assim, uma declaração da morte
de Jesus, é sem fundamento. Daí, numerosos peritos
insistirem, à primeira vista justificadamente, que o verbo
“anunciar” envolve necessariamente um elemento verbal
e em conseqüência pretendem que o versículo deve ser
entendido como alusão ao reconto da paixão ou, pelo
menos, à seção referente à última ceia, durante a celebra
ção da eucaristia. Nada parece mais natural que a paixão
deva ter sido evocada em tal ocasião; mas se fosse isso que
193
Paulo tinha em mente, certamente teria se expressado de
outra forma. A impressão dada por essa formulação é que
a proclamação se realiza mediante uma ação de comer e
beber. A ação é uma afirmação e o que é “dito” é a morte
de Cristo. A proclamação é existencial (cf. lTs 1,6-8; F1
2,14-16) e, em conseqüência, a “memória” deve ser algo
mais do que um olhar intelectual rumo ao passado.
O que Paulo tem em mente acede a foco mais claro
quando recordamos sua compreensão da morte de Cristo
como lição a demonstrar como o gênero humano devia
viver auténticamente, “ele morreu por todos, para que os
que vivem não mais vivam para si mesmos” (2Cor 5,15).
Genuína memória é articulada em imitação. O propósito
do esforço de Paulo em evocar a memória de seus caminhos
em Cristo entre os corintios era para que eles também
fizessem o mesmo (ICor 4,16-17). Se eles o imitassem,
também imitariam a Cristo (ICor 11,1 )//Ao re memorar
em Cristo, reconhecem a exigência implícita na morte que
tornou possível o seu novo modo de ser/vPor seu compor
tamento, eles proclamam aquela possibilidade a outros. O
que eles são é iluminado na unidade do ato sacramental,
e Cristo torna-se realidade no mundo. Eles encarnam o
amor salvador expresso em sua morte e continuarão a
exercer essa função até que ela se torne desnecessária por
seu retorno, “até que ele venha”. Essa evocação da presença
física de Cristo no éschaton reforça a interpretação exis
tencial da proclamação de sua morte. O amor dá substân
cia às palavras da instituição eucarística e só o amor pode
fazê-lo.
Até o momento discutimos o que poderia ser designado
abordagem teórica de Paulo acerca da eucaristia, isto é, o
que aconteceria se a eucaristia fosse celebrada numa
comunidade ideal. A situação real em Corinto era muito
diferente. Os corintios estavam longe de ser perfeitos, não
no sentido de que não tivessem ainda atingido o ideal, mas
no sentido de que sua confiança exagerada os levara a
entender equívocamente o modo como a eucaristia atinge
o seu efeito. Eles imaginavam-se em estado definitivo de
194
autenticidade, ao passo que na realidade eram apenas
parte de processo que podia abortar. E por isso que Paulo
prefacia sua exposição da eucaristia em ICor 10 esboçando
o paralelo entre a situação dos coríntios e a dos israelitas
no deserto. A autenticidade não é privilégio concedido
uma vez por todas.ÚA relevância d a meação de Paulo à
nossa situação contemporânea, onde muitas das assim
chamadas comunidades não têm nenhuma vida orgânica,
dificilmente se pode enfatizar demais. /.
— À situação em Corinto é descrita com pormenor
explícito. “Em primeiro lugar, quando vos reunis para
encontro eclesial, ouço dizer que existem divisões entre
vós” (ICor 11,18). A ausência de qualquer “em segundo
lugar” na continuação do texto sugere que “em primeiro
lugar” foi pretendido por Paulo para frisar o que primei
ramente o surpreendeu sobre a situação dos coríntios.
Que o fato de divisões tenha chamado sua atenção é
perfeitamente compreensível à luz de sua compreensão
de autenticidade e inautenticidade. As divisões, de que se
trata aí, não são os partidos mencionados em ICor 1,12 e
3,4, mas subgrupos criados pelo egocentrismo. “Pois ao
comer, cada um vai adiante com sua própria refeição, e um
está com fome e outro está bêbado. O quê? Acaso não tendes
casas para comer e beber nelas? Ou desprezais a casa de
Deus e humilhais os que nada têm?” (ICor 11,21-22).
Dessa atitude Paulo tira a conclusão: “Quando, pois,
vos reunir juntos não é para comer a ceia do Senhor” (ICor
11,20). Nesta tradução literal, o versículo dá a impressão
de que Paulo se refere à intenção dos coríntios. Reúnem-
se não em vista de comer a ceia do Senhor, mas com outro
propósito na mente. Esta interpretação é insustentável,
porque o que Paulo critica é o modo de celebrar a ceia do
Senhor. Sendo assim, a única interpretação viável
é: “Quando vos reunis juntos, não é a ceia do Senhor que
comeis’<^Não importa o que os coríntios pensem estar
fazendo, eles não estão de fato comendo a ceia do Senhor,
porque a atitude de uns para com os outros o excluem. O
ser partilhado, que é o seu novo modo de existência em
195
Cristo, devia chegarà expressão no cuidado prático_para_
que nenhum fique em necessidade. O egoísmo dos coríntios
é a antítese do que deveria ser e, sendo assim, torna a
celebração da eucaristia impossível. í ■
Uma vez que a transformação do pão e do vinho no
corpo e sangue de Cristo é o que diferencia a ceia do
Senhor de refeição comum, a impossibilidade deve deri
var do fato de que as palavras da instituição eucarística
não têm nenhuma validade quando ditas numa situação
caracterizada por divisões egocêntricas. Isso é inteira
mente congruente com a identificação existencial que o
Apóstolo faz da comunidade dos crentes com Cristo. Em
teoria, a comunidade é Cristo, mas Paulo não está inte
ressado pelo aspecto especulativo. Sua função como pas
tor era assegurar que a comunidade fosse de fato Cristo,
verdadeiramente animada por sua vida, inteiramente
penetrada por seu espíritoJÇomo tal, a comunidade podia
agir com o poder de Cristo, e podia falar com a autoridade
de Cristo. Numa comunidade inautêntica, como era
Corinto, Cristo não estava presente.iAs palavras da ins
tituição eucarística eram dele, mas a voz que as falava não
o era. A autoridade transformadora estava faltando e em
conseqüência nada acontecia. As palavras da instituição
eucarística não efetuavam o que elas significavam.
É impossível provar apoditicamente que era esse o
modo de ver de Paulo, mas nada do que diz contradiz a
essa interpretação, que é a única que se harmoniza com
sua explanação existencial. Como traduzido pela RSV,
ICor 11,27 poderia parecer objeção: “Todo aquele, portanto,
que come o pão e bebe do cálice do Senhor de maneira
indigna será culpado de profanar o corpo e o sangue do
Senhor”. A implicação dessa versão é que o participante
indigno da eucaristia comete sacrilégio ao consumir o
corpo e o sangue de Cristo que estão lá sob as espécies
sacramentais em virtude somente das palavras e sem
referência à atitude da comunidade. Essa interpretação
depende, porém, do verbo “profanar”, que não aparece no
texto grego que diz simplesmente “será culpado do corpo
196
e do sangue do Senhor”. Isso sugere uma explicação bem
diferente porque “ser culpado do sangue de alguém”
entende-se mais naturalmente como significando ser
responsável pela morte daquela pessoa (cf. Dt 19,10). A
verdadeira intenção do versículo, portanto, é enfileirar o
participante indigno entre os responsáveis pelo assassí
nio de Jesus (cf. Hb 6,6; 10,29).
' Idealmente, a eucaristia deveria ser proclamação da
mortede Cristo (lCor 11,26), mas a atitude dos partid--
palites podem fazê-la ocasião de assassínio (lCor 11,27).
A inautenticidade alcançou o seu apogeu na crucifixão de
Cristo (lCor 2,8), e a atitude daqueles que destroem a
unidade da Comunidade-Cristo por seu egocentrismo,
merece a mesma condenação. São classificados entre os
que mataram Jesus, porque negam a realidade de Cristo
no mundo. Em vez de emanar vida, trazem morte. Seria
difícil encontrar uma apresentação mais plástica da res-,
ponsabilidade assumida pelos que participam da eucaris
tia. A preocupação dc Paulo com a atitude existencial dos
participantes frisa-se, de mais a mais, pela ênfase na
necessidade de auto-exame, e o critério a se usar é formal
mente articulado: “Todo aquele que come e bebe sem
discernir o corpo, come e bebe juízo sobre si” (lCor 11,29). /'.
Alguns tomam “o corpo” aqui no sentido de corpo
físico de Cristo sob as espécies sacramentais, como se a
falha dos corintios fosse ter confundido a eucaristia com o
alimento ordinário. Não existe nenhuma alusão a isso no
contexto. O interesse de Paulo volta-se para divisões
dentro da comunidade, e isso só sugeriria que “o corpo”
deve se entender como referindo à comunidade como
Corpo de Cristo — tema que já fora introduzido e precisa
mente em contexto referente à eucaristia (lCor 10,17). A
alusão ao “julgamento” confirma essa interpretação,
porque lemos no v. 33: “Assim, pois, meus irmãos, quando
vos reunir juntos para comer, esperai uns pelos outros...
a não ser que vos reunis para o julgamento^Os que não
se incomodam com os membros, seus companheiros, bãõ
discernem o Corpo,. \
197
Os corintios deram assentimento nacional ao concei
to da comunidade como o Corpo de Cristo, mas seu
compor-tamento revelou de maneira bastante clara que
não compreendiam deveras as exigencias que impunha.
Sua tolerância de invejas e rixas dentro da comunidade
(ICor 3,1-4) era indicio de que não lograram apreciar quão
realisticamente Paulo pretendera que se devia entender
sua ênfase na unidade orgânica. Felizmente cometeram
esse erro, porque de outra forma estaríamos privados do
aumento de claridade que vem de teoria reduzida à
prática. O desafio da abordagem da eucaristia por Paulo
não deixa lugar à fuga. A não ser que os membros da
comunidade não amem atualmente uns aos outros, Cristo
não está presente na eucaristia e não está presente no
mundo< A não ser que estejam unidos organicamente
como partes de um todo vivo, não têm amor nenhum e são
nada (ICor 13,2). Em conseqüência, não podem conseguir
nada, sequer na oração litúrgica da assembléia./,
Mulheres em Cristo
198
1
199
tornam claro o sentido deste termo não usual, pois mos
tram mulheres cujos cabelos cacheados estão ligados em
torno do tipo da cabeça para dar a aparência de pequeno
boné. É essa a “cobertura” de que Paulo fala no v. 6a. Em
consequência, uma mulher que oficia “descoberta” (v. 5a)
é simplesmente mulher cujo cabelo não está arrumado na
moda costumeira. Nessa medida, não é feminino. Ne
nhum texto antigo sugere que cabelo não arrumado numa
mulher tinha a mesma conotação de desvio como os
cabelos longos no caso dos homens. Ele era “não mascu
lino” em sentido muito específico; ela é “não feminina” só
em sentido genérico. Mas a associação dos dois induziu
Paulo a afirmar, com ironia bastante pesada, que se a
mulher se recusa a ser “feminina”, então ela devia caminhar
o caminho completo e parecer “varonil” (v. 6).
O que parece ter acontecido é que alguns corintios
tomaram Paulo literalmente quando proclamou que em
Cristo “não há mais varão e mulher” (G13,28), e o resto da
comunidade não fez objeçãoÇiPaulo achou o infantilismo
(cf. ICor 3,1; 14,20) desta resposta intolerável porque
projetava falsa imagem da natureza da comunidade cristã.
A distinção entre os sexos era obscurecida de forma que só
podia anular o valor de testemunho da comunidade.
Sendo assim, teve de argumentar que a distinção entre os
sexos era importante e devia ser respeitada. E este o seu
único interesse em ICor 11,2-16. Seu argumento, porém,
não é tão claro como se desejaria, porque ele sentia o
embaraço que muitos sentiam ao tratar da homossexu
alidade, mas os pontos-chave se detectam facilmente uma
vez que se sabe qual era o problema.
Em primeiro lugar, é óbvio que ele não visa provar
que a mulher é subordinada ao homem; isso não serviria
absolutamente a seu propósito. De fato, ele repudia ex
plícitamente essa interpretação do papel da mulher ba
seada em Gn 2,18-23 e que era corrente no judaísmo.
Segundo o historiador judeu Josefo: “A mulher, diz a lei,
é em todas as coisas inferior ao homem. Que ela seja em
conformidade submissa, não para sua humilhação, mas
200
1
que possa ser dirigida, pois a autoridade foi dada por Deus
ao varão” (Contra Apião 2,201). Se o homem foi a fonte do
ser da mulher (v. 3b), a mulher agora é a fonte do ser do
homem, e isso cra justo enquanto vontade de Deus (v. 12).
Assim, “no Senhor, isto é, em Cristo, a mulher não é
diversa do homem, e o homem diverso da mulher” (v. 11);
em termos de papéis dentro da Igreja, ambos estavam no
mesmo pé. Nesta perspectiva, a ênfase dos w. 7-9 deve ser
que, se Deus não teve em mente nenhuma distinção entre
os sexos, ele os teria criado da mesma maneira/lNq
entanto, visto que Gn 2,18-23 revela diferença no modo de
criação, então a distinção foi querida por Deus e deve,
portanto, ser respeitada. ■
Somente essa aproximação nos permite perceber o
sentido do enigmático v. 10: “A mulher deve ter autorida
de em sua cabeça por causa dos anjos”. A pressuposição de
Paulo em toda essa discussão é que a mulher pode exercer
papel de liderança na assembléia litúrgica (v. 4). Ela,
portanto, tem uma autoridade que lhe foi negada na
interpretação judaica da lei. Os anjos que agiram como
mediadores na doação da lei (G1 3,19) observavam o que
se passava neste mundo (lCor 4,9) e faziam relação das
violações da lei (Jubileus 4,6; cf. 1 Enoc 99,3). Como
membros da corte celeste, ficaram sabendo da mudança
de status das mulheres, mas deviam ficar perturbados se
vissem esta nova autoridade sendo exercida por um ser de
sexo indeterminado^! Foi dado à mulher precisamente
como mulher e seu exercício deve proclamar sua femini
lidade pela maneira como ela arruma seus cabelos; é neste
sentido que sua arrumação dos cabelos simboliza aqui
autoridade para orar e profetizar. Deve-se notar que a
igualdade das mulheres em termos de autoridade ecle
siástica era tão evidente para Paulo e os corintios que
podia servir como a ba¡se de argumento pela distinção dos
sexos! -ZN
O que Paulo quer dizer por “profecia” está claro em
lCor 14. “Aquele que profetiza fala aos homens com vistas
a edificação, encorajamento e consolo” (v. 3). E “um sinal
201
para os crentes” (v. 22), de tal sorte que “todos possam
aprender e ser encorajados” (v. 31). É, portanto, um
ministério da palavra e, dado o modo em que o termo era
usado nos tempos de Paulo, dizia respeito à exposição das
Escrituras. Seria impossível justificar distinção entre
profecia neste sentido e nossa homilia litúrgica contem
porânea. Em outras palavras, Paulo afirma que mulheres
têm uma autoridade dada por Deus para pregar na
assembléia litúrgica. Pode-se obter muito menor evi dência
com respeito à natureza da “oração”, mas o contexto
social, estabelecido pelo que se disse sobre “profecia”,
claramente indica que a referência é com a prece inspirada
que cristalizava a fé da comunidade e à qual se dava
assentimento público pela palavra “amém” da assembléia
(ICor 14,16; 2Cor 1,20). Alguns dos hinos do Novo Tes
tamento (Kl 2,6-11; Cl 1,15-20; lTm 3,16) podem ser
típicos dessa prece (cf. Cl 3,16).
Na prática, portanto, Paulo era inteiramente fiel à
teoria enunciada em Cl 3,28. Da mesma forma que teve
problemas com o modo como algumas arrumavam os
cabelos, ele não podia negar os direitos da mulher. Ao
invés, explícitamente os defende/ÍIsso dá nova e mais
profunda dimensão à igualdade das mulheres implícita
em sua contribuição no estabelecimento das comunidades
paulinas/lNenhuma distinção se faz entre Evódia ou
Síntique e Clemente como “cooperadores” de Paulo (F1
4,2-3; cf. 1,5), e não existe nenhuma justificação para
postular papéis diferentes para Gaio (Rm 16,23) e Ninfas
(Cl 4,15) na direção de suas respectivas igrejas domés
ticas.
Infelizmente, a intuição sábia de Paulo sobre o signi
ficado prático do mandamento do amor (ICor 13,1-7) não
prevaleceu. Depois que ele desapareceu de cena, tendên
cias reacionárias afirmaram-se rapidamente. Tanto ICor
14,34-35 como lTm 2,11-15 — nenhum destes textos foi
escrito por Paulo — reduziram o papel das mulheres ao
papel passivo de que gozavam sob a lei. A entrega às
exigências de uma cultura cujos critérios são condenados
202
pelo evangelho vem tendo sérias consequências para a
unidade do Corpo de Cristo; não existe nenhuma razão em
duvidar da realidade do amor que liga a todos em perfeita
harmonia (Cl 3,14). Onde isso deixa a Igreja em termos de
lCor 13,2?
203
LEITURAS SUGERIDAS
204
A MENTE DE CRISTO
205
os condenava à inautenticidade<zTudo o que a legislação
pode conseguir é uniformidade de ação. Ela é incapaz de
produzir o dom do eu autêntico que é a própria essência da
unidade. O ensino de Paulo não contem apenas as semen
tes do antinomismo, como alguns sustentaram; ela é
fundamental e radicalmente antinomista. Este ponto foi
estabelecido da forma mais clara e precisa por John Knox:
206
diretivas morais só se podem entender como obrigatórias
absolutamente, o que torna inevitável uma atitude
legalística. Não há escolha alguma senão submeter-se, e
a atenção inteira do crente focalizará na satisfação de
obrigações específicas. E precisamente quando a lei é
entendida como revelatória que temos a situação que
Paulo condena tão radicalmente em Rm 2,17-20 (cf. supra
p. 118).
1 O argumento genérico confirma-se pelo levantamen
to das passagens em que Paulo menciona a vontade de
Deus em contexto ético! D objeto específico da vontade de
Deus é o ser autêntico (lTs 4,3), a que a humanidade é
exortada por “chamamento” (lTs 4,7). Dentro do contexto
global estabelecido pela obediência da fé (Rm 1,5), espera-
se que os crentes ajam a partir das exigências específicas
da vontade de Deus para com ele (Cl 1,9; 4,12), e isso se
manifesta como o fruto de transformação interna (Rm
12,2) que não passa de um aspecto do dom do eu autêntico
(2Cor 8,3-5). Duas vezes imperativos morais se justapõem
a referências à vontade divina (lTs 4,3; Rm 12,2), mas em
nenhum lugar existe a menor alusão que os dois devem
ser identificados. Correspondentemente, Paulo jamais
fala de obediência a uma lei ou preceito específico. Nas
cartas, obediência é sempre sinônimo de fé (Rm 6,16;
10,17; 15,18; 16,26; 2Cor 10,5; 2Ts 1,8), a saber, aceitação
do modo de existência demonstrada por Cristo (Rm 5,19;
F1 2,8).
recusa dej’aulo da aquiescência cega a qualquer
diretiva autoritária foi um princípio pelo qual viveu real-
mente(?Sua prática torna certo o que deduzimos ser sua
posição teórica. Dada a posição central que Cristo tem na
teologia de Paulo, pode-se admitir que se alguma diretiva
portasse autoridade obrigatória, seria uma ordem do
Senhor. Isso ilumina a importância da forma em que
Paulo reagiu às duas ordens do Senhor que cita. A primei
ra diz respeito à atitude dos pregadores. “O Senhor orde
nou que os que proclamam o evangelho, ganhem a vida
pelo evangelho” (ICor 9,14). Em outros termos, os ministros
207
do evangelho deviam dedicar sua atenção toda à sua
tarefa e não deviam desperdiçar tempo ganhando a vida;
Paulo recusou-se a reconhecer essa ordem como “obriga
ção” e a reclassificou como um “direito” (ICor 9,12.18), do
qual se gloriou de não usar (ICor 9,15). Fez uma prática
de ganhar a própria vida, desobedecendo assim aberta
mente à ordem do Senhor. Sentiu que receber apoio
Financeiro obscureceria o fato de ele pregar por inteira
convicção (ICor 9,16). Encontramos aí, de outro ponto de
vista, uma vez mais o aspecto existencial do apostolado a
que Paulo atribuía tanta importância. A segunda diretiva
referia-se ao divórcio. Este era proibido em forma de
preceito negativo que não permitia nenhuma exceção
(ICor 7,10-11), mas Paulo, visualizando um caso que
justificava fazer exceção, permitiu divórcio (ICor 7,15).
/¿.Nos dois casos em que Paulo se confrontou .com.
preceitos do Senhor, não os tratou como tendo força
vinculante, mas os submeteu à avaliação crítica. Quando
achava apropriados, ele os aceitava (cf. F1 4,14-20; ICor
7,1 la) e, quando inapropriados, simplesmente os deixava
de lado. Élejsra consistentemente fiel ao aviso que dera
aos tessalonicenses: “Testai tudo" (lTs 5,21)/-,
208
I
209
putros ou que usa os outros como instrumentos de sua
própria gratificação/,Não surpreende, portanto, que é
elemento constante (junto com seu correlativo “impure
za”, v. 7) nas listas de vícios que Paulo usa para catalogar
as características da existência inautêntica.z<
Vv. 4-5: Encontramos aqui um contraste explícito
entre a existência dos crentes e a existência dos não-
crentes. JEstes são dominados pela “paixão do desejo”.
“Desejo” aí traduz o termo grego que alhures traduzimos
por “concupiscência” (cf. p. 111 supra). Pode ter conotação
sexualj mas por si mesmo não se limita a essa área de
comportamento. No léxico de Paulo,_eyoca os desejos
fundamentalmente egoístas fomentados pelas pressões
do Pecado ao qual os inautênticos estão escravizados. Por
sua incorporação na comunidade, os crentes estão livres
de sua pressão, mas, a fim de dar realidade a essa
liberdade, têm que adquirir domínio sobre os instintos de
seus corpos. Por causa de sua longa dominação por forças
externas a si mesmos, têm que aprender o “autocontrole”
(G1 5,23) que é a antítese de autogratificação.
V. 6: E impossível determinar com certeza o que
significa exatamente “essa matéria”. O_ que, porém, é
claro é que envolve uma injúria feita ao companheiro na
comunidade. Isso se exclui porque é incompatível com o
amor que cada um deve ao outro e que dá poder para
promover o outro.
y. 9:“Amor fraterno” é o fator constituinte da exis
tência autêntica e, com respeito a esta faceta essencial de
suas vidas, Paulo diz que os tessalonicenses fo
ram “ensinados por Deus”,: Alguns vêem uma referência a
discursos inspirados de profetas cristãos nas assembléias
litúrgicas, ao passo que outros encontram alusão ao anún
cio do querigma ou ao conhecimento das palavras de
Jesus. Sc Paulo tivesse em mente alguma dessas possibi
lidades, seguramente ter-se-ia expresso de forma diferen
te. O termo “ensinados por Deus” ocorre só aqui nos
escritos paulinos e a analogia mais próxima se pode
encontrar em ICor 2,13, em que Paulo pretende falar “em
210
palavras ensinadas pelo Espírito”. Seu sentido aí é escla
recido pelo versículo precedente: “Não recebemos o espí
rito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus para
podermos entender os dons concedidos a nós por Deus”.
Assim como um tipo de conhecimento é dado com a
existência inautêntica (“o mundo”), também outro é dado
com a existência autêntica (“o Espírito”). A humanidade
decaída adota instintivame nte as estruturas daquele modo
de ser. O novo ser em Cristo é devido à iniciativa de Deus
e, consequentemente, o conhecimento instintivo dado com
ele deve-se atribuir a ele. Todo o que aceitou Cristo não
pode fugir da importância primordial do amor/A existência
inautêntica é inconcebível sem o reconhecimento do outro
como “irmão”. O interesse de Paulo é tornar totalmente
consciente o que já está presente e em particular iluminar
a dimensão prática.,
Vu. 10-11: Tanto a estrutura da frase como a forma
deste parágrafo revela que Paulo não fala sobre algo
distinto do amor fraterno. Trata-se de frisar algumas de
suas virtualidades. Uma vez que lTs 3,10 provavelmente
pertence a outra carta, não acho nenhuma razão que leve
a relacionar essas admoestações a uma situação específi
ca em Tessalônica. A conversão pode ser experiência
pesada e perturbadora, e a intenção de Paulo é ir contra
a tendência natural ao exagero por conselhos de prudên
cia e moderação. O entusiasmo religioso derivado da
conversão é fundamentalmente concentrado em si, por
que a experiência é só do indivíduo. Como tal, opõe-se à
existência partilhada que se supõe ser o modo de ser do
crente. Ficar calmo, cuidar dos próprios assuntos e traba
lhar não são necessariamente expressões do amor frater-
noÁO interesse de Paulo é levar os novos convertidos ao
quadro de pensamento em que o amor mútuo pudesse se
211
1
212
Contudo, se fossem tomadas muito a sério e adquirissem
o status de preceitos vinculantes, o crescimento na auten
ticidade seria completamente frustrado. O risco, porém,
deve ser tido, porque a consideração realista não podia
ditar nenhum outro curso.
Precisamente porque a posição de Paulo era tão sutil
que estava largamente aberta a compreensões equivoca
das, e as duas reações possíveis estão exemplificadas
pelos gálatas e pelos corintios. Os primeiros sentiram a
insegurança que Paulo esperava, mas ela os apanhou com
intensidade que ele não podia antecipar. Suas diretivas
iluminaram certas áreas de comportamento, mas deixa
ram muita coisa a seu próprio juízo. Uma vez que sua
mentalidade era a dos que aspiravam a qualificar antes
que exceder, queriam estar inteiramente seguros e assim
elevaram suas diretivas indicadoras ao status de obriga
ções vinculantes. Nada mais pode explicar as boas-vindas
que deram aos judaizantes que chegaram com os 613
preceitos da lei. A fileira de mandamentos preenchia
todas as áreas escuras que Paulo tinha deliberadamente
deixado em branco para que pudessem eles próprios
exercer sua iniciativa determinando o comportamento
que cabia a um membro de Cristo. Daí, a tremenda
insistência na “liberdade” que encontramos em Gálatas.
Paulo é categórico em sua insistência para que aceitassem
a responsabilidade da liberdade, porque de outra forma os
seus trabalhos em favor deles serão em vão (G14,11). Daí,
nesta carta o seu maior interesse é mostrar que os crentes
agora existem numa forma diferente e que a submissão a
leis vinculantes é coisa do passado. 'Seus esforços são
dirigidos a corrigir atitude fundamental que comprome
tia tudo o que se tinha conseguido./'.
213
O erro dos corintios
214
“liberdade de”¿\Ele afirma claramente que a liberdade
está enraizada na unidade e, uma vez rompida a unidade,
desvanece a liberdade. /
No primeiro caso, os corintios fizeram uma escolha
errada ao decidir que era permitido ao cristão dormir com
prostituta (ICor 6,12-20). Seria muito mais fácil seguir a
discussão de Paulo se soubéssemos exatamente que argu
mentos os corintios usaram para apoiar essa conclusão.
Como está, temos que deduzir sua posição do que ele diz,
e isso introduz inevitavelmente um elemento de incerte
za. Pareceria, contudo, que os corintios faziam distinção
aguda entre o corpo e o espírito e sustentavam que,
enquanto seus espíritos estavam unidos ao Senhor, seus
corpos poderiam seguir suas inclinações naturais. Daí,
assim como o corpo pode satisfazer sua necessidade de
alimento e bebida ocasionalmente, assim também pode
satisfazer seu desejo de relações sexuais (v. 13). No seu
modo de ver, união carnal com a prostituta estava em
relação inteiramente neutra com a união espiritual com o
Senhor.
Em resposta, Paulo argumenta que a dicotomia pro
posta entre corpo e espírito é insustentável. O corpo é
parte integral da pessoa humana, e prova-se-o pelo fato de
que ele ressuscitará dentre os mortos (v. 14). Mais signi
ficativamente, os corpos dos cristãos constituem a dimen
são física da presença de Cristo no mundo (v. 15). E
através da atividade do corpo que o comprometimento do
espírito adquire realidade e eficácia (v. 20b). Embora o
corpo e o espírito difiram, constituem parte juntos do
serviço de Cristo. A função do corpo é precisamente servir
como a manifestação concreta do amor criativo a que o
comprometimento da fé une a pessoa. Sendo assim, a
união física efetuada pelo intercurso visa expressar o
amor que tem o poder de unir as duas pessoas em autên
tica unidade (v. lSb/'O coito com uma prostituta é, pois,
coisa errada, porque este comprometimento com o outro
como pessoa está excluído (v. 15). O próprio ser do cristão
édar, mas na fornicação casual ele apenas toma/A outra
215
pessoa é usada e, dessa forma, se lhe dá o estado de “coisa”,
para gratificação egoísta. /.
Entregando-se a si mesmos a uma forma de compor
tamento que corresponde à cgocentricidade do mundo (cf.
ICor 6,9-10), os corintios estão em perigo próximo de uma
vez mais se tornarem escravizados ao Pecado. Sendo
assim, Paulo faz duas adições ao slogan dos corintios: “Nem
todas as coisas são para mim o melhor” e “eu não ficarei
escravizado por nada” (ICor 6,12). Certas ações não são
para o melhor porque por sua própria natureza implicam
retorno à inautenticidade. Como membros de Cristo, os
corintios devem afirmar existencialmente a verdade: “Não
pertenceis a vós mesmos” (ICor 6,19b), se querem salva
guardar sua liberdade/lEntrega exclusivamente intelec
tual à unidade é sem sentido.,
216
mesa em um templo de ídolo, a ti que tens a consciência.esclarecida,
porventura a consciência dele, que é fraco, não será induzido a
comer carnes imoladas aos ídolos? E, assim, por causa de tua
ciência perecerá o fraco, esse irmão pelo qual Cristo morreu!
(ICor 8,9-11).
217
cristão, a não ser que seja também boa para os outros na
comunidade a que pertence. A pedra de toque da verdade
moral é a edificação da comunidade (ICor 10,23)/’.
A renovação da mente
218
A última frase indica claramente que Paulo tem em
mente a narrativa do Gênesis e, em particular, as pala
vras da serpente a Eva: “Deus sabe que, quando comerdes
dela, sereis como Deus, sabendo o bem e o mal” (Gn 3,5).
A humanidade foi criada à imagem de Deus, mas caiu,
mediante buscar conhecimento moral, em maneira con
trária à vontade de Deus. Como resultado, seu senso
moral se inutilizou. Para os judeus, este defeito só foi um
tanto remediado pelo dom da lei, de sorte que seus efeitos
só eram totalmente evidentes nos gentios, como o afirma
o mais antigo comentário a esse versículo: “Não andeis
mais como andam os demais gentios, na futilidade de seus
pensamentos, com entendimento entenebrecido, aliena
dos da vida de Deus pela sua ignorância e pela dureza dos
seus corações” (Ef 4,17-18)/}Reçriados_em_Cristo (2Çor
5,17; G1 6,15), que é a imagem de Deus (Cl 1,15), o novo
homem recupera sua capacidade de juízo moral. Mas,
como vimos, este novo homem não é o crente individual,
mas a comunidade cristã (cf. p.l88).( '•
O contraste entre o “velho homem” e o “novo homem”
e a ênfase na qualidade progressiva do conhecimento
moral (“está sendo renovado”) ligam Cl 2,10 muito estrei
tamente com o segundo texto:
219
idéia aparece um pouco mais adiante, mas desta vez
expressa de modo semítico que abstrai da distinção entre
causa primária e secundária: “Deus os entregou a uma
mente aviltada para fazerem o que não convém” (Rm
1,28). Ô paralelo entre “coração” e “mente” indica que
Paulo pensa na faculdade racional, não, porém, isolada,
mas precisamente na medida que dá orientação à perso
nalidade inteira. Neste tipo de contexto, portanto, ambos
se traduzem melhor por “mentalidade” em vista da sutil
fusão do coletivo com o individual./‘Coração” é coletivo no
v. 21, mas o individual manifesta-se com o uso do plural
no v. 24: “Deus os entregou aos desejos de seus corações”.
De modo semelhante, “mente” é coletivo no v. 28, mas o
plural “mentes, raciocínios” aparece no v. 21. Isso é
perfeitamente compreensível à luz do que vimos com
respeito à relação das criaturas inautênticas ao “mundo”
(cf. cap. 4)¿'Elas estão dominadas pela orientação
corporativa que reforçam por sua conformidade. “A men
te aviltada”, portanto, é a “mentalidade” do mundo que
Lodos assimilam inconscientemente e revelam em seus
“raciocínios” individuais (cf. Ef 4,17-19). p
Se a “mente aviltada” é a mentalidade que domina o
modo inautêntico de ser, “sendo mente renovada” (Rm
12,2; Ef 4,23) é a mentalidade de sua antítese, ou seja, a
comunidade que é o Corpo de Cristo. Nas próprias pala
vras de Paulo, é “a mente de Cristo” (ICor 2,16). O uso do
coletivo torna-se imperativo pela unidade orgânica da
comunidade<lA “mente de Cristo” é a perspectiva própria
do Homem Novo do qual os indivíduos são apenas mem-
220
Como em Rm 12,23, o passivo “sendo transformados”
mostra que os crentes não são os agentes primários de sua
própria transformação/Deus age_em e por meio da comu
nidade salvífica. Por sua abertura a Cristo, a comunidade
é transformada em sua imagem? Note-se a mesma com
binação de Rm 12,2 de verbos plurais e p substantivo-
chave (“mente” — “imagem”) no singular. A medida que a
comunidade aprofunda seu comprometimento com o ide
al, a atitude existencial de Cristo (cf. F1 2,5) torna-se
progressivamente mais manifesta, primariamente na co
munidade e como derivativo nos indivíduos que a consti
tuem. A medida que a comunidade exemplifica a humani
dade autêntica manifestada por Cristo, ela julga do ponto
de vista de Cristo. E nesse sentido que se pode dizer que
ela possui “a mente de Cristo”. A posse, porém, não é
cumprimento estático de uma vez por todas, mas processo
continuado que se harmoniza com o crescimento do Corpo
(Cl 2,19; Ef 4,13).'»
Somente nesta perspectiva torna-se possível enten
der como pode Paulo definir “a vontade de Deus” que é o
objeto da atividade corporativa da mente como o que é
“bom e aceitável e perfeito” (Rm 12,2). Os comentadores
comumente admitem que o ponto inexpresso de referên
cia é Deus, tanto porque “aceitável a Deus” aparece no
versículo anterior como porque “aceitável” alhures em
Paulo é sempre usado em conjunção com “a Deus” (Rm
14,18; F1 3,18) ou “ao Senhor” (2Cor 5,9; Cl 3,20). Certa
mente este argumento pode agir da outra forma. Se Paulo
insere habitualmente o ponto de referência, sua omissão
aqui deve ser deliberada e, portanto, significativa. Os três
adjetivos substantivados “bom, aceitável, perfeito” estão
em oposição a “a vontade de Deus”, e assim se relacio
nam diretamente com “julgar” e mais precisamente com
“testar” a menteZ^_que Paulo quer dizer, pois, é que tudo
o que a mente corporativa testar e achar que é “bom, acei
tável e perfeito” é de fato a vontade de Deusf.C. H. Doddo
percebeu e notou em seu comentário sobre este versí
culo:
221
A vontade de Deus para o homem não é certa forma misteriosa e
irracional de santidade... Consiste naquela espécie de vida que
a mente renovada do cristão pode ver que é boa em si mesma,
satisfatória e completa.
222
posta pela “liberdade a”/|jma decisão moral, verdadeira
mente inspirada pelo amor que se autodoa, que animava
Cristo (2Cor 5,15), afirma e confirma o próprio ser da
comunidade, e assim a dependência do crente no ser é
atualizada na liberdade.(“Portai os fardos uns dos outros,
e assim cumpri a lei de Cristo” (G16,2), cujo único preceito
é o do amor.
223
vez que toda sua existência está focalizada em Cristo, e
uma vez que percebe a morte como caminho para mais
íntima união com Cristo, ele acha que morrer é “muito
melhor”. Nada no contexto sugere repugnância pelo fardo
da vida. Do modo de ser de que Paulo goza agora, Cristo
passou a outra vida que o Apóstolo deseja partilhar. Em
teoria, nada podia ser tão simples, e assim Paulo
conclui: “Meu desejo é partir e ir estar com Cristo”.
Perfeição teórica, porém, nunca pode ser o critério
primário no julgamento moral de um cristão; também não
pode sê-lo a preferência pessoal, não importando quão
próxima possa estar relacionada com o ideal abstrato.
Sendo assim, Paulo decide por fim em favor de viver,
porque “é mais necessário por vossa causa... para proveito
vosso e para alegria de vossa fé”. A vida em Cristo é
existência partilhada, e o único critério de uma decisão
autêntica é: o que contemplo concretizará e realizará
aquela partilha? As necessidades dos outros devem, por
tanto, sempre ter precedência à satisfação pessoal, por
mais justificável que possa ser esta última. No caso
presente, Paulo acha-se colocado entre o ideal em sua
perfeição abstrata e o ideal em sua realização embrioná
ria, entre Cristo em si mesmo e Cristo na comunidade.
Sua situação é análoga à dos coríntios, que se confrontavam
com a escolha entre a verdade de princípios e a verdade da
realidade^Mas onde optaram erroneamente pela simpli
cidade do abstrato, Paulo seTlecide pela complexidade do
real, participando plenamente da “mente de Cristo”, cujo
critério é fornecido pelo auto-sacrifício da cruz, cuja pro-
lundidade derivacla acumulação da experiência viva da
comunidade e cuja clareza aperfeiçoa-se mediante parti
lha contínua no amor.; .
224
LEITURAS SUGERIDAS
225
INDICE
5 Prefácio
12 Prefácio à segunda edição
17 1. PAULO E JESUS
17 A tradição farisaica
(23> A experiência de conversão de Paulo
26 A tradição cristã
31 Leituras sugeridas
33 2. CRISTO, 0 CRITÉRIO
33 Como a humanidade deveria ser entendida
36 Uma aproximação falsa
'40 A intenção divina
45 Autêntica humanidade
A imagem de Deus
56 Realidade histórica
58 Leituras sugeridas
91 5. O PECADO E O MUNDO
92 A humanidade como “morta”
94 O pecado e o mundo
100- Responsabilidade humana
104 Um dilema
108 Leituras sugeridas
159 9. LIBERTAÇÃO
160 O “como” da liberdade
163 A comunidade pecadora
As crianças e a comunidade
K171 ' A fragilidade da liberdade
178 Leituras sugeridas