Teoria e Metodol. Literarias Aguiar e Silva

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2.

1 História semântica do lexema 'literatura'

O lexema literatu_ra deriva historicamente, por via erudita, do lexema latino


litterat~ra, o qual, por sua vez, é um decalque do vocábulo grego grammatik ê.
0

Nas principais línguas europeias, os lexemas derivados, por via erudita, de


litteratura entraram, sob formas muito semelhantes - cf. espanhol: literatura;
francês: littérature; italiano: letteratura; inglês: literature - , na segunda
metade do século XV, sendo um pouco mais tardio o seu aparecimento na,
língua portuguesa e na língua alemã (século XVI) e na língua russa (sé-
c.Úlo XVII). ·· ·
O lexema latino litteratura, derivado do radical litterg - letra, carácter
alfabético -, significa saber relativo à arte de escrever e ler, gramática,
< • i ~ . " ~ '

instrução, erudi_ção. O litteratus- lexema do qual, em português, procedem a


forma popular letrado e a forma erudita literato -/ha o homem que sabia
desenhar e decifrar as letras, aquele que conhecia a gramática, em especial a
gramática latina, e que, por: isso mesmo, gozava de prestígio cultural e social.
Nas diversas línguas europeias, até ao século XVIIJ, o conteúdo_ semântico do
lexema literatura foi substancialmente idêntico ao do seu étimo latino, désig-
nando literatura, em regra, o saber e a ciência em gera_!. No Génie du ·christia-
nisme ( 1802), ainda Chateaubriand congloba, sob a designação de literatura, a
filosofia, a astronomia, a matemática, a química, a história natural, a história
4 " • ~

e a eloquência!
Ant~riormente à segunda metade do século XVIII, quando se pretende deno-
minar a arte e o corpus textual que actualmente designamos por literatura, são
utilizados lexemas e sintagmas como poesia, eloquência, verso e prosa,-etc.
Na segunda metade do século XVIII, o lexema literatura apresenta uma pro-
funda evolução semântic_a, em estreita conexão com as transformações d.a
cultura europeia 11esse período histórico. Subsistem no s~u uso, por força da
tradição. linguística e cultural, os significados acima referidos, mas.
manifestam-se também, em correlação com aquelas transformações, 11ovo~
c:onteúd9s semânticos, que divergem dos anteriormente vigentes e que diver-
gem também entre si.
o Por um lado, o lexema literatura passou a significar um específico fenómeno
estético, uma específica modalidade de produção, expressão e comunicação
artísticas, enfim, uma arte, tal como a pintura e a música. Por outro lado,
passou também a designar os produtos, o corpus de textos resultantes daquela
arte.
Do significado de corpus em geral de textos literários, passou compreensivel-
mente o lexema literatura a significar também o conjunto da prndução literá-:
ria de um determinado pafs, tornando-se óbvias as implicações filosófico-
-políticas de tal conceito de literatura nacional: cada país possuía uma
literatura com características próprías, uma literatura que era expressão do
espírito nacional e que constituía, por conseguinte, um dos factores funda-

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mentais para se definir a natureza peculiar de cada nação. Sintagma,s coipo
literatt1!a alelJ!ã, literatura francesa, literatura italiana, etc., foram-se tornando
de uso frequente a partir dos últimos anos do século XVIII.
Eis as linhas fundamentais da evolução semântica do lexema literatura até ao
limiar do Romantismo. Tal evo!ução, porém, não se quedou aí, mas prosse-
guiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em breve síntese, as mais
importantes acepções adquiridas pelo lexema neste período de tempo:
a) «Conjun!Q, d,:!,§_ e:J<;pre§s9e§ tsc_rüas do esp~r~to hur:nan?», ou seja, o
conjunto das obras literárias de todos os povos e de todos os tempos.
Este conceito de literatura mundial ou universal ( Weltliteratur) foi
primeiramente formulado por Goethe, em 1827;
b) Conjunto da produç:ão lite.rária de um<t ~P<?fª - literatura do sécu-
lo XVIII, literatura victoriana -, ou de uma região - pense-se na
famosa distinção formulada por Mme de Stael entre literatura do norte
e literatura do sul, por exemplo;
c) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial
quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua tJ?-tençã,o:
literatura feminina, literatura de terror, literatura revolucionária, litera-
tura de evasão, etc.;
d) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto: _literatura
sobre o barroco, literatura sobre o estruturalismo, etc. Este significado
é originário da língua alemã, da qual transitou para outras línguas;
e) Retórica, expres,são artificial _e. falsa. Verlaine, no seu poema Art
poétique, escreveu o famoso verso: «Et tout le reste est littérature»,
identificando pejorativamente literatura e expressão retórica, falsa e
artificial;
f) Por e!jp~e, emprega-se simplesmente literatura em vez de história da
literatura;

. literatura significa também manual de história da


g) Por metonímia,
.

literatura;
h) Literatura pode significar ainda conhecimento sistemático, científico,
do fenómeno literário. Trata-se de um significad_o caracteristicamente
universitário do lexem.;i e ocorre em sintagmas como literatura compa-
rada, literatura geral, etc.

2.2 Génese histórico-cultural do conceito de literatura

Como se conclui de quanto atrás ficou exposto, foi na segunda metade do


século XVIII_, que, em virtude de profundas transformações semânticas, o
lexema literatura adquiriu os significados fundamentais que ainda hoje apre-
senta: uma arte que utiliza como meio de expressão e comunicação a língua-

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gem verbal, uma específica categoria da criação artística, um conjunto de
textos resultantes desta actividade criadora, uma instituição de índole
soei ocul tural.
Como observa Alain Viala, no seu importante livro intitulado Naissance de
!' écrivain. Sociologie de la littérature à !' âge classique (Paris, 1985), acreditar
que as transformações lexicais e as práticas culturais são sincrónicas seria
aceitar um nominalismo infundamentado. Ao longo dQ séçµlo xyn, em
França como noutros países europeus, vai-se configurando a literatura como
instituição, vai-se fortalecendo e difundindo .a idé:i_a de,_ que as belas-letra.s ·:
representam um domínio partkularizado, predominantemente constituído
pela~ o~ras dos escrito~es - p~~tas, oraBtres, historiadores - e não pelas_
obras dos autorE:s, que cultivavam indistintamente as letras e as ciências. Uma
análise lexicográfica, semântica e sociológica como aquela empreendida por
Alain Viala contribui de modo importante para matizar o nosso conhecimento
histórico da emergência do fenómeno da literatura - e não apenas da emer-
gência do termo literatura~, mas não permite concluir que a modificação do
conceito de literatura seja anterior a meados do século XVIII.
As razões desta modificaçã_o e_das tr<1nsformações sernâ,ntiqt~ elo termo Htera-
tur~ são de vária ordem, embora profundamente conexionadas.
Por um lado, o termo ciência adquiriu então um significado mais estrito, em
consequência do desenvolvimento da ciê~ci~ indutiva e ·experimental, de
modo que se tornou cada vez menos aceitável incluir nas belas-letras os
-- • • • ' 1, "' ·---·· ' ' J

escritos de carácter científico. Em consonância com este'desenvolvimento da


ciência indutiva e experimental, ocorreu também uma prqgre~siva v.alorização
da técniça, difundindo-se a consciência de que também as obras de conteúdo
técnico não cabiam dentro do âmbito das belas-letras.
Paralelamen_te com esta crescente especificação epistemológica da ciência e da
tecnologia, foi ganhando fundamentação e consistência teoréticas o_reconhe-
cimento da existência de uma esfera de valqres p~culiarese irredutíveis, por
exemplo, aos valores da políti_ca, da moral ou daciênci_a- a esfera dos valores
da arte, do? valores estétic9s. Duas_datas, 173~ - em que B9.-umgarten ~r.ia, na
sua obra Meditationes philosophicae de nonnulis ad poema pertinentibus, o
vo_cábulo e_stétic~ - el 799. - em que _Kant.fundamenta e analisa, na sua
Kritik der Urteilskraft ( Crítica
··--·-· . do juízo
_, .,_. . ·~
estético),
.... ,,_ .
~
a exist.~ncia autQ,POillª_gg,s.,
valores est_étic9s -, podem ser consideradas como marcos fundamentais deste
processo de reconhecimento da peculiaridade e da autonomia dos valores
estéticos.
Assim se constituiu uma das antinomias fundamentais da cultura ocidental
nos dois últimos séculos - a antinomia da chamada cultura humanística
versus cultura científico-tecnológica. O fenómeno literário representou, desde
o início, o mais relevante factor do primeiro pólo desta antinomia e a sua
importância haveria de alargar-se com o Romantismo, quer como sistema de
valores oposto à ciência, à técnica e à civilização burguesa e capitalista
- civilização cujo progresso dependerá crescentemente do suporte científico-

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-tecnológico -, quer como sistema de valores susceptível de funcionar em
substituição de códigos éticos e religiosos em crise (a literatura erigida em
valor absoluto, teorias da arte pela arte, etc.). Ora, tudo parece indicar que
palavras únicas têm tendência para substituir frases ou expressões, quando
significados novos, interesses culturais novos e importantes passam a ser
representados pelas frases ou expressões. Terá sido o que se verificou na
segunda metade do século XVIII. Sintagmas como belas-letras, letras humanas,
poesia e eloquência, etc., foram substituídos pelo lexema literatura - um
vocábulo etimologicamente ligado à escrita, ao texto escrito, ao texto que se
particulariza por usar de determinado modo a linguagem escrita.
O significado do O_)J:t}"_Q,YQ~~~ulo que poderia ter cornpetido semantiçaI11e_11te _
com literatura, o vocábulo po~si~, passou a estar cada vez mais, do sé-
culo xvm e.m:<Uapte, ou circunscrito a um domínio bem caracterizado da
prodµçãqJiterâria, ou al~r~ado a um âm~ito, q~e~ relativo ao belo artístico em
geral, quer relativo ao belo natural, que transcende a esfera da literatura.
Com efeito, verificou-se nas literaturas europeias, desde as primeiras décadas
do século XVJII, uma acentuada valorização de textos e géneros literários em
prosa, desde o romance e o conto ao ensaio e à sátira ideológico-política. Se o
racio~alismo neoclássico e o espírito filosófico iluminista desempenharam
importante papel na valorização de uma prosa literária apta à comunicação e
ao debate de ideias, o Pré-romantismo rasgou novos horizontes à prosa
literária, com o romance, a novela, as memórias, a biografia e a autobiografia
- géneros literários que adquiriram então um estatuto estético e sociocultural
de que não usufruíam nos séculos anteriores.
Esta importância crescente da literatura em prosa - sobretudo de uma
literatura narrativa em prosa- está relacionada.com um dos grandes fenóme-
nos culturais e sociológicos
~ ".- - ...
ocorridos no século XVIII: o alargamento substan~
' ~ .
cial do pú!)li~? leit~r. Este alargamento foi uma consequência do triunfo
económico, político e cultural da classe burguesa e originou um vigoroso
desenvolvimento da indústria e do comércio livrei~os, a proliferação de insti-
tuições que possibilitavam e promoviam a leitura - bibliotecas públicas,
gabinetes e sociedades de Ieirura -, o aparecimento, pela primeira vez na
história, de escritores que tinham a possibilidade de viverem do rendimento
proporcionado pelas suas obras - é o caso de Voltaire - e a formação çle µm;;i.
opinião públis:a que haveria de exercer uma função relevante não só no campo
das questões ideológico-políticas e sociais, mas também no campo das mani-
festações artísticas.
Dentro de tal condicionali~mo, não era possível alarg<!,r a designação de poe~ia
a uma produção literária em que avultavam cada vez majs, quer sob o ponto de
vista qualitativo, quer sob o ponto de vista quantitativo, os textos em pros<!,.
Poesia passou a designar predominantemente os textos literários que apresen-
tavam determinadas características técnico-formais - os textos poemáticos,
os textos escritos em verso - ou então passou a designar uma categoria
estética susceptível de qualificar quer obras artísticas não-literárias, quer
determinados aspectos e manifestações da natureza ou do ser humano (a

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poesia de uma pintura, a poesia de uma paisagem, a poesia de um rosto, etc.).
Tinha de se adaptar portanto outra designação genérica mais extensiva. Essa
designação foi literatura.
A partir da difusão do novo significado do termo literatura, começaram a
verificar-se inevitavelmente usos anacrónicos do termo, isto é, a sua aplicação
a épocas e a autores em que o termo não existia com o novo significado. Assim,
por exemplo, passou a falar-se de literatura grega, literatura latina, literatura
medieval, da concepção de literatura em Aristóteles, em Horácio, etc.

2.3 Do conceito de literatura ao conceito de literariedade


A pequena história atrás delineada do vocábulo literatura deixa logo prever as
dificuldades
~ . inerentes ao - estabelecimento
~.
···-'·' . de-·•--. uma definição
- _,, ' ., ~--
'.•· . ..
do respectivo
. .
•.- --~_,,,,., ' ,- .,_

conceito: o vocábulo é fortemente polissémico; o conceito de literatura é


r~Tativ;menternoderpo e· constituiu~se n~ âmbito de um determinado drcu-ns:.
tancialismo histórico-cultura\:~ literatura não co~si~te apenas numa herançà,
num conjunto fechado e estitico de textos inscrito no passado, mas ap~e.sent~-
-se antes
. como um ininterrupto processo
' . .. ,.. . histórico
. .de .....
produção de novos , -;:,

textos, os quais não_só podem representar, no momento históricodo s~u


apàrecimento, uma ~ovidad~ ~ uma :r~ptur~ imp~~visíveis em relação aos
textos Caté ;ntão conhecidos, mas podem ainda provocar modificações pro-
fundas nos textos anteriormente prociuzidQ\>, n~ rn~ct{dã~m que pr;pi~iarn~ oÜ
determinam,
,. .
novas
.
leituras desses mesmos textos.
" ... -
'"

Na época positivista, as dificuldades e os melindres do estabelecimento do


conceito de literatura foram simplista e radicalmente supj:-imidos, ao aceitar-se
como literatura, seguindo talvez a sugestão oferecida pela etimologia do
vocáb_ulo, todas as obras, manuscritas ou impress_as, que representassem a
civilização de qualquer época ou de qualquer povo, independentemente de
possuírem, ou não, elementos de natureza estétic~. Neste amplo conceito
positivista de literatura, cabem tanto o poema lírico, o romance e a comédia
como uma obra historiográfica, filosófica, jurídica, etc.
Em clara e consciente reacção contra este conceito positivista de literatura,
que d-ominou em tantos manu;is de história literária d.a seg~nda metade do
séculoXIX, e ainda das primeiras décadas do século XX, os três mais influentes e
mais fecundos movimentos de teoria e crítica lltÚá~ias ~a primeira metade do.
século. actual - o formalismo ru~so, o new crüicis"! anglo-americano e a
- estilísti~a - coincidem no reconhecimento da necessidade urgente, metodolo-
gicamente prioritária, de estabelecer com rigor um conceito de literatura qua
literatura,_isto é, enquanto fenómeno estétic,o espe.cífiço. Implícita ou explici-
tamente, proponham, ou não, taxativas definições de literatura, o formalismo
russo, o new criticism e a estilística advogam. o princípjo de que os textos
literários possuem. caracteres estruturais que os diferenciam inequivocamente
dos textos não-literário~, daí_procedendo a viabilidade e a legitimidade de uma
definição referencial de literatura, isto é, de uma definição que explica a
natureza do objecto definido.

41
A ideia da existência de uma especificidade do discurso literário e da esfera da
literatura é de origem kantiana e desenvolveu-se, ao longo do século XIX,
muitas vezes em formulações radicais, nas teorias da arte pela arte. No final do
século XIX e primeiros anos do século XX, a ideia, bem viva nas poéticas do
simbolismo e do modernismo, ganhara novo alento com a filosofia neo-
-kantiana, que estabelecia a existência na cultura de domínios bem delimita-
dos e caracterizados.
O"conceito de literariedade, formulado porB,Qm?-1_:tJªk()_t)~()I} logo nos primei-
ros anos do formalismo russo, num en8-a,io p1,1b,licago ~m 1~2}, corresponde a
esta necessidade teorética de identificar
---"~·-Ã.~,...·,.·.·~
a especificidade
·-~·--" -.•----·· .. _,,
da literatura.
. ·.,. , ·• '•·· ~-- ·•
A litera-
riedade, definida por Jakobson como o que faz de uma determinada obra uma
obra literária, como o sistema de processos que transformam um acto verbal
numa obra literária, é concebida como uma essência transtemporal, uniy_~r,sal,. • • • ,._.-~ •• , •' "", • ➔ ~ •• • • • - ., • • ",,., • • " - ' ... ... ••• • • ' • • •••• .,. ~ -. . ..,

não a,fectada p~lé:ls mudanç3:s, c<:>ptextua}s, que se manifesta como um ç~_11ju.:p~o


de traços discursivos invariantes e específicos que torna peculiares, formal e
semanticârnen1ê; Os textos literários. .. ... - . . .
No âmbito do formalismo russo, constituiu-se uma teoria explicativa da
Iiterariedade que estava destinada a conhecer uma fortuna excepcional nos
estudos literários contempo-~âneos: a linguagem literári_a é concebida e des-
crita como sendo o resultado)o produto de uma função específica da lingua-
gem verbal: · .... · · . · · · ·

No mesmo ensaio de }~?!,_intitulado «A nova poesia rus~a», em que formula


pela primeira vez o conceito de literariedade, Jakobson escreve que «a poesia é
a linguagem na sua ...... ...
função
.· ___
--••"'"•'"'"'
estética»,
... aparecendo como m~rca distintiva desta
, ",-••· ,.,

função o valor autónomo concedido à palavra. Num outro estudo mais tardio,
intitulado «O que é a poesia?», Jakobson, ao analisar o conceito de poetici-
dade, refere-se a uma função estética e a uma função poética da linguagem, que
se manifesta no facto de «as palavras e a sua sintaxe, a sua significação, a sua
forma externa e interna não serem indícios indiferentes da realidade, mas
possuírem o seu próprio peso e o seu valor próprio». Numa série de conferên-
cias inéditas sobre o formalismo russo, proferidas em 1935 na Universidade de
Brno e das quais se conhecem apenas alguns extractos, de novo Jakobson
analisa a natureza da poesia com fundamento na função poética da linguagem,
• , •.• , ..... ,.,.,. ....... ,... ,,,s,- .,,,-.~-,-~"- ' ,,, " • • .•• ,. •• ' .• - ...• •

apresen!<:1n<:l9._~_~,~~.f~P9!.<?..Çg~g _ct~o:111inl_lnt~, isto é, como o elêmentô-foêal,


especificante, d~.9-.PI<l:,P<?.~!_ic.a e da linguagem poética em geral e caracteri-
zando esta, 1-in&1;1~g~}P:p_el9J?:çtg_gé ~s(ir,:or,ientada precisamente para o -sina·l
enqua9._tQ_Ja,l». A fµ_nçi!oe~tética não élmll_aa existência, na obra poética;de
outras funções lin,gl,!,Í~Jiç;él.S - J akobson menciona mais duas, a função referen-
• ,~>>• •'·"•'"'"º''· '

cial e a função expressiva-, mas subordina-as hierarquicament.e, de modo que


elas se encontram, na estrutura poética, não apenas submetidas à função da
dominante, mas tarnbérrU_ra_ri~f9r111_aqéls pqr esJa. P()r outro lado, a função
estética pode ocorrerem textos não-poéticos, mas com carácter adjuvante ou
subsidiário, oü'sê}a:·,s~~ ~ ~;t~t~,t~· d~do~inante: ..,. ······
... ~-
·>-••- •

.
-.,..., __~ -·-•··--

Por conseguinte, das diversas análises que Jakobson consagrou à função


estética ou função poética da linguagem verbal, durante os anos de desenvol-

42
vimento do formalismo russo e durante os anos imediatamente subsequentes à
sua forçada desagregação - nos anos vinte e trinta deste século, respectiva-
mente-, conclui-se que, e~_st:uentçp.cie,r, nos textos em que aquela função
actua como dominante as estruturas verbais adquirem valor autónomo,
orientando-se os si;:.<.Ü~JiE~~j.§JJs9.s p~~-~-~L!!l.f,S_fQQS, para «a sua forma externa
e interna», e não p~r.él. llill,:tf~ªJig(!çiet,:,~t.rnJiDE!Ü~lÜ::Jt- orientação própria da
função referencial - ou para a s,1,1_l:üecti\'.idade.d,o,,;i,,µJo:c - orientação própria
da função expressiva. Quer dizer, Jakobson considera indissociáveis_a função
e~!~.t.i.~~-°.1:Jl°-~-t!~~ da lin_g__ua,g_em e"a natureza,a.utónoma e autotélic<i·~?..!.~~t?
p~~Ê.<?.?, isto é, na tradição da estética kantiana, um_!~2(.!5?.9-~~--!-~E1 ..~!!J:-~i-,_
pr.9p_rio a .S.11-~_!:9:zã:9_de ~-~.r. ~--él__S..~AJtqªljs:l,ªs!~-
O conceito de função poética da linguagem desempenha um papel muito
importante nas teorias do Círculo Linguístico de Praga sobre a natureza da
linguagem poética. Nas Teses de 1929, o grande texto programático do estru-
turalismo
·~• ,
checo, co~t;apõ~~se-â"rüiíçio de comuni~;çi;d~-li~g~~.i~m, que s~
_,,.,..........,.,,,_,,., ..,,~----~·· ... .........
~

verifica quando a linguagem está dirigida para a realidade extralinguística, à


f m1çãQp_oética, que ocorre qüanqg_<.1, linguagem «está dirigida J?ªra o sinal em si . ·
~~~~.9».~ q~e caracteriza de modo ;;p~~ífico a lingu--;ge~-p-~éti~;~-O~-a~~en-
0


,..,._,.,.,,._~ ,,. •' •• ••"' • -.c-s ~-,,,-,,,· fm•., .,~.,_,,_.,,,.,.,_,,~~. -. . . . . ~,. -..,---"~"-· .,,. z,~•• "-'::!"" .,-,,,.,. •. •""'-"'·'- , ,,,, •"

tos do sistema linguístico desempenham na linguagem prática e na linguagem


teórica, caracterizadas pela função de coqmnicação, um papel apenas instru-
mental, ao passo que adquirem na linguagem poética «valores autónomos mais
ou menos consideráveis».
Num estudo que logo se tornou famoso, intitulado «Linguistics and poetics»,
publicado em !.9..§9.., Roman Jak?!:'19.1! _retomou subs'tancialmenteas · sua;
teorias dos anos vinte sobre a função estética da linguagem, expondo-as sob
forma sistemática, num quadro teórico mais amplo e com um aparato cientí-
fico mais complexo (fornecidos, um e outro, sobretudo pela linguística geral e
pela teoria da comunicação). A teoria jakobsoniana da f1:1,!!.S:~-°-- poéti~a d~ ..
linguélgem _exposta no citado estudo constitui a formulação mais desenvolvida
e amadurecida do conceito formalista de lit~ra!~e~a.de.,
Segundo Jakobson, a comunicação verbal pressupõe necessariamente a inte-
racção de seis «factores inalienáve'is», que podem ser assim esquematicamente
representados:
CONTEXTO
EMISSOR MENSAGEM DESTINATÁRIO
CONTACTO
CÓDIGO

Cada um destes factores origina uma função linguística específica, embora


seja difícil apresentar uma mensagem em que se realize de modo exclusivo
apenas uma dessas funções: em geral, verifica-se em cada mensagem a pre-
sença de mais do que uma função, impondo uma delas o seu predomínio sobre
as outras ( «função predominante»). A estrutura yerbªl de 11ma _t11ensagem ..
depende primariamente d<Ct_(unçã9 _que.n_~la.~_pr_ecig_rninª"r:it~...

43
Por conseguinte, Jakobson distingue seis funções na linguagem verbal:
a) A função expressiva ou emotiva (denominação proposta por A. Marty,
suíco discípulo de Brentano e colaborador do Círculo Linguístico de
Praga), centrada sobre o sujeito emissor e aspirando a «uma expressão
,-,..__.....,.....,,_,_ _,,.,~~.,•~•- . .'~•--u.-,,,.,,_

directa da atitude do sujeito em relação àquilo de que fala. Tende a dar


a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou fingida.» As interjei-
ções representam o estrato da língua puramente emotivo, mas a fun-
ção emotiva é inerente, em vário grau, a qualquer mensagem, quer se
considere o nível fónico, quer o nível gramatical ou o nível lexical. A
informação veiculada pela linguagem não pode ser restringida à
informação de tipo cognitivo.
b) A função conativa - Jakobson designa assim a função denominada
apelativa(' Appell') por Karl Bühler -, orientada l?êJ.f!.Q.,9e.s.tin.,at~IiQe
encontrando a sua manifestação gramatical mais pura no vocativo e
no imperativo. As frases imperativas, ao contrário das declarativas,
não podem ser submetidas a uma prova de verdade, nem transforma-
das em frases interrogativas.
c) A função referencial (chamada também denotativa ou cognitiva),
orientada para o referente, PªFª o contexto.
d) A função fática, que ocorre como predominante nas mensagens que
têm como finalidade «estabelecer,
.,~~-~- ,., .,.. •
prolongar
•• ,.,~,-~-······•-••p,0
ou
.
interrom.12.er a comu-
·•----···· ··•"""•'<"•·• .,

nicação, verificar se o circuito funciona[ ... ], fixar a atenção do interlo-


cutor ou assegurar que esta não afrouxa» (por exemplo: 'olhe lá', 'ora
diga-me', 'está a ouvir-me?', etc.).
e) A função metalinguística, que ocorre «quando o emissor e/ou o recep-
tor julgam necessário averiguar se ambos utilizam na verdade o
mesmo códigp ». Quando. ;·di~cu~s~ ~~tá centrado no cóc!ÍgO:desem~"
penha por conseguinte uma função metalinguística. Esta funçãq
representa um instrumento importante nas investigações lógicas e
linguísticas, mas o seu papel é também relevante na linguagem
quotidiana.
f} Finalmente, a função poética, centrnda so~re a própria mensagem: «A . . ' - - · - " · ' ... - 'I '~ .., ·----""'"'"'"'~'-'• ,_ li,

orientação (Einstellung) para a mensagem enquanto tal, o centro de


interesse incidindo sobre a mensagem considerada por si mesma, é o
que define a função poética da linguagem.» A função poética !1.ª-.Q __
cog§_t~!~!.ª. _f'll11~~0~:xdusiva -~e:> cCl_njuntÇ? de textos que Ja½ol)~on
designa flOr «arte da linguagem», pois ela é apenasa suafünção
do~i~-;~!e, ª~- l;d~ ·c1a:· qual
as outras 'rú~ções. atrás enúmeradas
desempenham um papel anci_l_3;r e subsidiário. Em contrapartida, a
função poética pode desempenhar um papel secundário, embora
muito importante, em mensagens cuja função dominante seja uma das
outras funções (por exemplo, nos slogans da publicidade comercial ou
• ,. . •. ,,. ., Je•"" ,jl •~·~'"•••<·,s~,·,-r••~\....~.•,..,

nas fórmulas da propaganda político-eleitoral; em que se manifesta


como dominante a função conativa).

44
Acerca da função poética da linguagem, aduz ainda Jakobson mais alguns
elementos caracterizadores que importa conhecer.
Assim, escreve que «esta função, que põe em evidência o lado palpável dos
sinais, aprofunda por isso mesmo a dicotomia fundamental dos sinais e dos
objectos.» Esta afirmação inscreve-se na linha de rumo,já atrás analisada, das
doutrinas dos formalistas russos - entre eles, o próprio Jakobson - e dos
estruturalistas do Círculo Linguístico de Praga, segundo a qual a função
poética ou estética se distin_gue da funsão de comunicaçãc da linguagem pelo
facto de, nesta última, existir uma relação instrumental com a rea.Edaêl.e
extralinguística que não se verifica naquela.. Nesta perspectiva, a autonomia e a
a~totelicid~de da mensagem poética dependem da inexistência deste tipo de
relações instrumentais com a realidade extralinguística: a mensagem poética,✓\
enquanto organização formal, enquanto textura de significantes («o lado pal- í
pávei dos sinais») - jogo ~de ritmos, aliterações, eufonias, rede de paralelis-
mos, anáforas, etc. -, CO_?~!i!:Ü:-1~--~mB.!laJiçi_~c:ie Qe §L@_~~ll]:a.-
Por outro lado, Jakobson estabelece como critério linguístico que permite
reconhecer empiricamente a função poética - e, por conseguinte, como
elemento, «cuja presença é indispensável em toda a obra poética» - o facto de
que «a função poética projecta o princípio de equivalência do eixo da selecção
sobre o eixo da combinação.» Qual o significado deste princípio, solidário da
asserção jakobsoniana transcrita e analisada no parágrafo anterior? A selec-
ção e a combinação constituem os dois modos fundamentais de ordenação
operantes na actividade linguística, conforme essa ,actividade se processe
respectivamente no plano paradigmático ou no plano siritagmático: «A selecção
realiza-se na base da equivalência, da similitude e da dissimilitude, da sinoní-
mia e da antonímia, ao passo que a combinação, a construção da sequência, se
funda na contiguidade.» Ora, na poesia, a sequência, a cadeia sintagmática
tem como fundamental procedimento constitutivo o princípio da equivalên-
cia: «Em poesia, cada sílaba é colocada em relação de equivalência com todas
as outras sílabas da mesma sequência; presume-se que todo o acento de uma
palavra é igual a qualquer outro acento vocabular; do mesmo modo, a átona
equipara-se a outra átona; a longa (prosodicamente) iguala-se a longa e a
breve iguala-se a breve; limite de palavra e ausência de limite equivalem a
limite e ausência de limite de palavra; pausa sintáctica corresponde a pausa
sintáctica, ausência de pausa corresponde a ausência de pausa. As sílabas
convertem-se em unidades de medida e o mesmo acontece com as pausas e os
acentos.»
Como Jakobson expôs mais minuciosamente nos seus estudos «Poetry of
grammar and grammar of poetry» e «Grammaticai parallelism and its russian
facet», desenvolvendo ideias de um dos seus poetas predilectos, Gerard
Manley Hopkins, toda a repetição do mesmo conceito gramatical, toda a
recorrência da mesma 'figura gramatical' e da mesma 'figura fónica' represen-
tam «o princípio constitutivo da obra poética». Esta projecção da similaridade
na contiguidade gera uma «propriedade intrínseca, inalienável» de toda a
poesia - a ambiguidade, a plurissignificação, fenémeno que ocorre não
apenas em relação à mensagem, mas também em relação ao seu emissor, ao

45
seu destinatário e à sua referência. «A supremacia da função poética sobre a
função referencial», escreve Jakobson, «não oblitera a referência (a denota-
ção), mas torna-a ambígua. A uma mensagem com duplo significado corres-
pondem um emissor desdobrado, um destinatário desdobrado e, além disso,
uma referência desdobrada.» 1
1
O estudo de Jakobson inti-
tulado «Closing statements:
Linguistics and poetics», foi
publicado no volume edi-
tado por T.A. Sebeok, Style 2.4 A críse dos conceitos de literatura e de literariedade
in lang11age, New York-
-London, 1960. Sobre os
outros estudos citados, cf. A teoria jakobsoniana da função poética da linguagem, cujo objectivo é
R. Jakobson, Quesrions de
poé1iq11e, Paris, 1973.
explicar em termos linguísticos a essência da literariedade, ~ insatisfatória e
in~~_ficient{;;;ob"div~r:59$ a.~;ctos. Elaborada a partir de determin.adas teorias
e determinadas práticas poéticas - as teorias e as práticas de certo roman-
tismo alemão e inglês, do simbolismo e do modernismo -, mostra-se dotada
de alta capacidade descritiva e explicativa em relação aos textos poéticos que
se adequam àquelas teorias e práticas, mas apresenta-·teêfozid'à",-o~"•;té-~ulà,
capaêrêfâct~-~f~;~ritr;;~;·;;pli~ativa é~";elação a grande parte da prosa lit;~á;i~
e em relação ~~r~g)_29~§ia q~e se a~astadorefe.í;idogi§qelo, como acontece
com a poesia escrita em verso livre.
A oposição entre a função de comunicação, para utilizar este termo e este
conceito do estruturalismo de Praga, e a função poética da linguagem tem
subjacente uma concepção neokantiana da arte e da literatura em geral na qual
se yaloriza, por um lado, o que o próprio Jakobson designou como s~iose_
intLoversiva - os mecanismos e processos form~is que configuram o texto
lit~rário como uma ~t~ra're'cfíãéiã'sôbre
, ......... _.,.-• . .,,,•-••e~'<•••,,.. ••~MA<V,-;-.<'..,,_,_,, .. ,,.,~ -,••"S~,~,~•..-<a>w-.,
autotéÜ~a-~-i-~·t;;·~siti~-; sI'~-êsma:
--.,.,-,,,,., .,~ ••• •>"•,.-•••~• .. •-•~,.,_~,..,e,_

- e se desvaloriza, por outra parte, a potencialidade referencial do discurso


lite;ári'o:·a-;;ua''força ilocutiva e perloc~·ü;;.:-o·Ú seja: â suà capâêTéfàc1e·d~
r;'j;·~·;;en tar e 'ciü'e'stiõnàr-·o~real
•~-.•~.,,_,.,,,_,..,.._,""""'___,,..,.:,v>c.-','•"•,s... •.-,,_.,....,-A...,
• _. •. _,-,.:,.,,.,- ~~•~ "I ••••
e d~;i~t~rvir .
_,.,.,,-•g ..... ,.,;.,,., ..... ,,.,...., -..,,,,~_,..-,..,,,'°"'",.,• """

Por último, e deixando de lado objecções mais específicas e técnicas, deve ser
sublinhado que a teoria jakobsoniana d~_função_poética assenta na chamada
falácia linguística, denunciada logo nos primeiros anos do formalismo russo
por Grigorij Vinokur, isto é, assenta __ ,,,.._.--..,...,....,,no erro de"···~---
...~-~-.---~·~,·,--~--· concebe~
....... a literatura
""··-~- como
·--·~•"' um
,.. _________ .,.,.
subsistema_depcndente do sistema fü1guístico. Com efeito, para Jakobson a
função_ pq~Jica é uma. das funyões da linguagem e a _poétjc:i:l ~ .\Jnrn...cta.s
subdisc:ipfü.:i..ªL9)L1.ü1guisJ:ic.a. Como procuraremos demonstrar adiante,.!.~]
concepção do sistema literário é inaceitável._
.... ,..,, . ...,,· .....,._,, .. ~-• ..,..~,u;,-,,,·,._.,...,,,,.,~-"'•..-~-,,,x'-"'_..,Tr .,._

Curiosa e paradoxalmente, o já referido estudo deJakobson,_ «Linguí$tica e _


po~ti<:a».,J9iJm!:>1i~:ado ( l 9~Q2 .9 uando C0!1!,<;_ç_~_yam..~..9.(;~~1::1YSJ.ly(;r::s_e 1..11.<l: W.2.S<?-
f}a,_~_él,!!EJ-_g,E_§:g~m, na ~ística e no campo do~~~~ud~~~~_i:_á._rios, orientações
que haviam de_ç_~lid]I inevitavelmente com_prir1:dpios econceitos teoréticos do
formalismq/usso, entr~.. <_?~g_ua_~-~--~ conc~ito d~lit~rl!riE:da_de. Referitn~:~9-s__~~.
orienJaçõt:spra~máti_ças que, procedentes de várias matrizes, mas sobretudo
deriv~das das /ny~çõe1..flloslf~U2l].)_}1.~-~-i,!,~stein, conduziriam,
nos anos sessenta e principalmente nos anos setenta, à constituição da linguís-
tica pragmática, da teoria do texto e da prngmática da literatura.

46
Tais orientações pragmáticas, conferindo fundamental relevância aos usuá-
rios do sistema semiótica literário, aos agentes dos actos de comunicação
literária e aos contextos em que estes ocorrem, minaram 9_s fuJ~damento_s do
conceito formalista de Iiterariedade e acabaram por colocar em crise o próprio
,-,. '"" ,... ., . . • . .. ,. .. ,. ... -~ ··-~ ._.. ~ ··- .•.• ~,-···~~À•··--•"'-',,,•• ~.--,· .. , .... ·•-« • ' .,

conceito de literatura ..
O conceito formalista de literariedade, como vimos, é um conceito apragmá- ·
-::· tico, acontextual: a literariedade identifica-se como um conjunto de marcas
formais que caracterizam, de modo invariante, os textos literários. Ora,
segundo as referidas orientações pragmáticas, não existem marcas formais que
distingam especificamente, de modo universal e atemporal, os textos
literários.
Todavia, segundo as versões que poderemos classificar como versões_mitiga-
das da Q_ragmática da literatura, o texto literário diferencia-se de outros tipos
d~,-t~-;to;,:__QQ~;~--po;sui mecanismos peculiares de comu;G;çã;;e-~que
fl;l_ECion_§., por c~;;eg~~te, segundo modelos comunicadõiiãlsprópri_os. Est~s
modelos, como é óbvio, exigem a participação adequada do leitor, mas têm
como fundamento aqueles peculiares mecanismos de comunicação, isto é,
elementos que existem nos textos. Poder-se-á dizer que tais versões mitigadas
da pragmática da literatura elaboram um conceito de literar~edade comunica-
cional, entendendo-se por esta expressão uma convenção constante que se
manifesta textualmente em termos de processo comunicativo.
Tais versões mitigadas da pragmática da literatura estão representadas, por
exemplo, por Marcello Pagnini que, na sua obra Pragmatica della letteratura
(Palermo, 198q), caracteriza a literatura como um sisteµia semiótico e como
un.@_actividade de modelização que introjecta no próprio texto os três factores do
-
..·--·----·-·-----·.,.,,
modelo comunicativo habitual: o emissor, o receptor e o objecto ou o referente.
O Jexto lite~~E~~-~-1:'E~~enta introj_ect_~~?.~, ins~_rj_tg_~na_sua pr<2.@j_~~~x._!_tl_<t_l_i~~9-~,_
um emiss9r, UJP. receptor e _um referente. O leitor, a fim de ler o texto literário
como literatura, tem de aceitar esta convenção.
Segundo as versões que podemos classificar como versões radicais da pragmá-
tica da liter9-tur<!_, n~g ~?'!.~-~e_!11_ nos textos qyaiSÇLf.!er marc~~f(?!~~~-~ ~:~_cq_i:nu- ·
nicacionais que constituam.. ajntrínseca _especiti~~acLe litei:á_ria desses textos.
AsJ~j_t_1.1_rns peçJ1Ea.r~~--r_:~<1.li:z_a_ç!_<1._~--P~~g§J_e,i.t2E~~ é q~e tornam um !~.~!~ 1:1~!1\
texto literário.
Estas versões radicais da pragmática da literatura estão modelarmente repre-
sentadas na obra de Stanley Fish intitulada Is there a text in this class? The
authority of interpretive communities (Cambridge, Mass. - London, 1980).
S~g~nd~-i~h, u.1:t.1...Q.O.~~a e .l:1!1.1_~)is!.~J~jj:>J_0_g!_?:fica são .difer_e_Qte_s,__a_p~~as
porque_ a.diferença resulta __ de_ op_e,gççS~s_jQ.t,~[.p!,e_t~!iy_as gif~r-~Qt.~~--q!:!:~. 9s
lei!oFes_ realizal:!1 e_11~o_p2_rqt1~J':la. __t~_r:i~_c1...~.-~1!.é,l.J9._me_ e111_9.~_êLq!!~.L.PEºPf.i_~~~d~
in~~ente a Yl:!1 ~ ..1,l.?.l1..t_rª~ Não são as características formais de um texto que
originam uma determinada leitura, mas_~ sim, urgª..9.~J.~.!:!!1.Ln.a.sI.a l~}tuxª qu,e >· ,·
co.nsti:ói peculiªi:es..c3:rªc:;!~i::ís.!i.ça.sJ9.rmªi~E.~E2 texto. Aliás, segundo Stanley
Fish, pode-se formular a conclusão geral de que «todos os objectos são
construídos e que são construídos pelas estratégias interpretativas que pomos
em acção».

:::

47
Em conformidade com o modelo pragmático do texto literário elaborado por
Stanley Fish, é _o leitor que, mediante leituras literárias, constrói o~,!~~.t2.~
literários e a literatura, mas o leitor está também 1ª.._construído por uma
d~t-~[!!15.!!a..s!i:!-...~2!!!!1"id;de interpretativ~; por um sistema de inteligibilidade
publicamente disponível que é o sistema literário. Graças a este conceito de
comunidade interpretativa, Stanley Fish evita a anarquização individual do
conceito de literatura, mas não pode evitar a sua total mudança, tanto sincró-
nica como diacronicamente.
As consequências lógicas de uma concepção radical da pragmática da litera-
tura estão formuladas de modo taxativo por Terry Eagleton no seu livro
Literary theory. An introduction (Oxford, 1983): literatura é «uma designação
que as pessoas dão, de vez em quando, por diferentes razões, a certos tipos de
escrita no âmbito do domínio que Michel Foucault chamcu práticas discursi-
vas». Assim, a literatura como categoria 'objectiva' desagrega-se inevitavel-
mente, pois «qualquer coisa pode ser literatura e qualquer coisa que é conside-
rada como inalterável e inquestionavelmente literatura - Shakespeare, por
exemplo - pode deixar de ser literatura».
As teorias pragmáticas dafüeratura, ao dissolverem deste modo o conceito de
literatui:a - cÓndenando~se paradoxalmente por isso à inexistêncÚ;, .co~o
reconhece Terry E~gleton, visto que 'enterram' o objecto que se propunham
estudar ... - , re2re_s,entam mê-is um d~~ nu~_:rosos ataques de q1:1e_o termo e o
cortçei!().q_~_E!~Eê!.11!:ê-, desde há mais de um século, tê1!15.i_ct~-ª!v.9. Com efeito,
na poética do Simbolismo, na estética de Benedetto Croce, na poética do
Surrealismo, e t ~ m o e o conceito de literatura foram desvalorizados e
m~o postergados, em c~ntra@Si~~om ter1:10 e o _c~n.seito depC>~_§ia 9.ue o
foram re-semantizados positivamente. O anúncio e 3:prgçlél.r11aç~.9_qa 'morte'
da)it.eratura converteram-se até numa e·spécTé-de tópico, ora lut~;~·o·~-o~a
jubilatório, re-utilizado com fundamentações e finalidades distintas. Em
todos os casos, porém, o t<?.P!~~.5!~.)ns>r!.Y.'. clª. ljJé:gtlJfª expr,i1!1.~. ~~!~~:t~~:9e
cri?~ da çq\tg_ra.e da socjedade ocidentais e reflecte conflitos de ideologias e de
' • • •-,.,.,,.,_,.,.,,,-,• '<'"•~•-•••"---•~,.•..-.,•~ ,-,~~ • .. •~, ~-•••••• ,-.,• • ,.,. ., .... , •-' •• '•.. , •, .,. .. • .. ,r,., . .,~••• •-•v••-••••• ••

visões do mundo.
Nalgumas teorias pragmáticas radicais da literatura, por exemplo, cu~J.9-_gue
comra ctJ!!~~t~!9- é alimentado pelas ideias de que a literatura é uma ip_~_tj_!._u_i~
ç~~-~~E~~~~a, de que tem s.rrYi9.S?.º~.-!!1!~Ee.S.~.e.s, ~-ª~ ~s~I"atégias_ d_e,__p_Qç!§r das
forças política e socialmente conservadoras e reacci0nárias, de que constitui
uma escandalosa manifestação de eli.1:ismq_.rnJ!g:rnL ..~tc. N_e.~.le. _cgr.it~~t(),_,ª .
revalorização da lit3'.r!'ltUraa,oral, da _paralite_ra!llra, da literatura. de m.assas,
etc., tem tido frequentemente como pro,,2ósito ..o._3:pa_game_n to das. fronteiras
delimitadoras da literatura e a flesintegraçã~desta numa espécie de galáxia de
práticas discursivas sem especificidades que possam ser reconduzidas à ideia
de arte ou à noção de experiência estética.
Os ataques ideológicos ao conceito de literatura são destituídos de funda-
mento, pois que a literatura, nestes dois últimos séculos, como afinal a poesia
ao longo de toda a história do Ocidente, exprimiu e difundiu muitas vezes
valores, padrões de comportamento, visões do mundo diferentes e até contra-
postas às crenças, convicções e interesses dos grupos social e politicamente

48
hegemónicos. Há grandes escritores de 'direita' e de 'esquerda', conservadores
e revolucionários, burg~eses e a~ti-b~rgueses, etc. CÔndenar in toto a litera-
tura por razões ideológicas como as apontadas é uma atitude ditada apenas
por estreitas razões ideológicas.
As teorias pragmáticas da literatura proporcionaram, sem dúvida, elementos
· importantes··e· pertinentes para um conhecimento mais exacto do fenómeno
literário. Chamaram a atenção, desenvolvendo ideias já expostas nos anos
trinta pelo estruturalismo da Escola de Praga e pela estética fenomenológica
do filósofo polaco Roman Ingarden, para a função relevante do leitor na
existência plena do texto literário e revelaram as características peculiares da
cÜmunlcaçfto liter~~ia, p~-~d~ em evidência as lim.Ttâçõe~sdÕ.-cõllc·éifo'Tõi'rrüi-
list~··de literariedade. Elaboraram e difundiram, porém, ideias e argumentos
inc;~sistentes, inexactos e inaceitáveis.
Em primeiro lugar, torna-se necessário afirmar que algumas teorias pragmáti- , .• ~·
cas concederam ao leitor um poder arbitrário em relação ao estatuto literário it'' w•
ou não literário dos textos, ignorando quer a intencionalidade e o trabalho do
autor, quer as estrutura.:; dos text~s. --····· ·-·· ·· · · ·· ·· -
.,,...,_......,- .;,·.- , ...,_., ••••-••---•••••••••~•-•••o>,.••••••••••••••--•••••-•"••

Empiricamente, é facilmente refutável a afirmação de que qualquer texto


considerado como literário pode deixar de ser assim considerado e de que, em
contrapartida, qualquer texto pode passar a ser considerado como literário.
Não há informação de que, alguma vez, a canção X de Camões, a tragédia
Phedre de Racine, a Ode on a grecian urn de Wordsworth, o romance Ulysses de
James Joyce, etc., tenham deix<!.dos de ser reconhecidos como textos literários
(este reconhecimento, convém sublinhar, não tem a ver com o problema da
valoração desses textos, nem com o problema da variabilidade das suas
interpretações).
Há milhões de textos, por outro lado, que nunca foram lidos como textos
literários e que nunca foram como tal considerados: tratados de química e de
física, códigos jurídicos, constituições políticas, estudos de farmacologia,
guias de investimento financeiro, etc.
Os numerosos casos de inclusão e exclusão de textos literários do cânone, isto
- • • - " • - '"•••~•••~••••, '"""''""" •• >-""""""""" ••~ • """"",:, ~•·· •• <, •••->-,.,,,,,.,_,_,,.,...,.~.~,»,......,..,..~,;- '-"''•,-,:,,•--,••.

é, do corpus textual escolhido e valorado como modelar e como repo~itório de


valores culturais nucleares, não si_gI_li[!,Ç?-m__ a .. mudança ela uatur~za dysses
textos,
... -~ -
,_
mas tão-só
~------- uma alteração, em situações histórico-culturais diversas, da
·--~---~~~-~------ ..~- ....
valoração que lhes é atribuída.
Os casos de textos que, não tendo sido escritos com intencionalidade literária
- embora s~f;-~empre arriscado discriminâr, neste domínio, o q~~-~eleva e 'o
que não releva de uma intencionalidade literária - e que, durante um tempo
mais ou menos longo, não foram considerados como textos literários, e que,
posteriormente, viram reconhecido o seu estatuto literário, exigem
...., .. _______ ---- -··-····--·······-~·-•--.-·-~· -------~-----,-~---'--~~-~-:·•-..- ..... --~-----,.--
uma refle-
..,,__--~-~~·,,-~,-,-..-~~·-· -...
xão mais acurada.
Observe-se, antes de mais, que estes casos - exemplarmente representados
pela obra de Edward Gibbon, Decline and fali of the roman empire - ~.§..Q.
relativamente e_~s. Percorra-se uma história da literatura portuguesa, da
literatura espanhola ou da literatura francesa do século XX e verificar-se-á que,

49
quase sem excepção, as obras literárias aí estudadas e valoradas como relevan-
tes textos literários foram escritas e publicadas como textos literários.
É indubitável que ler Decline andfall of the roman empire ou Portugal contem-
porâneo de Oliveira Martins como textos literários pressupõe e exige que o
leitor adopte e ponha em prática um modelo de leitura literária, mas não é
irrefragável - bem pelo contrário - que tal leitura literária sej~ _com_plet3:-
mente dissociável das estmturas rítmicas, estilísticas, retóricas, semânticas e
prl:l_gIT!~.t.i9ttc.!~!~2i!º:c~~ ~f~it·;:·p~-~;;~os como àqueÍ~-~-~-~~ª~- q~~tê_if~i
nados solicitam leituras literárias, porque apresentam estruturas formais,
semânti~as _e pragmáticas que são identificáveis como_caracterí~ti_~as da
semiose-·füerárTã·e~~qÜe os leitores que os lêem como textos lite;á;Ios
colocam entre parêntesis ou cancelam como não pertinentes as informações de
ca~~cter_ historiográfico_ nele_ contid1:ts,
Esta nossa argumentação pressupõe logicamente que sem leitura literária
nephum texto possui uma existência plen~--~C?.ffiQts:xJ9li~t;:}:á,rL9, mas rejeita as
ideiis de que a charriaêlàfê'ffuràTifefãria s~ja uma operação s;miótica omnipo-
derosa, capaz de converter em literatura qualquer texto, e de que seja uma
leitura orientada e regulada por convenções e normas que não abrangem
também os escritores e que não se manifestam e objectivam nos próprios
textos.
Criticar e refutar o conceito formalista de literariedade e a teoria jakobsoniana
de função poética da linguagem não equivale a aceitar o princípio - ou
axioma - pragmático de que o discurso literário não possui marcas formais
distintivas. É muito fácil, com efeito, recortar num romance, num drama ou
num poema lírico um segmento discursivo que poderia ser também um frag-
mento de uma notícia de jornal, de um livro de geografia ou de um guia
turístico, como é igualmente fácil encontrar exemplos de segmentos discursi-
vos de uma notícia: de jornal, de uma receita culinária, de um livro de biologia,
etc., que apresente marcas fónico-rítmicas, estilísticas, retóricas, etc., que têm
sido consideradas como peculiares do discurso literário. No âmbito dos seg-
mentos discursivos ou das unidades lexemáticas, não é possível provar nada a
este respeito, porque é possível P.L~.Y~\ t~~?~,
A análise desta problemática só pode ser pertinenternente equ~cionaga nQ,
qurulio da unidade textual: a literaíTeêiãêíe, como fenómeno semiótica co~ uma
dim~n~iQ:iiiJti~;;~a dimen-são semânticaêuma~clime°7i~p;agm~
é ·;dequadamente apreemível e caracterizável a nível do texto e não-;~vel do
enunciado ou da_Q.~ͪ-Yra isQÍiliÍã~Há·t~~t;s - tragédÍas; comédiâs, ~ s
épicos, églogas, canções, sonetos, etc. - que apresentam uma estrutura textual
específica, com observância de convenções e normas que não relevam do
sistema linguístico, que utilizam de modo peculiar os recursos e meios expres- ·
sivos da língua natural em que são produzidos, que constroem mundos possí-
veis dotados de mecanismos semânticos especiais e que só podem ser adequa-
damente lidos segundo modelos de comunicação que s~ encontram
paJcialmente inscritos e previstos nos próprios textos.
Paradoxalmente, Stanley Fi~~ fun.daroentª ª~xist.~I_lfi::t_Qé!S ÇQº1.t~nidade_~J!!_t_er_:-
pretaHvãs."i1âqu-eí"es··qu~. cÕmpartilham estratégias interpretativas. ;:~ão pa~a
.u.-.,•~~,,~~•-~•<-•,.,-•,,,... ---~-•---"--•~•..,,_,.-~-.,,_~,_ , •. ,.,,,.,,.,...,,,..-,•,,•-..:v?.••-,~-• -""".""'~- - .,,,-,,--,,~ . .,, ••••• • ,,.,- "

50
f/ .~- ,i

ler, mas parà.• e_s_cF~ye_r,Je_;iç,t,qs, para construir as suas propriedades». Isto (, ·· ·


significa que o sistema de inteligibilidade que regula as estratégias interpreta-
tivas dos leitor;;·~·;·i;t~m-;·qué"'õ"i:iróprio f~~ d~~gna por s,IS:f~m~Jit~.r~ii:~.
~t'êÕ.nst1iüfriÕ.por convenções e normas que regulam também a produção·
dos textos literár{Õs·e:êiü~~s'_êjnanifesfâin na materialidade e·-no·sígllificâaô
dei!iilP~i~Qsje,it_?~· Por conseguÍnte;·p·ar'ãõ-próp;ro-StãnTêyFTsh õ ê6iiêeifõ '
de literatura fundamenta-se sempre em propriedades formais dos textàs p'ro-
duzidos numà-âêferrnináda comunidade interpretativa _:·no mesmo estádio
sincrónico e na mesma comunidideinterpretativ~, os critérios de literariedade
dos leitores coincidirão com os conceitos de literariedade dos produtores de
textos - , apenas se verificando urna variabilidade diacrónica ou sincrónica ,
dessas pro.eriedades formais (urna comunidade interpretativa projectará os
seus critérios de literariedade sobre os textos produzidos noutras comunidades
interpretativas precedentes ou coevas). A própria argumentação de Stanley
Fish invalida assim a sua asserção de que todos os textos podem potencial-
mente ser considerados corno literatura.
Julgamos que é também indispensável sublinhar que a emergência do novo
conceito de literatura na segunda metade do século XVIII, se trouxe consigo
elementos culturais, sociológicos e institucionais novos, não representou urna
ruptura - e muito menos urna ruptura total - com o fenómeno da produção
textual até então designado por poesia e assim designado, sem interrupção,
desde a aurora da cultura ocidental. Sejam quais forem as relações da poesia
com o mito, com a religião, com o folclore, etc., é inquestionável que desde há
mais de dois milénios, corno demonstra a Poética de Aristóteles, existia já clara
consciência das suas características peculiares, quer no respeitante à sua forma
de expressão, quer no respeitante à sua forma de conteúdo. Os mecanismos
serniológicos que configuram formal, sérnica e pragmaticamente os textos
poéticos, desde a Grécia antiga até ao século XVIII, são fundamentalmente os
mesmos mecanismos semiológicos que funcionam nos textos denominados
literários desde a segunda metade do século XVIII e por isso mesmo falar de
'literatura grega' ou de 'literatura latina' constitui, sob este ponto de vista, um
anacronismo bem reduzido e justificado.
A 2-_erJ:!l.ª!"!~.P:c:J9:e,_9:_Jpyª_r,iã.,11_ç_ia_ ~gs,_~~Xe,ris!<?.S, . .ll:~~-~rii~.~-?s se,~i_~lé>g(ce>s nã_o
signifü:arn que a_literatura não. ªJ?resente_ V§lriações, transformações mais ou
menos profundas, no plano diacrónico. A liter.9-tura é. como toêfos·Õ~s-:sTs'témas
semióticqs __culturais, um s·istem~ aberto,-cuja evolução pode modificar de
maneira importante a ideia que, num dado momento histórico, existe de
literatura, e a literatura, enqµª_QtQ.conjun.to deJ~XJ..QS, ~ também, correlativa-
mente, um _CQ~junto . ª~~,r.(~, ·11ãC>:~si11-ctQ:.i?2i.s.lY.iCfoi:mg!ª.Lg11-~tsg1:1et.re.gras
histor_ic<!men,te __ recu_rsivas dgt3:das _pe c:apªcjqa,_c:ie _p.r_e.ditiv._a__ ~m__-i.:~lªçãp a9s
tex_!_?.S. ql}e, nq_ftgµr_o, se h?:Q::-_~01:1_t~g_r~rn~~~~-~-()_I_Ü~-~2-é!-.!?_~r!2..e. qlie hão-de
introduzir alterações, por sua vez, na dinâmica e na economia de todo o
conjunto.
Há elementos textuais considerados num período histórico corno extraliterá-
rios - e até antiliterários - e que, noutro período histórico, podem vir a ser
considerados como elementos textuais literários. Assim, por exemplo, o Clas-

51
sicismo francês excluía dos textos literários temas de origem e natureza folcló-
rica e elementos lexicais de cunho realista ou próprios do comportamento
linguístico de estratos sociais inferiores. Posteriormente, o Pré-romantismo e
o Romantismo conferiram àqueles temas estatuto literário e o Realismo e o
Neo-realismo converteram em relevante factor textual literário aquele léxico
postergado pelo Classicismo francês. Estas transformações, próprias de um
sistema aberto como o sistema literário, no q~al. ocorre um constante e
CQnJ.P..l~XQ._tJi~xo de entradas e saídas em relação à ~~f;;;cti.E!;;-~Í~ura.2.ão
originadas por alterações do sistema de normas aceite pela comunidade literá-
--- ·-
ria - escritores,leÍtores, ~íticos, teorizad;res, profe;~res, etc. -, s;b a
- ·--- . -.....,.,......--.-- .
acção de mudanças operadas historicamente nas estruturas sociais e culturais,
e reE!esentam um alargamento das fronteiras do discurso literário, mas não
pr9Q_[!.§!~~!l~~. em~·;gê:r1cia de -~~~nceituação radicalmente !:~!<:;_~~
literatura. - · · · ·· · · · ··

A dilucidação do conceito de literatura implica o estudo de objectos ontoló-


gica e funcionalmente distintos, embora interdependentes, e implica, por
conseguinte, o estabelecimento de planos analíticos diferenciados: torna-se
necessário analisar a literatura como sistema semiótico, a literatura como
instituição e a literatura como texto literário.
y
/

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA

GARCÍA BERRIO, Antonio, Teoria de la literatura, Madrid, Cátedra, 1989.

HERNADI, Paul (ed.), What is literature?, London-Bloomington, Indiana University


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WELLEK, René, The attack on literature and other essays, Brighton, The Harvester
Press, 1982.

52
;;;;;&;J&JQQZZWLZK.

1. O Campo dos Estudos Literários


OBJECTIVOS

Depois do estudo deste capítulo, o aluno deverá estar apto a:

delimitar e caracterizar o campo dos estudos literários;

identificar as principais disciplinas do campo: a poética, a teoria da


literatura, a ciência da literatura, a retórica, a crítica literária, a
história literária, a estilística;

compreender a interdisciplinaridade dos estudos literários.

11
1.1 Os estudos literários como campo de conhecimento

Um campo de conhecimento constitui um domínio da actividade cognoscitiva


do homem no qual se elaboram, utilizam e difundem conhecimentos respei-
tantes a determinados objectos de estudo, a partir de um conjunto de axiomas
e pressupostos, utilizando um adequado conjunto de métodos e procurando
alcançar certos objectivos.

Os campos de conhecimento são heterogéneos, podendo abarcar quer campos


de crenças e convicções como as religiões e as ideologias, quer campos de
investigação como as ciências formais, as ciências àa natureza, as ciências da
cultura, etc.

O campo dos estudos literários é um campo de investigação e ensino que tem


como objectos de conhecimento a literatura como sistema semiótico, como
instituição e como campo intelectual, tanto numa perspectiva diacrónica como
numa perspectiva sincrónica, bem como a descrição, a explicação e a interpre-
tação dos textos literários; incluindo, logicamente, a elaboração das metalin-
guagens, dos métodos e dos instrumentos necessários à realização destas
operações cognitivas.

O objecto de conhecimento do campo dos estudos literários - a literatura


- só se constitui, como veremos no capítulo 2, na segunda metade do sé-
culo XVIII e apenas desde essa data se instituíram e desenvolveram os estudos
literários como campo de conhecimentos, embora, anteriormente, a poesia e a
eloquência - conceitos que, em grande parte, recobrehi o conceito de litera-
tura - tivessem sido objecto de descrição e análise no âmbito de saberes
multisseculares e tão relevantes como a poética e a retórica.

No desenvolvimento deste campo de conhecimentos, desempenhou um papel


fundamental a institucionalização dos estudos literários nas Universidades.
Desde a primeira metade do século XIX, as Universidades alemãs e francesas
acolheram o ensino e a investigação nos domínios da filologia e da história
literária; as Universidades anglo-saxónicas foram criando, a partir do último
quartel do mesmo século, departamentos de literatura inglesa e de outras
literaturas nacionais. Progressivamente, foram-se constituindo comunidades
universitárias de professores e investigadores no âmbito dos estudos literários,
com bibliotecas e revistas especializadas, organizando-se muitas vezes em
associações nacionais e internacionais, elaborando e difundindo os seus sabe-
res através de seminários, colóquios, etc. A institucionalização universitária
contribuiu de modo decisivo para conferir ao campo dos estudos literários o
estatuto de dignidade científica.

Este campo de conhecimentos abrange disciplinas com características episte-


mológicas diferentes, com fundamentação e com metódicas de natureza
diversa, com genealogias e com objectivos distintos. Nas duas últimas déca-
das, tem-se acentuado a proliferação e a rápida mudança das «correntes», das
«orientações» e dos «movimentos» no interior do campo, daí resultando uma

13
babelização que retira credibilidade científica ao próprio campo. Abusiva-
mente, algumas de tais «correntes», que muitas vezes representam fugazes
efeitos de modas filosóficas e ideológicas, apresentam-se e são apresentadas
como paradigmas, no sentido que Thomas S. Kuhn concedeu a este termo na
sua célebre obra intitulada The structure of scientific revolutions, isto é, como
matrizes disciplinares, como conjunto de pressupostos, leis e normas comparti-
lhadas duradouramente pelos membros de uma comunidade científica e que
orientam, regulam e legitimam os programas de investigação. Segundo Kuhn,
a proliferação de teorias, o desacordo e o constante debate em torno dos
fundamentos das teorias caracterizam a pré-ciência ou a ciência imatura, isto
é, constituem manifestações exactamente opostas aos paradigmas, que são
próprios da ciência normal.

1.2 A poética

Em grego, as palavras poíesis ('poesia'), poiema ('poema') e poietes ('poeta')


são formadas a partir do verbo poiein, que significa 'fazer', 'fabricar'. A arte
(technê) da composição poética, isto é, aquele saber não inato, mas adquirido,
composto de teoria e de prática, aquele conjunto de regras e preceitos que
ensinam a fazer o porma, denomina-se poética (poietikê technê).

O termo grego poietike, porém, possui igualmente um significado passivo: o


estudo das obras (erga) resultantes daquela arte.
Estes dois significados de poética, confluentes em duas obras fundacionais da
análise da poesia, a Poética (Per'i poietikes) de Aristóteles e a Arte poética (Ars
poetica - também conhecida com os títulos de De arte poetica e Epistola ad
Pisones) de Horácio, estão presentes nas artes poéticas medievais e, sobretudo,
nas artes poéticas que se multiplicaram ao longo do século XVI, após a
redescoberta da mencionada obra de Aristóteles (a sua tradução latina por
Giorgio Valla foi publicada em 1498 e a primeira edição do seu texto grego
data de 1508). Por um lado, a poética é entendida como um conjunto de
normas e preceitos que ensinam e orientam o poeta na criação das suas obras;
por outro lado, é concebida como um conhecimento teórico e sistemático
sobre a poesia, os géneros poéticos e os poemas.

No Neoclassicismo, tornou-se habitual e muito estrita a orientação normati-


vista das poéticas e, por isso mesmo, com o Romantismo, em virtude da
liberdade criadora proclamada por este movimento estético e também em
virtude da relatividade histórica reconhecida a essa mesma liberdade, o termo
e o conceito de poética caíram em descrédito. Se o poeta, qual novo Prometeu,
cria o poema como uma entidade única e radicalmente nova, as poéticas
normativistas representam para ele apenas um embaraço e um fardo; se o
crítico, no dizer de Novalis, deve descobrir e compreender as «individualida-
des artísticas», de nada lhe servem as regras ditadas pelo chamado «bom
gosto» e compendiadas nos tratados de poética.

Após mais de um século de esquecimento, a redescoberta e a reabilitação do

14
termo e do conceito de poética ficaram a dever muito a Paul Valéry, que
afirmou, na sua primeira lição do Curso de Poética no College de France,
proferida a 10 de Dezembro de 1937:

O meu primeiro cuidado deve consistir em explicar esta palavra «Poética»,


que restabeleci numa acepção primitiva que não é a do uso corrente. Ocorreu-
-me ao espírito e pareceu-me a única adequada para designar o género de
estudo que me proponho desenvolver neste curso.
Entende-se habitualmente por este curso qualquer exposição ou compêndio
de regras, de convenções ou de preceitos respeitantes à composição dos
poemas líricos ou dramáticos ou ainda à construção dos versos. Mas pode-se
achar que envelheceu bastante nesta acepção, a par com a própria coisa
significada, de modo a dar-lhe outro uso.[ ... ]
Mas, quer o deploremos, quer com isso nos regozijemos, a era de autoridade
nas artes há já muito tempo que findou, e a palavra «Poética» não desperta
senão a ideia de prescrições incómodas e envelhecidas. Julguei pois poder
retomá-la num sentido que tem a ver com a etimologia, sem ousar contudo
pronunciá-la Poiética, vocábulo de que a fisiologia se serve quando fala de
funções hematopoiéticas ou galactopoiéticas. O fazer, o poiein, de que quero
ocupar-me, é aquele que se consuma em qualquer obra e que virei em breve a
restringir àquele género de obras que se convencionou denominar obras do
, ºt o. 1
espm

Foi, porém, com o formalismo russo e com o estruturalismo checo, nos anos
vinte e trinta do presente século, que o termo e o conceito de poética foram
utilizados frequentemente, com um significado técnico., como equivalentes a
teoria da literatura e a ciência da literatura. Em 1919, foi publicada uma
colectânea de estudos de jovens formalistas russos intitulada Poética. Em
1923, Grigorij Vinokur, um importante linguista do formalismo russo, publica
uma obra intitulada Poética. Linguística. Sociologia. Logo no início da sua
Teoria da literatura (I.ª ed., 1925), Boris Tomasevskij escreve: «Objectivo da
poética (ou, noutros termos, da teoria da arte verbal ou literatura) é o estudo
dos modos como são construídas as obras literárias». Boris M. Ejchenbaum,
no seu famoso ensaio intitulado «A teoria do método formal», aponta como
uma das linhas mestras da actividade desenvolvida pelos formalistas «a rege-
neração da poética que se encontrava num estado de total desuso». Jan
Mukafovsky, o mais importante e influente teorizador literário da chamada
Escola de Praga, no seu estudo «Sobre a linguagem poética» (1940) utiliza o
termo 'poética' como equivalente de teoria da literatura e veio a coligir, em
três volumes publicados em 1948, grande parte dos seus escritos sob o título de
Capítulos sobre a poética checa.

No quadro da tradição formalista e estruturalista dos estudos literários,


pode-se afirmar que Roman Jakobson consagrou definitivamente o uso do
termo e do conceito de poética no seu famoso estudo intitulado «Closing
statements: Linguistics and poetics», publicado em 1960, no qual define a
poética como aquela disciplina integrante da linguística - entendida esta
como ciência global das estruturas linguísticas - que responde à pergunta: «O
que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?» Alguns anos mais tarde,

15
7E i ; i 11 %4§¾ ?&1/#t rteifttt5Wf 1m

ao reexaminar, em resposta a diversas críticas que lhe haviam sido endereça-


das, o seu conceito de função poética, Jakobson escreve: «A poética pode ser
definida como o estudo linguístico da função poética no contexto das mensa-
1
Cf. Roman Jakobson, gens verbais em geral e na poesia em particular». 1
Questions de poélique, Paris,
1973, p. 486. Desde o início da década de setenta, o termo 'poética' aparece como solida-
mente restabelecido no campo dos estudos literários. Figura no título de
revistas novas e importantes: a revista francesa Poétique, a revista holandesa
Poetics, a revista alemã Poetica. Diversas obras influentes e relevantes no
domínio dos estudos literários ostentam no título ou no subtítulo a palavra
'poética': Poétique de la prose (1971) e Poétique (1973) de Tzvetan Todorov,
Questions de poétique (1973) de Roman Jakobson, Structuralist poetics (1975)
de Jonathan Culler, Estudios de poética (1976) de Fernando Lázaro Carreter,
etc. Só excepcionalmente se erguem vozes discordantes do uso de poética como
equivalente a teoria da literatura. Tal é o caso, por exemplo, de René Wellek,
que advoga a denominação de teoria da literatura porque, segundo as suas
palavras, «evita a possibilidade de se ficar limitado ao verso, como é frequen-
temente o caso em inglês, e também qualquer implicação de poética
• • 2
'Cf. Rcné Wellck, Discrimi- prescntiva».
nations: Further concepts o/
criticism, New Haven- Alguns autores distinguem entre a poética teorética, isto é, o estudo sistemá-
-London, 1970, p. 327.
tico, com a fundamentação e o rigor epistemológico de uma teoria científica,
da literatura como sistema semiótico e como instituição e do discurso literário
como discurso distinto de outros tipos de discurso, a poética histórica, que é a
disciplina que estuda as mudanças ocorridas no sistema literário - mudanças
dos géneros e subgéneros literários, dos períodos literários, etc. - e a poética
descritiva, ou seja, a disciplina que estuda exaustivamente, numa perspectiva
pancrónica, determinados fenómenos literários, bem delimitados, com base
num corpus textual igualmente bem delimitado. Tanto a poética histórica
como a poética descritiva constituem disciplinas subordinadas à poética teoré-
tica e que a esta fornecem elementos de informação e análise.

O termo e o conceito de poética, todavia, não são estritamente coincidentes, no


uso contemporâneo, com o termo e o conceito de teoria da literatura. A
aplicação da prova de comutação demonstra, por exemplo, que em expressões
como «a poética dos filmes de John Ford» ou «a poética da pintura impressio-
nista» o termo poética não pode ser substituído pelo termo teoria da literatura.

1. 3 A teoria da literatura

O termo teoria da literatura para designar uma disciplina do campo de estudos


literários é relativamente recente. No limiar do prefácio à sua obra Theory of
literature (1949), René Wellek e Austin Warren declaram: «A escolha do título
a dar a este livro foi excepcionalmente difícil». Com efeito, até ao início da
década de sessenta, data em que começaram a ser difundidas no Ocidente as
doutrinas do formalismo russo e do estruturalismo checo, o conceito de teoria
da literatura era quase somente conhecido em poucos círculos universitários

16
norte-americanos, graças fundamentalmente ao ensino e à investigação de
professores da Europa oriental que então trabalhavam em universidades dos
Estados Unidos (é o caso de Roman Jakobson e René Wellek).

Num recente depoimento sobre a sua contribuição para os estudos literários,


René Wellek escreveu: «Depois do meu regresso a Praga em 1930 [após a sua
estadia de quatro anos em universidades norte-americanas], ingressei no
recentemente fundado Círculo Linguístico, li Ingarden e os Formalistas Rus-
sos e ouvi pela primeira vez a frase «Teoria da Literatura», usada como título
1
do livro de 1926 da autoria de Boris Tomasevskij». 1 A expressão, depois de ser Cf. René Wellek, «Responsc»,
in Comparative Literature,
utilizada como título deste livro de Boris Tomasevskij, adquiriu decerto uma 40, 1 (1988), p. 27.
circulação mais alargada, mas ela era já de uso frequente na obra de outros
formalistas.

A publicação, em 1949, da já citada obra de René Wellek e Austin Warren,


Theory of literature, contribuiu decisivamente para a difusão, sobretudo em
meios universitários norte-americanos, do termo e do conceito. De modo
semelhante, a publicação, em 1965, da primeira grande antologia de textos dos
formalistas russos editada na Europa ocidental, organizada por Tzvetan
Todorov, sob o título de Théorie de la littérature, teve importante papel na
difusão do termo e do conceito nos meios universitários e intelectuais
europeus.

No âmbito da língua espanhola e da cultura de língua espanhola, devem ser


realçados o pioneirismo e a importância dos estudos do poeta, crítico, pensa-
dor e professor mexicano Alfonso Reyes (1889-1959), ~m particular do seu
livro El deslinde. Prolegómenos a la teoría !iteraria ( 1944). Alfonso Reyes,
todavia, diferentemente dos formalistas russos e dos estruturalistas checos
- cuja obra não deve ter conhecido-, separa a teoria da literatura da ciência
da literatura, concebendo aquela disciplina corno urna «especulação sobre o
fenómeno literário que encontra o seu fim apenas no deleite especulativo e que
corresponderia à Poética dos clássicos, se esta se tivesse limitado à definição
filosófica e não aparecesse mesclada com a Preceptiva». 2 ' Cf. Alfonso Rcyes, La
cxperiencia li1craria. Ensayos
sobre cxperiencia, exégesis y
O formalismo russo - e, na sua senda, o estruturalismo da Escola de Praga e teoria de la /i1era111ra, Barce-
todas as orientações estruturalistas posteriores - constituiu a teoria da litera- lona, 1986, p. 370.
tura ou poética ou ciência da literatura, como a disciplina que estuda o sistema
literário, isto é, uma entidade teorética equivalente à Zangue, que Ferdinand de
Saussure definiu corno o objecto formal da ciência linguística. A operação
epistemológica que permitiu fundamentar a existência da teoria da literatura
só foi possível, aliás, graças ao conhecimento e à assimilação pelos formalistas
russos de algumas ideias expostas no Cours de linguistique générale ( 1916) de
Ferdinand de Saussure.

A teoria da literatura assim entendida postula a autonomia e a especificidade


da esfera do fenómeno literário - os formalistas russos designaram com o
termo literariedade essa autonomia e essa especificidade - e assenta no
princípio de que a literatura, como as outras artes, é constituída por signos,
convenções, normas, processos e mecanismos que transformam uma estrutura

17
verbal não-estética numa estrutura verbal estética. A teoria da literatura, por
conseguinte, não tem como objecto formal a obra literária concreta e indivi-
dual - equivalente à parole da linguística saussuriana -, a obra literária de
um autor ou a literatura produzida num determinado período histórico. A
teoria da literatura, porém, deve elaborar os conceitos, as hipóteses explicati-
vas, os métodos e os instrumentos de descrição e análise que permitirão
conhecer, com rigor sistemático, a obra literária concreta e individual, a obra
de um autor, um período literário, etc. Quer dizer, a teoria da literatura deve
ser o fundamento epistemológico e metodológico de todos os ramos discipli-
nares do campo dos estudos literários.

1.4 A ciência da literatura

Desde que as universidades se tornaram nos mais importantes e influentes


centros de investigação científica e desde que os estudos literários alcançaram
a sua institucionalização, nos planos do ensino e da investigação, nas universi-
dades - este processo, variável cronologicamente de país para país,
desenvolveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século XIX - ,
tornou-se imperioso e urgente estabelecer, fundamentar e caracterizar a natu-
reza científica dos estudos literários, como se todo o saber elaborado e
transmitido nas universidades devesse ser um saber científico.

Na língua alemã, por exemplo, desde o século XIX que se distingue entre
Literaturkritik, isto é, a crítica literária que examina, aprecia e julga obras
literárias rnntemporâneas e que é publicada em revistas e jornais dirigidos a
um largo público não especializado, e a Literaturwissenschaft, o~ seja, a
investigação e a análise universitárias da literatura, orientadas e regidas por
exigências, métodos e critérios de ordem científica e destinadas a um circuns-
crito público de especialistas (ou de aspirantes a especialistas). Na língua
inglesa, embora a expressão literary criticism abranja quer a crítica literária
impressionista e judicativa, publicada em revistas e jornais não especializados
ou difundida por mass media como a rádio e a televisão, quer a crítica literária
produzida nas universidades, é largamente utilizada a expressão literary
scholarship, isto é, um saber sobre a literatura que se funda num ensino e numa
aprendizagem escolarmente organizados e que se desenvolve em projectos de
investigação que obedecem a padrões de científicidade. Na língua francesa, de
modo semelhante, a expressão critique littéraire universitaire marca uma dife-
rença qualítativa entre os estudos literários realizados nas universidades e por
universitários e a critique littéraire praticada fora da universidade e à margem
das exigências da científicidade requeridas por esta instituição.

No campo dos estudos literários, porém, usam-se muitas vezes os termos


'ciência' e 'científico' sem rigor epistemológico e atribuindo-lhes tão-só o
significado genérico de 'objectividade'/'objectivo', 'rigor'/'rigoroso', etc.
Outras vezes, identifica-se e confunde-se 'ciência' com 'erudição'. Ora, apurar
rigorosamente, por exemplo, a data de nascimento de um escritor ou a data da
primeira edição de uma obra, aduzir razões para convalidar uma conclusão,

18
acumular informações extraídas com objectividade de documentos, etc., não
constitui razão suficiente para atribuir a tais operações de conhecimento o
estatuto de ciência.

Algumas vezes, a expressão 'ciência literária' tem designado manifestações de


cientismo, isto é, a doutrina segundo a qual os métodos indutivos das ciências
naturais são os únicos instrumentos e as únicas fontes de conhecimento
verdadeiro de todos os fenómenos humanos e sociais. Aceitando-se o princí-
' O monismo é a teoria
pio - não convalidado e não convalidável - de que todo o real é monista e é segundo a qual só existe uma
portanto explicável monisticamente 1, abre-se a porta a uma ciência literária de única realidade constitutiva
da natureza ou do universo.
tipo cientista - como aconteceu quer com o Positivismo, quer com o Mar-
2 2
xismo - que se converte necessariamente numa explicação reducionista dos O reducionismo é a prática
sistemática do processo
fenómenos literários. mediante o qual determina-
das espécies de fenómenos
A ideia de que o conhecimento das artes, em geral, e da poesia, em particular, ou de entidades são descri-
constitui um conhecimento científico aparece já formulada no século XVIII, no tas, analisadas e explicadas
através de conceiws e pro-
quadro das orientações racionalistas do Iluminismo e do Neoclassicismo. posições respeitantes a
Henry Kames, por exemplo, nos seus Elements of criticism (1762), concebe a fenómenos e entidades de
crítica como uma ciência racional («rational science») que proporciona um nível ontológico e epistemo-
lógico distinto.
entendimento rigoroso das belas artes («fine arts» ), que solicita o exercita-
mento da faculdade do juízo e que modera e harmoniza os afectos e as paixões.
O fundamento desta ciência reside na existência de normas estéticas universais
e atemporais e na uniformidade, na natureza humana, dos princípios gerais do
gosto.
\
Pouco tempo após a publicação dos Elements of criticism de Henry Kames,
mas integrado num quadro cultural, filosófico e estético profundamente
diverso, Johann Gottfried Herder (1744-1803) contribuiu de modo impor-
tante para a constituição do que se poderá designar a ciência literária do
Romantismo alemão e, em geral, da ciência literária de orientação histórico-
-filológica. Herder procura compreender os autores e as suas obras sob um
ponto de vista histórico-genético, analisando psicograficamente a personali-
dade criadora, indagando sobre as suas ligações com o tempo e o mundo que a
antecederam, buscando as suas relações com os rasgos característicos da sua
época, intentando captar e caracterizar o individual nas suas conexões com o
universal.

No âmbito cultural de língua alemã, o conceito de ciência


, literária (Literatur-
wissenschaft) tem gozado, ao longo dos séculos XIX e XX, de uma longa e vivaz
fortuna, se bem que mantendo frequentemente suspeitas e espúrias relações
com filosofias e concepções teleológicas da história e com ideologias políticas
e sociais. Bastará apontar, por exemplo, a incidência do hegelianismo em
muita da chamada 'ciência literária' alemã.

O projecto de construção de uma crítica científica ganhou grande amplitude,


no âmbito do Positivismo, com autores como Hippolyte Taine (1828-1893) e
como Émile Hennequin (1858-1888). A objectividade científica advogada
pelos positivistas conduz à busca das causas e determinações que explicam as
obras literárias: «a ciência», nas palavras de Taine, «não proscreve nem

19
perdoa: constata e explica». Cada autor possui uma faculdade mestra, isto é,
uma forma de espírito original de que derivam as características relevantes da
sua obra e que é determinada pela interacção de três ordens de factores: a raça
(conjunto de condicionalismos fisiológicos e psicológicos de tipo hereditário);
o meio (conjunto das circunstâncias telúricas, climáticas, sociais, etc.); o
momento (estádio em que se encontra, no devir histórico, um povo ou uma
comunidade). A crítica científica de Taine, por conseguinte, assenta num
determinismo que se arroga a capacidade de explicar todos os fenómenos
psicológicos, sociais e culturais.

Hennequin, na sua obra La critique scientifique (1888), concebe a crítica


científica, que denomina estopsicologia, como uma disciplina que se situa entre
três ciências - a estética, a psicologia e a sociologia - e com elas mantém
estreitas relações e que procura, por um lado, caracterizar o espírito indivi-
dual, o 'organismo interior', a personalidade do autor («a obra de arte»,
escreve Hennequin, «é um conjunto de signos que revela a constituição psico-
lógica do seu autor») e, por outro lado, definir a psicologia, a organização
mental e moral dos leitores, pois que «uma obra de arte não comove senão
aqueles de que ela é signo». A crítica literária científica de Hennequin acaba
assim por se integrar, segundo as palavras deste pensador positivista, numa
«imensa antropologia».

O conceito de ciência literária ocorre com muita frequência na obra dos


formalistas russos, com significado equivalente ao de poética e teoria da
literatura. Roman Jakobson, em particular, utiliza amiúde aquele conceito.
Num dos seus primeiros estudos, «A nova poesia russa» (1921), Jakobson
define deste modo o objecto formal da ciência da literatura: «Assim, o objecto
da ciência da literatura não é a literatura, mas a literariedade, isto é, o que faz
de uma determinada obra uma obra literária». E Boris Ejckenbaum, no seu
ensaio intitulado «A teoria do método formal» (1927), sublinha que os forma-
listas defendiam a ideia básica de que a ciência literária, como ciência literária,
devia ter como 0bjecto «a investigação das propriedades específicas do mate-
rial literário, das propriedades que distinguem este material do material de
qualquer outro género». O formalismo russo, em conformidade com o princí-
pio epistemológico de que cada ciência possui um objecto formal próprio e
específico, rejeita por conseguinte a natureza científica dos estudos psicológi-
cos, biográficos, sociológicos, histórico-culturais, etc., sobre a literatura. O
objecto formal da ciência literária é a literatura qua literatura, ou seja, é a
langue, o sistema da literatura.

O new criticism anglo-americano, concebendo embora a poesia como produ-


tora e veículo de experiências e significados diferentes, e até opostos, relativa-
mente às experiências e aos significados da ciência - ciência que os 'novos
críticos' americanos denunciam como culturalmente maléfica - , concebe o
poema como um objecto que pode e deve ser analisado cientificamente, de
modo racional, coerente, objectivo e rigoroso. «O que é dito sobre o poema»,
escreve W.K. Wimsatt em The verbal icon (1954), um dos livros fundamentais
para o conhecimento das teorias do new criticism, «está sujeito à mesma

20
verificação que qualquer asserção na linguística ou na ciência geral da psicolo-
gia». Enquanto o formalismo russo, como ficou dito, entende a ciência da
literatura, em conformidade com o modelo da linguística saussuriana, como a
ciência da langue da literatura, o new criticism americano defende a natureza
científica da leitura imanente (close reading) do texto literário concreto e
individual, que corresponde à parole de Saussure.

Na sequência lógica do redescobrimento no Ocidente do formalismo russo, o


conceito de ciência da literatura avultou de novo, nos .anos sessenta, no
estruturalismo, em particular no chamado «estruturalismo francês». Roland
Barthes, no seu ensaio Critique et vérité (1966), expôs o projecto estruturalista
da ciência da literatura com clareza modelar. Esta ciência, segundo Barthes
ainda inexistente - e sobre cuja existência futura, é necessário dizê-lo, Barthes
exprime dúvidas -, não poderá ser uma ciência dos conteúdos, mas uma
. ciência das condições do conteúdo, isto é, uma ciência das formas, dos
mecanismos formais, da lógica significante que permite os sentidos engendra-
dos pelas obras. A ciênci 4 da literàtura, cujo modelo deverá ser linguístico
- Barthes aponta explicitamente o modelo da linguística gerativa de Chomsky
-, não terá como objecto de estudo nem autores («não pode haver uma
ciência de Dante, de Shakespeare ou de Racine», afirma Barthes), nem obras
concretas, mas sim os signos do discurso literário em geral: por um lado, os
signos inferi ores à frase; por outra parte, os signos superiores à frase. A ciência
da literatura deve procurar construir a gramática do discurso literário e, por
conseguinte, proporcionar os fundamentos e as informações indispensáveis
para se alcançar a inteligibilidade da obra concreta, n\as não pode fornecer
instrumentos de análise que ensinem qual o sentido a atribuir exactamente a
uma dada obra.

A ciência da literatura concebida por Roland Barthes coincide, nos seus


fundamentos e nos seus objectivos, com a poética proposta por Tzvetan
Todorov e com a teoria da literatura de matriz formalista e estruturalista.

1.5 A retórica

A retórica é uma técnica (techne retorike) ou arte (ars oratoria) que se desen-
volveu, desde o século V a.C., primeiro na Magna Grécia (Sicília) e depois na
Ática, e que consiste num sistema de normas que ensinam a utilizar adequa-
damente a língua com a finalidade de produzir textos persuasivos, ou, segundo
a formulação mais rigorosa de Aristóteles, uma técnica cuja função é «ver os
meios de persuasão que existem relativamente a cada argumento».

Em Atenas, a retórica foi cultivada e difundida sobretudo pelos sofistas, que a


utilizaram habilmente como instrumento do seu relativismo gnoseológico e do
seu cepticismo moral e político.

Platão condenou severamente a retórica e os sofistas, pois que a c1encia


(episteme), em seu entender, deve predominar sobre a opinião (doxa) e a

21
verdade não deve ser corrompida por venais vendedores de alimentos da alma.
A retórica, segundo Platão, não proporciona a compreensão racional da
natureza das coisas; ela é apenas uma manipulação astuta das palavras, uma
erística, isto é, uma arte da disputa e da contenda mental que ensina a atacar e
a defender indiferentemente a mesma tese.
Aristóteles contribuiu poderosamente para reabilitar a retórica, articulando
de modo flexível e matizado as relações entre a episteme e a doxa e entre o
verdadeiro e o verosímil e sublinhando que, em muitos domínios e casos, não
se pode ir além da «assumpção do que parece aceitável e que é fundado na
opinião». Aristóteles distancia-se do modelo sofista da retórica concebida
como uma sedutora e enganosa ginástica mental, mas afasta-se também de um
modelo de discurso estritamente lógico e, como hoje se diria, altamente
formalizado. A retórica, segundo Aristóteles, tem uma forte conexão com a
lógica, mas tem de atender igualmente a outros factores - o carácter do
orador, as paixões do auditório, as circunstâncias da comunicação, etc. - ,
deve preocupar-se com a forma, mas deve igualmente ocupar-se de conteúdos
psicológicos, éticos, políticos, etc.
A defesa e a reabilitação aristotélicas da retórica encontraram, na cultura
romana, uma formulação perfeita no pensamento de Cícero.
A retórica, sendo embora uma associação de teoria e prática, é um saber de
natureza eminentemente pragmática, isto é, fundamentalmente ligado a quem
fala e a quem escuta, um saber que desenvolve e orienta a politropia, ou seja, a
capacidade de elaborar diversas espécies de discurso para diversos tipos de
auditório, que ensina a encontrar e a utilizar eficazmente argumentos e que
ensina a dizer bem, de modo a conseguir a adesão dos interlocutores à opinião
advogada.
A retórica clássica está dividida em cinco partes, cada uma das quais corres-
ponde a um estádio da constituição do discurso: a inventio ou a descoberta dos
argumentos; a dispositio ou a distribuição estrutural dos argumentos; a elocu-
tio ou a elaboração verbal dos argumentos; a memoria ou a capacidade de
memorizar, utilizando instrumentos mnemotécnicos, o discurso elaborado; a
actio ou pronuntiatio ou a realização do texto, co-envolvendo elementos
prosódicos e a gestualidade.
A retórica, como Aristóteles acentuou, diz respeito a matérias que, de certo
modo, todos os homens devem conhecer. Não se ocupa, por conseguinte, de
um tipo de discurso com características peculiares como é o discurso da
poesia. A descrição e a análise do discurso poético cabiam, como vimos, à
poética. A partir do século II, todavia, a retórica foi-se distanciando da
dialéctica, esqueceu-se progressivamente da sua preocupação primordial com
o debate público das ideias e opiniões e com a persuasão e, desvalorizando a
inventio e a dispositio, passou a ocupar-se sobretudo da elocutio e do ornato
estilístico (ornatus verbo rum).
Este processo de literaturização da retórica e de retorização da poética, que se
intensificou nos últimos séculos da Idade Média e durante o Renascimento e o

22
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Barroco, conduziu a um progressivo afastamento entre a lógica e a filosofia,


por um lado, e a retórica, por outro, convertendo-se esta última disciplina
quase exclusivamente numa taxinomia e_num receituário de figuras de palavras
(figurae elocutionis) e figuras de pensamento (figurae sententiae). A vocação
pragmática da retórica debilitou-se assim até à exaustão.
Com o Romantismo, a retórica, semelhantemente ao que aconteceu com a
poética, foi identificada com os aspectos mais estéreis e obsoletos do norma ti-
vismo neoclássico e desagregou-se irremediavelmente. A exaltaçã-0 romântica
da originalidade criadora e do génio, a valorização do sublime e da expressão
da individualidade provocaram a dissolução das normas e dos modelos sobre
os quais se construía a retórica clássica. A tópica, isto é, o código dos lugares-
-comuns (topai, loci communes), das formas e dos ternas consagrados, que os
oradores e os poetas utilizavam como herança anónima, tornou-se equivalente
de artificialismo e vacuidade decorativa.
A reabilitação da retórica, a~ós mais de um século de eclipse, começou, logo
nos primeiros anos do século XX, com a estilística, que foi buscar muitos
termos e conceitos à antiga retórica, e continuou, cerca de meados deste
século, com a Escola dos Neo-aristotélicos de Chicago, um grupo de teorizado-
res e críticos - R.S. Crane, Richard McKeon, Elder Olson, etc. - que, em
oposição ao new criticism anglo-americano, valorizou a capacidade didáctica e
a força ética da literatura e chamou a atenção para a importância dos leitores
na construção do significado do texto, ou seja, introduziu perspectivas retóri-
cas no estudo do fenómeno literário (é bem elucidativo que Wayne Booth, um
dos mais conhecidos representantes da Escola de Chidgo, seja autor de duas
obras intituladas The rhetoric offiction e The rhetoric of irony).
A chamada nova retórica ou neo-retórica, porém, teve início com a obra de
Chai:m Perelman e L. Obrechts-Tyteca, La nouvelle rhétorique. Traité de l' ar-
gumentation (1958), na qual é elaborada, segundo um modelo neo-aristotélico,
uma teoria geral da argumentação e se estudam as técnicas discursivas ade-
quadas a provocar e a intensificar a adesão dos espíritos às teses apresentadas,
prestando especial atenção às relações existentes entre a situação comunica-
tiva, os destinatários e o discurso. Esta orientação da neo-retórica confluiu
com correntes de filosofia da linguagem derivadas do pensamento de Witt-
genstein e que, nos anos sessenta, se manifestaram na teoria dos actos de
linguagem, na linguística pragmática e na teoria do texto.
A partir de meados da mesma década de sessenta, observou-se um generali-
zado interesse relativamente à retórica por parte dos teorizadores e críticos
literários classificáveis como estruturalistas (Roland Barthes, Gérard Genette,
Tzvetan Todorov, etc.). A matriz linguística, nos planos epistemológico e
metodológico, da teoria e da crítica literárias estruturalistas orientou logica-
mente a análise para os mecanismos discursivos do texto literário, mas a
linguística estruturalista só escassamente proporcionava instrumentos ade-
quados de descrição e análise desses mesmos mecanismos. A retórica podia
fornecer - e forneceu - termos, noções, esquemas analíticos. Alguns concei-
tos nucleares do estruturalismo e da semiótica como os conceitos de sistema e

23
código, que postulam a impossibilidade da existência de processos discursivos
radicalmente livres, subjectivos e originais, reintroduziram na concepção da
cultura, em geral, e na concepção das práticas textuais, em particular, um
princípio de normatividade que apresenta similitudes com princípios clássicos
e neoclássicos como o respeito da tradição e a imitação de modelos e que
contribuiu indubitavelmente para a reabilitação da retórica.
Nalg~ns casos, mais até do que de reabilitação, poder-se-á falar de uma
recuperação fundamentalista da retórica no domínio dos estudos literários. Em
1960, Heinrich Lausberg deu à estampa uma importante obra intitulada
Manual de retórica literária: Fundamentos da ciência da literatura (Handbuch
der literarischen Rhetorik: Eine Grundlegung der Literaturwissenschaft,
München, 1960, 2 vols.), na qual a retórica é entendida não apenas como um
instrumento adjuvante, útil ou até mesmo imprescindível dos estudos literá-
rios, mas wmo o seu próprio alicerce. Em 1977, um grupo de linguistas,
semioticistas e teorizadores literários da Universidade de Liege, conhecido
pela designação de Grupo µ, expôs no seu livro Rhétorique de la poésie um
conceito de retórica que coincide com o conceito de poética elaborado por
Roman Jakobson: para o Grupo µ, a retórica é a disciplina linguística «que
engloba o estudo dos processos de linguagem que caracterizam, entre outros
discursos, o discurso literário», ao passo que entende por poética a teoria da
poesia stricto sensu, isto é, a poesia como uma manifestação específica da
literatura.
Deve também ser realçada a forte contribuição que a psicanálise de Freud e de
Jacques Lacan deu para a redescoberta e a valorização da retórica, visto que
estabeleceu estreitas relações entre a estrutura e o funcionamento de dispositi-
vos retóricos e as estruturas infra-conscientes da vida psíquica. Segundo as
palavras de Emile Benveniste
o inconsciente usa uma verdadeira «ret~rica» que, tal como o estilo, tem as
suas «figuras», e o velho catálogo dos tropos forneceria um inventário aos
dois registos da expressão. Encontram-se nos dois lados todos os processos de
substituição engendrados pelo tabú: o eufemismo, a alusão, a antífrase, a
preterição, a litotes. A natureza do conteúdo fará aparecer todas as varieda-
des da metáfora, pois que é de uma conversão metafórica que os símbolos do
inconsciente tiram o seu significado e, ao mesmo tempo, a sua dificuldade.
Empregam também o que a velha retórica chama a metonímia (continente
por conteúdo) e a sinédoque (parte pelo todo) e se a «sintaxe» dos encadea-
mentos simbólicos evoca um processo de estilo entre todos, esse é a elipse.

Sem subestimar a capacidade descritiva e analítica da retórica, nem desvalori-


zar o seu contributo para os estudos literários, não aderimos à posição
daqueles que consideram a retórica como o fundamento da ciência da iitera-
tura. Na literatura de todos os tempos, há elementos~ valores que a retórica
não pode explicar, como sejam a representação (mimesis) do homem e do
mundo, a ficcionalidade dos mundos possíveis construídos pelos textos literá-
rios, as macroestruturas formais e semânticas do poema lírico, da tragédia, do
romance, etc.

24
1.6 A crítica literária

O termo crítica aparece documentado em francês e em italiano no último


quartel do século XVI. Noutras línguas europeias, a sua aparição é um pouco
mais tardia, datando do século XVII.
Este substantivo, tal como o substantivo e o adjectivo crítico, deriva do verbo
grego krinõ, que significa 'separar', 'distinguir', 'julgar'.
No léxico dos humanistas do Renascimento, a arte crítica (ars critica) é um
saber que, estreitamente ligado à gramática e à filologia, diz respeito à recons-
tituição, correcção e edição de textos antigos, separando, por exemplo, os
versos interpolados dos versos autênticos, apurando autorias, etc. Deste signi-
ficado, que equivale, no fundo, a crítica textual ou ecdótica, o vocábulo
'crítica' passou a ter o significado de apreciação e juízo de um autor ou' de uma
obra baseados no bom gosto e na cultura, autonomizando-se progressiva-
mente o seu uso em relação à gramática e à retórica.
Os mais autorizados histori.adores da génese e do desenvolvimento da crítica
literária como instituição de cultura- e.g., René Wellek e Peter Uwe Hohen-
dahl - estão de acordo em situar o início da sua histórica cerca de meados do
século XVIII, quando o sistema do neoclassicismo começa a fracturar-se e se
manifestam novas correntes de sensibilidade e de gosto, quando se desenvol-
vem novos géneros e subgéneros e se constitui um público alargado e hetero-
géneo. A crítica literária desempenhou para este público novo, predominan-
temente de origem burguesa, uma função de esclarec,imento e orientação
- uma função importante não só sob o ponto de vista da formação do gosto e
da discriminação de valores estéticos, mas também, indirectamente, sob o
ponto de vista da formação e difusão de valores ideológicos, morais e
políticos.
A expressão crítica literária tem apresentado, nas diversas línguas, significa-
dos diversos e até contrapostos, designando tanto a apreciação valorativa e
judicativa, em artigos publicados em revistas e jornais não especializados, das
obras literárias recentemente aparecidas, como o estudo rigoroso, muitas
vezes com preocupações e aspirações de rigor científico, de textos literários
não contemporâneos do crítico.
Se na língua alemã, como já ficou dito, o termo crítica literária (Literatur-
kritik) é utilizado, desde o século XIX, para designar aquela primeira modali-
dade de crítica, contrapondo-se o seu significado ao do termo Literatur-
wissenschaft, isto é, os estudos literários rigorosos, objectivos, científicos,
realizados nas instituições universitárias, já noutras línguas (francês, italiano,
espanhol, português, inglês, etc.), o mesmo termo abarca tanto a poética como
a crítica impressionista, tanto a história literária como a hermenêutica, etc.
Pensamos que, na lógica e na economia conceptual e terminológica do campo
dos estudos literários, o conceito de crítica literária deve ser claramente
diferenciado em relação ao conceito de teoria da literatura ou poética e em

25
relação ao conceito de história literária. A crítica literária é o estudo de um
texto literário concreto ou de um determinado conjunto de obras literárias,
diferentemente da teoria da literatura e da história literária, e pode apresentar
tanto uma orientação diacrónica como uma orientação sincrónica, pode
ocupar-se tanto de aspectos estilísticos e retóricos como de aspectos temáticos
ou semânticos, pode constituir-se quer como psicocrítica quer como sociocrí-
tica, etc.

Alguns autores advogam a concepção da crítica literária como um discurso


objectivo, estritamente descritivo e analítico, sem a interferência da subjecti-
vidade do crítico e dos seus juízos e apreciações de valor. A crítica literária é
assim concebida como um processo de conhecimento e como um discurso que
se integram no âmbito da estrita racionalidade científica. Esta é a posição
defendida, por exemplo, por Northrop Frye, um dos mais importantes e
influentes teorizadores e críticos literários contemporâneos.

Uma concepção radicalmente diversa é perfilhada pelo chamado impressio-


nismo crítico, que disfrutou de grande fortuna no final do século XIX e no
começo do século XX, segundo o qual a crítica literária deve exprimir as
impressões desencadeadas na sensibilidade do crítico pelos textos literários.
Com distintas fundamentações e modulações diversas, encontra-se similar
entendimento da natureza da crítica literária em todas as correntes que conce-
bem o acto crítico· como a manifestação de uma identificação da alma do
crítico com a alma do escritor e com a obra, num diálogo de amor e admiração
- como em Charles Du Bos (1882-1939) - , como a resposta que o crítico vai
construindo ao longo da sua experiência de leitor- como em Stanley Fish-,
ou como uma negociação ou transacção entre as percepções, os afectos e as
associações pessoais do crítico e o texto - como em David Bleich e Norman
Holland.

Uma terceira via - quanto a nós a mais ajustada teoreticamente e também a


mais fecunda - é aquela representada, por exemplo, por René Wellek. A
teoria da literatura pode constituir-se como uma teoria científica, ou seja,
como um conjunto sistemático de definições, conceitos, proposições e hipóte-
ses que, dependendo de axiomas, pressupostos e dados empíricos, é passível de
ser submetido a provas de refutação e descreve e explica um determinado
domínio de fenómenos. A crítica literária pode e deve utilizar elementos e
instrumentos de ordem científica que a teoria da literatura elabora, pode e
deve cultivar a precisão terminológica e conceptual e o rigor metodológico,
pode e deve, enfim, evitar o radical relativismo gnoseológico, mas não poderá
nunca constituir-se como um conhecimento estritamente científico, porque o
seu objecto de estudo - a obra literária concreta, individual - se exime a tal
tipo de conhecimento. A crítica literária, na sua compreensão da obra, tem de
desenvolver operações interpretativas que co-envolvem a subjectividade, a
historicidade e o universo de valores do crítico-leitor.

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1. 7 A história literária

A história literária nasceu e desenvolveu-se no seio do Romantismo alemão,


assimilando e reelaborando ideias e tendências que procediam da segunda
metade do século XVIII.

Nos últimos anos de Setecentos, ocorreu uma grande ruptura nas camadas
mais profundas do pensamento europeu, uma mutação radical que transfor-
mou todas as formas do saber: a passagem da Ordem clássica à História, à
História que, segundo a brilhante análise de Michel Foucault, não é apenas «a
colecção das sucessões de facto, tais como puderam ser constituídas», mas é
sobretudo «o modo fundamental de ser das empiricidades, aquilo a partir do
qual elas se afirmam, se apresentam, se dispõem e se repartem no espaço do
saber para conhecimentos eventuais e para ciências possíveis» (Michel Fou-
cault, Les mots et les choses, Paris, 1966, p. 231).

O Romantismo, desenvolvendo o pensamento de alguns grandes pioneiros


como Vico e Herder, construiu e difundiu uma concepção histórica do homem
e das suas criações culturais, transferindo-os, do teatro universal e atemporal
em que a Ordem clássica os situava, para um espaço e um tempo concretos e
mutáveis.

O ano da publicação, em 1815, da História da literatura antiga e moderna de


Friedrich Schlegel pode ser escolhido como a data simbólica do nascimento da
história literária. Friedrich Schlegel estuda a literatura - então um termo e
um cohceito relativamente recentes, como veremos ~ como expressão e
mahifestação das nações e dos povos, ligada a outras manifestações da civili-
zação e da cultura como a língua, a. religião, o folclore, etc. A literatura devia
ser estudada no seu desenvolvimento orgânico, nas suas várias épocas,
procurando-se reconstituir a complexa interacção existente entre a herança e a
criatividade individual e relacionar os autores e as obras com os grandes
movimentos espirituais e culturais da sua época, com os acontecimentos
políticos do seu tempo, com a sociedade de que faziam parte, etc.

A história literária contraiu, logo no período romântico, alianças com outros


saberes que haveriam de a marcar duradouramente. Por um lado, relacionou-
-se com a filologia, ciência então florescente e de fundamental importância
para a reconstituição e a compreensão dos textos literários do passado, em
particular dos textos literários medievais; por outro lado, recolheu da erudição
do século XVIII o seu pendor factualista. Este factualismo acentuar-se-á com o
positivismo e manifestar-se-á então, em confronto com a crítica literária
impressionista, como uma exigência capital, nos planos epistemológico e
metodológico, da história literária: o respeito pelos factos será entendido e
apresentado como garantia da objectividade da história literária.

No campo dos estudos literários, o século XIX foi por excelência o século da
história literária. A síntese amadurecida da disciplina, tanto na teoria como na
prática, foi elaborada por Gustave Lanson (1857-1934), de tal modo que o

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vocábulo Iansonismo passou a designar, especialmente na cultura de língua
francesa, o método histórico-literário.

Desde as primeiras décadas do século XX, porém, multiplicaram-se os sinais de


crise da história literária - uma crise que resultou também dos exageros e
abusos a que deu lugar o método histórico-literário (erudição, factualismo,
biografismo, desatenção relativamente aos elementos estéticos, etc.), mas que
foi originada sobretudo pela crise do próprio conceito de história construído
pelo Romantismo.
Os grandes movimentos de teoria e crítica literárias da primeira metade do
século - o formalismo russo, o new criticism anglc-americano, a estilística
- subestimaram a diacronia, isto é, a perspectiva histórico-evolutiva na aná-
lise dos textos literários e prestaram reduzida atenção ao contexto histórico-
-cultural e à cronologia, valorizando, em contrapartida, a sincronia, isto é, a
perspectiva sistémico-funcional que ignora a história como processo de
mudança, o estudo imanente dos textos, ou seja, o estudo dos textos na sua
estrutura formal e semântica, sem recurso a factores intrínsecos (biografia,
intencionalidade autoral, fontes, influências, etc.). ·

A crise da história literária tem algo a ver também com a própria ontologia dos
textos literários e com a resistência que essa ontologia oferece à indagação e à
análise históricas. Com efeito, o historiador literário trabalha com textos que,
produzidos num dado tempo histórico e marcados por esse mesmo tempo,
transcendem, enquanto monumentos artísticos, os limites e as características
desse tempo histórico.

Como acontece muitas vezes, a crise originou a renovação da própria história


literária. O formalismo russo, na sua fase de amadurecimento, reconheceu que
o conceito de !:listema literário não é refractário ao tempo histórico e que se
torna necessário s•Jperar a oposição entre diacronia e sincronia, entre a noção
de sistema e a noção de evolução, pois que «cada sistema nos é obrigatoria-
mente apresentado como uma evolução e que, por outro lado, a evolução tem
inevitavelmente um carácter sistemático».

A semiótica, ao demonstrar a importância dos sistemas e dos códigos na


produção e na recepção dos textos literários, demarcou um novo território
para o conhecimento do qual se torna indispensável o concurso da história
literária. Como se constituem esses sistemas e códigos, que são entidades
históricas? Como se modificam estas entidades no fluir da história? Qual a
origem e qual a evolução dos processos literários que, numa determinada
época, configuram a Iiterariedade? Quais as articulações da semiose literária
com os sistemas de valores ideológicos e com o sistema social?

Por outro lado, a história literária, como já Gustave Lanson, aliás, tinha
ensinado, tem de se ocupar dos fenómenos que configuram a litera,tura como
instituição. Tem de analisar os agentes e os mecanismos da produção literária
- quem escreve, quem edita, quais os circuitos de difusão dos textos, quais as
instâncias do poder intervenientes nestes processos produtivos- e os agentes

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