Site Specific
Site Specific
Site Specific
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUACÃO EM ARTES CÊNICAS
PORTO ALEGRE
2020
JOSÉ JACKSON SILVA
PORTO ALEGRE
2020
JOSÉ JACKSON SILVA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Walter Lima Torres Neto – Orientador
Universidade Federal do Paraná- UFPR
_______________________________________________________________
Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira
Universidade Do Estado de Santa Catarina- UDESC
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Inês Alcaraz Marocco
Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ismael Scheffler
Universidade Tecnologica Federal Do Paraná- UTFPR
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Silvia Balestreri Nunes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
Aos treze dias do mês de agosto de dois mil e vinte, às 14 horas, realizou-se a
defesa pública da tese O SITE-SPECIFIC NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO
TEATRAL, do aluno José Jackson Silva, sob orientação do professor doutor
Walter Lima Torres Neto, perante banca examinadora composta pelos
professores doutores, Inês Alcaraz Marocco do Programa de Pós Graduação
em Artes Cênicas da UFRGS, Silvia Balestreri Nunes do Programa de Pós
Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, André Luiz Antunes Netto Carreira
do Departamento de Artes Cênicas da UDESC e Ismael Scheffler do
Departamento Acadêmico de Desenho Industrial da UTFPR. Diante da
excepcionalidade do momento e da necessidade do cumprimento de medidas
de contenção estabelecidas pelo Ministério da Saúde, assim como pelos
poderes estaduais e municipais, que visam evitar a propagação do novo
Corona vírus (Covid-19), a banca foi realizada com uso de recursos à distância,
seguindo orientações da Pró Reitoria de Pós Graduação da UFRGS, em
sessão virtual pública e amplamente divulgada. A banca considerou o trabalho
aprovado, ponderou as qualidades do texto, destacando a relevância do tema e
a escolha dos casos analisados. E apontou ajustes que considerou pertinentes
que foram discutidos durante a arguição. Encerrados os trabalhos, eu Walter
Lima Torres Neto, orientador da tese em exame, lavrei a presente Ata que
segue por mim assinada.
________________________________
O mundo é um Palco.
(William Shakespeare)
RESUMO
Esta tese investiga o processo criativo da direção teatral nos espetáculos produzidos
sob o conceito de site-specific. As reflexões aqui tratadas são resultantes do
comportamento criativo de três jovens encenadores brasileiros, Anderson Maurício,
Diego Pinheiro e Thiago Romero. A tese apresenta o estudo de caso de cada um
dos diretores, que juntos, oferecem um repertório para problematizarmos os
procedimentos que orientaram suas encenações. Em diálogo com os referenciais
teóricos canônicos que subsidiam o estudo do espaço teatral, esta tese se interroga
sobre a noção de site-specific em relação com a encenação contemporânea. Site-
specific é aqui contrastado com a definição de espaço cênico e lugar teatral. Esta
investigação compreende a prática do site-specific como articulação do trabalho
teatral, ao apontar para questões tanto estéticas quanto sociais, políticas,
econômicas e identitárias. Com esta tese, o autor pretende contribuir para a
ampliação dos estudos sobre o tema, assinalando as perspectivas que mediam os
fundamentos da direção teatral em site-specific.
This thesis investigates the creative process of the theatrical direction in the plays
produced under the site-specific concept. The reflections discussed here are the
result of the creative behavior of three young Brazilian directors, Anderson Maurício,
Diego Pinheiro and Thiago Romero. The thesis presents the case study of each of
the directors, who together offer a repertoire to problematize the procedures that
guided their staging. In dialogue with the canonical theoretical references that
subsidize this study of the theatrical space, this thesis questions the notion of site-
specific in relation to contemporary staging. Site-specific is here contrasted with the
definition of scenic space and theatrical place. This investigation includes the
practice of site-specific as an articulation of the theatrical work, by pointing out
aesthetic as well as social, political, economic and identity issues. With this thesis,
the author intends to contribute to the expansion of the studies on the theme,
highlighting out the perspectives that mediate the foundations of site-specific
theatrical direction.
Figura 1 – Velha Fama (1906), de Alfred Athis, encenação de André Antoine. ....... 24
Figura 2 – Cenário de Appia para a ópera “Orfeu” (1913), de Willibald Gluck. ........ 26
Figura 3 – Desenho de Edward Gordon Craig para Hamlet (1910), encenação de
Stanislavski. ........................................................................................... 28
Figura 4 – Imagem de Opa, nós vivemos! (1927), de Ernest Toller e encenação de
Erwin Piscator. ....................................................................................... 30
Figura 5 – Imagem de O Corno Magnífico (1922), de Nick Worrall, e encenação de
Vsevolod Meyerhold. ............................................................................. 32
Figura 6 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil. Encenação de Ariane
Mnouchkine. .......................................................................................... 36
Figura 7 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil. Encenação de Ariane
Mnouchkine. .......................................................................................... 38
Figura 8 – Kordian (1962), encenação de Jerzy Grotowski. .................................... 41
Figura 9 – Desenho do cenário de Kordian (1962), encenação de Jerzy Grotowski.
............................................................................................................... 41
Figura 10 – Doutor Fausto (1963), encenação de Jerzy Grotowski. ........................ 42
Figura 11 – Desenho do cenário de Doutor Fausto (1963), encenação de Grotowski.
............................................................................................................... 42
Figura 12 – Desenho do cenário de Akropolis (1962), encenação de Grotowski..... 43
Figura 13 – Akropolis (1962), encenação de Grotowski. ......................................... 43
Figura 14 – O Príncipe Constante (1965), encenação de Grotowski. ...................... 44
Figura 15 – Desenho do cenário para O Príncipe Constante (1965), encenação de
Grotowski. .............................................................................................. 44
Figura 16 – Choco (1956). Encenação de Tadeusz Kantor. .................................... 49
Figura 17 – Dionísio 69 (1970), adaptação de As Bacantes de Eurípides, encenação
de Richard Schechner. .......................................................................... 52
Figura 18 – Mar Panorâmico (1967), um Happening de Tadeusz Kantor. ............... 56
Figura 19 – Arco Inclinado (1981), obra de Richard Serra. ...................................... 59
Figura 20 – Imagem de um Gabinete de Curiosidades............................................ 61
Figura 21 – Edifício O Abacaxi de Dunmore (1761), concebido por John Murray. .. 62
Figura 22 – Palácio Ideal (1879), construído na França por Ferdinand Cheval. ...... 63
Figura 23 – Obra Pedra e Ar (1966), concebida por Lygia Clark. ............................ 64
Figura 24 – Cais em Espiral (1970), obra concebida por Robert Smithson. ............ 66
Figura 25 – Quintal (1961), performance concebida por Allan Kaprow.................... 68
Figura 26 – Imagem de BR3, encenação de Antônio Araújo para o Teatro da
Vertigem. ............................................................................................... 75
Figura 27 – A morte de Danton (1977), texto de Georg Büchner, encenado por
Aderbal Freire. ....................................................................................... 85
Figura 28 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenação de Anderson Maurício. ........................................................ 94
Figura 29 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenada por Anderson Maurício. ......................................................... 96
Figura 30 – Imagem do Cordel do amor sem fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenação de Anderson Maurício. ........................................................ 99
Fluxograma 1 – Estrutura de criação do Cordel do Amor Sem Fim. ..................... 100
Figura 31 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 102
Figura 32 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 104
Fluxograma 2 – Estrutura de criação do espetáculo Dentro é Lugar Longe. ........ 106
Figura 33 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 113
Figura 34 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 124
Figura 35 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 125
Figura 36 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 129
Figura 37 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 138
Fluxograma 3 – Estrutura de criação do espetáculo Rebola. ................................ 144
Figura 38 – Imagem da “casa preta” utilizada na encenação de Arbitrio (2011), texto
e direção de Diego Pinheiro................................................................. 150
Figura 39 – Imagem de Arbítrio (2011), texto e direção de Diego Pinheiro. .......... 151
Figura 40 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.......... 152
Figura 41 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.......... 153
Fluxograma 4 – Estrutura de criação do espetáculo Arbítrio e Oroboro................ 157
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
INTRODUÇÃO
(gargalho ao lembrar isso, mas foi assim que me foi ensinado, precisei desaprender
a ser um diretor convencional). Após a leitura, a vizinha do lado nos ofertou água e
exclamou em voz alta: “Nossa, esse Paco é maluco, hein!” (Paco é o nome do
personagem da peça).
Naquele instante tive outro clarão, percebi que a força motriz daquela
encenação deveria ser a realidade material e concreta daquele lugar, que se
compunha por meio das camadas sociopolíticas e culturais (portanto históricas),
caras à sociedade brasileira.
As especificidades daquele espaço, portanto, não deveriam ser apagadas ou
anuladas, pelo contrário, deveriam ser redimensionadas, pois seriam delas onde os
atores, cenógrafo, iluminador, maquiador, figurinista, produtora e eu (diretor) iriamos
nos deter para construir aquele trabalho.
Se os sons vinham da rua, a descarga da casa ao lado era acionada, ou a TV
era ligada, tínhamos que usar; se a luz do poste banhava o espaço interno e
goteiras molhavam o piso sempre que chovia, tínhamos que usar; se o interruptor da
luz estava desgastado, deveríamos usá-lo assim mesmo; se a aranha fazia uma
teia, tínhamos que aproveitá-la. Precisaríamos trajar a realidade para construir
nossa ficção. “Não estamos fazendo teatro realista, nem hiper-realista, estamos
fazendo teatro no real” (lembro-me de ter dito aos atores, na ocasião), e essa
sentença mudou tudo.
Tínhamos esperado nalgum lugar que aquele recinto estivesse pronto para
nos receber? Ou considerava que o teatro precisaria admitir aquele ambiente? Do
ponto de vista da utilidade, a segunda dessas hipóteses era de longe a melhor, e
teria com frequência a oportunidade de empregá-la. Mas elas eram desagradáveis,
as duas. Direi, portanto, que nossos começos coincidiram, que aquele lugar foi feito
unicamente para minha criação, e que os ruídos que ainda não conhecia eram os
que ainda não se fizeram ouvir. E minha surpresa? Eu deveria esperá-los. Porque foi
na relação com aquele ambiente onde brotou a semente do meu aprendizado como
diretor teatral para aquele espaço cênico incomum, não na imposição de uma
cartilha, ali tão útil quanto um relógio sem pilhas.
Dessa constatação, o desenvolvimento da encenação foi sento construído
levando em consideração o nosso grau de intimidade com aquele lugar e suas
conjunturas. A iluminação que usamos foi a que existia na casa (três interruptores
16
modificar a sua atuação sobre o espaço cênico. Pois, diferente do que ocorre no
teatro de sala (onde o espaço geralmente é admitido como lugar de exposição para
os trabalhos produzidos numa sala “neutra” de ensaio), no teatro site-specific o
espaço tem um significado estrutural na concepção da encenação.
Seria possível, então, estabelecer procedimentos comuns aos encenadores
que atuam nesses espaços cênicos tão diversos? A criação do espetáculo site-
specific, tendo o espaço como propulsor da encenação, amplia o entendimento do
encenador sobre o seu ofício? Ou, ainda, quais seriam as características dos
encenadores e encenadoras forjadas pela estética site-specific?
Noutras palavras: a reconfiguração e contaminação metodológica da direção
teatral, a partir das demandas do site-specific, colocaria em perigo a hegemonia de
sua criação ou, pelo contrário, a redimensionaria? Como se estabelece a criação da
direção teatral diante das inevitáveis problematizações e negociações presentes em
processos dessa natureza?
São, precisamente, essas perguntas que tentarei responder ao longo desse
estudo, ao utilizar como método de pesquisa uma abordagem fenomenológica,
considerando a descrição das práticas de três diretores teatrais, da minha geração,
que trabalham sob os conceitos do teatro site-specific: Anderson Maurício (diretor da
Trupe Sinhá Zózima, fundada na cidade de São Paulo - SP); Diego Pinheiro (diretor
do coletivo cênico Teatro Base, instituído na cidade de Salvador - BA); e Thiago
Romero (diretor do grupo Teatro da Queda, organizado no Rio de Janeiro - RJ,
todavia, alocado em Salvador - BA).1
O intento aqui não é analisar os espetáculos do ponto de vista crítico,
tampouco a recepção dos trabalhos cênicos desenvolvidos pelos diretores, mas
reconhecer e problematizar estratégias utilizadas pelos criadores entrevistados, com
a finalidade de discutir de que modo tais questões podem colaborar com o
aprendizado sobre a direção teatral que se aventura no território do site-specific.
Para tal, elaboro uma descrição e análise da experiência de criação de dois
espetáculos dirigidos por Anderson Maurício, a saber: Cordel do amor sem fim e
Dentro é lugar longe; dos espetáculos Arbítrio e Oroboro, assinados por Diego
Pinheiro; e do espetáculo Rebola, encenado por Thiago Romero, que juntos, nos
1
A opção por esses criadores se dá em razão do tempo-espaço no qual estamos inseridos (incluindo
o sociopolítico e as estruturas que condicionam o fazer teatral no Brasil) e, também, por ter assistido
aos espetáculos mencionados neste trabalho.
19
ele não será mais do que uma triste lembrança, o pesadelo dos
encenadores2.
2
ANTOINE, loc. cit.
3
Disponível em: http://expositions.bnf.fr/rouge/grand/50.htm
25
[…] a arte do teatro não é nem jogo dos atores, nem a peça, a
encenação, nem a dança, ela é formada pelos elementos que a
compõem: pelos gestos, que é a alma da atuação; pelas palavras,
que são o corpo da peça; pelas linhas e cores que são a própria
existência do cenário; pelo ritmo, que é o espaço da dança (CRAIG,
[19--], p. 115).
expressiva, dinâmica e rítmica que deveria manter uma relação direta com as ações
dos atores, igualmente às concepções de Appia e Craig. Logo, em cena, nada
deveria figurar, mas funcionar como meio expressivo na construção de ritmos e
movimentos que dariam forma ao espetáculo.
Com tais proposições, Margot Berthold afirma que Meyerhold varreu dos
palcos os últimos vestígios do teatro burguês ao apresentar o seu método, em 1918,
na ocasião da estreia de Mistério Bufo, de Vladmier Maiakovski, tamanho reboliço
que o encenador causou durante na encenação:
O novo teatro não procura a variedade dos jogos de cena como o faz
sempre o teatro naturalista, onde a multiplicidade das evoluções dá
lugar a um caleidoscópio de atitudes. O novo teatro aspira dominar
as linhas, a composição dos grupos, os coloridos das roupas, e na
sua imobilidade, exprime mil vezes melhor o movimento do teatro
naturalista. Pois não é o deslocamento propriamente dito que cria o
movimento no teatro, mas a representação das cores e das linhas, e
a arte de cruzá-las e fazê-las vibrar (MEYERHOLD, 1912, p. 38).
mensagem desejada. Por essa razão, optou por colocar a cena no nível da
orquestra, aproximando, assim, atores e espectadores.
Propõe, então, uma abertura através da qual se instaura uma comunhão com
o fluxo de forças presentes, tanto para os atores quanto para os espectadores. A
cena, neste espaço revisto, teria por objetivo preencher a percepção dos
espectadores por todos os lados da sala, não somente num frente a frente a fim de
privilegiar a visão. Neste intuito, o encenador entende que o espaço cênico é o
veículo primordial para proporcionar tal expansão perceptiva:
4
ARTAUD, loc. cit.
36
Em último caso, o espaço cênico preconizado por Artaud não deveria ser uma
ilustração na qual atores e espectadores aceitariam, por convenção ilusionista,
acreditar ser real. Esse espaço deveria ser real na medida e nos limites que
proporcionasse aos agentes do espetáculo uma intensa troca de experiências
circunscritas àquele espaço.
5
ARTAUD, loc. cit.
37
Este ponto de vista espacial de Artaud constituiu uma das experiências mais
potentes dos encenadores vanguardistas, na medida em que serviu de ponte para a
metamorfose do espetáculo que o teatro passaria, a partir dos anos 60, com a
eclosão da performance art. Ainda que vários teóricos tenham reconhecido a
fragilidade prática das proposições do teatro da crueldade, é inegável a sua
genialidade, como reconhece Grotowski, ao declarar que: “Artaud era um
extraordinário visionário, mas os seus escritos tem escassos significados
metodológicos porque não são o produto de uma pesquisa prática de longa duração.
Eles são uma profecia surpreendente” (GROTOWSKI, 2007, p. 111).
38
dos rituais, a busca pela essência do ato expressivo e o encontro entre atores e
público), procurou eliminar, gradualmente, tudo que se mostrou supérfluo a essa
relação.
Defendendo, igualmente a Artaud, que é no encontro e na comunhão entre
atores e espectadores que está à verdadeira razão do teatro, Grotowski recusava
qualquer maquinaria, convenção ou artifícios cênicos, ao entender que o que
diferenciava o teatro das artes de reprodução de massa (TV e Cinema) era
exatamente “a intimidade do organismo vivo”, o instante compartilhado dos atores e
públicos em um ambiente preparado para acolher e potencializar esse encontro. Nas
suas palavras:
6
A trajetória deste encenador é dividida em pelo menos três fases: a primeira correspondendo aos
espetáculos feitos para o espectador (arte como apresentação); a segunda, denominada “teatro das
fontes”, na qual sua pesquisa buscava entender as fontes expressivas do trabalho do ator; e o
“teatro como veículo”, fase mais introspectiva, onde Grotowski está mais preocupado com a
sublimação espiritual dos intérpretes (COELHO, 2009).
45
nas artes se dá através das artes plásticas, e, por meio dos projetos cenográficos,
se aproxima da encenação para aprender sua linguagem, desenvolver-se nela e
perceber a urgente mudança estrutural que o teatro carecia. Nas suas palavras:
7
A sua trajetória artística é constituída de oito períodos: teatro ephemeric (1938); teatro clandestino
(ou teatro independente) (1942 – 1944); teatro autônomo (1956); teatro informal (1961); teatro zero
(1963); teatro happening (1965); teatro impossível (1973) e o teatro da morte de 1975 a 1990
(D’ABRONZO, 2008).
8
Disponível em: BRETON, Gaelle. Theaters. New york: Princeton Architectural Press, 1989.
48
9
(BRETON, 1989, p. 14).
49
Kantor mergulhou tão fundo nas suas proposições de espaço vivo que acabou
desaguando nos happenings, intervenções artísticas e performances que, dos anos
60 em diante, seriam os objetivos especulativos perseguidos no seu trabalho
artístico, ao se interessar com afinco ao instante efêmero do presente, pois nem o
passado, nem o futuro lhe interessavam.
Como nenhum outro encenador do seu tempo (certamente por ter tido
formação na escola diferente dos demais e ter se nutrido dos conceitos dos
principais artistas visuais das vanguardas europeias), Tadeusz Kantor ousou aplicar
no teatro as dinâmicas conceituais que animavam o pensamento desses artistas, ao
inserir a realidade (objetos, linguagens e convenções) no espaço cênico (tradição,
convenção, elitismo), almejando uma progressiva desmaterialização deste espaço.
Fato que viria a ser um dos pilares dos experimentos cênicos difundidos mundo
afora, com a difusão das artes performáticas.
Em outros termos, resume: “o teatro é um lugar onde as leis da arte se
encontram com a natureza acidental da vida, e disso resultam conflitos muito
importantes” (KANTOR, loc. cit.).
diferentes relações, inclusive, no próprio ato de ver o espetáculo (como ver e o que
ver), uma vez que todos os espectadores também se veem e assistem as reações
dos demais durante a encenação. Para Schechner:
distância). A proposta cenográfica do seu teatro, quando se faz necessário, deve ser
real, afirma Schechner, pois:
10
Ibidem, p.32.
11
Ibidem, p. 37.
55
práticos inerentes aos lugares observados como questão essencial da criação, que
problematizam, igualmente, a origem da encenação.
De tal modo, os procedimentos adotados pelos encenadores, a exemplo dos
criadores que tratamos nesse capítulo, asseguram o pensamento de que espaço
cênico só se concretiza quando é considerado na sua totalidade, através da relação
entre ambiente, ficção e ações cênicas. Igualmente, quando concebem os trabalhos
artísticos através das referências múltiplas que orbitam o ambiente da criação.
Tal qual a imagem captada do happening Mar Panorâmico criado por
Tadeusz Kantor em 1967 (figura18), que se compõe em perspectiva das ondas do
mar e dos banhistas (assumidos como espectadores), enquanto ele, como diretor,
maestro, maneja essa interação entre vida e arte.
12
Miwon Kwon é professora e chefe do departamento de história da arte na Universidade da
Califórnia (UCLA). Formada em arquitetura, mestre em fotografia, é doutora em história da
arquitetura. A pesquisa e os escritos de Kwon envolveram várias disciplinas, incluindo arte
58
Na imagem abaixo (figura 19), podemos observar a obra referida por Richard
Serra, instalada na praça federal em Manhattan, que se destaca, exatamente, por
sua interação como o ambiente e com os transeuntes que tentam atravessar a praça
e se deparam com o monumento, reorganizando a percepção do lugar.
Além das espacialidades em si, a autora ressalta que as manifestações
artísticas em site-specific tendem cada vez mais a tratar as preocupações estéticas
e históricas da arte como questões secundárias e passam a enfatizar seu
engajamento expandido com a cultura, favorecendo, desde modo, uma
descentralização do acesso às obras de arte, ao optar por locais fora dos confins
tradicionais da arte em termos físicos, intelectuais e econômicos.
contemporânea, arquitetura, arte pública e estudos urbanos. Ela é autora de One Place After
Another: Site-Specific Art and Locational Identity (MIT Press, 2002), que serve de referência para
inúmeras pesquisas sobre a arte site-specific.
59
2.1 GENEALOGIAS
Erika Suderburg (2000), que busca apontar uma genealogia da arte site-
specific, acredita que houve uma definitiva mudança no entendimento sobre o
espaço a partir do advento da Instalação, como meio para transformar o conceito de
escultura, que, até o fim do século XIX, era percebida como algo inerente à corpos
inertes no espaço, duradouros e figurativos.
No seu entendimento, essa alteração conceitual se deu, porque, na
Instalação, o objeto artístico é coletado, sintetizado, rearranjado, expandido e
reconfigurado das suas funções habituais, como observa a autora:
13
“To install is a process that must take place each time an exhibition is mounted; installation is the art
form that takes note of the perimeters of that space and reconfigures it. The ideological impossibility
of the neutrality of any “site contributes to the expansion ad application of installation, where
sculptural forms occupy and reconfigure not just institutional space but the space of objecthood as
well”.
61
Associado a isso, a autora esclarece que a percepção geral era de que essas
câmaras de curiosidades poderiam facilmente ser classificadas como monstruosas e
14
“Wunderkammern were composed of collections of items chosen not because of their historical
value as antiquities or their monetary worth but because the collectors found the objects pleasing
and demonstrative of the “wonders of the world”, whether natural, spiritual, or man-made”.
62
Outro exemplo dessas obras de folly é o Palácio Ideal (figura 22), construído
por Ferdinand Cheval (1879), que André Breton, ao escrever o seu manifesto
surrealista, o tomou por ícone, ao entender que essa obra expressava uma
“desordem dos sentidos”.
Além de notar os contornos e formas, esse palácio exige dos visitantes uma
interação com a obra, porque para ter uma percepção completa do trabalho,
é preciso circular por dentro das suas estruturas e perceber as texturas,
formas, relevos e relações desencadeadas da edificação pensadas pelo seu
criador. Ser passivo perante essa obra é perceber apenas a superfície.
Fonte: Benoit Prieur.
15
“Relegated to the ideologically questionable status of outsider or folk art, follies have no “use value”
except as sites of tourism and cannot be recuperated as “fine art.” Outsider, folks, primitive, and
visionary are all terms that ar subject of deep scrutiny and present a quandary for writing about work
designated as outside the modernist canon. […] follies are vernacular architectural sites divorced
from sanctioned art exhibition spaces and later rediscovered, as distinctions between “high” and
“law” art came to be seen (by artists of the 1960) as exclusionary obfuscations in need of
eradication”.
64
16
“The Palais ideal was an environment that required witnessing, exploration, and domestic
occupation, actions fundamentally in contradistinction to the contemplation of an object isolated in
neutral space. With the Palais ideal, “neutral space” could be quietly retired”.
65
17
“Clark forms a hand-held portable installation, a macrocosm of Cheval’s monumentality. Ar e pedra
incorporates the corporal as site, grafting the inanimate unto flesh and vice versa. Clark installs
themselves to her shape. Site is occupied and engendered through found objects, as it is reshaped
and animated through space and occupier of space”.
66
repensar o seu modo de trabalho, em função das ações que emergem do contato do
público com o objeto artístico naquele espaço, ocupado por ambos. E aconselha:
Esta prática de teatro urbano pode revelar o grande potencial que a cidade
tem em funcionar com os códigos da linguagem teatral e se configurar como um
exercício de ressignificação de espaços públicos depreendidos, fundamentalmente,
da prática de habitar esses espaços, desorganizá-los e configurá-los de maneira a
criar estados lúdicos, nos explica o autor.
Entendimento partilhado por Silvia Fernandes (2013), naquilo que ela
denominou Teatros do Real, expressão utilizada para identificar espetáculos e
intervenções artísticas que se apoiam em espaços da cidade, com forte carga
dramática, para desenvolver um discurso, partindo de uma rede de referências que
poderá potencializar a fruição, como sintetiza a autora:
18
“It is not just providing a model of the relationship of a non-space in scenic space, but in the context
of a transitive definition of space, the specificity of space itself (…) It is in such contexts that site-
specific art frequently works to trouble the oppositions between the site and the work. It is in this
troubling of oppositions, too, that visual art and architecture’s approaches to site realize or may be
read through the terms of performance.”
74
Logo, como entende Mike Person (2010), não se trata de questionar como as
camadas do espaço são configuradas, mas de que forma o evento cênico se move
através delas. Em todo caso, o espaço cênico da poética site-specific pode ser
entendido como o espaço e suas circunstâncias, uma vez que se torna impraticável
dissociar a origem, função, contexto e imaginário popular quando se ocupa um
espaço não-teatral.
Embora o termo site-specific (literalmente traduzindo) se constitua através de
duas palavras: site (espaço) e specific, derivada de specificity (especificidade), que
vinculam a linguagem teatral ao que há de específico nos espaços selecionados
para construir ali uma ficção, Fiona Wilkie (2004), ao se deter sobre o tema, revela
que alguns criadores reivindicam aquilo que há de único no espaço, mais do que as
especificidades, ao entender que, de certa forma, todo o trabalho teatral é, até certo
ponto, específico do local, pois foi feito para um conjunto particular de espaços,
planejados para um determinado momento, seja ao ar livre, em ambientes fechados
ou em espetáculo de salas de teatro, nos quais a dramaturgia e ensaios são feitos
especificamente com esse espaço em vista.
Assim sendo, recorre ao adjetivo "exclusivo" para destacar as características
únicas daquele espaço selecionado, sem o qual o trabalho artístico se esgota. Essa
particularidade, segundo a autora, em maior ou menor grau conforma todos os
trabalhos cênicos nesse gênero teatral e, por isso mesmo, indica algumas distinções
que dizem respeito apenas a essa forma artística, como a questão levantada pela
autora na sua pesquisa: sendo os espaços exclusivos, é possível sair em turnê com
os trabalhos site-specific? Fiona observa que há duas maneiras de lidar com esse
enigma:
19
“Some projects are completely site-specific. they could not take place anywere alse without losing a
string thread of meaning and connection; while other more flexible projects may work around a
certain sense of place, the spirit or concept at the heart of the project would work in several- but not
all- location”.
77
A realidade britânica, neste quesito, talvez não seja tão distante da brasileira.
Por isso, fica fácil entender que as demandas advindas das escolhas espaciais
podem condicionar o espetáculo a cumprir poucas apresentações e, mais que isso,
impossibilitar (em alguns casos) que novas temporadas possam vir a acontecer, pelo
número limitado de espectadores, ou seja, poucos pagantes. Padrões que são
recorrentes nas práticas site-specific.
Sendo assim, notamos que as encenações site-specific confiam suas
concepções, produções e recepção à complexa convivência material do espaço
(instalações, histórico e contexto) e à imaterialidade inerente à linguagem artística
(artificial, imagética, efêmera), que se sobrepõem e interpenetram-se a partir daquilo
que antecede a obra e aquilo que é a obra: o passado e o presente artificialmente
construído, mas com uma presença material do espaço que não consegue ser
apagada pelo trabalho artístico, contribuindo, assim, para uma narrativa passível de
múltiplas leituras e significados.
Justamente por essa razão, Mike Pearson (2010) defende que os espetáculos
realizados sob esses termos são inseparáveis de seus espaços, pois só conseguem
ser inteligíveis a partir daquele contexto no qual (ou para o qual) foram criados.
Consequentemente, qualquer possibilidade de um espaço neutro na
encenação site-specific torna-se uma incongruência abissal, uma vez que estas
proposições teatrais se valem da própria identidade do local para compor o
espetáculo, seja como especulação narrativa, seja como símbolo para alguma
20
“In practice this has been very difficult- impossible really as there simply is not enough money to
rework shows in relation to the specific site. There are very few promoters who can pay the cons of
creating work on that scale”.
79
questão que esteja sendo debatida, ou seja, ainda, como contraponto material para
o discurso da peça.
Portanto, é pouco provável que o espaço seja um quadro em branco, sobre o
qual os agentes do espetáculo irão operar e aplicar suas técnicas, pois, como bem
definiu Lehmann:
21
DOHERTY, 2004, p. 9 apud PEARSON, 2010, p. 17.
82
22
“Happening: forma de atividade que não usa texto ou programa prefixado [no máximo um roteiro
’modo de usar’] e que propõe aquilo que ora se chama de acontecimento [Georg BRECHT], ora
ação [BEUYS]” (PAVIS, 2007, p. 191).
87
Além desses, podemos citar, por exemplo, os trabalhos de Wladia Moura, que
encenou espetáculos em porões da cidade de Belém, PA (2000-2005); Inês
Marocco, que criou o espetáculo O Cortiço (2008) dentro do Museu do Rio Grande
do Sul; Fabiana Monsalú, encenadora de A Casa de Bernarda Alba (2007), realizada
dentro de um casarão histórico em Salvador (BA). Igualmente os trabalhos do Grupo
XIX (SP) de Teatro e o Grupo Erro (SC).
Diante destas perspectivas espaciais tão diversas, e tão presentes nas
práticas contemporâneas, vale destacar um questionamento pertinente quando nos
detemos sob as práticas que utilizam espaços diferentes das estruturas e
convenções do teatro de sala: O teatro em espaços alternativos é o mesmo que site-
specific?
Mais do que uma categorização, nos interessa perceber as composições sob
as quais as encenações se assentam e distinguir suas concepções, que podem
apontar para procedimentos e discursos cênicos completamente distintos, não
apenas do ponto de vista estético, mas também dos aspectos práticos e das
dinâmicas por trás das encenações.
De início, um paralelo interessante que podemos traçar para começar nossa
distinção entre o espaço alternativo e o site-specific parte do entendimento
alcançado por Michel de Certeau (1990), quando o filósofo traça uma diferenciação
importante entre o lugar e o espaço.
Para o autor, um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência, onde os elementos considerados se
encontram uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto
que os definem.
Já a noção de espaço se estabelece quando se leva em conta vetores de
direções, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é, de certo modo,
animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Noutras palavras:
“espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam é o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflitais
ou de proximidades contratuais” (CERTEAU, 1990, p. 20).
Prosseguindo sua explanação, Certeau faz uma analogia dos processos de
formação da linguagem para ilustrar os procedimentos que animam o espaço:
88
23
Anderson Maurício em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na
integra no apêndice A.
90
24
Entrevista concedida por MAURÍCIO, Anderson. Depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José
Jackson Silva. São Paulo, 2018. Via Skype. Filmagem (270min). A entrevista na íntegra encontra-
se transcrita no Apêndice A desta tese.
25
Ficha técnica: dramaturgia de Cláudia Barral, direção de Anderson Maurício, direção musical de
Roberta Forte, com Trupe Sinhá Zózima (Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Priscila
Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza). Disponível em: http://sinhazozima.com.br
92
trafegar pelas avenidas e vielas da grande cidade (tão enigmática quanto o “velho
chico” da ficção), num precário transporte que carrega vidas cansadas em corpos
abatidos pelo tecido da cidade.
Principiando este experimento cênico em torno da cultura popular nordestina,
como mote estético, e do ônibus como espaço cênico, a encenação de Cordel do
amor sem fim, da Trupe Sinhá Zózima, compõe um mosaico instigante diante da
tessitura urbana da cidade, que apresenta diariamente suas próprias mazelas,
reveladas, sobremaneira, quando o cidadão necessita deslocar-se por ela.
O processo de concepção do espetáculo e a criação dos personagens
passaram a ser desenhados, segundo o diretor, no instante em que o mesmo fez a
leitura de dois livros de Gaston Bachelard: A poética do espaço e A água e os
sonhos, sendo o primeiro o livro de cabeceira da Trupe.
Maurício ressalta que o entendimento acerca das questões levantadas pelo
filósofo, foi primordial para enxergar a potencialidade das imagens imbricadas na
obra dramatúrgica, que poderiam ser exploradas e materializadas na sua
concepção. E, em especial, para compor as personagens que, por estar tão
próximas às águas do Rio São Francisco, poderia, cada uma delas, trazer consigo
uma característica das águas elencadas por Bachelard.
O Rio e suas águas, além de servirem de mote da preparação do elenco,
passaram a ser o conceito-chave da encenação, ao codificar o ônibus como “casa-
barco” a velejar pelas avenidas e vielas (rio), levando a bordo os passageiros e
atores que, juntos, compartilhavam da experiência vivida pelas personagens.
Segundo o diretor, a etapa seguinte do processo foi fazer o levantamento das
cenas baseado nas dimensões do ônibus e nas possíveis interações que,
porventura, o espetáculo pudesse vir a ter com os passageiros. Contudo, todo o
processo de marcação das cenas e criação das personagens foi concebido fora do
ônibus, pois no entendimento do grupo, era necessário que o ônibus estivesse à
disposição integral da equipe para que a mesma pudesse ter maior controle sobre o
deslocamento do ônibus pela cidade (itinerário e velocidade).
Após seis meses de diversas negociações e consecutivas negativas
recebidas de empresas que trabalhavam com transporte de passageiros, o ônibus
foi obtido mediante uma permuta com uma companhia de ônibus da cidade de
Guarulhos, que precisava desenvolver algumas ações educativas sobre a
93
26
Id., 2018.
94
a “casa dos afetos” pretendida pelo coletivo cênico, como podemos verificar na
imagem abaixo.
27
Id., 2018.
28
Ibid., 2018.
96
29
Id., 2018.
30
Id., 2018.
98
aleatórios da cidade, poderiam intervir na ação cênica, fosse para comentar algum
ato da peça, ou mesmo para querer modificar a sua estrutura, intervindo sobre ela.
Fato que dificilmente aconteceria no espetáculo de sala, como observa Maurício:
31
Ibid., 2018.
99
sugestionado por ele, como Maurício pondera: “Fazer teatro no ônibus tem uma
profundidade uma perspicácia que a gente foi adquirindo com o tempo. No começo
foi bem difícil, a gente só foi descobrindo isso na própria experiência de lidar com o
espetáculo no movimento do ônibus” (informação verbal)32.
A proximidade física dos atores como o público demanda dos atuantes uma
constante atenção para as interferências e proposições do público, que
impactam diretamente do andamento da encenação quando, por exemplo,
tentam ajudar a personagem da trama a sair do ônibus. Fonte: Acervo da
Trupe.
32
Id., 2018.
100
Texto CENÁRIO
Ensaios LUZ Ônibus
Sala de Personagens SOM (espaço cênico)
ensaios
Concepção *ação cênica
*part. público
33
Ficha técnica: dramaturgia de Rudinei Borges, direção de Anderson Maurício, com Trupe Sinhá
Zózima (Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza).
Disponível em: http://sinhazozima.com.br
101
uma metáfora da vida como percurso. Existência desvelada como viagem que, com
o ônibus em movimento, potencializaria a ideia de jornada.
Entretanto, a organização do projeto teve que ser reformulada, por conta de
mudança de governo da cidade de São Paulo que inviabilizou essa proposta do
grupo, ao desautorizar a Trupe de continuar com a sua residência artística nas
imediações do terminal (que já durava anos), local onde o grupo pretendia
desenvolver e alocar a encenação, como estava acordado há meses.
Dessa imposição abrupta, o grupo teve que reorganizar sua estrutura, e, em
vez de desenvolver a criação partindo dos depoimentos e relações dos usuários com
o transporte público, voltou-se para si e passou a discutir propostas nas quais as
“vidas dos atores” fossem o objeto do escrutínio da Trupe para conceber a
dramaturgia do espetáculo e, posteriormente, cruzar com “a vida do ônibus” e
estabelecer a encenação nesta relação.
Para concretizar tal obra, foi proposto pelo diretor que a equipe se juntasse
em uma casa por 24 horas ininterruptas. Ocasião na qual os atores deveriam contar
fatos das suas vidas que tivessem relação com uma área particular da casa,
examinada do jardim ao porão, para criarem propostas de cenas formadas por três
eixos: os espaços da casa, os possíveis ofícios que poderiam ter relação direta com
o espaço selecionado, e pelas histórias pessoais de cada um dos atores. Maurício
comenta que:
34
Id., 2018.
102
Para mim é o espetáculo que mais gosto, por que ali eu consigo
entender essa potência do ônibus como diálogo com a cidade. A
gente vai buscar na cidade os espaços da casa, a cidade como casa,
então eu vou fazendo uma costura da casa interna do ser humano,
do porão interno, que são as vivências e histórias dos próprios
atores, relacionada com os espaços da cidade (informação verbal)35.
Neste espetáculo, o encenador destaca dois lugares que para ele são os mais
emblemáticos da ação cênica do ônibus como procedimento: o “quintal” e o “porão”
da casa.
O espaço-quintal deveria trazer consigo o frescor das brincadeiras infantis, da
correria, das travessuras e das mil aventuras que uma criança constrói quando tem
a oportunidade de ter ou estar em um quintal.
Já para o espaço-porão, em oposição ao quintal, seria o lugar de guardar
coisas sem utilidade imediata; lugar escuro, propício aos fungos, aos ratos, aranhas,
35
Id., 2018.
104
traças e outros bichos que acaso venham habitar neste local repleto de sombras,
aquém dos espaços ensolarados e frescos que os quintais sugerem.
Para materializar o espaço-quintal na cidade, o encenador expõe:
36
Ibid., 2018.
105
A simbologia desse espaço é muito forte, ela existe e está ali. Mas a
gente está ali para poder transformar esse lugar em potência poética.
Então o que eu acho que a gente fala, e que está presente em todos
os nossos trabalhos, é uma busca de entender os desdobramentos
das imagens desse espaço, é um olhar para si, um olhar para o
humano, que é ele, que somos nós, de uma forma poética. Dessa
imagem que de algum jeito penetra e ecoam o outro (informação
verbal)38.
37
Id., 2018.
38
Id., 2018.
106
dramaturgia
cenas
mote dramatúrgico Ônibus cenografias
personagens
Sala de ações cênicas
ensaios cidade espectadores
concepção
Fonte: Elaborado pelo autor.
No teatro feito no ônibus não existe o espaço nu, eu não tenho essa
limpeza, esse quadro em branco, eu não consigo ter isso no ônibus.
Estou sempre em um lugar com muita informação. E talvez essa seja
uma das grandes dificuldades tanto da direção quando da atuação,
para dramaturgia... já tem muita coisa acontecendo ali. Só o público
dentro do espaço cênico já modifica muita coisa na criação das
109
Diante deste horizonte, o encenador atina que não seria possível conceber
seu espaço cênico sob os mesmos parâmetros do espetáculo de sala, porque a
concretude do espaço se apresentava como uma realidade imperativa, na qual ele,
como encenador, teve que se deter, para, em diálogo com ela, criar suas próprias
convenções e procedimentos técnicos ao utilizar o ônibus como veículo de uma
poética cênica.
Entretanto, cabe uma pergunta: por onde a Trupe principiou o seu processo
de apropriação do ônibus como espaço cênico? De forma empírica, nos diz seu
diretor, ao lançar os atores e atrizes no desafio de desenvolverem alguns
experimentos cênicos partindo de poemas, pequenos textos, músicas, recortes de
cenas conhecidas por eles para serem apresentadas no ônibus como um
experimento inaugural, sem nenhum ensaio prévio naquele espaço, experiência que
lhes forneceria as reais condições espaciais que até então desconheciam.
Neste teste inicial, foi constatado que alguns princípios apreendidos no curso
de teatro não faziam sentido naquela estrutura, sobretudo porque o ônibus estava
em constante movimento e demandava uma espacialização dos corpos dos atores
distinto do espaço inerte do teatro.
Perceberam, ainda, que a variação da velocidade do veículo poderia auxiliar
na cena para potencializar alguma sensação, e até poderia atrapalhar pelo mesmo
motivo. E que, por essa razão, a participação do motorista seria fundamental nessa
proposta, por ser ele o condutor do veículo que marcaria o deslocamento do espaço
cênico-ônibus pela cidade.
Outro ponto de entendimento foi sobre a acústica do espaço e o jogo de
distâncias entre os atores, que careciam de extensão para preencher todo o ônibus.
Logo, as cenas de proximidade teriam que ser expandidas.
Igualmente à presença física dos passageiros, que foi identificada como um
atributo muito particular, pois eles não poderiam ser simplesmente ignorados, como
acontece preponderantemente na convenção do espetáculo de sala, onde o
espectador é solicitado e notado poucas vezes ou apenas no final da apresentação.
39
Id., 2018.
110
sonorização e iluminação, que tiveram que ser reeditados ou adaptados para aquele
contexto, visto que, inicialmente, aparecem para intensificar os códigos da
linguagem ao serem embutidos no espaço. Entretanto, foram sendo minados,
gradualmente, quando o encenador passou a perceber que os próprios
equipamentos do ônibus supriam certas necessidades técnicas de ambientação,
iluminação e sonorização.
O segundo destaque são os elementos cenográficos (cortinas, tapetes, forro
para os assentos, etc.), que vestem o ônibus por dentro pretendendo deslocar a
percepção dos passageiros e, consequentemente, convidá-los a uma viagem pelo
caminho da fábula.
Porém, lembremos, não são esses disfarces visuais que determinam a
encenação como site-specific, mas suas exigências técnicas e materiais fazem parte
do escopo de trabalho do encenador nesta poética (caso perceba que precisa
estetizá-lo), ao ter que equipar o espaço de modo a solucionar as demandas
imagéticas alcançadas por meio de cenários, iluminação e sonorização que fazem
parte da própria linguagem teatral, já que seus dispositivos não são dados a priori no
espaço selecionado para uma encenação site-specific, diferentemente do que
acontece no teatro de espetáculo de sala. Necessitam, portanto, ser pensados e
reestruturados pelo diretor e produção.
Além disso, com o amadurecimento da proposta e a respectiva fricção com o
contexto (aí sim característica do teatro site-specific) os experimentos aqui
assinalados passaram a ser impregnados pela realidade do lugar em vários
momentos da encenação, quando, por exemplo, as lâmpadas do ônibus apagavam
e as luzes da cidade adentravam o espaço cênico; quando os sons da rua invadiam
a cena; quando era necessário calar as palavras para deixar o próprio espaço
articular as expressões próprias de sua linguagem, o real.
Ainda que esse espaço cênico tenha sua própria forma de constituição, coube
ao diretor observar sob quais estruturas o espaço-ônibus estava assentado, para
fazer dele um agente da teatralidade, não apenas uma plataforma incomum de
apresentação.
Essa consciência pôde ser observada em várias passagens no trabalho de
Anderson Maurício, que consistiu em trazer o próprio espaço à luz da encenação: no
momento que o ônibus para e faz todos esperarem o imponderável (no Cordel do
112
40
Id., 2018.
115
41
“Site-specific performance is the latest occupation of a location where other occupation are still
apparent and congnitively active. it is conceived for, and conditioned by, the particulars of such
spaces: it then recontextualises them. it is inseparable from its site, the only context within which it is
intelligible”.
116
4 AS REMINISCÊNCIAS DO ESPAÇO
42
Thiago Romero em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na integra
no apêndice C.
120
O Beco dos Artistas é uma ruela cuja frente dá para a avenida principal do
bairro Garcia (a Av. Leovigildo Figueiras) e o fundo leva a uma comunidade de
moradores, em sua maioria evangélicos. Por possuir certa invisibilidade, o Beco dos
Artistas possui quatro bares que ao longo do tempo foram trocando de donos e de
nomes, enquanto iam escrevendo a história daquele espaço.
A iniciativa pioneira deu-se em 1978, quando o espaço recebeu o primeiro
bar, o La Bohême, administrado pelo francês, erradicado na Bahia, Jacques Frelicot.
Inicialmente, o Beco era frequentado pela classe artística e intelectual de Salvador,
que por se localizar próximo aos principais teatros da cidade e a Escola de Teatro e
121
Como proposta cênica, a criação ocupou este bar (que, ficcionalizado, passou
a ser denominado Bar Xampoo), onde os frequentadores eram assumidos como
espectadores, quando, em um dado momento da noite, seriam interpelados pela
ficção, ao serem impactados por um rompante intempestivo de um transformista
(ator do espetáculo) que, de súbito, decide fechar o bar, alegando estar falido e que
aquela noite o bar não poderia continuar com as atividades.
Entretanto, tal ação encontra resistência das drag queens mais novas, que
juntas, decidem resistir à força do Capital estrutural, e revitalizar aquele espaço e ali
permanecer.
A proposta da encenação se fundamentou, então, em integrar as atividades
funcionais do ambiente com a linguagem teatral, objetivando rememorar e vivenciar
o lugar, tomando do espaço real a condição de espaço cênico (destituído de
artifícios convencionais), com a finalidade de debater os acessos e permanência aos
espaços públicos pelas pessoas gays.
43
Ficha técnica: Texto: Daniel Arcades; Direção: Thiago Romero; Direção Musical: Jarbas Bittencourt;
Coreografia: Edeise Gomes e Elivan Nascimento; Realização: Teatro da Queda;
Produção: Kalik Produções Artísticas; Elenco: Hamilton Lima, Gustavo Nery, Fernando Ishiruji, Victor
Corujeira, Genário Neto, Thiago Almasy, Rodrigo Villa, Diogo Teixeira, Caíque Copque e Sulivã
Bispo.
123
Podemos notar, nitidamente, que o ambiente externo conta com uma textura
carregada, um tanto barroca, de onde despontam algumas oposições: prédios e
casas; claro e escuro; homens e não-homens travestidos; ordem e desordem que,
em síntese, pode ser bem representada pelo emaranhado de fios que saem dos
postes e borram a paisagem.
Já o ambiente interno (figura 35), igualmente deteriorado, apresenta um
espaço precário para exibição de performances, com divisão entre a área de
atuação e a área do público, que se acomodava em mesas espalhadas pelo local.
Embora a olhos nus, os olhos do cotidiano, observemos que toda essa
ambientação (interna e externa) faça parte da normalidade do espaço, visto que são
ambientes urbanos comuns a qualquer lugar boêmio, foi justamente dessa
convenção de normalidade/naturalidade que o diretor se valeu e se interessou para
desenvolver o argumento, o conceito e as espacialidades do seu espetáculo, já que
o que lhe interessava naquele espaço era, justamente, a concretude material e as
narrativas vividas possíveis de serem resgatadas e assimiladas pela linguagem
teatral.
44
Entrevista concedida por ROMERO, Thiago. Depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José Jackson
Silva. Salvador, 2018. Filmagem (120min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Apêndice C desta tese.
128
45
Id., 2018.
129
Estou no tempo real, num espaço real, construindo uma ficção que
tem que ter tons fortíssimos daquela realidade. Por mais que eu
esteja trabalhando com uma grande fábula, eu vou entender sempre
a realidade daqueles espaços, a história que aquele espaço tem. É
importante dizer isso, no Rebola eu não fui arbitrário, tinham muitas
vozes silenciadas e muitos lugares que eu precisava entender. [...] o
diretor tem que entender que está no espaço real, que está imbuído
de memórias, e que essas memórias não podem ser apagadas por
ele, pode, talvez, ser manipulada ou então ficcionalizada por uma
outra memória (informação verbal)46.
46
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
133
Por outro lado, é necessário prestar atenção ao eco dessa estrutura, “porque
por mais estimulante, encantador, nostálgico e atraente que um espaço possa ser,
não será bom se sua arquitetura trabalhar contra a produção planejada: pois, esses
problemas não desaparecerão” (HOWARD, 2015, p. 46).
Por ser uma organização de elementos, o espetáculo estará utilizando
artisticamente dos elementos do real como instrumento para a invenção de um novo
ordenamento do espaço, apontando, desta feita, para um paradoxo processual: o
espaço real como mote de criação muitas vezes precisa ser estetizado para dar
subsidio a ficção e passar a ser ambiente da peça, que para existir na linguagem
teatral, deve preservar as características do real daquele espaço.
Para André Carreira, o acontecimento teatral nesses moldes testa os limites
de um espaço habitado por convenções que não são as do teatro, e que estão a
serviço da funcionalidade e do jogo das ficções expandidas. Nesse contexto, diz o
autor: “o teatro que invade a cidade é uma presença inusitada; por isso, sempre
propõe novas formas de diálogos que podem deformar as práticas de uso do
espaço” (CARREIRA, 2017, p. 22).
Assentindo com este entendimento, Thiago Romero nos diz que as
dimensões reais do lugar selecionado como espaço cênico nas suas criações
podem, muitas vezes, se impor à ficção e ao trabalho de diretor:
4.7 EQUIPAGEM
Além de perceber o espaço de maneira global, que por si irá influenciar nos
arranjos dramatúrgicos, convenções e concepção da encenação (bem como na
atuação e recepção), o diretor chama nossa atenção para as demandas
operacionais desse espaço-motor quando o teatro o ocupa, visto que os
47
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
135
equipamentos técnicos de que a linguagem teatral faz uso para se constituir como
tal, nem sempre adotarão os procedimentos, equipamentos e práticas costumeiras
utilizadas no teatro de espetáculo de sala.
Nas encenações site-specific, as demandas técnicas tentarão preservar as
características singulares do espaço, e partindo delas, descobrirão de que modo sua
estrutura poderá ser organizada para suprir as demandas de luz e som, por
exemplo, sem ponto de fuga para a visão geral da encenação naquele lugar,
preservando a singularidade de cada elemento do espaço, na construção do todo
artístico.
Neste caso, o modo de utilizar os equipamentos teatrais para produzir a ficção
muda de direcionamento, considerando, segundo o diretor, a possibilidade dos
equipamentos do próprio espaço serem ressignificados para compor e produzir a
ficção e os fins estéticos sem camuflagem. Por exemplo: o iluminador que fez a luz
do Rebola não podia fazer uma luz espetacular instalando refletores ao redor do
espaço, teve que lidar com os equipamentos próprios daquele espaço que
pudessem suprir tais necessidades cênicas, partido das especificidades materiais
próprias que aquele espaço oferecia, nos explica Thiago Romero.
Esse entendimento é compartilhado por Guilherme Bonfanti, ao tratar da
concepção de luz do espetáculo O Livro de Jó, do coletivo Teatro da Vertigem, ao
apontar que:
maior ou menor que a sala de apresentação; pode-se, ainda, montar o projeto de luz
e verificar o funcionamento do som. Todos os equipamentos já estão dados.
Entretanto, quando se vai para o site-specific, esses arranjos técnicos passam
a ser uma demanda da direção, já que todos os aparelhamentos têm que ser
dispostos em diálogo com a realidade do espaço ocupado pelo teatro, como observa
o diretor na entrevista realizada para essa pesquisa:
Quando você vai para outro espaço, tem que repensar toda a relação
do teatro com o espaço e reconfigurar todos os equipamentos
teatrais em função e diálogo com o espaço. Talvez eu não pense
muito no espaço quando eu estou dentro do teatro. Por outro lado,
nos espaços que eu escolhi, quando saí da caixa cênica, sem todos
aqueles equipamentos, notei que esse novo espaço tinha que ser o
primeiro lugar com o qual eu precisava ter intimidade para descobrir
como instalar o teatro ali48.
48
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
137
Romero compreende que, assim como ele teve que habitar o espaço para
perceber e assimilar as particularidades inerentes àquele lugar, o espectador
também deve ser tragado pelas mesmas referências e imaginários. Para ele, se a
obra é uma coisa no espaço teatral e fora dele é outra coisa, com o espectador vai
ser a mesma coisa. Ele vai ser atravessado por aquele espaço, mesmo que o diretor
não pense nisso. “Quando falo em espaço, não falo apenas no espaço de dentro,
falo do espaço como um todo”, afirma Romero, completando que é inevitável não
perceber as diversas camadas e imaginários que compõem seu espaço cênico.
Esta observação do diretor nos remete aos conceitos de Grotowski e sua
compreensão acerca da relação entre o diretor teatral e o espectador, que é mais
íntima do que se possa imaginar à primeira vista, uma vez que, no seu
entendimento, o diretor teatral é, antes de tudo, um espectador por profissão, aquele
que olha, deixa-se afetar pelos agentes criativos, e, em seguida, organiza toda a
estrutura para que outros espectadores possam colher as impressões e sensações
propostas por aquela equipe, capitaneada pelos atores. Nas palavras de Grotowski:
O diretor é alguém que ensina aos outros algo que ele mesmo não
sabe fazer. Mas, se souber de fato, poderá tornar-se criativo: Eu não
sei fazer isso, sou, no entanto, um espectador. (...) Um dos
problemas cruciais da profissão de espectador, ou seja, do diretor
que olha, é saber dirigir a sua atenção e também a dos outros
espectadores que irão chegar (GROTOWSKI, 1984, p. 11).
divulgação, qual o apelo que vai ter, como o público vai chegar ao
espaço49.
49
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
141
Diante desta perspectiva, a autora destaca que grande parte dos criadores
desse gênero teatral assinala para uma sensação de esvaziamento, quando as
peças são adaptadas para lugares similares ao original. Contudo, quando podem ser
deslocados, possibilitam que o espetáculo possa circular por espaços afins
(adaptados), desde que obedeça a uma lógica conceitual que anima a encenação.
Na prática, isso significa que a concepção do espetáculo esteja a par dos
atravessamentos e interconexões possíveis.
Na vivência do espetáculo Rebola, Thiago Romero nos revela que, a convite
de festivais e insistência da equipe, o espetáculo foi adaptado para as configurações
da sala de espetáculos, fator que modificou completamente a estrutura, dinâmica e
relações da peça com o espaço, e a sensação de esvaziamento conceitual da obra
tornou-se evidente para ele, ao perceber que a proposta se dissolveu diante da
ausência daquilo que o concebeu, o espaço.
Nas suas palavras, Thiago completa: “Perde tudo, perde o espaço, acaba
com a conexão com a realidade, passa a ser apenas teatro dentro da convenção do
teatro convencional, onde cada atuante tem o seu espaço preestabelecido”
(informação verbal)50. Afirma ainda que se perde a experiência de habitar o
ambiente que gerou o trabalho.
50
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
142
51
Id., 2018.
143
Por outro lado, quando o criador entende que aquele espaço propicia uma
abertura para que novos significantes sejam descobertos e revelados na encenação,
passa a considerá-lo como preponderante ao jogo cênico pretendido.
Consequentemente, Romero entende que o espaço é promotor de mudanças
importantes no processo de criação do espetáculo e no trabalho operacional do
diretor, que conduz a experiência artística naquele ambiente aquém das convenções
teatrais hegemônicas:
Como eu optei por um espaço fora dos padrões das salas teatrais, a
primeira parte do meu trabalho consiste em entender o espaço (ouvir,
habitar, me relacionar). Então, eu não estava preocupado com a
dramaturgia, não estava preocupado com o personagem, queria que
o ator vivesse aquele lugar. Aí você faz outro tipo de processo, no
sentido de habitar e adaptar a linguagem a tal espaço. Quando você
trabalha para a caixa cênica, ela tem outra mecânica, de repente
você começa pelo texto, e por não ter o espaço cênico, como é de
praxe, você risca uma marca no chão da sala de ensaio. Aqui, não
acontece isso, porque eu tenho o espaço cênico desde o início do
processo e posso criar a partir dele (informação verbal)52.
52
Id., 2018.
144
Concepção
Cenografia
BECO DOS ARTISTAS Dramaturgia BAR
Luz/som
Ações cênicas
quando você opta por fazer um espetáculo fora da sala, é outro modo
de estudo, por mais que sua poética, estética, filosofia, posição
política continue a mesma, você tem um outro atuante que é o
espaço e a memória daquele espaço. São realidades que
possivelmente irão condicionar o seu trabalho criativo, como
aconteceu comigo na criação do Rebola (informação verbal)53.
53
Id., 2018.
146
Diego Pinheiro é uma artista da cidade de Salvador que ingressou nas artes
muito cedo, inicialmente pela escrita, quando ainda nos primeiros anos escolar
escrevia pequenas narrativas dramáticas autobiográficas; mais tarde teve contato
com técnicas das artes plásticas e na adolescência enveredou no caminho da
música. Porém, ao participar de uma oficina de teatro, percebeu que poderia juntar
todas as artes e compor trabalhos artísticos multidisciplinares. E por essa razão,
ingressou e se graduou no curso de artes cênicas da Universidade Federal da
Bahia, não sem antes compreender e se insurgir contra as convenções da caixa
cênica.
Seu primeiro gesto como artista da cena foi compor um espetáculo com o
coletivo Teatro Base, do qual foi fundador e diretor artístico. Nesta empreitada,
desejava investigar outras potencialidades artísticas para além das dramaturgias
54
Diego Pinheiro em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na integra
no apêndice B.
148
55
Ficha técnica: Dramaturgia: Barbara Pessoa; Encenação: Diego Pinheiro; Direção de Produção:
Graça Meurray; Produção: Fábio Borba e Larissa Raton; Direção Musical: Thales Branche; Figurino:
Liz Novaes; Desenho de Luz: Marcos Fernandes; Direção Audiovisual: Matheus Vianna; Elenco: Alex
Barreto, Laís Machado, Laura Sarpa, Luíza Muricy, Naia Pratta e Yuri Tripodi.
56
Ficha técnica: Direção: Diego Pinheiro; Elenco: Diego Alcântara, Laís Machado, Brisa Morena, Lara
Duarte, Naia Pratta.
149
Vemos a contraposição do espaço interior e exterior da casa utilizada como espaço cênico.
Lugar escolhido pela sua localização e arquitetura, não por padrões estéticos ou funções
teatrais, neste espaço os espectadores são confrontados com o tempo transcorrido na
estrutura da arquitetura que condiciona os personagens e a fruição. Fonte: Izabella
Valverde.
Nestes espetáculo o espaço cênico passa a fazer parte da ações cênicas da peça no
instante em que os atores se relacionam com o tempo impresso nas paredes
carcomidas, portas com dobradiças enferrujadas e assoalho solto que emitem sons, e
na peça, passam a se comunicar com os personagens. Fonte: Izabella Valverde.
Os espaços compartilhados entre atores e público tem divisão apenas dentro da estrutura dramática
da peça, visto que a organização espacial da encenação deixa em aberto onde o público deve se
localizar, cabendo ao espectador a escolher seu espaço. Fonte: João Pedro Matos.
Essa dualidade pode ser observada, ainda, na imagem acima (figura 40), na
qual vemos uma atriz em cena, isolada dentro de um cubículo de vidro, que na
verdade é a varanda externa da casa, com o público no interior a observar e se
relacionar com a atriz à distância, enquanto a atuante expõe a inconformidade de
não poder gerar filhos, nem de formar uma família aos padrões biológicos e
socialmente hegemônicos na nossa sociedade, culminando, assim, com a renúncia
total de habitar a casa.
A proposta ambiental desta encenação está, do mesmo modo, fundamentada
no estranhamento das relações formais praticadas em casa, que, culturalmente, é
153
Quando uma área do espaço é reservada apenas para os atores, esse espaço será
selecionado para potencializar os intentos da direção, que por meio da relação
estabelecida entre os atores e o espaço, poderá construir narrativas e dinâmicas
importantes para o conjunto da encenação. Fonte: João Pedro Matos.
5.5 MAPEAMENTO
Nesta acepção, admite que a imersão solitária inicial ajuda o diretor como a
bússola de um viajante que intercederá no itinerário da viagem, delimitando o norte e
as trajetórias, sem, contudo, levar em conta os encontros e “intercessores” da
trajetória, que serão decisivos para fabricar o sentido da viagem (no nosso
enquadramento, os contextos do espaço e a equipe de criação, que assumirão a
constituição da obra artística, bem como a inclusão do público).
Ainda que Diego Pinheiro admita haver semelhanças na função do diretor nos
procedimentos criativos mirando o edifício teatral e no site-specific, ressalta que na
segunda classificação, diferentemente dos parâmetros tradicionais, o início do
trabalho da direção ocorre sob o objetivo de mapear as zonas que poderão ser
exploradas pelos outros criadores durante a investigação que ocorrerá em seguida.
57
Entrevista concedida por PINHEIRO, Diego. Depoimento [mai. 2018]. Entrevistador: José Jackson
Silva. Salvador, 2018. Filmagem (120 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Apêndice B desta tese.
157
Ações
cênicas
CASA CONCEPÇÃO CASA
cenografia dramaturgia
Luz/som
Mas, reitera que essa “cenografia viva” está contida dentro de um ambiente
composto por estruturas complexas (nem sempre visíveis, nem reguláveis), que
incidirá no andamento da criação. Esta, por sua vez, para adequar-se à linguagem
teatral, pode receber uma instalação cenográfica a fim de sanar algumas demandas
estéticas.
Em função disso, defende que o lugar escolhido seja apontado como
arquitetura cênica (estrutura que faz parte de um contexto), abrangência que
expande o significado da cenografia onde o teatro site-specific se conforma. Por
outro lado, além de tornar-se um atuante essencial no trabalho da direção teatral, o
espaço configura-se como um elemento autônomo no espetáculo.
Tal percepção, de acordo com o diretor, se dá quando o criador se detém
sobre as especificidades de cada lugar, pois, não sendo o mesmo espaço de criação
para várias peças (como ocorre no espetáculo de sala), a direção tem que estar
atenta aos atravessamentos únicos de cada lugar não-teatral selecionado para a
encenação, uma vez que, ao sair da caixa, consciente ou não, a direção opta por
ampliar as potencialidades e ressonâncias do espaço que serão facilmente
percebidas pelo espectador, quando usadas ou negligenciadas.
Em síntese: “tudo aquilo que configura o espaço tem que falar alguma coisa,
tem que agenciar, tem que mover alguma coisa na encenação”, afirma Pinheiro, em
sintonia com o pensamento de Dusan Szabo (2001), que defende as ações cênicas
dos elementos cenográficos como fundamentais para a constituição da encenação
contemporânea.
Numa atitude ainda mais enfática, Diego traça um paralelo entre as
dificuldades do teatro de sala e o site-specific, considerando que o espaço
convencional não provoca a direção teatral tanto quanto os outros espaços não-
teatrais, pois a caixa cênica, por sua própria natureza, possibilita ao diretor antever
não somente as convenções do espaço e seus instrumentos, mas, também,
possíveis problemas passíveis de acontecer no lugar onde vai ocorrer o evento
cênico.
Diferente do teatro site-specific, no qual a direção pode se deparar com
expressividades, deslocamentos, equipamentos e problemas desconhecidos.
Em concordância, Peter Brook defende que as experiências teatrais mais
vitais acontecem fora dos lugares oficialmente construídos e usados para este fim.
159
tem que ser um espaço que converse com o que você está
propondo. Em Arbítrio, aquele Casarão dos anos 30 conversava com
as referências pessoais que eu tinha, era a casa de minha bisavó.
Ele correspondia a algumas necessidades minhas, não apenas
motivações pessoais, mas, também, das minhas motivações
estéticas. Igualmente ao espaço de Oroboro, onde o ambiente
ampliava as possibilidades de câmera que eu desejava, pois, como
eram vários solos, cada sala compartilhada comportava um solo,
como uma espécie de baú pessoal de cada intérprete (informação
verbal)58.
58
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
160
59
Id., 2018.
161
Claro que os estudos tradicionais vão dizer que você precisa do ator,
do público e do espaço, eu só tirei o público e botei som. Mas o
espaço é muito preponderante nesse lugar, porque, por exemplo, eu
tendo o espaço, isso é bom para o performer. Eu tendo um espaço e
performer, isso é bom para o som. Se eu tenho só esses três
elementos muito coesos, o resto é firula estética (informação
verbal)60.
60
Id., 2018.
61
Ibid., 2018.
162
62
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
164
63
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
166
Vejamos, por exemplo, uma adaptação que realizei em 2011, quando tive que
realocar a encenação de Dois Perdidos Numa Noite Suja (originalmente concebida
em uma casa na favela do Calabar, na cidade de Salvador) para uma casa na
cidade de Évora, em Portugal, uma cidade interiorana do continente europeu, que,
talvez, tivesse pouca ligação com o que estávamos tentando discutir na peça.
Após aceitarmos o convite, o conflito espacial se instalou: como adaptar uma
encenação criada para um ambiente tão peculiar em um espaço e contexto tão
distante do original?
Ponderando o contexto europeu, nos demos conta que, numa macroescala, o
universo dos personagens – que migram do interior para a capital a fim de encontrar
um futuro próspero economicamente – era similar à realidade vivida pelos refugiados
do oriente médio (e africanos) que a cada dia emigram dos seus países rumo a
Europa, evadidos das guerras e fome.
Diante desse discernimento, vislumbramos que o espaço onde os
personagens poderiam viver nos países europeus, poderia, facilmente, ser uma
garagem de carros em uma casa de classe média, alocação que provocaria uma
reflexão sobre a exploração econômica e humana do capital, o grande conceito da
peça. Consideramos, portanto, o percurso da adaptação da seguinte maneira:
nunca circulei com Arbítrio, nunca circulei com Oroboro. Inclusive, fui
chamado por Arbítrio para apresentar no Rio de Janeiro, mas quando
viram as especificidades não quiseram ter o trabalho de achar um
lugar parecido. A mesma coisa com Oroboro. E Quaseilhas é um dos
maiores problemas para circular, porque temos que levar a casa.
Alguns curadores de festivais se interessaram em levar, mas aí
quando veem a estrutura (informação verbal)64.
64
Id., 2018.
168
65
Id., 2018.
169
Da crise à consciência processual que o espaço lhe desperta, este diretor nos
aponta seus caminhos e motivos para desenvolver um teatro site-specific, que
perpassam, necessariamente, pelos agenciamentos que serão concebidos e
amalgamados ao longo do processo de criação, em consonância com todos os
artistas envolvidos no projeto de encenação, para juntos compreenderem as dobras
e a abrangência sinestésica do espaço que dará forma a uma obra site-specific.
Nesse ponto de vista, a obra teatral concebida sob tais pressupostos é uma
experiência artística que compromete o trabalho da direção teatral numa expansão
extrateatral, não somente por causa do espaço de atuação, experimentação, fruição
e veiculação aquém das convenções largamente praticadas no teatro de sala, mas,
sobretudo, pela consciência acerca da atuação das camadas e circunstâncias desse
ambiente, que operam profundamente, antes, durante e após a execução do projeto
cênico.
Consequentemente, o espaço no teatro site-specific funciona como um texto
continuamente em processo de ser escrito e lido, originando-se da própria tentativa
do encenador de estabelecer um lugar para encenação ao criar uma estrutura que
estará permanentemente sujeita aos processos de clivagem, adiamento e
indeterminação, sob os quais os trabalhos cênicos são constituídos.
66
Id., 2018.
170
6. DA DIREÇÃO NO SITE-SPECIFIC
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
APPIA, Adolphe. A obra de arte viva. Tradução: Redondo Júnior. Lisboa: Editora
Arcadia, 1921.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Tradução: Fiama Pais Brandão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
BURRIS MEYER, Harold; COLE, Edward Cyrus. Theatres and auditoriums. New
York: Reinhold Pub. Corp., 1964.
CARREIRA, André. Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 1980. São Paulo:
Editora Hucitec, 2007.
CASSI RAMELLI, Antonio. Edifici Per Gli Spettacoli: teatri, teatri di massa, cinema,
auditori, radio e cinecentri. Milano: Antonio Vallardi Editore, 1956.
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas dos museus. São Paulo: Martins fontes, 2005.
186
FRIED, Michael. Absortion and Theatricality: paintinhing and beholder in the age
Diderot. Chicago: University of Chicago press, 1988.
FÉRAL, Josette. Teatro, teoria y prática: más Allá de lás fronteras. Buenos Aires:
Galerna, 2004.
GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (coord.)
Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Editora
Perspectiva/ Edições SESC-SP, 2006.
Howard, Pamela. O que é cenografia. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: Edições
SESC, 2015.
KAPROW, Allan. How to make a happening. New York: Something Else Press/
Mass Art, 1966.
KAYE, Nick. Site-Specific Art: performance, place and documentation. London and
New York: Routledge, 2006.
KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity.
London: The MIT Press, 2002.
MCLUCAS, Clifford. The host, the ghost and the witness. Some approaches to site
end the theater works of Brith Got 1989-1999. London: Granta, 1998.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança - teatro,
cinema. Tradução: Sérgio Sávia Coelho. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
188
PISCATOR, Erwin. Teatro político. Tradução: Aldo Della Nina. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1968.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução e coordenação: José Simões. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
190
AM: Primeiro vou começar dizendo que ninguém nunca pesquisou a trupe nem a
nível mestrado nem a nível doutorado. Acho que porque o nosso grupo sofreu uma
rejeição durante muito tempo. Eu digo isso pelo lado dos críticos e da classe teatral.
Por outro lado, o público sempre nos acolheu, nunca tivemos problema de público. E
o próprio trabalho abriu muitas portas pra gente, só o Cordel do Amor Sem Fim, a
gente tem mais de 600 apresentações. E até hoje a gente apresenta. Bom...vou
começar contando um pouco sobre a história da trupe, que funde com a minha
própria história e que talvez, também, você entenda as próprias dificuldade que a
gente foi tendo na trupe nesse começo. O teatro faz com que a gente se entenda
como ser humano no mundo. E ele vai apresentando isso pra gente aos poucos. Eu
moro num bairro periférico e passei muito tempo para me entender como parte
desse lugar. Com 15 anos de idade eu estava em casa e apareceu uma chamada do
Faustão de um concurso. Chama concurso garoto corpo dourado, que era um teste
para participar na novela corpo dourado. E eu fui fazer esse teste. E aí cheguei no
local da inscrição e a atendente me perguntou se eu tinha DRT, falei, mas o que é
isso? Ela disse que também não sabia bem o que era, mas que eu deveria ter. Ai
192
perguntei onde eu conseguia esse DRT. Ela falou, acho que num negocio de cultura.
Dai lembrei que no caminho de casa havia ouvido falar que tinha uma casa de
cultura. Chagando na casa de cultura, falei que tinha ido buscar o DRT e a moça
falou que não davam esse tipo de documento. Aqui a gente não emite o DRT, mas
tem um curso de teatro você quer fazer? E me inscrevi no curso. No primeiro dia do
curso a professora colocou uma musica que eu ouvia em casa, uma musica da
Carmina Burana e pediu pra gente dançar aquela música. E pra mim, aquele
instante, é o instante onde nasci, onde eu descubro a expressão que ate então eu
não conhecia. E pensei no fundo da minha alma que queria fazer isso por toda vida.
Então por 8 anos passei fazendo cursos em vários espaços culturais e depois resolvi
fazer faculdade, que na verdade não era faculdade, mas um curso técnico, na
fundação das artes em São Caetano do sul. Esse curso técnico era pago, mas o
valor era irrisório porque tinha um convenio com o governo. Quando eu chego
fundação das artes encontro a Lídia Zózima. Então Zózima é em homenagem a uma
professora nossa. Lídia Zózimo é uma pessoa muito importante para a fundação da
Trupe porque todos os integrantes foram alunos dela. Todos. Nós morávamos na
periferia da cidade de São Paulo e passavam em média de cinco a cinco horas e
meia no transporte público. A Lídia era uma professora de expressão corporal, e era
coordenadora do curso. Ela teve câncer com 35 anos de idade e não queria fazer o
tratamento convencional. Decidiu ir pra Índia pra fazer um tratamento lá. Depois
dessa experiência ela voltou para a fundação para dar aulas. Quando ia fazer 10
anos que ela tinha passado pela experiência na Índia, a minha turma estava
formando e se conectou fortemente com ela. A Lídia fazia a gente acreditar que a
gente podia criar e fomentava isso em nós. Em 2005 a gente estava
experimentando a sala de aula com espaço cênico e num dia qualquer fomos fazer
uma vivência com a Lídia em Mauá, e fomos de ônibus. O transporte pra mim já era
um lugar de estudo e a Lídia nos incentivou a olhar o ônibus como essa
possibilidade. Dizia que o teatro está fora das universidades, fora dos espaços
fechado, e que passássemos a olhar o mundo como como possibilidade cênica e
isso nunca mais saiu da minha cabeça. Ainda mais quando passei a considerar o
ônibus como possiblidade cênica. Em 2006 eu convido algumas pessoas para poder
fazer teatro no ônibus e falo disso com alguns professores, e alguns riram dessa
possiblidade, e ainda diziam que o único objetivo era chamar a atenção. Mas eu
193
acreditava nisso e a Lídia acreditava que éramos capazes de fazer e liberou o nome
dela para batizar a Trupe e nos abençoa para fazermos esse teatro no ônibus.
Quando a gente começa fazer o teatro, eu não era diretor, mas como a ideia era
minha o grupo me colocou nesse lugar. Não me entendo ainda como diretor, mas
proponho que a primeira coisa que deveria fazer era percebe essa realidade do
transporte público e ver como o teatro pode funcionar ali. Pegamos músicas, textos
poemas, pegamos de tudo um pouco para ver o que funcionava no ônibus e fomos
pra Ubatuba. Então a gente pega esse monte de coisas, cenas, e músicas e vai para
o transporte público. Ai a gente tem duas experiências: a primeira como o ônibus
lotado com as pessoas em pé, abarrotadas, com o ônibus correndo. Foi caótico. E a
outra apresentação foi com o ônibus quase vazio. Ali eu constatei varias questões,
uma delas era que eu precisava de uma velocidade menor, que o motorista fosse
parceiro, que era imprescindível para fazer esse trabalho, que a gente precisa ter um
jogo de distância, que a proximidade não era boa para o jogo cênico. Em fim, eu
percebi isso e a gente começou a ensaiar numa sala de ensaio. Aliado a isso nós
utilizamos a nossa experiência como produtores, já tínhamos um fundo de caixa
para produzir nossa peça, e já começamos a buscar parceiros para auxiliar na
divulgação. A gente já tinha tudo, só faltava o ônibus. Começamos o processo em
fevereiro, quando foi em julho eu já estava desesperado, tive uma intuição e fui num
marceneiro e queria que ele construísse um ônibus de madeira em miniatura pra
materializar o ônibus e fazer aparecer o real que precisamos. Uma dias semanas
depois, nos já havíamos enviado diversos e-mails, para as empresas de ônibus,
recebemos uma resposta de uma empresa de Guarulhos, porque eles estavam
desenvolvendo um projeto para conscientizar as pessoas sobre a depredação do
transporte público, fazer a politica deles, e precisavam de uma grupo de teatro para
fazer essa encenação. Eles precisavam de um grupo de teatro e nós precisávamos
do ônibus, fechamos a parceria. Eles tinham um ônibus especificamente para esse
projeto, que acontecia apenas duas vezes na semana, nos outros dias o ônibus
ficava a nossa disposição. E essa empresa ficou parceira nossa por 3 anos. A gente
conseguiu realizar o cordel por conta dessa parceria com essa empresa. A gente
estreia o espetáculo estreia no dia mundial 14 de setembro, se não me engano, que
é o dia mundial sem carros. A gente não sabia disso. E sai a nossa primeira crítica
do cara falando que no dia mundial sem carros aconteceu esse espetáculo. Dizendo
194
quem dera que todos os ônibus tivessem uma trupe Sinhá Zózima, que pensaríamos
duas vezes antes de pegarmos os nossos carros...uma crítica linda. Quando a gente
resolveu fazer a temporada, que durou três meses, pensei assim: como são apenas
32 lugares, eu acho importante a gente fazer duas sessões nos sábados e duas
sessões no domingo porque imaginávamos que muitas pessoas iriam querer assistir.
Ficamos dois meses e meio sem público. Tivemos público na primeira semana e na
última. Porque no meio disso não dava quase ninguém, aparecia uma, duas, três
pessoas e não apresentávamos para elas, mas preocupados porque não estava
como desejado. A segunda questão foi quando a Claudia Barral veio assistir. Ela
falou assim, falta o ônibus, eu não vejo o ônibus no espetáculo. E eu ouvi aquilo e
comecei a concordar com ela. Porque não era objetivo inserir o ônibus, nos apenas
queria encenar no ônibus, era uma curiosidade. Essa foi a primeira questão. Fui pra
casa com esse problema na cabeça e comecei a pensar na primeira assinatura
como encenador colocando a ação do ônibus, que é o momento que a Teresa fala
que vai esperar o Antônio e Madalena diz que também vai esperar. Que Carminha
vai esperar e que José também espera e todo mundo aqui, ela inclui todos os
passageiros, vai esperar junto e o ônibus freia, para, desliga o motor. E é de uma
beleza quando isso acontece porque o tempo para. E a gente fica 4 ou 5 minutos
parados, mas parece uma eternidade, parece que o tempo parou. O ônibus cria essa
sensação para o público. Ali eu comecei a me encantar por isso, com o que dava pra
fazer. Mas surgiram outras questões. A segunda questão que eu aponto, é que
quanto o público entrava ele abraça a gente, e a gente achava aquilo muito
estranho, porque tínhamos vindo do palco italiano que se vê o público no final e foi
muito engraçado. Por várias vezes eles queriam mudar a história, queriam que
Teresa casasse com José. Uma outra coisa linda que acontece é que Madalena não
sai de casa e a gente colocou a Carminha pra fora do ônibus chamando a Madalena
pra fora e, em são Paulo isso não acontece, mas no interior as pessoas levantam e
ajudam a personagem a descer do ônibus, a carregar a Madalena, a pegá-la na
mão. As pessoas, no ônibus, nós não tínhamos pensado nisso, querem falar,
querem abraçar, querem intervir na história. E a terceira coisa que eu aponto, até
mesmo na avenida paulista, as pessoas falavam ora gente, após a peça, que nunca
tinham assistido a um espetáculo de teatro, era a primeira vez. Várias pessoas
falaram isso, a gente ouvir tudo isso. A gente ouviu todos esses gestos, essas
195
fundamentação, apresentou para gente Paulo freire, Martim Buber, história oral, a
gente encontrou um núcleo de história oral da USP. Aí eu comecei a estudar
mesmo. Pra mim foi muito importante pra saber o que a gente queria fazer, no que
se aprofundar. Aí foi quando eu fui me aproxima do Alexandre matos, lá na
UNESP... em fim, muitas coisas, conheci a Dani Sampaio, que é esposa do Eduardo
Acamoto, que estava mestrado sobre produção e gestão cultural... Durante esses
dois anos a gente cria o nosso projeto de fomento para fazer... ah! Não falei uma
coisa importante. Nesses três anos na verdade, o inicio da crise foi quanto a gente
decidiu fazer uma mostra de teatro no terminal parque dom Pedro, que na verdade
quem encabeçou isso foi eu e Tati. E A gente resolveu convidar grupos para fazer
apresentações no transporte público e pedir a liberação da SPtrans para fazer a
liberação. Isso em 2009. Quando a gente fez essa mostra, A gente não teve
nenhuma verba, era uma mostra que ia custar 85 mil e a gente fez com 1,500 reais.
A Tati fez uma pesquisa e constatou que das pessoas que estavam no transporte
público, assistindo as apresentações, 75% delas nunca tinha assistido uma
apresentação de teatro. 95% delas escolheriam um ônibus que tivesse
apresentações de teatro para se locomoverem pela cidade, e 100% aprovavam o
que estamos fazendo. E isso foi a cereja do bolo para falar assim, a gente está no
lugar errado. A gente precisava ir para o parque dom Pedro, é aqui que nosso
trabalho var fazer sentido. O Parque Dom Pedro é o maior terminal de ônibus, em
numero de passageiros da américa Latina. Circulam 200 mil pessoas diariamente
por lá, na sua maioria para as periferias da cidade de São Paulo. Então isso foi um
start para vária coisas que foram pipocando que a gente foi realizando ao longo dos
próximos 6 anos. Estou cansado, já falei demais, mas tem muita coisa pra te contar.
Esse momento é crucial pra gente, quando a gente se transforma muito, entende
muitas coisas e faz projetos que são muito potentes, aonde nasce o projeto do
dentro é lugar longe; vai nascer o projeto toda terça tem trabalho e tem também
teatro; nascer a residência artística... em fim, tem muitas coisas pra te contar que
seria legal A gente marcar pra conversar em um outro dia porque agora eu não vou
dar conta, é muita coisa.
JJ: Tudo bem, Anderson, eu te deixei falando para que você pudesse atualizar as
informações que tens em relação ao teu trabalho. O que é mais legal de fazer essa
198
pesquisa é realmente dar voz as nossas pessoas, de teatro, que não são ouvidas
realmente, ainda mais a gente que é muito novo, pouco conhecidos, não
apadrinhados, que a academia não se interessa. E muito interessante saber de onde
a gente vem, quem somos o que estamos dizendo. Eu não quis interromper por
respeitar essa ideia. Mas a minha ideia, Anderson, é entender como você enquanto
diretor, desenvolve as estratégias para construir os espetáculos. Entende? Esse é o
ponto chave da minha pesquisa.
AM: por eu ser um pouco prolixo, a minha intenção é trazer pra você uma estrutura
que depois você compreenda o porquê de tudo que eu disse. Só para arrematar,
quando eu termino a SP, e aí todos esses estudos, esses encontros, a gente cria
uma nova logo, por exemplo, eu consigo contar a história da trupe através das logos,
a gente vai criando as logos porque são transformações do próprio grupo. A gente
nomeia os nossos movimentos de pesquisa. A trupe considera 5 os nossos
movimentos de pesquisa pra dar conta do que a gente percebe, o que A gente faz, o
movimento sobre o espaço. o movimento de atuação, o movimento de pesquisa do
público. A gente nomeia o público como movimento de pesquisa porque ele nos
interessa olhar, para o público entender o público, que público, aonde; a
dramaturgia, porque a partir desse momento a gente começa a desenvolver
dramaturgias, porque até aqui a gente só pegava dramaturgias prontas que é o caso
do cordel do valsa e do poeta, depois a gente não pega mais textos prontos; e da
produção. Depois eu posso te dizer um pouco sobre como cada um. Mas a
produção... sem a produção não existiria a trupe Sinhá Zózima. Quando falo da
produção estou falando também da gestão. Que impulsiona e gera as metodologias
e as estruturas pra esse grupo existir. O mundo não estava preparado para receber
um teatro no ônibus e a gente teve que descobrir, inventar, ferramentas para poder
ele existir, senão ele não existiria. Podemos detalhar isso no nosso próximo
encontro. Pra finalizar ou ler uma coisa que escrevi e vou ler pra você. Está
publicado em uma das revistas que vou mandar pra você. Diz assim: Sempre as
pessoas me perguntam como surgiu a ideia de fazer teatro no ônibus. Em instantes
o tempo-vida se apresenta como resposta. A ideia é fruto da estrada que
atravessamos ao caminhar. É lamparina que necessita do querosene, do pavio, do
fogo e da escuridão pra iluminar.
199
JJ: muito bom, querido. Então a gente vai caminhando e nos falamos na sexta-feira
às dez da manhã.
AM: Pelo ator! Pra mim é o lugar que eu tenho mais identificação, por que eu sou
ator. Então pra mim o primeiro... Eu acho que tem duas coisas muito fortes... Mas,
vamos lá. O primeiro lugar é o ator, é... E... Eu lembro... O cordel, acho também que
tem essas duas diferenças, deixa só eu escrever aqui... Eu esqueci uma coisa... É...
O cordel a gente tinha o texto, então a gente foi pro texto pra poder... E como a
gente vinha da fundação e como eu não era diretor... A gente fez tudo muito
inspirado na própria escola. Então, estudar os personagens, enfim... A gente foi
desenhando isso. Foi desenhando do jeito mais tradicional o personagem. Mais aí,
eu acho que tem uma coisa... Engraçado isso, mesmo no cordel, que tem essa coisa
mais tradicional, de... que a gente pedia para os atores trazerem experimento de
cada personagem... O Vertigem trabalha assim, né? Eles chamam de workshop,
onde o ator trás... Trás aí o seu olhar sob o personagem, sob uma cena, sob um
jogo, uma vivência, enfim... É... A gente encontrou logo no começo, o Emerson
Danese, que trabalha com Antunes Filho, ele apresentou pra gente o Gaston
Bachelar que foi muito útil até hoje pra mim, como eu andava muito a pé e pegava
muito transporte, eu devaneava muito. E eu não conhecia essa palavra, devanear,
eu tinha medo, eu achava que eu era um pouco louco, assim. Saia fora da casa,
sabe? Eu tinha um pouco de receio, até. Quando eu conheci, Gaston Bachelar, e aí
eu conheci a Poética do Espaço, o livro que eu mais amo dele, porque eu não li
200
todos, também. Nossa! Pra mim foi um balsamo, eu me encontrei ali, um pouco. Né?
Os devaneios... Ficar naquela imagem, ficar desdobrando a imagem... Aí eu me
encontrei muito nisso, nele. Aí depois, sei lá... Depois de dez anos de teatro, não de
teatro só, da minha vida, eu tinha essa coisa do devaneio, né, eu te falei já que eu
fugi de casa, essas coisas. Ia pra cima da laje e ficava horas, sei lá... Comigo, né,
Então tinha isso... Essa necessidade. Mas, tinha uma coisa, aí, que eu já contei pra
você, mas que eu vou linkar que pra mim tem haver com todos os trabalhos da
Trupe. O que, que a gente fez? A primeira coisa que a gente fez pra montar o
Cordel, a gente foi pro ônibus. A gente pegou vários textos que a gente conhecia e a
gente foi pro ônibus. Não ensaiou em nenhum ônibus, a gente não conhecia o
itinerário, a gente não conhecia nada, a gente se jogou no ônibus.
AM: Ônibus de linha normal, né, E aí, foi nesse risco, nessa vivência, nessa lida,
com o que se apresentou. Que eu pego algumas coisas, então, ah... O lugar da
velocidade, o lugar restrito do ônibus, o lugar de como ocupar esse ônibus mais,
porque as cenas não podiam acontecer muito próximas... Isso sem eu ser diretor eu
já saquei, logo na experiência, né, ouvindo os próprios atores. Quais foram as
dificuldades? O que vocês perceberam? Aí, eu percebi isso, percebi aquilo... As
músicas foram muito interessantes por que a música ocupava o ônibus inteiro. Ah,
tá! E aí no texto da Cláudia Barral não existe isso, né, mas, tem a personagem que é
o cantador e a cantadora, que canta as músicas. A cantadora, até por causa do
Gaston Bachelard, a gente... Eu trouxe pra ela o elemento do rio, então ela era a
cantadora por que ela era o rio São Francisco, que passava pela cidade e que tinha
também, no Gaston Bachelard você tinha no livro A água e os sonhos, eu acho, eu
acho que é A água e os sonhos, que ele vai falando e vai tendo um desdobramento
sobre a água clara, as águas primaveris, a água barrenta, as águas profundas,
então ele vai tendo várias imagens sobre as águas. Pra cada personagem a gente
trouxe uma água, a Tereza era essa água mais, mais... é... límpida, né, mais
limpinha, mais transparente. A Carminha era a água barrenta e a Madalena era as
águas profundas. E, a Priscila que fazia a cantadora ela era o rio que abarcava
todas as águas. Então, nos momentos cruciais das personagens, nos picos das
201
JJ: Entendi.
AM: Então, eu acho muito importante deixar claro, eu posso falar dos outros
trabalhos se você quiser, mas só pra poder deixar claro essas respostas que você
me perguntou. Eu começo pelo ator, mas o ator na vida, na experiência, né, E, a
partir disso que eu olho e depois disso que eu venho.
AM: Se repete.
JJ: Ou foi a metodologia inicial pro Cordel e os outros foi amadurecendo outras
coisas?
AM: Se repete, aí eu não vou falar do Valsa e do Poeta. Eu acho que o Valsa foi
muito complicado, o Valsa ali eu... Enfim... Eu não lembro também. Foi muito
picotado, foi um processo muito picotado, aí dois atores saíram... A gente estava
apresentando muito Cordel, ai eu não tenho muita memória do Valsa, até por que eu
acho que o Valsa, acho não tenho certeza disso, o Valsa e o Poeta eram tentativas
racionais do grupo de experimentar outras coisas, tanto que depois que a gente que
a gente experimentou essas coisas, a gente para pra estudar, faz mostra de teatro, a
gente entende que a estética do Cordel, o tipo de dramaturgia do Cordel de fato
interessava a Trupe. Acho que todos os outros espetáculos, O dentro é lugar longe,
202
conversa muito dentro do Cordel, mas eu tenho um fogo danado e eu gosto de fazer
coisas diferentes dessa estética, não com a Trupe, né, com a Trupe eu venho
preservando a Trupe, venho me aprofundando nessa estética. É... Que eu nem sei
se eu sei nomear direito ela. Mas, eu venho experimentando outras coisas. Eu fiz
Iracema, que é um trabalho muito diferente do que é o da Trupe. Fiz o Desterro,
agora recentemente, que também é uma outra pegada, apesar de ser uma
dramaturgia da Cláudia Barral, é uma outra estética. Então pra mim é um lugar
também de treino pra potencializar aquilo que eu faço com a Trupe. De respiro,
também, né, Me distanciar um pouco daquele universo e sentir vontade de
mergulhar mais fundo naquilo que a Trupe vem fazendo.
JJ: Entendi. Mas isso aí que você faz, esses experimentos são sempre no ônibus?
JJ: Entendi. Vamos p... (mudança de ideia) Não! Deixa eu voltar um pouquinho
antes. O último é Os minutos que se vão com o tempo?
AM: Isso.
AM: Então, vou te dizer como que a gente começou. Isso na verdade vem da Lídia.
A Lídia traz isso pra gente, olha vi depois a gente reflete. É... em os minutos a gente
tem uma tríade de inspiração. Então a gente tem a Odisseia de Homero, que conta
essa travessia de Dirceu de vinte anos tentando voltar pra casa, a gente vai pegar
essa história com inspiração para fazer o espetáculo pro passageiro que está indo
pra casa. E se desloca vinte anos, assim, uma eternidade pra poder chegar em
casa. A segunda inspiração é a história de vida de um passageiro, a gente queria
fazer isso com vários, na verdade tem vários, mas eu vou explicar isso, mas a gente
fez com um por que a gente percebeu que era uma demanda, a gente gostaria de
fazer com vários, mas é uma demanda gigante... Porque a pessoa como eu não
para de falar, adjetiva, ela quer contar a história dela, né, Enfim... E aí você fica
203
assim, meu Deus! Eu vou dar conta de uma pessoa, então. Pra você ter ideia, o
Agnaldo levou pra gente sete diários.
JJ: Uau!
AM: Que ele escreveu de anos, eram diários que ele escreveu em dois mil e dez,
diário de noventa e três... Ele escolheu sete diários de momentos da vida dele que
eram importantes e entregou um para cada ator. Sete ou foi seis? Acho que foi seis.
Então tinha essa... Então vamos ficar com ele só. O Agnaldo é um desse
passageiros que é da residência artística que a gente faz no Terminal Parque Don
Pedro, que eu acho que eu não cheguei a falar sobre isso, mas depois de dois mil e
doze, onze, doze... A gente já estava fazendo a residência, a gente já fazia ações
pontuais no Terminal Parque Don Pedro, mas nesse ano a gente resolve ficar, morar
lá. Então, a gente reside, passa muitos dias no Terminal Parque Don Pedro. É...
Porque a gente percebia nos projetos que sei lá, a gente fazia dois meses de
temporada do Cordel, e aí a gente percebia que no finalzinho da temporada
passageiro começava a entender: Aí, tem que vim mais cedo porque tinham poucos
lugares! Poxa eu queria tanto assistir mais já vai acabar! A gente começou a
perceber que o passageiro ele não tinha noção... É do artista sob o espetáculo. A
gente tem uma história bem triste até que, é assim, a gente na última apresentação,
a gente fez até duas sessões nesse dia, vinha muita gente assistir a gente e uma
dessas sessões tinha uma família da cidade de Tiradentes que é bem longe, né,
duas horas e meia, quase, duas horas assim de viagem. E eles vieram pra assistir a
gente no último dia, não tinha mais ingresso e eles nunca tinham assistido uma peça
de teatro. Aí o pessoal da nossa produção começou a falar com público, com os
artistas, tinha muito artista pra assistir, pra poder doar o ingresso e nenhum artista
doou. E a gente ficou assim, tão triste com isso. Gente, a gente da classe artística,
assim, é filho da puta mesmo. Tem um povo assim, desculpa dizer, um povo nojento.
Que fala, fala, mas não prática nada do que fala. E a gente ficou muito mexido com
essa história e é dessa história, que nasce o projeto Toda terça trabalho tem
também teatro. A gente precisa fazer uma coisa toda semana, todo horário, todo dia,
mesmo dia, pro público começar a entender que ele precisa se programar. Ele não
consegue, ele demora pra entender. A gente ficou três anos, Jackson, fazendo
204
ações no Terminal Parque Don Pedro, todas as terças feiras, convidando vários
grupos pra poder se apresentar no nosso ônibus, então teve roda de conversa, é...
Contação de história, música, dança, poesia, teatro, show musical, balada, a gente
fez de tudo. Era um festival multicultural no terminal e foi muito bacana. Ali a gente
atingiu muito passageiro. Não sei se você já chegou ver, mas tem muitos vídeos
desse projeto Toda Terça...
Vídeos que a gente fala com o artista, mas também fala com o público, mais com o
público do que com o artista. E é bem interessante. É... Mas... E aí o Agnaldo é um
desses passageiros, que acompanha, né, Que acompanha a gente. Aparece quase
toda semana, tem o Roberto, o Roberto se ele faltou três ou quatro terças é muito.
Então ele estava todas as terças lá. Então o Agnaldo é um deles. E a terceira e eu
acho que essa é a mais importante, das inspirações é que eu pedi pra que eles... Eu
criei o procedimento e vou falar disso depois, vou anotar aqui vou falar disso depois.
Assim, eu criei. As vezes a gente não cria nada. É a gente vai fazer uma travessia, o
nosso trajeto era na linha mais longa da cidade de São Paulo, então era sair do
Parque Don Pedro e ir para a cidade de Tiradentes, a gente ia fazer só essa linha. E
eu falei assim, a gente vai vivenciar esse trajeto a pé. Então a gente vai fazer das 7h
da manhã até as 7h da noite a gente vai fazer uma travessia, do Terminal Parque
Dom Pedro, pro Terminal de Tiradentes. Nessa travessia, essa travessia vai ser uma
travessia solitária. É sozinho! Então cada um vai escolher um dia, eu pedi pra que
cada um escolhesse o dia, escolhessem a razão. Nossa, eles ficaram loucos... Foi
terrível, teve gente que disse: - Eu não vou fazer. Foi louco isso. E eu falei assim: -
Eu também vou fazer, mas vou fazer por último. Pra poder dar o exemplo, porque eu
também não ia fugir da raia. É... E aí eu falei... Tem alguns dispositivos... Os
dispositivos eram, deixa eu ver se eu lembro, não sei se vou conseguir lembrar de
todos, vou lembrar de alguns. Eles tinham que levar algo pra eles doar, tinha que
doar alguma coisa no caminho, eles tinham que anotar, colher, né, colher imagens,
frases, pensamentos que viam na travessia. É... Eles tinham que permitir, na
verdade era uma deriva, eles tinham que permitir... Acontecer, né, Estar aberto para
o que pudesse acontecer nesse caminho. E foi de uma beleza, nossa! O legal seria
conversar com os atores. Eu fiz a minha, posso dizer sobre a minha. Eu fiz por que
na verdade foi um processo de dois anos, não... (titubeou) vou focar mais. Então,
essa travessia é a mais importante para o processo.
205
AM: O último que você perguntou, os minutos que se vão com o tempo. E teve gente
que desistiu, que não conseguiu fazer e aí isso foi de uma dramaturgia bela, assim...
Teve gente que fez no caminho contrário, assim, todo mundo fez pela mesma
calçada, mesmo roteiro, teve gente que fez ao contrário e isso modificava
completamente a visão do trajeto. Teve gente que fez no sol mais quente do ano...
Minha esposa, assim, ela foi no dia mais quente. Teve gente que fez no dia mais
frio, na chuva... enfim... foi lindo! Eu ainda fiz o oposto, eu fiz do Terminal de
Tiradentes pro Terminal do Parque São Pedro. E aí foi muito legal porque foi tudo
muito diferente, mesma coisa mais tudo muito diferente. Todos eles, a gente
esperou todo mundo fazer pra gente conversar, menos eu, eu ainda não tinha feito,
ainda. Mas a gente conversou com todos eles, né. Quando eu fiz, a gente tinha
encontro. Então a minha noite foi com eles. Então eu já cheguei morto, assim, era a
experiência ali conversando com tudo que eu tinha vivenciado e os textos que eu fui
escrevendo. Na revista, eu vou mandar isso pra você, já. Você chegou a ter acesso
aos materiais escritos?
JJ: Não.
AM: Tá, deixa eu colocar aqui. Eu vou mandar aqui pra você, porque na revista Os
Minutos que se vão com o tempo... Se chama Fagulhas Dois, tem um texto meu, de
uma composição de todas as frases que eu fui escrevendo. Como que eu faço pra
mandar pra você? Ah, achei! Vou mandar, tá aqui o link, tem todas as revistas.
(Problemas de rede)
AM: E aí... Esse foi o principal dispositivo, dessa travessia solitária, por que o
espetáculo é o caminho de cada um que vai se cruzando, aí eu faço o mensageiro
então eu entrego cartas e vou conectando e ampliando essas travessias. Eu atuo
nesse espetáculo e tem isso também, né? Eu atuo. Eu atuo, eu não consegui, é, foi
bem difícil para mim. Isso, aí é um dos procedimentos mais importantes do
206
Minutos... o segundo e que pra mim tem tudo a ver com a questão desde lá do
Cordel, nego, a gente vai de transporte público. Desses dois anos a gente fica um
ano ensaiando no transporte público e é muito, muito difícil isso, porque você não
tem texto decorado, as marcas não estão prontas, você desafina, gente tem histórias
muito cabeludas... Teve uma história muito foda... que.. é... A minha busca do
transporte público bem difícil porque eu tinha um grande conflito comigo: eu não
quero desrespeitar ninguém, porque as pessoas estão pagando passagem, elas
estão cansadas, elas estão voltando para casa e eu tinha uma grande questão que
era eu tinha que ser muito cuidadoso, tem que ser aos poucos, né? E a gente foi
para isso! E aí chegou um dia que a gente ia testar umas roupas, né? E a gente
queria testar e a gente sabia que eram roupas claras e a gente foi com um monte de
roupas claras, fazer... Ensaiar no ônibus, pegar um ônibus e ensaiar no Terminal
Parque Dom Pedro pra cidade de Tiradentes. E aí num desses ensaios já tinha sido
horrível, tinha sido horrível esses ensaios, era muito difícil, muito difícil mesmo. Por
que a gente escolheu ainda um ônibus, que é um ônibus biarticulado, que é aqueles
ônibus que é o dobro, que é gigante. A gente queria esse ônibus, enfim. E a gente
apanhou muito. É... Nesse ensaio a gente chegou sempre cuidadoso, sempre calmo,
tal... E aí um evangélico, quando a gente começou a cantar, falou que a gente
estava fazendo macumba, que era coisa de macumba. Antes fosse, a gente devia
fazer mesmo. Mas... E aí ele queria bota a gente, ele escorraçou a gente do ônibus
e a gente não conseguiu fazer nada. Eu fiquei, assim, perplexo, e aí eu não
conseguia fazer nada e aí os passageiros começaram a defender a gente.
(pausa)
AM: ... isso foi muito importante ter acontecido, foi difícil ter acontecido, mas foi muito
importante, porque ali a gente começou a perceber que, uma das coisas que a gente
começou a perceber que, o espaço é deles, mas também é nosso. E aí a gente não
vai impor, mas a gente também, entendeu? A gente tem que descobrir uma outra
energia pra lidar no ônibus, que não é aquela energia do vendedor que Ô... no sei o
quê!!!! A gente fez algumas vivências com alguns grupos no próprio transporte e a
gente percebeu esse lugar muito da rua... E é foda isso! Por que o ônibus não é rua,
ele é rua, a rua entra tem um barulho, tem as pessoas que entram e saem, mas é
diferente da rua, porque você está muito próximo, ao mesmo tempo que ele é da rua
ele é intimista, sabe? É arena, né? Enfim... E aí a gente começou a ter uma
207
consciência desse corpo que contamina o espaço, que aos poucos... Que continua
com respeito, com cuidado, mas que presentifica, que respeita aquele que não quer.
E outra coisa que é muito difícil para gente lidar como ator e pro diretor também,
porque eu tinha que ir explicando isso pra eles, tinha que também ir aceitando
porque também estava atuando, é que muitas coisas que a gente programava fazer,
não rolava, não aconteciam. Então você também estava no lugar, ali, de risco,
daquilo que você mais ou menos planejou, não rolar. Então, a gente tinha que
começar a desplanejar algumas coisas deixar as coisas que aconteciam, transformar
a as coisas que aconteciam em dramaturgia, sabe? Então, tem várias histórias. Eu
contei a história da moradora em situação de rua para você, né?
JJ: Não.
AM: Eu contei do outro rapaz que... Conto essa história? Ou vou me prolongar
muito? Não, deixa eu responder outras coisas. Depois eu conto essa história. Então,
acho que assim, essa ideia de vida, de se jogar pra uma coisa que a gente ainda
não sabe o que vai acontecer, deixar que essa experiencia, esses dispositivos, né?
Que é um dispositivo, mas é que ele traga pra gente alguns apontamentos do que
fazer, de como fazer, como resolver. Eu acho que é algo que acompanha todos os
trabalhos, né, ou a maioria deles, os trabalhos mais cruciais da Trupe Sinhá Zózima,
aí eu queria falar duas coisas que eu escrevi aqui... Não! Tem outra pergunta ou
você quer desdobrar essa ainda?
AM: Tá! Acho que tem uma coisa, também da Trupe muito forte... Não! Vou falar
primeiro como diretor. O que, que eu entendi quando eu fui estudar? Que para mim
isso foi muito importante, duas coisas: que o diretor, ele... eu percebi isso na escola,
né. Tinha... Eu estudei na SP, na SP é um outro modelo de estudo, um estudo
também pela experiência. Então a gente tinha o momento de levantar materiais, um
segundo momento, na época que eu estudei, pode ter que tenha mudado. O
segundo momento que você vai experimentar isso com os próprios aprendizes,
então era o diretor aprendiz, o cenógrafo aprendiz, o figurinista aprendiz, o ator
208
aprendiz, todo mundo aprendiz. E a gente tem que criar um experimento para
apresentar. E, aí gente vai para essa experiência, e, depois da experiência e a gente
vai refletir sobre o que aconteceu. Então, na SP tinha esse início que era, o estudo,
o experimento e a reflexão. No estudo eu ficava louco, não estava entendendo nada,
não vou conseguir fazer, ficava boiando. Quando chegava nas experiências eu me
jogava, e me saía e não me saia tão mal, não. E quando a gente ia para reflexão, o
que mais tinha era os paus que acontecia entre os grupos, mas era assim, quase
todo o grupo tinha pau quase de brigar de se bater, coisa feia. Eu ficava assim,
gente, eu não tive nenhum tipo de problema desse. Passou o primeiro semestre,
chegou outro semestre, e isso foi se repetindo e uma das coisas que eu entendi, que
talvez seja para mim um ponto, né, é minha observação é que o diretor tem esse
lugar, também do RH, né. Esse lugar das relações, de cuidar das relações, de como
apresentar o figurino que veio, o ator que curtiu, é porque parece que é um ninho,
um ninho ali, de possibilidades de encrenca, de rolo, por que tudo vem
atravessando, e, são questões humanas. Então, eu saquei, uma das coisas do
diretor, que eu senti e que eu falei: Aí, eu sou bom nisso. Era, era...
AM: Mediar os conflitos, né? Era cuidar, e quando eu tó falando cuidar, não é esse
cuidar de... Aí, nossa coitado! Não, era justamente, né, no provocar. É isso que ele
precisa. Precisa na verdade de ficar louco, precisa ficar nervoso, porque, né, eu
lembro do Júnior. O Júnior em um dos processos ele tem uma questão muito forte
com a bebida, né, o padrasto dele... Várias questões com bebida, e o personagem
dele, como a gente partiu da criação dos personagens pros Minutos que se vão com
tempo, era partir das caminhadas, era partir do que ele trazia. Não era, aí, você vai
fazer isso! É, você que tá criando. Nesse espetáculo, você que tá criando seu
personagem. Eu falava isso pra ele. Cria, se vocês não criarem, não vai ter nada. E
tudo que ele trazia, era um morador em situação de rua, um homem que saiu fora da
casa, um cara que... Ele trazia esse personagem muito a margem, mas ele negava
esse personagem o tempo inteiro, ele negava, e aí era muito foda lidar com ele.
Porque? O figurino vinha isso, suas músicas vinham isso, a dramaturgia vinha isso,
mas ele não via isso, ele não queria ver isso. Pra você ter uma ideia, até hoje a
209
gente brinca com ele assim, a gente vai fazer Os Minutos... Ele veste o figurino dele,
mas assim, antes de vestir o figurino dele, é muito incrível porque a gente faz outros
espetáculos e isso não acontece, mas assim não dar dois segundos, dois minutos,
começa a aparecer um monte de bêbado, monte de gente em situação de rua
procurar ele, pegar o violão dele, e ele tem ainda uma questão com isso, sabe?
Então, eu ia provocando ele, explicar não adianta, falar não adianta, tudo também
não adianta, então ele vai ficar louco, ele vai enlouquecer porque é isso, né? Eu ia
provocando ele nesse lugar. Então, com cada ator, também, você vai descobrindo,
eu trabalho muito assim, com cada ator você vai descobrindo como arrancar o
melhor dele, né, como trazer a potência dele. Não é o mesmo jeito, não é do mesmo
jeito que você vai lidar com todos. Então e saquei que pra mim uma das coisas que
o diretor, era lidar com esse humano, né, não era lidar com a obra em si, era lidar
com o humano, né. E a segunda coisa que para mim foi muito... Nossa! Isso foi
muito interessante e eu venho praticando bastante, mas eu sinto também que é bem
angustiante, é por que como eu nunca fui dessa coisa da leitura... Ah, eu conheço
um pouco de cada coisa, não consigo me aprofundar muito, aí os jogos da Viola
Spolin, a metodologia de Stanislavski, eu nunca fui disso. Eu vivenciei isso como
ator, porque eu estudei isso, com certeza eu me inspiro, tem coisas deles, mas eu
não sou aquele que vai se aprofundar naquela metodologia. Aí, vou pegar isso, vou
transformar isso, não! Por que o que eu saquei na SP é que a criação do diretor, pra
mim, tá. É a criação de procedimentos, procedimentos de criação é o lugar de
potência do diretor porque é neles, para mim, que revela a obra, o espetáculo.
Então, eu sinto que eu ao longo desses anos, e aí eu senti isso muito mais depois
que eu fui trabalhar na fábrica de pintura, que é um projeto artístico social, aqui em
São Paulo. Estou trabalhando há 5 anos com jovens, 50 a 60 jovens aprendizes que
eu vou dirigir um espetáculo, que eu vou construir um processo de criação com eles
durante 1 ano e no final desse ano a gente cria um espetáculo e a gente circula com
esse espetáculo por algumas fábricas. E aí, eu, com eles eu descobri a escrita, a
dramaturgia, fui descobrindo algumas coisas e também potencializando esse lugar
de criar procedimentos. É... mas eu sinto que pra mim... Eu estou no processo
agora, que eu fui experimentando várias coisas, todos os outros diretores já têm
toda uma estrutura do espetáculo e eu não tenho, começou a nascer agora, mas aí
eu já estava bem angustiado. Sabe? Eu comecei a eu ficar angustiado. Porque,
210
nossa, meu! Eu sou lento mesmo, sou devagar, mais e aí... Aí começaram a surgir
umas coisas muito foda, a que bom, a, então tá... Meu caminho é esse mesmo.
Porque eu vou lidando pra mim com o tempo, então pra mim o tempo... E eu sou
super abstrato, ou não, mas eu não sei explicar muito de outro jeito, mas para mim o
tempo revela, o tempo vai revelando algumas coisas, vai revelando quem vai fazer
aquele personagem, vai revelando que dramaturgia é, vai revelando qual é o
procedimento que a gente foi criando que de fato é importante, porque naquele
grupo, aquele encontro com aquelas pessoas, eu acredito muito nisso, é desse
encontro que nasce espetáculo, então tem alguma coisa que essas pessoas juntas
querem dizer e que um vai se contaminando e um vai se provocando e um vai
nascendo, vai revelando, aquilo que a gente naquele tempo e espaço veio para
dizer. Então eu crio esses procedimentos, eu vou inventando esses procedimentos,
vou devaneando, também, vou me permitindo, falar: nossa! Porque isso? Sei lá! Vou
criando... E aí desses procedimentos nascem as coisas. Então eu acho que são
esses dois pontos, né, que eu descobri que é cuidar dessas relações e inventar
esses procedimentos, que eu sinto que vem em todos os meus trabalhos.
JJ: Me fala, se você conseguir, como você ou a partir de onde, ou, como você
concebe seus espetáculos? Por exemplo, no Cordel você me falou de um signo
muito importante que eu consegui identificar na sua fala que foi o rio, né, a água
como metáfora para a vida daquelas personagens e isso talvez tenha permeado
toda sua encenação, né, durante o percurso do Cordel.
AM: Sim! Acho que no Cordel foi o rio, nos Minutos foi a casa, nos Minutos, não,
mentira, no dentro é lugar longe foi a casa, aí gente se aprofundou na poética do
espaço do Gaston Bachelard e nos Minutos eu acho que foi a viagem pra dentro de
si. Eu acho que resumindo que a viagem pra dentro de si, que a gente busca, que é
esse... A travessia deles é muito forte. Bom, pra responder essa pergunta eu vou
explicar também o Dentro que aí, talvez, dê mais corpo para entender isso. Como
que a gente começa o Dentro? O nosso objetivo, era fazer o que a gente fez nos
Minutos, era fazer no Dentro, então era pegar histórias de vida dos passageiros para
construir o espetáculo, só que quando a gente ganhou o edital de fomento, nosso
primeiro edital de fomento do teatro. A... vai ter um processo de eleição em São
211
Paulo, acho que era... Acho não, era a saída do Kassab para entrar o Haddad e
quando acontece isso, como já era uma gestão do Kassab, era uma gestão muito
mais difícil, eles proibiram a gente de entrar no terminal Parque de Dom Pedro, a
gente já vinha fazendo uma vivência, a gente tinha cartas, tinha histórico, tinha tudo
que comprovava que a gente não estava agindo de má fé, que eles tinham liberado
pra gente, mas a desculpa deles é, agora tem eleição. Porque eu acho que o
Kassab ia concorrer, enfim, A gente não pode divulgar nada, nem podia fazer nada e
eles eram medrosos para caramba, tinha um cara lá que era bem complicado de
lidar e eles proibiram a gente e a gente ficou louco com isso. Por que o nosso
projeto era fazer no Parque de Dom Pedro, só isso mudou tudo, né. Fodeu! Aí nessa
lida de entender o que a gente ia fazer a gente... Eu criei um procedimento e disse,
olha, a gente vai fazer um... Junto com Rudinei... E o procedimento era, fazer uma
vivência de história oral, que a gente estava se aproximando da história oral, em 24
horas, a gente ia passar 24 horas contando histórias de vida. E aí, como que isso ia
acontecer? A gente dividiu o tempo por ofícios, aí existia o ofício da manhã, o oficio
do meio dia, o oficio da tarde e ofício da noite, enfim. Dividiu, e cada ofício desse era
experienciado no espaço da casa. Na revista Fagulhas tem tudo isso descrito, na
revista Fagulhas 1, né? Cada oficio era vivenciado no espaço da casa. Então, meio-
dia era na cozinha, a noite era no quarto. A... era o serão? (dúvida) Acho que é era,
porque o ultimo era a Aurora. O último, era o serão? É, acho que era? Então a gente
foi no livro do Gaston Bachelard, do sótão ao porão, que era da Aurora ao serão. Na
madrugada a gente fez na cabana, enfim, então tinha uns espaços, cada ator
cuidava de um espaço, eles tinham que cuidar do espaço, por que aconteciam
refeições. Né? Aconteciam... Tinha umas perguntas. Pra cada espaço tinha algumas
perguntas chaves, cada um carregava mala que trazia consigo uma mala, que ele
abria o espaço pra conversa. Era muita conversa. Isso é uma outra coisa da trupe
que é muito forte, que eu demorei muito para entender porque a gente, vou fazer um
adendo, nossos encontros, sempre tinha uma hora, uma hora e meia de conversa, e
eu como diretor começava a falar gente: a gente não vai e conversa e conversa,
mas eu não conseguia fugir disso, assim. E teve um dia que eu tive... Eu fiz um voto
de silêncio e fiquei uma semana em silêncio. E aí, eu fui pro ensaio, eu não podia
falar, e foi nesse dia eu percebi a beleza da conversa, e falei assim, nossa que
bonito, porque aí eu percebi que era um lugar que a gente sempre teve isso, era
212
lugar de encontro, era um lugar onde a gente sanava nossas ansiedades, que a
gente se limpava, também, percebia como o outro estava. Enfim, a gente conversa
muito então eu percebi que a conversa também era um procedimento, sabe? Era um
lugar que o grupo chegou, e que era muito fundamental que isso acontecesse, por
que eu percebi outros desdobramentos disso das para as nossas criações. E é um
grupo que existe, depois que dividiu por, teve um momento que se dividiu, né? Por
exemplo eu a Tati e a Priscila, a gente se conhece... A trupe está com 11 anos, a 15
anos. Então a gente está junto há 15 anos. A Tati Nunes que veio depois para trupe,
eu conheço a Tati Nunes deste 98, a 20 anos, a gente começou a fazer teatro
juntos, ela era professora no começo foi junto com a Tati Nunes. Então é os outros
que entraram depois a Cleide também a 15 anos e a Maria e o Júnior há pelo menos
uns oito então é um grupo de muito tempo a gente se conhece por muito tempo.
Então as conversas são profundas, são longas. A Lídia usava muito a conversa,
tinham encontros que a gente só conversava. Bom, os procedimentos... E aí a gente
passava por esse ofício, contando história de vida, a história do outro já modificada o
que eu ia contar. E a gente faz isso em 24h numa casa no sítio que tinha porão e
que tinha só sótão.
JJ: Então, peraí, vocês fizeram isso aí em uma casa, não no ônibus.
Anderson Maurício: Isso, também é uma coisa forte, acho que a gente (vídeo
travado)... Nem sempre nossos procedimentos acontecem só no ônibus. Sei lá, os
ensaios todos são no ônibus 80%. A acontecem só no ônibus a gente tem algumas
saídas algumas coisas fora e desenvolver alguma coisa ali a gente foi para uma
casa mesmo um sítio tinha piscina tinha quintal era gigante esse material isso é
muito foda, essa vivência, é dali que eu tiro toda a encenação e ali que nasce toda
dramaturgia do espetáculo na verdade ali na nasceria mais uns três espetáculos
mas um dentro um lugar longe nasce desse lugar.
AM: no ônibus em diálogo com a cidade então quando a gente entra dentro do
ônibus e a gente vai fazer o percurso pela cidade para mim é o espetáculo que eu
mais gosto por eu consigo entender essa potência entre o ônibus e o lugar da cidade
a gente vai buscar na cidade os espaços da casa a cidade como casa. Então eu vou
fazendo aí uma mistura passo interno do ser humano a casa interna o porão interno
das histórias que a gente conta porque são histórias de vida dos próprios atores,
relacionada com os espaços da cidade. Então, por exemplo, tem um momento porão
no espetáculo, a gente não divulga sobre isso porque para a gente é interessante
também aumento do espetáculo que a gente vai falar sobre o porão que a gente vai
contar histórias do que já estão sendo desenhadas passa no fluxo que foi o porão
que a gente encontrou da cidade essa esse lugar da vivência sempre em lugar que
um dispositivo que faz com que a gente vá amarrando poeticamente essas vivências
que tá essa imagem poética dos dispositivos é sempre um lugar da vida é ali que a
gente vai perceber o que funcionou e o que não funcionou o que disparou sempre
vai para outros lugares que a gente não imaginava. Eu acho que é isso.
AM: não sei responder isso é delicado... O que o Kio Abreu, eu também vou usar
ele aqui você conhece o teatro jornal?
JJ: Eu até li essa critica dele que falou sobre a estreia de vocês.
AM: Os minutos que são vão com o tempo? Ah então você leu então ótimo o que
ajuda a gente porque eu acho que assim a questão política desenvolve ao meu ver
tá já na nossa escolha para quem a gente faz aonde a gente faz somos porque são
todos hoje eu tenho a minha casa graças a Deus consegui o meu esforço eu
consegui de alguma coisa de alguma forma estava na periferia, sou branco, então
também tenho meus privilégios da onde vem tenho consciência das questões das
enfrentei do que me foi negado como sujeito periférico. Mas não utilizo desse
discurso para defender os meus projetos. Talvez assim, vou fazer para os
214
trabalhadores trabalhador X, não falo que eu vim desse lugar, não é um discurso
político nesse lugar. E se eu estiver errado vai me ajudando a responder por quê...
AM É... Eu também não sei os grupos que estão fazendo teatro político panfletário é
teatro político panfletário, também existe neles rol, as nuances. Mas talvez seja a
forma de conseguir dividir. Porque eu já estou, aí é legal porque o Kio ele fala, aí,
eles não estão no lugar do ônibus para poder discorrer um discurso sobre a diz
potência desse lugar, sobre a crueldade desse lugar, o valor da passagem, os
assédios que acontecem, os poucos ônibus que existem, as longas viagens. Não a
gente não está ali para frisar isso, porém, a gente escolhe esse lugar. A simbologia
desse espaço, ela é muito forte ali, está ali para poder transformar esse lugar em
potência. Eu acho que essa frase que ele traz é uma frase que ajuda a gente dizer
sobre a nossa ação. Então o que eu acho que a gente fala, como recorrente nos
nossos é uma busca de, primeiro o lugar da imagem é muito forte, e é no caso do
Gaston Bachelard, também, são os desdobramentos das imagens são um olhar para
si. Um olhar para o humano que é ele que somos nós tá falando de uma forma
poética de uma forma dessas imagens que elas penetram no outro e ecoam no
outro. São imagens que vão trabalhando essa possibilidade de transformar o olhar.
Porque a partir do momento que o cara olha ele olha muito estranho muito estranho
é quase que um soco poético, quando ele olha para o ônibus e o ônibus tem teatro.
Esse ônibus tem arte. Porque para esse trabalhador ali que está naquela rotina
trabalho para casa e vai no shopping e pega o celular... é um fluxo, um circulo que o
fecha ele para outras possibilidades, quando ele ver ônibus é uma porrada sim. E eu
acho que esse espanto é muito potente, é uma imagem de possibilidades de
transformação daquilo que ele está acostumado a ver. Se ônibus se transforma, a
pergunta é, o que mais pode se transformar? A casa, o trajeto, a vida, ele. a
cidade... o que mais que existe, mas que poderia ser de outra forma? E aí eu acho
que a nossa função política e social esta nesse lugar.
JJ: Anderson, então vocês têm um ônibus específico que vocês customizam ele ou
não e ele faz o trajeto do trabalhador ou tem um trajeto do espetáculo?
215
JJ: poética é quando há uma marca, digamos registrada, da nossa pulsação pessoal
que está presente em todos os nossos trabalhos.
AM: eu não tenho consciência disso ainda, ate porque, como eu estou me
arriscando... quem assiste o cordel e os minutos e o dentro, percebem ali um traço,
216
um traço forte, mas eu achava que era da trupe não um traço do diretor. Quando tu
fui para as fabricas de cultura, que eu dirijo em teatro, não no ônibus, tem um lugar...
a poesia é muito forte, mas é como eu consigo me explicar, as vezes eu sinto que
tudo pode ser poesia, eu acho que isso ainda é muito frágil como justificativa. Mas é
uma dramaturgia, uma encenação que é meio poética. Eu ate estou chama a Beth
Mescuri para assistir outros trabalhos que estou fazendo, porque ela fala isso. Ela
fala que os trabalhos da trupe, eu acho que esse trabalho do dentro.... porque ele
ela fala? Ela foi assistir um outro trabalho, desterro, e ela não gostou. Desterro foi
um convite do SESC Consolação pra poder fazer um trabalho que tenha a ver com
terror. que queria falar sobre terror, mas eu tenho a ver com terror, mas como estava
num período de me desafiar, aceitei fazer e eu tinha um mês e meio para fazer o
trabalho. Era uma intervenção e acabei por dirigi um espetáculo em um mês e meio.
E eu preciso de tempo pra fazer. Aí chamei a Beth e ela foi assistir. Ela falou varias
coisas... uma das coisas é que no desterro ela percebia um simulacro, uma não
verdade, o texto dito de uma forma que.... em tudo, ela percebia isso. E nos
trabalhos da trupe ela percebe um ato presente no dizer, uma vida no dizer, uma
verdade por mais que seja teatro. E eu acho que nos trabalhos que eu faço é uma
busca minha, porque a primeira coisa pra mim é o ator, eu busco essa verdade.
Quando digo verdade eu estou falando de um jeito dele, não de um jeito de como
alguém faz, mas o seu jeito. Esses dias na fabrica, teve uma pergunta e uma menina
lá que respondeu, ah são todos os sentimentos. A pergunta acho que era, de onde o
silencio nascia, e uns diziam da tristeza... e eles começaram a falar de sentimentos
e ela falou, ah é de todos os sentimentos. Eu falei não, e o seu qual que é? não, é
todos os sentimentos. E eu falei você não está entendendo, jogando com ela, presta
atenção, eu estou falando da sua imagem, e você está respondendo, você está
querendo ter uma resposta que explica a pergunta. Não dando uma resposta. Ela
falou que não estava entendendo, e eu disse, olha, quando eu faço a pergunta
imagina uma pedra, e você é um poço, quando a pedra cai no poço o que acontece?
Ah, ela faz umas ondinhas. Então colhe uma ondinha dessas pra quando eu te
perguntar você vai colher. Pedi pra fecha os olhos e refiz a pergunta. E ela demorou
pra responder. Dai falou medo. Ah tá, então essa é a sua imagem, não é todos os
sentimentos, é a usa imagem. Você percebe que você estava fora e eu precisava
217
que você encontrasse dentro a resposta. Então eu acho que eu habito esses
lugares. Porque foi o que a Lídia ativou em mim, como gatilho de potência.
JJ: consegue perceber algum elemento presente como marca de suas encenações?
AM: me falaram isso. Mas isso foi na fabrica de cultura, eu identifico isso sim. Eu
dirigi três espetáculos e uma mulher assistiu e chegou assim, emocionada, ne, e ela
falou assim: nossa, é tão bonito que nossa senhora está nos seus espetáculos. E eu
fiquei com aquilo na minha cabeça. Porque o único espetáculo que tinha a tal da
nossa senhora, era um espetáculo sobre Luiz Gonzaga. Onde ela está vendo essa
nossa senhora, aí eu fiquei com essa pergunta na cabeça e fiquei tentando caçar. E
num é que era verdade? Num espetáculo era a nossa senhora, no outro espetáculo,
era uma criatura que tinha mais de quarenta saias... mentira, não era essa, era outra
menina que pegava o bebe e cantava, pra ela era a imagem de nossa senhora. E no
terceiro espetáculo era iemanjá, eu trabalhei a figura da sereia. e no quarto
espetáculo que eu já estava buscando eu trabalhei com a mãe noite. E nesse
espetáculo que agora estou dirigindo já surgiu pra mim, a Iansã, que é a senhora
dos ventos... porque eu estou trabalhando com a palavra e o vento. E no cordel a
Priscila fazia o rio são Francisco. Então eu acho que quando ela fala da nossa
senhora, é da matriarca, esse poder muito forte nos espetáculos. No dentro, por
exemplo, a Priscila desce do ônibus. Desce e fica pelo caminho, só que no final ela
reaparece como uma cheia de bexigas, varias bexigas de gás hélio, era uma
imagem linda de uma mulher esperando a gente. E eu trabalho com muitas
mulheres, eu tenho um jeito muito feminino não de dirigir, mas de conceber os
espetáculos. Mas sinto que na direção eu sou muito masculino, sou muito rígido,
talvez seja preconceito achar que a mulher não possa ser rígida. Mas é essa figura
de uma mulher, uma mãe, uma figura feminina que atravessa e aparece no meio do
espetáculo.
JJ: quais teorias ou linhagens você percebe como recorrente no seu processo?
AM: acho que o Bachelard, a Lídia Zózima...eu sinto que sou muito poroso, como
tem muito conversa, os meus aprendizes me mandam músicas, me manda... eu
218
ouço tudo e sinto que dialogo com tudo, com o tempo, a expressão que o outro traz,
colhe. Quando a gente fala de teoria, como que a gente utiliza na trupe? A gente tem
um jeito que a gente nomeia de conversações, em quase todos os nossos projetos a
gente convida pessoas para essas conversações e essas pessoas trazem as suas
teorias, traz um monte de coisa... a gente não vai ler e estudar um livro, vai chamar
a pessoa que escreveu para conversações. A gente tem outro que é partilha de
vivencias. Ah o grupo que está pesquisando alguma coisa, vários teóricos ou fez
uma vivencias tal, a gente chama esse grupo para uma troca. E o ultimo são
carpintarias aí são oficinas. Convidamos pessoas para fazer oficinas com a gente.
Eu acho que nesse encontro com o outro que se dá a nossa trajetória, mais do que
pegar um livro e dissecar um livro e apontar as teorias, e aí, claro, vários teóricos,
varias teorias, vários filósofos vem através do olhar e vivência do outro.
JJ: qual a principal diferença que você percebe entre a caixa cênica e o ônibus?
AM: o encontro com o público. Eu acho que a principal diferença é essa. O palco
italiano eu lido de uma outra forma com o público. Essa coisa de olhar nos olhos isso
de verdade é muito foda de lidar com isso no ônibus. Como ator sabe, você olha pra
pessoa e ela não está curtindo seu trabalho, a pessoa está chorando com a cena...
como você lida com isso? Essa lida com o outro, no ônibus, isso não tem... o
símbolo do ônibus... o que o ônibus faz...
JJ: você falou como ator, mas e como você como diretor, como percebe essa
relação?
AM: eu acho que é uma escolha. É uma escolha de aprofundamento desse ônibus
como espaço cênico, nessa dialogo com a cidade. Eu percebi na trajetória que a
cidade precisa de um trabalho como esse. A cidade precisa de alguma forma
desconstruir essa imagem de dureza. E esse trabalho contribui para isso.
JJ: Quais são as dificuldades principais que você poderia elencar na utilização desse
espaço não convencional, no caso o ônibus, ao desenvolver um espetáculo teatral?
AM: Deixa eu te fazer uma pergunta: você tem quantas perguntas ainda?
Jj: algumas.
AM: então a gente pode deixar pra continuar na segunda, porque eu preciso sair as
11:40.
JJ: claro sem problemas. Então a gente dá uma pausa aqui e voltamos na segunda
às 10?
JJ: até lá então. Bom fim de semana e obrigado. Nos vemos na segunda-feira.
AM: eu acho que é uma parte da cenografia. Eu acho que vai além. Ônibus permite
outras possiblidades de cenografia, a cidade pode ser a cenografia junto com o
ônibus, a gente cria uma cenografia para o ônibus, então a gente e cria uma
ambientação para o ônibus, mas é uma parte, a outra pode ser a cidade... a cidade
pode ser a cenografia, no sentido da arquitetura, mas também do que está
acontecendo na cidade, a luz da cidade, se é de dia ou de noite, se passa um carro
220
de policia, uma ambulância, as pessoas... tudo isso que é meio imprevisível, mas
também tem uma parte previsível, quando a gente escolhe passar pela cracolândia,
existe ali algo, uma atmosfera que a gente busca. A cracolândia é um lugar onde
não se transita, não transitam cidadãos. Você vê pelas imagens na TV, tem os
médicos, assistentes sociais, os próprios familiares em busca de pessoas, são
centenas de pessoas. E o nosso ônibus adentrava a cracolândia e era uma
sensação muito forte porque parece que você está entrando num umbral, sabe? E
para passarmos eles tinham que dar passagem, a gente não conseguia passar sem
ajuda deles porque era muita gente na rua. E é uma imagem muito forte, como se
você estivesse entrando dentro de um corpo humano, de um lugar que você não
teria coragem de entrar sozinho e o ônibus te leva para esse lugar. Mas tem... é que
quando você fala em cenografia eu penso nessas imagens que alteram o que está
sendo dito, o que está sendo comunicado, ou que potencializa, ou que desloca. Eu
sinto que o ônibus, por ser esse lugar que a gente... eu escrevi uma frase, vou pegar
aqui... quando eu fui fazer a minha travessia, no deslocamento de 12 horas, eu
escrevi uma coisa aqui que me ajuda a explicar: o oficio do dia não acolhe o homem,
nem acaricia o cidadão saudoso do colo da mãe. Por essa razão é que ele dorme no
balançar dos ônibus, nas histórias de ninar que as janelas contam quando passam
pelas rugas da cidade. Ele se torna semente. O ônibus, útero gigante. O que estou
querendo dizer é que o transporte público, o ônibus, o metro, o trem... eu acho que a
gente em uma coisa ancestral que ativa no corpo um lugar de memória, de hibernar
de devaneio. E eu acho que isso também ativa outros cenários que aí eu não tenho
acesso. São cenários que eu lembro de pessoas, falando... eu lembro de uma cara
que falou assim rapaz, esse espetáculo, dentro é lugar longe, me fez lembra eu
tomando banho de tanque com a minha avó. E o mais impressionante é que essa
imagem eu não tinha. Ele não tinha vivido, ele não tinha acessado essa imagem,
não tinha empoderamento dessa imagem. Eu achei tão bonito ele dizer isso, porque
de alguma forma, o espetáculo, o encontro com ele fez revelar essa imagem. Então
quando você fala de cenário, eu acho que tem tudo isso. Mas tem outra coisa... acho
que era isso esqueci.
JJ: você como diretor como você se relaciona com o espaço no seu processo
criativo?
221
AM: Eu sempre meto o bedelho em tudo. Então a luz, o cenário, o figurino... não tem
essa coisa de uma pessoa que faz, a trupe sempre fez, depois convidei pessoas
para melhora o que a gente já fazia, mas pra mim isso é muito importante. Uma cor,
uma textura, pra mim é muito importante. Pra mim o ônibus não pode estar
bagunçado. Eu tenho esse lugar do ônibus... como uma casa, a gente come, bebe,
já dormi no ônibus... a gente chora a gente rir... as vezes eu penso que o ônibus,
essa imagem do útero, muitas vezes a gente não está me movimento com o ônibus,
na direção, então parece que a gente está em um lugar outro, quase como protegido
ali, e é nosso o ônibus, então tem muita diferença isso. Quando a gente foi para o
transporte público, eu me sentia como visitante, eu me sentia que estava na casa de
alguém, mas era alguém próximo, não era de alguém eu não conheci. Era alguém
que eu conhecia. Acho que a imagem da casa, por causa de Gaston Bachelard, que
traz a poética da casa, os espaços da casa como a casa do ser humano... tem duas
perguntas que eu faço, em oficinas e encontros com as pessoas no nosso ônibus:
até onde o ônibus poderia te levar? Essa é uma pergunta chave que a gente faz com
varias pessoas, uma resposta vai interferindo na outra. Então a gente já colheu
imagens belas como ir para o coração da minha mãe... para uma saudade antiga....
e a outra pergunta é: o que o ônibus poderia ser que não um ônibus?
JJ: Essas perguntas são recorrentes para você quando vai montar um espetáculo?
AM: espera vou pegar uma coisa aqui para ler para você... não achei. As perguntas
foi uma coisa legal, porque eu estou fazendo um processo de um trabalho e a
gente... Estava muito confuso pra mim a figura de um personagem, porque a gente
estava com a ideia de trabalhar um personagem era... são trem atores, uma a triz e
dois atores, uma é a cidade e a outra é a rua e um cara que eu não sabia o que era.
E aí, tinha uma figura de pai mãe e filho, sabe, mas eu queria saber essa imagem
alegórica e tal. A gente tinha marcado um dia que a gente tinha que saber pra
continuar se não dava pra continuar. E aí, eu... eu tenho muito isso pra mim, eu não
consigo planeja os encontros, as vezes eu planejo algumas coisas, não é sempre.
Planejo, mas os melhores é quando eu não planejo. Aí eu não sabia como ia fazer, a
gente começou a conversar e daqui a pouco eu comecei a anotar um monte de
222
JJ: mas em relação ao espaço, você vai para o espaço antes e fica lá viajando no
espaço?
AM: fico, fico... eu converso com o espaço. eu converso, pergunto, busco respostas,
mesmo antes de ter o ônibus.
JJ: quais são os principais desafios que o espaço impõe ao diretor deferentemente
da sala?
AM: eu acho que uma das grandes dificuldades é que a imagem que se cria, a
direção que se cria, ela é sempre... não existe o espaço nu, eu não tenho essa
limpeza, esse quadro em branco. Eu não consigo ter isso no ônibus. Eu sei que
estou num lugar de muitas informações. Eu acho que essa é uma das grandes
dificuldades, tanto pra direção quanto pra atuação, quanto dramaturgia... já tem
muita coisa ali dentro. Só o público inteiro dentro da cenografia, o público está
dentro. Então não tem uma imagem limpa, sozinha. Pra construir esse lugar da
223
ausência da solidão, do vazio, ele é sempre uma busca com ator, ele precisa evocar
emanar esses espaços internos e trazer os passageiros junto dele, porque eu não
tenho esse vazio. Num sentindo mais técnico da direção de imaginar o espaço.
agora existem muitas dificuldades, você tem a dificuldade do barulho, então não tem
o silencio e os espetáculos tem muito silencio. De você poder construir... isso
também demorou entender... no transporte público... hoje eu estou bem cansado...
todas as vezes que a gente ia explicar as pessoas que fazia teatro no ônibus, elas
não compreendiam, isso sempre foi tão difícil...mas a gente também deixa tudo meio
complexo porque casa hora a gente faz uma coisa também, então fica difícil deles
compreenderem. Ah, mas o ônibus vem, e é fora do ônibus? Sempre muitas
duvidas. E por mais que eu sanasse todas as duvidas sempre tinha uma surpresa.
Ai a gente falava, nossa a pessoa não compreende. Então era muito difícil as
pessoas entenderem o que a gente fazia. No sentido da comunicação de dizer o que
a gente fazia, mandávamos fotos, vídeos...e era muito difícil. Muito difícil também
das pessoas irem, os críticos, a classe artística... era difícil convencer as pessoas de
ir. Esse ultimo espetáculo, os minutos que se vão com o tempo, as pessoas não
foram, e tudo bem porque o espetáculo não foi feito pra ela, foi feito para o
passageiro que estava por lá. Mas um dia eu me fiz uma pergunta: se uma pessoa
me dissesse que faz teatro num ônibus e o que eu imaginaria. Eu fiz esse exercício.
Tentei limpar todas a imagens da trupe vem desenvolvendo e tentei imaginar o que
o outro imaginaria, e eu fiquei tão decepcionar, porque é muito horrenda a imagem
que vem, nossa é muito feia a imagem de um espetáculo no ônibus, porque você
tem a imagem do ônibus lotado, da violência, do cansaço, do vendedor ambulante,
que é ela que nutre o nosso imaginário. E o que a trupe faz é muito diferente desse
imaginário. Eu consegui ter uma clareza. Pra mim foi bem importante pensar nessa
imagem, porque comecei a lidar com a imagem que os outros tem do espetáculo
que nunca viu, pra de alguma forma desconstruir.
JJ: de que maneira você trabalha a realidade tangível do espaço com a realidade
ficcional da obra que você está criando? De que modo a realidade interfere no teu
espetáculo?
224
AM: a primeira coisa é que eu não tento negar essa realidade tangível. Eu acho que
tem uma coisa que a Lídia ensinou pra gente, e que é muito difícil da gente aceitar, é
a nossa luz e sombra. Essa coisa humana que é muitas coisas, não é só uma. Essa
coisa de você se achar santo, ou achar que o outro é só demônio, não cola. Então a
primeira coisa é trabalhar com os atores esse aqui agora, e se o ônibus parar, se o
ônibus quebrar, se o ônibus bater, se o outro chorar... eu vou jogar com isso. Eu
jogo o tempo inteiro, é uma busca. É o aqui e agora, o momento presente. Talvez
seja não negar esse dispositivo. No cordel tem essa tentativa de como fazer com
que o público perceba algumas coisas sensorialmente, como, por exemplo, o
começo e o fim do espetáculo. No cordel a gente tem essa inserção do ônibus que
vai começar. Tem um prólogo que a gente faz com o ônibus parado e prepara o
público para o começo da história que é também o momento em que o motor do
ônibus é ligado e o ônibus inicia a viagem pelo roteiro que vai trafegar. O mesmo
acontece com o fim da peça que é no instante em que o ônibus estaciona no mesmo
local de partida e desliga o motor pela última vez, marcando o fim do espetáculo,
que não é apenas uma percepção visual, mas uma percepção sensorial. No Dentro,
a gente encontrou uma praça que era circular aonde o público estava dentro do
ônibus e o ônibus ficava girando em torno dela e as portas do ônibus abriam e os
atores entravam e saíam e representavam dentro e fora do ônibus. E é uma cena
linda, porque parece que você está dentro de um filme, de uma memória, porque vai
ativando as suas memórias, vai ativando o espaço, vai ativando um outro estado de
recepção para o público. O segundo ponto é perceber o poder que o artista tem em
evocar mundo, em pegar na mão do outro e transportar ele. Pra mim quem
transporta o público não é o ônibus, são os atores, mais do que o ônibus. Isso é o
que a Lídia ensinou pra gente, esse poder de criar uma atmosfera de transformar o
instante. O ônibus é realidade, mas a gente transforma essa realidade em outras
realidades, o poder do imaginário da imaginação. Acho que a gente esqueceu isso,
a gente está muito real, muito matéria, muito concreto, estamos fora da energia,
desse invisível que existe. A gente só acredita do que ver. Então é perceber esse
poder que o artista tem.
AM: eu acho que não. Acho que é 50 %, se um ator deixar ele se impõe. Ali é uma
tomando do outro, é um parceiro. Ah se passou uma moto eu silencio, ano vou
negar. Depois é a minha vez. É esse diálogo constante com o ônibus... que eu acho
que não é... mas é um risco, é um jogo. No transporte público tiveram momentos
que o ônibus engoliu a gente. E teve outros momentos que a gente engoliu ele, mas
eu também não acho que engolir o ônibus é bom. As vezes é necessário, mas eu
acho que o melhor é 50 50. É impossível neutralizar ele. Quem neutraliza é o público
não a gente.
AM: eu responderia que não, a principio, porque eu venho percebendo nas fabricas
de cultura, que o meu processo de criação é parecido, independente do ônibus. Ele
se modifica com a relação com o público. Com a relação que o público vai receber.
Eu responderia isso, mas é mais complexo. Acho que vou entender melhor isso mais
pra frente. Eu acho que quando eu começo a criar eu não estou pensando do
ônibus, eu não estou pensando no público ainda. Eu estou pensando o que que a
gente precisa dizer.
AM: a gente tem muito contato com o público. Isso é muito diferente do palco
italiano, mesmo. No palco eu não sei quem está entrando, eu não sei se a pessoa
está gostando, se a pessoa chorou, se sorriu, se sorriu sim porque faz barulho, mas
eu não sei. E quando termina geralmente a pessoa vai embora sem você vê. No
ônibus não, a pessoa entrou eu sei, estou vendo que ela chorando, rindo, estou
vendo que ela não tá gostando... Estou vendo que ela está encantada... e quando
ela vai embora ela vai passar por mim, eu estou com ele ali o tempo todo.
Geralmente eu percebo um dado de muita curiosidade, de muito entusiasmo. As
vezes eu sinto que quando as pessoas vão para o palco italiano não tem muita
novidade, é aquela cadeira, as vezes está acontecendo no palco e isso me desperta,
as vezes não. Às vezes tem a cenografia que eu vejo... mas o ônibus desperta
outros sentidos, não é só o da visão. Eu estou tocando, eu vejo aquele encontro ali,
ai eles pegam nas cortinas, ai sentem o cheiro da mexerica que estamos
descascando, as vezes comem a mexerica porque a gente dá uma mexerica pra
eles comerem, no Cordel, por exemplo. Liga o motor ele tá ouvindo as coisas fora...
Eu sinto que ele tem essa curiosidade e um certo entusiasmo mesmo, o que que vai
acontecer, onde a gente vai? Sabe essa coisa que quando a gente vai para uma
227
excussão, acho que tem essa memória da excussão, que hora que vai sair, onde vai
passar, se andar se não anda... eu sinto esse entusiasmo. Claro que tem gente que
não gosta, que não consegue ouvir o texto...tem vários problemas não é só
vantagem, tem muitas desvantagens também. Mas na grande maioria tem esse
entusiasmo. Muitas pessoas dizem que o ônibus é uma experiência. Quem nunca
assistiu um espetáculo no ônibus, isso é uma experiência por si só. A gente está
num lugar de risco o tempo inteiro, você está exposto a alguma coisa acontecer. E
temos sempre que pedir para que nada aconteça, porque isso pode ser o fim de
uma trajetória.
AM: eu acho que ele interfere na recepção, não são todas as cenas que consigo ver.
Eu preciso as vezes me mexer... Eu sempre trabalho com planos médios e altos,
porque no baixo quase você não se vê. Eu acho que ele opera desse lugar da
viagem, do movimento, ou da expectativa do movimento de se locomover, da
curiosidade... acho que é por aí.
JJ: tem um momento bonito que você descreveu que é quando o ônibus para no
Cordel e faz todo mundo esperar e isso deve ser muito legal para o público
vivenciar.
JJ: tem um teórico do teatro que diz que somos todos convidados do espaço, você
concorda?
AM: eu concordo, porque mesmo o ator que conhece o lugar, dialoga com o lugar e
sabe o que vai fazer... ele não sabe como o público vai lidar com o espaço. isso é
uma surpresa, não é com o espetáculo, o espetáculo é obvio, mas com o espaço é
outra surpresa porque logo que ele chega ele é arrebatado e agente já vai lidar com
ele nesse lugar que os criadores não sabem o que esperar deles. O público no
espaço ele é tomado, ele é convidado e para o ator isso é uma novidade...se ele
228
JJ: você foi convidado para adaptar algum espetáculo para o teatro convencional?
AM: já e não aceitei. Porque o nosso espetáculo é feito no ônibus, existe toda uma
concepção, uma pesquisa, uma investigação. Ele é uma coisa no ônibus e fora dela
eu nem sei o que seria.
229
JJ: diante de tudo isso, a gente pode afirmar que o trabalho site-specific modifica o
trabalho metodológico do diretor?
AM: o trabalho da concepção cênica sim. Pra mim quando você fala em trabalho
metodológico, não sei porque, sempre me vem em duas partes. Me vem o trabalho
de construção... eu sei porque está me vendo isso, porque depois eu me tornei
diretor eu não trabalho mais com texto pronto, eu sempre trabalhei... e como eu
sempre gostei do trabalho do ator... então pra mim o processo esta dividido em duas
partes: uma é essa construção dramatúrgica e o entendimento do que a a gente vai
dizer, quem somos... e a segunda parte é a direção dessa fabula no ônibus. Ai
sempre que você me pergunta eu fico, sim, não. Porque essa construção da fabula,
que também trabalho nas fabricas de cultura, ela é muito próxima do que faço com
os atores da trupe. Quando eu vou pensar no espetáculo após a construção dessa
fabula ai tudo se modifica, tudo se transforma.ai eu sempre penso nesses dois
lugares.
JJ: vamos partir de uma hipótese: se agente convida um diretor que sempre fez
teatro no edifício teatral e pra fazer um espetáculo num site-specific, o ônibus, tu
achas que esse espaço vai modificar o trabalho metodológico dele?
AM: eu acredito que sim, que vai modificar. Quando a gente fez a segunda mostra
de teatro no ônibus, a gente convidou grupos para fazer teatro no ônibus, então eu
dei algumas oficinas e fiquei perto deles não para modificar o trabalho, mas pra
alertar algumas coisas e poder passar a experiência que eu tinha com o ônibus.
Tinha um trabalho que utilizava muito chão...isso é uma coisa superdifícil porque o
ônibus está vazio, e pode ser parecido com o palco italiano. Só que ele não vai estar
vazio, vai estar cheio de gente. Tem imagens que você está construindo que não vai
funcionar. Como eu dirijo muito tempo no ônibus eu sei que não funciona. E ai eu
dizia cuidado que a imagem que vocês estão construindo so quem vai ver é quem
está voltado para o corredor, quem está nas outras laterais não veem. Ai eles se
dava conta e tinha que modificar a cena. Mas quando você fala, ah, vai modificar os
procedimentos metodológicos, eu não sei se os procedimentos, talvez uma parte. eu
não sei se os meus procedimentos são específicos do ônibus, eu acho que ainda
230
sou novo pra saber disso. Eu não sei ainda. Agora eu vou dirigir um espetáculo
profissional fora do ônibus, e eu não sei se os meus procedimentos são exclusivos
do ônibus, para o ônibus. Alguns sim, mas sinto que são procedimentos pontuais.
AM: voz. Como direcionar a voz. Como pensar a voz mesmo de costas para o outro.
Eu vou manter e acionar uma outra emissão dessa voz que abarque essa percepção
do espaço. eu acho que são coisas bem pontuais. Eu digo isso porque a trupe faz
ponte com varias outras coisas, e talvez o ônibus seja uma ferramenta para isso. A
voz, mas também o olhar, o jogo. Então por exemplo, eu nunca vou fazer um
espetáculo inteiro voltado pra você, vou olhar para o público, considerando que
todos são personagens, porque me interessa dialogar com o público. O público sabe
que a gente está junto. Isso é uma coisa que a gente faz bastante... como abarcar a
entrada do público, coisa que pouco acontece no palco italiano, eu sempre cuido
dessa entrada. Coisas que o ônibus traz... Mas sinto que é meio a meio. Sinto que
existe uma parte do procedimento que ônibus interfere muito, mas tem outra parte
que é o arroz com feijão de qualquer trabalho que você vai fazer, na rua, no palco,
que você precisa passar por essas coisas.
AM: eu acho que tem uma coisa que a gente vive hoje, que é o momento de uma
terra muito voltada para o intelectal, onde todo mundo tem que ter mestrado,
doutorado... precisa do diploma.... o saber do dia a dia vem sendo muito
desprezado. Então por essa razão vale mais o papel do que o gesto, a ação. Então
vale mais a teoria do que a pratica. Então você tem uma exigência de uma escrita de
projeto que são mestrados. E vale mais o discurso daquilo que eu conheço, o cara
quer ver o como você consegue defender o que você quer fazer por todos os
pensadores... pensadores que eles conhecem. Porque quem são os críticos, as
bancas que vão escolher, também são pessoas que conquistaram esse lugar,
porque a gente também escolhe essas pessoas para escolherem esses projetos. E
quem não tem isso? Quem não tem essa bagagem? Por exemplo, na mostra de
231
teatro a gente colocou, a gente abriu um edital pras pessoas se escreverem, mas a
gente colocou a opção, olha se você não quiser se inscrever, você pode agendar
uma entrevista e você diz pra gente o que você quer fazer. E a gente selecionou
gente que disso pra gente que disse pra gente o que queria fazer no ônibus. E não
existe essa possibilidade nos editais, não existe essa possibilidade da oralidade dar
conta. E é tão foda, porque o que é a oralidade, o que se percebe com a oralidade?
Se percebe tantas coisas, se emana tantas coisas que não cabem no papel. Então a
trupe passou por esse lugar ter que aprender a fundamentar, desse lugar mais
técnico... a nossa escrita é mais poética... agente ainda sofre um pouco por causa
disso. Mas a gente vem enfrentando esse desafio. Agente vem lendo, escrevendo, a
gente vem aprimorando para que a gente também possa escrever sobre o que a
gente faz. Para que as pessoas saibam o que a gente faz pelo nosso jeito de dizer.
Mas por enquanto ainda é esse lugar do mestrado para você conseguir uma verba
para fazer seus trabalhos.
AM: Claro. Me pede tudo isso por e-mail que eu me organizo e te mando, mando
sim.
JJ: Muito obrigado pela colaboração. Eu vou tentar ver o que consigo filtrar dessa
nossa conversar, porque tem muito material. A gente vai se falando para trocarmos
mais materiais e experiências.
DP: Eu sou Diego Pinheiro, artista da cidade de salvador, e estou autorizando o uso
da minha imagem para José Jackson com foco na investigação dele de doutorado.
DP: Meu nome é Diego Pinheiro, eu sou artista aqui de Salvador e eu comecei a me
interessar por arte muito cedo. a primeira expressão artística foi a escrita e até hoje,
tudo que eu faço, tem uma ligação com a escrita, é como se eu quisesse dar mais
potencialidade às palavras, mesmo quando minhas obras não usam da palavra.
Então a minha primeira impressão da escrita foi logo quando aprendi a ler e escrever
eu começava criava narrativas, tinha um caderno de histórias que o mesmo
inventava, engraçado que eu não cuidava do caderno, eu tirava a folha do caderno,
dobrava, e botava numa prateleira, até que meu pai viu e fez uma caixa de madeira
233
sai, correr atrás, saí buscando, chamei todo mundo para conhecer o espaço. Aí, eu
dirigi a cena em dois espaços naquele corredor, era no subsolo de lá, então foi um
corredor que é central e onde antigamente os monges faziam as refeições. Então
botava o público na mesa, tinha relação com a mesa, os atores subiam na mesa,
tinha toda aquela coisa, janelas... Então ali entendi que estava pronto pra começa,
agora que eu dirigir duas cenas, que era mais ou menos 30 minutos, juntando as
duas peças, vou fazer uma peça de uma hora e quinze, uma hora e meia. E foi essa
a experiência. Aí eu fiz Arbítrio e me toquei que a relação com a casa E aí que
imitou quem que é essa relação com a casa era muito é muito importante, não era
qualquer espaço, comecei a me tocar e fazer relação com as casas que eu tive
acesso, com essas que eu vivi, por exemplo, tanto Arbítrio, que foi a primeira peça
que dirigir, quanto Oroboros, que foi a minha formatura em direção teatral, foram
dentro de casas diferentes e todas elas porque eu tinha que o máximo de referência
que tinha uma casa bonita na casa de minha bisavó, e todas essas casas era no
começo do século 20, tanto casa preta, dos anos 30, quanto esse prédio que hoje é
o que o Cria Cura, que antes o Antuac e que agora é o Criacrua, que é um centro de
artes sustentáveis, algo desse tipo, é uma casa do começo, pelo menos primeira
metade do século 20... e minha bizavó morava numa casa assim, então minha
referencia de uma casa, mais bonitinha, mais arrumadinha era essa, porque a minha
casa era de madeirite, a casa de minha avó era de madeira... é claro que com tempo
minha avó, com os filhos dela, conseguiram que ela tivesse a casa de alvenaria
antes deles, mas eu vivi até meus... até quase entrando na faculdade, os dois anos
antes de entrar a minha casa era madeira, aí agora já é de alvenaria bonitinha, a
casa dos meus pais. Então essa coisa com a casa sempre me chamou muita
atenção e agora, minha última peça, está sendo na casa de madeira, na casa de
madeirite que é Quaseilhas. Quando você fala em métodos, eu não falo exatamente
em métodos de trabalho dentro desses espaços, mas eu tenho um processo inicial,
por exemplo, que me identifiquei com todos esses espaços, inclusive com
Quaseilhas, que foi, antes de começar qualquer coisa de montagem bota a equipe
lá, etc., eu passei um período na casa sozinho. Por exemplo, na casa preta, eu
dormi na casa da Preta durante um mês, assim, esporádico, não todos os dias e
fiquei lá dormindo sozinho... terminava a aula da faculdade e aparecia lá, ficava
olhando, ficava só andando pela casa, e aí passava a noite lá, eu levei um colchão
236
travesseiro, fiquei dormindo lá, isso sem ou donos saberem, eles só tinham alugado
para peça e para ensaio, mas pra dormindo não. Mas eu ia nas entoca, eu queria
absolver, entender a coisa espacial, subindo no sótão, para saber as potencialidades
que aquilo ia me dá... No Criacura a mesma coisa, embora fosse outro sistema, eu
pegava a chave e ficava perambulando pela casa até tarde da noite. Então, antes de
todo mundo chegar, eu organizar uma vivência. Quando Eric terminou de levantar o
meu barracão, também fiquei lá sozinho no barracão de Quaseilhas. Engraçado que
agora também eu fui chamado para dirigir uma performance de 20 a 30 minutos e
que também é num espaço não convencional, que o Quati, você conhece? É um
espaço incrível de arquitetura... é na ladeira da Misericórdia, tá abandonado, aí uma
equipe de filme viu minha peça, e me chamou para dirigir com eles uma
performance para eles filmarem para esse filme, que é um filme meio arte, pra uma
galeria não sala de cinema. Eu fui lá de novo com esse mesmo procedimento, foi
dois dias sento e fico ... Ai quando essa equipe chega, geralmente tem um trabalho
que une todo mundo, numa grande improvisação, eu vou direcionando, As pessoas
falam que eu fico falando baixinho no ouvido dos atores... às vezes aponto algum
lugar que me parece interessante, eu vou indicando, experimentando esses
espaços. Ou seja, tem um primeiro momento de experimentação eu sozinho, assim
de viver o espaço de entender qual é a performatividade que tá escondida nele, qual
é o caráter cênico que está escondido nele. Ou seja, para mim, todo espaço tem
uma performatividade tácita escondida, oculta, mas tem. É claro que no caso da
caixa cênica, como ela é protocolar, por assim dizer, você tem aquele equipamento
todo para usar, não tem nada oculto, você sabe que vai encontrar minimamente,
nesses lugares não. Então eu vou no sentido de capitar qual é a performatividade
escondida, aí depois eu organizo varias sessões de improvisações, a depender do
que é a obra, então essas improvisações oscilam, não faço nada meio ligado à
dramaturgia composição de personagem, mas ligadas a jogos. Dessa vez eu boto
uma música que os músculos da peça entra muito som, e os atores, os
performances, passam por uma espécie de concentração e depois dou os pequenos
textinhos, ou eles chegam com uma proposta de performance fazendo improvisação
grande, às vezes essas improvisações duram duas horas, 3 horas, durante o
processos inteiro, aí no final eu vou escrevendo coisas, anotando os espaços que
eles estão usando, as imagens que provocam... no final eles terminam escrevem
237
DP: Se você falasse assim, Diego, por onde você começa uma dramaturgia, eu ia
dizer assim pra você, pelo nome, nome aparece primeiro que o conceito. Mas
geralmente eu não me interesso em montar meus textos, ele é exatamente um é
espetáculo, é somente um texto. Já o espetáculo, ou seja, a experiência que isso vai
ter, a experiência realmente eu não sei por onde começa ou como isso começa, por
que as coisas se confundem muito. De maneira objetiva eu poderia dizer para você,
a peça começa quando eu passo no edital. Mas antes do edital, eu não escrevo
nenhum edital, se você for ver Arbítrio é de 2008, Oroboro de 2013 e Quaseilhas de
2018, eu não preocupo em ficar montando todo ano, monto quando a coisa aparece.
É claro que durante esse meio tempo eu contribuí com algumas coisas para o Teatro
base, eu não sou autor das obras do teatro base, eu autor de Arbítrio, não sou autor
das outras obras. Então, a bunda Simone que foi uma cobra que dirigia, por
concepções Gerais, eu só estava como alguém que está direcionado, está lá Diego
238
diretor, não autor. E foi a única peça num edifício teatral. Então a forma como esses
espetáculos começam, geralmente, acho que ela surge de uma motivação, porque,
assim, eu não eu não tenho interesse em temas, não me interessa por temas, talvez
quando eu comecei a fazer eu falar assim, não é árbitro é sobre liberdade, mas é
aquela ingenuidade toda, liberdade é muito amplo, de que liberdade você está
falando. Montei a peça dizendo pra todo mundo que estava falando de liberdade, e
pra afirmar a liberdade eu estava criando uma encenação de cárcere. Não diz nada,
é melhor eu dizer que estava querendo experimentar uma peça longa mesmo, que
experimentei esses textos e organizei a partir disso. Mas eu não trabalho mais sobre
temas, nem sobre conceitos, porque conceito, eu gosto de conceito enquanto um
pensamento poético, mas eu acho que não é algo que fundamenta uma obra minha.
O que existe, para eu criar uma obra é uma motivação independente de onde ela
seja, é uma motivação para, né? Então, por exemplo, para te dar um exemplo, em
Quaseilhas comecei investigando o tempo como materialidade cênica. O genocídio
dos jovens negros, por exemplo, me toca muito, eu perdi amigos, eu quase morto...e
então eu estou agora com 32 anos, fiz 32 anos, recentemente, isso é que é um
privilégio. Não privilégio porque todo mundo tem que viver, é obvio, mas se você
pensar da periferia é uma sobrevivência, você acabou sobrevivendo, a media é de
25 anos. mas é um tema que me toca, mas eu nunca vou tratar isso como tema, a
minha motivação vão ser meus amigos, não é qualquer um. Não é o genocídio da
juventude negra, é Tiago que era meu amigo, é kinho que foi assassinado, foi Val
que era um era mestre de capoeira com 20 anos, que foi assassinado e não era
ladrão nem nada. Todas essas pessoas são meus amigos e foram assassinada,
essa seria a motivação. No caso de Quaseilhas foi parecido porque eu estou com a
investigação sobre o tempo como materialidade cênica, divagando sobre isso, e
essa questão da casa, da memória, sempre povoa as minhas obras. Então eu
acabei descobrindo, por exemplo, que o idioma de Iorubá era falado há duas
gerações da minha família. Minha avó falava em Iorubá criança com a mãe, com as
tias, só que elas chamavam de ioruba, falam trocar a língua. Eu fui descobrindo
algumas coisas dessa ancestralidade, acabei descobrindo que a minha família vem
de uma etnia chamada de Ijexá, que é uma cidade nigeriana chamada Quilexa, que
era uma cidade que privilegiava muito as mulheres, ou seja, era uma sociedade
muito feminina, talvez até matriarcal no sistema, tanto que a Padroeira, a rainha
239
dessa etnia é Oxum. Então, engraçado, aqui na minha família é mulher para cacete,
tipo assim, eu sou uma exceção, eu um primo e outro... então sempre nasce mulher.
Eu comecei a tomar isso como motivação e descobrir também qual era a verdadeira
função do Oriki que é uma espécie de identidade oral, em literatura oral, e como
minha família tem uma memória, como a maioria das famílias negras no país, é
vaga, lacunar, eu comecei a escrever um Oriki nessas lacunas. Então a motivação
foi essa, minhas surpresas e as minhas descobertas nesse processo com minha
família, foi a minha motivação poética, não estava defendendo ou falando sobre, por
exemplo, a memória afrodiaspórica como um todo, estava falando da minha
memória diaspórica, ou seja, nesse processo eu sou bem egoísta. Então as
motivações surgem não tem uma coisa que começa, eu posso dizer que talvez o
início de Quaseilhas, o estalo foi há dois anos atrás quando minha a avó começou a
me contar essas histórias, e minha vó não é dada a ficar contando historias, não
tinha o arquétipo do negro velho que conta historia, não tinha nada, não contava
nada, era muito fechada, muito sisuda. Aí quando ela completou 80 anos ela
começou a falar, e falar pra mim, aí fui coletando, escrevendo, gravando áudio aqui
e ali ... e isso foi me motivando a criar algo, vou aliar isso a uma investigação poética
do tempo, que sim, aí eu estou lidando com conceito. Eu tenho as minhas
inquietações sociais, políticas e filosóficas, mas nem tudo isso vira peça. né? Nem
tudo vira obra de arte, vai virar obra de arte, talvez aquilo que tocar muito, como no
caso de Quaseilhas.
DP: Acho que não necessariamente, mas nas minhas obras sim. Estou falando
muito de mim. Independente se tem personagem ou não, se é uma performance ou
não, se ê só um ator sentado, independente disso, todas foram sobre mim, todas,
Arbítrio, Oroboro, Quaseilhas... todas essas obras estão sempre falando de mim. O
ato do artista se voltando para si mesmo não significa que a obra se tornar
hermética, que a obra se torna fechada, muito pelo contrário, eu acredito que a
partir daí eu tenho uma abertura fenomenal, eu posso, a partir de voltar para mim, e
eu na verdade eu não estou fechando um leque, a minha obra é esse leque fechado.
Na verdade, eu estou fazendo uma abertura, olha só tem esse leque aqui, que tem
240
essas coisinhas bonitas e falar sobre essas flores bonitas, e falar dessas flores aqui.
Não exatamente um ensimesmamento, eu acho que é a mesma coisa de você achar
que BASKIAT era ensimesmado, e não era.
JJ: QUANDO DIGO QUE É PERIGOSO, EU FALO QUE TEM GENTE QUE SE
REVELA NA ARTE E NÃO PERCEBE.
DP: Aí é perigoso no sentido de você se revelar muito. Por isso meus processos
demoram muito, em geral são nove meses, em Quaseilhas foi assim e no Arbítrio
também.
às vezes, mais social, às vezes mais ético, acaba atingindo assim nesse lugar.
algumas coisas por exemplo, aí toca no método de direção. Eu costumo não estar
muito querendo produzir símbolos ou signos, eu não sei, muita gente entende signo
como símbolo eu não. Eu acho que signo é uma produção, uma crise, o signo é fruto
de uma crise. Então se ele é fruto de uma crise eu não vou ficar criando códigos
para você ler o que eu estou fazendo. Eu vou jogar aqui uma crise, você vai jogar
sua outra como alguém que tá vendo isso ou experiênciando isso, e vai nascer uma
parada dessas duas coisas, que é isso que eu estou chamando de signo. Ai eu não
sei se a galera da semiótica vai achar isso, mas inclusive, em dialogo com eles, eu
acho que o signo é uma produção. Então eu não fico criando signos, é claro que
dessas crises existem diversas interpretações, que é o que chamam de obra
sugestiva, ne, sei lá, falam isso das obras que eu faço, como se fossem abertas e
você pode interpretar de qualquer jeito. Eu acho que é isso sim, é para se interpretar
de qualquer jeito mesmo, mas não significa que é uma interpretação leviana, a
pessoa vai captar dali, porque está honestamente vivendo uma coisa, e vai chegar
para ela o que tiver chegar. Tinha gente que disse que via Nanã minha peça, eu
não uso o roxo o que é de Nanã, nem Búzios, os figurinos são todos pretos,
entende, é só porque a menina botava uma bacia de porcelana na cabeça e o
chuveiro caía, aí que é uma espécie de coroazinha associou a imagem de Nanã,
com aquela coroa, eu esqueci o nome, mas não era. Agora isso é impressionante,
porque era o oriki falando de minha mãe e minha mãe é de Nanã, ora, está tudo
interligado, e o pior é que eu não pensei na hora. Lembro que quando cheguei para
atriz e falei bota essa bacia na cabeça que parece um guarda-chuvinha... ela botou,
ficou bonito a água caindo, a luz entrando... A mesma coisa de Laís, tinha uma cena
que ela fazia que ela entrava por baixo do pano vermelho e botava um óculos de
lâmpada, e associaram a imagem de um egum, e ela falou assim, como era uma
performatividade da lembrança estava se lembrando da reunião das mulheres da
família dela no quarto quando faltava a luz e ela fica brincando debaixo do lençol.
Então ela começou a criar essas ações físicas a partir dessa memória infantil. Ou
seja, eu não tenho como controlar a leitura da obra da gente, quando eu descobri
que era incontrolável, eu decidi não controlar, eu vou criar uma obra aqui. Então,
algumas leituras eu não tenho domínio, eu não tenho. É claro que eu não vou querer
242
usar símbolos que, por exemplo, machuque ou que o incomodem alguém, isso eu
tome cuidado, mas quanto ao resto não.
DP: Na minha vida sim, nas minhas obras não. Não exatamente de religiões de
matrizes africanas, porque, em arbítrio parte de uma fusão dessa ideia de negro com
a religião cristã dentro da minha família. Mas na minha vida sim, a questão com a
espiritualidade afro-brasileira, a minha bisavó era mãe de santo, minha avó é ekedi,
a minha família com uma certa ancestralidade ligada a casas de axé... a questão é
que eu insistia muito em usar isso como motivação das minhas obras, muito, porque
eu não queria que aparecesse algo folclorizado, queria usar de modo leviano e eu
não queria que aparecesse folclorizado, muito vendido, sabe, tanto que Quaseilhas
era para ser minha formatura em direção, ai por outras coisas, fui orientado a não
fazer, o que foi até bom, sei lá, deixar para fazer agora em 2018, que foi mais
243
maduro e encontrei uma motivação mais consistente. Mas na minha vida essa coisa
da religião e espiritualidade afro-brasileira, na minha filha, sempre foi desde criança,
desde criança.
DP: Sim, não deixa de ser não, sim é uma poética, e eu chamo de não-tempo.
Chamo assim para que não pensem que estou investigando o tempo cronológico,
então coloquei esse não, mas o tempo sempre é qualitativo. Primeiro chamei essa
poética de investigação de “estética para um não-tempo”, não, primeiro chamei de
“tempo estético”, por causo de Oroboro minha formatura em 2013, aí descobri
Oiticica, mas ele fala de outro modo. Então pensei ser melhor o outro nome, porque
não é isso mesmo então não tem porque usar esse termo. Aí eu fui chamar de
“estética para um não-tempo”, depois só chamei de tempo, aí decide manter ou não,
no sentido qualitativo. O que significa é experimentar uma conceitualização que
significa o tempo enquanto consciência da carne, da memória, nesse caso, da
memória desse corpo afrodiaspórico. Meu interesse é pelo afrodiaspórico, não essa
coisa da África, mais Brasil, mais latino mesmo. Esse evento que Laís está
participando é com mulheres negras da América Latina. Tem gente da Republica
Dominicana, de Barbados, Peru, de São Paulo, nessa residência artística naquela tá
coordenando. Então, tanto eu quanto ela estamos com esse foco na América Latina,
eu ligado essa coisa memória afrodiaspórica e ela ligada as produções de artistas
contemporâneos, em arte multidisciplinar. E, é claro, isso faz com que eu entre no
jogo transdisciplinar, na verdade, nem multi e nem é inter, é trans, trans alguma
coisa. Eu acho que eu estou num momento de fazer teatro trans alguma coisa,
sabe? tá sendo a mistura, por isso, que eu não consigo mais trabalhar com ator, ou
ele é hibrido ou um dançarino, uma pessoa que faz performance, que só canta
pegar, esses artistas do corpo, tanto que eu chamo esse essa concepção de que ao
que se refere ao grupo de alarinjó, que significa do iorubá: aquele que canta e dança
enquanto caminha, tudo junto enquanto se expressa. É uma espécie de teatro
arcaico iorubano, tanto que na ficha técnica de Quaseilhas o elenco é descrito como
alarinjo, está lá o nome dos três, a gente podia chama de atores, mas não são
somente atores. É engraçado porque essa investigação com tempo me fez entrar
244
em crise com a dramaturgia em si, que tanto que quando uma das melhores coisas
que tinha pegado na escola de teatro ela acabou sendo descartável e foi difícil
aceitar que ela não tinha como colar na investigação do tempo, as éticas não
batiam, a ética de produção cênica do tempo não batia com essa ética de produção
textual, e foi aí que eu encontrei o Oriki. No caso de Quaseilhas, eu escrevi um oriki,
não dramaturgia. Talvez a dramaturgia seja da composição dos meninos, dos
corpos, porque eles criaram uma lógica dramatúrgica, mas o oriki em si não é uma
dramaturgia. É um texto, um poema. E aí estou buscando essa ligação do tempo
com a memória, com essa memória enquanto consciência da carne afrodiasporica,
então, o oriki me ajuda nisso, a ideia de trabalhar com um elenco mais diverso. oriki
no Brasil é muito ligado às os orixás, mas não exatamente. oriki que é como eu
disse, uma literatura, uma identidade em Literatura oral, seja é uma identidade da
literatura oral uma pessoa, de uma comunidade, de um grupo, da família, era muito
comum cada família ter o seu oriki, como se fosse o brasão dos europeus. Tanto
que é dividido em oriki e itã, itã mais ligado numa relação das mitológico. O oriki lida
com os fatos. Então tem uma coisa de falar quem a pessoa é, uma procedência
dessa pessoa, tanto que ori é a cabeça e ki é ligado a saudação, ao louvar. A
tradução seria saudar a cabeça, saudar a cabeça de alguém. É quando você fala de
alguém. São vários tipos e oriki e todos ligados à memória. Então imagine que todos
esses iorubas que foram trazidos pra cá, possivelmente tinham o seu oriki e foi
perdido. Imagina e esses orikis sobrevivessem, como se esses negros de hoje
soubessem de onde vieram, seus ancestrais... é como se fosse um livro em
oralidade. O oriki é ligado à identidade é de alguém, de uma família, de uma
divindade, de um rei... é bem especifico, você está louvando alguém com ele. E tem
também alguns orikis que são cânticos de fundamentos do axé, por exemplo,
possivelmente, é um oriki, não um itã, nem um orìn, uma cantiga, possivelmente ele
é um oriki, porque é de raiz, de memória.
DP: Rapaz, acho que tem sim, só a ideia desse espaço que você chama de site-
specífic, ser muito relacionado a uma casa, independente como ela seja, já toma
isso com um elemento preponderante. Uma outra coisa que está se tornando
245
DP: Eu acho que meus interesses poéticos não cabem caixa. Não respondem àquilo
ali. não é que eu gosto, eu assisto, inclusive, obras em palco italiano que são
bacanas e tal. Não é que eu não goste, como alguém que consome arte, entende,
eu identifico que aquilo não é pra mim, não é para as minhas iniciativas artísticas.
Só a ideia de uma caixa preta não é suficiente, é necessário quebrar a parede às
vezes, sabe? Se você levar em conta que é caixa preta, didascália, rubrica, e
composição de personagem todo mundo faz, parece que está se expondo varias
peças iguais, claro que cada uma vai fazer de maneira diferente, obvio. Mas todos
esses elementos os criadores levam em conta, são as convenções, é o protocolo... é
que eu não consigo criar uma obra sem levar em consideração o espaço. Mas
quando olha para a caixa preta... quando eu começo a montar uma peça e as vezes
não tenho o espaço, demorou muito, por exemplo, para eu consigo espaço para
Quasilhas, eu não consegui dirigir sem ter espaço primeiro, é muito preponderante...
é muito interventivo nas minhas ideias. Então a caixa-preta não me provoca, não me
causa crise, entendeu? Então eu preciso de uma coisa que me dê crise. Agora
mesmo no projeto no Quati eu estou com uma crise, porque é um espaço muito
doido arquitetonicamente, e tenho que dirigir em 3 semanas... esse processo de
viver o espaço é muito importante, esse processo inicial que eu falei.
DP: A música, a música, a música... E agora estou na onda de entender dança, né,
sou não cara que acostumando a ir pra espetáculo de dança, agora eu vou mais.
trabalhei com um grupo só de dançarinos, também, foi muito bom trabalhar, é outro
jeito de responder as coisas. Mas a música é muito forte, muito. E eu leio muito
também, né, então já a leitura não conta e a escrita, não conta porque é algo tipo...
Aqui se uma ideia aparecer, já tá aqui, já tá na mão. Escrever já é como respirar,
qualquer coisa... talvez não conta, nem escrever, nem ler, nem digo ler coisas de
teatro, ler literatura mesmo, romance, conto, não as coisas mais teóricas, mas
romance, conto, quadrinhos e música. Mas em termos de encenação, música é um
elemento muito importante, atualmente, está tomando proporções grandes.
DP: Não. Porque é outro lugar que não comportar as minhas poéticas. Eu não acho
que toda arte que é população tem que ir para rua. Se é para ser popular, se é para
o povo ir deve ser na rua. Estava conversando com um amigo meu ontem, mas é
uma arte que eu gosto, de novo, não é que eu não gosto, só não cabe no que eu
proponho. Existem artistas incríveis... se formou uma menina aqui na escola de
teatro, a Clea, que faz um teatro de rua incrível. Clea leva isso como poética de vida,
como bandeira, e ela faz muito bem mesmo. Performances de rua, de maneira geral,
não e a minha, porque se eu preciso de um tempo, de um processo de imersão, a
rua não me dá. É por causa disso.
DP: Árbitro, minha primeira peça, Oroboro que foi minha peça de formatura, e
Quaseilhas, ultimamente, minha última peça. Foram essas três obras, isso sem
contar com a bunda de Simone, foi junto com o teatro base, igualmente Oroboro que
teve processo muito mais autoral de minha parte, mas, também, muito autoral de
minha parte. Essas três Arbítrio, Oroboro, Quaseilhas.
DP: Eu comecei a entender que eu preciso de uma equipe de trabalho muito junto.
Isso eu descobri com Quaseilhas mesmo, porque em Oroboro eu não tinha muito
essa noção e Arbítrio foi muito na guerrilha. Quaseilhas me fez entender que, por
exemplo, preciso de uma espécie de sabe direção de arte, sabe, tipo cinema, onde o
cenográfico, iluminador, figurinista, vídeo, se for usar, trabalham todos juntos
mesmo, juntos. Porque não é a mesma lógica do trabalho na sala, na caixa preta
caixa, porque o iluminador só precisa do raider de lua do lugar, as medidas do
espaço, pra fazer uma escala, uma maquete, um programa aqui... No espaço não
convencional, ou alternativo, eu acho que é melhor usar o seu conceito mesmo, o
site-specific, porque não é alternativo qualquer alternativo, sabe, esse site- specific,
acho que tem que ser uma posicionamento dessa galera que vai atuar sobre o
espaço muito junto. Cada um tem a sua assinatura ali, é bacana, claro. Mas
trabalhar muito junto. Então é muito difícil ainda fazer isso em Salvador, é muito
difícil fazer as pessoas entenderem que funcionar assim. Eu tentei fazer isso em
Quaseilhas, consegui, a muito custo 10%. Era difícil a galera entender que deveria
atuar como uma equipe de arte, sabe, principalmente essa galera das visualidades,
esse grupo que vai lidar com a luz, cenário, figurino, com projeções...com o espaço
em si. Mas acabou que na hora que colou, ficou bacana em Quaseilhas, mas eu
acho que o primeiro ponto, a primeira dificuldade não está exatamente no espaço,
mas como o diretor articula as pessoas pra atuar sobre ele. Em Quaseilhas eu
consegui um pouquinho, espero que da próxima vez eu consiga mais, ou total, como
eu desejo.
DP: Rapaz... olha, no caso de Quaseilhas o espaço entrou muito depois, a gente
enfrentou muitas crises do espaço, que eu não queria num teatro, então tinha que
ter um que contemplasse, até que eu decidi que eu tinha que levantar em casa
mesmo. Então o espaço veio depois, tanto que depois que o espaço apareceu, foi
um mês pra montar. E foi assim com quase todos. Em Arbítrio eu fiquei alguns
meses ensaiando no espaço ensaio, aí com as negociações com a casa preta, a
gente foi pra lá. O que demorou mais tempo, eu acho, era que nós ainda éramos
estudantes ainda aqui, aí levamos mais tempo para entender, então levou muito,
249
mais tempo para conceber esse. Mas também foi mais rápido, assim, não tinha
muita crise, estava ali. Tinha dificuldade que era lidar com aquilo, mas dizer que a
coisa não existia, não, a janela esta na sua frente, você vê que essa madeira está
fazendo um som, se você quiser usar pode usar. Então esse processo de
experimentação sobre o espaço que você sabe que vai ser a sua cenografia, a gente
conseguiu até um tempo muito em Arbítrio. Acho que Arbítrio se protelou mais por
falta de dinheiro, do que pelos próprios artistas. Em Oroboro, isso foi uma coisa meio
estranha, porque era uma série de solos, de intervenções performativas, foi a peça
mais longa que já dirigi, 2:30. Eu dirigia as cenas separadas, mas talvez por esse
momento meu de viver o espaço, os meninos não tiveram muito momentos
espaciais, ali. Então na verdade, eu não consigo identificar bem a forma como eu
usei aquele espaço em Oroboro, no Criacura, eu me lembro que foi muito rápido, no
momento em que a gente decidiu vai ser aqui...mas os espaços estavam meio que
fixos, sabe, talvez, também, pela intervenção de Jahli, que dava uma liberdade
restrita, pode usar isso, não pode usar aquilo... talvez.
DP: É justamente por isso que não pode ser qualquer espaço, tem que ser um
espaço que converse com o que você está propondo, não atoa, no processo de
Quaseilhas, eu decidi construir a minha casa, a casa onde eu vivi, só não tem o
telhado de eternit, porque Erick ficou com medo das madeiras caírem. É uma serie
de lonas, mas é igualzinho as casas que vivi. Quando você tiver oportunidade de
você assisti, você vai ver que eram as casas daquele jeito. Então tem que ser um
espaço que converse com o que você está propondo. Em Arbítrio, aquele Casarão
dos anos 30, conversava com as referências que eu tinha, era a casa de minha
bisavó, aqueles corredores grandes... Não era igual, mas dialogava. Ela responde
algumas necessidades minhas, não só dessas motivações no período pessoais,
mas, também, das minhas motivações estéticas, eu queria experimentar mais,
queria fazer aquelas coisas de teatro experimental, então eu achava que dialogar
com algo que parecesse também antigo no espaço ajudaria. E no caso do Criacura
as possibilidades de câmera, né, como eram vários solos, cada sala compartilhada
continha um solo, como uma espécie de baú. Então esse espaço tem que dialogar
com o que eu estou criando, porque senão não tem nada a ver.
DP- Não... não exatamente. Se não tiver uma conversa é só o espaço quem está
falando. Eu tive uma experiência que não é o caso de site específico, mas uma
experiência parecida com a bunda de Simone, a gente ia fazer no teatro da
barroquinha, mas aquele espaço já é muito atraente, tem uma beleza...então eu
pensava em uma cenografia que seja superior ao espaço da barroquinha, que seja
maior que ela. Acabou que o espaço que a gente criou superou o espaço da
barroquinha e superou a peça. Nós fizemos uma instalação gigante cheia de
chuveiro, tanto que Erik ganhou o prêmio Braskem aqui por essa instalação. Era
uma instalação inusitada, era água por todos os lados, piscina... fazíamos
corredores, fazíamos cortina de água... E ficou superior à própria obra, e no final
252
ficou descompensado, a gente queria tanto superar o espaço, que a gente superou o
espaço e a peça em si. Pior que a galera achava feia a instalação, mas quando
colocava a luz ganhava outra dimensão. Em Quaseilhas isso não acontece, há um
dialogo entre a instalação, as performances, o som, entende? Se ela não conversar
vai parecer só proselitismo estético, que só queria surpreender com esse espaço
deferente. Eu acho que ele não deve superar as suas ambições poéticas nem
estéticas, ele deve entrar em diálogo.
DP: Sim, eu percebo, mas na verdade não é. Se é numa sala convencional, numa
sala preta, não é meu trabalho.
DP: Eu não sei falar sobre isso a sério. Na verdade, se você quer propor uma
experiência, você tem que contar com esse outro fator da ação, que são as pessoas
que vão chegar para compartilhar com aquilo. Mas eu, sinceramente, eu não
consigo... eu não sei se percebo, eu sei que causa algum efeito.
DP: Outro fator importantíssimo, eu faço pensando em quais são os meus interesses
em fazer com que elas percebam coisas...ou confundi-las, geralmente para
confundir. Por exemplo, em Quaseilhas são três espaços diferentes, cada espaço
tem uma cenografia diferente da outra e a forma como o público se acomoda,
também é diferente. No espaço que a gente chama Camamu o espaço é o mais
confortável de todos, primeiro que é o maior, as cadeiras são acolchoadas, tem uma
coisa de casa mais marcante. No outro, quebra Machado, é só um banco em L de
madeira e as pessoas se sentam ali durante uma hora e é muito desconfortável. E o
outro que é pantaleón, todas as pessoas estão em pé em um chão totalmente
alagado. Então eu quero que as pessoas sintam, ou se afetem pela obra,
intimamente ligadas com os agenciadores que eu uso para organizar essas pessoas
nesse espaço. Em quebra machado eu queria que eles se sentissem
desconfortáveis dentro de um espaço que é pequeno e úmido. E ele só pequeno e
úmido não era suficiente, então eu coloco eles sentados em um local péssimo,
porque ficar em pé seria mais confortável. E no outro que era algo mais ligado a uma
memória mais feminina e familiar, era mais confortável, as pessoas se acomodavam
bem, tanto que era um espaço que a gente deixava para as pessoas da terceira
idade. É a forma como eu quero que eles se afetem, eu quero que eles vejam e
experienciem em Camamu de uma forma confortável. Eu quero que ele experimente
o quebra machado de uma forma desconfortável. E quero que eles experienciem
pataleon de uma forma mais em movimento, tanto que em pantaleon a ideia era que
as pessoas entrassem numa espécie de coreografia, elas tinham que se mover, elas
tinham que dançar, também. Então aí tem os meus interesses, agora o que ela
capita disso, o que ela percebe disso, eu não tenho poder de saber, está num lugar
mais pessoal... Algumas pessoas vêm me dizem coisas desconhecidas. Alguma
coisa eu quero provocar, independente da obra, eu quero provocar. Talvez eu não
queria dizer, talvez eu não quero que elas leiam, mas provocar sempre. Sempre tem
uma intencionalidade. Talvez não tenha uma intencionalidade aristotélica, não tem
uma intencionalidade de leitura, de decifração de códigos ou de entendimentos
narrativo, mas uma intencionalidade de afetar em algum lugar.
DP: Levando em conta um site específico de que que já existe sim, levando em
conta inclusive, talvez, a caixa preta pura, também, sim. No caso de Quaseilhas que
eu tive que levantar uma casa, na verdade, eu não sei se essa informação... como é
mesmo direito... (repete a pergunta) Não se aplica em Quase ilhas porque eu criei
um espaço para aqueles criadores. Em Arbítrio sim, acho que essa informação base,
em Oroboro, também... Mas em Quaseilhas não, eu convido as pessoas para minha
casa. Eu levantei a minha casa e chamei a galera para curtir umas músicas dentro
dela. Eu não fiz em alagados, na verdade, porque eu teria o dobro do gasto, eu não
tinha dinheiro suficiente. Principalmente transporte do público. Mas consegui levar
quase 200 pessoas da comunidade para ver a peça. Consegui ônibus para eles irem
até a peça.
DP- Eu só não faço segunda nem terça, mas de quarta à domingo, se puder eu
estou fazendo. A media convencional daqui de Salvador são 12, 16 apresentações...
DP: Com Arbítrio sim, aqui em salvador. Fizemos pelo menos 3. Oroboro não,
porque era somente para aquele momento, eu não queria continuar, não por eu não
gostava, eu adorava, mas eu achava que era aquilo mesmo, já tinha acontecido. E
ela só teve 9 apresentações, de todas, ela é a que menos apresentamos. Já Arbítrio
mais, a primeira temporada mais de 20 apresentações. Quaseilhas só fez 12, mas
volta agora em agosto, talvez. Em novembro eu tenho uma temporada para fazer de
18 apresentações, mas é uma coisa que ainda não está certa.
DP: Nunca circulei com Arbítrio. Nunca circulei com Oroboro. Inclusive, fui chamado
por Arbítrio para apresentar no Rio de Janeiro, quando viram as especificidades não
queriam o trabalho de achar um lugar parecido. A mesma coisa com Oroboro.
255
Assim, um dos solos conseguiu circular por uma cidade do interior da Bahia. E
Quaseilhas é um dos maiores problemas para circular, porque você tem que levar a
casa. Alguns curadores de outros festivais se interessaram em levar, mas aí quando
veem a estrutura…
DP: Não, pelo menos por isso eu nunca passei, eu teria um treco.
Eu estou com resistência de colocar Quaseilhas dentro de um lugar que é coberto,
sabe? Só dela estar ali de do vento entrar nas frestas... e claro que eu posso liberar,
ate porque a peça acontece dentro da casa, ne, mas só esse fato de, talvez, colocar
no lugar coberto já fico meio sem jeito.
DP: a peça toda não, apenas um dos solos de Oroboro. O solo de Diego Alcantara,
a gente fez o solo dele na casa preta e fez aqui na sala cinco. Mas é outra coisa,
não é igual. Mas a peça toda em outro espaço alternativo não. É muito difícil circular
com minhas obras, na verdade.
JJ: PODEMOS AFIRMAR, DIANTE DE TUDO ISSO QUE FALAMOS, QUE SITE-
SPECIFIC MODIFICA O PROCESSO METODOLOGICO DO ENCENADOR?
DP: Absolutamente.
DP: Ele modifica porque primeiro vai ter sempre um caráter experimental, a
depender de cada obra, vai ser um método para essa, pra outra e pra outra... é claro
que você sustenta uma poética, mas as metodologias, as ferramentas que você vai
usar, vai depender muito do que o espaço está te dizendo. Claro que vai depender
do que o ator vai te dar, do que os outros artistas vão te dar, os dançarino... Mas
256
também o espaço vai te entregar alguns materiais, tanto que é uma saga antiga
essa relação do diretor com o espaço, muitos diretores na história eram os
cenógrafos, ou cenógrafos que viraram diretores e diretores que assinavam os
cenários um dos outros... essa relação, talvez, do dramaturgo, espaço e diretor
sempre se confundiu demais. Então no meu trabalho é diferente, sempre vai
interferir. Sempre vai interferir na forma como as ferramentas. Então geralmente
quando eu vou quando começa uma obra, o máximo que eu posso me tornar é estar
aberto para o espaço vai me dizer. E geralmente eu vejo muitos espaços, quando
eu decido por um, eu organizo esse processo de viver ele lá, morar se possível. Mas
o fato de ser um espaço não convencional te obriga a você acionar outras
ferramentas, outras formas de produção cênica que pode resultar em uma parada
que você não esperava, também. Eu não esperava que a fazer numa palafita, uma
casa de madeira quando iniciou o processo de Quaseilhas, entende? Nada está
dado, você tem que produzir tudo. Na casa preta eu tive que construir uma
instalação elétrica.
DP: Não... Gabi é muito atenta ao que está sendo produzido nas artes
contemporâneas, ela produz artes mais convencionais, é uma produtora que
trabalha com varias linguagens artísticas, mas ela é responsável pela parte de
teatro, então ela é muito atenta para a arte contemporânea, para o não
convencional, como todas as preocupações que uma produtora tem, ne?
DP: Os mesmos problemas que vai infligir a direção, vai infligir a produtora. Seja de
acesso ao PÚBLICO, seja os materiais... Gabi entrou em crise em Quaseilhas,
porque não é nem apenas por ser em um lugar não convencional, você está criando
um barraco, vai ser dificil de viajar... onde se consegue essa madeira...todo o
Madeirit a gente conseguiu do carnaval, pra você ter uma noção. Então tudo isso
causa uma crise, as mesmas crises que eu tinha, claro que no meu caso do ponto
257
de vista poético, e ela tinha que viabilizar. Aí os meus problemas poéticos passam a
ser os dela no ponto de vista da produção que é circulação, acessibilidade... na
primeira temporada de Quaseilhas a gente teve um público médio, não vazio, mas
médio... porque você apresenta em outro lugar que pode ser difícil de chegar,
perigoso...
DP: Atualmente sozinho. Atualmente sozinho com algumas pessoas que confio, aí
convido alguns atores. Eu e Laís temos uma plataforma de rede em artistas nessa
ideia da afrodiaspora, tanto que Quaseilhas é um projeto dessa plataforma e agora a
ocupação dela também é dessa plataforma. Então não é exatamente um grupo, é
uma plataforma de criação e produção d investigação e claro que tem algumas
pessoas que se repetem, eu gosto muito de trabalhar com Laís, não é só porque ela
é minha companheira, mas porque ela está na mesma frequência poética, Diego que
também é meu amigo, trabalhou comigo no teatro base e agora fez o Quaseilhas,
Erik já fez muitos cenários, Luizinho muitas luzes... Nina fez muito registros de
vídeos, mas dessa vez ela concebeu os vídeos da peça, a concepção videografica...
Então, algumas coisas vão mudando, mas esse núcleo, nessa configuração, se
repete. Grupo é que eu não quero mais, não acredito em grupo.
DP: Muito... é muito difícil a equipe entender como eles operam, mais juntos, mais
um grupo de arte inserido nesse espaço. Por exemplo, Luizinho só poderia trabalhar
na iluminação de Quaseilhas se tivesse um eletricista que fizesse a ligação elétrica,
e além disso, tivesse uma especificidade em iluminação teatral. Esse eletricista não
poderia ser qualquer um. Erik precisou de 8 pessoas pra levantar a casa no tempo
que precisávamos... num espaço como esse tem que estar meio que, vai aparecer
coisas, nesse caso de Erik, por exemplo, ele poderia ter apenas 2 cenotécnicos se
fosse num espaço normal, às vezes nem precisa de um cenotécnico, neste caso,
precisou de 8, Erik precisou de um assistente e 8 pessoas pra montar, entende, ele
258
chamou o pai dele para fazer a parte hidráulica que a peça pedia... Luizinho
precisava de 2 operadores de luz... Então isso não muda somente a forma como eu
trabalho, mesmo, às vezes em graus maiores, em outras em graus menores, em
Quaseilhas foi em graus maiores.
JJ: ACHO QUE É ISSO, DIEGO, OBRIGADO! A GENTE FINALIZA AQUI. SE VOCÊ
PUDER DISPONIBILIZAR DOCUMENTO, FOTOS, CRÍTICAS... DO SEU
PROCESSO CRIATIVO SERIA PERFEITO.
DP: Posso sim, vou organizar e combino com você pra ir lá em casa.
JJ: OBRIGADO.
259
TR: Comecei a fazer teatro em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Eu sou do Rio, do
interior do Rio, sou natural de uma cidade chamada Volta Redonda. Comecei lá
fazendo em num cineteatro que tinha lá. fui pro Rio fazer faculdade, não fui fazer
faculdade de teatro. Quando entrei na UERJ, pra fazer história da arte, lá tinha um
núcleo de pesquisa e tal... Foi de onde eu continuei fazendo. Mas que me abriu na
verdade para essa área de direção, foi um projeto que a Ana Kfouri tinha no SESC
Tijuca, que chamava Centro de Estudo Artístico Experimental, era uma escola livre,
não era uma escola técnica nem nada, mas que você ficava lá fazendo várias aulas
260
lá e tal. Acho que o projeto durou uns 6 anos. Nestes 6 anos, enquanto anos eu
fiquei lá, então quem formou muito meu pensamento, ate pelas estéticas do teatro
contemporâneo foi a Ana Kfouri e o grupo dela. O projeto era assim, a Ana era a
coordenadora, e os atores que eram da companhia dela, companhia teatral do
movimento, que dava as oficinas. Outra pessoa muito importante no na minha
formação foi Ana Paula Bouzas que é daqui, mas na época morava lá e agora mora
em são Paulo, foi uma pessoa que norteou para a montagem. Depois eu entrei em
um outro grupo chamado casa sete, que era um grupo de Renato Carrera, que na
época era ator da Ana Kfouri, e nessa época montamos um espetáculo que na
época já falava um pouco do espaço alternativo, que foi lá no centro cultural carioca,
que era um armazém, nem sei se existe ainda, na praça Tiradentes, e a gente
montou um peça chamada Autopsia que era inspirada no Gritos e Sussurros do
Bergman. Aí depois eu montei o Teatro da Queda, o núcleo carioca, no trabalho final
do curso do projeto da Ana, já com esse nome. Aí vim pra salvador e continuei com
esse nome. Na verdade, a minha vivencia de ator e também de diretor foi muito uma
vivencia prática. Hoje que estou fazendo graduação em direção depois de 20 anos
fazendo teatro. Mas é um outro tipo de inquietação. Eu aprendi os mecanismos do
teatro muito na prática. E aí foi trabalhando com essas pessoas. Aí vim pra Salvador
e já comecei com Fernanda, no ano seguinte em que eu cheguei aqui, trabalhando
com o NATA e com outros projetos autônomos, no teatro da queda e tal. Depois a
gente se muda um pouco a estrutura. Então eu acho que a minha formação teatral é
nesse êxodo do Rio para Salvador e trabalhando com essas pessoas.
TR: Ele vem comigo na mala pra salvador. Ele surge em 2004. Ate esse momento
eu era apenas ator, não tinha a menor vontade de dirigir, gostava da direção mas
queria ser ator. Aí um dia a Ana kifuri me disse que se eu quisesse ser um bom ator,
é interessante que dirigir uma coisa pelo menos uma vez. então fui fazer uma oficina
de direção lá no curso com a Marilia Martins, na verdade, que dava esse curso
dentro do projeto, e fiquei enlouquecido, o diretor tomou uma proporção maior que o
ator. Às vezes eu sinto falto de atuar, aí eu volto, mas criar, pensar no espetáculo, a
arquitetura do espetáculo enquanto encenador, me dá muito mais tesão.
TR: Depende muito, agora, nestes últimos anos, desde de 2011, que estou
pesquisando essa coisa da homossexualidade, da representatividade do
homossexual em cena... então, sempre vem por um tema. A própria pesquisa que
eu desenvolvo com o teatro documentário, os limites entre real e a ficção, partia
muito disso. Mas é muito especifico alguns espetáculos meus. Se a gente for falar
do rebola, que é que vamos falar bastante, o Rebola só aconteceu porque eu tinha
um projeto do Beco eu não pensei na peça, a peça surgiu no lugar. Mas sempre
parto de um tema, de uma questão que está me inquietando no momento. A partir
desse tema, a criação vai fluindo. Às vezes parto de uma imagem, eu tenho um
pensamento visual, eu tenho muito isso, você vai nas minhas peças e por mais
simples que possa ser, calças jeans, com coisa qualquer, eu tenho a imagem, o que
é a imagem a indumentária da peça vem sempre antes mesmo da encenação, da
dramaturgia. Mas, em geral, cada espetáculo é autônomo neste sentido.
TR: Da minha formação, possivelmente, por causa da minha formação. Eu não sabia
que tinha isso, fui descobrir depois. Quando eu fui fazer o vestibular passei em três
cursos distintos e optei pelo o que na época me pareceu mais exótico, História da
Arte, que era um curso na universidade estadual do rio de janeiro. E a consequência
de entender a imagem vem muito desse estudo que fiz na UERJ, isso eu tenho
262
TH: não sei. Minha família... eu sempre fui criado por mulheres sem muita
escolaridade. Eu sempre gostei muito desde criança, criança bicha, eu sempre
gostei de novela, sempre gostei de representar, de fazer pecas na varanda com os
meus colegas de rua. Brincando de fazer novela. Em volta Redonda, na minha
cidade, tinha dois teatros la, e sempre vinha muita coisa de fora, e eu sempre ia
muito assistir. Mas não tive nenhum incentivo da minha família, eu fui escondido.
Minha mãe queria me colocar no caratê que era mais viril, mas eu ia escondido. Pedi
uma bolsa, consegui, fique estudando um tempo lá. Então não tem nenhuma origem
que lidou com arte... tinha um tio que era jornalista... uma madrinha que era muito
ligada a musica, a encenação... eu mas nem sabia que teatro sabia teatro, pra mim
foi tudo muito instintivo. Depois da escola eu fui pro Rio no instinto, numa estratégia
de me libertar, meu foco nem era fazer a universidade, mas eu sabia que a
263
TR: Sim ultimamente eu acho que o teatro da queda, eu, enquanto diretor a gente
sempre tem que ser muito nessa questão de um homem né, o início, início dos meus
parabéns é muito difícil assim essa coisa de qualidade à sociedade revolução a
velocidade de informação e como deixa o cara meio com falta de afeto com alheio
264
TR: Eu sou um cara que fala sobre coisas do meu tempo, mas não esquecendo do
passado, e que tem cada vez mais me afirmado enquanto gay, negro, dentro de um
lugar de uma sociedade capitalista opressora que quer silenciar o tempo inteiro. Eu
hoje eu posso te dizer que eu sou um artivista, assim, e isso eu tenho descoberto,
não é uma coisa que eu sou, agora não eu acho que o NATA me trouxe muita coisa
de Negritude, de me entender negro, militar por isso, dessa coisa de ancestral, ter
ido para o candomblé, ter iniciado no candomblé, também, me deu uma outro tipo de
força, de luta, de discurso, de coisa que eu preciso defender, que eu defendo com
maior prazer, com carinho... mas também entender que uma obra, que um artista ele
pode até fora do panfleto assim, meus espetáculos não são panfleto no sentido de
bater de frente e militar. mas o teatro é uma grande ferramenta de transformação
social, eu acho que eu tenho utilizado isso enquanto esse encenador. Sou um cara
que só consegue montar coisas que realmente me interessa, Eu ainda não tenho
essa coisa que muitos diretores te chamei com o projeto se não quiser falar que eu
não vou dizer, sabe, não vai não sou eu... e as obras ela tem perseguido um pouco
isso. Eu tenho me afirmado agora, profundamente, no que é ser uma bicha preta e
que como é difícil isso. E aí agora estou montando Madame Satan, que é já um
pouco desse discurso, acho que ele vai afunilando... eu tinha uma linha toda afetiva
do documentário, é aí tem o Breve que é um espetáculo com temática carinhosa e
265
tal.. Depois eu comecei a estudar essa coisa mesmo muito, muito a partir do
encontro que eu tive com o teatro Conin, de São Paulo, de Ronaldo que me deu aula
e depois do meu colega em Cachoeira, morávamos juntos, fazia um projeto é dentro
de um quilombo, dando aula de teatro, e aí a gente estava começando a fazer as
peças, aí comecei a estudar ele me apresentou Devassos no Paraíso de Trevisan
que fala sobre a Sexualidade, e pensei, eu quero falar sobre isso. O beco me
ensinou muito que eu precisava militar, sabe, porque foi um projeto muito legal, mas
o projeto muito difícil, na espera política social, eu era quase um bandido, por estar
fazendo aquele projeto ali. Então acho que eu sou um cara que precisa dizer, mas
eu só consigo dizer as coisas que atravessam. Eu só consigo dizer da minha arte
minha militância nesse sentido, é meu lugar no mundo, sabe, o que eu faço meu
trabalho é meu lugar no mundo aí pode ser qual a espera que eu tô participando, eu
acho que sou esse cara uma bicha preta, de Candomblé, todo um projeto para não
dar certo e tenho avançado.
TR: Bicha, veado. veado preto, bicha preta, é isso! Assim, eu acho que as coisas
bem expressivas do meu trabalho dizem desse lugar, de como é como a gente pode
pensar essa homossexualidade, esse homossexual, essas personagens silenciadas,
são os temas recorrentes. Escuto muito isso inclusive que só monto peças de
bichas. E confirmo, é, pois é. Acho que é por aí. E isso abre pra gente falar para
muito cantos, ne? Eu sou bem autobiográfico, o teatro documentário me ensinou
muito disso. Sem ser autorreferente, mas, com eu posso observar a minha visão de
mundo, minha trajetória, minhas vivências e potencializar alguma coisa em cena.
TR: Tenho pensado nisso... eu acho que a minha cabeça, talvez a minha vontade de
fazer um mestrado, que foi uma coisa que eu neguei desde que sai da Universidade,
e decidi fazer só teatro e tal. Só que a gente vai envelhecendo e começa a entender
que está desenvolvendo uma poética, que passam, por que passam por muitos
lugares, sabe, aí não passa pelos estudos de Grotowski, mas está contido porque
266
nos estudamos isso fora e dentro da Universidade. Mas eu acho que eu tenho
desenvolvido muito pensamento do teatro documentário, junto com uma estética, um
pensamento da sua representação do homossexual, de como se denomina, não sei
se é teatro gay que fala, mas pelo menos estou flertando nisso. Tem uma coisa que
é o documento a memória, tem uma coisa que a pesquisa da homossexualidade que
vai verticalizar numa obra poética, que vai trazendo um monte de outras
vertentezinhas que leva a gente vai pensar a visualidade, na música, na própria
encenação. Se a gente for observar os espetáculos de perto eles não são tão
distintos, eles tem uma linguagem na abordagem daquilo que eu falo... Agora que eu
estou pensando um pouco nessas estruturas, nessas nomenclaturas para poder dar
a isso, mas eu tenho muito tempo já fazendo e a forma que eu faço ela tem
avançado, acho que eu estou um diretor melhor, assim, é muita caminhada ainda,
mas, depois dos 30, eu acho que a gente vai ficando mais tranquilo, sem todas
aquelas urgência que a gente tinha, sabendo mais, e acho avançando na pesquisa.
Cada espetáculo que eu faço eu tento me provocar nesse sentido. Não sei bem se é
teatro gay, teatro de gênero... sei que ele tem uma relação artivista, politica forte e
cada vez mais tenho me interessado nisso, tem uma relacao com o teatro
documentário que já é uma estética, eu pesquiso muito a coisa da dragqueen,
desse corpo fora da norma... essas vertentes todas vai se tornar um teatro alguma
coisa. Tem uma poética Thiago Romero acontecendo e disso eu vou me
impregnando, porque se você for ver a peça que fiz com a Outra CIA, tem muita
coisa minha impregnada ali, diferente do que a CIA faz, e isso de alguma maneira
impregnou no trabalho deles, porque em outros trabalho, que eu nem estava tão
envolvido, tinha um pouco essa dinâmica e esses procedimentos. Eu sou muito
metódico, ante de começa o processo eu sei o que quero dizer, o que quero atingir...
e aí tem vario exercícios que eu vou desenvolvendo e aprofundando, ate porque eu
trabalhei com as mesmas pessoas por muito tempo, e tem uma constância de
pessoas que vão fazendo mais de um espetáculo comigo, que é. minha equipe, mas
eu quero surpreender os atores, Então vou criando... Agora que estou
sistematizando isso, pensando, naquele espetáculo eu fiz assim, no outro fiz esse
procedimento que resultou naquilo. Agora que estou pensando, porque antes era
muito intuitivo, claro que agente vai lendo muita coisa, mas eu não tinha muito
interesse teórico, o meu desejo era fazer teatro. Agora que estou pensando... mas
267
não tenho um nome para dar a isso tudo. Mas tem uma poética, um pilar, o
documento, a memória, a encenação do corpo, a apresentação gay, a identidade
brasileira versus a identidade gay, de como ela é carnavalizada a imagem do
homossexual, de como é estigmatizada, e do como por muito tempo não foi
representada fora do pejorativo, percorro por isso.
TR: Tem, tem uma estrutura dramatúrgica, que por mais que Daniel escreva, eles
pedem muito como encenação que ele conhece e com carinho que ele faz junto,
Porque Daniel raramente escreve um texto entrega, ele vai entregando conforme ele
vai vendo. Tem uma pesquisa forte agora eu acho musical desse lugar da revista,
mas isso já vinha coisa da música, da visualidade dos espetáculos que tem tantos
os meus quanto o de outros que faz a própria visualidade. eu acho que você ver
você identifica um pouco que é meu. Eu acho que tenho aumentado essa
assinatura, ainda mais agora com essas coisas da drag...vai ter uma cena tem uma
cena que é... poesia, Eu gosto muito de trabalhar com eu lírico, eu gosto muito de
sistema deles tem uma delicadeza para serem abordados. Eu gosto muito de poesia
quanto ferramenta para discurso da abordagem mais lírica poética, tem uma coisa
do interlocutor, o ator sempre por mais que esteja no personagem, sempre disposto
eu gosto que ele se coloque, por mais que ele faça uma personagem que seja
completamente oposto a ele, eu acho que é um pouco por aí.
que talvez tem uma história não oficial que essa história não oficial foi silenciado
para mostrar a oficial por isso escolhi fazer Madame Satã agora. Daneil está
escrevendo o texto baseado no livra biografia, o mesmo livro que inspirou o filme do
Carin... porque eu tenho uma relação muito afetiva com o rio de janeiro, eu sou
carioca, e também porque que ria fazer um espetáculo histórico. Histórico no sentido
do personagem ter existido, que é o outro braço do teatro documentário que eu não
tinha trabalhado ainda, que seja um ícone que as pessoas conheçam ou não, mas
como a gente pode trabalhar essa história oficial versus a não- oficial, aí eu trabalho
com uma carpintaria de informações documentadas, tem até os processos que
madame satã sofreu quanto foi preso. Então eu vou me aprofundando, investigando
nesse personagem que tenho gostado muito de fazer.
TR: Flerto muito com o teatro Épico de Brecht, gosto da maneira... Mas já mas já
tenho imbricado dentro do teatro do Stanislavski, adoro trabalhar Stanislavski com
os atores, adoro! Eu gosto muito das coisas que o Henrique Dias faz... foi um cara
que me mostrou muito também. fiz veiwpoints que foi uma parada que eu estudei
bastante, para poder fazer, hoje em dia não faça tanto treinamentos, mas eu passei
dois anos da minha vida no Rio de Janeiro estudando veiwponts, Suzuki,
composition, aquelas coisas todas, e isso ajudou muito e ajuda muito quando eu
penso na cena. E a minha Bíblia é muito livro de Trevisan, ultimamente, tenho lido e
relido o Devassos do Paraíso, leio, releio, e para cada novo espetáculo, eu vou
lendo coisas. eu gosto muito de ler, conhecer, mas eu não sou tão focado nesse
sentido. Eu gosto de gostar das coisas, igual Caetano fala!
TR: Das vezes que sai da sala foi por escolha. Tem três momentos interessantes
quando eu sai da sala porque eu precisava ligar o discurso a uma outra coisa. Fiz
uma peça chamada Abismo, que foi um projeto de circulação que escrevemos, já
tinha feito uma versão no Rio, mas ela sempre me incomodou muito ela no teatro de
269
auditório, porque era uma peça que é uma briga de dois caras no último dia da
relação deles, é a última noite deles, e aí a ideia era fazer na casa das pessoas.
Porque fazer uma casa de pessoas? porque era interessante para o espetáculo que
o discurso usasse a sala como debate, ou a casa como debate, então foi um projeto
que a gente fez aqui e no interior, em algumas casas em Alagoinhas e Inhambupe.
Montei a peça toda dentro do apartamento e era interessante porque era uma
apropriação desse espaço e a discussão levado para sala da família brasileira, para
justificativa porque eu queria fazer. A gente montou no apartamento da minha casa,
e a gente chegava ou a gente fazia uma visita técnica antes da apresentação, como
era um projeto de circulação, a gente chegava um dia antes na casa da pessoa, se
apropriava daquela casa e não mudava nada, a casa não virava teatro, se a sala era
3 metros quadrados ela tinha 3 metros, se ela era um kitnet, era um kitnet,
entendeu? Então a gente estudava aquela coisa e colocava a peça ali dentro. O
dono da casa convidava as pessoas para assistirem ( a gente não fazia uma
divulgação aberta, a plateia eram as pessoas que ele queria). foi muito bacana,
porque era um lugar para gente debater o limite do Real ficcional, mas
posicionamento político de porque estar indo com uma peça para casa das pessoas.
Depois que o Revê-lo que era uma época que estava no debate da União
homossexual, ou não, então falei: quero montar uma peça sobre casamento. Queria
levar a discussão por um outro espaço, então eu escolho fazer no Museu Rodan,
porque é um espaço burguês, porque a gente estava alí alta classe dos bairros da
Graça da Vitória e por que eu achava interessante que esse entorno, e não somente
ele, estivesse ali na recepção de um casamento entre dois homens. Foi uma
escolha! No entanto, quando a gente tira essas peças desses lugares elas não são
as coisas.
E depois veio um outro projeto que eu escrevi, totalmente afetivo, que foi no Beco
dos Artistas, que foi a ocupação do de Beco dos artistas, no momento que o Beco
estava bem morto, assassinado, e aí surgiu Rebola, o Rebola é, na verdade, fruto
dessa ocupação. Ele não ele não existiria se não tivesse passado por coisas
durante esse projeto. O Rebola falava exatamente disso, da morte dos espaços
LGBT em Salvador. Porque o Rebola nada mais é do que um cara, uma bicha mais
velha, decide fechar um dos bares do Beco dos Artistas. Então o debate da peça
todo esse, cadê esses espaços? Porque estão sendo silenciados? aonde eu posso
270
estar ali, né? então vamos rebolar para que isso não aconteça. Mas o rebola ele é
fruto disso tudo. Acho que se tivesse sido um projeto tranquilo, ele não seria a
potência que foi, porque a gente escreveu o projeto achando que seria tudo legal
para levar as bichas de volta... aí quando a gente chegou lá, depois, na abertura do
projeto, a gente descobriu que ninguém queria estar mais naquilo, eu fui
denunciado, a SUCOM ficou durante os quatro, cinco meses que o Beco ficou
aberto, a SUCOM ia lá diariamente. Eu sofri ameaça da síndica de um prédio
falando que eu era um baderneiro... Então, assim, era, para além de um projeto
artístico, de ocupação artística que ia trazer artistas ligados ao gênero ou
dragquens... Não, descobri que era um projeto de resistência, eu tinha que manter
este projeto funcionando até o final. O espaço começou a dizer para mim que aqui
você não tá brincando aqui você me aceita e aceita que sua obra tá em função do
espaço, ou você não vai conseguir fazer a peça nem terminar o projeto. Então, era
ao mesmo tempo uma resistência militante, e uma obra falando: vamos falar disso,
porque agora o espaço está pedindo para você disso, que você fale disso. Tanto que
depois do projeto acabou, que a gente não sabia se a peça ia continuar, porque
financeiramente era muito caro, mas a gente decidi não matar a peça pelo que ela
dizia. E quando a peça foi para o Teatro, o espetáculo se tornou um show de
travesti. A gente só conseguiu fazer aproximado do Beco, quando a gente foi para o
Barbalho foi na mostra Braskem, que foi num lugar um pouco parecido, a gente
conseguia fazer, de uma certa maneira, fazer com que a fábula acontecesse ali,
também.
TR: Não, não. Já tinha virado outra coisa, um restaurante. As pessoas torciam muito
que não continuasse, ne? elas queriam isso. Na ultima apresentação eu escutei uma
pessoa falando vou te denunciar ao Ministério Público seu baderneiro. E falei, calma,
é só mais essa semana, já está finalizando. E ela deu graças a Deus por aquilo
acabar. Porque deu aquele lugar, ne? Quando a gente foi para a mostra Braskem, a
gente já tinha feito Vila e Gregório, a gente tentou voltar para o beco, mas ficava
inviável financeiramente diante de tantos entraves que colocaram. Então a gente
271
conseguiu lá no Barbalho e a peça volta um pouco a força que ela tem. Quando
você vê no teatro, no Gregório era legal, porque tem uma estrutura diferente, mas
está no teatro. Não adianta você estar na alternativo, levar para teatro e querer ser
diferentão, não. Você tem que entender que está levando para uma caixa, que tem
todas as suas convenções e suas estruturas. Então você vai ter que adequar um
pouco, ele fica uma peça, o Rebola é um ato político. Porque você chegava lá, a
peça era uma 10,11 da noite, você chegava e os atores já estavam lá. Então, você
bebia, fumava e de repente acontecia uma peça. Era um acontecimento ali. Quando
você vai para o teatro, vira uma peça, peça ali, começando as 8 horas, acabando as
9, senão, paga multa... No Beco não tinha isso.
JJ: sobre Abismo e Revê-lo eram lugares muito próprios para a encenação. Eles
foram criados para serrem nesses lugares, ou o espaço veio a calhar?
TR: O Abismo e Revê-lo foram criados para esse lugar. O Abismo a gente fez
bastante a gente fez 10 cidades, eu acho, no entorno de Alagoinhas, o projeto
proposto por Daniel e Marcelo, que queriam que eu dirigisse eles, no Calendário das
Artes. E a gente já sabia que ia apresentar dentro da casa de pessoas.
O processo começou no Barra do Itariri, a gente alugou uma casa, ficou lá uma
semana, eu fazendo os procedimentos deles... vivendo aquilo, criando as estruturas
das cenas e tal, para depois a gente ir para casa das pessoas. Ele não foi uma
consequência, eu já pensei em fazer.
E o Revê-lo a mesma coisa, que eu queria fazer uma recepção, a estrutura do
espetáculo é numa recepção do casamento, e como eu tenho essa coisa de pensar
no espectador, da relação do espectador com a obra, e nesses espaços a gente tem
que colocar o espectador do simples assistir. Era uma recepção com cerimonialista,
e eu queria fazer num lugar pomposo, assim, no lugar, talvez, interessante para
fazer. A ideia era fazer nessas casas de festas, né, só que o orçamento não deixou
que a gente fizesse. Mas aí a gente conseguiu levar para o museu. Ele foi criado
para ser no espaço de festa, um lugar aqui que tivesse a possibilidade de levar as
pessoas, eu queria que as senhoras da Graça fossem, e ela iam, e elas adoravam,
falando disso, né? Eu acho que o meu trabalho tem uma contribuição social, eu
272
formo muita gente, que forma o pensamento e reflete sobre isso. Se você for a uma
peça minha e não sair pensando sobre alguma coisa, não deu certo.
TR: Não, as 3 horas que fui, foi por opção, por opção... para entender, as obras
pediram isso. mas pediram que elas não acontecessem dentro de uma caixa. Eu tive
sorte porque essas três específicas, tiveram um edital e isso porque a gente quando
a gente sai a gente eu sempre falo assim sair do teatro às vezes é até mais custoso,
né? Então, assim, eu nunca pensei assim: ah! vamos fazer, até porque você que foi
da outra companhia, a gente estava recém mudados para a sede eu falei assim que
usar esse espaço aqui no corredor, mas aí a gente vai ensaiar no espaço não faço
questão de não levar para o teatro, mas todas as vezes que eu fui eu tinha intenção
de ir, eu acho dobras pediram e o discurso do espetáculo era interessante que
contém esses lugares. O que torna a gente bem complexa a gente consegue voltar
mais bola para ele, pela força mesmo assim um pouco traindo. Mas nunca... não
gosto assim.
TR: Estruturais. As peças que eu montei elas precisavam de uma estrutura... que
esbarram uma dificuldade financeira. Tem uma coisa... o beco tem uma dificuldade
social, política que foi uma série de denúncias que a gente sofreu por tá lhe fazendo,
então tem uma coisa da sociedade também meio comprimido quem já estava
comprimido. Sempre as minhas coisas de peças técnicas, não que o espaço não
fale, mas nessas três experiências que são bem distintas, elas sempre precisaram
de algumas coisas técnicas. Então, a gente às vezes esbarra nessa coisa... agente
esbarra no poder público que não tá muito interessado que você saia, entendeu que
é legal fazer teatro até meio encaixotado ali sem tá sem perigo, porque você vai para
rua você tem um risco, né, e esse risco muitas vezes afeta o poder público no
sentido de... o rebola é uma comédia, mas é uma comédia que denuncia, que
ocupa um lugar. então isso cresceu aos olhos assim um dia vamos parar não deixar
ele continuar fazendo aquilo. você passa a se tornar perigoso quando você tem um
273
espetáculo que você precisa falar muito estou na perigoso. Então às vezes vocês
esbarram nessas coisas. Espectador do teatro já entendo que ele vai lhe dar com os
passos tal qual o espetáculo vai lhe dar, porque eu acho que quando você sai do
teatro você volta para fazer espetáculos em outros lugares o lugar o espaço vai te
dizer muita coisa então você não precisa talvez de... porque eu acho muito chato
assim ir a peças que poderiam ser feitas no teatro, mas como virou modismo época
a peça está no espaço alternativo, pra gente precisa ser diferentão, sabe? Mas a
gente acaba esbarrando assim... tem umas coisas técnicas de luz, som que, às
vezes, precisa, a gente não consegue algumas estruturas fazer, apesar de os
espetáculos não serem tão complexos e sua estrutura, mas a gente sempre vai estar
nesse lugar.
TR: Eu acho que quando você opta em sair da sala, você tem que entender o lugar.
O lugar vai te dizer, ele pode até não mandar na sua obra, mas ele vai te dizer
demais! você não pode escolher um espaço e anulá-lo por que você acha que deve,
ele vai dizer. Então, por exemplo, quando a ente fazia Abismo, cada casa dizia para
a gente como a peça seria. Quando a gente foi fazer o Rebola, as janelas, o espaço,
o espectador... então assim, eu acho que quando você sai, você tem que entender o
espaço para onde está indo, tem que deixar que ele diga também. Eu acho que o
espaço, por muitas vezes, fica quase o protagonista da peça, e é importante que
você entenda que ele tem um lugar representativo. Você desloca o espectador e tem
que entender qual lugar deste espectador que você quer colocar ali, porque você
saiu da sala e que espectador é esse que você quer nesse espaço outro, que
interferência esse despertador vai fazer, porque o público também tem outra
importância quando você tira da caixa e diz agora vamos ali ver uma peça de teatro.
Mas quando você faz isso, você já tá quase falando para o espectador que ele vai
assumir um outro tipo de postura. Quando você opta por sair, você tem que pensar
qual é esse espaço, entende-lo dialogando com ele. Das vezes que sai, por
exemplo, nunca conseguia ir para sala de ensaio fechada e fazer a minha peça e
depois pega-la e colocar lá no espaço, era preciso que esse procedimento
acontecesse, ou no próprio espaço, como foi o caso rebola, quando a gente ficou lá
274
o tempo todo fazendo essa peça, ou um lugar que se aproxime. Não adiantava em o
Abismo não ser ensaiado dentro do apartamento.
TR: É bem no inicio, antes de existir a peça. Eu penso mesmo até quando vou para
o teatro e às vezes fazer isso percorro teatro batalho para fazer nesse teatro, acho
que cabe nesse teatro, tem que ser mesmo. Ainda mais quando é em lugares fora
eu sei que eu preciso encontrar... eu estava com outro projeto, que tive que
abandonada porque já estava em outro, que era pra estudar o casario antigo ali do
Pelourinho e a gente na época já estava pesquisando qual seria se casarão ali do
Pelourinho da Bahia sapateira, qual seria esse espaço porque eu queria que a
construção de cantar com força a partir daquilo ali, o espaço. o Madame Satan eu
sabia que queria fazer no Martin Gonçalves. Vejo eu, vejo a peça, essa coisa da
projeção visual, eu vejo e digo, vai ser ali. E fico processando e pensando como vai
ser desenvolvido o espetáculo naquele lugar.
TR: No rebola eu fui antes. Fui antes porque queria escolher qual era o bar que eu
queria culpar no beco, eu sabia que queria bar grande, mas o procedimento da peça
começou logo quando eu abri o Projeto. então eu não fiz um reconhecimento de
espaço com a equipe, o espaço está aqui vamos nos apropriar dele. Mas é
importante que esse espaço seja impregnado no ator, que conheça as quinas, as
cadeiras e as paredes daquele lugar. O projeto de ocupação do beco foi assim: eu
montei um escola de drag-quens, porque eu queria pesquisar um pouco o desse
lugar do ator transformista, por uma questão afetiva que o belo que abriu a esse
espaço e aí com uma promessa para agenda de mascar, que foi o último Bar antes
do beco chegar completamente, falei eu vou fazer um projeto para trazer todo
mundo de volta. E aí convidei a vários grupos, que de uma certa maneira debatiam
gênero, ou tinha um lugar com a rua, com a cidade, e convidei várias artistas
transformistas e queria que os atores, que tivessem interesse de se montar, durante
a ocupação do beco, ás tarde, teriam uma escola de draqueen, maquiagem drag,
275
figurinos, dublagens e tudo. Esse foi o processo do rebola, que eu já sabia que ia
montar, que seria sobre o beco, mas não sabia como seria. Uma coisa muito
engraçada foi que as personagens do rebola surgiram antes da peça, por essa coisa
da apropriação do espaço de trabalhar com essa coisa da drag, do ator
transformista... era importante que a vivência deles fosse como atuantes, como
pessoas que trabalhava à noite. Então, assim, a gente foi construindo personagens
da vivencia mesmo ali no beco. Tem muito do ator, por isso que é difícil substituir o
ator que fez porque a Coanza, por exemplo, foi Sulivan quem criou. Um
personagem que surgiu antes do Rebola, ela tinha um discurso político, ela tinha um
repertório, e ela fazia achou ele fazer um Show... sem ninguém saber como era a
peça. O processo de ocupação durou três meses, mas eu montei em quinze dias
porque era muita atividade no beco, muita loucura acontecendo. Mas quando eu
montei, aquela personagem já tinham todo o arcabouço para viver, então era só
colocar alguma coisa na boca dela que tivesse a ver elas. Daniel escreveu para
aquelas personagens, ele não criou os personagens. Ele participou de todo o
processo, mas ele criou a peça a partir do que aconteceu no beco. E é muito
engraçado porque muitas delas existem para além da peça, viraram personalidades.
Os outros dois: o revê-lo a gente ensaiou no forte do Barbalho, mas gente depois já
fomos pro Rodan, a gente não ensaiou muito efetivo. E o abismo a gente ensaiou na
minha casa, num no apartamento que eu morava na época, na Cardeal, que era
importante que ele estivesse essa vivência de estar em uma casa, que não podia
mentir muito, não podia muito fazer teatro, tinha que acontecer. Então era importante
eles entenderem essa coisa do cômodo da casa, do debate dentro de casa.
TR: Na escolha desse espaço extra-palco, o espaço vai dizer pra caramba, então eu
vou me relacionar com ele fortemente. Quanto estou numa peça de palco, eu tenho
a imagem do cenário e ela vai norteando um pouco a concepção, mas é diferente
como ele influencia. Quando eu sai, às vezes que eu sai da caixa, o espaço disse
para mim várias coisas, então ele era quase um parceiro. Naquele bar era quase
parceiro, sabe, eu abria aquele bar, eu vendia naquele bar, eu botava o som daquele
bar, fechava as paredes daquele bar, eu coordenava a faxina daquele bar, virei um
dono de bar porque ele foi meu parceiro durante cinco meses. Então ele dizia para
mim a peça, se formos personificar o espaço, essa cena não pode ser aqui. Você
tem que entender, as passagens, as possibilidades, você não vai ter um palco com
uma luz com contra que vai surgir, mas como é que esse contra vem? Vem de uma
luz externa... Às vezes o ator estava iluminado pelo poste da janela. Então o espaço
vai dizer. Quando vou para caixa, a gente marca no chão e tal... não estou falando
que é menor, que fazemos um juízo de valor, é só que é diferente, entendeu?
TR: Ele, ele próprio. Ele já está fora do habitual, e é sempre um risco você sair,
sempre o risco, você tem que ter ideia disso. Vai ter que rebolar muito pra entender
o espaço, entende porque ele escolheu, escutar ele, entender o silêncio e as
negativas. Eu sou de Candomblé, né, então o tempo fala com a gente, a folha fala, o
espaço a dizer. No rebola a gente preparou o espaço para ser massa, porque às
vezes você pode ir para um espaço que não ser quer que aconteça sua obra e aí
você vai ter que dialogar com aquilo. Lembro um dos meninos fazendo os anjos
agora, também, ele tinha que entender a rua, não era ele se fantasiar de
personagens da rua e fazer, tem que entender a rua, a mecânica da rua, como eu
que tive que entender a mecânica do bar e saber que eu estava em risco. Acho que
o seu maior desafio peitar que você vai sair da caixa, entendeu, que é o grande
risco.
277
TR: O teatro documentário me deu muito subsidio para entender os esses limites.
Quando você sai, eu acho que o abismo e o rebola fala bastante nesse lugar, o ator
atuante ali, ele tem que entender que a opção foi para lhe dar nesse limite entre a
ficção e a potencialidade do real, são os teatros do real. Então, as pessoas que
estavam no beco dos Artistas precisavam entender que aquilo podia acontecer em
qualquer lugar no sentido de real que está dizendo, e isso coloca para o ator, um
outro tipo de postura. Eu gosto de lidar com esse limite quando você não sabe que é
verdade sem mentira se acontecesse não aconteceu, o Rebola começa com
Hamilton surtando, fechando as portas, botando todo mundo pra fora, ele não tá
mais aguentando viver ali, não tem futuro ali. Mas aí o que trabalho que eu tive que
fazer com Hamilton para entender que ele não podia interpretar e é foda quando
você fala para o ator não interpretar. Aí ele me falava, então porque você me
chamou? O ator que fazer personagem. A gente lidava no Rebola com um
personagem, mas é um outro personagem, que já fricciona real o tempo inteiro que
é a drag queen. Você vai no show de Valeri Orara, e ali é Valeri, você vai sair com
ela, vai tomar uma cerveja com você, ela vai conversar como Valeri, não é o ator
interpretando a Valeri, ela já tá borrada no real ali. O Abismo começava com um
quebra pau de dois caras. A peça começa com um cara saindo de carro indo
embora de casa. O trabalho que fiz com Marcelo foi de entender que quanto menos
você achar que o personagem não está próximo de você mais a peça vai acontecer.
E isso tem muito espaço também porque quando você opta, o espaço é real, você
vai trabalhar com uma realidade, por mais que esteja fazendo ficção o tempo inteiro.
É importante que o ator entenda também esse limite e friccione essa barreira e
dialogue com essa barreira entre real e ficção.
TR: Estou no tempo real, num espaço real construindo uma ficção, mas essa ficção
tem que ter tons fortíssimos daquela realidade, então eu entendo, quando da
escolha do espaço, que estou lidando com um ambiente da realidade, que por
acaso, eu vou fazer uma ficção ali dentro. Mas o teor real tem que ser muito forte,
278
muito próximo. Por mais que eu esteja trabalhando com uma grande fábula, eu vou
entender sempre a realidade daqueles espaços, a história que aquele espaço tem. É
importante dizer isso, no rebola eu não fui arbitrário, tinham muitas vozes silenciadas
e muitos lugares que eu precisava entender. Então a gente fez uma pesquisa
histórica muito forte ali, até para escolha do bar. Aquele bar teve mais aberturas e
fechamentos, então, esse limite que está no beco dos Artistas... até o tempo do
projeto, a escolha do espetáculo o último, porque eu podia abrir com o Rebola, mas
eu não teria tido tempo de entender a realidade daquele lugar, que a gente
escolheu. Então, acho que a postura da encenação muda, nesse sentido, porque por
mais que você for maquiar o espaço, cenograficamente, com luzes..., você tem que
entender que você está no espaço real, que está ali imbuído de memória. Essa
memória não pode ser apagada por você, pode, talvez, ser manipulada por você ou
então ficcionalizada por uma outra memória, mas quando eu escolho, enquanto
encenador, eu preciso entender aquele espaço, e não o conceber, no sentido de que
podia ser em qualquer lugar. É aquele último bar do Beco dos Artistas, aquele bar
tem uma história, aquele bar foi o primeiro bar que eu conheci quando eu vim para
Salvador, então também tem o lugar afetivo das escolhas. A minha encenação vai
se guiar por isso: entendendo a memória daqueles espaços, entendendo as
possibilidades do real que aquele espaço tem, por mais que eu vá fazer uma grande
ficção.
TR: Claro! O espaço vai dizer muita coisa pra você. Você deve ter tido essa
experiência com dois perdidos, né, você estava no Calabar, você não pode fazer
teatro no Calabar, no sentido de não entender aquele espaço, você escolheu aquele
espaço. Então, a partir do momento que você escolhe o espaço, você tem que
dialogar com ele. Você não tem que lidar apenas com o espaço, mas onde ele está
inserido. As minhas experiências não foi fazer teatro dentro do espaço extra, foi
entender o espaço que estava sendo apresentado, e o espaço vai dizendo. Você vai
se tornar um parceiro daquele lugar, aquele lugar tem as histórias dele, tem uma
energia dele, um imaginário... O espectador muda de postura, ele vira quase, não,
279
no rebola ele era participante, personagem em si mesmo ali dentro. Teve uma
apresentação do Rebola que chegou uma pessoa bêbada, que já estava lá ha muito
tempo, que era um bar... a escolha da concepção, eu pensava, cara, vou fazer uma
peça as 10 da noite, não pode ser teatro, porque seria um saco depois de ter
cantado no vídeo-quê, escutar música, bebido a noite toda... vir uma peça para pedir
para ela ser séria? aí essa pessoa bêbada chegou lá cedo, tranquila tomando a
cachaça dela, Hamilton também lá, sabia que estava estranho, porque estava com
um figurino estranho, porque Hamilton daquele jeito que você não sabe se ele está
interpretando se é ele mesmo...Aí tinha uma cena que os meninos amarravam
Hamilton para tentar salvar o bar, essa mulher bêbada começou a discutir com as
pessoas estão amarrando e depois começou a discutir com Hamilton ele cala a boca
que ela queria ver o show das drags e ele não estava deixando, começou a brigar
com ele e ele não podia fazer nada. Então o ator também tem outra preparação, né,
porque às vezes vai fazer a marca mas a pessoa chegou e sentou aqui, é claro que
a gente tentar mudar. No rebola eu não quis fazer muito isso de indicar onde você
deve sentar, porque era um bar. Então enquanto a peça está rolando as pessoas
podiam levantar, pegar uma cerveja, sair se quisesse, voltar depois... Então eles
tinham outro tipo de preparo, e por ter feito o processo todo naquele espaço, ajudou
muito. A gente não teve aquela técnica de entender o espaço, eles já eram donos
daquele lugar. Então, ele, sabiam que se tinha uma pessoa sentada aqui, a marca
tinha que puxar para outro lugar. Então vai se lidando com outros meios e outras
maneiras de entender a própria arquitetura do espetáculo que você está montando.
E é louco por que é vivo o tempo inteiro, cada dia era uma novidade. Teve um dia
que deu um curto-circuito, que a gente não sabe se foi provocado, ou mesmo das
estruturas da coisa, porque a gente pegou um bar sucateado, a gente teve que
refazer o telhado, num projeto que não tinha esse dinheiro para telhado, porque
chovia, caia goteira, e a gente não sabia dessa parte elétrica... E aí, na hora que
Hamilton fecha as cortinas, para tudo, um curto. Por acaso tinha Fred Alvim que
estava lá pra entender e ele tinha 10 minutos para resolver essa parada. E aí, foi o
espaço que se escolheu. Podíamos estar confortáveis na caixa, que dá problema
também, mas você podia estar tranquilo num contra, num LED, essas coisas... mas
se você escolheu, vai ter que lidar com isso.
280
TR: Como eu optei por um espaço, a primeira parte quando eu sai do teatro foi
entender o espaço. Então eu não estava preocupado com a dramaturgia, não estava
preocupado com o trabalho do ator, no sentido de decorar um texto, queria que ele
vivesse aquele lugar. Aí você faz outro tipo de processo, até para os exercícios
mesmo, para você se adaptar e tal. Quando você vai para peça na caixa ela tem
outra mecânica, de repente você vai no texto, na concepção, ou você risca no chão
espaço... eu acho que são inícios diferentes, a poética é próxima, porque sou eu
fazendo, tem na minha assinatura, mas o início é diferente. Eu talvez não penso
muito no espaço quando eu estou dentro do teatro, até porque seria lindo a gente
conseguir ensaiar no teatro ensaiando com o cenário, mas a gente sabe que a
realidade do país é outra, mas eu tive sorte que nos espaços que eu escolhi quando
sai, tinha possibilidade de dar nele, ou em algo muito próximo dele, o que ajudou
bastante. Acho que o que modifica, é que quando você escolhe um espaço, ele tem
que ser o primeiro, o primeiro lugar que você tem que ter é a intimidade com ele,
sabe? Quando você vai para outro espaço tem que repensar tudo e reconfigurar
tudo no sentido da linguagem.
TR: O espectador é pensado de uma outra maneira, a recepção dele é de uma outra
maneira, porque nas experiências que eu tive, o espectador é muito participante, é
muito autor junto com ator, né, é muito ator também, a gente desloca desse lugar de
assistir a tela, ele pode interferir. Eu sempre me preocupo que a peça que dialogue
com o espectador, mesmo se ela for uma peça por mais agressiva, como era o caso
do Abismo que os atores usavam facas que poderia machucar o espectador, mas
ele está lá e tem que sentir aquela tensão, também. Mas eu acho que quando eu
sai, das vezes que eu saí, a recepção muda, porque quando você desloca o
espectador da caixa, do quadrado ali, ele tem outra relação, e eu acho que esses
espetáculos causaram no espectador outras reações, como cumplicidade, com
aquilo que estava disposto, de participante daquilo, dele poderia interferir naquela
história. Quando você optar por fazer uma peça dentro da casa uma pessoa, que a
281
pessoa que vai chamar os amigos para ver um lugar que é de término, você não é
capaz de prever o que pode acontecer. A gente foi fazer Abismo em uma casa, em
Alagoinhas, e tem uma cena que um dos atores pegava uma faca para poder matar
o outro, num ímpeto de ser agressivo e violento com o outro, uma cena densa, e o
dono da casa caiu na gargalhada, ele começou a rir, rir, rir, o tempo inteiro. No final,
teve uma roda de conversa e ele pediu desculpa, porque, na verdade, a risada dele
não era de sarcasmo, nem de alegria, mas sim de identificação, porque ele tinha
vivido a mesma coisa na sala dele, naquele mesmo lugar, parece que estávamos
reproduzido o episódio que tinha acontecido há pouco tempo, só que a diferença
que não era uma faca, era um revólver. Ele também era gay, ele também estava
casado e também terminou o relacionamento. Então, assim, a recepção, quando
você desloca a pessoa, fica ali na identificação e na participação o tempo inteiro.
Nas experiências que eu tive, eu colocava o espectador também ali como
responsável daquilo, como uma pessoa que possa intervir. Teve uma cena que
Daniel cortou o pé em uma garrafa quebrada, sangrou, e veio pisando com sangue
na sala da pessoa. A pessoa pegou um curativo e enquanto a peça acontecia, ela
fazia o curativo. Então você desloca e a recepção é diferente. Muitas vezes as
pessoas se sentem parte daquela ficção que está acompanhando. Eu gosto dessas
coisas assim, tipo, eu não trouxe você para talvez ficar desconfortável vendo uma
peça de teatro, eu trouxe você para ver uma história, para ter experiência.
TR: Não organizo, não. Não sei se organizo... Eu penso no espectador naquele
lugar, não sei se eu preciso de uma organização para afetar, eu penso naquele
lugar, eu penso na possibilidade da dramaturgia e qual a participação que eu quero
do espectador...
TR: Não... eu tento fazer com que ele participe, com que ele queira participar. Eu
tento fazer com que um lugar seja diferente, sem aqueles clichês de chamá-lo para
participar, ele está misturado naquela coisa toda. Então eu não sei se eu organizo
282
TR: O público participa ali. O público não é passivo da coisa, mesmo quando está
dentro da caixa, mesmo quando eu estou lá no teatrão ele tem que refletir sobre
aquilo, sem essa coisa boba de reflexão como moral, nada disso. Ele tem que refletir
sobre aquilo, ele tem que participar daquilo, entender teatro como essa ferramenta
da experiência ou da transformação. Eu não gosto de entendê-lo como passivo,
nesse sentido de vou assistir e vou para casa. Eu gosto de entender espectador e
para quê eu quero espectador em cada peça que eu estou fazendo. Eu penso logo
no início, para quem é essa peça, o que eu quero dos espectadores, em que lugar
eu quero que ele esteja, quase um pensamento, tipo, meu cenário é uma casa, meu
figurino é vermelho e o público são os donos da casa. Eu faço a peça para o público.
Eu penso no público tempo inteiro, e tem uma preocupação, e tem uma coisa
didática também no mesmo trabalho, sabe, eu gosto de ser didático, acho que o
público precisa.
felizes. Então eu acho que a gente puxa o olhar para o espaço, com espectador,
para memória daqueles, para além daqueles espaços.
TR: Sim.
TR: O Revê-lo foi uma temporada bem regular, porque a gente estava em uma
instituição, tinha uma pauta, tinha dias e tal, fizemos nas sextas e sábados. O
rebolar ele era de quarta a sábado e o Abismo era um projeto itinerante, foi sempre
uma apresentação em cada casa. No rebola tinha uma coisa do projeto que previa x
apresentações a gente fez até mais, mas era porque nos tínhamos o espaço nosso
ali, e era possível fazer na hora que a gente quisesse.
TR: Não, não, não... engraçado, né, as vezes são experiências tão interessante,
mas estão fadados a morrer. não fiz. O Rebola acabou logo, a gente foi fazer em
outros lugares. Eu não tinha nenhuma perspectiva do Rebora voltar, ele foi criado
para morrer com o fim da ocupação do beco, eu sabia disso, ele voltou por
resistência da própria peça, porque quando acabou, os meninos pediram pra
continuar, aí veio o prêmio... aí conseguiu ter um folego, mas não no mesmo
espaço.
som, tem nada, é a casa que interessa pra gente. E o Rebola é mais complexo, mas
é possível existir em qualquer casa e o bar boteco.
TR: É possível. Eu não escolhi nada louco de espaços, né, a gente entendeu o
espaço, a mecânica do espaço e a peça acontece. O difícil é você circular e fazer
essa logística de entender que existe esse espaço, mas a gente já fez até um
mapeamento, diante da possibilidade de fazê-lo circular, de onde poderia ter as
possibilidades de acontecer.
TR: Todos eles foram. Perde tudo, perde o espaço, acaba com a conexão com a
realidade, é apenas teatro, dentro da convenção do teatro. O Rebola é o que mais
sinto isso. No Revê-lo, quando a gente tirou do cerimonial do museu Rodan e levou
para o teatro da Barroquinha, foi incrível porque era uma igreja, foi interessante
acontecer lá. O abismo virou uma peça meio chata. E a gente fez bastante, mas
quando ele está em locus, a coisa acontece. A gente fez essas apresentações numa
atitude de sobrevivência, da peça não acabar e dos convites que recebemos dos
festivais, mas o festival não tinha dinheiro para bancar a estrutura original, nem
talvez interesse de você estar em outro lugar, e aí a gente fez no teatro, mas perde a
força do espaço que você escolheu. A peça acontece, mas a sensação do
encenador, eu, que criei, é sempre de estar faltando um negócio. Falei isso no
Rebola e ou meninos perguntaram, falta o que respondi, o bar, falta o bar! A apesar
de apresentarmos em um lugar onde tinha um bar, a peça virava uma revista, um
cabaré, falta o espaço. Das vezes que eu tirei o espetáculo do espaço e fui para o
teatro, eu tive que fazer um trabalho interno em mim de não querer a essência da
peça que não ia ter. O que que a gente fez? No Rebola a gente fez uma adaptação,
não da encenação em si, mas de entender que estávamos no teatro; e quando ele
foi pro teatro ele precisava de outros aparatos, que pela falta do espaço, mudava de
lugar a peça. Então ele se tornou um teatro de revista, que contava uma história. A
285
gente precisava ter um bar com bebida, mas a gente fez uma luz, pensada para o
teatro, que o transporta para outro lugar, a estrutura do cenário muda um pouco, a
gente criou um cenário para a peça acontecer. Eu não vivi essa ilusão de fazer uma
adaptação que se aproxime, pois foram peças muito especificas. Mas o teatro
também influencia, todas as vezes que eu precisei fazer um teatro, pensei que teatro
era esse. Por exemplo, tem uma ele apresentação do Rebola no Vila, que não é
muito legal, porque no Vila você não pode entrar bebendo... aí ele virou peça
mesmo, Teatro, história, ficção... mas no Gregório a gente conseguiu um meio
termo.
TR: Sim, sim é outro pensamento, quer dizer, você tem toda uma pegada estética e
política na pesquisa sobre o que você vai fazer, eu acho que o encenador tem que
estar consciente da escolha quando quer sair para outro lugar. Esse lugar tem que
ser escutado, ele tem que ser estudado, e isso vai interferir na sua encenação, por
que a sua escolha espacial vai ditar sua encenação. Diferente de você fazer nos
outros moldes, você vai até construir, mas ali você está lidando com um lugar real,
ali você tá lidando com os espaços que precisam de escuta, de serem vistos,
apreciados. O ator que tá ali muda de lugar, também, porque, automaticamente, ele
é colocado em outro lugar, precisa entender aquele espaço, entender como ele vai
interferir na atuação dele, na relação com o espectador. Eu acho que são coisas
completamente diferente quando você opta por fazer um espetáculo fora, é outro
modo de estudo, por mais que sua poética, estética, filosofia, posição política
continue a mesma, você tem um outro atuante que é o espaço e a memória daquele
espaço.
TR: Não menti, inclusive eles nasceram da necessidade desse mesmo assim
quando ele escreveu Abismo era na casa das pessoas a gente não tio e o projeto do
Beco era para o beco a peça era apenas mais uma mais um item do pacote.
JJ: HÁ UM MERCADO?
TR: Existe uma moda. Mercado claro que existe, eu acho que a gente tem que
entender muita coisa, acho que o teatro inclusive quando o teatro dialoga com a
cidade é muito mais potente, eu acho, sabe? Eu acho que teve uma moda muito
grande de peças, acho que agora amenizou um pouco, mas que nem sempre eram
experiências felizes, porque eram experiências que não entendiam muito o espaço
onde estava encenado. Acho que quando você propõe ao espectador uma nova
experiência ele fica mais instigado, também... acho que tem mercado sim, enquanto
mais a gente entende essa mecânica mais incita.
TR: Não. O projeto do beco foi um projeto mais complexo, porque não era muita
grana, mas não tivemos grande dificuldades não, para além de coisas pontuais
como o deslocamento do horário convencional do teatro, a equipe que trabalhei
nestes três projetos distintos, aceitaram muito.
TR: Eu acho que primeiro você tem que entender o perfil do Produtor que você quer
para esse espaço, porque o pensamento do produtor está na execução, divulgação
e o que isso vai dar de retorno, pois é dinheiro público e a gente não pode perder
esse dinheiro, você não está brincando de fazer teatro, etc., e isso é difícil pra
caramba. Então, a escolha do Produtor que vai peitar isso é muito específico, tem
gente que produz super bem teatro, mas quando você propõe uma estética
diferenciada, vai dificultar sua relação, nesse sentido. Então eu acho que tem que
ser alguém sensível para esse lugar. Quando você sai do teatro já é caro, por mais
que você faça nada, é caro sair. E o produto tem que pensar numa estrutura daquilo
dá retorno, daquilo conseguir se manter pelo menos na temporada que ele está
acontecendo, que está sendo proposto, por que é diferente. As especificidades do
Rebola eram completamente diferentes das especificidades de um espetáculo de
teatro, no teatro, e isso é custoso. Ainda mais quando se tem que levar público,
divulgar... eu tive sorte das minhas experiências serem em lugares acessíveis, mas
ainda assim é caro. Mesmo simples é caro. Mesmo simples não cabe uma lotação
de um teatro. Dependendo do espaço você faz pra 10 pessoas, 15, depende do
tamanho do espaço. Aí o produtor tem que ser sensível neste sentido e pensar como
vai gerir isso. As estratégias de marketing e divulgação tem que se dar conta disso,
você não está no teatro, então tem que pensar qual será essa divulgação, qual o
apelo que vai ter... por isso, para além de tudo isso, a escolha do produtor tem que
ser bem estudada. Ou é uma pessoa que trabalha com você há muito tempo, ou é
um produtor sensível para entender que não vai ser muito rentável.
TR: Figurino sempre quando as pessoas, com como Tina porque a gente é uma
dupla, e como eu não consigo pensar a peça sem pensar o figurino...ela trabalha
comigo há muito tempo, dez anos, os primeiros figurinos do teatro da queda e faz
ate hoje. Eu não consigo fazer os figurinos sozinho, então recorro a ela... Trabalhei
muito trabalho com Rodrigo, agora que eu trabalho com Erick Saboya, já é o terceiro
espetáculo que ele vai fazer meu cenário. Luz é mais flutuante, trabalho muito tempo
Luizinho, mas agora ele está num negócio da Aldeia... A ficha técnica se repete
também por um tempo ou por uma recorrência. E Daniel sempre faz os textos.
TR: Por exemplo, o Luizinho fez a luz do rebola, não podia ser espetacular, tinha
que lidar com os espaços, com as possibilidades do espaço. O figurino tinha um
conceito também com o espaço, até com a cor que o espaço próprio tinha, eu não
mudei muito o beco, dei uma pintura, porque queria que ficasse mais neutro, mas
não mudei muito. Era a estrutura do bar, as mesmas coisas que já estava lá, só que
estavam muito sujo, descascado, deteriorado... não era legal tem um bar naquelas
condições. Mas, por exemplo, a dramaturgia, o texto era preciso acontecer
pensando nisso, eu não botei uma peça dentro do lugar, inclusive Daniel Arcades,
como estava sempre muito lá, até as rubricas que ele propôs, tinham a ver com
aquele espaço que ele estava vivendo. A gente fica muito envolvido com aquele
lugar e esse lugar diz muito pra gente.
289
JJ: ACHO QUE É ISSO, THIAGO, OBRIGADO. A GENTE FINALIZA AQUI. VOCÊ
PODE DISPONIBILIZAR OS ARQUIVOS DOS SEUS ESPETÁCULOS PARA QUE
EU POSSO CONFIGURAR TODA ESSA NOSSA CONVERSAS: TEXTOS,
ARTIGOS, CRÍTICAS, FOTOS...
TH: Claro. Eu tenho todo esse material e vou deixar à sua disposição.
JJ: OBRIGADO.