Teoria e Metodol. Literarias Aguiar e Silva
Teoria e Metodol. Literarias Aguiar e Silva
Teoria e Metodol. Literarias Aguiar e Silva
e a eloquência!
Ant~riormente à segunda metade do século XVIII, quando se pretende deno-
minar a arte e o corpus textual que actualmente designamos por literatura, são
utilizados lexemas e sintagmas como poesia, eloquência, verso e prosa,-etc.
Na segunda metade do século XVIII, o lexema literatura apresenta uma pro-
funda evolução semântic_a, em estreita conexão com as transformações d.a
cultura europeia 11esse período histórico. Subsistem no s~u uso, por força da
tradição. linguística e cultural, os significados acima referidos, mas.
manifestam-se também, em correlação com aquelas transformações, 11ovo~
c:onteúd9s semânticos, que divergem dos anteriormente vigentes e que diver-
gem também entre si.
o Por um lado, o lexema literatura passou a significar um específico fenómeno
estético, uma específica modalidade de produção, expressão e comunicação
artísticas, enfim, uma arte, tal como a pintura e a música. Por outro lado,
passou também a designar os produtos, o corpus de textos resultantes daquela
arte.
Do significado de corpus em geral de textos literários, passou compreensivel-
mente o lexema literatura a significar também o conjunto da prndução literá-:
ria de um determinado pafs, tornando-se óbvias as implicações filosófico-
-políticas de tal conceito de literatura nacional: cada país possuía uma
literatura com características próprías, uma literatura que era expressão do
espírito nacional e que constituía, por conseguinte, um dos factores funda-
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mentais para se definir a natureza peculiar de cada nação. Sintagma,s coipo
literatt1!a alelJ!ã, literatura francesa, literatura italiana, etc., foram-se tornando
de uso frequente a partir dos últimos anos do século XVIII.
Eis as linhas fundamentais da evolução semântica do lexema literatura até ao
limiar do Romantismo. Tal evo!ução, porém, não se quedou aí, mas prosse-
guiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em breve síntese, as mais
importantes acepções adquiridas pelo lexema neste período de tempo:
a) «Conjun!Q, d,:!,§_ e:J<;pre§s9e§ tsc_rüas do esp~r~to hur:nan?», ou seja, o
conjunto das obras literárias de todos os povos e de todos os tempos.
Este conceito de literatura mundial ou universal ( Weltliteratur) foi
primeiramente formulado por Goethe, em 1827;
b) Conjunto da produç:ão lite.rária de um<t ~P<?fª - literatura do sécu-
lo XVIII, literatura victoriana -, ou de uma região - pense-se na
famosa distinção formulada por Mme de Stael entre literatura do norte
e literatura do sul, por exemplo;
c) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial
quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua tJ?-tençã,o:
literatura feminina, literatura de terror, literatura revolucionária, litera-
tura de evasão, etc.;
d) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto: _literatura
sobre o barroco, literatura sobre o estruturalismo, etc. Este significado
é originário da língua alemã, da qual transitou para outras línguas;
e) Retórica, expres,são artificial _e. falsa. Verlaine, no seu poema Art
poétique, escreveu o famoso verso: «Et tout le reste est littérature»,
identificando pejorativamente literatura e expressão retórica, falsa e
artificial;
f) Por e!jp~e, emprega-se simplesmente literatura em vez de história da
literatura;
literatura;
h) Literatura pode significar ainda conhecimento sistemático, científico,
do fenómeno literário. Trata-se de um significad_o caracteristicamente
universitário do lexem.;i e ocorre em sintagmas como literatura compa-
rada, literatura geral, etc.
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gem verbal, uma específica categoria da criação artística, um conjunto de
textos resultantes desta actividade criadora, uma instituição de índole
soei ocul tural.
Como observa Alain Viala, no seu importante livro intitulado Naissance de
!' écrivain. Sociologie de la littérature à !' âge classique (Paris, 1985), acreditar
que as transformações lexicais e as práticas culturais são sincrónicas seria
aceitar um nominalismo infundamentado. Ao longo dQ séçµlo xyn, em
França como noutros países europeus, vai-se configurando a literatura como
instituição, vai-se fortalecendo e difundindo .a idé:i_a de,_ que as belas-letra.s ·:
representam um domínio partkularizado, predominantemente constituído
pela~ o~ras dos escrito~es - p~~tas, oraBtres, historiadores - e não pelas_
obras dos autorE:s, que cultivavam indistintamente as letras e as ciências. Uma
análise lexicográfica, semântica e sociológica como aquela empreendida por
Alain Viala contribui de modo importante para matizar o nosso conhecimento
histórico da emergência do fenómeno da literatura - e não apenas da emer-
gência do termo literatura~, mas não permite concluir que a modificação do
conceito de literatura seja anterior a meados do século XVIII.
As razões desta modificaçã_o e_das tr<1nsformações sernâ,ntiqt~ elo termo Htera-
tur~ são de vária ordem, embora profundamente conexionadas.
Por um lado, o termo ciência adquiriu então um significado mais estrito, em
consequência do desenvolvimento da ciê~ci~ indutiva e ·experimental, de
modo que se tornou cada vez menos aceitável incluir nas belas-letras os
-- • • • ' 1, "' ·---·· ' ' J
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-tecnológico -, quer como sistema de valores susceptível de funcionar em
substituição de códigos éticos e religiosos em crise (a literatura erigida em
valor absoluto, teorias da arte pela arte, etc.). Ora, tudo parece indicar que
palavras únicas têm tendência para substituir frases ou expressões, quando
significados novos, interesses culturais novos e importantes passam a ser
representados pelas frases ou expressões. Terá sido o que se verificou na
segunda metade do século XVIII. Sintagmas como belas-letras, letras humanas,
poesia e eloquência, etc., foram substituídos pelo lexema literatura - um
vocábulo etimologicamente ligado à escrita, ao texto escrito, ao texto que se
particulariza por usar de determinado modo a linguagem escrita.
O significado do O_)J:t}"_Q,YQ~~~ulo que poderia ter cornpetido semantiçaI11e_11te _
com literatura, o vocábulo po~si~, passou a estar cada vez mais, do sé-
culo xvm e.m:<Uapte, ou circunscrito a um domínio bem caracterizado da
prodµçãqJiterâria, ou al~r~ado a um âm~ito, q~e~ relativo ao belo artístico em
geral, quer relativo ao belo natural, que transcende a esfera da literatura.
Com efeito, verificou-se nas literaturas europeias, desde as primeiras décadas
do século XVJII, uma acentuada valorização de textos e géneros literários em
prosa, desde o romance e o conto ao ensaio e à sátira ideológico-política. Se o
racio~alismo neoclássico e o espírito filosófico iluminista desempenharam
importante papel na valorização de uma prosa literária apta à comunicação e
ao debate de ideias, o Pré-romantismo rasgou novos horizontes à prosa
literária, com o romance, a novela, as memórias, a biografia e a autobiografia
- géneros literários que adquiriram então um estatuto estético e sociocultural
de que não usufruíam nos séculos anteriores.
Esta importância crescente da literatura em prosa - sobretudo de uma
literatura narrativa em prosa- está relacionada.com um dos grandes fenóme-
nos culturais e sociológicos
~ ".- - ...
ocorridos no século XVIII: o alargamento substan~
' ~ .
cial do pú!)li~? leit~r. Este alargamento foi uma consequência do triunfo
económico, político e cultural da classe burguesa e originou um vigoroso
desenvolvimento da indústria e do comércio livrei~os, a proliferação de insti-
tuições que possibilitavam e promoviam a leitura - bibliotecas públicas,
gabinetes e sociedades de Ieirura -, o aparecimento, pela primeira vez na
história, de escritores que tinham a possibilidade de viverem do rendimento
proporcionado pelas suas obras - é o caso de Voltaire - e a formação çle µm;;i.
opinião públis:a que haveria de exercer uma função relevante não só no campo
das questões ideológico-políticas e sociais, mas também no campo das mani-
festações artísticas.
Dentro de tal condicionali~mo, não era possível alarg<!,r a designação de poe~ia
a uma produção literária em que avultavam cada vez majs, quer sob o ponto de
vista qualitativo, quer sob o ponto de vista quantitativo, os textos em pros<!,.
Poesia passou a designar predominantemente os textos literários que apresen-
tavam determinadas características técnico-formais - os textos poemáticos,
os textos escritos em verso - ou então passou a designar uma categoria
estética susceptível de qualificar quer obras artísticas não-literárias, quer
determinados aspectos e manifestações da natureza ou do ser humano (a
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poesia de uma pintura, a poesia de uma paisagem, a poesia de um rosto, etc.).
Tinha de se adaptar portanto outra designação genérica mais extensiva. Essa
designação foi literatura.
A partir da difusão do novo significado do termo literatura, começaram a
verificar-se inevitavelmente usos anacrónicos do termo, isto é, a sua aplicação
a épocas e a autores em que o termo não existia com o novo significado. Assim,
por exemplo, passou a falar-se de literatura grega, literatura latina, literatura
medieval, da concepção de literatura em Aristóteles, em Horácio, etc.
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A ideia da existência de uma especificidade do discurso literário e da esfera da
literatura é de origem kantiana e desenvolveu-se, ao longo do século XIX,
muitas vezes em formulações radicais, nas teorias da arte pela arte. No final do
século XIX e primeiros anos do século XX, a ideia, bem viva nas poéticas do
simbolismo e do modernismo, ganhara novo alento com a filosofia neo-
-kantiana, que estabelecia a existência na cultura de domínios bem delimita-
dos e caracterizados.
O"conceito de literariedade, formulado porB,Qm?-1_:tJªk()_t)~()I} logo nos primei-
ros anos do formalismo russo, num en8-a,io p1,1b,licago ~m 1~2}, corresponde a
esta necessidade teorética de identificar
---"~·-Ã.~,...·,.·.·~
a especificidade
·-~·--" -.•----·· .. _,,
da literatura.
. ·.,. , ·• '•·· ~-- ·•
A litera-
riedade, definida por Jakobson como o que faz de uma determinada obra uma
obra literária, como o sistema de processos que transformam um acto verbal
numa obra literária, é concebida como uma essência transtemporal, uniy_~r,sal,. • • • ,._.-~ •• , •' "", • ➔ ~ •• • • • - ., • • ",,., • • " - ' ... ... ••• • • ' • • •••• .,. ~ -. . ..,
função o valor autónomo concedido à palavra. Num outro estudo mais tardio,
intitulado «O que é a poesia?», Jakobson, ao analisar o conceito de poetici-
dade, refere-se a uma função estética e a uma função poética da linguagem, que
se manifesta no facto de «as palavras e a sua sintaxe, a sua significação, a sua
forma externa e interna não serem indícios indiferentes da realidade, mas
possuírem o seu próprio peso e o seu valor próprio». Numa série de conferên-
cias inéditas sobre o formalismo russo, proferidas em 1935 na Universidade de
Brno e das quais se conhecem apenas alguns extractos, de novo Jakobson
analisa a natureza da poesia com fundamento na função poética da linguagem,
• , •.• , ..... ,.,.,. ....... ,... ,,,s,- .,,,-.~-,-~"- ' ,,, " • • .•• ,. •• ' .• - ...• •
.
-.,..., __~ -·-•··--
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vimento do formalismo russo e durante os anos imediatamente subsequentes à
sua forçada desagregação - nos anos vinte e trinta deste século, respectiva-
mente-, conclui-se que, e~_st:uentçp.cie,r, nos textos em que aquela função
actua como dominante as estruturas verbais adquirem valor autónomo,
orientando-se os si;:.<.Ü~JiE~~j.§JJs9.s p~~-~-~L!!l.f,S_fQQS, para «a sua forma externa
e interna», e não p~r.él. llill,:tf~ªJig(!çiet,:,~t.rnJiDE!Ü~lÜ::Jt- orientação própria da
função referencial - ou para a s,1,1_l:üecti\'.idade.d,o,,;i,,µJo:c - orientação própria
da função expressiva. Quer dizer, Jakobson considera indissociáveis_a função
e~!~.t.i.~~-°.1:Jl°-~-t!~~ da lin_g__ua,g_em e"a natureza,a.utónoma e autotélic<i·~?..!.~~t?
p~~Ê.<?.?, isto é, na tradição da estética kantiana, um_!~2(.!5?.9-~~--!-~E1 ..~!!J:-~i-,_
pr.9p_rio a .S.11-~_!:9:zã:9_de ~-~.r. ~--él__S..~AJtqªljs:l,ªs!~-
O conceito de função poética da linguagem desempenha um papel muito
importante nas teorias do Círculo Linguístico de Praga sobre a natureza da
linguagem poética. Nas Teses de 1929, o grande texto programático do estru-
turalismo
·~• ,
checo, co~t;apõ~~se-â"rüiíçio de comuni~;çi;d~-li~g~~.i~m, que s~
_,,.,..........,.,,,_,,., ..,,~----~·· ... .........
~
•
,..,._,.,.,,._~ ,,. •' •• ••"' • -.c-s ~-,,,-,,,· fm•., .,~.,_,,_.,,,.,.,_,,~~. -. . . . . ~,. -..,---"~"-· .,,. z,~•• "-'::!"" .,-,,,.,. •. •""'-"'·'- , ,,,, •"
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Por conseguinte, Jakobson distingue seis funções na linguagem verbal:
a) A função expressiva ou emotiva (denominação proposta por A. Marty,
suíco discípulo de Brentano e colaborador do Círculo Linguístico de
Praga), centrada sobre o sujeito emissor e aspirando a «uma expressão
,-,..__.....,.....,,_,_ _,,.,~~.,•~•- . .'~•--u.-,,,.,,_
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Acerca da função poética da linguagem, aduz ainda Jakobson mais alguns
elementos caracterizadores que importa conhecer.
Assim, escreve que «esta função, que põe em evidência o lado palpável dos
sinais, aprofunda por isso mesmo a dicotomia fundamental dos sinais e dos
objectos.» Esta afirmação inscreve-se na linha de rumo,já atrás analisada, das
doutrinas dos formalistas russos - entre eles, o próprio Jakobson - e dos
estruturalistas do Círculo Linguístico de Praga, segundo a qual a função
poética ou estética se distin_gue da funsão de comunicaçãc da linguagem pelo
facto de, nesta última, existir uma relação instrumental com a rea.Edaêl.e
extralinguística que não se verifica naquela.. Nesta perspectiva, a autonomia e a
a~totelicid~de da mensagem poética dependem da inexistência deste tipo de
relações instrumentais com a realidade extralinguística: a mensagem poética,✓\
enquanto organização formal, enquanto textura de significantes («o lado pal- í
pávei dos sinais») - jogo ~de ritmos, aliterações, eufonias, rede de paralelis-
mos, anáforas, etc. -, CO_?~!i!:Ü:-1~--~mB.!laJiçi_~c:ie Qe §L@_~~ll]:a.-
Por outro lado, Jakobson estabelece como critério linguístico que permite
reconhecer empiricamente a função poética - e, por conseguinte, como
elemento, «cuja presença é indispensável em toda a obra poética» - o facto de
que «a função poética projecta o princípio de equivalência do eixo da selecção
sobre o eixo da combinação.» Qual o significado deste princípio, solidário da
asserção jakobsoniana transcrita e analisada no parágrafo anterior? A selec-
ção e a combinação constituem os dois modos fundamentais de ordenação
operantes na actividade linguística, conforme essa ,actividade se processe
respectivamente no plano paradigmático ou no plano siritagmático: «A selecção
realiza-se na base da equivalência, da similitude e da dissimilitude, da sinoní-
mia e da antonímia, ao passo que a combinação, a construção da sequência, se
funda na contiguidade.» Ora, na poesia, a sequência, a cadeia sintagmática
tem como fundamental procedimento constitutivo o princípio da equivalên-
cia: «Em poesia, cada sílaba é colocada em relação de equivalência com todas
as outras sílabas da mesma sequência; presume-se que todo o acento de uma
palavra é igual a qualquer outro acento vocabular; do mesmo modo, a átona
equipara-se a outra átona; a longa (prosodicamente) iguala-se a longa e a
breve iguala-se a breve; limite de palavra e ausência de limite equivalem a
limite e ausência de limite de palavra; pausa sintáctica corresponde a pausa
sintáctica, ausência de pausa corresponde a ausência de pausa. As sílabas
convertem-se em unidades de medida e o mesmo acontece com as pausas e os
acentos.»
Como Jakobson expôs mais minuciosamente nos seus estudos «Poetry of
grammar and grammar of poetry» e «Grammaticai parallelism and its russian
facet», desenvolvendo ideias de um dos seus poetas predilectos, Gerard
Manley Hopkins, toda a repetição do mesmo conceito gramatical, toda a
recorrência da mesma 'figura gramatical' e da mesma 'figura fónica' represen-
tam «o princípio constitutivo da obra poética». Esta projecção da similaridade
na contiguidade gera uma «propriedade intrínseca, inalienável» de toda a
poesia - a ambiguidade, a plurissignificação, fenémeno que ocorre não
apenas em relação à mensagem, mas também em relação ao seu emissor, ao
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seu destinatário e à sua referência. «A supremacia da função poética sobre a
função referencial», escreve Jakobson, «não oblitera a referência (a denota-
ção), mas torna-a ambígua. A uma mensagem com duplo significado corres-
pondem um emissor desdobrado, um destinatário desdobrado e, além disso,
uma referência desdobrada.» 1
1
O estudo de Jakobson inti-
tulado «Closing statements:
Linguistics and poetics», foi
publicado no volume edi-
tado por T.A. Sebeok, Style 2.4 A críse dos conceitos de literatura e de literariedade
in lang11age, New York-
-London, 1960. Sobre os
outros estudos citados, cf. A teoria jakobsoniana da função poética da linguagem, cujo objectivo é
R. Jakobson, Quesrions de
poé1iq11e, Paris, 1973.
explicar em termos linguísticos a essência da literariedade, ~ insatisfatória e
in~~_ficient{;;;ob"div~r:59$ a.~;ctos. Elaborada a partir de determin.adas teorias
e determinadas práticas poéticas - as teorias e as práticas de certo roman-
tismo alemão e inglês, do simbolismo e do modernismo -, mostra-se dotada
de alta capacidade descritiva e explicativa em relação aos textos poéticos que
se adequam àquelas teorias e práticas, mas apresenta-·teêfozid'à",-o~"•;té-~ulà,
capaêrêfâct~-~f~;~ritr;;~;·;;pli~ativa é~";elação a grande parte da prosa lit;~á;i~
e em relação ~~r~g)_29~§ia q~e se a~astadorefe.í;idogi§qelo, como acontece
com a poesia escrita em verso livre.
A oposição entre a função de comunicação, para utilizar este termo e este
conceito do estruturalismo de Praga, e a função poética da linguagem tem
subjacente uma concepção neokantiana da arte e da literatura em geral na qual
se yaloriza, por um lado, o que o próprio Jakobson designou como s~iose_
intLoversiva - os mecanismos e processos form~is que configuram o texto
lit~rário como uma ~t~ra're'cfíãéiã'sôbre
, ......... _.,.-• . .,,,•-••e~'<•••,,.. ••~MA<V,-;-.<'..,,_,_,, .. ,,.,~ -,••"S~,~,~•..-<a>w-.,
autotéÜ~a-~-i-~·t;;·~siti~-; sI'~-êsma:
--.,.,-,,,,., .,~ ••• •>"•,.-•••~• .. •-•~,.,_~,..,e,_
Por último, e deixando de lado objecções mais específicas e técnicas, deve ser
sublinhado que a teoria jakobsoniana d~_função_poética assenta na chamada
falácia linguística, denunciada logo nos primeiros anos do formalismo russo
por Grigorij Vinokur, isto é, assenta __ ,,,.._.--..,...,....,,no erro de"···~---
...~-~-.---~·~,·,--~--· concebe~
....... a literatura
""··-~- como
·--·~•"' um
,.. _________ .,.,.
subsistema_depcndente do sistema fü1guístico. Com efeito, para Jakobson a
função_ pq~Jica é uma. das funyões da linguagem e a _poétjc:i:l ~ .\Jnrn...cta.s
subdisc:ipfü.:i..ªL9)L1.ü1guisJ:ic.a. Como procuraremos demonstrar adiante,.!.~]
concepção do sistema literário é inaceitável._
.... ,..,, . ...,,· .....,._,, .. ~-• ..,..~,u;,-,,,·,._.,...,,,,.,~-"'•..-~-,,,x'-"'_..,Tr .,._
46
Tais orientações pragmáticas, conferindo fundamental relevância aos usuá-
rios do sistema semiótica literário, aos agentes dos actos de comunicação
literária e aos contextos em que estes ocorrem, minaram 9_s fuJ~damento_s do
conceito formalista de Iiterariedade e acabaram por colocar em crise o próprio
,-,. '"" ,... ., . . • . .. ,. .. ,. ... -~ ··-~ ._.. ~ ··- .•.• ~,-···~~À•··--•"'-',,,•• ~.--,· .. , .... ·•-« • ' .,
conceito de literatura ..
O conceito formalista de literariedade, como vimos, é um conceito apragmá- ·
-::· tico, acontextual: a literariedade identifica-se como um conjunto de marcas
formais que caracterizam, de modo invariante, os textos literários. Ora,
segundo as referidas orientações pragmáticas, não existem marcas formais que
distingam especificamente, de modo universal e atemporal, os textos
literários.
Todavia, segundo as versões que poderemos classificar como versões_mitiga-
das da Q_ragmática da literatura, o texto literário diferencia-se de outros tipos
d~,-t~-;to;,:__QQ~;~--po;sui mecanismos peculiares de comu;G;çã;;e-~que
fl;l_ECion_§., por c~;;eg~~te, segundo modelos comunicadõiiãlsprópri_os. Est~s
modelos, como é óbvio, exigem a participação adequada do leitor, mas têm
como fundamento aqueles peculiares mecanismos de comunicação, isto é,
elementos que existem nos textos. Poder-se-á dizer que tais versões mitigadas
da pragmática da literatura elaboram um conceito de literar~edade comunica-
cional, entendendo-se por esta expressão uma convenção constante que se
manifesta textualmente em termos de processo comunicativo.
Tais versões mitigadas da pragmática da literatura estão representadas, por
exemplo, por Marcello Pagnini que, na sua obra Pragmatica della letteratura
(Palermo, 198q), caracteriza a literatura como um sisteµia semiótico e como
un.@_actividade de modelização que introjecta no próprio texto os três factores do
-
..·--·----·-·-----·.,.,,
modelo comunicativo habitual: o emissor, o receptor e o objecto ou o referente.
O Jexto lite~~E~~-~-1:'E~~enta introj_ect_~~?.~, ins~_rj_tg_~na_sua pr<2.@j_~~~x._!_tl_<t_l_i~~9-~,_
um emiss9r, UJP. receptor e _um referente. O leitor, a fim de ler o texto literário
como literatura, tem de aceitar esta convenção.
Segundo as versões que podemos classificar como versões radicais da pragmá-
tica da liter9-tur<!_, n~g ~?'!.~-~e_!11_ nos textos qyaiSÇLf.!er marc~~f(?!~~~-~ ~:~_cq_i:nu- ·
nicacionais que constituam.. ajntrínseca _especiti~~acLe litei:á_ria desses textos.
AsJ~j_t_1.1_rns peçJ1Ea.r~~--r_:~<1.li:z_a_ç!_<1._~--P~~g§J_e,i.t2E~~ é q~e tornam um !~.~!~ 1:1~!1\
texto literário.
Estas versões radicais da pragmática da literatura estão modelarmente repre-
sentadas na obra de Stanley Fish intitulada Is there a text in this class? The
authority of interpretive communities (Cambridge, Mass. - London, 1980).
S~g~nd~-i~h, u.1:t.1...Q.O.~~a e .l:1!1.1_~)is!.~J~jj:>J_0_g!_?:fica são .difer_e_Qte_s,__a_p~~as
porque_ a.diferença resulta __ de_ op_e,gççS~s_jQ.t,~[.p!,e_t~!iy_as gif~r-~Qt.~~--q!:!:~. 9s
lei!oFes_ realizal:!1 e_11~o_p2_rqt1~J':la. __t~_r:i~_c1...~.-~1!.é,l.J9._me_ e111_9.~_êLq!!~.L.PEºPf.i_~~~d~
in~~ente a Yl:!1 ~ ..1,l.?.l1..t_rª~ Não são as características formais de um texto que
originam uma determinada leitura, mas_~ sim, urgª..9.~J.~.!:!!1.Ln.a.sI.a l~}tuxª qu,e >· ,·
co.nsti:ói peculiªi:es..c3:rªc:;!~i::ís.!i.ça.sJ9.rmªi~E.~E2 texto. Aliás, segundo Stanley
Fish, pode-se formular a conclusão geral de que «todos os objectos são
construídos e que são construídos pelas estratégias interpretativas que pomos
em acção».
:::
47
Em conformidade com o modelo pragmático do texto literário elaborado por
Stanley Fish, é _o leitor que, mediante leituras literárias, constrói o~,!~~.t2.~
literários e a literatura, mas o leitor está também 1ª.._construído por uma
d~t-~[!!15.!!a..s!i:!-...~2!!!!1"id;de interpretativ~; por um sistema de inteligibilidade
publicamente disponível que é o sistema literário. Graças a este conceito de
comunidade interpretativa, Stanley Fish evita a anarquização individual do
conceito de literatura, mas não pode evitar a sua total mudança, tanto sincró-
nica como diacronicamente.
As consequências lógicas de uma concepção radical da pragmática da litera-
tura estão formuladas de modo taxativo por Terry Eagleton no seu livro
Literary theory. An introduction (Oxford, 1983): literatura é «uma designação
que as pessoas dão, de vez em quando, por diferentes razões, a certos tipos de
escrita no âmbito do domínio que Michel Foucault chamcu práticas discursi-
vas». Assim, a literatura como categoria 'objectiva' desagrega-se inevitavel-
mente, pois «qualquer coisa pode ser literatura e qualquer coisa que é conside-
rada como inalterável e inquestionavelmente literatura - Shakespeare, por
exemplo - pode deixar de ser literatura».
As teorias pragmáticas dafüeratura, ao dissolverem deste modo o conceito de
literatui:a - cÓndenando~se paradoxalmente por isso à inexistêncÚ;, .co~o
reconhece Terry E~gleton, visto que 'enterram' o objecto que se propunham
estudar ... - , re2re_s,entam mê-is um d~~ nu~_:rosos ataques de q1:1e_o termo e o
cortçei!().q_~_E!~Eê!.11!:ê-, desde há mais de um século, tê1!15.i_ct~-ª!v.9. Com efeito,
na poética do Simbolismo, na estética de Benedetto Croce, na poética do
Surrealismo, e t ~ m o e o conceito de literatura foram desvalorizados e
m~o postergados, em c~ntra@Si~~om ter1:10 e o _c~n.seito depC>~_§ia 9.ue o
foram re-semantizados positivamente. O anúncio e 3:prgçlél.r11aç~.9_qa 'morte'
da)it.eratura converteram-se até numa e·spécTé-de tópico, ora lut~;~·o·~-o~a
jubilatório, re-utilizado com fundamentações e finalidades distintas. Em
todos os casos, porém, o t<?.P!~~.5!~.)ns>r!.Y.'. clª. ljJé:gtlJfª expr,i1!1.~. ~~!~~:t~~:9e
cri?~ da çq\tg_ra.e da socjedade ocidentais e reflecte conflitos de ideologias e de
' • • •-,.,.,,.,_,.,.,,,-,• '<'"•~•-•••"---•~,.•..-.,•~ ,-,~~ • .. •~, ~-•••••• ,-.,• • ,.,. ., .... , •-' •• '•.. , •, .,. .. • .. ,r,., . .,~••• •-•v••-••••• ••
visões do mundo.
Nalgumas teorias pragmáticas radicais da literatura, por exemplo, cu~J.9-_gue
comra ctJ!!~~t~!9- é alimentado pelas ideias de que a literatura é uma ip_~_tj_!._u_i~
ç~~-~~E~~~~a, de que tem s.rrYi9.S?.º~.-!!1!~Ee.S.~.e.s, ~-ª~ ~s~I"atégias_ d_e,__p_Qç!§r das
forças política e socialmente conservadoras e reacci0nárias, de que constitui
uma escandalosa manifestação de eli.1:ismq_.rnJ!g:rnL ..~tc. N_e.~.le. _cgr.it~~t(),_,ª .
revalorização da lit3'.r!'ltUraa,oral, da _paralite_ra!llra, da literatura. de m.assas,
etc., tem tido frequentemente como pro,,2ósito ..o._3:pa_game_n to das. fronteiras
delimitadoras da literatura e a flesintegraçã~desta numa espécie de galáxia de
práticas discursivas sem especificidades que possam ser reconduzidas à ideia
de arte ou à noção de experiência estética.
Os ataques ideológicos ao conceito de literatura são destituídos de funda-
mento, pois que a literatura, nestes dois últimos séculos, como afinal a poesia
ao longo de toda a história do Ocidente, exprimiu e difundiu muitas vezes
valores, padrões de comportamento, visões do mundo diferentes e até contra-
postas às crenças, convicções e interesses dos grupos social e politicamente
48
hegemónicos. Há grandes escritores de 'direita' e de 'esquerda', conservadores
e revolucionários, burg~eses e a~ti-b~rgueses, etc. CÔndenar in toto a litera-
tura por razões ideológicas como as apontadas é uma atitude ditada apenas
por estreitas razões ideológicas.
As teorias pragmáticas da literatura proporcionaram, sem dúvida, elementos
· importantes··e· pertinentes para um conhecimento mais exacto do fenómeno
literário. Chamaram a atenção, desenvolvendo ideias já expostas nos anos
trinta pelo estruturalismo da Escola de Praga e pela estética fenomenológica
do filósofo polaco Roman Ingarden, para a função relevante do leitor na
existência plena do texto literário e revelaram as características peculiares da
cÜmunlcaçfto liter~~ia, p~-~d~ em evidência as lim.Ttâçõe~sdÕ.-cõllc·éifo'Tõi'rrüi-
list~··de literariedade. Elaboraram e difundiram, porém, ideias e argumentos
inc;~sistentes, inexactos e inaceitáveis.
Em primeiro lugar, torna-se necessário afirmar que algumas teorias pragmáti- , .• ~·
cas concederam ao leitor um poder arbitrário em relação ao estatuto literário it'' w•
ou não literário dos textos, ignorando quer a intencionalidade e o trabalho do
autor, quer as estrutura.:; dos text~s. --····· ·-·· ·· · · ·· ·· -
.,,...,_......,- .;,·.- , ...,_., ••••-••---•••••••••~•-•••o>,.••••••••••••••--•••••-•"••
49
quase sem excepção, as obras literárias aí estudadas e valoradas como relevan-
tes textos literários foram escritas e publicadas como textos literários.
É indubitável que ler Decline andfall of the roman empire ou Portugal contem-
porâneo de Oliveira Martins como textos literários pressupõe e exige que o
leitor adopte e ponha em prática um modelo de leitura literária, mas não é
irrefragável - bem pelo contrário - que tal leitura literária sej~ _com_plet3:-
mente dissociável das estmturas rítmicas, estilísticas, retóricas, semânticas e
prl:l_gIT!~.t.i9ttc.!~!~2i!º:c~~ ~f~it·;:·p~-~;;~os como àqueÍ~-~-~-~~ª~- q~~tê_if~i
nados solicitam leituras literárias, porque apresentam estruturas formais,
semânti~as _e pragmáticas que são identificáveis como_caracterí~ti_~as da
semiose-·füerárTã·e~~qÜe os leitores que os lêem como textos lite;á;Ios
colocam entre parêntesis ou cancelam como não pertinentes as informações de
ca~~cter_ historiográfico_ nele_ contid1:ts,
Esta nossa argumentação pressupõe logicamente que sem leitura literária
nephum texto possui uma existência plen~--~C?.ffiQts:xJ9li~t;:}:á,rL9, mas rejeita as
ideiis de que a charriaêlàfê'ffuràTifefãria s~ja uma operação s;miótica omnipo-
derosa, capaz de converter em literatura qualquer texto, e de que seja uma
leitura orientada e regulada por convenções e normas que não abrangem
também os escritores e que não se manifestam e objectivam nos próprios
textos.
Criticar e refutar o conceito formalista de literariedade e a teoria jakobsoniana
de função poética da linguagem não equivale a aceitar o princípio - ou
axioma - pragmático de que o discurso literário não possui marcas formais
distintivas. É muito fácil, com efeito, recortar num romance, num drama ou
num poema lírico um segmento discursivo que poderia ser também um frag-
mento de uma notícia de jornal, de um livro de geografia ou de um guia
turístico, como é igualmente fácil encontrar exemplos de segmentos discursi-
vos de uma notícia: de jornal, de uma receita culinária, de um livro de biologia,
etc., que apresente marcas fónico-rítmicas, estilísticas, retóricas, etc., que têm
sido consideradas como peculiares do discurso literário. No âmbito dos seg-
mentos discursivos ou das unidades lexemáticas, não é possível provar nada a
este respeito, porque é possível P.L~.Y~\ t~~?~,
A análise desta problemática só pode ser pertinenternente equ~cionaga nQ,
qurulio da unidade textual: a literaíTeêiãêíe, como fenómeno semiótica co~ uma
dim~n~iQ:iiiJti~;;~a dimen-são semânticaêuma~clime°7i~p;agm~
é ·;dequadamente apreemível e caracterizável a nível do texto e não-;~vel do
enunciado ou da_Q.~ͪ-Yra isQÍiliÍã~Há·t~~t;s - tragédÍas; comédiâs, ~ s
épicos, églogas, canções, sonetos, etc. - que apresentam uma estrutura textual
específica, com observância de convenções e normas que não relevam do
sistema linguístico, que utilizam de modo peculiar os recursos e meios expres- ·
sivos da língua natural em que são produzidos, que constroem mundos possí-
veis dotados de mecanismos semânticos especiais e que só podem ser adequa-
damente lidos segundo modelos de comunicação que s~ encontram
paJcialmente inscritos e previstos nos próprios textos.
Paradoxalmente, Stanley Fi~~ fun.daroentª ª~xist.~I_lfi::t_Qé!S ÇQº1.t~nidade_~J!!_t_er_:-
pretaHvãs."i1âqu-eí"es··qu~. cÕmpartilham estratégias interpretativas. ;:~ão pa~a
.u.-.,•~~,,~~•-~•<-•,.,-•,,,... ---~-•---"--•~•..,,_,.-~-.,,_~,_ , •. ,.,,,.,,.,...,,,..-,•,,•-..:v?.••-,~-• -""".""'~- - .,,,-,,--,,~ . .,, ••••• • ,,.,- "
50
f/ .~- ,i
51
sicismo francês excluía dos textos literários temas de origem e natureza folcló-
rica e elementos lexicais de cunho realista ou próprios do comportamento
linguístico de estratos sociais inferiores. Posteriormente, o Pré-romantismo e
o Romantismo conferiram àqueles temas estatuto literário e o Realismo e o
Neo-realismo converteram em relevante factor textual literário aquele léxico
postergado pelo Classicismo francês. Estas transformações, próprias de um
sistema aberto como o sistema literário, no q~al. ocorre um constante e
CQnJ.P..l~XQ._tJi~xo de entradas e saídas em relação à ~~f;;;cti.E!;;-~Í~ura.2.ão
originadas por alterações do sistema de normas aceite pela comunidade literá-
--- ·-
ria - escritores,leÍtores, ~íticos, teorizad;res, profe;~res, etc. -, s;b a
- ·--- . -.....,.,......--.-- .
acção de mudanças operadas historicamente nas estruturas sociais e culturais,
e reE!esentam um alargamento das fronteiras do discurso literário, mas não
pr9Q_[!.§!~~!l~~. em~·;gê:r1cia de -~~~nceituação radicalmente !:~!<:;_~~
literatura. - · · · ·· · · · ··
BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA
POZUELO YVANCOS, José María, Teoría dei !enguaje !iteraria, Madrid, Cátedra,
1988.
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-Buffalo-London, University of Toronto Press, 1985.
WELLEK, René, The attack on literature and other essays, Brighton, The Harvester
Press, 1982.
52
;;;;;&;J&JQQZZWLZK.
11
1.1 Os estudos literários como campo de conhecimento
13
babelização que retira credibilidade científica ao próprio campo. Abusiva-
mente, algumas de tais «correntes», que muitas vezes representam fugazes
efeitos de modas filosóficas e ideológicas, apresentam-se e são apresentadas
como paradigmas, no sentido que Thomas S. Kuhn concedeu a este termo na
sua célebre obra intitulada The structure of scientific revolutions, isto é, como
matrizes disciplinares, como conjunto de pressupostos, leis e normas comparti-
lhadas duradouramente pelos membros de uma comunidade científica e que
orientam, regulam e legitimam os programas de investigação. Segundo Kuhn,
a proliferação de teorias, o desacordo e o constante debate em torno dos
fundamentos das teorias caracterizam a pré-ciência ou a ciência imatura, isto
é, constituem manifestações exactamente opostas aos paradigmas, que são
próprios da ciência normal.
1.2 A poética
14
termo e do conceito de poética ficaram a dever muito a Paul Valéry, que
afirmou, na sua primeira lição do Curso de Poética no College de France,
proferida a 10 de Dezembro de 1937:
Foi, porém, com o formalismo russo e com o estruturalismo checo, nos anos
vinte e trinta do presente século, que o termo e o conceito de poética foram
utilizados frequentemente, com um significado técnico., como equivalentes a
teoria da literatura e a ciência da literatura. Em 1919, foi publicada uma
colectânea de estudos de jovens formalistas russos intitulada Poética. Em
1923, Grigorij Vinokur, um importante linguista do formalismo russo, publica
uma obra intitulada Poética. Linguística. Sociologia. Logo no início da sua
Teoria da literatura (I.ª ed., 1925), Boris Tomasevskij escreve: «Objectivo da
poética (ou, noutros termos, da teoria da arte verbal ou literatura) é o estudo
dos modos como são construídas as obras literárias». Boris M. Ejchenbaum,
no seu famoso ensaio intitulado «A teoria do método formal», aponta como
uma das linhas mestras da actividade desenvolvida pelos formalistas «a rege-
neração da poética que se encontrava num estado de total desuso». Jan
Mukafovsky, o mais importante e influente teorizador literário da chamada
Escola de Praga, no seu estudo «Sobre a linguagem poética» (1940) utiliza o
termo 'poética' como equivalente de teoria da literatura e veio a coligir, em
três volumes publicados em 1948, grande parte dos seus escritos sob o título de
Capítulos sobre a poética checa.
15
7E i ; i 11 %4§¾ ?&1/#t rteifttt5Wf 1m
1. 3 A teoria da literatura
16
norte-americanos, graças fundamentalmente ao ensino e à investigação de
professores da Europa oriental que então trabalhavam em universidades dos
Estados Unidos (é o caso de Roman Jakobson e René Wellek).
17
verbal não-estética numa estrutura verbal estética. A teoria da literatura, por
conseguinte, não tem como objecto formal a obra literária concreta e indivi-
dual - equivalente à parole da linguística saussuriana -, a obra literária de
um autor ou a literatura produzida num determinado período histórico. A
teoria da literatura, porém, deve elaborar os conceitos, as hipóteses explicati-
vas, os métodos e os instrumentos de descrição e análise que permitirão
conhecer, com rigor sistemático, a obra literária concreta e individual, a obra
de um autor, um período literário, etc. Quer dizer, a teoria da literatura deve
ser o fundamento epistemológico e metodológico de todos os ramos discipli-
nares do campo dos estudos literários.
Na língua alemã, por exemplo, desde o século XIX que se distingue entre
Literaturkritik, isto é, a crítica literária que examina, aprecia e julga obras
literárias rnntemporâneas e que é publicada em revistas e jornais dirigidos a
um largo público não especializado, e a Literaturwissenschaft, o~ seja, a
investigação e a análise universitárias da literatura, orientadas e regidas por
exigências, métodos e critérios de ordem científica e destinadas a um circuns-
crito público de especialistas (ou de aspirantes a especialistas). Na língua
inglesa, embora a expressão literary criticism abranja quer a crítica literária
impressionista e judicativa, publicada em revistas e jornais não especializados
ou difundida por mass media como a rádio e a televisão, quer a crítica literária
produzida nas universidades, é largamente utilizada a expressão literary
scholarship, isto é, um saber sobre a literatura que se funda num ensino e numa
aprendizagem escolarmente organizados e que se desenvolve em projectos de
investigação que obedecem a padrões de científicidade. Na língua francesa, de
modo semelhante, a expressão critique littéraire universitaire marca uma dife-
rença qualítativa entre os estudos literários realizados nas universidades e por
universitários e a critique littéraire praticada fora da universidade e à margem
das exigências da científicidade requeridas por esta instituição.
18
acumular informações extraídas com objectividade de documentos, etc., não
constitui razão suficiente para atribuir a tais operações de conhecimento o
estatuto de ciência.
19
perdoa: constata e explica». Cada autor possui uma faculdade mestra, isto é,
uma forma de espírito original de que derivam as características relevantes da
sua obra e que é determinada pela interacção de três ordens de factores: a raça
(conjunto de condicionalismos fisiológicos e psicológicos de tipo hereditário);
o meio (conjunto das circunstâncias telúricas, climáticas, sociais, etc.); o
momento (estádio em que se encontra, no devir histórico, um povo ou uma
comunidade). A crítica científica de Taine, por conseguinte, assenta num
determinismo que se arroga a capacidade de explicar todos os fenómenos
psicológicos, sociais e culturais.
20
verificação que qualquer asserção na linguística ou na ciência geral da psicolo-
gia». Enquanto o formalismo russo, como ficou dito, entende a ciência da
literatura, em conformidade com o modelo da linguística saussuriana, como a
ciência da langue da literatura, o new criticism americano defende a natureza
científica da leitura imanente (close reading) do texto literário concreto e
individual, que corresponde à parole de Saussure.
1.5 A retórica
A retórica é uma técnica (techne retorike) ou arte (ars oratoria) que se desen-
volveu, desde o século V a.C., primeiro na Magna Grécia (Sicília) e depois na
Ática, e que consiste num sistema de normas que ensinam a utilizar adequa-
damente a língua com a finalidade de produzir textos persuasivos, ou, segundo
a formulação mais rigorosa de Aristóteles, uma técnica cuja função é «ver os
meios de persuasão que existem relativamente a cada argumento».
21
verdade não deve ser corrompida por venais vendedores de alimentos da alma.
A retórica, segundo Platão, não proporciona a compreensão racional da
natureza das coisas; ela é apenas uma manipulação astuta das palavras, uma
erística, isto é, uma arte da disputa e da contenda mental que ensina a atacar e
a defender indiferentemente a mesma tese.
Aristóteles contribuiu poderosamente para reabilitar a retórica, articulando
de modo flexível e matizado as relações entre a episteme e a doxa e entre o
verdadeiro e o verosímil e sublinhando que, em muitos domínios e casos, não
se pode ir além da «assumpção do que parece aceitável e que é fundado na
opinião». Aristóteles distancia-se do modelo sofista da retórica concebida
como uma sedutora e enganosa ginástica mental, mas afasta-se também de um
modelo de discurso estritamente lógico e, como hoje se diria, altamente
formalizado. A retórica, segundo Aristóteles, tem uma forte conexão com a
lógica, mas tem de atender igualmente a outros factores - o carácter do
orador, as paixões do auditório, as circunstâncias da comunicação, etc. - ,
deve preocupar-se com a forma, mas deve igualmente ocupar-se de conteúdos
psicológicos, éticos, políticos, etc.
A defesa e a reabilitação aristotélicas da retórica encontraram, na cultura
romana, uma formulação perfeita no pensamento de Cícero.
A retórica, sendo embora uma associação de teoria e prática, é um saber de
natureza eminentemente pragmática, isto é, fundamentalmente ligado a quem
fala e a quem escuta, um saber que desenvolve e orienta a politropia, ou seja, a
capacidade de elaborar diversas espécies de discurso para diversos tipos de
auditório, que ensina a encontrar e a utilizar eficazmente argumentos e que
ensina a dizer bem, de modo a conseguir a adesão dos interlocutores à opinião
advogada.
A retórica clássica está dividida em cinco partes, cada uma das quais corres-
ponde a um estádio da constituição do discurso: a inventio ou a descoberta dos
argumentos; a dispositio ou a distribuição estrutural dos argumentos; a elocu-
tio ou a elaboração verbal dos argumentos; a memoria ou a capacidade de
memorizar, utilizando instrumentos mnemotécnicos, o discurso elaborado; a
actio ou pronuntiatio ou a realização do texto, co-envolvendo elementos
prosódicos e a gestualidade.
A retórica, como Aristóteles acentuou, diz respeito a matérias que, de certo
modo, todos os homens devem conhecer. Não se ocupa, por conseguinte, de
um tipo de discurso com características peculiares como é o discurso da
poesia. A descrição e a análise do discurso poético cabiam, como vimos, à
poética. A partir do século II, todavia, a retórica foi-se distanciando da
dialéctica, esqueceu-se progressivamente da sua preocupação primordial com
o debate público das ideias e opiniões e com a persuasão e, desvalorizando a
inventio e a dispositio, passou a ocupar-se sobretudo da elocutio e do ornato
estilístico (ornatus verbo rum).
Este processo de literaturização da retórica e de retorização da poética, que se
intensificou nos últimos séculos da Idade Média e durante o Renascimento e o
22
;;. .. 44?& &Wh
23
código, que postulam a impossibilidade da existência de processos discursivos
radicalmente livres, subjectivos e originais, reintroduziram na concepção da
cultura, em geral, e na concepção das práticas textuais, em particular, um
princípio de normatividade que apresenta similitudes com princípios clássicos
e neoclássicos como o respeito da tradição e a imitação de modelos e que
contribuiu indubitavelmente para a reabilitação da retórica.
Nalg~ns casos, mais até do que de reabilitação, poder-se-á falar de uma
recuperação fundamentalista da retórica no domínio dos estudos literários. Em
1960, Heinrich Lausberg deu à estampa uma importante obra intitulada
Manual de retórica literária: Fundamentos da ciência da literatura (Handbuch
der literarischen Rhetorik: Eine Grundlegung der Literaturwissenschaft,
München, 1960, 2 vols.), na qual a retórica é entendida não apenas como um
instrumento adjuvante, útil ou até mesmo imprescindível dos estudos literá-
rios, mas wmo o seu próprio alicerce. Em 1977, um grupo de linguistas,
semioticistas e teorizadores literários da Universidade de Liege, conhecido
pela designação de Grupo µ, expôs no seu livro Rhétorique de la poésie um
conceito de retórica que coincide com o conceito de poética elaborado por
Roman Jakobson: para o Grupo µ, a retórica é a disciplina linguística «que
engloba o estudo dos processos de linguagem que caracterizam, entre outros
discursos, o discurso literário», ao passo que entende por poética a teoria da
poesia stricto sensu, isto é, a poesia como uma manifestação específica da
literatura.
Deve também ser realçada a forte contribuição que a psicanálise de Freud e de
Jacques Lacan deu para a redescoberta e a valorização da retórica, visto que
estabeleceu estreitas relações entre a estrutura e o funcionamento de dispositi-
vos retóricos e as estruturas infra-conscientes da vida psíquica. Segundo as
palavras de Emile Benveniste
o inconsciente usa uma verdadeira «ret~rica» que, tal como o estilo, tem as
suas «figuras», e o velho catálogo dos tropos forneceria um inventário aos
dois registos da expressão. Encontram-se nos dois lados todos os processos de
substituição engendrados pelo tabú: o eufemismo, a alusão, a antífrase, a
preterição, a litotes. A natureza do conteúdo fará aparecer todas as varieda-
des da metáfora, pois que é de uma conversão metafórica que os símbolos do
inconsciente tiram o seu significado e, ao mesmo tempo, a sua dificuldade.
Empregam também o que a velha retórica chama a metonímia (continente
por conteúdo) e a sinédoque (parte pelo todo) e se a «sintaxe» dos encadea-
mentos simbólicos evoca um processo de estilo entre todos, esse é a elipse.
24
1.6 A crítica literária
25
relação ao conceito de história literária. A crítica literária é o estudo de um
texto literário concreto ou de um determinado conjunto de obras literárias,
diferentemente da teoria da literatura e da história literária, e pode apresentar
tanto uma orientação diacrónica como uma orientação sincrónica, pode
ocupar-se tanto de aspectos estilísticos e retóricos como de aspectos temáticos
ou semânticos, pode constituir-se quer como psicocrítica quer como sociocrí-
tica, etc.
26
1. 7 A história literária
Nos últimos anos de Setecentos, ocorreu uma grande ruptura nas camadas
mais profundas do pensamento europeu, uma mutação radical que transfor-
mou todas as formas do saber: a passagem da Ordem clássica à História, à
História que, segundo a brilhante análise de Michel Foucault, não é apenas «a
colecção das sucessões de facto, tais como puderam ser constituídas», mas é
sobretudo «o modo fundamental de ser das empiricidades, aquilo a partir do
qual elas se afirmam, se apresentam, se dispõem e se repartem no espaço do
saber para conhecimentos eventuais e para ciências possíveis» (Michel Fou-
cault, Les mots et les choses, Paris, 1966, p. 231).
No campo dos estudos literários, o século XIX foi por excelência o século da
história literária. A síntese amadurecida da disciplina, tanto na teoria como na
prática, foi elaborada por Gustave Lanson (1857-1934), de tal modo que o
27
vocábulo Iansonismo passou a designar, especialmente na cultura de língua
francesa, o método histórico-literário.
A crise da história literária tem algo a ver também com a própria ontologia dos
textos literários e com a resistência que essa ontologia oferece à indagação e à
análise históricas. Com efeito, o historiador literário trabalha com textos que,
produzidos num dado tempo histórico e marcados por esse mesmo tempo,
transcendem, enquanto monumentos artísticos, os limites e as características
desse tempo histórico.
Por outro lado, a história literária, como já Gustave Lanson, aliás, tinha
ensinado, tem de se ocupar dos fenómenos que configuram a litera,tura como
instituição. Tem de analisar os agentes e os mecanismos da produção literária
- quem escreve, quem edita, quais os circuitos de difusão dos textos, quais as
instâncias do poder intervenientes nestes processos produtivos- e os agentes
28