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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUACÃO EM ARTES CÊNICAS

JOSÉ JACKSON SILVA

O SITE-SPECIFIC NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO TEATRAL

PORTO ALEGRE
2020
JOSÉ JACKSON SILVA

O SITE-SPECIFIC NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO TEATRAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas do Instituto
de Artes da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul como requisito para a
obtenção do título de Doutor em Artes
Cênicas.

Orientador: Prof. Dr. Walter Lima Torres


Neto.

Área de concentração: Linguagem,


recepção e conhecimento em artes
cênicas.

PORTO ALEGRE
2020
JOSÉ JACKSON SILVA

O SITE-SPECIFIC NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO TEATRAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas do Instituto
de Artes da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul como requisito para a
obtenção do título de Doutor em Artes
Cênicas.

Aprovada em: 13/08/2020

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Walter Lima Torres Neto – Orientador
Universidade Federal do Paraná- UFPR

_______________________________________________________________
Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira
Universidade Do Estado de Santa Catarina- UDESC

_______________________________________________________________
Profª. Drª. Inês Alcaraz Marocco
Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ismael Scheffler
Universidade Tecnologica Federal Do Paraná- UTFPR

_______________________________________________________________
Profª. Drª. Silvia Balestreri Nunes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Ata de Defesa de Doutorado nº 05/2020

Aos treze dias do mês de agosto de dois mil e vinte, às 14 horas, realizou-se a
defesa pública da tese O SITE-SPECIFIC NA PERSPECTIVA DA DIREÇÃO
TEATRAL, do aluno José Jackson Silva, sob orientação do professor doutor
Walter Lima Torres Neto, perante banca examinadora composta pelos
professores doutores, Inês Alcaraz Marocco do Programa de Pós Graduação
em Artes Cênicas da UFRGS, Silvia Balestreri Nunes do Programa de Pós
Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, André Luiz Antunes Netto Carreira
do Departamento de Artes Cênicas da UDESC e Ismael Scheffler do
Departamento Acadêmico de Desenho Industrial da UTFPR. Diante da
excepcionalidade do momento e da necessidade do cumprimento de medidas
de contenção estabelecidas pelo Ministério da Saúde, assim como pelos
poderes estaduais e municipais, que visam evitar a propagação do novo
Corona vírus (Covid-19), a banca foi realizada com uso de recursos à distância,
seguindo orientações da Pró Reitoria de Pós Graduação da UFRGS, em
sessão virtual pública e amplamente divulgada. A banca considerou o trabalho
aprovado, ponderou as qualidades do texto, destacando a relevância do tema e
a escolha dos casos analisados. E apontou ajustes que considerou pertinentes
que foram discutidos durante a arguição. Encerrados os trabalhos, eu Walter
Lima Torres Neto, orientador da tese em exame, lavrei a presente Ata que
segue por mim assinada.

________________________________

Dr. Walter Lima Torres Neto


Orientador
AGRADECIMENTOS

A realização da presente tese de doutorado só foi possível graças a um


conjunto de pessoas que, de uma forma ou outra, contribuíram para a sua
concretização. Gostaria, assim, em primeiro lugar, de agradecer ao Prof. Dr. Walter
Lima Torres Neto, orientador desta tese, pela forma rigorosa, gentil e
profundamente empenhada como acompanhou o trabalho, desde a pesquisa até a
sua conclusão. A ele devo a leitura atenta e crítica deste trabalho.
Estou igualmente agradecido aos encenadores Anderson Maurício, Diego
Pinheiro e Thiago Romero pela oportunidade que me deram de alargar os limites da
pesquisa a partir dos desdobramentos e pensamentos críticos que fizeram sobre os
seus processos criativos, pelas informações compartilhadas e documentações
cedidas, que em muito contribuíram para o enriquecimento deste trabalho.
Aos professores doutores André Luiz Antunes Netto Carreira, Inês Alcaraz
Marocco, Ismael Scheffler e Silvia Balestreri Nunes, por aceitarem o convite para
participar da banca de doutorado, tecendo comentários e sugestões de fundamental
importância.
Os meus agradecimentos vão também para o Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em especial à
professora-coordenadora Mônica Fagundes Dantas. Bem como aos funcionários da
UFRGS, desde os mais próximos ao PPGAC, até aqueles que cuidavam da limpeza,
portarias, bibliotecas e alimentação dos RUs.
Agradeço à Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior
(CAPES), órgão de fundamental importância para fomento ao estudante
universitário.
Às políticas públicas implementadas nos governos do Partido dos
Trabalhadores entre os anos de 2002 e 2015, que sedimentaram a importância de
termos uma universidade pública, acessível, inclusiva e participativa.
Por fim, quero expressar a minha gratidão às minhas famílias e amigos, que
me deram suporte psicológico, espiritual e afetivo para continuar sonhando e
cultivando a utopia de um país melhor por meio da educação e da arte. Obrigado!
Você se deu conta da significação
cenográfica de um estádio quando vai
assistir a um jogo de futebol torcendo por
um dos dois times? Observe bem os dois
lados: eles são aparentemente iguais
embora antagônicos e têm a possibilidade
de assumir alternadamente o valor que você
dá a eles. Quando você se senta para
participar do jogo, um dos dois gols é o
território inimigo contraposto ao outro. O
espaço no qual os dois times contendem é o
território dramático de uma guerra de
Shakespeare. Estou fazendo essa
consideração porque gostaria que você se
desse conta de como um lugar, que não é
necessariamente o edifício teatral, pode
assumir- e assume- todos os valores
dramaticamente potenciais que contém e
provoca.
(Gianni Ratto)

Não existe uma forma de teatro que seja a


única realmente artística. Vocês podem
fazer os bons atores representarem hoje
num celeiro ou num teatro e amanhã num
botequim.
(Max Reinhardt)

O mundo é um Palco.
(William Shakespeare)
RESUMO

Esta tese investiga o processo criativo da direção teatral nos espetáculos produzidos
sob o conceito de site-specific. As reflexões aqui tratadas são resultantes do
comportamento criativo de três jovens encenadores brasileiros, Anderson Maurício,
Diego Pinheiro e Thiago Romero. A tese apresenta o estudo de caso de cada um
dos diretores, que juntos, oferecem um repertório para problematizarmos os
procedimentos que orientaram suas encenações. Em diálogo com os referenciais
teóricos canônicos que subsidiam o estudo do espaço teatral, esta tese se interroga
sobre a noção de site-specific em relação com a encenação contemporânea. Site-
specific é aqui contrastado com a definição de espaço cênico e lugar teatral. Esta
investigação compreende a prática do site-specific como articulação do trabalho
teatral, ao apontar para questões tanto estéticas quanto sociais, políticas,
econômicas e identitárias. Com esta tese, o autor pretende contribuir para a
ampliação dos estudos sobre o tema, assinalando as perspectivas que mediam os
fundamentos da direção teatral em site-specific.

Palavras-chave: Espaço cênico. Site-specific. Direção teatral.


ABSTRACT

This thesis investigates the creative process of the theatrical direction in the plays
produced under the site-specific concept. The reflections discussed here are the
result of the creative behavior of three young Brazilian directors, Anderson Maurício,
Diego Pinheiro and Thiago Romero. The thesis presents the case study of each of
the directors, who together offer a repertoire to problematize the procedures that
guided their staging. In dialogue with the canonical theoretical references that
subsidize this study of the theatrical space, this thesis questions the notion of site-
specific in relation to contemporary staging. Site-specific is here contrasted with the
definition of scenic space and theatrical place. This investigation includes the
practice of site-specific as an articulation of the theatrical work, by pointing out
aesthetic as well as social, political, economic and identity issues. With this thesis,
the author intends to contribute to the expansion of the studies on the theme,
highlighting out the perspectives that mediate the foundations of site-specific
theatrical direction.

Keywords: Scenic space. Site-specific. Theatrical direction.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Velha Fama (1906), de Alfred Athis, encenação de André Antoine. ....... 24
Figura 2 – Cenário de Appia para a ópera “Orfeu” (1913), de Willibald Gluck. ........ 26
Figura 3 – Desenho de Edward Gordon Craig para Hamlet (1910), encenação de
Stanislavski. ........................................................................................... 28
Figura 4 – Imagem de Opa, nós vivemos! (1927), de Ernest Toller e encenação de
Erwin Piscator. ....................................................................................... 30
Figura 5 – Imagem de O Corno Magnífico (1922), de Nick Worrall, e encenação de
Vsevolod Meyerhold. ............................................................................. 32
Figura 6 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil. Encenação de Ariane
Mnouchkine. .......................................................................................... 36
Figura 7 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil. Encenação de Ariane
Mnouchkine. .......................................................................................... 38
Figura 8 – Kordian (1962), encenação de Jerzy Grotowski. .................................... 41
Figura 9 – Desenho do cenário de Kordian (1962), encenação de Jerzy Grotowski.
............................................................................................................... 41
Figura 10 – Doutor Fausto (1963), encenação de Jerzy Grotowski. ........................ 42
Figura 11 – Desenho do cenário de Doutor Fausto (1963), encenação de Grotowski.
............................................................................................................... 42
Figura 12 – Desenho do cenário de Akropolis (1962), encenação de Grotowski..... 43
Figura 13 – Akropolis (1962), encenação de Grotowski. ......................................... 43
Figura 14 – O Príncipe Constante (1965), encenação de Grotowski. ...................... 44
Figura 15 – Desenho do cenário para O Príncipe Constante (1965), encenação de
Grotowski. .............................................................................................. 44
Figura 16 – Choco (1956). Encenação de Tadeusz Kantor. .................................... 49
Figura 17 – Dionísio 69 (1970), adaptação de As Bacantes de Eurípides, encenação
de Richard Schechner. .......................................................................... 52
Figura 18 – Mar Panorâmico (1967), um Happening de Tadeusz Kantor. ............... 56
Figura 19 – Arco Inclinado (1981), obra de Richard Serra. ...................................... 59
Figura 20 – Imagem de um Gabinete de Curiosidades............................................ 61
Figura 21 – Edifício O Abacaxi de Dunmore (1761), concebido por John Murray. .. 62
Figura 22 – Palácio Ideal (1879), construído na França por Ferdinand Cheval. ...... 63
Figura 23 – Obra Pedra e Ar (1966), concebida por Lygia Clark. ............................ 64
Figura 24 – Cais em Espiral (1970), obra concebida por Robert Smithson. ............ 66
Figura 25 – Quintal (1961), performance concebida por Allan Kaprow.................... 68
Figura 26 – Imagem de BR3, encenação de Antônio Araújo para o Teatro da
Vertigem. ............................................................................................... 75
Figura 27 – A morte de Danton (1977), texto de Georg Büchner, encenado por
Aderbal Freire. ....................................................................................... 85
Figura 28 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenação de Anderson Maurício. ........................................................ 94
Figura 29 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenada por Anderson Maurício. ......................................................... 96
Figura 30 – Imagem do Cordel do amor sem fim (2007), texto de Claudia Barral,
encenação de Anderson Maurício. ........................................................ 99
Fluxograma 1 – Estrutura de criação do Cordel do Amor Sem Fim. ..................... 100
Figura 31 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 102
Figura 32 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 104
Fluxograma 2 – Estrutura de criação do espetáculo Dentro é Lugar Longe. ........ 106
Figura 33 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei Borges,
encenação de Anderson Maurício. ...................................................... 113
Figura 34 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 124
Figura 35 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 125
Figura 36 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 129
Figura 37 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de
Thiago Romero. ................................................................................... 138
Fluxograma 3 – Estrutura de criação do espetáculo Rebola. ................................ 144
Figura 38 – Imagem da “casa preta” utilizada na encenação de Arbitrio (2011), texto
e direção de Diego Pinheiro................................................................. 150
Figura 39 – Imagem de Arbítrio (2011), texto e direção de Diego Pinheiro. .......... 151
Figura 40 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.......... 152
Figura 41 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.......... 153
Fluxograma 4 – Estrutura de criação do espetáculo Arbítrio e Oroboro................ 157
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

1 ESPAÇO CÊNICO: O ESPAÇO DA ENCENAÇÃO ............................................. 22

1.1 DINÂMICAS DO ESPAÇO DA ENCENAÇÃO .............................................................. 25


1.2 CONVENÇÃO CONSCIENTE ....................................................................................... 31
1.3 O ESPAÇO CÊNICO RELACIONAL............................................................................. 34
1.4 TEATRO LABORATÓRIO ............................................................................................ 38
1.5 O ESPAÇO CÊNICO AMBIENTAL ............................................................................... 45
1.6 TEATRO AMBIENTALISTA.......................................................................................... 50
2 ARTE SITE-SPECIFIC: O AMBIENTE COMO GÊNESE DA CRIAÇÃO ............. 57

2.1 GENEALOGIAS ............................................................................................................ 60


2.2 A PERFORMATIVIDADE DOS ESPAÇOS ................................................................... 67
2.3 A PRÁTICA DO LUGAR COMO GÊNESE DA ENCENAÇÃO...................................... 69
3 DO ESPAÇO ALTERNATIVO AO SITE-SPECIFIC ............................................. 86

3.1 ANDERSON MAURÍCIO E A TRUPE SINHÁ ZÓZIMA ................................................. 88


3.2 CORDEL DO AMOR SEM FIM: O ÔNIBUS COMO ALTERNATIVA TEATRAL........... 91
3.3 DENTRO É LUGAR LONGE: O ÔNIBUS COMO CONCEPÇÃO TEATRAL .............. 100
3.4 DECOMPONDO O ÔNIBUS CÊNICO ......................................................................... 107
4 AS REMINISCÊNCIAS DO ESPAÇO ................................................................. 117

4.1 THIAGO ROMERO E O TEATRO DA QUEDA ........................................................... 118


4.1 O PROCESSO DE PESQUISA ................................................................................... 120
4.2 BECO DOS ARTISTAS............................................................................................... 120
4.3 PROPOSTA CÊNICA.................................................................................................. 122
4.6 INTERFERÊNCIA DO REAL....................................................................................... 132
4.7 EQUIPAGEM .............................................................................................................. 134
4.8 ESPECTADOR TRAGADO ......................................................................................... 136
4.9 PRODUÇÃO E VEICULAÇÃO .................................................................................... 139
4.10 VARIAÇÃO OPERACIONAL .................................................................................... 141
5 A DIREÇÃO HABITA E SE DESLOCA EM FUNÇÃO DO ESPAÇO ................ 146

5.1 DIEGO PINHEIRO E A TEMPORALIDADE DOS ESPAÇOS ..................................... 147


5.2 PROPOSTAS CÊNICAS: ARBÍTRIO .......................................................................... 149
5.3 PROPOSTAS CÊNICAS: OROBORO ........................................................................ 151
5.4 FORMAS DE HABITAR .............................................................................................. 153
5.5 MAPEAMENTO........................................................................................................... 156
5.6 O ESPAÇO MOVE A ENCENAÇÃO ........................................................................... 157
5.7 HORIZONTE DE EXPECTATIVA................................................................................ 162
5.8 CRISE OPERACIONAL .............................................................................................. 164
6. DA DIREÇÃO NO SITE-SPECIFIC.................................................................... 170

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 176

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 184

APÊNDICE A - ENTREVISTA COM ANDERSON MAURÍCIO ............................. 191

APÊNDICE B - ENTREVISTA COM DIEGO PINHEIRO ....................................... 232

APÊNDICE C - ENTREVISTA COM THIAGO ROMERO ...................................... 259


12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata de aspectos particulares da relação entre a direção


teatral e os espetáculos criados sob o conceito site-specific, acentuando a
necessidade de discussão do tema no meio acadêmico brasileiro. Sob tal
perspectiva, a pesquisa aqui registrada abarca a observação dos espaços cênicos
não-teatrais como questão que integra organicamente o trabalho do diretor teatral
contemporâneo e os aprendizados decorrentes desta relação.
Na tentativa de pensar sobre a gênese dessa investigação, principio aqui com
um relato de criação para pontuar as estruturas e objetivos que norteiam este
trabalho: Ano de 2011, encontrava-me no parapeito da janela do quarto onde
habitava pensando sobre o planejamento de uma obra que seria a minha peça de
formatura em direção teatral. Mesmo desejando o fim do curso, estava angustiado
com a possibilidade de apresentar o espetáculo em um edifício teatral (esses
espaços não me movem como encenador), contudo, minha vontade de findar essa
etapa de formação me apressava e a náusea era inevitável, diante da suposição de
abandonar a ideia essencial que me motivou a ser um bacharel em teatro: investigar,
analisar e conceber processos de encenação em espaços não-teatrais.
Sentado no parapeito, com uma perna dentro do quarto, a sustentar no pé
uma sandália tipicamente brasileira, que destoa da outra que pendia do lado de fora
da janela (numa oscilação quase que involuntária, dada a pressão atmosférica que a
pressionava), esta começou a balançar de um lado a outro, ora tocando a parede,
ora tocando o vento, em movimentos ambíguos que iam se intensificando com o
transcorrer dos segundos, e por um lapso, a chinela que estava no pé de fora,
ganhou asas e pousou sobre o telhado da casa vizinha, levando consigo os olhos
que descansavam sobre o livro O Teatro e seu espaço, de Peter Brook.
Ao mover a cabeça para alcançar, com o olhar, a sandália fugidia, me deparei
com um possível espaço cênico para materializar a encenação que me inquietava há
dias, ao avistar, no horizonte, a comunidade do Calabar (Salvador - BA) que, como
um maremoto, remexeu as águas turvas e paradas da minha criação de então,
fazendo emergir a pergunta que me perseguia há anos: Qual a função do lugar
teatral no processo criativo do encenador?
Deste lampejo, me ocorreu a concepção geral do espetáculo, ao considerar
aquela comunidade como epicentro e ressonância da minha criação cênica,
13

totalmente justificada na encenação de Dois Perdidos Numa Noite Suja, onde


imaginei que ali poderia haver uma distorção nas ordens sobre as quais o teatro se
orienta, e isso me interessou, mesmo que essa opção tenha me posto à beira do
abismo. “Mas entre a beira e o abismo há um espaço”, e poderia muito bem
conceber uma encenação estando situado nalgum ponto entre os dois. Deveria,
portanto, começar o processo de criação e justapor o ficcional ao universo daquela
favela, que despontava aos meus olhos como possibilidade teatral (a realidade,
outra vez, dava suporte para a materialização daquela ficção que teve a realidade
como base, eterno retorno).
Com a plasmação dessa ideia, saltei para dentro do quarto e me vi no interior
de uma casa de alvenaria, de cor bege, com dois cômodos pequenos interligados,
fios elétricos pendentes, uma cozinha mais ao fundo e um banheiro ao lado. As
frestas do telhado deixavam os raios de luz entrar de leve, enquanto a umidade do
ambiente, impregnada na pele e na mucosa nasal, causava certo desconforto aos
viventes que se aventuram a adentrar na casa que acabei de alugar para ser o
espaço da minha encenação.
Mas agora que tinha o “meu palco”, por onde deveria começar? Deveria ter
convidado a equipe de criação para conhecer o espaço? Ter marcado leituras e
ensaios com os atores neste local para estabelecermos uma atmosfera de
intimidade e pertencimento com o espaço? Ter chamado o figurinista para
pensarmos os elementos da indumentária? Convocado o iluminador e o cenógrafo
para observarem as texturas e ambientes possíveis naquele espaço que seria
habitado pelo teatro? Não, nenhuma dessas opções me pareceu admissível.
Naquele momento optei por derrubar uma parede! Não a quarta de Antoine, mas a
parede de tijolos, cimento e areia que ligava um cômodo ao outro da casa.
Nesta empreitada, o meu primeiro gesto como encenador foi dialogar com um
improvável e fundamental articulador para esta etapa, um pedreiro (Geraldo), que
me deu a seguinte diretriz: “Veja bem, professor, não recomendo tirar a parede toda,
podemos cortá-la e deixar uma pilastra pra segurar a estrutura, pode ser que ela
seja de sustentação, eu não garanto a retirada”. Sem pestanejar, acolhi a
recomendação deste técnico e, enquanto caminhava em direção a cozinha, as
batidas fortes da marreta soavam sobre os tijolos, enredados com gritos de crianças,
latidos de cachorros, sirenes de ambulâncias e funk music emitidas de algum
14

equipamento sonoro da vizinhança, que me fizeram perceber que aquele ambiente


teria muito a dizer. Conclui em pensamento: Este espaço é desafiador para a minha
proposição, a encenação pode se desenvolver a partir dele.
Do ponto de vista operacional, passei a indagar como instalar os
equipamentos de som, luz e cenografia dentro da casa para materializar a
linguagem teatral, porque, até então, eu tinha apenas a realidade da parede cortada,
do piso de cimento queimado, da teia da aranha nos cantos e dos sons ao redor,
que eram percebidos mesmo com a porta fechada. Precisava, portanto, seguindo as
orientações dos manuais teatrais, neutralizar esse espaço, instalar os equipamentos,
acomodar o público, construir uma ambientação adequada para receber os atores.
O como (metodológico) tomou conta de toda a minha criação, era preciso
ressignificar os fundamentos da linguagem teatral (palco, plateia, equipamento de
som, luz, elementos visuais, produção, divulgação, etc.) naquela estrutura distante
da neutralidade e assepsia dos espaços reservados para o teatro.
Pondo método na loucura, decidi passar uma noite na casa vazia e tentar
perceber as dinâmicas daquele ambiente quando o sol se punha: ao anoitecer, a
temperatura baixou, os rádios foram desligados, as crianças silenciaram, os
pássaros dormiram. Mas o silêncio desejado era impossível: as TVs ligaram, os
vizinhos brigavam, as descargas dos vasos sanitários foram acionadas, a água dos
chuveiros caía no piso, a mulher chamava pelo marido, o marido gritava pelo gol e
os cachorros continuavam a ladrar com os fogos de artifício, enquanto as sirenes
passavam ao largo. Aliados aos sons, os cheiros do café, do sabonete, da pólvora.
Com a noite, igualmente imaginei que o espaço ficaria totalmente às escuras
e, assim, poderíamos instalar equipamentos para materializar uma luz cênica,
controlada, capaz de suprir as demandas necessárias àquela criação (ledo engano).
Na lateral da casa havia a luz de um poste, que entrava pelas frestas da porta e
banhava parte do espaço interno da casa.
Por um lapso, decidi pintar tudo de preto, colocar tapumes na porta, encontrar
um modo de restringir a entrada dos sons e transformar aquele lugar em um espaço
teatral alternativo, era isso que eu entendia que precisava até então. No dia
seguinte, abdiquei dessa ideia.
Na ocasião, estimulei os atores a fazerem um breve reconhecimento de
“palco” e realizar uma leitura do texto para observarmos a acústica do lugar
15

(gargalho ao lembrar isso, mas foi assim que me foi ensinado, precisei desaprender
a ser um diretor convencional). Após a leitura, a vizinha do lado nos ofertou água e
exclamou em voz alta: “Nossa, esse Paco é maluco, hein!” (Paco é o nome do
personagem da peça).
Naquele instante tive outro clarão, percebi que a força motriz daquela
encenação deveria ser a realidade material e concreta daquele lugar, que se
compunha por meio das camadas sociopolíticas e culturais (portanto históricas),
caras à sociedade brasileira.
As especificidades daquele espaço, portanto, não deveriam ser apagadas ou
anuladas, pelo contrário, deveriam ser redimensionadas, pois seriam delas onde os
atores, cenógrafo, iluminador, maquiador, figurinista, produtora e eu (diretor) iriamos
nos deter para construir aquele trabalho.
Se os sons vinham da rua, a descarga da casa ao lado era acionada, ou a TV
era ligada, tínhamos que usar; se a luz do poste banhava o espaço interno e
goteiras molhavam o piso sempre que chovia, tínhamos que usar; se o interruptor da
luz estava desgastado, deveríamos usá-lo assim mesmo; se a aranha fazia uma
teia, tínhamos que aproveitá-la. Precisaríamos trajar a realidade para construir
nossa ficção. “Não estamos fazendo teatro realista, nem hiper-realista, estamos
fazendo teatro no real” (lembro-me de ter dito aos atores, na ocasião), e essa
sentença mudou tudo.
Tínhamos esperado nalgum lugar que aquele recinto estivesse pronto para
nos receber? Ou considerava que o teatro precisaria admitir aquele ambiente? Do
ponto de vista da utilidade, a segunda dessas hipóteses era de longe a melhor, e
teria com frequência a oportunidade de empregá-la. Mas elas eram desagradáveis,
as duas. Direi, portanto, que nossos começos coincidiram, que aquele lugar foi feito
unicamente para minha criação, e que os ruídos que ainda não conhecia eram os
que ainda não se fizeram ouvir. E minha surpresa? Eu deveria esperá-los. Porque foi
na relação com aquele ambiente onde brotou a semente do meu aprendizado como
diretor teatral para aquele espaço cênico incomum, não na imposição de uma
cartilha, ali tão útil quanto um relógio sem pilhas.
Dessa constatação, o desenvolvimento da encenação foi sento construído
levando em consideração o nosso grau de intimidade com aquele lugar e suas
conjunturas. A iluminação que usamos foi a que existia na casa (três interruptores
16

para três lâmpadas incandescentes nos três cômodos), e justapomos os códigos da


nossa linguagem para construir atmosferas, passagem de tempo, cortes. A luz do
poste e até a luz dos cigarros que os atores fumavam no breu, nos serviu como
recurso cênico, assim como a fumaça e o odor.
A cenografia, sem simulacros, foi orientada para revelar o ambiente pessoal
de cada personagem (morador daquela comunidade), que tinha sua cama, seu time
de futebol, sua fé e sexualidade expostas nas paredes. Que tomava banho e
exalava o cheiro do sabonete; que fazia o seu café e impregnava todo o espaço; que
comia seu “pão dormido” enquanto comentava (em cena) as notícias do telejornal
que ouvia da casa do vizinho (residente do não-ficcional).
Àquela altura, intuí que à encenação nada era mais prejudicial do que as
configurações encapsuladas do teatro de sala, fosse como criação, produção ou
recepção. Por exemplo, aos espectadores (externos) era necessária certa
orientação dentro da coerência interna daquela criação, para compreenderem os
meios de acesso e permanência no lugar não-teatral. Não era simpática a ideia de
chegarem à comunidade em seus carros ou transportes particulares (como a fazer
um safari antropológico). No meu entendimento, eles deveriam acessar o lugar
teatral por meio de peruas (transporte alternativo) e serem imersos, desde o início
da experiência, naquela realidade imperativa sobre a qual a encenação havia
assentado suas bases.
Deste modo, toda a vivência daquele experimento cênico deveria ser
totalmente porosa, para absolver os atravessamentos do ambiente. Isto não implica
que a estrutura da encenação seria necessariamente flexível ou instável, porém,
exigia que qualquer procedimento adotado pela direção pudesse ser concebido a
partir de um conjunto de elementos que definiam o território sob o qual a peça
estava sendo concebida, relativamente estáveis dentro daquela composição.
A estrutura do rizoma, convencionada por Deleuze e Guattari, talvez pudesse
explicar os fundamentos que a superfície escondia naquela criação de
aprendizagem antimodelo empreendida por mim de maneira empírica, pois a
construção do conhecimento naquele tipo de encenação não derivou, por motivos
óbvios, de um conjunto de instruções, mas sim de reelaborações simultâneas, a
partir de vários pontos relativos ao ambiente e sob a influência de diferentes
17

observações e conceptualizações, advindas daquele lugar praticado como espaço


cênico.
Com o passar dos anos, depreendi daquela experiência e de outras que se
somaram, como criador, espectador e pesquisador, que o território no qual eu me
situava era o da arte site-specific, prática instituída nos idos de 1960, que
corresponde às obras pensadas especificamente para uma determinada localidade
(não institucionalizada), na qual o trabalho artístico se concretiza por meio das
coordenadas e estruturas encontradas no próprio ambiente. Comprometendo, nesta
técnica, uma reorganização das estruturas sobre as quais as artes se fundamentam,
desde a concepção, passando pela exposição e recepção. Trabalhos estes,
compostos por um conjunto de conceitos e metodologias distintas das praticadas
nos espaços convencionais. (fim do relato)
Visto à distância, o aprendizado decorrente da encenação na favela do
Calabar me orienta para pensar procedimentos criativos de outros diretores teatrais
ao encenar no site-specific, ao entender que, de certo modo, as estruturas espaciais
sob as quais as encenações se estabelecem redimensionam a composição da
direção teatral, e oferecem abertura para esse estudo.
De tal modo, o eixo principal desta pesquisa está centrado sob o trabalho da
direção teatral nas encenações que consideram o espaço como força motriz da
realização cênica, cujas intervenções por ele suscitada não são apenas uma
contribuição conceitual, mas dialética, metodológica e crítica. Sendo, pois, um
gerador de mudanças contundentes no fazer artístico, ao provocar, nos realizadores,
singulares atitudes de criação, produção, recepção e veiculação.
Frente a tal perspectiva, estaríamos diante de uma reconfiguração dos
procedimentos criativos da direção teatral? Ou estaria esse agente, novamente,
relegado a um papel secundário de mero organizador material ou disciplinador de
uma equipe, operando sob os procedimentos do teatro de espetáculos de salas,
homônimas à linguagem, que são estudados, experimentados e apreendidos nos
diversos cursos de formação?
De modo orgânico, a hipótese deflagradora desta tese está ligada à minha
trajetória particular no teatro, na qual percebo claramente que a encenação site-
specific pode reconfigurar o território da direção teatral através dos novos
agenciamentos inerentes à prática e, com isso, impele esse agente criativo a
18

modificar a sua atuação sobre o espaço cênico. Pois, diferente do que ocorre no
teatro de sala (onde o espaço geralmente é admitido como lugar de exposição para
os trabalhos produzidos numa sala “neutra” de ensaio), no teatro site-specific o
espaço tem um significado estrutural na concepção da encenação.
Seria possível, então, estabelecer procedimentos comuns aos encenadores
que atuam nesses espaços cênicos tão diversos? A criação do espetáculo site-
specific, tendo o espaço como propulsor da encenação, amplia o entendimento do
encenador sobre o seu ofício? Ou, ainda, quais seriam as características dos
encenadores e encenadoras forjadas pela estética site-specific?
Noutras palavras: a reconfiguração e contaminação metodológica da direção
teatral, a partir das demandas do site-specific, colocaria em perigo a hegemonia de
sua criação ou, pelo contrário, a redimensionaria? Como se estabelece a criação da
direção teatral diante das inevitáveis problematizações e negociações presentes em
processos dessa natureza?
São, precisamente, essas perguntas que tentarei responder ao longo desse
estudo, ao utilizar como método de pesquisa uma abordagem fenomenológica,
considerando a descrição das práticas de três diretores teatrais, da minha geração,
que trabalham sob os conceitos do teatro site-specific: Anderson Maurício (diretor da
Trupe Sinhá Zózima, fundada na cidade de São Paulo - SP); Diego Pinheiro (diretor
do coletivo cênico Teatro Base, instituído na cidade de Salvador - BA); e Thiago
Romero (diretor do grupo Teatro da Queda, organizado no Rio de Janeiro - RJ,
todavia, alocado em Salvador - BA).1
O intento aqui não é analisar os espetáculos do ponto de vista crítico,
tampouco a recepção dos trabalhos cênicos desenvolvidos pelos diretores, mas
reconhecer e problematizar estratégias utilizadas pelos criadores entrevistados, com
a finalidade de discutir de que modo tais questões podem colaborar com o
aprendizado sobre a direção teatral que se aventura no território do site-specific.
Para tal, elaboro uma descrição e análise da experiência de criação de dois
espetáculos dirigidos por Anderson Maurício, a saber: Cordel do amor sem fim e
Dentro é lugar longe; dos espetáculos Arbítrio e Oroboro, assinados por Diego
Pinheiro; e do espetáculo Rebola, encenado por Thiago Romero, que juntos, nos

1
A opção por esses criadores se dá em razão do tempo-espaço no qual estamos inseridos (incluindo
o sociopolítico e as estruturas que condicionam o fazer teatral no Brasil) e, também, por ter assistido
aos espetáculos mencionados neste trabalho.
19

apresentam bastante material para descobrirmos, distinguirmos e ponderarmos


sobre as práticas do teatro site-specific sob o olhar desses diretores teatrais.
Sendo o tema do espaço cênico um componente caro neste enfoque, procurei
dialogar com teóricos que, de certa maneira, pudesse oferecer um arcabouço
consistente para fundamentar esta questão. Alguns serão facilmente identificados,
pois fazem parte das referências comuns aos pesquisadores da linguagem teatral,
enquanto outros, especialmente no que diz respeito ao conceito-chave dessa
pesquisa, podem ser novidade para muitos leitores. Contudo, gostaria de deixar
clara a minha opção por teóricos das artes, ao utilizar referências da arquitetura,
artes visuais e do teatro.
Estruturalmente, a pesquisa se organiza da seguinte maneira: no primeiro
capítulo realizo um breve panorama acerca do espaço cênico nas concepções dos
diretores modernos, com destaque para Antonin Artaud, Grotowski, Tadeusz Kantor
e Richard Schechner, em diálogo com as proposições de Francisco Javier em: El
espacio escenico como sistema significante, quando este autor problematiza o
espaço cênico a partir de três perspectivas – o lugar teatral, a cenografia e a ação
cênica – que determinam, basicamente, o tipo de comunicação que o espetáculo
busca com seu público.
O segundo capítulo traz uma discussão sobre o conceito de site-specific,
identificando algumas matrizes teóricas que orientam o seu modo de funcionamento
e as formulações advindas das artes visuais. Destaco os escritos de Miwon Kwon
(One place after another: Site-specific art and locational), que nos ajuda a
compreender os pressupostos da arte site-specific e as diversas camadas
fenomenológicas, político/social e discursivas que estão presentes nos trabalhos
artísticos dessa natureza. Além desta, os escritos de Erika Suderburg (Space, Site,
Intervention: situating installation art), que referência seu estudo no campo das artes
visuais e nos ajuda a situar este conceito, ao versar sobre uma possível genealogia
da arte site-specific considerando várias abordagens e práticas artísticas que
apresentam territórios semelhantes para conceber seus trabalhos.
A abordagem nomeadamente voltada para o teatro fica por conta de Fiona
Wilkie, na sua tese de doutorado intitulada Out of Place The Negotiation of Space in
Site-Specific Performance; de Nick Kaye, no livro Site-Specific Art: Performance,
Place and Documentacion; e, especialmente, Mike Pearson, no livro Site-specific
20

performance, onde o autor apresenta uma abordagem teórica de alguns


experimentos cênicos, considerando o evento cênico site-specific como obra
particular, não uma transposição ou adaptação do espetáculo de sala, e realçando
que a encenação site-specific tem que lidar, abraçar e coabitar com os fatores que
constituem o espaço: arquitetura, acaso, acidentes e incidentes.
Com facilidade se percebe a predominância de autores e títulos em língua
inglesa, pois não consegui localizar referências nacionais que pudessem servir de
arcabouço teórico relevante para abordar o conceito de teatro site-specific, uma vez
que a nossa compreensão sobre tal prática está enraizada no entendimento de
teatro em espaços alternativos. Ainda assim, busco um diálogo profundo com os
escritos de André Carreira, sobretudo no volume Teatro de Invasion; Silvia
Fernandes, em Teatralidades Contemporâneas, e Antônio Araújo, em A gênese da
Vertigem. Trago, também, teses e dissertações que trataram sobre o tema.
O terceiro capítulo se resguarda à exposição e reflexão sobre as encenações
site-specific. Neste, notadamente, analiso a prática e considerações de Anderson
Maurício, a fim de estabelecer ponderações e diferenciações entre o espaço
alternativo e o site-specific, atinando para as concepções e direcionamentos por trás
de cada modalidade, que impactam no trabalho da direção teatral.
No quarto e quinto capítulo, apresento as considerações dos encenadores
acerca da criação site-specific, ao descrever, codificar e esclarecer os
procedimentos adotados por cada um dos encenadores. Pretendo, nesta etapa,
entender, traduzir e comunicar as eventuais readequações ou redefinições do
trabalho do encenador numa dinâmica de criação capitaneada pelo espaço cênico,
ao traçar os pontos de convergências e intersecções que Diego Pinheiro e Thiago
Romero apresentam como possibilidades de atuação criativa do diretor.
Para tal, busco oferecer uma arguição em constante diálogo com as teorias
visitadas nos primeiros capítulos, a fim de esboçar as linhas operacionais por trás
dessas encenações, objetivando ser fiel às narrativas e documentos apresentados
pelos diretores ao longo desse estudo, mas, sobretudo, me empenhando em cultivar
uma aproximação das práticas elencadas com os conceitos do teatro site-specific e
seus diversos atravessamentos.
21

Na conclusão, traço algumas considerações sobre as experiências relatadas


ao longo do trabalho e pontuo o meu entendimento sobre a perspectiva da direção
teatral site-specific.
A escrita de cada capítulo, listados acima, foi construída na expectativa de
poder reconhecer e problematizar princípios que permitam à direção teatral
compreender os estágios da criação site-specific. Descrevo experiências e princípios
sem especificar regras ou um passo a passo, pois tais teorizações me parecem
profícuas para se pensar a função da encenação na contemporaneidade e, em
especial, as fundamentações das criações no que concerne à direção teatral.
Em suma, esta tese se configura como um estimulante exercício reflexivo
sobre a área da encenação, possibilitando, ainda, o compartilhamento da pesquisa
tanto no meio prático de uma sala de ensaio, como numa sala de aula, que, por mais
abertos e receptivos que tais ambientes possam ser, suas proposições ainda estão
pautadas sobre os princípios operacionais e criativos do teatro de espetáculo de
sala. Aqui reside a possibilidade de um diálogo diferenciado que esta tese pode vir a
proporcionar.
Isto posto, como no terceiro toque do bastão de Molière, lhes convido a abrir
os canais de percepção e se deixarem conduzir nesta experiência. Asseguro que
estarão muito bem acompanhados, porque os fundamentos deste estudo foram
pensados e construídos a partir daquilo que dá fundamento a todo e qualquer tipo de
processo investigativo: o desejo. Desejo de descobrir, criar e compartilhar novas
perspectivas e narrativas sobre esse velho hábito artístico que há séculos nos move.
22

1 ESPAÇO CÊNICO: O ESPAÇO DA ENCENAÇÃO

Em 1903, numa conferência realizada na cidade do Rio de Janeiro, o


encenador francês André Antoine (1958-1943) esboçou suas considerações sobre o
que ele entendia, naquele momento, acerca do espaço cênico, ao argumentar: “as
peças e as personagens que tentamos lhes apresentar ficam forçosamente
incompletas, sem a sua atmosfera, o seu meio, a sua perfeita encenação”
(ANTOINE, 2001, p. 60).
Embora estivesse falando da subordinação da cenografia ao texto dramático,
no auge do realismo, e da pouca estrutura e equipamentos das salas de espetáculos
brasileiros, pontuava, na sua fala, a evolução da cenografia que abandonara a
decoração cênica, e expunha as fundamentações que vinculam os espetáculos ao
seu espaço cênico e, mais que isso, ao contexto e atmosfera sob os quais as peças
foram orientadas.
Nesta exposição de Antoine, aparentemente óbvia e simplória, está contida
toda uma complexidade estrutural, sob a qual o teatro moderno, que ainda dava
seus primeiros passos, iria se debruçar para desenvolver a linguagem da encenação
teatral, formulação efetivada pelo diretor francês em questão, que lançou novos
paradigmas sob as artes cênicas, tendo o espaço da encenação como um dos
conceitos-chave para o desenvolvimento prático, teórico e discursivo subscrito nas
práticas e considerações conceituais dos diretores teatrais em suas diversas
poéticas de trabalho.
A propósito dessa evolução, a realidade pictórica que predominava sobre o
palco desde o Renascimento, com a invenção do proscênio, passou por uma
verdadeira transmutação com o advento do encenador e suas sistematizações dos
processos do espetáculo, e, sobretudo, pela possibilidade tecnológica da iluminação
elétrica, que despontou como uma realidade imperativa tanto na sociedade quanto
nos elementos da cena, visto que, já no final do século XIX, a eficiência e o controle
da luz elétrica, quando comparados às tecnologias que os antecederam,
promoveriam importantes mudanças no teatro.
Desde então, o conceito de cenografia passou a ser compreendido por pelo
menos três parâmetros, segundo Francisco Javier (1998): as arquiteturas teatrais,
que determinam, categoricamente, as fronteiras entre palco e plateia, ao delimitarem
o local reservado para o desenvolvimento do espetáculo e suas convenções; o
23

ambiente da fábula, no qual os personagens desenvolvem o enredo da peça; e as


ações cênicas, que na linguagem do teatro moderno podem ser percebidas desde
os deslocamentos dos atores sobre o ambiente da fábula, bem como pelas ações
realizadas por outros elementos da encenação que compõem a ambientação, sejam
eles adereços, objetos ou formas que ajudam no desenvolvimento da obra e, em
especial, no que diz respeito ao próprio ambiente onde a peça é criada, que impacta
em todo o processo da encenação. Assim, cenografia deixa de ser sinônimo de
decoração, para ser entendida como o espaço do jogo cênico.
Partindo desta perspectiva, e influenciado pela teoria naturalista de Emile Zola
(1840-1902), e pelas práticas da companhia do Duque de Sax Meininger (1826-
1914), André Antoine renuncia o teatro já datado e passa a denunciar a
irracionalidade dos cenários pintados em trompel’oeil, ao defender a composição do
espaço cênico realista, fundamentado na utilização de objetos cenográficos reais,
tridimensionais. Pois, segundo o encenador:

Há muito tempo pintam-se as camas, as mesas e as lareiras em


trompel’oeil, mas, nestes dez últimos anos, cedendo à irresistível
necessidade de semelhança que se manifestava entre o público,
tem-se, por um excesso de zelo, colocado muitos móveis, móveis
verdadeiros, os mais verdadeiros possíveis, sem se duvidar de que
esses móveis não estão nunca na escala da decoração, e que uma
encenação inquestionável necessitaria de móveis estabelecidos
segundo a perspectiva (ANTOINE, 2001, p. 35).

Na fala de Antoine, percebemos, nitidamente, as convenções cruciais do


palco em perspectiva, que, se por um lado foi ideal para o desenvolvimento da sua
teoria da quarta parede, por outro, impôs enormes limites tanto do ponto de vista da
criação, quanto da recepção, uma vez que suas críticas não eram direcionadas
apenas às ornamentações e possíveis arranjos cenográficos, mas, sobretudo, para a
arquitetura limitadora e repleta de dificuldades técnicas que prejudicava os anseios
deste encenador:

Cabe também a nós lutar contra duas falsas verdades indestrutíveis


presentes em nossos cenários modernos: a altura das bambolinas,
que não podemos baixar sem correr o risco de que as galerias
superiores percam uma parte do espetáculo, e a largura da boca de
cena. Havia noutros tempos uma terceira dificuldade que felizmente
desaparece, dia a dia, de todos os teatros: o funesto proscênio! Logo
24

ele não será mais do que uma triste lembrança, o pesadelo dos
encenadores2.

Ao tecer suas considerações sobre os dois pilares de sustentação do espaço


cênico (arquitetura e cenário), Antoine reflete que a principal mudança deste espaço
tem como ressonância um impacto direto nas ações cênicas dos atores, que passam
a ser um tanto mais condizentes com a estética realista, pois: “O jogo dos atores, em
meio a tantos objetos, no mobiliário complicado de nossos interiores modernos,
torna-se, apesar deles e também graças a eles, mais humanos, mais intensos e
mais vivos de atitude e de gestos” (ANTOINE, 2001, p. 37).

Figura 1 – Velha Fama (1906), de Alfred Athis, encenação de André Antoine.

Os atores interagem através dos elementos do cenário (mesas, cadeiras,


tapetes, portas ao fundo, etc.) que, pela organização espacial, sugere
diversas ações e possibilidades de jogos cênicos. Fotografia: G. Larcher.
Fonte: Galeria Virtual da Página da BnF3.

Deste modo, as palavras de Antoine apontam para uma nítida mudança


conceitual do uso do espaço cênico em decorrência do emprego de objetos, formas
e volumes sobre o palco, com a finalidade de dar veracidade às ações e jogos dos
atores, como podemos notar na imagem acima (figura 1), onde um grupo de atores
representa em uma cenografia que permite diversas possibilidades de arranjos e

2
ANTOINE, loc. cit.
3
Disponível em: http://expositions.bnf.fr/rouge/grand/50.htm
25

movimentações, desde cadeiras e mesas no primeiro plano, até tapetes e portas no


fundo, que nos faz pensar em deslocamentos físicos. Sugerindo, assim, que esse
ambiente tenha sido organizado não apenas para ilustrar uma ambientação
dramática, mas para dinamizar o trabalho dos atores de modo mais orgânico.

1.1 DINÂMICAS DO ESPAÇO DA ENCENAÇÃO

Se o espaço da encenação carecia de ser reformulado conceitualmente para


oferecer novas dinâmicas e potencialidades expressivas sobre as cenas, o
pioneirismo da concepção e exploração do espaço cênico proposta pelo suíço
Adolphe Appia (1862-1928), sob uma ótica simbolista, passa a ressaltar a
necessidade de criar espaços específicos para o desenvolvimento da linguagem
teatral como um todo, sem se acomodar a uma pretensa reprodução de realidade,
sob a qual a estética realista funda suas bases.
Para Appia, o espaço cênico deveria ser concebido como uma zona
heterogênea, formado por duas partes distintas, mas interdependentes: os
elementos animados (atores), e os elementos inanimados (o cenário, a luz e a
pintura). Desta formulação, defende que todas as convenções, modulações e ritmos
do espetáculo, surgem das negociações desses dois grupos atuantes.
Para chegar nesse entendimento, Appia elaborou um arranjo espacial cujos
elementos da cenografia passam a dialogar com a dinâmica cinética dos atores,
considerando, então, que a cenografia tem apenas uma maneira de se transportar
para a cena, que é através dos atores.
Como criador de espaços para a encenação, seu principal desafio consistiu
em explorar o palco mediante o estudo dos efeitos das formas e volumes
experimentados em cena, decorrente da investigação sistemática das formas
esculturais dos cenários construídos em três dimensões, submetidos ao crivo da
iluminação (como podemos ver na figura 2), utilizada por Appia não apenas como
instrumento de visibilidade, mas como atividade e mobilidade das cenas, já que
permite esculpir e modelar as formas e volumes do cenário e corpos dos atores,
promovendo o aparecimento e desaparecimento de sombras mais ou menos
espessas ou difusas.

[…] o que, senão a luz, dá essa magnífica unidade ao espetáculo


que contemplamos cada dia, permitindo-nos viver através dos
26

nossos olhos. Sem essa unidade, distinguiríamos apenas vagamente


o significado das coisas e nunca sua expressividade, pois, para que
as coisas sejam expressivas, elas devem ter forma, e forma sem luz
comunica apenas o sentido do tato (APPIA, 1962, p. 42 apud
TUDELLA, 2013, p. 578).

Os espaços concebidos por Appia, nas considerações de Roubine (1998),


conduzem o encenador cenógrafo a traçar as bases de uma concepção
arquitetônica cenográfica, na qual a praticabilidade deve reger globalmente a
organização do espaço cênico, denominado por Appia de espaços rítmicos.

Figura 2 – Cenário de Appia para a ópera “Orfeu” (1913), de Willibald Gluck.

As dinâmicas e possibilidades de arranjos cênicos se multiplicam e contam,


especialmente, com os deslocamentos dos atores para construir as
relações, significados e conjuntos de forças sobre as quais a encenação
não realista irá se desenvolver. Fonte: Collection Suisse du Theatre, Bern.

Tais espaços, animados pelas possibilidades dinâmicas da iluminação cênica,


proporcionaram a criação de novas estruturas e ferramentas para projeção de
formas e texturas sobre o palco, que assumiram a luz e a cor como objetos de
teorizações e práticas ao longo de todo o século XX, pois as sugestões praticadas
por Appia difundiram uma consciência para a expressividade da composição do
espaço cênico (forma, luz, cor e textura), como bem nota o teórico francês Jean-
Jacques Roubine: “não se trata de projeções figurativas, mas de meio de multiplicar
as possibilidades expressivas da luz, jogando com manchas de intensidades e cores
variáveis, mutantes, infinitamente maleáveis” (ROUBINE, 1998, p. 35).
27

Consequentemente, o espaço cênico que até então era empregado para


ambientar o drama, obteve uma nova abordagem nas concepções de Appia, ao se
tornar o terreno das ações cênicas e território do ator, este que se localiza no centro
de importância da sua arte, como explica Appia:

O terreno do ator no drama poético-musical é determinado, acima de


todas as outras considerações, pela sua presença. Entenda-se que
terreno não se refere apenas àquela parte do palco tocada pelos pés
do ator, mas tudo na composição do cenário, relativo à forma
material da personagem e às suas ações (APPIA, 1962, p. 64 apud
TUDELLA, 2013, p. 586).

No outro vértice dessa mudança de paradigma do uso do espaço cênico e


das mudanças tecnológicas que o dinamizava expressivamente, está o encenador e
cenógrafo inglês Gordon Craig (1872-1966), pensador da “Supermarionete” que,
diferentemente de Appia, apregoava o banimento dos atores da cena e a devida
revolução das equipagens da sala de espetáculos, para atender às exigências das
suas peças, pois, via seu teatro, a exemplo de Richard Wagner, como uma obra de
arte total. Nas suas palavras:

[…] a arte do teatro não é nem jogo dos atores, nem a peça, a
encenação, nem a dança, ela é formada pelos elementos que a
compõem: pelos gestos, que é a alma da atuação; pelas palavras,
que são o corpo da peça; pelas linhas e cores que são a própria
existência do cenário; pelo ritmo, que é o espaço da dança (CRAIG,
[19--], p. 115).

O espaço cênico apregoado por Craig estava diretamente relacionado com as


formas esculturais e a mobilidade dinâmica dos objetos inanimados, passiveis de
condução, numa relação direta com a presença viva dos atores, ainda que ele
exclamasse que a imprevisibilidade do orgânico poderia atrapalhar o pleno
desenvolvimento das ações cênicas.
Baseando sua teoria sob o conceito de “múltiplos palcos”, desenvolveu
cenários que possibilitavam uma experimentação expressiva de visualidades
mutáveis, com forte impacto visual. Craig foi o primeiro a ter considerado
sistematicamente o jogo do espaço nas ações cênicas do espetáculo, porque com
suas telas e painéis flutuantes proporcionava dinâmicas horizontais e verticais, que
deslocavam o cenário por todo o palco (ver figura 3).
As invenções de espacialidades da obra de Craig, a partir da concepção das
suas telas móveis, foram largamente difundidas e admiradas entre seus
28

contemporâneos, com destaque para Stanislavski, que, ao presenciar o processo


criativo do cenário de Craig para o Hamlet do Teatro de Arte de Moscou, em 1911,
incluiu nas suas memórias a perspectiva vanguardista que Craig oferecia à
linguagem teatral, ainda que limitado pela falta de tecnologias adequadas:

Vamos torcer para que chegue logo o tempo em que, no espaço


aéreo, vazio, raios novos redescobertos desenhem espectros de
tonalidades coloridas e combinações de linhas. Que venham outros
raios para iluminar o corpo humano, comunicando-lhes indefinições
de contornos, uma incorporeidade e a configuração espectral que
tanto conhecemos em nossos sonhos e sem a qual, é tão difícil nos
elevarmos as alturas. Só então, poderíamos realizar a cena
idealizada por Craig para o “ser ou não ser” (STANISLAVSKI, 1989,
p. 463).

Deste modo, fazendo uso de diversos dispositivos para conceber a


cenografia, como, por exemplo, praticáveis, escadas, colunas, pilares, rampas,
passarelas, pontes, esteiras deslizantes, elevadores, andaimes, telas e plataformas
móveis, Appia e Craig formularam as bases de toda a renovação cenográfica do
século XX, abandonando de vez a representação de ambientes, para ingressar nos
espaços múltiplos da criação.

Figura 3 – Desenho de Edward Gordon Craig para Hamlet (1910),


encenação de Stanislavski.

Nesta proposta espacial, Craig difunde a possibilidade de o cenário ser um


elemento atuante na encenação, através dos deslocamentos dos painéis
móveis (Screens) no sentido horizontal e vertical, construindo, assim,
29

dinâmicas, atmosferas e ambientações que interferem diretamente nas


ações dos personagens. Fonte: Dora Kallmus.
Podemos, então, com facilidade, afirmar que com esses criadores, por
analogia às artes plásticas, o espaço da encenação saiu do desenho (ilustração) em
direção à escultura, como os seus projetos arquitetônicos evidenciam, que passaram
a animar o espaço da encenação teatral.
Ainda que as reflexões, projetos e encenação de Appia e Craig para o espaço
cênico rogassem por uma reformulação que fosse capaz de abarcar as demandas
advindas dessa nova forma de pensar o espaço da cena, não apenas sob um ponto
de vista estético, mas, também, tecnológico, uma vez que as variações e dinâmicas
requeridas pelas proposições desses reformadores do espaço teatral solicitavam
equipamentos a contento (que o teatro ainda desconhecia, como, por exemplo,
aparelhos que possibilitassem o movimento em 360 graus dos cenários durante a
apresentação), seus projetos marcam o ponto de mudança do teatro moderno.
Por isso, não é de se admirar que o teatro de Craig torne-se um meio de
experimentação e fonte de invenção da espacialidade da obra de arte em confronto
com a presença física do corpo do ator, pois ele concebia o palco não apenas na
qualidade de cenógrafo simbolista e iluminador, mas aspirava uma cenografia
significante, mais do que uma monumentalidade vazia a ser animada, como destaca
Roubine:

As pesquisas de G. Craig visavam uma animação cada vez mais


complexa e rica das possibilidades expressivas do espaço cênico.
Daí um complexo trabalho, em matéria de luz, que tanto
impressionou seus contemporâneos. E também a famosa invenção
dos screens, espécie de anteparos que devem poder ser manejados
à vontade e permitir uma fluidez das formas e volumes, fluidez que a
luz, cortando as linhas retas, suavizando os volumes, arredondando
os ângulos ou, ao contrário, pondo-o em evidencia, tornaria absoluta.
Essa inovação técnica, que permitiu que o palco estático passasse a
um palco cinético (ROUBINE, 1998, p. 89).

Além das arquiteturas cenográficas construídas sobre o palco e da iluminação


na criação dinâmica e expressiva do espaço, outro dispositivo tecnológico contribuiu
significativamente para a construção dos espaços da cena como entendemos hoje:
as projeções de imagens em movimento, protagonizadas pelo encenador alemão
Erwin Piscator (1893-1966), que conseguiu fundir as práticas cenográficas
tridimensionais e móveis, com a utilização da cinematografia aliada à maquinaria
teatral para dar suporte à criação de um espaço virtual na encenação.
30

Segundo Roubine (1998), por meio de projeções, Piscator ampliava o número


de massa humana em cena, adicionando aos atores na cena uma multidão virtual
com função expressiva e dialógica, além de fazer uso de complexas estruturas
cenográficas horizontais e verticais que se comunicavam entre si por um sistema de
escadas no plano mais alto, o fundo do palco e, também, estruturas construídas
sobre plataformas giratórias, que proporcionavam mobilidade nas imagens
projetadas. Assinalava, assim, a carga expressiva do espaço cênico, em decorrência
da inter-relação dos atores com as projeções, ao romper com o plano tangível,
concreto da presença.

Figura 4 – Imagem de Opa, nós vivemos! (1927), de Ernest


Toller e encenação de Erwin Piscator.

O espaço cênico nesta proposta é composto pela sobreposição


de elementos físicos orientados verticalmente (escadas,
corrimãos, plataformas, portas, etc.), que além de dinâmicas
variadas, multiplicam as áreas de atuação, incluindo, nesta
estrutura, projeções que criam camadas de significações
próprias e ações cênicas no interior da trama.
Fonte: Sasha Stone.

Não por acaso, ao analisar o fenômeno da criação do espaço cênico,


enquanto ações cênicas, Javier (1998) nos sinaliza para a definição de “espaço da
encenação” subscrita por Josef Svoboda, ao perceber que o espaço cênico não é
mais um conceito abstrato paralisante que conduz, fatalmente, à seleção de
estruturas estereotipadas, mas o que se tem que levar em conta é a noção dinâmica
31

do espaço da encenação, que nasce da inter-relação concreta da obra dramática e


sua interpretação pelo encenador em parceria com o cenógrafo.
Partindo desta noção, conseguimos entender melhor a demarcação estética e
funcional das concepções espaciais protagonizadas pelos encenadores-
cenógrafos/iluminadores, que tensionaram o espaço a ponto de criar um novo
significado para as relações do teatro com o espaço cênico.
Estas práticas, que foram rapidamente assimiladas pela linguagem para
comportar as experiências subsequentes – como o Construtivismo, que surgiu no
fervor da Revolução Russa, em 1917, como uma alternativa revolucionária dos
meios de produção teatral, questionando, dentre outras coisas, a limitação do
espaço cênico circunscrito apenas à área de atuação –, projetaram o espaço da
encenação para outros espaços além das convenções habituais de então.

1.2 CONVENÇÃO CONSCIENTE

Igualmente, enquanto o teatro naturalista pretendia reproduzir


fotograficamente a realidade, e o simbolista preconizava a representação subjetiva e
simbólica do mundo sobre o palco, o Construtivismo, encabeçado por Vsevolod
Meyerhold (1874-1940), foi categórico ao se levantar contra a estrutura da sala de
espetáculos que, no entendimento do criador da biomecânica, devia suprimir os
balcões e galerias e elaborar um espaço no qual os atores e público pudessem estar
mais integrados, e este último pudesse ocupar qualquer lugar, independe da sua
classe social. Meyerhold é enfático ao sugerir que:

É preciso destruir definitivamente o palco. Senão será impossível


tornar o espetáculo dinâmico. A nova cena deve permitir ultrapassar
o tedioso sistema da unidade de lugar e a necessidade de limitar a
ação em quatro ou cinco atos; a maquinaria, liberta, será bastante
flexível para mostrar uma sucessão rápida dos episódios. A nova
cena, sem cortina, equipada de plataformas móveis horizontais e
verticais, permitirá utilizar as transformações do jogo e as
construções kinésicas (MEYERHOLD apud CONRADO, 1969, p.
184).

Sendo um dos pioneiros na exploração das possibilidades de utilização global


do espaço cênico, ao instaurar uma convenção consciente sobre o palco, Meyerhold
converteu o teatro num lugar de experimento e um foro de discussão, estruturando o
palco segundo planos, linhas e curvas que fizeram da cena uma máquina
32

expressiva, dinâmica e rítmica que deveria manter uma relação direta com as ações
dos atores, igualmente às concepções de Appia e Craig. Logo, em cena, nada
deveria figurar, mas funcionar como meio expressivo na construção de ritmos e
movimentos que dariam forma ao espetáculo.
Com tais proposições, Margot Berthold afirma que Meyerhold varreu dos
palcos os últimos vestígios do teatro burguês ao apresentar o seu método, em 1918,
na ocasião da estreia de Mistério Bufo, de Vladmier Maiakovski, tamanho reboliço
que o encenador causou durante na encenação:

Meyerhold acelerou o ritmo das máquinas de motores e rodas em


movimento; montou estruturas de metal como cenário; pôs figurantes
a correr a toda velocidade ao longo das primeiras fileiras da plateia
dispostas em cena; fê-los escalar andaimes e escorregar por
escadas de corda (BERTHOLD, 2001, p. 495).

Desta maneira, o encenador não estava preocupado em construir uma


atmosfera ou dar sentido emocional ao espetáculo, nem tampouco, criar uma ilusão
de realidade, mas criar um espaço cênico para explorar ritmos e dinâmicas nos
corpos dos atores sobre o palco e, também, dos espectadores na plateia, integrando
ambos durante o espetáculo, numa tentativa de expandir o espaço cênico para além
dos limites do palco.

Figura 5 – Imagem de O Corno Magnífico (1922), de Nick Worrall, e


encenação de Vsevolod Meyerhold.

A cenografia proposta por Meyerhold sugere dinâmicas que


condicionam as ações e expressividades dos atores, através de
dispositivos compostos por rampas, escadas e porta giratórias,
33

transformando o espaço cênico em uma espécie de caleidoscópio


espacial. Fonte: Liubov Popova's.

Neste sentido, com o intento de tornar o espectador participante ativo da ação


cênica e trabalhar com novas possibilidades de utilização do espaço, Meyerhold
pesquisa o princípio de estilização, que tem como base a ideia de síntese dos
elementos cênicos. Tendo como principal objetivo: abolir o exagero de objetos
cênicos que tornavam a cena carregada de detalhes, e que, muitas vezes,
desviavam a atenção do espectador, conforme relata o encenador:

Não entendo por “estilização” a produção exata do estilo de uma


determinada época ou acontecimento, como faz o fotógrafo em suas
fotos. Para mim, o conceito de estilização está indissoluvelmente
ligado à ideia de convenção, de generalização e de símbolo. Estilizar
uma época ou um fato significa dar, através de todos os meios de
expressão, a síntese interior dessa época ou desse fato, reproduzir
os traços específicos ocultos de uma obra de arte (MEYERHOLD,
1912, p. 9).

Nestes termos, Meyerhold propõe a estilização como princípio da convenção


consciente, por obrigar o ator a completar, pela sua imaginação, as alusões feitas
em cena. Logo, a síntese dos elementos cênicos é uma maneira de resumir um
conjunto de ideias a partir de seus conceitos primordiais, ou seja, as indicações e
ideias suscitadas pelo drama deveriam ser levadas ao palco através de signos que
pudessem ser compreendidos pelo espectador e assim, no palco, só estariam os
elementos essenciais para o entendimento do drama, contrariando as ideias
naturalistas de ilustração.
Além disso, Meyerhold propõe um teatro onde a plateia esteja ciente de estar
participando de uma representação construída pelos jogos das ações cênicas
capitaneados pelos atores, pois:

O novo teatro não procura a variedade dos jogos de cena como o faz
sempre o teatro naturalista, onde a multiplicidade das evoluções dá
lugar a um caleidoscópio de atitudes. O novo teatro aspira dominar
as linhas, a composição dos grupos, os coloridos das roupas, e na
sua imobilidade, exprime mil vezes melhor o movimento do teatro
naturalista. Pois não é o deslocamento propriamente dito que cria o
movimento no teatro, mas a representação das cores e das linhas, e
a arte de cruzá-las e fazê-las vibrar (MEYERHOLD, 1912, p. 38).

As ideias propostas pelo encenador russo apontam para um teatro visual,


onde os signos são devidamente estudados para transmitirem esteticamente a
34

mensagem desejada. Por essa razão, optou por colocar a cena no nível da
orquestra, aproximando, assim, atores e espectadores.

Suprimindo o proscênio elevado, o teatro da convenção abaixa a


cena ao nível da plateia e, tomando o ritmo como base da dicção e
do movimento dos atores, deixa entrever a possibilidade de um
renascimento da dança: além disso, nesse teatro a palavra poderá
facilmente transformar-se em um grito harmonioso ou em um silêncio
melodioso (MEYERHOLD, 1912, p. 45).

De todo modo, o teatro perseguido por Meyerhold, ao se dispor a colocar em


questão vários tratados cênicos perpetrados pelo teatro de proscênio, aponta para
uma progressiva teatralização dos elementos constitutivos da linguagem teatral, a
partir do emprego de convenções próprias do jogo cênico, difundidas nos seus
trabalhos, que leva o espaço da encenação a operar de forma ambígua e dinâmica,
forçando a experiência teatral a questionar sua formatação e denunciar suas
irracionalidades.
Em resumo, podemos apreender que as modificações do espaço cênico
sugestionadas pelas práticas e teorias dos encenadores e cenógrafos, elencados
até aqui, instituíram um território fértil de intersecção de linguagens, decorrente de
novas maneiras de abordar o espaço destinado aos eventos cênicos, dos avanços
tecnológicos e, também, do uso da iluminação elétrica e seus aparatos, bem como
da cinematografia (que instauraram uma era visual sem precedentes na história do
teatro), proporcionando uma expansão das fronteiras do espaço cênico.
Tal expansão conceitual deu origem a uma multiplicidade de novas formas
teatrais vanguardistas, que foram de importância capital para o espaço cênico ao
trazerem novas reflexões sobre a cena e problematizarem a estaticidade das
convenções, especialmente a relação essencial que existe entre a encenação e o
lugar onde é apresentada e a fricção com o universo do espectador. Preceitos
fundamentais para compreender a amplitude das propostas de Artaud, Grotowski,
Tadeusz Kantor e Schechner, que despontam com o intuito de revelar a emergência
de novos espaços para a encenação.

1.3 O ESPAÇO CÊNICO RELACIONAL

Em O Teatro e o seu Duplo, obra a partir da qual apresentou o “Teatro da


Crueldade”, Artaud aconselha, veementemente, o uso de um espaço que possa ser
explorado cenicamente em sua totalidade, extinguindo a dicotomia palco-plateia e a
35

frontalidade restritiva do teatro de proscênio, para reforçar a interação entre ator e


espectador, atuantes essenciais de qualquer evento cênico. Nas suas palavras,
Artaud defende a supressão total do palco e da sala, que pode ser substituído por
um lugar comum, no qual o preceito fundamental seria a proximidade e interação
entre atores e público. Assim,

Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o


espetáculo, entre o ator e espectador, pelo fato de o espectador,
colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse
envolvimento provém da própria configuração da sala (ARTAUD,
1999, p. 110).

Com essa proposição, Artaud desejava recuperar os domínios esquecidos


pelo teatro burguês: o metafísico, o cosmológico, o sagrado. Propondo o retorno à
forma e ao espaço ritualístico dos primórdios teatrais como meio para alcançar a
verdadeira razão de ser da linguagem teatral: a redescoberta do ato primordial entre
atores e espectadores ao partilharem o mesmo espaço tempo no momento efêmero
e não repetitivo, que caracteriza o evento cênico.

Esse envolvimento provém da própria configuração da sala. Assim,


abandonando as salas de teatro existentes usaremos um galpão ou
um celeiro qualquer, que reconstruiremos segundo os procedimentos
que resultaram na arquitetura de certas igrejas e certos lugares
sagrados, de certos templos do Alto Tibete. No interior dessa
construção reinarão proporções particulares em altura e
profundidade4.

Propõe, então, uma abertura através da qual se instaura uma comunhão com
o fluxo de forças presentes, tanto para os atores quanto para os espectadores. A
cena, neste espaço revisto, teria por objetivo preencher a percepção dos
espectadores por todos os lados da sala, não somente num frente a frente a fim de
privilegiar a visão. Neste intuito, o encenador entende que o espaço cênico é o
veículo primordial para proporcionar tal expansão perceptiva:

A sala será fechada por quatro paredes, sem qualquer espécie de


ornamento, e o público ficará sentado no meio da sala, na parte de
baixo, em cadeiras móveis que lhes permitirão seguir o espetáculo
que se desenvolverá à sua volta, a ausência de palco, no sentido
comum da palavra, convidará a ação a desenvolver-se nos quatro
cantos da sala. Lugares especiais serão reservados para os atores e
para a ação, nos quatro pontos cardeais da sala. É para apanhar a
sensibilidade do espectador por todos os lados que preconizamos

4
ARTAUD, loc. cit.
36

um espetáculo giratório que, em vez de fazer da cena e da sala dois


mundos fechados, sem comunicação possível, difundam seus
lampejos visuais e sonoros sobre toda a massa dos espectadores
(ARTAUD, 1999, p. 42).

Partindo da configuração relacional percebida nos rituais, Artaud desenvolve


sua teoria, que, em termos espaciais, recusa-se à divisão palco-plateia e à criação
de um espaço fictício: “o espaço representado coincide com o espaço da
representação, o espaço real”. Assim,

A ação romperá seu círculo, estenderá sua trajetória de nível em


nível, de um ponto a outro, paroxismos nascerão de repente,
acendendo-se como incêndios em pontos diferentes: e o caráter de
ilusão verdadeira do espetáculo, assim como a influência direta e
imediata da ação sobre o espectador não serão palavras vazias. É
que esta difusão da ação por um espaço imenso obrigará a
iluminação de uma cena e as iluminações diversas de uma
representação que deve abranger tanto o público quanto as
personagens5.

Em último caso, o espaço cênico preconizado por Artaud não deveria ser uma
ilustração na qual atores e espectadores aceitariam, por convenção ilusionista,
acreditar ser real. Esse espaço deveria ser real na medida e nos limites que
proporcionasse aos agentes do espetáculo uma intensa troca de experiências
circunscritas àquele espaço.

Figura 6 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil. Encenação


de Ariane Mnouchkine.

Nesta proposta espacial vemos alguns fundamentos propostos por


Artaud, no qual público e atores compartilham o mesmo espaço

5
ARTAUD, loc. cit.
37

durante a encenação. Numa espécie de organização espacial que


remete ao teatro medieval, há espaços reservados para as cenas,
mas podemos notar que os atores estão ao alcance dos
espectadores, que podem ser vistos por outros espectadores. Neste,
os espectadores são postos em relevo durante a encenação. Fonte:
Martine Franck.

Logo, antes de ser um lugar de contemplação estética, o espaço cênico para


Artaud deveria ser um local de trocas de experiências, quase um experimento
antropológico, onde o espectador não tinha que compreender, os atores não
deveriam representar e o espaço não deveria figurar, pois todos os elementos da
teatralidade proposta por Artaud se limitam ao campo do ato efêmero do gesto
compartilhado.
Francisco Javier, ao se deter sobre a importância do espaço na concepção de
Artaud, nos esclarece que:

Artaud buscava provocar uma resposta do espectador apelando,


sobretudo, para a sua sensibilidade, bombardeando seus sentidos
com fortes e variados estímulos: imagens visuais alucinantes, música
e sons incomuns, ritmos e sons violento. Sem dúvida, o espectador,
assolado por um espetáculo delirante, que estimulava violentamente
sua capacidade de apreensão do real, em um espaço que favorecia
a comunicação -um espaço cênico envolvente- iria se sentir
transportado para regiões em que operam a alteração da percepção
e a perda do equilíbrio emocional. E nisso, a qualidade
comunicacional do espaço cênico cumpre um papel decisivo
(JAVIER, 1998. p. 27).

Este ponto de vista espacial de Artaud constituiu uma das experiências mais
potentes dos encenadores vanguardistas, na medida em que serviu de ponte para a
metamorfose do espetáculo que o teatro passaria, a partir dos anos 60, com a
eclosão da performance art. Ainda que vários teóricos tenham reconhecido a
fragilidade prática das proposições do teatro da crueldade, é inegável a sua
genialidade, como reconhece Grotowski, ao declarar que: “Artaud era um
extraordinário visionário, mas os seus escritos tem escassos significados
metodológicos porque não são o produto de uma pesquisa prática de longa duração.
Eles são uma profecia surpreendente” (GROTOWSKI, 2007, p. 111).
38

Figura 7 – Espetáculo 1793 (1972), do Theatre du Soleil.


Encenação de Ariane Mnouchkine.

Nesta imagem vemos nitidamente a perspectiva que a diretora


tem sobre os espectadores na sua encenação ao colocá-los
em constante contato (visual e físico) uns com os outros,
enquanto as cenas se desenvolvem em vários lugares do
espaço teatral, dando ao público a possibilidade de escolher o
que acompanhar, ao mesmo tempo em que se observam
mutuamente. Fonte: Martine Franck.

As tais “profecias”, mencionadas pelo encenador polonês, serão cumpridas


com primazia na linguagem teatral após a Segunda Guerra Mundial, quando
redescobrem os escritos de Artaud e fazem do seu verbo, até então restrito à teoria,
o caminho do desenvolvimento da linguagem teatral, como facilmente se pode
constatar em vários espetáculos teatrais que materializaram a formulação espacial
proposta por Artaud.

1.4 TEATRO LABORATÓRIO

Após esse período histórico de grandes transformações, quando as


sociedades, esmagadas pela hecatombe protagonizada pela Alemanha e Estados
Unidos, tiveram que passar por um momento de reconstrução cultural no qual
pudessem apontar para novos horizontes, a linguagem teatral não passou ao largo
dessa questão, ao apresentar uma proposta renovadora para as artes cênicas: o
Teatro Pobre de Jerzy Grotowski, que, partindo dos mesmos lugares visitados por
Artaud na década de 30 (a consciência aglutinadora e emancipatória dos elementos
39

dos rituais, a busca pela essência do ato expressivo e o encontro entre atores e
público), procurou eliminar, gradualmente, tudo que se mostrou supérfluo a essa
relação.
Defendendo, igualmente a Artaud, que é no encontro e na comunhão entre
atores e espectadores que está à verdadeira razão do teatro, Grotowski recusava
qualquer maquinaria, convenção ou artifícios cênicos, ao entender que o que
diferenciava o teatro das artes de reprodução de massa (TV e Cinema) era
exatamente “a intimidade do organismo vivo”, o instante compartilhado dos atores e
públicos em um ambiente preparado para acolher e potencializar esse encontro. Nas
suas palavras:

É, portanto, necessário abolir a distância entre o palco e a plateia,


eliminando o palco, removendo todas as fronteiras. Deixar que as
cenas mais drásticas ocorram face a face com o espectador, para
que assim ele esteja à mão do ator, possa perceber sua respiração e
sentir sua transpiração (GROTOWSKI, 1987, p. 36).

Essa fala de Grotowski, quase em tom de manifesto, dá a real noção da sua


teoria e contraposição que assume perante o pensamento modernista da sua época,
que estava a equipar os palcos com diversos aparatos multimídia a fim de preencher
não apenas o espaço visual do espetáculo, mas entreter o público, se afastando,
portanto, daquilo que Grotowski considerava essencial à linguagem.
O Teatro Pobre, ao contrário disso, está interessado no espectador disposto a
sentir a necessidade de confrontar-se com o espetáculo e analisar-se: “espectadores
que não param num estágio elementar de integração psíquica, sabendo exatamente
o que é bom e o que é ruim sem jamais pôr-se em dúvida” (GROTOWSKI, 1987, p.
35).
Segundo Grotowski, era necessário criar um espaço onde duas realidades
existenciais (ator e espectador) pudessem se encontrar, delimitado por um sistema
de valores e tabus compartilhados, ao qual toda uma coletividade aderiu há várias
gerações e pode, graças a isso, justamente definir-se como coletividade específica.
Trata-se, portanto, de uma herança, de uma experiência comum que se cristaliza e
se formaliza através dos grandes mitos que fundam ou constituem uma cultura.
As proposições de Grotowski ganharam forma nos experimentos do seu
Teatro Laboratório, que surgiu no cenário teatral no início dos anos 60,
questionando, dentre outras coisas, o espaço cênico, ao eliminar a dicotomia palco-
40

plateia em favor de um espaço comum capaz de integrar as ações dos atores e as


ações dos espectadores durante o desenvolvimento do espetáculo, como nos
explica o próprio Grotowski:

Renunciamos a uma área determinada para o palco e para a plateia:


para cada montagem, um novo espaço é desenhado para os atores
e para os espectadores. Dessa forma, torna-se possível infinitas
variedades no relacionamento entre atores e público (GROTOWSKI,
1987, p.17).

A partir desta conceituação, Grotowski apresenta uma síntese das


convenções teatrais em voga e seus respectivos usos espaciais, aos quais o Teatro
Pobre se contrapõe. Aponta que, no palco italiano, os atores se isolam da plateia e
representam sempre dentro de uma área delimitada. Enquanto que no teatro de
arena o palco está no centro da sala, modificando apenas a posição da exposição
do espetáculo, perpetrando a barreira entre atores e público. Diferentemente das
propostas do Teatro Laboratório, onde não há separação entre atores e
espectadores, no qual todo o recinto se transforma em palco e, ao mesmo tempo,
em plateia.
Grotowski chama nossa atenção, ainda, para as propostas espaciais de
Meyerhold a Brecht, ao buscarem uma interação entre atores e espectadores, que,
no seu entendimento, foram pouco exitosas, porque o palco ainda era o centro para
onde convergia todo o espetáculo. Diferentemente do que acontece no Teatro
Laboratório, onde é criado um espaço de influência mútua entre os agentes do
evento, no qual o diretor deve sempre ter em mente que está a conduzir dois
“grupos”, os atores e os espectadores, sendo a encenação o resultado da conexão
desses dois grupos.

Nesse caso, a disposição do espaço no teatro existente peca talvez


por imperfeições, porque para o espectador, nele existe sempre o
palco e a plateia, e essa disposição não muda nunca, mas visto que
não muda, o espectador não é capaz de reencontrar a sua função
original de testemunha; porque ali a arquitetura do edifício determina
que ele permaneça à parte. Mas se dispomos de um espaço virgem,
então o fato de o espectador ser inserido na estrutura de um
espetáculo, permanecendo como em osmose com o ator, enquanto
em um outro espetáculo é afastado, torna-se significativo e permite
que o espectador reencontre a situação de testemunha que lhe é
inata (GROTOWSKI, 2007, p. 123).
41

Partindo da hipótese de que o seu Teatro Pobre carecia de um novo tipo de


ator (o ator santo), essa atualização deveria, necessariamente, passar também
pelos espectadores. Para tal, primeiro sugere uma plateia diferenciada, que, não
seguindo a lógica do mercado, seria composta por poucos espectadores por
apresentação, para afirmar em seguida que, para obter do público um tipo de
adesão mais estreita, não bastava apenas abolir a divisão palco-plateia ou limitar o
número dos espectadores, mas tornar o espectador um elemento específico do
espetáculo.
Ao reconfigurar o espaço cênico e as convenções entre atores e
espectadores, o Teatro Laboratório formula os ambientes para que os espectadores
questionem o próprio ato de olhar, ouvir e sentir o espetáculo, permitindo que o
público se observe uns aos outros, uma vez que todos estão inseridos na ação
cênica, passando a ser considerados elementos da representação, como podemos
observar nas imagens abaixo (figuras 8 e 9), da encenação de Kordian encenada
pelo Teatro Laboratório de Grotowski.

Figura 9 – Desenho do cenário de Figura 8 – Kordian (1962), encenação


Kordian (1962), encenação de Jerzy de Jerzy Grotowski.
Grotowski.

Notamos que a proposta cênica é inserir Nesta proposta os espectadores são


os espectadores dentro do espaço inseridos na cenografia e solicitados a
composto para a encenação. Fonte: participar das ações cênicas que
Arquivo do Instituto Jerzy Grotowski. desencadeiam o espetáculo. Fonte: Arquivo
do Instituto Jerzy Grotowski.

Consequentemente, compreendendo que não existe um espetáculo igual ao


outro, Grotowski defende que para cada nova encenação deve-se pensar diferentes
configurações do espaço, a fim de problematizar o relacionamento entre
espectadores e atores. No espetáculo Kordian (1962), por exemplo, a ação do
drama transcorre dentro de um hospital psiquiátrico e, para configurar este espaço,
foi feita uma montagem no sentido de sugerir o interior de um sanatório de doentes
42

mentais, no qual os espectadores foram incorporados a essa estrutura como


pacientes.
Esta função dos espectadores na encenação pode ser notada, igualmente, no
espetáculo História Trágica do Dr. Fausto (1963), baseado em texto de Marlowe,
onde uma hora antes da sua morte Fausto oferece uma última ceia a seus amigos.
Na proposta de Grotowski, os espectadores são os convidados e confidentes do
protagonista enquanto a encenação é desenvolvida, cabendo a estes um papel
especial dentro da estrutura do espetáculo.

Figura 11 – Desenho do cenário de Doutor Figura 10 – Doutor Fausto (1963),


Fausto (1963), encenação de Grotowski. encenação de Jerzy Grotowski.

Nesta proposta observamos os Ao inserir e oferecer ao espectador um


espectadores dentro da cenografia com papel dentro da estrutura da encenação,
uma função especial na encenação, além esta proposta põe o público desconfiando
de espectar. Fonte: Arquivo do Instituto de si mesmo, acerca da função que lhes
Jerzy Grotowski. foi confiada. Fonte: Arquivo do Instituto
Jerzy Grotowski.

Do mesmo modo, podemos notar que no espetáculo Akropolis, Grotowski


estabelece um jogo cênico no qual os atores reconstroem uma câmara de gás do
campo de concentração de Auschwitz, assumindo os espectadores papel de
prisioneiros da câmara de gás (ver figura 12 e 13).
Podemos perceber nos três arranjos espaciais dos espetáculos, acima
apresentados, uma completa autonomia poética do uso do espaço e das
convenções entre os atores e espectadores. Nelas, os atores poderiam representar
entre os espectadores, estabelecendo contato direto com a plateia e conferindo-lhe
um papel no drama, ou poderiam construir estruturas entre os espectadores e,
dessa forma, incluí-los na arquitetura da ação cênica, submetendo-os a uma
pressão, congestão e limitação de espaço, bem como poderiam tentar ignorar os
43

espectadores espalhados pelo espaço cênico para relacionar o espetáculo através


deles.

Figura 12 – Desenho do cenário de Figura 13 – Akropolis (1962),


Akropolis (1962), encenação de encenação de Grotowski.
Grotowski.

Igualmente as imagens anteriores, os Nesta concepção os espectadores,


espectadores são colocados dentro da dentro da estrutura, só entendem o seu
cenografia e assumidos como papel quando a câmara está completa
personagens. Fonte: Arquivo do Instituto e se veem como prisioneiros prestes a
Jerzy Grotowski. serem mortos. Além disso, podemos
notar que as opções da direção limitam
a quantidade de público às estruturas
do cenário. Fonte: Arquivo do Instituto
Jerzy Grotowski.

Os espectadores poderiam, inclusive, estar separados dos atores, como na


montagem de O Príncipe Constante, e dessa perspectiva, participar do espetáculo
como testemunhas do ato de sacrifício que os atores protagonizam em cena.
Com tais inquietações, Marco De Marinis (1993) afirma que Grotowski é um
dos primeiros encenadores do teatro moderno a colocar o espectador por cima de
seus interesses e preocupações centrais (apenas aquele que vê), e faz da relação
ator-espectador o fato central e constitutivo do acontecimento teatral (DE MARINIS,
1993, p. 92).
Apesar disso, ao aprofundar as investigações acerca do uso espacial e
integração do público no espetáculo, o encenador polonês percebeu uma
contradição operacional ao inserir o espectador dentro da ação cênica: estando
imerso na área de atuação, o público deixa de perceber algumas particularidades
essenciais do espetáculo:

Quando queremos dar ao espectador a possibilidade de uma


participação emocional, se faz necessário afastar os espectadores
dos atores, ao contrário do que poderia parecer. Eles, os
espectadores, tem vocação para ser observadores, e, sobretudo,
para serem testemunhas. Testemunhas não é aquele que mete o
44

nariz em todas as partes, que se esforça por estar o mais perto


possível e até interferir na atividade dos demais. A testemunha se
mantém afastada, não quer intrometer-se, deseja ser consciente e
observar aquilo que ocorre do princípio ao fim e conservá-lo na
memória (GROTOWSKI, 2007, p. 124).

A partir da sua encenação de O Príncipe Constante (a espacialização evoca


uma arena de touros ou um anfiteatro das salas de operação), Grotowski passa a
considerar o espectador não mais como integrante das ações cênicas, mas como
testemunha ocular dos atores que se doam em sacrifício ao desenvolverem-se em
cena. Diz: “a testemunha mantém-se levemente à parte, não quer se misturar,
deseja estar consciente, ver o que acontece, do início ao fim, e guardar na memória”
(GROTOWSKI, 2007, p. 122).

Figura 15 – Desenho do cenário para Figura 14 – O Príncipe Constante (1965),


O Príncipe Constante (1965), encenação de Grotowski.
encenação de Grotowski.

Os espectadores, assentados ao redor da


A proposta desse projeto é colocar
cena, espreitam do alto os infortúnios do
os espectadores diante de um
personagem, quando pousam os olhos no
paradoxo, ao localizá-los numa
horizontal encontra os olhos dos demais
estrutura onde o ato de observar é
espectadores que testemunham,
questionável como algo moralmente
igualmente, os infortúnios e injustiça do
inconveniente. Fonte: Arquivo do
Instituto Jerzy Grotowski. personagem sem nada fazer. Aqui,
Grotowski oferece uma possibilidade de
intervenção do espectador a nível
intelectual. Fonte: Arquivo do Instituto
Jerzy Grotowski.

Nestas proposições cênicas da primeira fase6 de Grotowski, nos deparamos


com uma série de provocações e questionamentos decorrentes da relação espaço-
atores-espectadores, até então pouco explorada na prática e menos ainda

6
A trajetória deste encenador é dividida em pelo menos três fases: a primeira correspondendo aos
espetáculos feitos para o espectador (arte como apresentação); a segunda, denominada “teatro das
fontes”, na qual sua pesquisa buscava entender as fontes expressivas do trabalho do ator; e o
“teatro como veículo”, fase mais introspectiva, onde Grotowski está mais preocupado com a
sublimação espiritual dos intérpretes (COELHO, 2009).
45

organizada e sistematizada na teoria, como claramente percebemos na obra do


encenador polonês.
De pronto, entendemos rapidamente que o espaço cênico não é sinônimo de
palco, destes que estão sempre prontos a receber mais um projeto cenográfico,
enquanto aguardam os atores para animá-lo. Antes, apresenta-se como unidade
expressiva do espetáculo, responsável por estabelecer a comunhão dos atores e
espectadores, sob a convenção da imaginação criativa do jogo de cenas.
Sendo, portanto, um espaço relacional que une palco e plateia em um único
ambiente, que está constantemente em mutação: para cada espetáculo, um novo
espaço. E, para cada espaço, suas próprias convenções, como nos ensina
Grotowski.
Não por acaso, Roubine (1998) declara que Grotowski precisa apenas de um
espaço nu, suscetível de ser livremente arrumado, quer se trate de uma granja, de
um galpão, de uma quadra ao ar livre. “Pois, em última análise, tornando o ato de
ver como algo ilícito, põe o espectador para pensar sua própria função dentro do
espetáculo” (ROUBINE, 1998, p. 112).
A trajetória de Grotowski nos mostra que, provavelmente, ele tenha sido o
último dos grandes encenadores modernistas a escrever o tratado do que o teatro
poderia ser, sob os signos específicos da linguagem teatral, ainda que tenha
apontado, na segunda e terceira fase do seu teatro, os meios expressivos sobre os
quais a linguagem cênica viria a se desenvolver nos anos subsequentes.
Caminho percorrido pelo seu conterrâneo e contemporâneo Tadeusz Kantor,
que, em detrimento dessa relação “humana, demasiada humana” praticada pelo
pensador do Teatro Pobre, tal qual vários artistas de Vanguarda, postularia a
autonomia da arte a partir do descolamento dos valores utilitários dos objetos
artísticos, dentre eles a presença humana e o lugar teatral, entendendo, de certa
forma, que deveria mexer na estrutura que sustentava esse espaço, não apenas nas
poéticas que o orbitavam. Deste modo, ainda em 1944, Kantor postulou: “Antes de
compor a cena, é preciso compor a sala” (KANTOR, 2008, p. 5).

1.5 O ESPAÇO CÊNICO AMBIENTAL

O início da trajetória artística de Tadeusz Kantor (1915-1990) principia na


Universidade da Cracóvia, igualmente a Grotowski. Porém, seu interesse imediato
46

nas artes se dá através das artes plásticas, e, por meio dos projetos cenográficos,
se aproxima da encenação para aprender sua linguagem, desenvolver-se nela e
perceber a urgente mudança estrutural que o teatro carecia. Nas suas palavras:

O teatro em sua forma atual é uma criação artificial e de uma


pretensão insuportável. Vejo-me diante de um edifício de inutilidade
pública, preso à realidade da vida como um balão inflado. Antes de
eu chegar, ele é vazio e mudo. Depois da minha chegada, ele simula
com dificuldade sua utilidade. Daí por que eu me sinto sempre pouco
à vontade em uma poltrona de teatro. [...] tudo é responsável por
isso. Quer as poltronas voltadas para a mesma direção, quer o palco
mascarado com presteza por uma cortina que se abre pontualmente
para o ritual “basbaquice” dos fiéis. O hábito torna-se um tique
nervoso. Ele embota a sensibilidade (KANTOR, 2008, p. 2).

Tadeusz Kantor declara-se, imediatamente, contra as práticas seculares do


teatro em seus espaços tradicionais e as convenções que perpetram a dicotômica
relação palco-plateia e a hierarquização social. Em seu entendimento, os teatros,
“edifícios de inutilidade pública”, são empresas que programam e fabricam
espetáculos para o consumo ao ritmo das temporadas. Prática que recusa
veementemente, pois acredita que a criação artística não suporta a cadeia de
produção que o mercado, vinculado à instituição chamada teatro, impõe aos artistas
cênicos, inibindo, assim, a essência do trabalho artístico, a livre criação.
Partindo dessa crítica, formula as bases do que a princípio chamou de teatro
clandestino/independente: clandestino em relação ao sistema da instituição;
independente a despeito da realidade mimética, que ele se recusa a reproduzir;
clandestino em face da literatura da qual em nenhum momento o seu teatro
desejaria ser a tradução; independente do naturalismo; recusa do psicologismo;
independente das concepções tradicionais de tempo e espaço; clandestino em
relação aos tratados sobre estéticas e academicismos perante a liberdade criadora
do artista. Clandestino e independente das fronteiras e da divisão da sala de
espetáculo em palco e plateia. Nas suas palavras:

A gente não olha uma peça de teatro com o um quadro, pelas


emoções estéticas que ela proporciona, mas a gente as vive
concretamente. Eu não tenho cânones estéticos, eu não me sinto
ligado a nenhuma época do passado, elas me são desconhecidas e
não me interessam. Sinto-me apenas profundamente engajado em
relação à época em que vivo e as pessoas que vivem ao meu lado
(KANTOR, 2008, p. 42).
47

Nestes termos, o espaço cênico das proposições da primeira fase7 de Kantor


deve ser entendido sob a égide da realidade concreta e tangível dos espaços reais
que circundam atores e espectadores, de onde nasce o verdadeiro drama, pois: “A
realidade da sala está ligada ao processo do devir do drama e vice-versa”
(KANTOR, 2008, loc. cit.). Espaços que serão responsáveis pela experiência
concreta do evento cênico sem privilegiar o intelecto e a visão, tão comum às
proposições cênicas vinculadas as salas de espetáculo.
Em entrevista concedida a Gaele Breton (1989, p. 14), Kantor defende seu
entendimento sobre o espaço cênico não-teatral:

Procuro lugares não especificamente projetados para teatro. O teatro


é o último lugar onde um espetáculo pode ser realizado! Assim, você
tem que encontrar algum lugar ligado à vida e às funções comuns. O
que você faz com uma lavanderia, uma estação, um cassino? - Você
mantém todas as suas funções originais, bem como as funções das
pessoas que trabalham lá. As lavadeiras, por exemplo, continuam
lavando a roupa e gradualmente se transformam em atrizes. São
personagens da vida cotidiana [como a trupe de Marcel Duchamp]
que de repente parariam de lavar e começariam a agir de maneira
diferente. A função relacionada ao lugar formou a ação inicial e
depois foi transformada, como em um sonho8.

Ao estetizar uma lavanderia, uma estação de trem, um apartamento, um


cassino, etc., para ser usado como espaço cênico, deslocando-os de sua função
inicial, Kantor propõe não apenas rupturas de ordem arquitetônica, mas instaura
uma ruptura intelectual que lança um novo paradigma sob a linguagem teatral, ao se
fixar nos espaços encontrados na realidade e torná-los elementos expressivos do
trabalho artístico.
Tal iniciativa se fundamenta no conceito de ready-made, de Marcel Duchamp,
que desde 1917 havia causado rupturas nas artes plásticas e se tornará um dos
elementos basilares na obra de Kantor.
Sendo o trabalho de Kantor permeado por várias influências vanguardistas,
oriundas da sua formação em artes plásticas, e sendo ele próprio um artista
visionário, coloca em cheque a realidade do espaço cênico sob novos padrões,

7
A sua trajetória artística é constituída de oito períodos: teatro ephemeric (1938); teatro clandestino
(ou teatro independente) (1942 – 1944); teatro autônomo (1956); teatro informal (1961); teatro zero
(1963); teatro happening (1965); teatro impossível (1973) e o teatro da morte de 1975 a 1990
(D’ABRONZO, 2008).
8
Disponível em: BRETON, Gaelle. Theaters. New york: Princeton Architectural Press, 1989.
48

provocando a cisão com certos tipos de procedimentos estéticos e de


comportamento do público perante um trabalho artístico.
No espetáculo O retorno de Ulisses (1944), por exemplo, que também
compõe o período do Teatro Clandestino, o espaço da encenação era uma casa
abandonada, com os traços da destruição da Segunda Guerra Mundial, na qual
Kantor explorará não somente a sua realidade degradada, mas também a realidade
psicofísica pertencente ao imaginário dos atores e espectadores diante daquele
local. Em suas palavras:

[…] devemos dar à relação espectador/ator sua significação


essencial. Devemos fazer renascer o impacto original do instante em
que o homem (ator) apareceu pela primeira vez diante de outros
homens (espectadores), exatamente igual a cada um de nós e, no
entanto, infinitamente estrangeiro, muito além da barreira que não
pode ser ultrapassada (KANTOR, 2008, p. 203).

Ao comentar a sua obra, em 1955, o encenador diz que seu grupo


estabeleceu uma transformação nas relações entre cena e público ao fazer uma
apresentação em um café, onde as pessoas bebiam, comiam e ouviam música,
constituindo uma realidade autêntica, viva, em oposição a um público passivo,
neutro, estacionado em assentos dos teatros oficiais. Kantor explica:

[…] em 1956 realizamos o The Octopus, sem nenhum palco e em um


verdadeiro café. Todo mundo estava bebendo e então, em meio a
essa atmosfera de café, apareceu o papa Júlio II, o ditador, a
prostituta e grandes atores como Witkiewicz. Eles apareceram na
cena como fantasmas, em vez de atores disfarçados. Eles agiram
como teriam feito em um café e toda a sua atitude assumiu
gradualmente uma nova realidade - a da sala9.

De certa forma, Kantor sequestrou o espectador da sua condição tradicional


de espectador ao colocá-lo em situações incomuns, perturbadoras, referente ao
espaço vivo de apresentação, nos diz Denis Bablet (2008), e, desse clima de
instabilidade, surge a participação do público, como declara Kantor:
[…] a copresença analítica e contemplativa torna-se uma copresença
fluida e quase ativa, nesse campo da realidade viva. A exposição
perde sua função habitual, torna-se uma ambiência ativa conduzindo
o espectador em peripécias e emboscadas, recusando-lhe não
satisfazendo sua razão de existir enquanto espectador, observador e
visitante (KANTOR, 2008, p. 106).

9
(BRETON, 1989, p. 14).
49

Em última análise, Kantor diz que a participação do espectador se dá por


meio de uma interação mental na qual este participa do espetáculo como um
torcedor que, engajado igualmente a uma partida desportiva, toma partido das ações
que se desenvolvem diante da sua presença e se comporta como se ele também
estivesse a jogar: “o espectador é um torcedor. E um torcedor não é um verdadeiro
espectador, é um jogador em potencial”. Mais uma vez o próprio Kantor exemplifica:

[…] subsequentemente abandonei a ideia, pois eu senti que a


participação do público tinha tido o seu dia. Em 1978, quando
apresentamos a “Classe Morta” em Roma, o público costumava gritar
para nós: "Mas, o que devemos fazer?", E eu costumava responder:
"Nada!" [...] A realidade do que está acontecendo no palco preenche
a lacuna, não em um sentido físico, mas em um sentido talvez mais
místico. É difícil explicar porque é o papel da abordagem dos atores
que criam esse vínculo. Nas minhas apresentações, os atores não
são atores. Eles quase se parecem com o público que não está
disfarçado ou, se eles estão, usam disfarces óbvios! Não há ilusão;
isso é o que é importante. A ausência de qualquer ilusão cria o
vínculo psíquico (KANTOR, 2008, p. 107).

Kantor mergulhou tão fundo nas suas proposições de espaço vivo que acabou
desaguando nos happenings, intervenções artísticas e performances que, dos anos
60 em diante, seriam os objetivos especulativos perseguidos no seu trabalho
artístico, ao se interessar com afinco ao instante efêmero do presente, pois nem o
passado, nem o futuro lhe interessavam.

Figura 16 – Choco (1956). Encenação de Tadeusz Kantor.

Nesta proposta o espaço cênico é articulado pelas estruturas próprias


do ambiente onde o teatro se instala, ampliando, assim, o conceito de
cenografia. Dentro dessa estrutura significante, o diretor articula a
50

linguagem teatral de tal modo que atores e público, compartilhando o


mesmo espaço, passam a repensar suas funções, pois o fio tênue
entre o real e o artifício é imperativo. Fonte: Aleksander Wasilewicz.

Pode-se dizer, portanto, que o teatro independente de Kantor provocou o


“estilhaço das molduras” tradicionais do teatro, ao apresentar em cena a realidade
viva do lugar, análoga ao cotidiano dos espectadores, produzindo uma nova
estrutura autônoma que aumentou a subjetividade do espaço cênico, com afirma
Kantor:

[…] os melhores lugares para o meu teatro foram uma lavanderia na


Polônia, ou uma estação cheia de trens antigos. Também nos
apresentamos em uma geleira na Iugoslávia, bem como em quartos
do palácio de Tito alugados para a televisão alemã, um cassino em
Bled e até mesmo em uma praia. Os espectadores estavam lá por
pura sorte. Na geleira, a audiência era composta de uma escola de
esqui; no cassino as velhas americanas que assombrava os jogos de
azar; na estação os passageiros e nos quartos do palácio de Tito não
havia ninguém. Não é um espaço arquitetônico, mas algo bem
diferente (KANTOR, 2008, p. 107).

Como nenhum outro encenador do seu tempo (certamente por ter tido
formação na escola diferente dos demais e ter se nutrido dos conceitos dos
principais artistas visuais das vanguardas europeias), Tadeusz Kantor ousou aplicar
no teatro as dinâmicas conceituais que animavam o pensamento desses artistas, ao
inserir a realidade (objetos, linguagens e convenções) no espaço cênico (tradição,
convenção, elitismo), almejando uma progressiva desmaterialização deste espaço.
Fato que viria a ser um dos pilares dos experimentos cênicos difundidos mundo
afora, com a difusão das artes performáticas.
Em outros termos, resume: “o teatro é um lugar onde as leis da arte se
encontram com a natureza acidental da vida, e disso resultam conflitos muito
importantes” (KANTOR, loc. cit.).

1.6 TEATRO AMBIENTALISTA

Problematizando ainda mais essa relação do teatro na construção do espaço


cênico ampliado, Richard Schechner, em conjunto com o grupo The Performance
Group, desenvolveu os conceitos do Teatro Ambientalista, no qual defende que o
espaço cênico seja formado não apenas pelo local reservado aos atores e
51

espectadores, mas pela totalidade do ambiente que circunda o evento cênico e


todos os seus agentes.
Um espaço expandido que inclui desde as paredes, teto e piso, passando
pelo imaginário construído sobre o lugar e a relação entre atores e espectadores,
incluindo nesta consideração os espaços que circundam o evento teatral. Nas suas
palavras:

O primeiro princípio do teatro ambientalista é criar e usar espaços


completos. Literalmente esferas de espaços, espaços dentro de
espaços, espaços que contêm, ou envolvem, ou relacionam, ou
tocam todas as áreas em que está o público e os atores. Todos os
espaços estão envolvidos ativamente em todos os aspectos da
representação (SCHECHNER, 1994, p. 14).

Schechner percebe o lugar teatral como um micro espaço dentro de outro


espaço, ainda mais complexo, a cidade, que por sua vez, espelha o contexto
sociopolítico/ histórico pertencente a estes espaços, que não se deve negligenciar
na encenação ambientalista, porque, em certa medida, a convenção espacial
utilizada na encenação partirá destas referências, em conjunto com as demandas de
cada processo criativo.
Noutras palavras: se alguns espaços são utilizados exclusivamente para a
representação, não se deve a uma predeterminação convencional e arquitetônica,
senão a uma necessidade específica da produção que o espaço se organize dessa
maneira (SCHECHNER, 1994).
Prontamente, observamos que todo espaço usado na performance dos atores
também pode ser utilizado pelos espectadores (ver figura 15), e que, não existindo
um espaço cênico igual ao outro, cada um deles dispõe de características
relacionais, topográficas, e arranjos espaciais completamente distintos uns dos
outros.
52

Figura 17 – Dionísio 69 (1970), adaptação de As Bacantes


de Eurípides, encenação de Richard Schechner.

O espaço cênico composto para essa encenação organiza-se


para reformular os lugares destinados aos agentes do
espetáculo. Os espectadores, amontoados numa arquibancada
vertical, e espalhados por todas as áreas da sala, dividem
esses espaços com os atores que, igualmente, atuam em todos
os lugares da sala. A disposição ritualística proposta por Artaud
recebe atualização em Schechner. Fonte: Frederick Eberstadt.

Schechner argumenta, ainda, que o evento cênico pode ocorrer em um


espaço totalmente adaptado ou em um espaço encontrado, porém, destaca que se
faz necessário uma ativação desse espaço que, em síntese, se desenvolve através
de três características: encontrá-lo, relacioná-lo, articulá-lo. Sobre a articulação, o
autor encenador é enfático:

[…] articular um espaço significa deixá-lo dizer suas coisas. Veja o


espaço e explore-o não como um meio de fazer o que se quer fazer
nele, mas para descobrir o que é o espaço, como ele é construído,
quais são seus diferentes ritmos. Ou talvez ficando quieto dentro
deles, como nos espaços de algumas catedrais (SCHECHNER,
1994, p. 18).

A realidade desse espaço “vivo”, na encenação ambientalista, condiciona um


número enorme de relações durante a criação, desde a eliminação da dicotomia
palco-plateia, até a relação de atenção e fruição dos espectadores, que são
liberados para terem outras leituras durante o espetáculo. Estabelecendo, então,
53

diferentes relações, inclusive, no próprio ato de ver o espetáculo (como ver e o que
ver), uma vez que todos os espectadores também se veem e assistem as reações
dos demais durante a encenação. Para Schechner:

[…] esta divisão menos marcada de personagens, ações e espaços


não leva a um envolvimento mais profundo ou a um sentimento de
ser arrastado pela ação - a empatia sem fim feita pela escuridão, a
distância, a solidão em meio a multidão e o conforto regressivo e
abrigado do teatro de proscênio, mas para uma experiência interior-
e-exterior; uma alternância rápida e às vezes vertiginosa de empatia
e distância (SCHECHNER,1994, p. 23).

Sendo fruto de uma evolução dos processos de composição e formulações


históricas acerca do espaço cênico, como declara o próprio Schechner, o Teatro
Ambientalista defende que, se não existe um espaço cênico igual ao outro,
tampouco existe um espaço padrão para comportar uma encenação ambientalista.
No entanto, Schechner se arrisca em traçar um “projeto ambientalista
modelo” que, no seu entendimento, abarcaria grande parte das encenações
ambientalistas:

[…] um teatro deve oferecer a cada espectador a possibilidade de


encontrar seu próprio lugar. Deve haver lugares para que os
espectadores possam pular e entrar fisicamente na performance;
deve ter lugares normais para acomodar os espectadores mais ou
menos como um teatro ortodoxo;[...] deveria haver pontos de fuga
para as pessoas se afastarem da ação principal para observá-la com
desdém; deveria ter cumes, cavernas e tocas: extremamente altos, e
profundos, de modo que os espectadores pudessem subir, enterrar
ou desaparecer (SCHECHNER, 1994, p. 31).

Nesta inequívoca proposição idealista, o espectador teria total escolha sobre


a relação que seria estabelecida entre ele e o espetáculo, já que nesta configuração
espacial, ele estaria envolvido por um dispositivo arquitetônico que possibilitaria tais
arranjos espaciais, incluindo ficar em pé, sentar-se ou deitar-se conforme determinar
sua vontade.
Porém, mais do que um modelo padrão, o Teatro Ambiental se orienta no
sentido de organizar o espaço cênico de modo global, multifocal, num microcosmo
relacional que permite contato e interação entre os agentes do espetáculo.
Por outro lado, Schechner entende que no Teatro Ambientalista, a cenografia
não tem que figurar uma fantasia planejada para ser um dispositivo alegórico, como
no teatro de espetáculo de sala (que muitas vezes é projetado para ser visto à
54

distância). A proposta cenográfica do seu teatro, quando se faz necessário, deve ser
real, afirma Schechner, pois:

[…] o designer ambiental não tenta criar a ilusão de um lugar; quer


criar um espaço funcional. Este espaço será usado por muitos tipos
diferentes de pessoas, não apenas pelos intérpretes. O cenógrafo
muitas vezes se preocupa com o efeito: como é a sala de estar? O
projetista ambiental preocupa-se com a estrutura e seu uso: como
funciona? [...] O design ambientalista é estritamente tridimensional.
Se está lá, tem que funcionar10.

O Teatro Ambientalista de Richard Schechner aglutina grande parte das


propostas de espaços cênicos sugeridos por Meyerhold, Artaud e Grotowski, ao
apresentar uma proposta espacial que reforça o compartilhamento estético estreito
entre os agentes da encenação, característica expressiva pertencente unicamente
aos eventos cênicos, e que Schechner concretiza ao defender sua proposta:

[…] o teatro ambiental incentiva um dar e receber através de um


espaço globalmente organizado, no qual as áreas ocupadas pelo
público são como um mar onde os intérpretes nadam; e as áreas de
representação são uma espécie de ilhas ou continentes que estão
entre o público. O público não se senta em filas ordenadas
normalmente; há um espaço total mais de dois espaços opostos. O
uso ambiental do espaço é principalmente colaborativo; a ação flui
em muitas direções, sustentada apenas pela cooperação entre os
intérpretes e os espectadores11.

Nota-se nestas formulações de Schechner, portanto, um movimento de


intensa integração dos agentes do espetáculo com o lugar teatral e as ações cênicas
decorrentes dessa reformulação do uso do espaço cênico, uma vez que possibilita
arranjos diversos, como, por exemplo, a constituição e significação ativa do lugar
teatral na ficção, sem cair no jargão do metateatro.
Ao contrário disso, o espaço ambientalista se vincula ao espaço cênico, o da
ficção artística, para potencializá-lo ou mesmo ressignificá-lo no contexto daquele
local onde o trabalho está sendo apresentado, que, por sua vez, influi
propositalmente na percepção sinestésica do espectador.
Deste modo, podemos ressaltar, diante das práticas e formulações
especulativas de Schechner, Kantor e Grotowski, somada à teoria e aos
experimentos propostos por Artaud (que julgo serem os mais significativos no

10
Ibidem, p.32.
11
Ibidem, p. 37.
55

tocante à ampliação conceitual do espaço cênico), uma renovação das estruturas


em volta do espaço cênico.
Ao mesmo tempo, uma progressiva ressignificação e desmaterialização dos
lugares dados à encenação a partir do entendimento de que o espaço cênico não se
resume apenas e tão somente aos espaços criados para a ficção, mas, aos
ambientes que revestem essas experiências artísticas e criam ações cênicas
decorrentes desse local onde o teatro está inserido.
Conceitos estes, que passaram a ser um dos pilares dos experimentos
cênicos difundidos mundo afora, com a difusão e consolidação da Performance Art,
ao desmaterializarem os processos, conceitos e espaços que as artes cênicas
utilizam para se compor diante das estruturas e atravessamentos propostos pelos
novos parâmetros utilizados nas artes dos anos de 1960 em diante.
Apontamos, portanto, que desde o surgimento do encenador, paulatinamente,
a utilização do espaço cênico como plataforma para o trabalho artístico passou por
uma transfiguração: da definição de um local fixo, pré-determinado pela arquitetura,
circunscrito pelas suas tipologias históricas, para se concentrar na expansão dos
limites entre o lugar da encenação e as fronteiras materiais e virtuais presentes no
espetáculo.
Nessa conjuntura, o espaço cênico recebeu um novo status na cena,
deixando de ser apenas plataforma de exposição, para tornar-se um atuante da
teatralidade, quando passou a ser tratado pelos artistas como ambiente singular
daquela ficção, mas, também, articulador sinestésico dos arranjos fundamentais da
encenação, condutor das ações cênicas.
Consequentemente, ao vincular-se ao acontecimento cênico, o local passou a
reorganizar os agentes do espetáculo, da concepção clássica (espaço para exibição
de um evento cênico planejado diante de um público) à um ambiente de
experiências (lugar do gesto compartilhado entre atores e público), no qual se
evidencia o recinto como parte daquela experiência artística, e, se o lugar muda, as
inter-relações dos agentes também é transformada.
Esta correlação particular dos lugares não-teatrais, encontrados, relacionados
e articulados para a concepção da encenação, foi justamente o que estabeleceu as
bases do que posteriormente incidiria no entendimento de teatro site-specific,
articulação que nos apresenta um horizonte de intersecções e procedimentos
56

práticos inerentes aos lugares observados como questão essencial da criação, que
problematizam, igualmente, a origem da encenação.
De tal modo, os procedimentos adotados pelos encenadores, a exemplo dos
criadores que tratamos nesse capítulo, asseguram o pensamento de que espaço
cênico só se concretiza quando é considerado na sua totalidade, através da relação
entre ambiente, ficção e ações cênicas. Igualmente, quando concebem os trabalhos
artísticos através das referências múltiplas que orbitam o ambiente da criação.
Tal qual a imagem captada do happening Mar Panorâmico criado por
Tadeusz Kantor em 1967 (figura18), que se compõe em perspectiva das ondas do
mar e dos banhistas (assumidos como espectadores), enquanto ele, como diretor,
maestro, maneja essa interação entre vida e arte.

Figura 18 – Mar Panorâmico (1967), um Happening de Tadeusz Kantor.

O espaço teatral é totalmente desmaterializado e ressignificado a partir da


convenção estabelecida entre os participantes e o ambiente. Fonte:
Eustachy Kossakowski.
57

2 ARTE SITE-SPECIFIC: O AMBIENTE COMO GÊNESE DA CRIAÇÃO

Partindo do pressuposto de que o espaço onde o trabalho artístico é


apresentado ao público seja tão importante quanto as ações dos artistas para
conceber tais obras, a noção de arte site-specific se apodera desse aforismo e se
constitui, através das obras pensadas especialmente para uma determinada
localidade.
O surgimento do termo, como terminologia discursiva, localiza-se no fim da
década de 1960, nos Estados Unidos, em decorrência de uma reação dos artistas
minimalistas às condições de exposição, circulação e acesso das obras. Nesta
ocasião, passaram a denunciar a não neutralidade do espaço institucional e a
recusa de um modelo de mercantilização da arte, como aponta Brian O’Doherty:

A estética é transformada numa espécie de elitismo social- o espaço


da galeria é exclusivo. Isolado em lotes de espaço, o que está
exposto tem a aparência de produto, joia, ou prataria valiosos e
raros: a estética é transformada em comercio- o espaço da galeria é
caro. o que ele contem, se não se tem iniciação, é quase
incompreensível- arte é difícil. Público exclusivo, objetos raros,
difíceis de entender- temos aí um esnobismo social, financeiro e
intelectual que modela nosso sistema de produção limitada, nosso
modo de determinar o valor, nossos costumes sociais como um todo.
Nunca existiu um local feito para acomodar preconceitos e enaltecer
a imagem da classe média alta, sistematizado com tanta eficiência
(O’DOHERTY, 2002, p. 85).

O espaço de exposição, nesta acepção, espelha a ideologia por trás das


paredes uniformes, do ar refrigerado e do carpete que silencia o som dos passos,
nos quais a obra deve ser vista, percebida, consumida e compreendida sob o vácuo
do ambiente que a acolhe (quem já esteve em um museu, numa galeria de arte ou
numa sala de teatro, nota bem que o trabalho artístico está encapsulado dentro de
uma estrutura que enquanto expõe as obras, expurga toda e qualquer referência que
aquele ambiente possa vir a ter na constituição e na fruição daquele trabalho
artístico).
Ao enfatizar o engajamento dos artistas minimalistas na proposição de
trabalhos fora das galerias e museus, Miwon kwon (2004)12 destaca a ocupação de

12
Miwon Kwon é professora e chefe do departamento de história da arte na Universidade da
Califórnia (UCLA). Formada em arquitetura, mestre em fotografia, é doutora em história da
arquitetura. A pesquisa e os escritos de Kwon envolveram várias disciplinas, incluindo arte
58

espaço comum e ordinário do cotidiano em contraposição ao idealismo modernista,


não somente no que diz respeito à exposição, mas, de tal modo, à criação e
materialização da obra. Desta iniciativa, ressalta a autora:

a arte site-specific tomou o espaço por sua materialidade real,


realidade tangível, composta por uma singular combinação de
elementos físicos constitutivos: comprimento, profundidade, altura,
textura e formato das paredes e salas; escala e proporção de praças,
edifícios ou parques; condições existentes de iluminação, ventilação,
padrões de trânsito, características topográficas particulares (KWON,
2004, p. 167).

Aliado a isso, os trabalhos em site-specific em sua primeira formação, diz


Miwon, iniciaram-se com um desafio epistemológico de realocar o significado interno
do objeto artístico para as contingências de seu contexto. Esta proposta seria a
maneira através da qual a prática do site-specific viria a radicalizar a relação com o
local onde o trabalho artístico é realizado, e encontra uma definição-chave nas
palavras do escultor Richard Serra:

Tilted Arc foi encomendada e projetada para uma localização


específica: a Federal Plaza. É um trabalho site-specific e como tal
não é para ser realocado. Removê-lo é destruir a obra. Trabalhos
site-specific lidam com componentes ambientais de determinados
lugares. Escala, tamanho e localização dos trabalhos site-specific
são determinados pela topografia do lugar, seja esse urbano ou
paisagístico ou clausura arquitetônica. Os trabalhos tornam-se parte
do lugar e reestruturam sua organização tanto conceitual quanto
perceptual (SERRA, 1969, p. 22 apud KWON, 2012, 167).

Na imagem abaixo (figura 19), podemos observar a obra referida por Richard
Serra, instalada na praça federal em Manhattan, que se destaca, exatamente, por
sua interação como o ambiente e com os transeuntes que tentam atravessar a praça
e se deparam com o monumento, reorganizando a percepção do lugar.
Além das espacialidades em si, a autora ressalta que as manifestações
artísticas em site-specific tendem cada vez mais a tratar as preocupações estéticas
e históricas da arte como questões secundárias e passam a enfatizar seu
engajamento expandido com a cultura, favorecendo, desde modo, uma
descentralização do acesso às obras de arte, ao optar por locais fora dos confins
tradicionais da arte em termos físicos, intelectuais e econômicos.

contemporânea, arquitetura, arte pública e estudos urbanos. Ela é autora de One Place After
Another: Site-Specific Art and Locational Identity (MIT Press, 2002), que serve de referência para
inúmeras pesquisas sobre a arte site-specific.
59

Nessa conexão, se expandem as possibilidades de conceber o espaço


destinado aos trabalhos artísticos como algo maior do que um lugar de exposição,
no intuito de perceber os interstícios da experiência fenomenológica, numa relação
dialógica entre o trabalho artístico, o espectador, a sociedade e seu cotidiano.
Ambientes que se afetam mutuamente e determinam uma compreensão mais ampla
das obras, que, interpeladas pelo ambiente, redefinem o papel da obra de arte e a
relação do público com esse trabalho artístico que será constantemente
reformulado, a partir do local habitado por ambos.

Figura 19 – Arco Inclinado (1981), obra de Richard Serra.

Ao reorganizar a percepção do espaço público, este trabalho (concebido


especialmente para este lugar) torna o lugar de exposição como espaço de
interação, no qual os apreciadores formais e também os ocasionais, para
terem uma experiência total da obra, devem contornar suas estruturas.
Fonte: Richard Serra.

Consequentemente, a utilização do espaço na composição do trabalho


artístico é reformulada: de uma definição de suporte, em um local fixo, pré-
determinado (em galerias e museus, como garantia existencial e validação enquanto
trabalho artístico), para se concentrar nos limites entre o espaço interior e exterior da
obra, ao assumir o lugar como parte indivisível e amplamente influente na obra.
Corroborando na percepção de que a obra pertence ao seu site, se o site muda,
também é modificada a inter-relação entre os objetos, contextos e pontos de vista.
60

2.1 GENEALOGIAS

Erika Suderburg (2000), que busca apontar uma genealogia da arte site-
specific, acredita que houve uma definitiva mudança no entendimento sobre o
espaço a partir do advento da Instalação, como meio para transformar o conceito de
escultura, que, até o fim do século XIX, era percebida como algo inerente à corpos
inertes no espaço, duradouros e figurativos.
No seu entendimento, essa alteração conceitual se deu, porque, na
Instalação, o objeto artístico é coletado, sintetizado, rearranjado, expandido e
reconfigurado das suas funções habituais, como observa a autora:

Instalar é o movimento funcional de colocar a obra de arte no vazio


neutro da galeria ou museu. É um processo que deve ocorrer cada
vez que uma exposição é montada. Instalação é a forma de arte que
toma nota dos perímetros desse espaço e o reconfigura. A
impossibilidade ideológica da neutralidade de qualquer espaço
contribui para a expansão e aplicação da Instalação, onde as formas
escultóricas ocupam e reconfiguram não apenas o espaço
institucional, mas o espaço do objeto também (SUDERBURG, 2000,
p. 4, tradução nossa)13.

Como resultado, instalar deixou de ser um gesto de pendurar obras ou


posicionar uma escultura, para tornar-se uma prática de arte em si, ao tomar as
configurações do espaço como essenciais na constituição e exposição do trabalho
artístico.
Nesta acepção, Erika Suderburg sugere que a Instalação indica pontos e
legados cada vez mais complexos com os espaços relegados aos trabalhos
artísticos, pela razão de o conceito fundante estar localizado numa extensão das
coleções, monumentos, jardins interiores domésticos (como uma poética site-
specific), e pode ser identificada em vários locais que são anteriores aos gêneros e
rótulos do modernismo.
Na sua investigação, indica que os Wunderkammern (gabinetes de
curiosidades) do século XVII e XVIII são as mais antigas lembranças da prática de
Instalação. Segundo a autora:

13
“To install is a process that must take place each time an exhibition is mounted; installation is the art
form that takes note of the perimeters of that space and reconfigures it. The ideological impossibility
of the neutrality of any “site contributes to the expansion ad application of installation, where
sculptural forms occupy and reconfigure not just institutional space but the space of objecthood as
well”.
61

Wunderkammern eram coleções compostas por itens escolhidos não


por causa do seu valor histórico, como antiguidade, ou monetário,
mas porque os colecionadores encontravam objetos agradáveis para
si e que, demonstravam as “maravilhas do mundo”, fossem elas
espirituais, naturais, ou feitas por homens (SUDERBURG, 2000, p. 7,
tradução nossa)14.

Geralmente, os objetos que compunham essas coleções eram dispostos de


acordo com a circunferência, altura, peso, cor, luminosidade, transparência ou
geometria semelhantes, e não a partir de valores ou regras estéticas (como
podemos observar na figura 20, que apresenta uma dessas câmaras, onde vemos
desde animais empalhados, sementes, rochas e até esqueletos de diversos
animais). Essa falta de homogeneidade e critérios impostos seria, precisamente, o
que tornaria o Wunderkammern um antecessor histórico da arte de Instalação.

Figura 20 – Imagem de um Gabinete de Curiosidades.

É interessante notar a quantidade variada de objetos coletados e as


diversas maneiras de arranjá-los no espaço. Nesse, em particular, vemos
animais e insetos empalhados, ossos, penugens e arcadas, além de
sementes e rochas compondo a sala com os elementos da natureza, sem,
necessariamente, priorizar qualquer artefato. Fonte: Caruba.

Associado a isso, a autora esclarece que a percepção geral era de que essas
câmaras de curiosidades poderiam facilmente ser classificadas como monstruosas e

14
“Wunderkammern were composed of collections of items chosen not because of their historical
value as antiquities or their monetary worth but because the collectors found the objects pleasing
and demonstrative of the “wonders of the world”, whether natural, spiritual, or man-made”.
62

excessivas, adjetivos que demarcaram outro fenômeno estético, anterior à


conceituação do site-specific, que tomou conta da arquitetura entre o século XVIII e
XIX: o Folly (literalmente traduzido por loucura, disparate).
As obras arquitetônicas batizadas de folly eram propositalmente
extravagantes e antifuncionais, uma vez que tratava-se de edificações decorativas
sem nenhum propósito prático, antítese, portanto, ao modelo da arquitetura
moderna, na qual a função precede a forma. Um exemplo desse tipo de edificação é
O Abacaxi de Dunmore (Figura 21), construído na Escócia, que apresenta um
abacaxi erguido verticalmente entre os aposentos de uma casa, sem qualquer
sentido ou função.

Figura 21 – Edifício O Abacaxi de Dunmore (1761), concebido por John Murray.

Nesta curiosa construção notamos que a funcionalidade passa ao largo,


porque mais do que a função, o que se destaca é o gesto do criador e a
forma escolhida. Fonte: Giannandrea.

Mesmo sem acompanhar nenhuma regra ou modelo particular, essas


construções eram um indicativo de um desejo do artista em construir um gesto único
e particular dentro da sua casa ou em terrenos em volta da residência, e que se
constituíam pelas razões mais espúrias que se possa imaginar: “um desejo de
serem vistos, uma visão de testemunho religioso ou cívico, desejo de comemorar
algo, desejo de aliviar o próprio senso de alienação em relação a si próprio e a sua
comunidade”, como afirma Suderburg, e completa:
63

Relegados ao status ideologicamente questionável de outsider ou de


arte popular, as folly não têm "valor de uso", a não ser como locais
de turismo e não são entendidos como "alta cultura". Outsider,
folclórico, primitivo e visionário são termos que são objeto de
profundo escrutínio e representam um dilema para escrever sobre
trabalhos designados fora do cânone modernista. As folly são locais
arquitetônicos vernaculares, dissociados de espaços sancionados
para exposição de arte e depois redescobertos, à medida que as
distinções entre belas artes e arte popular são revista (por artistas da
década de 1960) como ofuscações excludentes que precisam de
erradicação (SUDERBURG, 2000, p. 9, tradução nossa)15.

Outro exemplo dessas obras de folly é o Palácio Ideal (figura 22), construído
por Ferdinand Cheval (1879), que André Breton, ao escrever o seu manifesto
surrealista, o tomou por ícone, ao entender que essa obra expressava uma
“desordem dos sentidos”.

Figura 22 – Palácio Ideal (1879), construído na França por Ferdinand Cheval.

Além de notar os contornos e formas, esse palácio exige dos visitantes uma
interação com a obra, porque para ter uma percepção completa do trabalho,
é preciso circular por dentro das suas estruturas e perceber as texturas,
formas, relevos e relações desencadeadas da edificação pensadas pelo seu
criador. Ser passivo perante essa obra é perceber apenas a superfície.
Fonte: Benoit Prieur.

15
“Relegated to the ideologically questionable status of outsider or folk art, follies have no “use value”
except as sites of tourism and cannot be recuperated as “fine art.” Outsider, folks, primitive, and
visionary are all terms that ar subject of deep scrutiny and present a quandary for writing about work
designated as outside the modernist canon. […] follies are vernacular architectural sites divorced
from sanctioned art exhibition spaces and later rediscovered, as distinctions between “high” and
“law” art came to be seen (by artists of the 1960) as exclusionary obfuscations in need of
eradication”.
64

Essa obra, repleta de informações e minúcias em todo o espaço, sugere que


o visitante deva adentrar no seu interior para percebê-la com mais atenção, a partir
de uma exploração que não se esgota à primeira vista, como comenta Suderburg: “é
composto por espaços que exigem o testemunho, a exploração e a ocupação, que
se opõe ao contemplar de um objeto isolado em um ambiente neutro. Com o Palácio
Ideal, o "espaço neutro" poderia ser retirado silenciosamente”16 (SUDERBURG,
2000, p. 11, tradução nossa).
Essa interação do público com a obra, presente no Palácio Ideal, pode ser
notada em diversos trabalhos da segunda metade do século XX, onde a participação
do público é percebida como parte essencial da experiência artística, ao materializar
a obra por meio das suas ações, com acontece em Pedra e Ar (figura 23), concebida
por Lygia Clark, e que apresenta uma singular forma de composição, pois esta obra
é, literalmente, formada em torno de uma bolsa de ar entre mãos em concha, onde
flutua uma pedra lisa e redonda.

Figura 23 – Obra Pedra e Ar (1966), concebida por Lygia Clark.

Nesta concepção, a obra só se torna objeto artístico quando há a interferência dos


apreciadores, que por meio de arranjos possíveis entre o saco plástico cheio de ar
e uma pedra, mediadas pelas mãos do público, ressignificam toda a experiência
artística, inclusive o trabalho final. Fonte: MOMA.

16
“The Palais ideal was an environment that required witnessing, exploration, and domestic
occupation, actions fundamentally in contradistinction to the contemplation of an object isolated in
neutral space. With the Palais ideal, “neutral space” could be quietly retired”.
65

Segundo Erica Suderburg, Pedra e Ar se constitui a partir de um espaço muito


particular, ao incorporar a ressonância escultural do objeto encontrado formado à
escala do corpo:

Clark forma uma Instalação portátil, um macrocosmo da


monumentalidade de Cheval. “Ar e pedra” incorporando o corpo
como espaço, enxertando o inanimado em carne e vice-versa. Clark
instala-se em torno de um catalisador de ar e pedra, ar e pedra
moldam-se à sua forma. O espaço é ocupado e engendrado através
do objeto encontrado, à medida que é remodelado e animado pelo
espaço e ocupante do espaço (SUDERBURG, 2000, p. 9, tradução
nossa)17.

Portanto, ao considerar a interatividade e aleatoriedade na constituição de um


trabalho artístico, como apontado nas Câmaras de Curiosidades e nos Folly que
surgem como precursores da Instalação, a autora destaca os meios de produção,
exposição e fruição como principal diferencial dessas concepções artísticas, que são
completamente avessas aos “modelos canônicos” que imperam sobre o trabalho
artístico.
Em virtude disso, a produção pode ser marcada simplesmente pela
curiosidade ou uma vontade egoísta do artista em realizar uma coleção/instalação
de coisas encontradas no seu cotidiano ou uma construção arquitetônica, sem se
ater às demandas de utilidade/funcionalidade e parâmetros estéticos.
Do mesmo modo à exposição, que se configura fora das instituições e dos
padrões estilísticos modernos, num diálogo estreito com o cotidiano da cidade,
propondo uma fruição que demanda a exploração e ocupação do público como
exigência para a obra se concretizar, como no trabalho de Lygia Clark que,
literalmente, incorpora a obra.
Portanto, por ocuparem um terreno conceitual e metodológico semelhante
(como trabalhos da poética site-specific), visam uma desmaterialização dos objetos
da arte e podem ser situados em inúmeros períodos estéticos ao encontrarem
referência direta no ready-made de Marcel Duchamp, na Arte Povera, no Dadaísmo,
etc., já que, “a mudança de ênfase da arte como produto, para a arte como ideia,

17
“Clark forms a hand-held portable installation, a macrocosm of Cheval’s monumentality. Ar e pedra
incorporates the corporal as site, grafting the inanimate unto flesh and vice versa. Clark installs
themselves to her shape. Site is occupied and engendered through found objects, as it is reshaped
and animated through space and occupier of space”.
66

liberou o artista de limitações presentes, tanto econômicas, quanto técnicas”


(LIPPARD; CHANDLER, 2013, p. 160).
Corroborando com esse pensamento, Miwon Kwon (2004) ressalta que os
objetos artísticos da arte site-specific, necessariamente, são concebidos e
experimentados singularmente no aqui e agora pela presença corporal de cada
espectador.
A autora complementa sua afirmação, enfatizando que os trabalhos site-
specific focam no estabelecimento de uma relação indivisível entre a obra, sua
localização e a presença física do público para completar a experiência artística,
como nitidamente podemos intuir na obra Cais em Espiral, de Robert Smithson
(figura 24).

Figura 24 – Cais em Espiral (1970), obra concebida por Robert Smithson.

Neste trabalho a orientação é caminhar pelos cais e se deparar como as


possibilidades panorâmicas que a forma circular oferece ao público. Este, por sua
vez, para construir sua experiência artística, terá que atuar dentro dessa estrutura.
Fonte: Gianfranco Gorgoni.

Concomitante a esse movimento na direção da desestetização e progressiva


desmaterialização do espaço, os artistas do site-specific adotam estratégias que são
ou agressivamente antivisuais (informativas, textuais, expositivas, didáticas), ou
imateriais como um todo (gestos, eventos, performances limitadas pelo tempo),
como assegura Kwon (2004).
67

Deste modo, as possibilidades de conceber o espaço destinado às obras de


arte como algo mais do que um lugar de exposição se expande no intuito de
perceber os interstícios da experiência fenomenológica do ambiente.
Tais aberturas afetam o trabalho artístico e estabelecem um salto conceitual
crucial na redefinição espacial dos trabalhos concebidos pelos artistas minimalistas,
que condicionaram a experiência artística a partir do local habitado por obra e
público.

2.2 A PERFORMATIVIDADE DOS ESPAÇOS

O significado do minimalismo para a ideia de site-specific, entretanto, não é


simplesmente uma equação do uso do espaço que visa afetar a recepção, vai além,
como observa Michael Fried (1988), ao argumentar que a experiência literal da arte
minimalista põe objeto em situação (que virtualmente, por definição, inclui o
espectador e o submete a uma percepção do tempo e do espaço na experiência da
obra).
Com essa peculiaridade, as obras visuais entram em um campo que se
situam no entre artes, onde as artes visuais se degeneram, aproximando-se da
condição do teatro. Pois, “Ao enfatizar o ato transitório e efêmero da fruição, o
minimalismo entra no domínio essencialmente teatral e performativo” (FRIED, 1988,
p. 125 apud KAYE, 2006, p. 3).
Vale ressaltar que essa característica de realização performativa já se fazia
presente nas artes visuais, enquanto conceito, desde meados dos anos de 1940,
nas práticas da action painting e no body art, como também ocorreria,
posteriormente, nas esculturas de luz e vídeo-instalações. Nestas categorias, ou
bem o artista apresentava a si mesmo perante o público na ação de pintar e exibir
seu corpo (que previamente havia caracterizado como um modo particular de
criação artística), ou bem convidava o observador a se mover pela exposição e a
interagir com os elementos expostos, enquanto outros visitantes observavam suas
ações.
Logo, visitar a uma exposição de artes se converteu, em muitos casos, ou em
um testemunho da execução do artista ou na participação do público numa
realização performativa, que muitas vezes se concretizava a partir de vivencias
espaciais criadas nos distintos espaços que rodeavam o visitante, afirma Fischer-
68

Lichte (2004), e completa: “assim, não se tratava de entender a performance como


um texto a ser lido e compreendido racionalmente, mas de experimentá-la e de
enfrentar a experiência naquele local singular, repleto de escapismos e significados”
(FISCHER-LICHTE, 2004, p. 38).
Esse “impulso performativo”, que acometeu todas as linguagens artísticas a
partir de 1960, estabeleceu novos paradigmas quando as fronteiras entre as
distintas artes ficaram cada vez mais tênues, e com uma tendência à criação não de
obras de arte (como tradicionalmente se configuram), mas de trabalhos transitórios,
que, progressivamente, convergiram para a arte da Performance, haja visto a
criação e concepção dos quadros de Jackson Pollock e, sobretudo, dos Happening
de Allan Kaprow (imagem 25), para os quais a realização dos seus trabalhos não
adquire um status de objeto artístico, mas de um acontecimento não repetível,
através da presença conjunta dos artistas e público em um lugar característico que
suscita tal relação.

Figura 25 – Quintal (1961), performance concebida por Allan Kaprow.

Expandindo o conceito de escultura e os limites cada vez mais difusos entre


arte e vida, este trabalho comportava na sua estrutura uma alta capacidade
de jogo entre os participantes, colocando os elementos do real a serviço da
arte. No entendimento de Kaprow, não havia distinção entre o espectador e
a obra de arte. O espectador se torna parte da obra. Fonte: Julian Wasser.

Obrigado a contemplar não a arte, mas a galeria, o visitante tornou-se um


tema. Esta troca, nas palavras de Kaprow, oferece ao artista a possibilidade de
69

repensar o seu modo de trabalho, em função das ações que emergem do contato do
público com o objeto artístico naquele espaço, ocupado por ambos. E aconselha:

Desista completamente da ideia de exibir um espetáculo para uma


plateia. [...] Sem uma plateia, você acaba se liberando para o
movimento, usando todos os tipos de ambientes, se misturando no
mundo do supermercado, nunca se preocupando com o que aqueles
que estão sentados nos assentos estão pensando, e você pode
espalhar a sua ação pelo mundo todo quando quiser. A arte
tradicional é como a educação universitária e as drogas: é alimento
para as pessoas que têm que ficar sentadas em suas bundas por
longos e longos períodos de tempo para chegar a algum resultado, e
o resultado é que há muitas ações acontecendo em outros lugares,
sobre as quais todas as pessoas espertas preferem simplesmente
ficar pensando a respeito. Mas os happeners têm um plano, e eles
vão adiante para executá-lo. Parafraseando uma velha expressão,
eles não somente curtem a cena, eles a fazem acontecer (KAPROW,
1966, p. 6, trdaução nossa).

Vê-se bem que, a partir da inflexão relacional do espaço para a constituição


do trabalho artístico e das correspondências sinestésicas e cognitivas que emergem
do ambiente encontrado e ressignificado, no trabalho dos artistas minimalistas, o
local da experiência artística foi reformulado, sobretudo quando passaram a
denunciar a pretensa neutralidade dos espaços institucionalizados e oferecer ao
publico a possibilidade de encontrar seu próprio espaço de fruição.

2.3 A PRÁTICA DO LUGAR COMO GÊNESE DA ENCENAÇÃO

Embora os agentes do teatro tenham experimentado realizar eventos em


espaços não-teatrais há séculos (haja visto o desenvolvimento do Teatro Medieval),
foi somente na década de 1980, segundo Fiona Wilkie (2007), que o termo site-
specific passou a ser usado em larga escala no teatro inglês, e, desde então, tem
sido matéria de pesquisa de vários criadores, que se detém sob esta modalidade
para tentar definir suas particularidades conceituais e também metodológica, uma
vez que estão inseridos dentro do grande leque da Performance Art que, por si,
extrapola os limites das convenções teatrais para o uso do espaço cênico.
Já no contexto brasileiro, o termo é pouco conhecido pelos nossos criadores,
embora sua aplicação prática esteja diretamente relacionada com o que entendemos
por “teatro em espaços alternativos”, o que, genericamente, engloba as práticas
teatrais fora dos espaços tradicionais, mas, não necessariamente, se atendo às
especificidades dos espaços selecionados para a criação cênica.
70

Na esfera teórica, destacamos os estudos de André Carreira, que na sua


formulação enfatiza aquilo que denominou de Teatro de Invasão, terminologia que o
autor usa para definir o instante em que o teatro invade, literalmente, o espaço
público e instala nele uma ficção, fazendo o espaço funcionar sob novas
perspectivas, ao proporcionar à linguagem teatral um rearranjo espacial e
metodológico para desenvolver as encenações, sejam eles espaços abertos ou
fechados.
Baseando sua abordagem a partir do entendimento do espaço cênico como
tecido urbano, o autor comenta:

O ato de invasão não pode ser entendido simplesmente como


colocar um espetáculo no espaço público, senão como um ato de
criador que se inscreve no interior do tecido da cidade, estimulando a
participação ativa do espectador no jogo. Invadir é tratar de romper
com as microestruturas de funcionamento do cotidiano, mesmo que
ocorra em um pequeno seguimento de espaço (CARREIRA, 2017, p.
84).

Esta prática de teatro urbano pode revelar o grande potencial que a cidade
tem em funcionar com os códigos da linguagem teatral e se configurar como um
exercício de ressignificação de espaços públicos depreendidos, fundamentalmente,
da prática de habitar esses espaços, desorganizá-los e configurá-los de maneira a
criar estados lúdicos, nos explica o autor.
Entendimento partilhado por Silvia Fernandes (2013), naquilo que ela
denominou Teatros do Real, expressão utilizada para identificar espetáculos e
intervenções artísticas que se apoiam em espaços da cidade, com forte carga
dramática, para desenvolver um discurso, partindo de uma rede de referências que
poderá potencializar a fruição, como sintetiza a autora:

Este teatro de vivências e situações públicas não pretende,


evidentemente, representar alguma coisa que não esteja ali. Ao
contrário, a tentativa é de escapar do território específico da
reprodução da realidade para tentar a anexação dela, ou melhor,
ensaiar sua apresentação sem mediações (FERNANDES, 2003, p.
83).

Essa miscelânea de territórios das propostas em espaços não-teatrais inclui


diversos eventos cênicos, que buscam enfatizar a análise do uso da cidade e suas
especificidades ambientais como elemento da criação do teatro contemporâneo, e
71

ainda que não se designe site-specific, no contexto brasileiro, compartilham


horizontes teóricos semelhantes.
O teatro site-specific, portanto, tal qual as artes homônimas, se constitui,
como bem resume Mike Pearson (2010), a partir do estabelecimento de uma
ocupação e investigação do espaço não-teatral como possibilidade de criação,
ambiente no qual a obra será concebida e condicionada pelas particularidades do
espaço, sem as quais o trabalho se esgota.
Nesta esfera, a encenação configura-se a partir de um lugar não-teatral, fator
que, de início, já apresenta uma dificuldade para quem pretende aventurar-se em
esboçar uma definição que possa dar conta de toda as complexidades dos espaços
disponíveis para essas encenações, dado a variedade de lugares apoiados nesta
modalidade teatral (espaços encontrados, espaços arranjados, espaços adaptados,
espaços desmaterializados, em espaços abertos, fechados ou virtuais), e também
pelas diferentes particularidades de cada espaço, quando apresentam
características semelhantes.
Apesar disso, diante da tarefa de articular algo que se aproximasse de uma
definição de teatro site-specific que pudesse abarcar tal formulação, em 1998
Patrice Pavis, em seu dicionário, postulou:

Este termo se refere à encenação e espetáculos concebidos a partir


e em função de um local encontrado na realidade (e, portanto, fora
dos teatros estabelecidos). Grande parte do trabalho reside na
procura de um lugar ou impregnado por uma forte atmosfera:
barracão, fábrica desativada, parte de uma cidade, casa ou
apartamento. A inserção de um texto, clássico ou moderno, neste
local descoberto lhe confere uma nova iluminação, uma força
insuspeitada e instala o público numa relação completamente
diferente com o texto, o lugar e a intenção. Este novo quadro fornece
uma nova situação de enunciação que, como na land art, faz-nos
redescobrir a natureza e a disposição do território e dá ao espetáculo
uma ambientação insólita que constitui todo seu encanto e força
(PAVIS, 1998, p. 127).

Primeiramente, nessa observação do teórico francês, percebemos que o


teatro site-specific opera em função do espaço encontrado na realidade tangível do
nosso cotidiano: garagens, galpões, igrejas, fábricas desativadas, apartamentos,
parques, etc., que são apropriados pelos artistas como espaço cênico para as suas
criações. Com isso, descarta-se qualquer vinculação entre a prática do teatro site-
specific com o monumento arquitetônico idealizado para a exposição dos trabalhos
72

cênicos e as convenções que dele emergem (exceto quando este espaço é


ressignificado para atuar sob as convenções do site-specific).
Nestes espaços se estabelece, de pronto, uma mudança de paradigma no
arranjo espacial destinado ao encontro dos atores e público, uma vez que não
possuem divisão entre palco e plateia (à priori), e trazem à tona a realidade do local
como potencia significante da encenação.
Na leitura de Pavis, a utilização desses espaços favorece, ainda, uma
ambientação incomum para a peça e oferece um meio para abrigar uma leitura
excepcional de um texto dramático, que, por sua vez, desencadeia diversas relações
que a peça possa vir a estabelecer com o público ao tomar a natureza do espaço
como enunciado do espetáculo.
Contudo, vale ressaltar que na encenação site-specific o local selecionado
como espaço cênico provavelmente não será concebido como um pano de fundo
interessante e desinteressado no significado da construção do espetáculo, como as
palavras de Pavis podem sugerir, nem, tampouco, uma ilustração/ambientação
incomum para um texto dramático, uma vez que o teatro vincula a encenação a um
espaço por meio dos processos significantes que do próprio espaço emergem,
sejam eles narrativos, simbólicos ou estruturais, que estarão presentes de alguma
forma na constituição do espetáculo.
De maneira tal, que tirar a encenação do espaço no qual ela foi concebida
pode destruir a obra, pois as características inerentes àquele espaço são únicas e
estão imbricadas diretamente na estrutura do espetáculo, como bem sublinhou
André Carreira:

Se estiver pensando a cidade apenas como imagem arquitetônica,


se não se explora a capacidade de fazer com que os novos espaços
penetrem a cena, portanto, estará se reforçando exclusivamente sua
função cenográfica. A mobilidade não põe fim à originalidade, nem
corrói a ideia do efêmero da cena. Essa re-fabricação que também é
comum nas obras de site-specific, re-contextualiza o trabalho mais
conceitual, sempre e quando se descobrem caminhos que
estabeleçam novos diálogos com a cidade (CARREIRA, 2017, p.
104).

O segundo momento da definição de Pavis diz respeito ao caráter conceitual


no qual a prática se propõe ao estabelecer uma pesquisa sobre o espaço, que, no
seu entendimento, se refere à atmosfera que ronda os espaços destinados à
encenação site-specific, podendo ser entendida como os rastros impregnados pelo
73

cotidiano do local no qual a encenação se desenvolve, e que será de grande valia,


tanto para ressignificar o texto dramático, quando para afetar a percepção do
espectador.
Ratificando este raciocínio, Nick Kaye (2000) ressalta que, ao tentarmos
traçar uma definição para o teatro site-specific, devemos recorrer necessariamente à
própria origem do conceito, pois ele estimula uma investigação mais ampla de como
podemos entender o espaço como sendo menos fixo ou menos especificamente
geográfico, e mais virtual. Porque:

Não é apenas fornecer um modelo de relacionamento de um não-


espaço em espaço cênico, mas no contexto de uma definição
transitiva de espaço, a especificidade do espaço em si. [...] É nesse
contexto que a arte site-specific frequentemente trabalha para
problematizar as oposições entre o espaço e a obra. É também
nesta oposição que as abordagens das artes visuais e da
arquitetura percebem o espaço, ou podem ser lidas, através do
termo performance (KAYE, 2000, p. 11, tradução nossa)18.

Neste entendimento, Kaye sugere que o espaço vinculado à prática do teatro


site-specific deva ser fundamentado a partir da compreensão das especificidades
(contextos) do espaço, que são transitivas e efêmeras, mais do que pelo perímetro
geográfico (fixo e imutável) que o espaço ocupa.
Por isso, para chegarmos a um bom termo, o autor indica que recorramos ao
entendimento das artes visuais sobre a prática do site-specific, uma vez que esta
trata as preocupações estéticas, históricas e materiais como questões secundárias,
ao priorizar o engajamento do artista com o cotidiano do local encontrado e suas
diversas formas identitárias, o que, por sua vez, provoca uma ligação com a obra em
termos não apenas físicos, mas virtuais, determinados pelas próprias características
espaço.
Compartilhando da mesma percepção, Miwon Kwon (2002) identifica três
paradigmas que definem as especificidades comuns às práticas site-specific: o
fenomenológico, o social e o discursivo, que se interpenetram pela possibilidade de
conceber o espaço como algo a mais do que as características topográficas, antes,
por toda malha que, em ressonância, rege esse espaço.

18
“It is not just providing a model of the relationship of a non-space in scenic space, but in the context
of a transitive definition of space, the specificity of space itself (…) It is in such contexts that site-
specific art frequently works to trouble the oppositions between the site and the work. It is in this
troubling of oppositions, too, that visual art and architecture’s approaches to site realize or may be
read through the terms of performance.”
74

Em seu entendimento, o espaço fenomenológico estaria localizado no lugar


literal, concreto e significante da realidade (fábrica, apartamento, garagem, igreja,
etc.) que o teatro, fazendo uso como espaço cênico, estabelece as relações da
experiência artística por ele desencadeada; o espaço crítico social inclui outra
camada à ideia de espaço, pautando, especialmente, a criação do trabalho sob os
vetores sociais e políticos e suas convenções engendradas naquele ambiente em
que os artistas passam a se endereçar no momento da instalação do trabalho, para
além dos aspectos físicos do lugar.
Já no espaço discursivo, o trabalho estaria descolado do site literal, passando
a se ocupar de um assunto mais abrangente, um discurso que paira sob o espaço,
seja ele ecológico, racial, de gênero ou outras formas identitárias relevantes a serem
debatidas e suscitadas ali. Como assegura Kwon:

As obras não querem mais ser um substantivo/ objeto, mas um


verbo/processo, provocando a acuidade crítica (não somente física)
do espectador no que concerne, inclusive, às condições ideológicas
dessa experiência. O que significa que o site deve ser estruturado
(inter) textualmente mais do que espacialmente, e podem ser
estruturados para serem experimentados transitivamente, uma coisa
depois da outra, e não como simultaneidade sincrônica. Essa
transformação do site textualiza espaços e espacializa discursos
(KWON, 2008, p. 111).

Nestes apontamentos, percebe-se que a especificidade transitiva do espaço


acaba por gerar certa polissemia, e se comporia por meio dessas esferas de
espaços que se afetam mutuamente e estabelecem um salto conceitual crucial na
redefinição da experiência artística, subscrita pelos espaços imbricados nas obras.
Como exemplo para essa fundamentação, poderíamos pensar os desafios
espaciais da encenação do espetáculo BR3 (2006), do coletivo cênico Teatro da
Vertigem (figura 26). Este espetáculo foi concebido para ser apresentado dentro do
Rio Tietê, curso de água que percorre grande parte do Estado de São Paulo, e que,
na megalópole paulistana, se transformou num esgoto a céu aberto.
75

Figura 26 – Imagem de BR3, encenação de Antônio Araújo para o Teatro


da Vertigem.

O espectador, a bordo de um barco, acompanha a trajetória da encenação


que se desenvolve nas margens do Rio, tecendo a história de um país que
investiu no 'progresso', mas não planejou o que fazer com os resíduos
desse projeto. Fonte: Rio Encena.

Como proposta cênica, o espetáculo buscava recontar uma parte da história


do Brasil através de uma navegação pelas águas poluídas represadas pelo fluxo do
cimento, ferro e poluição que compõem o espectro paisagístico desenvolvimentista
da cidade de São Paulo. Neste cenário, o espaço cênico “Rio Tietê” seria a primeira
camada sugerida por Kwon (fenomenológica), o espaço concreto da experiência
proposta pela encenação.
A segunda camada diz respeito ao significado sociopolítico do Rio Tietê para
a própria cidade, uma vez que São Paulo, sendo a maior cidade do país, a mais
abastada financeiramente e, por isso mesmo, possuir melhor infraestrutura, é,
também, uma das que mais apresentam problemas no trato dos recursos naturais e
dos resíduos coletivos da população. Neste flagrante paradoxo, se instala um
conflito sociopolítico importante para aquela comunidade, e de que o espetáculo se
apoderou, em ressonância, para refletir sobre a própria cidade.
A terceira camada identificada nesta encenação (discursiva) pode ser
observada na motivação do grupo em refletir sobre a identidade e territórios da
nação brasileira a partir da materialização metafórica de uma viagem pelo Rio-
esgoto da cidade de São Paulo, que dá a conhecer os valores e princípios éticos e
hábitos que orientam o desenvolvimento do local, que, por sua vez, encontrou no
Rio encenado o vetor para conduzir o discurso pretendido.
76

Logo, como entende Mike Person (2010), não se trata de questionar como as
camadas do espaço são configuradas, mas de que forma o evento cênico se move
através delas. Em todo caso, o espaço cênico da poética site-specific pode ser
entendido como o espaço e suas circunstâncias, uma vez que se torna impraticável
dissociar a origem, função, contexto e imaginário popular quando se ocupa um
espaço não-teatral.
Embora o termo site-specific (literalmente traduzindo) se constitua através de
duas palavras: site (espaço) e specific, derivada de specificity (especificidade), que
vinculam a linguagem teatral ao que há de específico nos espaços selecionados
para construir ali uma ficção, Fiona Wilkie (2004), ao se deter sobre o tema, revela
que alguns criadores reivindicam aquilo que há de único no espaço, mais do que as
especificidades, ao entender que, de certa forma, todo o trabalho teatral é, até certo
ponto, específico do local, pois foi feito para um conjunto particular de espaços,
planejados para um determinado momento, seja ao ar livre, em ambientes fechados
ou em espetáculo de salas de teatro, nos quais a dramaturgia e ensaios são feitos
especificamente com esse espaço em vista.
Assim sendo, recorre ao adjetivo "exclusivo" para destacar as características
únicas daquele espaço selecionado, sem o qual o trabalho artístico se esgota. Essa
particularidade, segundo a autora, em maior ou menor grau conforma todos os
trabalhos cênicos nesse gênero teatral e, por isso mesmo, indica algumas distinções
que dizem respeito apenas a essa forma artística, como a questão levantada pela
autora na sua pesquisa: sendo os espaços exclusivos, é possível sair em turnê com
os trabalhos site-specific? Fiona observa que há duas maneiras de lidar com esse
enigma:

Alguns projetos são totalmente específicos do local, ou seja, eles não


poderiam ocorrer em nenhum outro lugar sem perder o elo de
significado e conexão; enquanto outros projetos mais flexíveis podem
trabalhar em torno de um certo senso de lugar, isto é, uma atmosfera
ou conceito no centro do projeto, que funcionaria em várias
passagens, mas não em todas as localizações (WILKIE, 2004, p. 53,
tradução nossa)19.

19
“Some projects are completely site-specific. they could not take place anywere alse without losing a
string thread of meaning and connection; while other more flexible projects may work around a
certain sense of place, the spirit or concept at the heart of the project would work in several- but not
all- location”.
77

Este entendimento sobre os espaços, e a possibilidade que ele oferece à


encenação de acessar lugares que dizem respeito apenas e tão somente àquele
para o qual foi criado, diante das particularidades que o animam e que lhe são
exclusivas, vincula o trabalho, inequivocamente, ao espaço, o que de fato
compromete que a obra de saia em turnê ou siga fazendo temporadas por outros
lugares, diferentes da mesma localidade onde foi concebido. De tal modo, para que
uma peça seja verdadeiramente site-specific, significa que ela está totalmente
vinculada ao seu espaço, tanto em seu conteúdo quanto na forma. Caso contrário,
se for móvel, ela tornará o espaço como veículo/embarcação (WILKIE, 2004).
A segunda maneira de lidar com as complexidades decorrentes da questão
da turnê diz respeito à criação de uma nova terminologia. Para tanto, Fiona destaca
que é possível encontrarmos diversas formulações tipológicas que animam as
encenações, embora admita que haja poucas diferenças, são sempre distintas e
discretas, mas em todo caso, calha de nos revelar um pouco mais sobre essa
prática.
A autora identifica, então, pelo menos três tipologias: o site-sympathetic (um
espaço apropriado a um determinado texto); o site-generic (trabalhos gerados para
uma série de espaços semelhantes); e o site-specific (especificamente gerado por
ou para um espaço selecionado). Espaços que, de algum modo, podem apontar
para uma progressiva dissociação da encenação e seu espaço geográfico original.
Mesmo destacando que grande parte dos criadores assinala para uma
sensação de esvaziamento, quando as peças são adaptadas para outros lugares
similares ao original (visto que neste gênero o espaço é considerado mais por suas
camadas históricas sociais e discursivas, do que pela espacialidade em si), isso
possibilita que o espetáculo possa circular por espaços afins, adaptados, desde que
obedeça a lógica conceitual que anima a encenação, e pode permitir que outras
experiências sejam descobertas pela encenação.
Consequentemente, o espaço na poética site-specific incorpora um conjunto
de metáforas espaciais e produtivas, das quais os artistas se detêm para explorar
uma variedade de espaços não-teatrais, compreendendo esse espaço expandido
como potencialidade investigativa, marcada pelas características políticas, sociais e
virtuais próprias dele. Logo, “a especificidade potencialmente restritiva do espaço,
passa a permitir ambiguidade e multiplicidade” (WILKIE, 2004, p. 54).
78

Além das questões conceituais e práticas que envolvem o teatro site-specific,


que dificultam ou anulam a possibilidade de circulação do espetáculo, Fiona destaca
que os custos operacionais por trás da poética, muitas vezes, inviabilizam que
produtores e festivais desloquem tais propostas para outros espaços, diferentes
daqueles em que foram concebidos.

Na prática isso tem sido muito difícil, impossível, na verdade, porque


simplesmente não há dinheiro suficiente para retrabalhar os
espetáculos em relação ao espaço específico. Existem muito poucos
promotores que podem pagar os custos de criar um trabalho nessa
escala (WILKIE, 2004, p. 55, tradução nossa)20.

A realidade britânica, neste quesito, talvez não seja tão distante da brasileira.
Por isso, fica fácil entender que as demandas advindas das escolhas espaciais
podem condicionar o espetáculo a cumprir poucas apresentações e, mais que isso,
impossibilitar (em alguns casos) que novas temporadas possam vir a acontecer, pelo
número limitado de espectadores, ou seja, poucos pagantes. Padrões que são
recorrentes nas práticas site-specific.
Sendo assim, notamos que as encenações site-specific confiam suas
concepções, produções e recepção à complexa convivência material do espaço
(instalações, histórico e contexto) e à imaterialidade inerente à linguagem artística
(artificial, imagética, efêmera), que se sobrepõem e interpenetram-se a partir daquilo
que antecede a obra e aquilo que é a obra: o passado e o presente artificialmente
construído, mas com uma presença material do espaço que não consegue ser
apagada pelo trabalho artístico, contribuindo, assim, para uma narrativa passível de
múltiplas leituras e significados.
Justamente por essa razão, Mike Pearson (2010) defende que os espetáculos
realizados sob esses termos são inseparáveis de seus espaços, pois só conseguem
ser inteligíveis a partir daquele contexto no qual (ou para o qual) foram criados.
Consequentemente, qualquer possibilidade de um espaço neutro na
encenação site-specific torna-se uma incongruência abissal, uma vez que estas
proposições teatrais se valem da própria identidade do local para compor o
espetáculo, seja como especulação narrativa, seja como símbolo para alguma

20
“In practice this has been very difficult- impossible really as there simply is not enough money to
rework shows in relation to the specific site. There are very few promoters who can pay the cons of
creating work on that scale”.
79

questão que esteja sendo debatida, ou seja, ainda, como contraponto material para
o discurso da peça.
Portanto, é pouco provável que o espaço seja um quadro em branco, sobre o
qual os agentes do espetáculo irão operar e aplicar suas técnicas, pois, como bem
definiu Lehmann:

O teatro específico ao local procura uma arquitetura ou uma


localidade não tanto porque o “local” corresponda particularmente
bem a um determinado texto, mas, sobretudo, porque se visa que o
próprio espaço seja trazido à fala por meio do teatro (LEHMANN,
2008, p. 281).

Compreende-se, desta leitura, que a encenação norteada por esse conceito


decide por um espaço que tenha a possibilidade de responder e interrogar uma série
de preocupações que o circundam, representando escolhas formais e estéticas,
afinal, estamos no campo das artes, mas, do mesmo modo, “políticas e discursivas
pela própria concretude e significados dos espaços cotidianos performatizados neste
tipo de encenação” (PEARSON, 2010, p. 8).
É particularmente significativo que, ao se constituir a partir de um espaço
ordinário do cotidiano de uma comunidade (com uma função completamente distinta
dos espaços dados às artes cênicas), a encenação site-specific leva o teatro a
operar em um campo dimensional ambíguo, que por um lado constrói uma ficção, ao
fazer uso das ferramentas e códigos que a linguagem teatral lhe fornece, e por outro
lado, está inserido dentro de um espaço funcional da realidade concreta e tangível
da sociedade e suas imensas complexidades, que por si se opõe ao artifício, ao
efêmero e fictício onde as artes operam.
Como resultado, essas propostas cênicas acabam não criando uma
representação do real, nem tampouco uma interpretação de realidade, mas, “criando
uma intervenção sobre o real, que tentam converter o espectador em participante de
uma formal coletiva, ou na forma de ações diretas sobre o espaço não delimitado
pelas instituições artísticas” (SÁNCHEZ, 2007, p. 76 apud CARREIRA, 2011, p.
334). Característica permanente no teatro contemporâneo.
Em todo caso, ao interrogar o seu próprio campo de atuação e as convenções
praticadas no estabelecimento de um ambiente que busca combinar forma e
conteúdo (e lugar teatral, cenografia e ações cênicas), a encenação site-specific se
fundamenta, do mesmo modo, a partir do conceito de vivência, que se constitui pela
80

coparticipação de todos os agentes da encenação, permitindo, inclusive, que o


espectador encontre seu próprio espaço na encenação, perante a complexidade da
fruição na qual este está inserido, como bem descreve André Carreira:

Quando se experimenta um teatro no qual a intimidade é o elemento


vincular, ou pelo menos sua promessa e o espaço nos coloca em um
território de risco, busca-se explorar potência da ação da experiência
da arte. Não há dúvidas que ao se oferecer aos espectadores a
proximidade extrema e o compartilhamento da gestão do
acontecimento se busca criar um evento que se desloque do simples
espetáculo. Esta oferta define lugares e propicia pensar sobre a
noção espacial, ambiental da cena (CARREIRA, 2017, p. 7).

De fato, um dos raciocínios na prática do teatro site-specific diz respeito ao


papel vital do espectador para completar o trabalho artístico, a partir do vínculo que
estabelece com a obra, concepções veiculadas em proposições de Artaud a
Schechner (como vimos no primeiro capítulo), que propunham uma fruição íntima e
processual entre todos os agentes da cena.
Todavia, no teatro site-specific, entrega-se ao espectador uma grande parcela
do evento cênico, ao solicitar que este faça sua jornada através do espaço da
encenação e, partindo dessa experiência, possa decodificar a obra, ciente de que o
espaço não é apenas uma simples ordenação estética, ou plataforma de exposição,
mas parte indivisível daquela experiência cênica, na qual ele pode intervir, se
desejar.
De modo semelhante, essa vivência comunal em um espaço-tempo
compartilhado entre atores e público, num ambiente alheio ao teatro, onde todos os
agentes do evento são estranhos àquele lugar, seria mais uma característica destas
encenações, uma vez que todos nós (atores, espectadores, cenógrafos,
iluminadores, maquiadores, figurinista, etc.) somos “convidados” do espaço,
sentencia Lehmann: “todos são estrangeiros no universo de uma fábrica, de uma
central elétrica, de uma oficina de montagem” (LEHMANN, 2008, p. 282).
Acontece que, ao abdicar do seu lugar de origem (o edifício teatral) e ocupar
lugares insólitos e ordinários do cotidiano como espaço cênico, instaurando neles
uma ficção, intuímos que, de alguma maneira, o teatro abdicou o mundo dramático e
fictício, para anexar os espaços heterogêneos, a esfera do cotidiano, que passam a
ser uma espécie de palimpsesto permanente nos trabalhos dessa natureza, nos
explica Lehmann.
81

De modo semelhante percebe Carreira (2017), ao anotar que a relação


cidade-praticada, cidade-imaginada é a chave para pensarmos os processos em
relação aos espaços urbanos, dado que estes dois elementos existem de forma
justaposta.
Concatenando todas as problemáticas de considerações vistas até aqui,
compreendo que a encenação se estabelece como site-specific quando o espaço
não-teatral é admitido como possibilidade cênica a partir da realidade histórica (ou
das conjecturas imagéticas), daquele lugar no qual os produtores irão se deter para
criar seus trabalhos num diálogo permanente com as circunstâncias próprias do
ambiente. Esse elemento mediará a criação das cenas e convenções teatrais, modo
de comunicação, meios de acesso, permanência e fruição, que tendem a ser
distintas das práticas realizadas no teatro de sala, ao incorporar a natureza, as
funções e os imaginários dos lugares onde o teatro vai habitar.
Temos, então, que esse ambiente conduz a encenação e estabelece
abordagens operacionais distintas das vivenciadas nos espetáculos de sala, como
demarca o quadro abaixo, adaptado de uma proposição realizada por Claire
Doherty21, que apresenta algumas diferenciações entre o espetáculo de sala e a
encenação site-specific:

Quadro 1 – Diferenças entre Espetáculo de sala e site-specific.

No espetáculo de sala o No site-specific, os limites espaciais podem ser


espaço cênico é fechado em evidentes, mas demandam uma constante
si mesmo. expansão.

No espetáculo de sala as No site-specific, as condições ambientais podem


condições ambientais são mudar e necessitam ser aceitas ou ativamente
estáveis. combatidas pela encenação.
O espetáculo de sala é O site-specific só é silencioso e escuro se for
escuro e silencioso. escolhido por tais qualidades ou se assim exigir a
concepção da encenação.
No espetáculo de sala a No site-specific, as cenas podem acontecer em
cena está localizada em um vários lugares do espaço.
só lugar.
No espetáculo de sala o No site-specific, pode haver várias disposições
arranjo do público é fixo. para o público: organizado, fluido, negociado, etc.

21
DOHERTY, 2004, p. 9 apud PEARSON, 2010, p. 17.
82

No espetáculo de sala, o No site-specific, o público pode ser ocasional e


público é escalado para ser pode ser solicitado a intervir na ação cênica.
apenas espectador:
propositalmente apreciador.
No espetáculo de sala a No site-specific, a perspectiva da cena é múltipla.
cena é singular.

No espetáculo de sala a No site-specific, os eventos ocorrem de formas


cena ocorre à meia distância. variadas e mudam de distância.

No espetáculo de sala a No site-specific, a encenação é gerada em função


encenação é apresentada ao do espaço e requer participação do público.
público.
No espetáculo de sala os No site-specific, os efeitos podem invadir e chamar
efeitos são discretos e atenção.
controlados.
No espetáculo de sala a No site-specific, a maquinaria teatral inexiste, mas
maquinaria teatral preexiste pode ser instalada unicamente para aquele evento
ao espetáculo. e, também, pode ser adaptada das instalações do
próprio espaço.
No espetáculo de sala o No site-specific, o artifício está à vista e menos
artifício é disfarçado. mascarado.

No espetáculo de sala as No site-specific, as técnicas devem ser inventadas


técnicas e controles são mais ou adaptadas.
ou menos suficientes para a
tarefa da encenação.
No espetáculo de sala, uma No site-specific, muitas coisas podem estar
coisa de singular importância acontecendo ao mesmo tempo.
está acontecendo.
No espetáculo de sala as No site-specific, as ocupações anteriores dos
ocupações anteriores são espaços são evidentes e operatórias, apesar de
apagadas. não necessariamente fazerem referência a elas.
No espetáculo de sala esse No site-specific, é sempre como se a dramatização
tipo de coisa (evento cênico) fosse a primeira vez.
já aconteceu antes.
No espetáculo de sala o No site-specific, pode não haver recursos para
espaço é projetado para mais de uma apresentação ou mais de uma
facilitar a repetição. temporada.
O espetáculo de sala pode No site-specific, o espetáculo dificilmente será
ser apresentado em outro apresentado em outro espaço, ainda que
espaço semelhante. semelhante.
Fonte: (DOHERTY, 2004), adaptado pelo autor.

Estas oposições, provavelmente, podem ser expandidas para outras relações


que envolvem a concretização de uma encenação site-specific, já que esta prática
contribui para o entendimento sistemático do espaço da encenação de maneira
dialógica com a criação e a recepção desses eventos cênicos.
83

Em síntese, tais distinções em relação à prática do teatro de sala podem


apontar para uma progressiva repactuação dos procedimentos adotados pelos
artistas para uma composição site-specific, ao ampliarem o território de atuação
ficcional sob um limite dilatado pelos ambientes percorridos e assimilado na
encenação.
Em consequência, podemos observar que o teatro site-specific, ao ocupar um
espaço ordinário do cotidiano e ali instaurar uma ficção (mediada pelas camadas
fenomenológicas, socioculturais e dialógicas da experiência advinda do lugar não-
teatral praticado), termina por reorientar os fundamentos da encenação, sobretudo
quando o horizonte de reflexão e fruição da obra é examinado tendo em vista as
conjunturas dos lugares, que interferem de maneira significativa na constituição do
evento cênico.
Aliado a isso, a prática site-specific oferece aos artistas a possibilidade de
examinarem alguns princípios criativos e colocá-los em questão, quando estão
diante de uma concepção teatral onde a materialidade, funcionalidade e referências
espaciais estão desobrigadas dos padrões e tipificações amplamente exercitadas
nas salas de ensaios mundo afora, visando uma exibição num palco organizado
conceitualmente para receber tal experimento.
Pois, ainda que o espaço apareça como uma chave relevante para desvendar
alguns aspectos narrativos do texto cênico, a constituição do espaço cênico no
teatro site-specific, incontornavelmente, deve ser levada em consideração por suas
histórias e referências, que acrescentam camadas significantes e expressivas na
encenação.
Diante desta reestruturação aceitável, a linguagem teatral passa a funcionar
sobre o signo do performativo, dispondo da realidade e dos precedentes dos lugares
ocupados como um moto-contínuo do acontecimento teatral, e que por essa razão,
também, institui no território do teatro uma intersecção com outras linguagens
artísticas, comunidades e discursos que nem sempre os espetáculos de sala
permitem se aproximar, por sua própria natureza.
Em contrapartida, por se tratarem de obras porosas e abertas às
incorporações diversas, o evento teatral site-specific passa a coexistir com a
realidade imaterial daquele espaço, que, por vezes, pode suplantar as demandas da
ficção e comprometer todo o trabalho cênico. Cabendo aos agentes da cena,
84

especialmente à direção teatral, trabalhar no sentido oposto ao da realidade, para


manter a coerência basilar da encenação e reestruturar o trabalho diante das
intempéries desencadeadas por aquele lugar, ocupado pelo teatro.
Diante dessa possibilidade, o ambiente controlado da linguagem teatral (que
em geral é fechada em si), passa a visitar novos territórios e considerá-los mediante
as trocas e arranjos possíveis de serem configurados para compor a encenação,
sem se deixar dirigir pelos apriorismos e convenções dos edifícios teatrais.
De pronto, podemos observar que esses espaços apresentam uma
complexidade inerente às suas próprias funcionalidades, bem distantes do universo
cênico, às quais os encenadores se submetem para expandir um debate, não
apenas a respeito do que o espaço cênico é ou pode ser, mas, sobretudo, acerca
daquilo que a linguagem cênica pode oferecer à sociedade como ponto de reflexão,
ao apresentar possibilidades imagéticas para lugares que, antes da encenação se
fazer presente, são apenas espaços arquitetados a cumprir uma determinada
função.
Porém, quando o teatro se instala, o espaço recebe uma licença poética para
atuar de maneira completamente distinta daquela para o qual foi projetado (nem que
seja por uma pequena fração de tempo) e, nela, a experiência do local será
submetida a novas lentes e ângulos que, revelando novas perspectivas, apontarão
para novos territórios possíveis, inclusive para a linguagem teatral.
Tal compreensão pode ser notada na encenação de A Morte de Danton
(figura 27), realizada por Aderbal Freire, em 1977, dentro de um canteiro de obras
do Metrô, no centro do Rio de Janeiro, que admite, nesta encenação, o subterrâneo
como potência de vida, em oposição à superfície como morte (país em plena
ditadura militar), apontando para uma dialética que afasta a significação única e
primária do subterrâneo como esconderijo, ampliando, sobretudo, o efeito teatral ao
semear o imaginário da cidade.
85

Figura 27 – A morte de Danton (1977), texto de Georg Büchner, encenado


por Aderbal Freire.

O espaço cênico, convencionado por Aderbal para esta encenação, coloca


toda a estrutura e agentes teatrais dentro de um túnel subterrâneo onde a
linguagem teatral é problematizada ao ganhar camadas e relevos inerentes
àquele lugar ocupado. Assim, fluxos e refluxos são constantemente
incluídos na encenação. Fonte: Acervo da FUNARTE.
86

3 DO ESPAÇO ALTERNATIVO AO SITE-SPECIFIC

A poética do teatro site-specific ocupa um horizonte de territórios bastante


diversos para se configurar como tal, e, de certa forma, foi difundida pelas propostas
de Artaud e pelos trabalhos cênicos de Grotowski, Kantor e Schechner, que, com
suas formulações, calcadas no encontro entre atores e público num ambiente
propício e peculiar para experimento cênico, influenciaram diversos encenadores
mundo afora, consolidando as práticas de teatro em espaços não convencionais.
No Brasil não foi diferente, podemos verificar a existência de várias propostas
em lugares outros que não o edifício teatral: Em 1968, por exemplo, o argentino
Victor Garcia, a convite de Ruth Escobar, encenou o texto Cemitério dos
automóveis, de Fernando Arrabal, em São Paulo, em um galpão onde funcionava
uma oficina mecânica cujas características foram preservadas para a encenação.
Já na década de 1970, o Teatro Oficina, sob direção de Zé Celso Martinez
Corrêa, realizou diversos experimentos cênicos, nominados por ele de Te-ato, que
eram realizados nos lugares mais insólitos (fábricas, fazendas, praças, rios, etc.), no
qual não havia mais divisão entre atores e espectadores, mas pessoas intervindo
com ações cênicas na realidade, algo semelhante às concepções de Happenings de
Alan Kaprow22.
Lembremos também A grande viagem ao centro da terra, de Ricardo Karman
e Otávio Donasci, encenação realizada em São Paulo (1992), no túnel abaixo do Rio
Pinheiros, utilizado como espaço cênico; bem como de Aderbal Freire e sua
encenação de O tiro que mudou a história (1991), no Palácio do Catete - RJ, local
onde Getúlio Vargas realizou o famoso disparo de arma de fogo contra si.
Ao mesmo tempo, podemos recorrer aos experimentos cênicos assinados por
Antônio Araújo e seu coletivo Teatro da Vertigem, com a Trilogia Bíblica, formada
por Paraíso perdido (1992), O livro de Jó (1995) e Apocalipse 1,11(2000),
apresentados, respectivamente, em uma igreja, num hospital e num presídio.
Montagens que, em decorrência das repercussões que causaram, concretizaram de
vez a prática dos lugares não-teatrais como possibilidade poética no teatro brasileiro
contemporâneo.

22
“Happening: forma de atividade que não usa texto ou programa prefixado [no máximo um roteiro
’modo de usar’] e que propõe aquilo que ora se chama de acontecimento [Georg BRECHT], ora
ação [BEUYS]” (PAVIS, 2007, p. 191).
87

Além desses, podemos citar, por exemplo, os trabalhos de Wladia Moura, que
encenou espetáculos em porões da cidade de Belém, PA (2000-2005); Inês
Marocco, que criou o espetáculo O Cortiço (2008) dentro do Museu do Rio Grande
do Sul; Fabiana Monsalú, encenadora de A Casa de Bernarda Alba (2007), realizada
dentro de um casarão histórico em Salvador (BA). Igualmente os trabalhos do Grupo
XIX (SP) de Teatro e o Grupo Erro (SC).
Diante destas perspectivas espaciais tão diversas, e tão presentes nas
práticas contemporâneas, vale destacar um questionamento pertinente quando nos
detemos sob as práticas que utilizam espaços diferentes das estruturas e
convenções do teatro de sala: O teatro em espaços alternativos é o mesmo que site-
specific?
Mais do que uma categorização, nos interessa perceber as composições sob
as quais as encenações se assentam e distinguir suas concepções, que podem
apontar para procedimentos e discursos cênicos completamente distintos, não
apenas do ponto de vista estético, mas também dos aspectos práticos e das
dinâmicas por trás das encenações.
De início, um paralelo interessante que podemos traçar para começar nossa
distinção entre o espaço alternativo e o site-specific parte do entendimento
alcançado por Michel de Certeau (1990), quando o filósofo traça uma diferenciação
importante entre o lugar e o espaço.
Para o autor, um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência, onde os elementos considerados se
encontram uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto
que os definem.
Já a noção de espaço se estabelece quando se leva em conta vetores de
direções, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é, de certo modo,
animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Noutras palavras:
“espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam é o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflitais
ou de proximidades contratuais” (CERTEAU, 1990, p. 20).
Prosseguindo sua explanação, Certeau faz uma analogia dos processos de
formação da linguagem para ilustrar os procedimentos que animam o espaço:
88

O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto é,


quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação, mudada em
um termo que depende de múltiplas convenções, coloca como ato de
um presente (ou de um tempo), e modificada pelas transformações
devidas a proximidades sucessivas. Diversamente do lugar, não tem,
portanto, nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Em
suma, o espaço é o lugar praticado (CERTEAU, 1990, p. 22).

Sendo o espaço forjado a partir das relações estabelecidas no lugar,


avançaremos por essa compreensão para orientar nosso olhar acerca do teatro site-
specific, ao compreendê-lo como uma prática que se constitui a partir dos arranjos
dos vetores do lugar não-teatral, selecionado para instalar a encenação. Esta que
será produzida a partir das operações que orientam esse lugar, não pela sua
oposição ao lugar convencional do teatro, o edifício teatral.
Partindo desta elaboração, buscaremos apreender algumas características
processuais do teatro site-specific, ao observarmos a experiência da Trupe Sinhá
Zózima, que tem no seu diretor, Anderson Maurício, o ponto de referência para
explorar a linguagem teatral em um lugar peculiar da cidade de São Paulo, o
transporte público de passageiros, denominado ônibus.
Para além da importância cênica do exercício de compreender os lugares
como potencialidade teatral, destaco o trabalho desse grupo, com uma trajetória que
o diretor teve que seguir para perceber a potencialidade criativa que o ambiente do
ônibus tem em se transmutar de um espaço alternativo em site-specific.
Sugiro, então, que o trabalho da Trupe sinhá Zózima obedece em larga
margem aos princípios do teatro site-specific, embora marcado por algumas
características reveladoras de uma dada postura artística da própria companhia.

3.1 ANDERSON MAURÍCIO E A TRUPE SINHÁ ZÓZIMA

Quando eu chego na Fundação das Artes, em São


Caetano do Sul-SP, encontro a Lídia Zózima
(então a Trupe Sinhá Zózima é em homenagem a
essa professora nossa), Lídia Zózima é uma
pessoa muito importante para a fundação da
Trupe, porque todos os integrantes foram alunos
dela, todos. E em 2005 a gente estava
experimentando a sala de aula como espaço
89

cênico e num dia qualquer fomos fazer uma


vivência com a Lídia em Mauá, e fomos de
ônibus. O transporte público, para mim, já era
um lugar de estudo (nós morávamos na periferia
da cidade de São Paulo e passavam em média de
cinco a cinco horas e meia no transporte
público), e a Lídia nos incentivou a olhar o
ônibus como essa possibilidade. Dizia que o
teatro está fora das universidades, fora dos
espaços fechados, e que passássemos a olhar o
mundo como possibilidade cênica, e isso nunca
mais saiu da minha cabeça. Em 2006 eu convido
algumas pessoas para poder fazer teatro no
ônibus e falo disso com alguns professores e
alguns riram dessa possiblidade, e ainda diziam
que o único objetivo era chamar a atenção. Mas
eu acreditava, e a Lídia acreditava que éramos
capazes de fazer, e liberou o nome dela para
batizar a Trupe, e nos abençoou para fazermos
esse teatro no ônibus[...] Quando a gente começa
a fazer o teatro, eu não era diretor, mas como a
ideia era minha, o grupo me colocou nesse lugar.
Não me entendia ainda como diretor, mas propus
que a primeira coisa que deveria fazer era
percebe essa realidade do transporte público e
ver como o teatro poderia funcionar ali.
(Anderson Maurício)23

Ao observar o significado do transporte coletivo de passageiros para a cidade


de São Paulo, a Trupe Sinhá Zózima (formada em 2007), passou a se interrogar
sobre a viabilidade de fazer teatro para aquelas pessoas, que em geral, passavam

23
Anderson Maurício em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na
integra no apêndice A.
90

de duas a seis horas diárias dentro do ônibus para ir de casa ao trabalho e do


trabalho à casa.
Por possuírem características tão particulares de conceber suas rotinas, a
equipe notou que, para os trabalhadores, pouco tempo lhes sobrava para alguma
atividade de lazer ou para acessar qualquer atividade artística, sendo o teatro uma
possibilidade muito remota, fosse por desconhecimento ou falta de interesse, mas,
sobretudo, pela falta de tempo para se dedicar a uma experiência cênica.
Verificando essa dinâmica, o diretor do grupo, Anderson Maurício, sendo ele
próprio um cidadão periférico, percebeu naquele universo do ônibus, uma alternativa
de fomentar o teatro e explorar a linguagem cênica sobre novos parâmetros. Para
tanto, partiu da seguinte questão:

Como conquistar esse espaço para construção de outro imaginário


sobre a cidade? Começamos por tentar entender como funciona o
sistema desumano de transporte público/privado, este que deveria
ser direito de todos que desejam ser cidade e deslocar-se por uma
arquitetura, por seu corpo cidadão. Entender como esse sistema nos
mobiliza, nos adormece e nos rouba o tempo, este que é vida. É
sempre se perguntar como tudo isso funciona no nosso país, mas,
também, é acreditar que mesmo nesse sistema cruel criado por
pessoas, também pode existir outras pessoas que buscam
minimamente a possibilidade de modificá-lo e não desistir
(MAURÍCIO, 2016, p. 16).

Por consequência, valendo-se da demanda de acesso aos bens culturais, por


parte dos usuários do transporte público, e da possibilidade de expansão das ações
teatrais, o encenador passou vários meses gestando essa ideia, ao interrogar-se
acerca da viabilidade de lançar um olhar poético sobre o cotidiano daquelas pessoas
naquele espaço íntimo e ao mesmo tempo hostil às relações humanas.
O passo inicial dessa proposta foi tentar notar as interações possíveis entre
os atores e os possíveis espectadores no universo do ônibus, que poderiam ser
semelhantes às do espetáculo de sala, onde os atores se esforçam para apresentar
uma ficção, enquanto os espectadores, acomodados em suas poltronas (geralmente
à distância), assistem o desenvolvimento da trama. Nesta consideração, cada
agente do espetáculo (justaposto ao ônibus) teria, igualmente, o seu lugar particular.
Todavia, o espaço cênico-ônibus (projetado) oferecia um dado novo: a
impossibilidade de divisão palco-plateia, que de início poderia proporcionar a ambos
(espectadores e atores) a expectativa de construir uma experiência cênica mediada
pela interação direta.
91

Somado a essa interpretação, foi observado que o ônibus seria um espaço do


cotidiano dos usuários do transporte público, não dos atores. E que ao ser utilizado
como espaço cênico, poderia facilitar a aceitação das propostas teatrais e
potencializar a fruição, mediante a prerrogativa da intimidade dos usuários com o
ambiente, visto que:

O ônibus é uma espécie de casa em movimento. As pessoas


namoram, comem, dormem, mandam mensagens, brigam, ouvem
música, leem, pregam. Acontece de tudo nesse lugar! E por ele ser
esse lugar da casa, um espaço conhecido, ele atrai o público que já
conhece esse espaço, que é dele. Diferente do teatro municipal,
onde os trabalhadores não conhecem e imaginam que existam vários
protocolos a serem seguidos para ter acesso. A gente foi entendendo
isso, percebendo esse espaço como espaço do homem comum
(informação verbal)24.

3.2 CORDEL DO AMOR SEM FIM: O ÔNIBUS COMO ALTERNATIVA TEATRAL

A primeira montagem, Cordel do amor sem fim25 (2007), com dramaturgia


escrita por Cláudia Barral, se desenrola sob uma trama alocada nas margens do Rio
São Francisco. Foca na separação como mote, e discorre sobre a vida à deriva da
personagem principal, que definha, enquanto espera a volta do seu amado.
A identificação do texto dramático com o contexto da cidade de São Paulo é
imediatamente articulada, uma vez que essa cidade é um grande reduto de
migrantes nordestinos, que em meados do século XX, saíram em massa das suas
cidades para habitar a megalópole brasileira, que lhes oferecia trabalho em troca de
uma vida economicamente mais viável do que a que dispunham em sua terra natal.
E, justamente por isso, tiveram que conviver, diariamente, com a nostalgia de
um passado remoto constantemente presente nas suas vidas, coexistindo com a
saudade das pessoas que ficaram para trás, enquanto o tempo passa e os corpos
definham.
Paralelamente à saudade, a solidão do presente, decorrente da separação
causada pela ruptura de ter que sair de casa para trabalhar, tomar o ônibus e

24
Entrevista concedida por MAURÍCIO, Anderson. Depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José
Jackson Silva. São Paulo, 2018. Via Skype. Filmagem (270min). A entrevista na íntegra encontra-
se transcrita no Apêndice A desta tese.
25
Ficha técnica: dramaturgia de Cláudia Barral, direção de Anderson Maurício, direção musical de
Roberta Forte, com Trupe Sinhá Zózima (Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Priscila
Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza). Disponível em: http://sinhazozima.com.br
92

trafegar pelas avenidas e vielas da grande cidade (tão enigmática quanto o “velho
chico” da ficção), num precário transporte que carrega vidas cansadas em corpos
abatidos pelo tecido da cidade.
Principiando este experimento cênico em torno da cultura popular nordestina,
como mote estético, e do ônibus como espaço cênico, a encenação de Cordel do
amor sem fim, da Trupe Sinhá Zózima, compõe um mosaico instigante diante da
tessitura urbana da cidade, que apresenta diariamente suas próprias mazelas,
reveladas, sobremaneira, quando o cidadão necessita deslocar-se por ela.
O processo de concepção do espetáculo e a criação dos personagens
passaram a ser desenhados, segundo o diretor, no instante em que o mesmo fez a
leitura de dois livros de Gaston Bachelard: A poética do espaço e A água e os
sonhos, sendo o primeiro o livro de cabeceira da Trupe.
Maurício ressalta que o entendimento acerca das questões levantadas pelo
filósofo, foi primordial para enxergar a potencialidade das imagens imbricadas na
obra dramatúrgica, que poderiam ser exploradas e materializadas na sua
concepção. E, em especial, para compor as personagens que, por estar tão
próximas às águas do Rio São Francisco, poderia, cada uma delas, trazer consigo
uma característica das águas elencadas por Bachelard.
O Rio e suas águas, além de servirem de mote da preparação do elenco,
passaram a ser o conceito-chave da encenação, ao codificar o ônibus como “casa-
barco” a velejar pelas avenidas e vielas (rio), levando a bordo os passageiros e
atores que, juntos, compartilhavam da experiência vivida pelas personagens.
Segundo o diretor, a etapa seguinte do processo foi fazer o levantamento das
cenas baseado nas dimensões do ônibus e nas possíveis interações que,
porventura, o espetáculo pudesse vir a ter com os passageiros. Contudo, todo o
processo de marcação das cenas e criação das personagens foi concebido fora do
ônibus, pois no entendimento do grupo, era necessário que o ônibus estivesse à
disposição integral da equipe para que a mesma pudesse ter maior controle sobre o
deslocamento do ônibus pela cidade (itinerário e velocidade).
Após seis meses de diversas negociações e consecutivas negativas
recebidas de empresas que trabalhavam com transporte de passageiros, o ônibus
foi obtido mediante uma permuta com uma companhia de ônibus da cidade de
Guarulhos, que precisava desenvolver algumas ações educativas sobre a
93

preservação das instalações do transporte público, visto que estavam ocorrendo


muitas depredações por parte dos usuários, e consideravam que o teatro poderia ser
de grande valia nessa empreitada.
Desta feliz coincidência, a Trupe conseguiu o veículo/ espaço cênico
pretendido e, finalmente, após estabelecer esta parceria, passou a adaptar as cenas
e conceitos desenvolvidos na sala de ensaio à estrutura do ônibus, buscando
conectar o universo do transporte público com a ficção e os conceitos operacionais
desenvolvidos pelo encenador, que nos relata:

Ali eu constatei várias questões, uma delas era que eu precisava de


uma velocidade menor, que o motorista fosse parceiro, que era
imprescindível para fazer esse trabalho, que a gente precisa ter um
jogo de distância, que a proximidade não era boa para o jogo
cênico[...] a gente cria o trajeto, cria paradas, tem pontos específicos
que a gente quer passar, no sentindo de potencializar o que a gente
está narrando (informação verbal)26.

Partindo deste entendimento, a Trupe passou a se deparar com a realidade


material e virtual (contextos e imaginários imbricados no universo do transporte
público), contraposta com as demandas da encenação percebidas até então. E
desse embate crítico e criativo multifacetado, desenvolveram a encenação no
ônibus.
Sobre este espaço peculiar, o diretor conta que se empenhou para decodificá-
lo e instaurar nele uma criação estética visual, que trouxesse as marcas de
memórias afetivas e aconchegos de uma casa, sobreposto à materialidade do
transporte público.
Segundo Maurício, o objetivo do grupo na encenação do Cordel do amor sem
fim, seria construir, naquele espaço, uma cenografia que remetesse à casa das
personagens ribeirinhas, que pudesse proporcionar aos passageiros-espectadores
uma percepção expandida do ônibus como local comum e íntimo de uma casa.
Para tal, revestiram os assentos com forros de algodão com detalhes em
chita, colocaram algumas cortinas nas janelas (do mesmo material do revestimento
pensado para os assentos), além de lampiões ao longo do corredor, uma gaiola e
pequenos tapetes no piso. Tudo esquematizado para trazer à memória uma casa
interiorana com fortes traços regionais nordestinos, que desse margem para acessar

26
Id., 2018.
94

a “casa dos afetos” pretendida pelo coletivo cênico, como podemos verificar na
imagem abaixo.

Figura 28 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de


Claudia Barral, encenação de Anderson Maurício.

A área interna foi revestida por uma cenografia (assentos e janelas


totalmente cobertas por cortinas e forros, além de lampiões e
gaiolas) que tenta camuflar o ônibus, quando na verdade poderia
espelhá-lo na encenação. Fonte: Acervo do Grupo.

Anderson Maurício expõe, que, além de cenografia e refletores, instalou uma


porta extra no veículo para ter um tratamento acústico mais elaborado, na tentativa
de diminuir o barulho da rua que adentrava o veículo e que, por vezes, atrapalhava a
audição dos diálogos entre os atores, como quando o ônibus era ultrapassado por
uma ambulância, ou passava por um lugar com um fluxo de veículos e ruídos
intensos, por exemplo.
No entanto, ao se dar conta da expansão que essa suposta sujeira poderia ter
sobre a encenação, passou a trabalhar em função dela para construir tempos e
ritmos especialmente para aquele lugar, que se mostrava completamente diferente
do espaço da sala de ensaio por onde o grupo havia iniciado o processo de
construção:

No primeiro ensaio nosso no ônibus eu falei: não vai dar certo.


Porque tinha uma coisa quando a gente ensaiava na sala de uma
poesia, de uma delicadeza, de um silêncio... não tem como trazer a
poesia pra isso. Com essa velocidade, com esse ônibus, com essa
95

cidade... então o primeiro ensaio foi muito angustiante, porque como


a gente ensaiou muitos meses numa sala, a sensação era uma,
quando foi para o ônibus se transformou, e se transformou em algo
que eu não estava preparado por estar apegado àquilo que estava
assistindo nos ensaios. Mas, conforme fomos ensaiando eu fui me
apaixonando pelo cordel do ônibus, que não é o cordel da sala
fechada em um teatro, mas que tem sua beleza, seus silêncios,
mesmo com a cidade gritando ao fundo (informação verbal)27.

O próprio diretor reconhece a inexperiência de entender o espaço e as


camadas constituintes que poderiam ressignificar a encenação naquele ambiente,
afinal, esse foi o primeiro espetáculo da equipe realizado em um lugar não-teatral e,
como tal, seria natural passarem despercebidas algumas singularidades do espaço
ao tentar impor sobre ele a mesma lógica do teatro convencional no qual a trupe se
formou, como explicar o diretor:

No palco italiano tem uma distância que de alguma forma você


consegue mascarar, o público está a distância, você não sabe quem
comentou algo. No ônibus é muito difícil de ignorar a realidade. Você
tem uma cidade que está chamando a atenção do espectador. Então
não tem como negar isso também, não tem como querer brigar com
essas coisas, querer que ele não olhe pra fora, ele olha, eu olho, os
atores também olham, nós estamos juntos. Acho que esse aqui e
agora, nesse lugar do encontro mediado pelo instante inesperado
que acontece entre o eu e o tu que desconhece o que o outro traz,
cria a potência do encontro. Então tem esse lugar do espontâneo, do
instante, eu acho que isso é uma das coisas que percebemos
quando o ônibus vai pra rua, a gente percebe isso como uma
potência cênica (informação verbal)28.

O que, de início, despontava como um desafio hercúleo, quando o encenador


tentava anular o espaço e seus atravessamentos (intrínsecos a sua realidade),
passou a ser o trunfo da encenação, pois, no instante em que ele passou a
considerar o ambiente e assumiu os contingenciamentos daquele espaço como
potencialidade cênica, prontamente, iniciou-se um processo investigativo que calhou
com a descoberta de algumas ações cênicas, advindas do próprio espaço-ônibus.
Nesta investigação, os atores passaram a considerar e se relacionar com o
ônibus para compor as cenas (como ilustra a imagem abaixo), na qual a atriz dirige a
atenção dos espectadores para outro ônibus que cruza o campo de visão dos
passageiros, estabelecendo, assim, uma conexão direta entre eles, ao enunciar o
externo como materialidade cênica.

27
Id., 2018.
28
Ibid., 2018.
96

Figura 29 – Imagem do Cordel do Amor Sem Fim (2007), texto de Claudia


Barral, encenada por Anderson Maurício.

Notamos que a realidade está constantemente pedindo passagem aos


agentes da cena para também participar da fábula, apesar da direção tentar
apagar seus vestígios, o que põe em suspeição a função e escolha do
espaço cênico (ônibus) para a encenação. Fonte: acervo da Trupe.

De tal modo, ao compreender, por fim, que não se trata de reproduzir os


códigos e reconstruir os equipamentos comumente utilizados nos espetáculo de
sala, mas, ao contrário, abrir os canais de percepção para as potencialidades dos
equipamentos e condições gerativas que o ônibus apresentava -que por si,
poderiam expandir o território da encenação para além da linguagem tradicional,
superando, inclusive, seus códigos, convenções e equipamentos- a encenação
passou a ser percebida sob outras camadas.
Esta consciência foi aguçada, principalmente, quando a dramaturga assistiu à
estreia do espetáculo e interrogou a equipe sobre o ônibus, que, na sua
compreensão, apenas figurava no espetáculo. Mas que, em contrapartida, se
mostrava como uma potencialidade de expansão surpreendente de diálogo com os
passageiros e com a própria cidade, ao possibilitar uma leitura dilatada por meio de
outras camadas de significação, para além do que se passava no interior do veículo
e da fábula.
Apoiando-se neste questionamento, o encenador afirma que o espetáculo
tomou outras proporções, e que o veículo passou a fazer parte integrante e
97

indivisível da encenação, pois a sugestão da dramaturga, ofereceu aos agentes da


cena, uma chance de atravessamento mútuo entre ficção e realidade, até então
pouco sugestionado pela direção.

Fui pra casa com esse problema na cabeça e comecei a pensar na


primeira assinatura como encenador colocando a ação do ônibus,
que é o momento que a Teresa fala que vai esperar o Antônio e
Madalena diz que também vai esperar. Que Carminha vai esperar e
que José também espera e todo mundo aqui, ela inclui todos os
passageiros, vai esperar junto e o ônibus freia, para, desliga o motor.
E é de uma beleza quando isso acontece porque o tempo para. E a
gente fica 4 ou 5 minutos parados, mas parece uma eternidade,
parece que o tempo parou. O ônibus cria essa sensação para o
público. Ali eu comecei a me encantar por isso, com o que dava pra
fazer (informação verbal)29.

Consequentemente, o diretor passou a considerar novos eventos que


pudessem ampliar cada vez mais a possibilidade de ações cênicas, decorrentes
dessa interação do ônibus com os atores, dos atores com o público e do público com
o espaço. Trama, que incidiu sobre as linhas fronteiriças da ficção e da realidade da
cidade, espelhada, em último caso, nos carros, caminhões e ônibus que
ultrapassavam o ônibus-palco.
Proporcionando ao encenador, o entendimento de que a peça seria decifrada
de uma forma global pelos sentidos dos passageiros-espectadores, não apenas pela
audição e visualidades, como ele comenta:

No cordel tem essa tentativa de como fazer com que o público


perceba algumas coisas sensorialmente, como, por exemplo, o
começo e o fim do espetáculo. No cordel a gente tem essa inserção
do ônibus que vai começar. Tem um prólogo que a gente faz com o
ônibus parado e prepara o público para o começo da história que é
também o momento em que o motor do ônibus é ligado e o ônibus
inicia a viagem pelo roteiro que vai trafegar. O mesmo acontece com
o fim da peça que é no instante em que o ônibus estaciona no
mesmo local de partida e desliga o motor pela última vez, marcando
o fim do espetáculo, que não é apenas uma percepção visual, mas
uma percepção sensorial (informação verbal)30.

Sob tais pressupostos e distinções, essa proposta de espaço cênico


demandou, paulatinamente, do diretor, uma capacidade de observação e escuta
permanente para a cidade e para o passageiro (isso enquanto a peça ia se
desenvolvendo), já que a qualquer momento o público e/ou os acontecimentos

29
Id., 2018.
30
Id., 2018.
98

aleatórios da cidade, poderiam intervir na ação cênica, fosse para comentar algum
ato da peça, ou mesmo para querer modificar a sua estrutura, intervindo sobre ela.
Fato que dificilmente aconteceria no espetáculo de sala, como observa Maurício:

No interior as pessoas levantam e ajudam a personagem a descer do


ônibus, a carregar a Madalena, a pegá-la na mão. As pessoas, no
ônibus, nós não tínhamos pensado nisso, querem falar, querem
abraçar, querem intervir na história.[...] A gente ouviu todos esses
gestos, essas palavras essa ação do ônibus parando e interferindo
na recepção do público e isso foi parar nas nossas discussões do
grupo. Isso foi movendo a gente para gente entender algumas
potencias. Primeiro a potência do ônibus como personagem, mas
como símbolo do cotidiano, símbolo desse espaço do trabalhador
(informação verbal)31.

Nas primeiras apresentações, destaca o encenador, os atores ficaram


surpresos com a reação do público (mesmo antes do início da peça, quando os
espectadores adentravam no ônibus), pois estes os abraçavam e lhes dirigiam
cumprimentos e animações um tanto evasiva para os atuantes, que tinham vindo do
teatro de sala, onde o público se mostrava menos caloroso e só se manifestavam no
final da apresentação.
Todavia, essa participação do público proporcionou alguns momentos
interessantes, quando, por exemplo, no instante em que a personagem Carminha
precisa deixar o veículo, mas hesitava por ter medo de sair daquela estrutura, e os
espectadores, surpreendendo a equipe, se voluntariavam para ajudá-la a descer do
coletivo.
Essa proximidade dos atuantes e do público é, portanto, uma condição para
desenvolvimento da peça, e que deve ser levada em consideração quando se trata
de conceber um espetáculo sob tais termos.
Por notar essa característica de maneira empírica, enquanto a peça ia sendo
apresentada, o encenador se deu conta de que não se trata de aplicar os códigos e
convenções do teatro de sala, mas expandir o olhar para as contingências e
contextos do espaço selecionado, que por si, pode potencializar a experiência
teatral. Podendo, inclusive, oferecer à encenação uma perspectiva de leitura,
significação e compreensão muito mais complexa.
Condição esta, que forçou o encenador a dilatar sua própria percepção para
além dos limites da linguagem, e questionar os procedimentos praticados até então,

31
Ibid., 2018.
99

sugestionado por ele, como Maurício pondera: “Fazer teatro no ônibus tem uma
profundidade uma perspicácia que a gente foi adquirindo com o tempo. No começo
foi bem difícil, a gente só foi descobrindo isso na própria experiência de lidar com o
espetáculo no movimento do ônibus” (informação verbal)32.

Figura 30 – Imagem do Cordel do amor sem fim (2007), texto de Claudia


Barral, encenação de Anderson Maurício.

A proximidade física dos atores como o público demanda dos atuantes uma
constante atenção para as interferências e proposições do público, que
impactam diretamente do andamento da encenação quando, por exemplo,
tentam ajudar a personagem da trama a sair do ônibus. Fonte: Acervo da
Trupe.

Provavelmente por essa razão, na encenação do Cordel do amor sem fim, o


espaço do ônibus tenha sido, inicialmente, pensado e estilizado com uma cenografia
que revestia o veículo por dentro, sem levar em consideração os ambientes que
circundam tal espaço. Compreensão alcançada desde o início da proposta, quando
o diretor nomeia o ônibus como alternativa, não conceito.
Esse entendimento pode ser observado no fluxograma abaixo, onde descrevo
de maneira visual, tal raciocínio. As setas indicam o andamento da criação, e vemos
que todas as etapas são concebidas numa sala de ensaio e alocadas,
posteriormente, no ônibus (o espaço de apresentação).

32
Id., 2018.
100

Fluxograma 1 – Estrutura de criação do Cordel do Amor Sem Fim.

Texto CENÁRIO
Ensaios LUZ Ônibus
Sala de Personagens SOM (espaço cênico)
ensaios
Concepção *ação cênica
*part. público

Fonte: Elaborado pelo autor.

Outro fluxo que o encenador destaca como fundamental da relação com o


público, foi exatamente a avaliação dos passageiros em relação àquela experiência
cênica, que em sua maioria, sempre muito entusiasmados, declaravam ter sido a
primeira vez que haviam assistido a um espetáculo de teatro, e que seria ótimo que
tivessem mais grupos que parassem um ônibus e interferissem na percepção
estética deles.
Desta demanda espontânea, o grupo percebeu que poderia desenvolver
várias ações de residências artísticas, oficinas, apresentações de outros grupos no
seu ônibus-palco. Ampliando, assim, as opções que o teatro poderia oferecer ao
público e, em contrapartida, os passageiros poderiam retroalimentar os processos
criativos da Trupe (por meio de conversas, relatos e entrevistas) que motivaram a
criação dos espetáculos Dentro é lugar longe e Os minutos que se vão com o tempo.

3.3 DENTRO É LUGAR LONGE: O ÔNIBUS COMO CONCEPÇÃO TEATRAL

Prosseguindo sua investigação, Maurício encenou Dentro é Lugar Longe33


(2013), com dramaturgia colaborativa de Rudinei Borges, partindo do desejo inicial
de verticalizar o processo de criação em torno do universo do ônibus, desde a
concepção dos personagens à dramaturgia, que seria concebida por meio de
depoimentos dos usuários do transporte coletivo, em diálogo com fatos
autobiográficos dos atores, que perpassaria, especialmente, por memórias da
infância, em que as lembranças de nascimento e morte seriam contadas, compondo

33
Ficha técnica: dramaturgia de Rudinei Borges, direção de Anderson Maurício, com Trupe Sinhá
Zózima (Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza).
Disponível em: http://sinhazozima.com.br
101

uma metáfora da vida como percurso. Existência desvelada como viagem que, com
o ônibus em movimento, potencializaria a ideia de jornada.
Entretanto, a organização do projeto teve que ser reformulada, por conta de
mudança de governo da cidade de São Paulo que inviabilizou essa proposta do
grupo, ao desautorizar a Trupe de continuar com a sua residência artística nas
imediações do terminal (que já durava anos), local onde o grupo pretendia
desenvolver e alocar a encenação, como estava acordado há meses.
Dessa imposição abrupta, o grupo teve que reorganizar sua estrutura, e, em
vez de desenvolver a criação partindo dos depoimentos e relações dos usuários com
o transporte público, voltou-se para si e passou a discutir propostas nas quais as
“vidas dos atores” fossem o objeto do escrutínio da Trupe para conceber a
dramaturgia do espetáculo e, posteriormente, cruzar com “a vida do ônibus” e
estabelecer a encenação nesta relação.
Para concretizar tal obra, foi proposto pelo diretor que a equipe se juntasse
em uma casa por 24 horas ininterruptas. Ocasião na qual os atores deveriam contar
fatos das suas vidas que tivessem relação com uma área particular da casa,
examinada do jardim ao porão, para criarem propostas de cenas formadas por três
eixos: os espaços da casa, os possíveis ofícios que poderiam ter relação direta com
o espaço selecionado, e pelas histórias pessoais de cada um dos atores. Maurício
comenta que:

Nessa lida de tentar entender o que fazer, eu criei um procedimento


junto com o grupo. E o procedimento era: fazer uma vivência de
história oral, a gente estava se aproximando da história oral. A gente
ia passar 24 horas contando histórias de vida dos atores. Como isso
ia acontecer? A gente ocupou uma casa numa área rural da cidade e
dividiu o tempo por ofícios. Existia o ofício da manhã, o ofício do
meio dia, o ofício da tarde, o ofício da noite. E cada ofício desse era
experimentado em algum espaço da casa: o ofício da manhã era no
jardim, o do meio dia era na cozinha... Tinham os espaços e cada
ator cuidava de um espaço (informação verbal)34.

Desta proposição, surgiram vários panoramas que, em seguida, foram


organizados e levados ao ônibus para serem experimentados cenicamente, no
intuito de especular em quais momentos os espaços da casa poderiam ser recriados
e problematizados na relação do usuário do transporte público.

34
Id., 2018.
102

Por extensão, ao esquadrinhar equivalências e ressonâncias desses espaços


internos dos atores, com os espaços reais da cidade, o ambiente do ônibus passou
a nortear os componentes da encenação, desde a dramaturgia, criação dos
personagens, ambientação das cenas e marcações, em diálogos com a cidade.
Assim, a trama da encenação percorria pelas memórias pueris dos atores
que, enquanto lembravam, conduziam o público para visitar os espaços descritos.
Ressignificando, deste modo, os espaços vividos na infância, nos espaços
encontrados na cidade por onde o ônibus passava e se detinha para amarrar a
encenação.
Semelhante ao espetáculo mencionado anteriormente, o conforto e intimidade
do lar foi concentrado nos elementos visuais da encenação: havia cortinas presas
por prendedores de roupa nas janelas, forros nos assentos, filmes negativos de
fotografias nas luminárias internas do veículo e suportes presos ao teto do ônibus
para os atores colocarem as malas (que continha adereços e objetos) que cada um
deles trazia consigo.

Figura 31 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei


Borges, encenação de Anderson Maurício.

Nesta imagem notamos que os revestimentos utilizados para estetizar o


veículo não tenta descaracterizá-lo, ao contrário, o interior do ônibus parece
orientado para acomodar os passageiros de excursão. Fonte: Christiane
Forcinito.
103

Apesar da semelhança, se comparamos a cenografia desse espetáculo com a


produção pensada para o Cordel do Amor Sem Fim, podemos observar que este
espetáculo traz menos elementos cenográficos e equipamentos de iluminação, e
isso acaba por revelar mais o veículo, como podemos ver na imagem acima.
Esta observação não se dá por acaso, uma vez que nesta encenação a
consciência do encenador para a materialidade do ônibus, e sua capacidade de ser
agente das ações cênicas, levou o trabalho da trupe a operar em outro patamar, o
da proposição das convenções conscientes, diferentemente do que aconteceu na
encenação anterior, na qual o entendimento foi sendo construído na medida em que
o território do ônibus invadia o território do teatro, sem que o diretor e equipe
tivessem consciência dos seus dispositivos e capacidade de expansão.
Todavia, a etapa determinante desta encenação foi encontrar os espaços
explorados na casa pelos atores (quartos, garagem, quintal, etc.), nos espaços reais
do dia a dia da cidade, ou seja: transportar e materializar os espaços da dramaturgia
nos espaços concretos da cidade (parques, praças, monumentos, ruas, etc.), por
onde os usuários do transporte público constantemente trafegam, e, por si, contém
certas referências sobre eles, que a encenação se valeu para revisitá-los sob novas
lentes, como nos explica o diretor:

Para mim é o espetáculo que mais gosto, por que ali eu consigo
entender essa potência do ônibus como diálogo com a cidade. A
gente vai buscar na cidade os espaços da casa, a cidade como casa,
então eu vou fazendo uma costura da casa interna do ser humano,
do porão interno, que são as vivências e histórias dos próprios
atores, relacionada com os espaços da cidade (informação verbal)35.

Neste espetáculo, o encenador destaca dois lugares que para ele são os mais
emblemáticos da ação cênica do ônibus como procedimento: o “quintal” e o “porão”
da casa.
O espaço-quintal deveria trazer consigo o frescor das brincadeiras infantis, da
correria, das travessuras e das mil aventuras que uma criança constrói quando tem
a oportunidade de ter ou estar em um quintal.
Já para o espaço-porão, em oposição ao quintal, seria o lugar de guardar
coisas sem utilidade imediata; lugar escuro, propício aos fungos, aos ratos, aranhas,

35
Id., 2018.
104

traças e outros bichos que acaso venham habitar neste local repleto de sombras,
aquém dos espaços ensolarados e frescos que os quintais sugerem.
Para materializar o espaço-quintal na cidade, o encenador expõe:

A gente encontrou uma praça que era circular aonde o público


estava dentro do ônibus e o ônibus ficava girando em torno dela e as
portas do ônibus abriam e os atores entravam e saíam e
representavam dentro e fora do ônibus. E é uma cena linda, porque
parece que você está dentro de um filme, de uma memória, porque
vai ativando as suas memórias, vai ativando o espaço, vai ativando
um outro estado de recepção para o público (informação verbal)36.

A materialização dessa proposta pode ser observada na imagem abaixo, na


qual a atriz, após abandonar o ônibus, passa a correr em volta dele, como num jogo
de pega-pega, enquanto o motorista conduz o veículo em círculos atrás dela.
Estabelecendo, assim, não apenas uma atmosfera pueril, mas implicando o
transporte e os passageiros numa ação cênica que desvenda transporte como
agente da teatralidade e modifica, naturalmente, a percepção do público naquele
espaço cênico incomum.

Figura 32 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei


Borges, encenação de Anderson Maurício.

Vemos uma atriz fora do ônibus, e este a persegue constantemente em


círculos, como em um jogo de pega-pega. Esta ação desencadeia uma
sequencia de ações cênicas na qual o veículo, com os
passageiros/espectadores no seu interior, assume o papel de antagonista
da atriz ao personificar um espírito juvenil. Fonte: Christiane Forcinito.

36
Ibid., 2018.
105

Em contrapartida, o porão da casa-cidade foi encontrado na Cracolândia, um


espaço extremamente complexo para a cidade de São Paulo, que, no entendimento
do diretor, serviu bem aos propósitos da encenação ao apresentar na sua
constituição todos os elementos das coisas “sem utilidade” como ele destaca:

A cracolândia é um lugar onde não se transita, não transitam


cidadãos. Você vê pelas imagens na TV, tem os médicos,
assistentes sociais, os próprios familiares em busca de pessoas, são
centenas de pessoas. E o nosso ônibus adentrava a cracolândia e
era uma sensação muito forte porque parece que você está entrando
num umbral, sabe? E para passarmos eles tinham que dar
passagem, a gente não conseguia passar sem ajuda deles porque
era muita gente na rua. E é uma imagem muito forte, como se você
estivesse entrando dentro de um corpo humano, de um lugar que
você não teria coragem de entrar sozinho e o ônibus te leva para
esse lugar (informação verbal)37.

Na encenação de Dentro é Lugar Longe, percebe-se que o diretor procura


explorar a dramaturgia dos espaços da própria cidade como organização cênica.
Uma assertiva que o encenador destaca é a consciência de que os atores, os
elementos cênicos e os agentes da produção teatral são todos estranhos ao
universo do ônibus e isso demanda um cuidado redobrado para as relações que
serão estabelecidas naquele lugar pela linguagem teatral.
Por essa razão, destaca o diretor, o grupo sempre preferiu uma abordagem
lírica/poética, para oferecer perspectivas oníricas ao penetrar na dureza do universo
do transporte público. Objetivando, assim, influir na capacidade imagética dos
passageiros a bordo do ônibus-teatro. Pois:

A simbologia desse espaço é muito forte, ela existe e está ali. Mas a
gente está ali para poder transformar esse lugar em potência poética.
Então o que eu acho que a gente fala, e que está presente em todos
os nossos trabalhos, é uma busca de entender os desdobramentos
das imagens desse espaço, é um olhar para si, um olhar para o
humano, que é ele, que somos nós, de uma forma poética. Dessa
imagem que de algum jeito penetra e ecoam o outro (informação
verbal)38.

De modo geral, a principal lida do encenador, como notamos, consistiu em


sair a campo para encontrar os lugares da casa nos espaços da cidade, que
pudessem estabelecer um percurso relacional das referências dos espaços

37
Id., 2018.
38
Id., 2018.
106

conhecidos pelos habitantes da cidade, e pelas possíveis atmosferas que o próprio


lugar poderia oferecer à encenação, para, em seguida, contextualizar, materializar e
ressignificar as histórias apresentadas pelos atores.
Buscando, inclusive, entender as problematizações e linhas de força que cada
espaço poderia oferecer a determinadas passagens da encenação, e,
consequentemente, oferecer à ficção os elementos reais que possibilitariam uma
abertura do campo de prospecção sinestésica, somática e significante concernente à
estrutura conceitual do espetáculo.
Deste modo, o ônibus em Dentro é Lugar Longe, funciona como veículo que
é, ao transportar os passageiros para lugares que irão possibilitar novas leituras e
relações com os espaços da cidade visitados pelo teatro, numa espécie de sinapse,
que repercutem diretamente sobre a constituição da encenação e dos
procedimentos adotados pela equipe.
No fluxograma abaixo, observamos que a composição dessa encenação foi
estabelecida aceitando o ônibus e seu contexto (a cidade) como espaço cênico e
conceito da encenação. Os vetores indicam que nesta criação a sala de ensaio
serviu apenas para os agentes criativos descobrirem o tema sobre o qual a
encenação iria versar, questão que, posteriormente, foi desenvolvida no ônibus para
materializar tal encenação.

Fluxograma 2 – Estrutura de criação do espetáculo Dentro é Lugar Longe.

dramaturgia
cenas
mote dramatúrgico Ônibus cenografias
personagens
Sala de ações cênicas
ensaios cidade espectadores
concepção
Fonte: Elaborado pelo autor.

Nessa proposição, o trabalho do diretor consistiu em tecer os fios que uniam a


materialidade, as virtualidades e os significados dos lugares da cidade (visitados
pelo ônibus), com as alegorias e potências poéticas da equipe naqueles espaços
percorridos pela criação.
107

Notemos que o começo da estruturação da proposta teve por base uma


investigação sobre os espaços do ônibus (espaços da cidade), sem os quais seria
inviável a concretização de tal proposta. Não apenas no que diz respeito à
mobilidade e transitoriedade pelos espaços, mas, sobretudo, pela compreensão
acerca das camadas que constituem o espaço-ônibus.
Tal proposição instalou, ao mesmo tempo, um diálogo estreito entre a
linguagem teatral, a cidade e os usuários do transporte público. Característica
essencial do teatro site-specific, que se configura pela tríade dialética formada pelo
espaço, espectadores e atores.

3.4 DECOMPONDO O ÔNIBUS CÊNICO

O espaço do ônibus, de modo geral, se constitui por uma estrutura retangular


de aproximadamente 14 metros quadrados, contendo 23 assentos duplos, com uma
barra de ferro no seu encosto na vertical, para auxiliar o passageiro em caso de
deslocamento pelo veículo, ou para se apoiar em caso de parada brusca.
Possui janelas em vidro transparente, botões ou corda de paragem, luzes no
teto (geralmente branca), várias barras de ferro presas ao teto e ao longo do
corredor, também para facilitar o apoio do passageiro em caso de deslocamento ou
frenagem brusca, quando o veículo está em movimento.
A comunicação com o motorista dá-se de forma bem limitada e protocolada
por meio de acionamentos manuais de botões ou corda, que informam ao motorista
que um dos passageiros deseja saltar do veículo na parada seguinte.
Desse modo, é completamente factível entrar e sair do veículo sem qualquer
tipo de comunicação verbal do passageiro com o motorista e, também, entre os
próprios passageiros, ainda que partilhem do mesmo espaço, pois o ônibus tem sua
própria forma de acesso, permanência e comunicação que não necessariamente
demandam uma interação antropológica, características essenciais que identificam
os não-lugares, como Augé (1994) sublinha.
Contudo, o ônibus está inserido dentro de um organismo complexo, chamado
cidade, e funciona como uma ponte de integração de vários espaços dessa
localidade, sejam eles de lazer, trabalho ou educacionais, nos quais os cidadãos dos
grandes centros urbanos têm que perpassar constantemente para conceber as suas
rotinas cotidianas.
108

Dentro desta estrutura, o passageiro do ônibus é permanentemente


convidado a observar e refletir as complexidades sociais, políticas, econômicas e
relacionais (nem sempre amistosas) envoltas naquele transporte público, que,
muitas vezes, submete seus usuários às mazelas das desigualdades sociais que
assolam os espaços compartilhados de determinadas cidades.
Esse fato se identifica, sobretudo, no instante em que a vida real se
movimenta pela janela e pede passagem, ao invadir abruptamente o veículo,
marcando decisivamente a história de alguns, se não de todos os passageiros.
Estas camadas inter-relacionais (fenomenológica, social/política e discursiva,
que marcam decisivamente os trabalhos site-specific, como vimos no capítulo
anterior) constituem a natureza e a especificidade do espaço cênico-ônibus, que se
instaura como um dos grandes desafios do diretor Anderson Maurício.
Nas propostas teatrais sublinhadas, as microcamadas e o macroespaço
percorridos pelo ônibus são caros à criação, ao proporcionar interstícios relacionais,
inteligíveis e sinestésicos que levam as encenações a operar em um ambiente
aquém do automatismo sugestivo presente no relacionamento do usuário do
transporte coletivo, e para além das formas habituais do teatro de sala.
De pronto, podemos perceber que os procedimentos operacionais adotados
pelo encenador, em Dentro é Lugar Longe, assinalam para uma mudança
processual no trabalho desse diretor teatral, visto que os espaços selecionados e
relacionados na encenação, solicitam do encenador uma constante investigação
imagética sobre o ambiente que o cerca.
Verificamos que das analogias perceptuais que dele emanam, podem vir a
contaminar a encenação, seja para potencializar alguma passagem do espetáculo
ou, ainda, para atrapalhar o seu andamento, quando há uma tentativa de
apagamento do contexto sob os quais os espaços se organizam, como o encenador
destaca:

No teatro feito no ônibus não existe o espaço nu, eu não tenho essa
limpeza, esse quadro em branco, eu não consigo ter isso no ônibus.
Estou sempre em um lugar com muita informação. E talvez essa seja
uma das grandes dificuldades tanto da direção quando da atuação,
para dramaturgia... já tem muita coisa acontecendo ali. Só o público
dentro do espaço cênico já modifica muita coisa na criação das
109

cenas. Então não tenho uma imagem limpa, sozinha (informação


verbal)39.

Diante deste horizonte, o encenador atina que não seria possível conceber
seu espaço cênico sob os mesmos parâmetros do espetáculo de sala, porque a
concretude do espaço se apresentava como uma realidade imperativa, na qual ele,
como encenador, teve que se deter, para, em diálogo com ela, criar suas próprias
convenções e procedimentos técnicos ao utilizar o ônibus como veículo de uma
poética cênica.
Entretanto, cabe uma pergunta: por onde a Trupe principiou o seu processo
de apropriação do ônibus como espaço cênico? De forma empírica, nos diz seu
diretor, ao lançar os atores e atrizes no desafio de desenvolverem alguns
experimentos cênicos partindo de poemas, pequenos textos, músicas, recortes de
cenas conhecidas por eles para serem apresentadas no ônibus como um
experimento inaugural, sem nenhum ensaio prévio naquele espaço, experiência que
lhes forneceria as reais condições espaciais que até então desconheciam.
Neste teste inicial, foi constatado que alguns princípios apreendidos no curso
de teatro não faziam sentido naquela estrutura, sobretudo porque o ônibus estava
em constante movimento e demandava uma espacialização dos corpos dos atores
distinto do espaço inerte do teatro.
Perceberam, ainda, que a variação da velocidade do veículo poderia auxiliar
na cena para potencializar alguma sensação, e até poderia atrapalhar pelo mesmo
motivo. E que, por essa razão, a participação do motorista seria fundamental nessa
proposta, por ser ele o condutor do veículo que marcaria o deslocamento do espaço
cênico-ônibus pela cidade.
Outro ponto de entendimento foi sobre a acústica do espaço e o jogo de
distâncias entre os atores, que careciam de extensão para preencher todo o ônibus.
Logo, as cenas de proximidade teriam que ser expandidas.
Igualmente à presença física dos passageiros, que foi identificada como um
atributo muito particular, pois eles não poderiam ser simplesmente ignorados, como
acontece preponderantemente na convenção do espetáculo de sala, onde o
espectador é solicitado e notado poucas vezes ou apenas no final da apresentação.

39
Id., 2018.
110

A estratégia da Trupe, verificada nos dois espetáculos acima descritos, nos


permite conferir certos padrões que podem ser examinados em outras encenações
realizadas em espaços não-teatrais, além de semelhanças e distinções entre o
teatro em espaço alternativo e o teatro site-specific.
No Cordel do amor sem fim, o espaço cênico é visivelmente percebido e
concebido pelo seu encenador como uma alternativa para proporcionar uma
experiência teatral aos passageiros do transporte público, a ponto de o diretor tentar
anular o próprio espaço e as suas características, o que se mostrou ineficaz, como
constatamos nos seus depoimentos.
Já em Dentro é Lugar Longe, o espaço é configurado não somente como
lugar de exposição, mas espaço atuante e indivisível da encenação, fator que
implica o diretor numa atividade de ter de assumir uma relação mais responsiva e
dialética com o ambiente onde o evento ocorre, não apenas como sítio incomum de
apresentação, como geralmente ocorre no espaço alternativo.
Ao acessar um mundo imagético e referencial do espaço (em Dentro é Lugar
Longe), que leva o espetáculo a ser compreendido não apenas pelos perímetros,
equipamentos e funções que o constituem, mas pelas referências a ele inerentes, o
diretor percebe que pode oferecer à encenação conexões para reconfigurar a
percepção sobre o espaço (seus dispositivos visuais, sonoros e sensoriais como um
todo) quando esse é solicitado a ser lido sob os códigos do teatro.
Esse entendimento pode ser identificado, por exemplo, no espelhamento da
Cracolândia como o porão da cidade, na encenação de Dentro é Lugar Longe,
proposição que acaba por vincular a encenação ao seu espaço, de forma que tentar
deslocá-la desse lugar é uma ação que pode destruí-la.
Essa tessitura da cena em volta de um espaço não-teatral implica à
encenação e seus agentes, com destaque para o encenador, num problema muito
particular: a carência técnica (ou mesmo inexistência) dos equipamentos e seus
respectivos códigos visuais e sonoros de que a linguagem teatral faz uso para
construir sua natureza, que necessitam ser concebidos para dar vazão à linguagem
teatral.
No trabalho de Anderson Maurício, conseguimos identificar pelo menos dois
momentos em que os equipamentos teatrais precisaram ser arranjados para suprir a
necessidade dos anseios da direção: O primeiro destaque são os elementos de
111

sonorização e iluminação, que tiveram que ser reeditados ou adaptados para aquele
contexto, visto que, inicialmente, aparecem para intensificar os códigos da
linguagem ao serem embutidos no espaço. Entretanto, foram sendo minados,
gradualmente, quando o encenador passou a perceber que os próprios
equipamentos do ônibus supriam certas necessidades técnicas de ambientação,
iluminação e sonorização.
O segundo destaque são os elementos cenográficos (cortinas, tapetes, forro
para os assentos, etc.), que vestem o ônibus por dentro pretendendo deslocar a
percepção dos passageiros e, consequentemente, convidá-los a uma viagem pelo
caminho da fábula.
Porém, lembremos, não são esses disfarces visuais que determinam a
encenação como site-specific, mas suas exigências técnicas e materiais fazem parte
do escopo de trabalho do encenador nesta poética (caso perceba que precisa
estetizá-lo), ao ter que equipar o espaço de modo a solucionar as demandas
imagéticas alcançadas por meio de cenários, iluminação e sonorização que fazem
parte da própria linguagem teatral, já que seus dispositivos não são dados a priori no
espaço selecionado para uma encenação site-specific, diferentemente do que
acontece no teatro de espetáculo de sala. Necessitam, portanto, ser pensados e
reestruturados pelo diretor e produção.
Além disso, com o amadurecimento da proposta e a respectiva fricção com o
contexto (aí sim característica do teatro site-specific) os experimentos aqui
assinalados passaram a ser impregnados pela realidade do lugar em vários
momentos da encenação, quando, por exemplo, as lâmpadas do ônibus apagavam
e as luzes da cidade adentravam o espaço cênico; quando os sons da rua invadiam
a cena; quando era necessário calar as palavras para deixar o próprio espaço
articular as expressões próprias de sua linguagem, o real.
Ainda que esse espaço cênico tenha sua própria forma de constituição, coube
ao diretor observar sob quais estruturas o espaço-ônibus estava assentado, para
fazer dele um agente da teatralidade, não apenas uma plataforma incomum de
apresentação.
Essa consciência pôde ser observada em várias passagens no trabalho de
Anderson Maurício, que consistiu em trazer o próprio espaço à luz da encenação: no
momento que o ônibus para e faz todos esperarem o imponderável (no Cordel do
112

amor sem fim), ou ainda as paragens estratégicas e movimentos propositais quando,


por exemplo, o ônibus personifica o espírito juvenil a correr e girar em volta da
praça, enquanto os atores entram e saem de sua estrutura, como acontece no
Dentro é lugar longe, descartando, portanto, qualquer simplificação desse espaço
como mera cenografia ou espaço de exposição.
Sendo assim, observamos que ao mesmo tempo em que o espaço organiza e
estrutura a encenação, ele oferece ao público uma maneira particular de fruição, ao
permitir que o espectador encontre seu próprio espaço na encenação, permitindo,
inclusive, que ele intervenha de forma direta na ação cênica do espetáculo, como
verificamos nos dois espetáculos da Trupe Sinhá Zózima.
Outra vez aqui, cabe ao encenador, apreender os códigos emanados pelos
passageiros dentro da encenação e possibilitar a eles uma forma de experiência
cênica na qual o seu papel de passageiro seja respeitado, quando desejado, mas
também, de ser um agente da teatralidade quando se sentir abraçado pela proposta
cênica.
Outro fator de extrema importância para entender os códigos sob os quais os
trabalhos criativos desse diretor se orientam (que é uma característica percebida em
menor ou maior grau nos trabalhos site-specific), diz respeito aos interstícios
decorrentes da dialética cênica entre ficção e o real, que por vezes tem que
conversar com o instante não programado e transformá-lo em uma potência cênica.
Imprevistos estes, que pode convidar todos os agentes da encenação a
suspender por um instante a linguagem artística e proferir o vocabulário do real, em
todos os seus códigos e intenções.
Notamos, especialmente, que o procedimento criativo descrito pelo encenador
nessas proposições, de modo geral, se dividiu em duas grandes etapas, a saber: a
busca de materiais que pudessem servir de argumentos e inspirações para a
construção da fábula da peça em Dentro é lugar longe, no qual o diretor deixa claro
que os processos adotados por ele objetivaram incitar o grupo a criar uma
amálgama criativa que serviria de matéria-prima para o desenvolvimento do texto
dramático.
O segundo movimento, diz respeito à edição e diálogos possíveis do material
inicial com as relações pessoais praticadas no ambiente do transporte público.
Cabendo ao encenador tecer as malhas ficcionais, em consonância com a
113

concretude do espaço e suas camadas constitutivas, para estabelecer os jogos


cênicos, acordos necessários e compreensões sinestésicas para todos os agentes
do espetáculo (como ilustra a imagem abaixo, na ocasião em que o ônibus
adentrava a Cracolândia em Dentro é Lugar Longe).

Figura 33 – Imagem de Dentro é Lugar Longe (2013), texto de Rudinei


Borges, encenação de Anderson Maurício.

Vemos o instante em que o ônibus passa pela Cracolândia e a relação que


a atriz busca estabelecer entre o interior do veículo e o tecido urbano social.
O mergulho nesse espaço socialmente “hostil” acentua e singulariza tal
criação, ao incorporar as referências do lugar na encenação. Fonte:
Christiane Forcinito.

Nestas experiências, eu destacaria ainda um terceiro momento: os instantes


pensados pelo diretor para inserir o ônibus nas ações cênicas, atividades que
modificam de forma substancial a constituição do espetáculo, não apenas de modo a
afetar a percepção sobre o lugar, mas também a maneira de revelar as
potencialidades que esse lugar tem em ser um agente da teatralidade.
Por fim, destaco um questionamento que fiz ao encenador sobre a
importância do espaço-ônibus para a sua criação, na qual ele nos revela:

Pela possibilidade de conseguir trafegar pelo imaginário da cidade e


algumas vezes eu conseguir transmitir e colar, e costurar e tecer
outras imagens nele, de revelá-lo na encenação. De alguma forma
poder trazer o intangível para o tangível, trazer humanidade para um
espaço tão desumano. A importância dele de poder se mover, eu me
movo por ele... o ar, as portas, do movimento do vento que passa...
eu acho tão bonito quando as cortinas balançam, quando o ônibus
114

freia. É de poder, de alguma forma, trazer para o espectador a


sensação do ônibus, e de o ônibus poder se comunicar, poder falar,
poder correr (informação verbal)40.

Nas palavras do encenador despontam uma consciência sobre as


particularidades do seu espaço cênico, e sobre a constante relação triangular
(espaço-ator-público) que tangencia todo o processo da encenação. Nela a equipe
se detém constantemente para mediar as relações dos atores e do público para com
o próprio espaço, que, por si, espelha as interações empreendidas no seu interior e
contextos.
Nesta conjectura, os atores não são apenas personagens, os passageiros são
mais do que público e o espaço é mais que um cubo vazio ou receptáculo de
poéticas cênicas a construir uma fábula peculiar num sítio alegórico. Neste ponto,
nos reencontramos como os fundamentos de Certeau (1990), que entende que o
espaço é forjado a partir das relações e dos vetores estabelecidos no lugar, sem os
quais, o espaço inexiste.
Na perspectiva do teatro site-specific, o lugar (neste caso em particular, o
ônibus) só passa a ser um agente da teatralidade no instante em que os vetores de
direção e tempo, percepções e camadas (sociopolíticas, culturais, fenomenológicas)
forem revelados pelo jogo cênico, em diálogo com a ficção em processo.
Sendo assim, o espaço não é um meio (ou alternativa), é um fim em si. Que
se conforma a partir da criação/invenção das ações cênicas que serão forjadas a
partir dos agenciamentos dos vetores do lugar selecionado para constituir a
encenação. Esta, que será produzida a partir das operações que orientam esse
lugar, não pela oposição ao lugar convencional do teatro, o edifício teatral.
Notemos, portanto, que o “alternativo” do site-specific não diz respeito à falta
de lugar para apresentação ou o uso do espaço como cenário incomum, mas a
perspectiva de que as camadas constitutivas do próprio espaço sejam os vetores
essenciais da encenação, que, por sua vez, refletirá o local e balizará o que há de
específico nestes trabalhos, como bem percebe McAuley:

A performance site-specific é a ocupação mais recente de um local


onde outras ocupações ainda são visíveis e estão ativamente
incorporadas. É concebida e condicionada pelas particularidades de
tais espaços: recontextualiza-os então. É inseparável de seu espaço,

40
Id., 2018.
115

o único contexto dentro do qual é compreensível (MCAULEY, 1999,


p. 622 apud HOUSTON, 2007, p. 15, tradução nossa) 41.

Afora a prática do lugar como laboratório da encenação, o espaço criado na


perspectiva do teatro site-specific pode oferecer ao diretor uma abertura para outras
dimensões, difíceis de alcançar no teatro em lugares alternativos, que consiste,
precisamente, na possibilidade de revelar as especificidades do próprio espaço,
sejam elas históricas, sociais ou políticas. Contextos sob os quais a encenação site-
specific se detém para expandir as fronteiras e territórios do trabalho artístico.
Em contrapartida, o teatro em lugar alternativo constitui-se a partir da própria
faculdade que o anima: ser um contraponto para as propostas hegemônicas, ao
oferecer um outro espaço como alternativa para a exposição e fruição de uma
determinada manifestação cênica, de modo que possa ser constituída, sem
necessariamente levar em conta os atravessamentos do lugar onde será
apresentado (como pudemos perceber no Cordel do amor sem fim, que é o
espetáculo mais apresentado do grupo e o que mais circulou por outras cidades),
fato que dificilmente ocorrerá nos trabalhos site-specific.
Nesse sentido, estamos falando, predominantemente, de processos
operacionais distintos, de metodologias de composição em artes cênicas distintas:
nas encenações em lugares alternativos, utiliza-se o espaço não-teatral como
ambiente de exposição. Ao passo que no teatro site-specific, as encenações se
conformam a partir das especificidades de um determinado lugar não-teatral, que
instituído como espaço cênico, vincula-se ao desenvolvimento e a fruição do
espetáculo.
Por essa razão, o espaço no teatro site-specific pode funcionar como uma
espécie de portal que fornece uma abertura para outros mundos inacessíveis a olho
nu, porém, quando mediado pelas lentes do encenador (consciente dos
atravessamentos e camadas dos espaços), pode revelar as maravilhas
panorâmicas, relacionais e sensoriais que a superfície esconde.
Confiando a esse agente da cena, a tarefa de conduzir os processos criativos
em perspectivas múltiplas e traçar os itinerários necessários ao encontro dos atores

41
“Site-specific performance is the latest occupation of a location where other occupation are still
apparent and congnitively active. it is conceived for, and conditioned by, the particulars of such
spaces: it then recontextualises them. it is inseparable from its site, the only context within which it is
intelligible”.
116

e espectadores nesse espaço peculiar, como acontece nos trabalhos que


destacaremos no próximo capítulo, considerando, sobretudo, aquilo que diz respeito
ao trabalho da direção teatral com as circunstâncias materiais dos espaços
selecionados para a encenação.
117

4 AS REMINISCÊNCIAS DO ESPAÇO

No capítulo anterior indicamos que há sentido em dizer que o teatro site-


specific é forjado a partir dos agenciamentos dos vetores do lugar não-teatral
selecionado para constituir a encenação, que será produzida a partir das operações
que orientam o espaço, não pela sua oposição ao lugar convencional do teatro, o
edifício teatral. Vamos, a partir daqui, fazer uma leitura minuciosa do uso dos
espaços e os procedimentos adotados por dois outros diretores na composição dos
seus espetáculos.
Como pudemos observar, a consciência acerca dos dispositivos cênicos e a
potência do espaço em ser um atuante da teatralidade, em geral, não são notadas
de imediato quando um diretor decide sair da caixa cênica para ocupar outro lugar
(principalmente se este criador está começando no ofício), uma vez que ele estará
preocupado em como equipar o espaço de modo a fazê-lo funcionar sob os códigos
da linguagem teatral, como visto na condução de Anderson Maurício.
No entanto, diante das dificuldades metodológicas geradas pela realidade do
local selecionado para a encenação, com circunstâncias e convenções que lhe são
inerentes, o diretor é colocado defronte da paisagem do espaço a questionar o que
daquela realidade será relevante para montar sua ficção, e, ao torná-lo centro da
encenação, estabelece com ele correlações processuais que o vinculam à obra.
Neste movimento, o espaço não-teatral com suas formas de organização e
conjunturas próprias, conectado à investigação cênica naquele espaço, gera o
conceito de teatro site-specific, que deve ser fundamentado a partir do entendimento
das especificidades do espaço, que são transitórias e efêmeras, mais do que pelo
perímetro geográfico que este ocupa.
O contexto, nessa configuração, passa a ser conteúdo, pois ao priorizar o
engajamento do artista com o cotidiano do local encontrado e suas diversas formas
identitárias, fenomenológicas e discursivas, provoca uma ligação com a obra em
termos não apenas físicos, mas virtuais, determinados pelas próprias características
do espaço.
Diante do exposto, vale um questionamento: quando o ambiente selecionado
para ser o espaço da encenação já está repleto de orientações físicas e esferas
simbólicas, como acontece no site-specific, o trabalho da direção continua sendo o
mesmo do teatro de espetáculo de sala, isto é, projetar e equipar o espaço com luz,
118

som e cenografias para que nele os atores possam evoluir e demarcar as


convenções daquele trabalho artístico? Ou difere, sistematicamente, pelas próprias
circunstâncias e demandas da ocupação cênica dos espaços selecionados?
Para desenvolver este dilema, apresento os trabalhos artísticos, observações
e apontamentos de Thiago Romero, que disponibilizou os seus relatos de criação,
para que possamos adentrar na sua prática criativa quando ele se deparou com
ambientes carregados de lembranças e significações, e nestes, empreendeu os
dispositivos criativos necessários para a produção de uma encenação.

4.1 THIAGO ROMERO E O TEATRO DA QUEDA

Eu sou um cara que fala sobre coisas do meu


tempo, mas não esquecendo do passado, e que
tenho, cada vez mais, me afirmado enquanto gay,
negro, dentro de uma sociedade capitalista
opressora que quer silenciar o tempo inteiro. Eu
hoje eu posso te dizer que eu sou um artivista!
Ter iniciado no candomblé, também, me deu um
outro tipo de força, de luta, de discurso, de coisa
que eu preciso defender, que eu defendo com
maior prazer, com carinho. [...] Nestes últimos
anos, desde de 2011, estou pesquisando essa
coisa da homossexualidade, da
representatividade do homossexual em cena. A
própria pesquisa que eu desenvolvo com o teatro
documentário, os limites entre real e a ficção,
partiam muito disso. Mas, é muito específico em
alguns espetáculos meus, se a gente for falar do
Rebola, que é o que vamos falar bastante, o
Rebola só aconteceu porque eu tinha o projeto de
ocupação do Beco, eu não pensei na peça
119

anteriormente, a peça surgiu naquele lugar.


(Thiago Romero)42

Thiago Romero, natural do Rio de Janeiro, é diretor teatral, ator e figurinista


que iniciou seus estudos acadêmicos nas artes plásticas e, ao longo do seu
percurso, foi se convencendo que deveria enveredar no teatro e desenvolver a sua
forma de expressão artística, que, no seu entendimento, não pertencia apenas ao
ambiente das artes visuais.
Em entrevista realizada para essa pesquisa (que pode ser consultada no
apêndice C deste trabalho), Romero nos situa em relação a sua formação artística e
a contínua aproximação com o teatro, até o seu desembarque na cidade de
Salvador, no ano de 2008, com um grupo de teatro na mala de mão, intitulado
Teatro da Queda, que desde o princípio tem por objetivo explorar determinados
espaços teatrais e não-teatrais para desenvolver neles uma poética cênica a partir
da confrontação da identidade gay com a identidade brasileira.
Sob este ponto de investigação, o diretor nos revela o horizonte marginal que
permeia as suas escolhas estéticas, não somente pela temática discursiva/militância
pretendida, mas, sobre a justaposição do seu desejo expressivo com as poéticas
teatrais fora da caixa cênica. Ampliando, assim, uma consciência acerca das
necessidades processuais da linguagem teatral na contemporaneidade, ao construir
pontos convergentes entre diversas experiências artísticas e os diferentes lugares
que as linguagem podem ocupar.
Sua experiência com os lugares não-teatrais pode ser observada em, pelo
menos, três espetáculos concebidos e encenados por ele: Abismo (2012), criado e
encenado em um apartamento; Revê-lo (2014), desenvolvido e encenado em um
salão de festas num bairro nobre da cidade de Salvador; e Rebola (2016), criado e
encenado em um bar LGBT.
Neste estudo, vamos nos deter apenas ao último espetáculo citado, pois nele
percebemos uma maturidade do diretor quanto aos procedimentos e práticas site-
specific.

42
Thiago Romero em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na integra
no apêndice C.
120

4.1 O PROCESSO DE PESQUISA

O processo do espetáculo Rebola deu-se de maneira a aprofundar os temas


verificados na poética do grupo, que partilha de uma metodologia colaborativa
baseada na experiência artística de cada integrante, vivenciada ao longo de dez
anos de atividade.
Estes conhecimentos foram redimensionada durante a temporada do projeto
Beco Ocupado, desenvolvido pelo grupo com apoio da Fundação de Cultura da
Bahia, que tinha por objetivo revitalizar uma área cultural e histórica importante para
a comunidade LGBT da cidade de Salvador-Ba, o Beco dos Artistas.
Inicialmente, o projeto previa a implementação de uma escola de drag
queens, uma vez que a equipe queria pesquisar a linguagem desse ator
transformista. Contudo, o contato prolongado com o Beco dos Artistas despertou
interesse na equipe em aprofundar a relação entre teatro e cidade. E ao longo do
projeto, o grupo decidiu criar um espetáculo que desse conta de rememorar as
histórias e relações íntimas daquele espaço com a cidade, desveladas enquanto o
projeto era executado.
De tal modo, foi definido que o perfil investigativo seria baseado no tripé:
processo de pesquisa em colaboração; temática pautada na identidade gay, com
suas histórias oficiais e história oral; e o lugar histórico como espaço cênico. Sob
esta base, o grupo lançou-se a investigar a genealogia e reminiscências daquele
pedaço da cidade, como fio condutor do projeto cênico.

4.2 BECO DOS ARTISTAS

O Beco dos Artistas é uma ruela cuja frente dá para a avenida principal do
bairro Garcia (a Av. Leovigildo Figueiras) e o fundo leva a uma comunidade de
moradores, em sua maioria evangélicos. Por possuir certa invisibilidade, o Beco dos
Artistas possui quatro bares que ao longo do tempo foram trocando de donos e de
nomes, enquanto iam escrevendo a história daquele espaço.
A iniciativa pioneira deu-se em 1978, quando o espaço recebeu o primeiro
bar, o La Bohême, administrado pelo francês, erradicado na Bahia, Jacques Frelicot.
Inicialmente, o Beco era frequentado pela classe artística e intelectual de Salvador,
que por se localizar próximo aos principais teatros da cidade e a Escola de Teatro e
121

de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, facilitava a frequência dessas


pessoas influentes nas artes cênicas e na música local e nacional.
A presença dessa classe marcou de forma aguda o espaço, a ponto de
receber a alcunha de Beco dos Artistas, passando a ser ponto de encontro desses
intelectuais e artistas até meados dos anos de 1980.
Em 1985, o restaurante, que já havia mudado de nome, foi vendido e se
tornou uma boate gay, que durou pouco mais de dois anos. Enquanto outros bares e
restaurantes o sucederam, entre os anos de 85 a 88, sua primeira fase de declínio,
os estabelecimentos, paulatinamente, começam a fechar e o Beco passou a
funcionar apenas durante o dia, servindo almoço em um bar/restaurante localizado
em frente ao que antes era o La Boheme.
Em 1990, o ator Hamilton Lima arrenda o espaço e volta a oferecer refeições
e diversões noturnas, com músicas e apresentações de performances artísticas do
universo LGBT, retomando um movimento cultural e perfil social similar ao que havia
se iniciado com a fundação do espaço.
Sob a alcunha de O Bastidor, o bar durou até meados de 1993, quando o
espaço foi vendido novamente e ficou inativo até 1996, ano que surgiu o bar
Conexões Arco-íris, que funcionou até 2001, instituído, especificamente, para atrair
a comunidade LGBT que já frequentava o lugar desde a fundação. Nesse período,
também foram inaugurados mais dois bares no Beco, o Camarim e o Persona, que
funcionaram até 2009.
Se na primeira década o espaço era reduto de uma classe média
intelectualizada que gozava de certo prestigio social, a ponto de dar nome ao lugar,
nas décadas seguintes passou a carregar a pecha de ‘espaço maldito’, com o
estigma social gay que se instalou no mundo com a repercussão das mortes
causadas pelo vírus HIV, que potencializou o preconceito já existente, assombrando
as mentes mais conservadoras da cidade, como enfatiza Andressa Ribeiro na sua
dissertação de mestrado:

Com o passar dos anos, o Beco deixa de ser um reduto da classe


artística e transforma-se em um espaço de sociabilidade
homossexual, mais especificamente um gueto gay, frequentado
majoritariamente por pessoas negras, provenientes da periferia de
Salvador e de baixo poder aquisitivo. Simultaneamente a essa
transformação – de um lugar dos artistas para um gueto gay - o beco
passa a concentrar um forte estigma e torna-se, ao mesmo tempo,
um lugar marginalizado com fronteiras claras (RIBEIRO, 2011, p. 47).
122

Diante desta notificação, e da acrescente onda neopentecostal na cidade, o


lugar foi ganhando feições claras de um gueto e hoje se encontra social e
espacialmente separado do tecido social mais amplo da cidade.
Atualmente abandonado, possui aspecto de um lugar bem deteriorado: o
calçamento é esburacado, a rua é mal iluminada, possui contêineres de lixo nas
extremidades e as paredes são sujas. Se algum desavisado passar pela frente, não
verá nem sombra das histórias inscritas naquele espaço.
Neste enlace se notabiliza a iniciativa do Teatro da Queda em se apropriar
daquele espaço fundamental para entender a comunidade LGBT da Bahia, ao dar
visibilidade para as histórias ora esquecidas, culminando a iniciativa com o
espetáculo Rebola43, que almejava resgatar cenicamente as memórias que deram
origem e identidade àquele lugar.

4.3 PROPOSTA CÊNICA

Como proposta cênica, a criação ocupou este bar (que, ficcionalizado, passou
a ser denominado Bar Xampoo), onde os frequentadores eram assumidos como
espectadores, quando, em um dado momento da noite, seriam interpelados pela
ficção, ao serem impactados por um rompante intempestivo de um transformista
(ator do espetáculo) que, de súbito, decide fechar o bar, alegando estar falido e que
aquela noite o bar não poderia continuar com as atividades.
Entretanto, tal ação encontra resistência das drag queens mais novas, que
juntas, decidem resistir à força do Capital estrutural, e revitalizar aquele espaço e ali
permanecer.
A proposta da encenação se fundamentou, então, em integrar as atividades
funcionais do ambiente com a linguagem teatral, objetivando rememorar e vivenciar
o lugar, tomando do espaço real a condição de espaço cênico (destituído de
artifícios convencionais), com a finalidade de debater os acessos e permanência aos
espaços públicos pelas pessoas gays.
43
Ficha técnica: Texto: Daniel Arcades; Direção: Thiago Romero; Direção Musical: Jarbas Bittencourt;
Coreografia: Edeise Gomes e Elivan Nascimento; Realização: Teatro da Queda;
Produção: Kalik Produções Artísticas; Elenco: Hamilton Lima, Gustavo Nery, Fernando Ishiruji, Victor
Corujeira, Genário Neto, Thiago Almasy, Rodrigo Villa, Diogo Teixeira, Caíque Copque e Sulivã
Bispo.
123

Para o processo de criação, o diretor revela que uma peculiaridade desta


iniciativa foi que o espaço cênico esteve presente desde o início do processo, e que,
por essa razão, muitas das escolhas temáticas e estéticas que emergiram do lugar
ocupado passaram a ser organizados pela direção, ao serem assumidas como
atuantes na encenação, que em vez de se sobrepor ao espaço, optou por uma
metodologia que privilegiava aquilo que emergia daquele lugar.
Consequentemente, tanto as histórias e relações pessoais vividas naquele
ambiente, quanto os atravessamentos sociopolíticos, foram priorizados pela equipe
para a criação do espetáculo, que contou com o auxílio e atuação de Hamilton Lima,
(proprietário do bar na década de 90), que nesta proposta, além de ser ator, servia
de arquivo vivo daquele lugar. Logo, notamos que a encenação se apropriou do
espaço para auto referenciá-lo.
Ao enfatizar a criação dramatúrgica nas encenações em espaços não
convencionais, Evill Rebouças (2009) chama nossa atenção para os diferentes
modos de apropriação do espaço para a tessitura do texto dramático, que são
considerados não somente a partir da arquitetura, do jogo teatral e das ações
desencadeadas naquele ambiente investigado, mas, sobretudo, pelas atmosferas e
historicidade do espaço dado à encenação, que acabam por constituir dramaturgias
hibridas. Como explana o autor:

Se compreendermos o termo dramaturgias como uma somatória


entre textos ditos e aqueles que se encontram entre as lacunas da
encenação, podemos afirmar que a qualidade gerada pela carga
semântica do espaço passa a responder por importantes discursos
do espetáculo. O espaço historicizado contamina a encenação como
uma espécie de metatexto. As cargas semânticas embutidas nesses
locais passam então a fazer parte dos discursos dramatúrgicos
(REBOUÇAS, 2009, p.174).

Considerando esses atravessamentos, para a encenação do Rebola, o


espaço cênico foi organizado em uma espécie de ambiente dividido em duas partes:
a externa, o beco, onde se dispunha uma série de casas/bares que dividiam o
caminho em três seções, duas laterais e o corredor central; e a interna, o bar, onde
se situava a área cênica principal, com 45m², no qual foram dispostas algumas
mesas e cadeiras envolvendo uma área central vazia, composta apenas por um
pequeno palco (pertencente ao espaço), onde os atores poderiam evoluir e se
124

deslocar espacialmente. Havia também um balcão onde as bebidas poderiam ser


adquiridas, e que também era usado como espaço para cenas curtas.
Na imagem abaixo (figura 34), podemos observar algumas particularidades
espaciais dessa criação: A configuração forma um corredor no qual os atores vão
em direção a alguns homens que estão sentados em mesas de bar, outros em pé,
na frente das casas, enquanto observam os atores que avançam pelo corredor
banhados sob uma luz amarelada, vinda de um poste que tem várias instalações
elétricas. Ao fundo vemos um edifício.
A luz é fosca, aberta, pouco marcada, ambientada (sabemos que é noite), e
destaca, por oposição, a luz branca brilhante da direita, que ilumina uma parede
igualmente clara, com portas largas e grandes na frente. Em uma dessas casas da
direita, notamos que uma das portas está aberta e observamos, no seu interior,
luzes coloridas de um ambiente aparentemente festivo (espaço escolhido para o
desenvolvimento central da peça, o Bar).

Figura 34 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de


Thiago Romero.

A área externa do espetáculo (o Beco) é carregada de contrastes e significações


próprias, e delimitam não apenas o posicionamento espacial dos atores e público,
mas também o horizonte sociopolítico da encenação onde tudo parece ser muito
precário. Enfatizando, para o espectador, que a obra deva ser compreendida
através dos atravessamentos provenientes daquele ambiente, como componente
essencial da encenação. Fonte: Andréa Magnoni.
125

Podemos notar, nitidamente, que o ambiente externo conta com uma textura
carregada, um tanto barroca, de onde despontam algumas oposições: prédios e
casas; claro e escuro; homens e não-homens travestidos; ordem e desordem que,
em síntese, pode ser bem representada pelo emaranhado de fios que saem dos
postes e borram a paisagem.
Já o ambiente interno (figura 35), igualmente deteriorado, apresenta um
espaço precário para exibição de performances, com divisão entre a área de
atuação e a área do público, que se acomodava em mesas espalhadas pelo local.
Embora a olhos nus, os olhos do cotidiano, observemos que toda essa
ambientação (interna e externa) faça parte da normalidade do espaço, visto que são
ambientes urbanos comuns a qualquer lugar boêmio, foi justamente dessa
convenção de normalidade/naturalidade que o diretor se valeu e se interessou para
desenvolver o argumento, o conceito e as espacialidades do seu espetáculo, já que
o que lhe interessava naquele espaço era, justamente, a concretude material e as
narrativas vividas possíveis de serem resgatadas e assimiladas pela linguagem
teatral.

Figura 35 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação de


Thiago Romero.

Vemos a área interna do espetáculo que, igualmente a área externa, apresenta


traços de precariedade espelhados em todo o ambiente, e também nos figurinos
dos atores, revelando que as camadas que revestem o ambiente conduziram as
escolhas estéticas e relacionais da direção. Foto: Andréa Magnoni.
126

Nesta encenação, a ambientação da trama é a própria arquitetura do Beco


dos Artistas, espaço no qual o diretor se apoderou para evidenciar o lugar através
dos vínculos possíveis entre o ambiente e as dramaticidades intrínsecas a ele,
capazes de serem problematizadas pelas ações cênicas elaboradas pelo encenador.
Portanto, ao se tornar abrigo da proposta cênica, a realidade material,
sociopolítica, afetiva e imagética do espaço foi urdida através do seu desvelamento
teatral, com a finalidade de trazer à tona os anseios discursivos pretendidos pelo
coletivo cênico.

4.4 O ESPAÇO RELACIONAL

O espaço do Beco ora abandonado, supostamente vazio, com piso de


cimento batido, paredes carcomidas, mesas e cadeiras avulsas, tomando as lições
de Peter Brook, passou a ser uma área a ser experimentada, onde o diretor se pôs a
traçar percursos e investigações de caráter relacional, a partir da percepção e
relação pessoal dele com o espaço, ou seja: caminhar por ele, poder senti-lo, avaliar
seu potencial cênico, escutar suas ressonâncias e imaginar o que seria bom ver ali.
Nesta investigação, o relacionamento estabelecido pelo diretor com o espaço
deu-se através da ocupação efetiva do lugar, pesquisando as diversas formas de
habitá-lo, observando não apenas as dinâmicas, comportamentos sociais e
convenções estabelecidas ali, mas, também, as reminiscências afetivas que o
próprio criador havia vivenciado naquele ambiente.
Embora, atualmente, o Beco dos Artistas pareça um local inóspito, para o
encenador era uma espécie de relicário, que resguardava muitas memórias afetivas,
não apenas das pessoas que um dia viveram ou trabalharam lá, mas dele próprio,
como homossexual que frequentava o espaço quando havia atividades acontecendo
ali, pois o Beco foi um dos primeiros locais da cidade onde ele desenvolveu
parcerias importantes para dar continuidade aos seus trabalhos cênicos. Sendo,
pois:

O passado do sujeito – sua tradição cultural- que governa a


percepção do espaço presente, que o faz reconhecer os lugares.
Não um passado histórico, mas o passado que nos fala das
experiências cotidianas que já vivemos: o espaço vivido. O espaço
no qual estão impregnadas as nossas emoções, boas e ruins
advindas de eventos nos quais tomamos parte, seja com agentes,
seja como receptores. O espaço vivido é o espaço da nossa
127

experiência no mundo (MALARD, 2006, p. 29 apud REBOUÇAS,


2010, p. 27).

Além de ativar as reminiscências pessoais, ao aprofundar a experiência de


ocupação do Beco, permitiu que o ambiente se fizesse presente à memória sensorial
de todos os participantes, pois o espaço vivo permitia que as texturas e camadas
fossem sentidas por todos os agentes criativos desde os primeiros instantes em que
adentraram no ambiente, que não se restringia apenas ao espaço físico, mas as
ressonâncias por ele emanadas, como aponta o diretor em entrevista para essa
pesquisa:

Escrevemos o projeto achando que seria legal para levar as bichas


de volta para ocupar aquele espaço. Porém, quando chegamos lá, na
abertura do projeto, descobrimos que a vizinhança não queria mais
aquilo, e fomos denunciados à SUCOM, que permaneceu lá durante
os quatro ou cinco meses de duração do projeto. Eu sofri ameaça da
síndica de um prédio falando que eu era um baderneiro. Então, para
além de um projeto de ocupação artística que ia trazer artistas
ligados ao gênero ou drag queens, descobri que era um projeto de
resistência, eu tinha que mantê-lo funcionando até o final. O espaço
começou a dizer para mim que ali eu não poderia brincar, ali teria
que aceita que a obra estaria em função do espaço, caso contrário,
não conseguiria fazer a peça, nem terminar o projeto (informação
verbal)44.

Neste depoimento, o protagonismo do espaço se evidencia, não apenas na


temática e na técnica para revelá-lo, já que o diretor se vale do teatro documentário
para compor a dramaturgia do seu espetáculo, mas, de modo semelhante, pelos
atravessamentos e camadas relacionais do espaço que iriam impactar diretamente
na concepção, desenvolvimento e fruição do espetáculo.
Esse posicionamento crítico da obra em relação a sua estrutura espacial é um
ponto integrante da noção de site-specific, como destaca Miwon Kwon:

Ser específico em relação a um espaço é decodificar e/ou recodificar


as convenções institucionais no sentido de expor as operações
ocultas, e revelar as maneiras pelas quais a instituição molda o
significado da arte para modular seu valor econômico e cultural
(KWON, 2002, p. 14).

44
Entrevista concedida por ROMERO, Thiago. Depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José Jackson
Silva. Salvador, 2018. Filmagem (120min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Apêndice C desta tese.
128

Neste sentido, há no espaço elementos e conjunções que podem ser


decodificados para propiciar uma interação dos agentes criativos com o ambiente,
cabendo ao diretor encabeçar essa experiência, como Romero comenta:

Aquele bar era quase parceiro. Eu abria aquele bar, eu vendia


naquele bar, eu colocava o som daquele bar, fechava as portas
daquele bar, eu coordenava a faxina daquele bar... virei um dono de
bar porque ele foi meu parceiro durante cinco meses. Ele dizia para
mim a peça (se formos personificar o espaço), essa cena não pode
ser aqui. Você tem que entender as passagens, as possibilidades,
você não vai ter um palco com uma luz de contra necessária em
dado momento, mas como é que esse contra vem? Vem de uma luz
externa, da rua. Às vezes o ator estava iluminado pela luz do poste
que adentrava pela janela. Então, se relacionar, observar e ouvir o
espaço é um dos pontos iniciais (informação verbal)45.

A vivência, constituída como chave do processo para encenar no ambiente


não-teatral, se ocupa em perceber as linhas de força e energias presentes, os
hábitos e padrões instaurados ali, e também revela a capacidade de serem
alterados, agregados ou desafiados durante a construção do espetáculo. Nesta
conjuntura, acender um cigarro diante de uma janela aberta, que recebe a luz do
poste, torna-se um desafio estético que talvez busque ressignificar uma ordem do
cotidiano ou atualizar um hábito teatral.
Quando o diretor assume a criação baseada nas situações reais do espaço,
usando dos elementos da arquitetura local, com seus objetos e significantes, para
montar a narrativa, longe de prezar por uma atmosfera interessante ou representar
um símbolo, pretende evidenciar o próprio espaço material através dos vínculos
possíveis entre a realidade do Beco dos Artistas e as performatividades intrínsecas a
ele, capazes de serem exploradas pela encenação. Característica comum a vários
espetáculos que ocupam espaços não teatrais, como bem esclarece Silvia
Fernandes:

Este teatro de vivências e situações públicas não pretende,


evidentemente, representar alguma coisa que não esteja ali. Ao
contrário, a tentativa é de escapar do território específico da
reprodução da realidade para tentar a anexação dela. É perceptível,
nesse impulso de captura do real, o desejo dos criadores de levar o
público a confrontar-se com as coisas em estado bruto, seja por
colocá-los num espaço concreto, contaminado de imaginário próprio,
seja por misturar atores e não atores nas apresentações
(FERNANDES, 2013, p. 85).

45
Id., 2018.
129

Essas incorporações se estendem tanto no plano subjetivo, relacionado com


a percepção preexistente ao espetáculo teatral, como o plano material, visto que os
elementos que compõem o espaço, assumem, no processo criativo, ativações
teatrais que podem ampliar a compreensão sobre aquele espaço, impactando
diretamente na concepção do espetáculo, bem como, na atuação e recepção, que,
ao serem inseridos nesta estrutura, terão múltiplas perspectivas para guiar suas
experiências estéticas.
Desta maneira, quando em uso de um espaço em abandono, como no caso
do espetáculo Rebola, o procedimento criativo revela camadas subterrâneas, que ao
expor, animar, dar usos e sentidos a um espaço, desvela um manancial de
atravessamentos e referências que proporcionam resultados que podem
redimensionar os parâmetros daquele lugar.
Portanto, ao habitar artisticamente os lugares não-teatrais, muitas vezes sem
uso, como metodologia de criação, as peças geram uma ação inédita e o
redimensionam.

Figura 36 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação


de Thiago Romero.

A disposição do público, que faz parte da funcionalidade do lugar, está


totalmente envolvida dentro da estrutura da encenação, porque, nesta
proposta, o espaço cênico articula-se a partir das estruturas próprias do
ambiente ora ocupado pelo teatro. Para o frequentador do espaço, a
surpresa é a dramatização, não a realidade do ambiente. Discrepância que
a direção ressalta. Fonte: Andréa Magnoni.
130

Consequentemente, produzem não apenas um espaço alternativo para a


experiência teatral, mas “espaço tempo relacionais, lugares onde se elaboram
socialidades alternativas, modelos críticos, momentos de convívio construído
(BORRIAUD, 2009, p. 62), dado que a criação teatral nessa configuração espacial
desencadeia uma série de procedimentos singulares para abordar aquele lugar
(extra)ordinário, que culmina no conceito de site-specific.
Sendo assim, faz-se necessário observar algumas questões relacionadas ao
ambiente ocupado pelo teatro, como sua destinação, uso, história e memória, uma
vez que estas considerações permitem uma ampliação da ação teatral em relação à
dimensão urbana, no sentido de oferecer outras possibilidades de relacionamento
para os agentes da cena, que, por sua vez, interfere no cotidiano da cidade,
alterando momentaneamente as redes de percepção e imaginários ali existentes.

4.5 CENOGRAFIA: ANFITRIÃO FANTASMA

Uma vez assimilada a experiência espacial como laboratório cênico, o diretor


Thiago Romero nos faz refletir sobre o significado da cenografia no teatro site-
specific, ao apontar que, no seu entendimento, há diferenças conceituais e
processuais ao assumir esse ambiente vivo como espaço cênico.
No que concerne ao conceito, ele destaca que, por não pretender adotar o
espaço como signo ou sugestão de algum ambiente, mas um ambiente significante e
autorreferêncial (que ele, como o criador, se vale para produzir seu trabalho, ou
refletir através dele as questões pretendidas pela encenação), o espaço cênico
passa a ser envolto pela totalidade daquele ambiente, que é complexo e repleto de
citações históricas, sociais e pessoais.
Por outro lado, nota que em certos momentos da encenação pode
caracterizar parte desse ambiente para um determinado fim poético, ou para a
concretização de uma determinada cena, e, para tanto, se ocupa em construir uma
cenografia pretendendo suprir aquela demanda especifica.
Esta característica particular de perceber o espaço cênico pode ser
observada nas notas de Clifford Mclucas (1998), nas quais o autor apreende que no
teatro site-specific o espaço cênico se caracteriza a partir da coexistência e da
sobreposição de dois conjuntos básicos de arquitetura: a do lugar, que ele chamou
131

de “anfitrião” (aquilo que é do local); e a da cena, que ele chamou de “fantasma”


(aquilo que é temporariamente trazido ao local).
Nesta acepção, “o próprio local se torna um componente ativo na criação, que
em vez de um espaço neutro de exposição ou cenário metonímico para a ação
dramática, se torna um agente vivo da teatralidade” (PEARSON, 2010, p. 166 apud
BIRCH; TOMPKINS, 2012, p. 70). Em contrapartida, para se conformar como tal, é
necessário que os elementos da linguagem teatral habitem este espaço, mesmo que
temporariamente, para concretizar os intentos estéticos dos agentes criativos.
Neste cenário, o “anfitrião” e o “fantasma” podem ser funcionalmente
independentes e, significativamente, podem ter origens bem diferentes e ignorar a
presença um do outro. Porém, no teatro site-specific eles coexistem, mesmo que por
vezes sejam incompatíveis, pois o seu alinhamento (conceitual e espacial) se dá no
sentido de construir os jogos e dinâmicas que serão investigados e desenvolvidos
pela encenação.
Esta sobreposição, que revela a condição de inseparabilidade, constitui,
ainda, uma contaminação ou um estado em que não se diferem espaço histórico/
real e espaço cênico/ imaginário, pois ambos adquirem uma condição híbrida do
artifício teatral. Revelando, assim, novas relações entre a cena e o ambiente que é
articulado através da instalação de arquiteturas que refletem sua localização social,
política e histórica, bem como suas propriedades formais e as fusões que definem
seus contextos culturais.
Isso significa que, mesmo ao trabalhar fora de um edifício teatral
convencional, o diretor, em parceria com o cenógrafo, deve juntar uma série de
ingredientes de primeira classe, que podem ser utilizados de maneira flexível e
independente da situação, como se ele fosse um cozinheiro, trabalhando de dentro
para fora da produção teatral (HOWARD, 2015, p. 47).
Confirmando esse raciocínio, Thiago Romero explica que, ao optar pela saída
da caixa cênica, o espaço ganha contornos complexos e sua regulação passa por
negociações nem sempre costumeiras, e nem favoráveis para os criadores, devido
às dinâmicas próprias do local (constantes), que podem sobrepor à estrutura teatral
(temporária), enredando o espetáculo num permanente estado de atenção e escuta
que põe a linguagem teatral em risco.
132

O potencial risco, ao qual o diretor se refere, pode estar diretamente ligado


com a realidade material e funcional dos espaços ocupados como espaço cênico, no
qual o possível encontro entre as duas realidades – a do espetáculo (com suas
necessidades estéticas) e a do espaço (com suas próprias maneiras de organização
e relação) – põe em cheque algumas sugestões e formulações dentro do universo
da encenação, sobretudo quando a materialidade do lugar selecionado é, de
maneira tal, que impossibilita qualquer negociação com a ficção.

4.6 INTERFERÊNCIA DO REAL

Diante desta perspectiva, observa o diretor, se faz necessário perceber as


forças e convenções atuantes no espaço e dialogar com elas, não tentar bani-las em
favor do espetáculo, pois o risco pode ser traumático para todos os agentes da cena,
na medida em que o espaço condiciona o produto artístico e não pode ser apagado
pela ficção, afirma o diretor:

Estou no tempo real, num espaço real, construindo uma ficção que
tem que ter tons fortíssimos daquela realidade. Por mais que eu
esteja trabalhando com uma grande fábula, eu vou entender sempre
a realidade daqueles espaços, a história que aquele espaço tem. É
importante dizer isso, no Rebola eu não fui arbitrário, tinham muitas
vozes silenciadas e muitos lugares que eu precisava entender. [...] o
diretor tem que entender que está no espaço real, que está imbuído
de memórias, e que essas memórias não podem ser apagadas por
ele, pode, talvez, ser manipulada ou então ficcionalizada por uma
outra memória (informação verbal)46.

Neste relato, destacamos três aspectos:


a) a importância de conhecer o espaço (memórias e histórias);
b) a sincronia entre a realidade do espaço e os objetivos do criador;
c) a segurança de que o contexto do espaço será um atuante constante no
espetáculo.
Na fala de Romero, identifica-se, de maneira mais exata, como estes
“espaços vivos”, como denomina Schechner (1994), interferem na criação, já que
possuem uma carga vital, de vida real que, ao ser inserida na cena, interfere e
transforma o trabalho artístico. É, pois, “um espaço expandido, que inclui desde as
paredes, teto e piso, passando pelo imaginário construído sobre o lugar e a relação

46
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
133

entre atores e espectadores, no qual o espaço está envolvido ativamente em todos


os aspectos da representação” (SCHECHNER, 1994, p. 14).
Nesta compreensão, o lugar teatral, sendo um microespaço dentro de outro
ainda mais complexo - a cidade - carrega desta um contexto sociopolítico/ histórico
que não deve ser negligenciado na encenação, tendo em vista que tais referências,
em diálogo com as demandas do processo criativo, darão embasamento à proposta
cênica.
No capítulo “A irrupção do real”, do livro Práticas do Real na Cena
Contemporânea, José A. Sanchez Martínez (2007) fala em “anexação de realidade”,
termo estabelecido por Tadeusz Kantor. Para esse diretor, a preexistência de cada
elemento influenciava e modificava a cena e não poderia ser ignorada ou eliminada.
Ou seja, tudo que entrasse em cena deveria determinar o fazer “sem renunciar a sua
existência em benefício de uma realidade de segunda ordem [...] A preexistência dos
elementos cênicos não pode ser eliminada pela ilusão do texto ou da encenação”
(SANCHEZ MARTÍNEZ, 2007, p. 99).
De modo semelhante, para Kantor, devia-se utilizar a história por trás de cada
elemento em prol da encenação, deixando que suas peculiaridades pré-existentes
interferissem e fizessem parte do sentido do trabalho.
Em vista disso, os vestígios de funcionalidades, relações e memórias dos
espaços que são presentes e ausentes (arquitetura e contexto), permitem
compreender de que maneira as encenações site-specific se elaboram nestes
lugares repletos de reminiscências e fluxos, pois são formados por camadas
interconectadas por toda uma rede de citações, alusões, proeminências ou,
simplesmente, de rastros involuntários encontrados ou desencadeados que habitam
esse espaço.
Essa tensão entre a ficção e a realidade se estrutura como consequência de
uma visão que reconhece a teatralidade como produtora de uma realidade artificial
(construída) sob aquele ambiente adotado como espaço cênico, proporcionando,
igualmente, aberturas para que o espaço possa invadir a ordem teatral.
Tal ordenamento impacta diretamente no trabalho do ator e na participação
do público, aos serem os principais agentes deste embate entre o real e a realidade
cênica, que se consolida na expressão de uma experiência estética compartilhada,
mediada pelas intervenções da direção.
134

Por outro lado, é necessário prestar atenção ao eco dessa estrutura, “porque
por mais estimulante, encantador, nostálgico e atraente que um espaço possa ser,
não será bom se sua arquitetura trabalhar contra a produção planejada: pois, esses
problemas não desaparecerão” (HOWARD, 2015, p. 46).
Por ser uma organização de elementos, o espetáculo estará utilizando
artisticamente dos elementos do real como instrumento para a invenção de um novo
ordenamento do espaço, apontando, desta feita, para um paradoxo processual: o
espaço real como mote de criação muitas vezes precisa ser estetizado para dar
subsidio a ficção e passar a ser ambiente da peça, que para existir na linguagem
teatral, deve preservar as características do real daquele espaço.
Para André Carreira, o acontecimento teatral nesses moldes testa os limites
de um espaço habitado por convenções que não são as do teatro, e que estão a
serviço da funcionalidade e do jogo das ficções expandidas. Nesse contexto, diz o
autor: “o teatro que invade a cidade é uma presença inusitada; por isso, sempre
propõe novas formas de diálogos que podem deformar as práticas de uso do
espaço” (CARREIRA, 2017, p. 22).
Assentindo com este entendimento, Thiago Romero nos diz que as
dimensões reais do lugar selecionado como espaço cênico nas suas criações
podem, muitas vezes, se impor à ficção e ao trabalho de diretor:

No teatro concebido em um espaço não-teatral, temos que ir lidando


com outros meios e outras maneiras de entender a própria
arquitetura do espetáculo montado naquele espaço, que é vivo o
tempo inteiro, cada dia era uma novidade. Teve um dia que deu um
curto-circuito; no outro caia goteiras por conta da chuva (e tivemos
que refazer o telhado); noutra ocasião uma mulher, visivelmente
alcoolizada, invadiu a cena para brigar com um dos atores [...]
Podíamos estar confortáveis na caixa, que dá problema também,
podíamos estar tranquilos com um equipamento bom de iluminação,
etc., mas se você escolheu outro espaço, vai ter que lidar com a
realidade material dele (informação verbal)47.

4.7 EQUIPAGEM

Além de perceber o espaço de maneira global, que por si irá influenciar nos
arranjos dramatúrgicos, convenções e concepção da encenação (bem como na
atuação e recepção), o diretor chama nossa atenção para as demandas
operacionais desse espaço-motor quando o teatro o ocupa, visto que os

47
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
135

equipamentos técnicos de que a linguagem teatral faz uso para se constituir como
tal, nem sempre adotarão os procedimentos, equipamentos e práticas costumeiras
utilizadas no teatro de espetáculo de sala.
Nas encenações site-specific, as demandas técnicas tentarão preservar as
características singulares do espaço, e partindo delas, descobrirão de que modo sua
estrutura poderá ser organizada para suprir as demandas de luz e som, por
exemplo, sem ponto de fuga para a visão geral da encenação naquele lugar,
preservando a singularidade de cada elemento do espaço, na construção do todo
artístico.
Neste caso, o modo de utilizar os equipamentos teatrais para produzir a ficção
muda de direcionamento, considerando, segundo o diretor, a possibilidade dos
equipamentos do próprio espaço serem ressignificados para compor e produzir a
ficção e os fins estéticos sem camuflagem. Por exemplo: o iluminador que fez a luz
do Rebola não podia fazer uma luz espetacular instalando refletores ao redor do
espaço, teve que lidar com os equipamentos próprios daquele espaço que
pudessem suprir tais necessidades cênicas, partido das especificidades materiais
próprias que aquele espaço oferecia, nos explica Thiago Romero.
Esse entendimento é compartilhado por Guilherme Bonfanti, ao tratar da
concepção de luz do espetáculo O Livro de Jó, do coletivo Teatro da Vertigem, ao
apontar que:

Iniciei minha pesquisa pelos materiais do espaço, me debruçando so-


bre a construção artesanal e a ressignificação dos materiais
luminotécnicos hospitalares, que se transformavam em refletores.
Além de pesquisar os materiais, passei a interferir neles,
desmontando-os e adaptando-os para uma utilização teatral.
Aparelhos normalmente utilizados para ver radiografias, observar
detalhes em um doente ou operar, passam a iluminar a cena e fazer
a função de refletores (BONFANTI, 2015, p. 15).

Diante desta semelhança operacional, Romero perfaz outra observação


pertinente ao trabalho criativo no teatro site-specific, ao notar que quando o diretor
se propõe a criar uma peça em um espaço convencional, ele não se preocupa,
inicialmente, com o espaço, pois todos os equipamentos que a linguagem faz uso
para materializar-se como tal já estão lá, não representando uma preocupação da
direção. Neste espaço pode-se montar o cenário, caso haja; pode-se fazer algumas
adaptações espaciais, caso a sala de ensaio onde o espetáculo foi concebido seja
136

maior ou menor que a sala de apresentação; pode-se, ainda, montar o projeto de luz
e verificar o funcionamento do som. Todos os equipamentos já estão dados.
Entretanto, quando se vai para o site-specific, esses arranjos técnicos passam
a ser uma demanda da direção, já que todos os aparelhamentos têm que ser
dispostos em diálogo com a realidade do espaço ocupado pelo teatro, como observa
o diretor na entrevista realizada para essa pesquisa:

Quando você vai para outro espaço, tem que repensar toda a relação
do teatro com o espaço e reconfigurar todos os equipamentos
teatrais em função e diálogo com o espaço. Talvez eu não pense
muito no espaço quando eu estou dentro do teatro. Por outro lado,
nos espaços que eu escolhi, quando saí da caixa cênica, sem todos
aqueles equipamentos, notei que esse novo espaço tinha que ser o
primeiro lugar com o qual eu precisava ter intimidade para descobrir
como instalar o teatro ali48.

É interessante observar como os arranjos espaciais selecionados para


compor o espetáculo Rebola, pelo ponto de vista deste encenador, estão, de algum
modo, fundamentados na subordinação dos elementos da produção ao espaço
selecionado, que integrados de modo a dialogar com as especificidades daquele
lugar, desencadeiam um processo intenso de investigação de arranjos técnicos,
materiais e assimilações, que tem por objetivo preservar as experiências sensoriais
circunscritas àquele local, sem que haja fuga na perspectiva defendida pela
encenação, que ocorreria, por exemplo, caso fossem instalados equipamentos
habitualmente usados no teatro: varas de luz, refletores, filtros, lentes, gobos, etc.

4.8 ESPECTADOR TRAGADO

Consequentemente, tal quais as proposições de Artaud, que entende que o


espaço deve ser concebido para proporcionar aos espectadores modos de
percepção múltiplos, sugerindo a busca de um acontecimento teatral que se realiza
através de um ambiente que deflagre as relações interpessoais do ser da cena e do
sujeito da plateia; na criação do espetáculo Rebola, essa realidade é bastante
evidente e consciente por parte do diretor, como podemos notar na imagem abaixo,
quando ele provoca os atores e público, imersos naquele ambiente, a resolverem
uma questão da cena.

48
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
137

Romero compreende que, assim como ele teve que habitar o espaço para
perceber e assimilar as particularidades inerentes àquele lugar, o espectador
também deve ser tragado pelas mesmas referências e imaginários. Para ele, se a
obra é uma coisa no espaço teatral e fora dele é outra coisa, com o espectador vai
ser a mesma coisa. Ele vai ser atravessado por aquele espaço, mesmo que o diretor
não pense nisso. “Quando falo em espaço, não falo apenas no espaço de dentro,
falo do espaço como um todo”, afirma Romero, completando que é inevitável não
perceber as diversas camadas e imaginários que compõem seu espaço cênico.
Esta observação do diretor nos remete aos conceitos de Grotowski e sua
compreensão acerca da relação entre o diretor teatral e o espectador, que é mais
íntima do que se possa imaginar à primeira vista, uma vez que, no seu
entendimento, o diretor teatral é, antes de tudo, um espectador por profissão, aquele
que olha, deixa-se afetar pelos agentes criativos, e, em seguida, organiza toda a
estrutura para que outros espectadores possam colher as impressões e sensações
propostas por aquela equipe, capitaneada pelos atores. Nas palavras de Grotowski:

O diretor é alguém que ensina aos outros algo que ele mesmo não
sabe fazer. Mas, se souber de fato, poderá tornar-se criativo: Eu não
sei fazer isso, sou, no entanto, um espectador. (...) Um dos
problemas cruciais da profissão de espectador, ou seja, do diretor
que olha, é saber dirigir a sua atenção e também a dos outros
espectadores que irão chegar (GROTOWSKI, 1984, p. 11).

Tendo em mente essa consciência, e a certeza de que o espaço onde esse


encontro entre atores e público se dá modifica o processo de criação e fruição do
espetáculo, Romero nos esclarece que nas suas encenações busca inserir o
espectador dentro de uma estrutura multifacetada, onde ele possa sentir a peça
através da própria percepção de habitar aquele lugar, visando proporcionar uma
experiência distinta daquela que o espectador poderia encontrar no teatro de
espetáculo de sala, sem a qual, para ele, não faria sentido deslocar o espectador do
seu lugar habitual confortável e climatizado.
Ao testar as operações ambientais de uma experiência cênica e concluir que
elas atuam sobre a audiência e sobre os atores de forma simultânea, Schechner, em
O Teatro Ambiental, ofereceu instrumentos para a observação do fenômeno teatral
como uma complexa rede de experimentações e de produção de sentidos. O
ambiente, nesta formulação, não é apenas espaço atuação, mas aquilo que resulta
da ocupação dos seus habitantes e suas relações.
138

Do mesmo modo, no teatro site-specific, são também relações ambientais as


práticas e invenções ficcionais, nas quais as ações dos atores e a presença dos
espectadores reorganizam temporariamente o espaço e configuram as estruturas
que compõem os arranjos da encenação.

Figura 37 – Imagem de Rebola (2016), texto de Daniel Arcades, encenação


de Thiago Romero.

O espaço cênico dessa encenação comporta na sua estrutura uma alta


capacidade de jogo entre os participantes, colocando os elementos do real
a serviço da arte e vice-versa, principalmente quando a estrutura dramática
da encenação se abre para comportar as sugestões, arranjos e
interferências empregadas pelos espectadores imersos naquele ambiente.
Fonte: Andrea Magnoni.

Espontaneamente, a concepção do teatro site-specific lança o espectador


numa zona multi-relacional que demanda a exploração e ocupação do público como
exigência para a obra se concretizar plenamente, e mais do que o simples
estar/presenciar, a encenação site-specific muitas vezes só acontece por meio das
inter-ações do público com a obra, que são díspares e únicas a cada sessão, e, por
essa razão, estabelecem seus próprios acessos cognitivos e relacionais, como
assegura Anne Ubersfeld:

[...] é o espectador, muito mais que o encenador, quem fabrica o


espetáculo, pois ele tem de recompor a totalidade da representação
em seus eixos, o vertical e o horizontal ao mesmo tempo, sendo
obrigado não só a acompanhar uma história, uma fábula (eixo
horizontal), mas também a recompor a cada momento a figura total
de todos os signos que cooperam na representação. Ele é forçado a
139

envolver-se no espetáculo (identificação) e a afastar-se dele


(distanciamento). Não há, é certo, outra atividade que exija
semelhante investimento intelectual e psíquico. Daí advém, sem
dúvida, o caráter insubstituível do teatro e sua permanência em
sociedades tão diferentes e sob formas tão variadas (UBERSFELD
2005, p. 20).

Conforme a encenação, essa perspectiva lança os espectadores naquela


zona relacional que Jacques Rancière, em seu livro O Espectador Emancipado,
reconhece como autônoma, quando o teatro se abre em possibilidades e oferece a
cada espectador a prerrogativa de ter sua própria relação, percepção e leitura
particular daquele evento cênico.
Portanto, a presença do ambiente no interior dessas propostas cênicas site-
specific, ou a dinâmica gerada por ele, contribui não somente para a comunicação,
mas, igualmente, revela procedimentos criativos que fazem parte de aspectos
intrínsecos ao espaço, onde os artistas exploram não apenas a localização, mas,
especialmente, os contextos, como acontece no espetáculo Rebola, que por meio
das intervenções do diretor (o espectador por profissão), aponta caminhos que irão
conduzir a experiência daquele público convidado.

4.9 PRODUÇÃO E VEICULAÇÃO

Afora os atravessamentos do ambiente na criação e fruição, Thiago Romero


observa que a coordenação e produção dos seus trabalhos cênicos foram pelo
mesmo caminho dos agentes criativos, pois os produtores tiveram que aprender a
lidar com as demandas específicas de cada espaço e reorganizar o modelo de
financiamento, modo de veiculação e circulação do espetáculo a partir delas, que,
segundo o diretor, não cabiam nos mesmos processos largamente praticados no
teatro de espetáculo de sala, e pontua:

As especificidades do Rebola eram completamente diferentes das


especificidades de um espetáculo no teatro, e isso é custoso. Ainda
mais quando se tem que levar público, divulgar, vender. Eu tive sorte
das minhas experiências serem em lugares acessíveis, mas ainda
assim é caro, mesmo simples não cabe uma lotação de um teatro. A
depender do espaço, você faz para 10, 15 pessoas e o produtor tem
que ser sensível e pensar como vai gerir isso. Porque as estratégias
de marketing e divulgação tem que se dar conta disso, você não está
no teatro convencional, então tem que pensar qual será essa
140

divulgação, qual o apelo que vai ter, como o público vai chegar ao
espaço49.

Essa demanda operacional da produção executiva do espetáculo nos remete


diretamente para outras questões: sendo o teatro site-specific resultante do
processo criativo e investigativo naquele espaço não-teatral, onde a peça foi
originada e desenvolvida, é possível fazer mais de uma temporada e/ou sair em
circulação com o espetáculo mantendo os elos vinculantes do espaço que
constituem aquele trabalho?
Na experiência de Thiago Romero, relatada em entrevista para esse trabalho,
o diretor explica que a permanência do espetáculo em cartaz por mais de uma
temporada é quase nula porque, com a saída do teatro, o lugar volta às atividades
cotidianas, nem sempre dispostas a abrigar outra vez as ordens teatrais. Quando
não, o custo operacional de voltar a ocupar aquele espaço é muito alto. Ciente
dessa realidade, Romero assume que o espetáculo Rebola foi criado para morrer ao
final da temporada.
Tentando pontuar essa questão, Fiona Wilkie (2004) explica que neste gênero
teatral alguns criadores reivindicam aquilo que há de único no espaço, mais do que
às especificidades (que podem ser comuns a vários locais), e por esse motivo,
recorrem ao adjetivo "exclusivo" para destacar as características singulares daquele
espaço selecionado, sem o qual o trabalho artístico se esgota.
Por conseguinte, para fazer uma peça verdadeiramente site-specific, a autora
entende que a obra tenha que estar totalmente vinculada ao seu espaço, tanto em
seu conteúdo quanto na forma, quando o próprio espaço é um objeto da criação,
caso contrário, se for móvel, o trabalho assumirá esse espaço como meio.
Refutando o maniqueísmo dessa afirmação, a própria autora observa que
existem espetáculos que são totalmente site-specific (quando as camadas do
espaço são reveladas através de referências históricas, contextos sociais ou
biográficos), que unem a encenação ao lugar em termos indissociáveis; e, por outro
lado, existem diversos espetáculos que fazem uso de um conceito espacial e
utilizam um espaço genérico ou espaços simpáticos aos propósitos da encenação.

49
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
141

Essa compreensão é compartilhada por Romero, quando o diretor nota que é


possível fazer apresentações em outros espaços afins, desde que o projeto inicial se
estabeleça tendo em vista essa perspectiva.
Portanto, há duas maneiras de lidar com essa questão:

Alguns projetos são totalmente específicos do local, ou seja, eles não


poderiam ocorrer em nenhum outro lugar sem perder o elo de
significado e conexão; enquanto outros projetos mais flexíveis podem
trabalhar em torno de um certo senso de lugar, isto é, uma atmosfera
ou conceito no centro do projeto (WILKIE, 2004, p. 53).

Diante desta perspectiva, a autora destaca que grande parte dos criadores
desse gênero teatral assinala para uma sensação de esvaziamento, quando as
peças são adaptadas para lugares similares ao original. Contudo, quando podem ser
deslocados, possibilitam que o espetáculo possa circular por espaços afins
(adaptados), desde que obedeça a uma lógica conceitual que anima a encenação.
Na prática, isso significa que a concepção do espetáculo esteja a par dos
atravessamentos e interconexões possíveis.
Na vivência do espetáculo Rebola, Thiago Romero nos revela que, a convite
de festivais e insistência da equipe, o espetáculo foi adaptado para as configurações
da sala de espetáculos, fator que modificou completamente a estrutura, dinâmica e
relações da peça com o espaço, e a sensação de esvaziamento conceitual da obra
tornou-se evidente para ele, ao perceber que a proposta se dissolveu diante da
ausência daquilo que o concebeu, o espaço.
Nas suas palavras, Thiago completa: “Perde tudo, perde o espaço, acaba
com a conexão com a realidade, passa a ser apenas teatro dentro da convenção do
teatro convencional, onde cada atuante tem o seu espaço preestabelecido”
(informação verbal)50. Afirma ainda que se perde a experiência de habitar o
ambiente que gerou o trabalho.

4.10 VARIAÇÃO OPERACIONAL

O relato de Romero, observado ao longo desse capítulo, nos leva a


considerar haver uma mudança de pensamento sobre o espaço cênico e o uso que
o diretor faz no ato de conceber o espetáculo, algo semelhante ao que ocorreu na
virada do século XX, quando a compreensão de cenário mudou substancialmente.

50
ROMERO, 2018. (Apêndice C).
142

Até meados do século XIX, um cenário poderia perfeitamente ambientar


várias peças sem que isso reverberasse como uma falha conceitual, pois a “própria
origem do termo (em francês, décor: pintura, ornamentação, embelezamento) indica,
suficientemente, a concepção mimética e pictórica da infraestrutura decorativa”
(PAVIS, 2007, p. 42).
Contudo, com a modernização da linguagem, entendeu-se as necessidades
cenográficas únicas para encenações únicas, ocasião em que o espaço cênico
passou a integrar o conjunto da encenação como significante, não ilustração. “A
cenografia é, assim, o resultado de uma concepção semiológica da encenação”
(PAVIS, loc. cit.).
Na prática do teatro site-specific essa realidade é ainda mais aprofundada,
pois, não podendo transferir os espaços e seus contextos para qualquer local que
comporte um espetáculo teatral, a peça, tal qual foi concebida, está, muitas vezes,
destinada a ser um experimento não reprisado.
Consequentemente, essa maneira de conceber o espetáculo leva o diretor a
elaborar novos procedimentos para criar o conceito operacional da encenação, que
vai estar arraigada diretamente ao espaço original, sem o qual, toda sua estrutura
central é modificada, como nota Thiago Romero:

criar no espaço não-teatral exige outro pensamento porque tem


várias questões estéticas e políticas envolvidas na pesquisa daquele
espaço, e o encenador tem que estar consciente disso quando
escolhe outro lugar para o teatro. Esse lugar tem que ser escutado,
tem que ser investigado, e essa pesquisa vai interferir na sua
encenação. A escolha espacial vai ditar sua encenação, porque ali
você está lidando com um lugar real, ali você tá lidando com os
espaços que precisam ser vistos e apreciados antes e durante a
criação. O diretor precisa saber que aquele espaço vai interferir na
atuação e na relação com o espectador (informação verbal)51.

As considerações de Romero sobre o ambiente e suas circunstâncias,


demonstram um entendimento explicito acerca das forças que regem esse espaço.
Certo de que, sem se adequar às referências próprias do lugar (histórica, social,
relacional), o diretor pode incorrer no erro de colocar sua proposta cênica em um
abismo semântico.

51
Id., 2018.
143

Por outro lado, quando o criador entende que aquele espaço propicia uma
abertura para que novos significantes sejam descobertos e revelados na encenação,
passa a considerá-lo como preponderante ao jogo cênico pretendido.
Consequentemente, Romero entende que o espaço é promotor de mudanças
importantes no processo de criação do espetáculo e no trabalho operacional do
diretor, que conduz a experiência artística naquele ambiente aquém das convenções
teatrais hegemônicas:

Como eu optei por um espaço fora dos padrões das salas teatrais, a
primeira parte do meu trabalho consiste em entender o espaço (ouvir,
habitar, me relacionar). Então, eu não estava preocupado com a
dramaturgia, não estava preocupado com o personagem, queria que
o ator vivesse aquele lugar. Aí você faz outro tipo de processo, no
sentido de habitar e adaptar a linguagem a tal espaço. Quando você
trabalha para a caixa cênica, ela tem outra mecânica, de repente
você começa pelo texto, e por não ter o espaço cênico, como é de
praxe, você risca uma marca no chão da sala de ensaio. Aqui, não
acontece isso, porque eu tenho o espaço cênico desde o início do
processo e posso criar a partir dele (informação verbal)52.

Nesta exposição de Romero, podemos notar que os procedimentos adotados


por ele para construir as conexões necessárias para tornar aquele espaço ordinário
(Beco dos Artistas) num espaço cênico, sujeitaram o seu trabalho criativo à vivência
prática com aquele ambiente, da qual emergiram grande parte dos signos, narrativas
e construções estéticas que resultaram no espetáculo Rebola.
Entrevendo essas considerações, podemos compreender que conceber uma
encenação site-specific seja, portanto, estabelecer um jogo de correspondências e
justaposições criativas partindo do espaço cênico como força-motriz da encenação,
que se estabelece a partir do vínculo estreito entre lugar teatral, espaço cênico e
ações cênicas.
Neste ponto de vista, podemos destacar alguns parâmetros a serem
considerados na abordagem de Thiago Romero ao trabalhar com o site-specific:

a) decisão - o diretor decide ocupar aquele ambiente com a linguagem teatral;


b) exploração - o diretor imerge no espaço para perceber as relações deste
com seu entorno, tentando encontrar as performatividades que lhe são
inerentes;

52
Id., 2018.
144

c) correlação - o diretor relaciona as características do lugar com os desejos


ficcionais;
d) investigação - o diretor assume o lugar como laboratório teatral,
envolvendo todos os outros agentes cênicos na investigação ambiental.

Na orientação deste processo criativo, diferentemente do que ocorre no teatro


de sala (que busca sempre a neutralidade da sala de ensaio), o espaço cênico
estará presente desde o início do processo criativo, e permanece ativando o
processo criativo durante todas as outras etapas, inclusive na apresentação do
trabalho, impactando diretamente na veiculação do espetáculo, que muitas vezes
dependerá do espaço onde foi gerado para fazer sentido.
No esquema abaixo, podemos notar nitidamente que os vetores apontam
para esse entendimento, uma vez que a concepção e todas as etapas de criação do
espetáculo Rebola foram desenvolvidas dentro da estrutura na qual o bar estava
inserido, ativando, assim, os processos criativos e escolhas da direção.

Fluxograma 3 – Estrutura de criação do espetáculo Rebola.

Concepção
Cenografia
BECO DOS ARTISTAS Dramaturgia BAR
Luz/som
Ações cênicas

Fonte: Elaborado pelo autor.

Em razão disso, ressaltamos, na prática de Thiago Romero, a importância do


criador em saber o que cabe em cada espaço cênico, o que o constitui e sob quais
circunstâncias o lugar estará fundamentado para servir à encenação.
Assim, se no teatro de sala faz-se necessário conhecer o espaço (dimensões,
projeções e os equipamentos) para conceber a encenação, no teatro site-specific,
como verificado na experiência de Romero, pudemos ver que além de compreender
os perímetros do espaço, o diretor se mostrou atento para as camadas, nem sempre
visíveis, que constituem esse espaço, das quais ele se apropriou não apenas para
ressignificar o teatro naquele lugar, mas para espelhar o próprio lugar no teatro, a
145

ponto de condicionar todos os processos de criação, e, também, de fruição, ao local


encenado.
Diante desse quadro, Romero apresenta suas considerações acerca da
criação no teatro site-specific, ao ponderar que trabalhar no site-specific e na sala de
ensaios (visando a apresentação no palco dos edifícios teatrais) são experiências
completamente diferentes, pois:

quando você opta por fazer um espetáculo fora da sala, é outro modo
de estudo, por mais que sua poética, estética, filosofia, posição
política continue a mesma, você tem um outro atuante que é o
espaço e a memória daquele espaço. São realidades que
possivelmente irão condicionar o seu trabalho criativo, como
aconteceu comigo na criação do Rebola (informação verbal)53.

Consequentemente, verificamos na prática desse diretor teatral que o


conceito operacional por trás do espetáculo Rebola condicionou o seu trabalho a
uma permanente busca relacional entre as características inerentes àquele espaço
(história, localização, memórias), com os intentos da criação teatral, que desejava
discutir o pertencimento e a identidade gay nos espaços urbanos, porém, acabou
por documentar, através do teatro, as narrativas sociopolíticas e emocionais vividas
no Beco dos Artistas.
Neste prisma, conseguimos dizer que o espaço contou sua própria história
por intermédio da linguagem teatral? Não necessariamente.
Todavia, podemos afirmar que o espaço foi o núcleo central dessa criação,
dado que o espaço cênico na encenação do Rebola não deve ser examinado como
mais um elemento da encenação, mas, como o mobilizador de todas as ações
criativas do espetáculo. Incluindo, nesta afirmação, os processos de trabalho do
encenador, ao conceber, relacionar, coordenar e assimilar o conjunto do espaço
habitado, ora assumido como espaço da encenação.

53
Id., 2018.
146

5 A DIREÇÃO HABITA E SE DESLOCA EM FUNÇÃO DO ESPAÇO

As estratégias e formulações decorrentes do local praticado, e das referências


que lhe são inerentes, conduzem a direção teatral para um lugar onde as garantias e
procedimentos adquiridos de experiências anteriores nem sempre poderão ser
usados como parâmetros em novas composições do teatro site-specific, porque,
cada espaço é composto por suas próprias forças e atravessamentos, com funções
e significados inerentes ao ambiente no qual está inserido.
Por essa razão, o diálogo direto entre o desejo do criador e as circunstâncias
do espaço é fundamental para a concepção e desenvolvimento de um espetáculo
que se quer próprio daquele local onde foi criado, como observamos nos
procedimentos adotados por Thiago Romero, para a criação do espetáculo Rebola.
Neste espetáculo destacamos os movimentos empreendidos pelo diretor para
consumar sua encenação naquele espaço, que influenciou, mormente, no
andamento e nas decisões de todo o trabalho cênico.
Porém, o protagonismo do espaço nem sempre é profícuo para a encenação,
pois ela corre o risco de se perder dentro das estruturas do local e passar a ser tão
somente um lugar incomum para a apresentação e fruição do espetáculo.
Todavia, quando o sitio é encarado como mais um atuante dentro da
encenação e observado sob os vetores que o animam, torna-se uma ferramenta
essencial para compor o evento cênico.
Nessa perspectiva criativa, o trabalho da direção teatral consiste em perceber,
de maneira dialética, as estruturas que apoiam tais espaços. E isso implica a ação
criativa da direção num profundo diálogo e constantes reagrupamentos dos objetivos
da encenação com as funcionalidades e contextos presentes em cada ambiente que
será utilizado com espaço cênico.
Travando assim, um duelo funcional e estético com o ambiente teatralizado,
para que o mesmo não detenha o protagonismo, mas, por outro lado, possibilite um
trânsito fluido para os elementos da cena, como observaremos neste capítulo, nos
apontamentos processuais dos trabalhos cênicos realizados de Diego Pinheiro.
147

5.1 DIEGO PINHEIRO E A TEMPORALIDADE DOS ESPAÇOS

Eu venho de um lugar alagado mesmo, onde a


água estava sempre no nosso cotidiano, era ali
na baía da península itapagipana, água das
palafitas. Tanto, que é outro termo que eu uso
para a memória afrodiaspórica que é água
parada. Nas culturas da memória afrodiaspórica,
água parada está muito relacionada a água da
criação, essa água está parada para você dar
movimento criativo para ela, ou seja, não é uma
água morta. Então a água é preponderante, e
esses espaços cenográficos são muito ligados a
ideia de casa, de ambiente familiar (...) Chamei
essa poética de investigação de “estética para
um não-tempo”, que significa experimentar uma
conceptualização do tempo enquanto consciência
da carne, da memória. Nesse caso, da memória
desse corpo afrodiaspórico. (Diego Pinheiro)54

Diego Pinheiro é uma artista da cidade de Salvador que ingressou nas artes
muito cedo, inicialmente pela escrita, quando ainda nos primeiros anos escolar
escrevia pequenas narrativas dramáticas autobiográficas; mais tarde teve contato
com técnicas das artes plásticas e na adolescência enveredou no caminho da
música. Porém, ao participar de uma oficina de teatro, percebeu que poderia juntar
todas as artes e compor trabalhos artísticos multidisciplinares. E por essa razão,
ingressou e se graduou no curso de artes cênicas da Universidade Federal da
Bahia, não sem antes compreender e se insurgir contra as convenções da caixa
cênica.
Seu primeiro gesto como artista da cena foi compor um espetáculo com o
coletivo Teatro Base, do qual foi fundador e diretor artístico. Nesta empreitada,
desejava investigar outras potencialidades artísticas para além das dramaturgias
54
Diego Pinheiro em entrevista realizada para essa tese. O documento pode ser conferido na integra
no apêndice B.
148

preexistentes e dos espaços “próprios’’ à linguagem teatral, fundamentando suas


investigações no trabalho autoral de cada interprete e no espaço não-teatral como
plataforma de materialização dos seus anseios artísticos.
Neste intuito, ocupou um casarão do centro histórico da cidade para ali
desenvolver uma encenação, tendo por base as reminiscências pessoais acerca das
várias casas de alvenaria que ele frequentou quando jovem, que se contrapunham
com a realidade das palafitas da comunidade de Alagados de Itapagipe (subúrbio de
Salvador), onde o diretor nasceu e cresceu.
Desta dualidade espacial/social/filosófica, o diretor encontrou as motivações
necessárias para construir a sua poética artística, partido da ideia de casa como
disparador criativo. Ambiente no qual a linguagem teatral poderia ser configurada e
problematizada.
A experiência de Diego Pinheiro com espetáculos em espaços não
convencionais pode ser observada em pelo menos três espetáculos concebidos e
encenados por ele: Arbítrio55 (2011), criado e encenado em um casarão da década
de 1930; Oroboro56 (2013), desenvolvido e encenado em um prédio dos anos 20, e
Quaseilhas (2018), criado e encenado em um barracão de madeira, onde o diretor
reproduz o ambiente das palafitas.
Neste estudo consideramos apenas os dois primeiros trabalhos como teatro
site-specific, visto que o terceiro, Quaseilhas, é concebido como instalação cênica,
como o próprio diretor nomina, que se conforma a partir de um espaço autônomo do
lugar que o inspira, as casas de palafitas, sendo, portanto, uma recriação
cenográfica.
Apesar disso, compreendemos que os princípios que norteiam este trabalho
estão dentro do grande leque da prática cênica em lugares não-teatrais, que é um
dos pilares da pesquisa pessoal desse encenador, e, por essa razão, também
vamos considerar as citações do diretor acerca desta encenação.

55
Ficha técnica: Dramaturgia: Barbara Pessoa; Encenação: Diego Pinheiro; Direção de Produção:
Graça Meurray; Produção: Fábio Borba e Larissa Raton; Direção Musical: Thales Branche; Figurino:
Liz Novaes; Desenho de Luz: Marcos Fernandes; Direção Audiovisual: Matheus Vianna; Elenco: Alex
Barreto, Laís Machado, Laura Sarpa, Luíza Muricy, Naia Pratta e Yuri Tripodi.
56
Ficha técnica: Direção: Diego Pinheiro; Elenco: Diego Alcântara, Laís Machado, Brisa Morena, Lara
Duarte, Naia Pratta.
149

5.2 PROPOSTAS CÊNICAS: ARBÍTRIO

A criação do espetáculo Arbítrio surgiu da necessidade do diretor em


investigar o cárcere privado e as reflexões decorrentes dessa realidade para a
formação do indivíduo na sociedade contemporânea.
Em sua investigação, o diretor objetiva trazer à tona ponderações acerca das
microcomunidades contidas no entorno dos grandes centros urbanos, ressaltando os
valores sociopolíticos hegemônicos que condicionam as escolhas individuais e
coletivas.
Partindo desta formulação, propôs desenvolver a narrativa do espetáculo
Arbítrio, baseada numa fábula sobre uma família composta por uma mãe e seus
quatro filhos, que cresceram aprisionados dentro de uma casa, sob o comando da
matriarca religiosa.
Neste experimento cênico, o espaço selecionado para tratar tal questão
consistiu em um casarão dos anos 30, localizado no bairro dois de julho, centro da
cidade de Salvador, que compartilha território com uma vizinhança permeada por
violência, tráfico de drogas e igrejas católicas, reflexos das desigualdades sociais
que, categoricamente, compõem um arquétipo dos poderes e valores presentes
naquela comunidade, onde as forças se impõem e dificultam que livres escolhas
sejam assumidas.
Na imagem abaixo (figura 38), onde são contrapostos o exterior e o interior da
arquitetura (onde vemos uma atriz do espetáculo), podemos notar algumas
metáforas que caracterizam o tema tratado no espetáculo: liberdade e claustro,
envelhecimento e jovialidade, espelhados, sobretudo, nas janelas e portas do
casarão mal conservado, que mais parece um mausoléu, ante o ambiente de
formação de desenvolvimento psicossocial familiar que a casa deseja ter.
Para esta encenação, além do espaço cerrado que confina os corpos e
condicionam o desenvolvimento, mediado pelos desígnios religiosos e sociais do
seu entorno, o diretor explora o tempo como materialidade cênica, que, enquanto
expande as expectativas de mudança, delimita as fronteiras entre o desejo de
progresso e a realidade opressiva que o tempo transcorrido tenta impor.
150

Figura 38 – Imagem da “casa preta” utilizada na encenação de Arbitrio (2011), texto e


direção de Diego Pinheiro.

Vemos a contraposição do espaço interior e exterior da casa utilizada como espaço cênico.
Lugar escolhido pela sua localização e arquitetura, não por padrões estéticos ou funções
teatrais, neste espaço os espectadores são confrontados com o tempo transcorrido na
estrutura da arquitetura que condiciona os personagens e a fruição. Fonte: Izabella
Valverde.

Na imagem subsequente (figura 39), podemos ver uma das “cenas-modelo”


dessa encenação, que mostra de forma dualística a maneira como os atores se
relacionam com tempo, ora como marco temporal, ora como rito religioso, que se
confundem e se nutrem de maneira orgânica no enredo da encenação e nos
conflitos inerentes à inevitável passagem do tempo.
A temporalidade, neste espetáculo, está presente em cada passagem da
peça, em cada composição cênica, em cada construção dos personagens e,
igualmente, na concepção espacial, que especula a passagem e intempéries dos
anos transcorridos, cravados nas paredes e estruturas que desgastam o casarão e
tudo que está no seu interior, culminando com o isolamento e abandono que
marcam a trajetória de evolução do espetáculo enquanto as ações cênicas se
desenvolvem.
Nesta proposta, a encenação respira, se estrutura e se materializa através
das inscrições e vestígios registrados nas paredes carcomidas, nas janelas
desgastadas e no assoalho despregado, que faz com que a comunicação entre
151

atores e espaço amplie as ações cênicas exploradas naquele ambiente, baseada na


interação desses dois atuantes.

Figura 39 – Imagem de Arbítrio (2011), texto e direção de Diego Pinheiro.

Nestes espetáculo o espaço cênico passa a fazer parte da ações cênicas da peça no
instante em que os atores se relacionam com o tempo impresso nas paredes
carcomidas, portas com dobradiças enferrujadas e assoalho solto que emitem sons, e
na peça, passam a se comunicar com os personagens. Fonte: Izabella Valverde.

5.3 PROPOSTAS CÊNICAS: OROBORO

Já para a encenação de Oroboro, o diretor optou por um espaço que pudesse


oferecer aos criadores a possibilidade de investigar os microespaços individuais
contidos no espaço compartilhado de uma casa, criando uma obra cênica
fragmentada não apenas na dramaturgia, mas, também, entre os intérpretes, pois
cada um tinha o seu espaço de atuação particular dentro daquele ambiente, onde
buscavam desenvolver narrativas pessoais que dialogassem com o coletivo e o
íntimo daquele lugar.
Tal proposta convidava o público para vivenciar uma exposição de
performances, uma após a outra, completando a experiência com a saída da casa e
notando que as referências e circunstâncias próprias daquele espaço, sua localidade
e históricos, foram exploradas pela direção para conceituar a encenação e recepção
da peça.
152

Na imagem seguinte (figura 40), vemos os atores sitiados em pequenos


espaços, enquanto o público, ao redor, observa o desenvolver das ações de cada
uma das cenas com características específicas e modos de fruição completamente
distintos.
Nesta, podemos observar dois momentos diferentes da peça: na imagem da
esquerda, se destacam os espectadores em volta de uma cama, enquanto uma atriz
articula a sua narrativa explorando o estranhamento de instalar o quarto (lugar
íntimo) em plena sala de estar.
Ao mesmo tempo, na imagem da direita, vemos um ator em um quarto sem
qualquer estrutura que o caracterize como tal, restando ao intérprete construir o
espaço por meio de imagens alusivas que mostram a inadequação do seu corpo
naquela casa. Revelando, assim, o desconforto íntimo daquilo que chamamos de lar.

Figura 40 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.

Os espaços compartilhados entre atores e público tem divisão apenas dentro da estrutura dramática
da peça, visto que a organização espacial da encenação deixa em aberto onde o público deve se
localizar, cabendo ao espectador a escolher seu espaço. Fonte: João Pedro Matos.

Essa dualidade pode ser observada, ainda, na imagem acima (figura 40), na
qual vemos uma atriz em cena, isolada dentro de um cubículo de vidro, que na
verdade é a varanda externa da casa, com o público no interior a observar e se
relacionar com a atriz à distância, enquanto a atuante expõe a inconformidade de
não poder gerar filhos, nem de formar uma família aos padrões biológicos e
socialmente hegemônicos na nossa sociedade, culminando, assim, com a renúncia
total de habitar a casa.
A proposta ambiental desta encenação está, do mesmo modo, fundamentada
no estranhamento das relações formais praticadas em casa, que, culturalmente, é
153

entendida como um espaço de acolhimento e conforto. Todavia, esconde nos


microespaços os desajustes e inadequações (mote principal da encenação).

Figura 41 – Imagem de Oroboro (2013), texto e direção de Diego Pinheiro.

Quando uma área do espaço é reservada apenas para os atores, esse espaço será
selecionado para potencializar os intentos da direção, que por meio da relação
estabelecida entre os atores e o espaço, poderá construir narrativas e dinâmicas
importantes para o conjunto da encenação. Fonte: João Pedro Matos.

Em tal proposta, o espaço funciona como a espécie de relicário, que guarda


nos seus cômodos o incômodo de se saber deslocado dos ambientes padrões, que,
a princípio, deveria proporcionar bem-estar e segurança. Ante a contradição, a
inadequação espacial, como proposta da encenação, o espaço e a forma de
organizá-lo tornam-se cruciais para incorporar as fisicalidades e investigações
tratadas pelos atores para materializar os intentos da concepção do espetáculo.

5.4 FORMAS DE HABITAR

Entretanto, o que há de particular em ambos os espaços para caracterizar as


encenações como sendo site-specific? As formas de o teatro habitar. Vejamos: no
processo investigativo dessas duas propostas cênicas, elencadas acima, vemos a
conjunção de “casa/lar” como tema comum nas escolhas estéticas do diretor ao
iniciar seus processos criativos pelo confronto do indivíduo com o microespaço
154

social “casa”, considerando as camadas e atravessamentos socioculturais que


regulam e configuram os relacionamentos em tais lugares.
Na compreensão de Diego Pinheiro, seus espetáculos são gerados para
locais onde se pode trazer à tona o ambiente da casa (único e indivisível do seu
contexto), que por si, proporcionam múltiplas experiências investigativas para todos
os agentes da cena, que podem desencadear diversas especulações acerca das
relações socioculturais e políticas.
Estas, por sua vez, irão impactar diretamente na recepção, ao pautar a
construção subjetiva do indivíduo em sociedade, espelhada na criação cênica.
Em cada proposta, o diretor busca ressaltar, na singularidade de cada
ambiente, as forças divergentes que compõem a complexidade de cada família em
cada espaço compartilhado. Problematizando, de tal modo, a pretensa unidade
formativa do individuo (moral e ética familiar), expondo, em especial, as forças
sociais que formam e deformam o ser.
Sendo assim, mais do que o tema, o espaço-casa, para esse diretor, torna-se
decisivo para traduzir o pensamento criativo das suas encenações, sob um jogo de
pertencimento e estranhamento que vincula a encenação ao espaço onde foi
gerado. Espaço no qual articulam-se e desdobram-se as investigações poéticas
desse diretor, que dialoga intimamente com a noção da casa como um espaço
verdadeiramente habitado.
O entendimento depreendido de Bachelard é compartilhado por Diego
Pinheiro na forma de conceber seus espetáculos, que em entrevista para essa
pesquisa (disponível no apêndice B) enfatiza, que, ao assumir um espaço não teatral
como possibilidade de criação cênica, admite este espaço a partir das relações que
podem ser suscitadas ali, e, partindo delas, delimita o horizonte investigativo das
suas encenações.
De tal maneira, destaca que cabe ao encenador inventar outras formas de
articular a linguagem teatral no espaço não convencional, ao compor obras site-
specific, pois estas terão relações inerentes aos espaços habitados, percorridos e
assimilados na criação cênica.
Apoiando-se nessa afirmação, Paulina Dagnino (2013) pondera:

As potencialidades e possibilidades criativas que se revelam num


espaço não convencional, são diferentes da que encontro numa sala
de teatro. Num palco, geralmente os elementos cenográficos que
155

fazem parte encenação, são aqueles que estão convocados a


participar da peça. Porém, quando o trabalho criativo se desenvolve
num espaço não convencional para teatro a natureza do trabalho
criativo demanda a aplicação de operações cênicas para os
performers desenvolverem e assim encenar (DAGNINO, 2013, p.
25).

Partindo dessas observações, o espaço se torna um dos pilares essenciais da


criação quando o diretor perceber que:

a) cada espaço determina uma maneira de articular a linguagem teatral e


construir os elementos próprios de cada encenação;
b) as casas, como espaço cênico, problematizam a origem da encenação, ao
possibilitar que tanto as fábulas como os signos e, até mesmo o modo de
construção de cenas, sejam realizados a partir do desenvolvimento
relacional que o coletivo cênico terá com cada ambiente;
c) o espaço irá influir no desenvolvimento da dramaturgia (quando houver um
texto prévio); na forma de conceber cada cena; e na maneira de produzir a
peça.
d) de cada escolha espacial, surgirá pertencimento ou estranhamento com o
desejo inicial da produção teatral;
e) cada espaço, com suas próprias estruturas físicas e contextos, definirá os
rumos do laboratório cênico ali instalado;
f) cada espaço-casa influenciará na relação que a obra cênica terá com o
público e na maneira de veicular o espetáculo.

Esse raciocínio, depreendido do relato de Diego Pinheiro, evidencia aquilo


que vimos no início deste trabalho, ao notarmos que na encenação site-specific o
local selecionado como espaço cênico provavelmente não será concebido como um
pano de fundo interessante e desinteressado no significado e construção do
espetáculo, nem, tampouco, uma ilustração/ambientação incomum para um texto
dramático, uma vez que o espaço se vincula à encenação por meio de processos
significantes que dos próprios espaços emergem, sejam eles narrativos, simbólicos,
políticos ou estruturais.
E, embora admita que cada espaço, para cada encenação, tenha suas
particularidades e formas de investigação cênica, o diretor ratifica um certo número
de princípios comuns nas suas atuações práticas, observando que, de modo geral,
156

inicialmente se submete a uma imersão solitária no espaço, antes mesmo que os


outros artistas e equipe de criação possam intervir:

Antes de começar qualquer processo criativo com a equipe de


montagem, eu passo um período sozinho no espaço. Por exemplo,
na casa preta, para Arbítrio, eu dormi lá durante um mês. Eu queria
absolver e entender aquele ambiente para conhecer às
potencialidades inerentes. Para Oroboro, a mesma coisa, embora
fosse outro sistema, eu pegava a chave e ficava perambulando pela
casa até tarde da noite. Em Quaseilhas, quando terminamos de
levantar o barracão, também fiquei lá sozinho (informação verbal)57.

Tal qual o procedimento adotado por Thiago Romero, como vimos no


subcapítulo anterior, Pinheiro nos revela a necessidade de explorar e vivenciar o
espaço antes da equipe de criação conhecer e se apropriar dele, objetivando, como
ele próprio sinaliza, descobrir as performatividades escondidas nos espaços, para,
em seguida, coordenar a apropriação cênica daquele lugar.
Essa postura se justifica a partir do entendimento do diretor de que todo
espaço tem uma performatividade tácita oculta, da qual deve reconhecer e se
apropriar para desenvolver exercícios de improvisação e jogos criativos de ocupação
do espaço escolhido, incorporados pelos atores, a fim de inventar as maneiras de o
teatro habitar aquele espaço.

5.5 MAPEAMENTO

Nesta acepção, admite que a imersão solitária inicial ajuda o diretor como a
bússola de um viajante que intercederá no itinerário da viagem, delimitando o norte e
as trajetórias, sem, contudo, levar em conta os encontros e “intercessores” da
trajetória, que serão decisivos para fabricar o sentido da viagem (no nosso
enquadramento, os contextos do espaço e a equipe de criação, que assumirão a
constituição da obra artística, bem como a inclusão do público).
Ainda que Diego Pinheiro admita haver semelhanças na função do diretor nos
procedimentos criativos mirando o edifício teatral e no site-specific, ressalta que na
segunda classificação, diferentemente dos parâmetros tradicionais, o início do
trabalho da direção ocorre sob o objetivo de mapear as zonas que poderão ser
exploradas pelos outros criadores durante a investigação que ocorrerá em seguida.

57
Entrevista concedida por PINHEIRO, Diego. Depoimento [mai. 2018]. Entrevistador: José Jackson
Silva. Salvador, 2018. Filmagem (120 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Apêndice B desta tese.
157

O contrário do que ocorre no espetáculo de sala, onde, de maneira geral, o diretor


fragmenta os processos de criação entre a equipe, projetando a encenação antes
dos ensaios. Plasmando, assim, a encenação que ocorrerá posteriormente.
A relação estabelecida por Pinheiro na concepção e orientação inicial do seu
trabalho perpassa, necessariamente, pelo encaminhamento de explorar, distinguir e
sentir cada fissura do espaço, para raciocinar e decidir como o processo inicial do
espetáculo vai se configurar a partir daquele ambiente previamente mapeado por
ele.
Além da coordenação das atividades coletivas dos criadores, o diretor afirma
que outra demanda para a direção site-specific é entender e regular esse espaço
para que ele possa passar a ser um agente da teatralidade, e isso, na sua
experiência, se dá quando a direção entende que o espaço, com suas próprias
dinâmicas e estruturas, será o ambiente da encenação, a “cenografia viva”, que
demanda uma consciência acerca das limitações e potencialidades cênicas capazes
de serem reguladas pela encenação. “Uma vez que tudo está no espaço, resta ao
diretor coordenar os experimentos”, explica.
Tal entendimento fica explicito quando traçamos um fluxograma da criação
dos dois espetáculos descritos, e vemos que a concepção e criação dos elementos
cênicos se desenvolveram por meio da investigação criativa do espaço, buscando
na sua estrutura as singularidades que fizeram a encenação despontar.

Fluxograma 4 – Estrutura de criação do espetáculo Arbítrio e Oroboro.

Ações
cênicas
CASA CONCEPÇÃO CASA
cenografia dramaturgia
Luz/som

Fonte: Elaborado pelo autor.

5.6 O ESPAÇO MOVE A ENCENAÇÃO

Na sua compreensão, Pinheiro ressalta que, a princípio, o espaço não-teatral


selecionado para fins cênicos pode ser entendido como a cenografia do espetáculo.
158

Mas, reitera que essa “cenografia viva” está contida dentro de um ambiente
composto por estruturas complexas (nem sempre visíveis, nem reguláveis), que
incidirá no andamento da criação. Esta, por sua vez, para adequar-se à linguagem
teatral, pode receber uma instalação cenográfica a fim de sanar algumas demandas
estéticas.
Em função disso, defende que o lugar escolhido seja apontado como
arquitetura cênica (estrutura que faz parte de um contexto), abrangência que
expande o significado da cenografia onde o teatro site-specific se conforma. Por
outro lado, além de tornar-se um atuante essencial no trabalho da direção teatral, o
espaço configura-se como um elemento autônomo no espetáculo.
Tal percepção, de acordo com o diretor, se dá quando o criador se detém
sobre as especificidades de cada lugar, pois, não sendo o mesmo espaço de criação
para várias peças (como ocorre no espetáculo de sala), a direção tem que estar
atenta aos atravessamentos únicos de cada lugar não-teatral selecionado para a
encenação, uma vez que, ao sair da caixa, consciente ou não, a direção opta por
ampliar as potencialidades e ressonâncias do espaço que serão facilmente
percebidas pelo espectador, quando usadas ou negligenciadas.
Em síntese: “tudo aquilo que configura o espaço tem que falar alguma coisa,
tem que agenciar, tem que mover alguma coisa na encenação”, afirma Pinheiro, em
sintonia com o pensamento de Dusan Szabo (2001), que defende as ações cênicas
dos elementos cenográficos como fundamentais para a constituição da encenação
contemporânea.
Numa atitude ainda mais enfática, Diego traça um paralelo entre as
dificuldades do teatro de sala e o site-specific, considerando que o espaço
convencional não provoca a direção teatral tanto quanto os outros espaços não-
teatrais, pois a caixa cênica, por sua própria natureza, possibilita ao diretor antever
não somente as convenções do espaço e seus instrumentos, mas, também,
possíveis problemas passíveis de acontecer no lugar onde vai ocorrer o evento
cênico.
Diferente do teatro site-specific, no qual a direção pode se deparar com
expressividades, deslocamentos, equipamentos e problemas desconhecidos.
Em concordância, Peter Brook defende que as experiências teatrais mais
vitais acontecem fora dos lugares oficialmente construídos e usados para este fim.
159

Neles, a convenção teatral não é preexistente, e a possibilidade de instaurar novas


dinâmicas é superior ao palco à italiana: “Um lugar lindo talvez nunca provoque
explosões de vida; enquanto que um lugar qualquer pode ser um salão muito vivo:
este é o mistério do teatro, mas, na compreensão deste mistério, está a única
possiblidade de organizá-lo como ciência” (BROOK, 1970, p. 66).
Uma das dificuldades observadas por Diego Pinheiro, pertencente à
apropriação do espaço não-teatral, é, precisamente, perceber o espaço globalmente
e compreender o que ele diz aos criadores que se orientam por suas coordenadas,
pois, sendo um ambiente regido por suas próprias convenções e referências, que
não necessariamente correspondem às da linguagem teatral, requer uma atenção
especial, que se for ignorada, poderá dificultar ou inviabilizar o trabalho desejado
naquele espaço.
Em contrapartida, enfatiza que esse ambiente precisa coincidir com os
anseios poéticos da direção, porque:

tem que ser um espaço que converse com o que você está
propondo. Em Arbítrio, aquele Casarão dos anos 30 conversava com
as referências pessoais que eu tinha, era a casa de minha bisavó.
Ele correspondia a algumas necessidades minhas, não apenas
motivações pessoais, mas, também, das minhas motivações
estéticas. Igualmente ao espaço de Oroboro, onde o ambiente
ampliava as possibilidades de câmera que eu desejava, pois, como
eram vários solos, cada sala compartilhada comportava um solo,
como uma espécie de baú pessoal de cada intérprete (informação
verbal)58.

Consequentemente, ao defender a criação cênica pautada na reciprocidade


das características do espaço com os anseios da encenação, o diretor descarta que
a realidade do espaço não deva se impor à realidade do trabalho artístico. Ao
contrário, ressalta que precisa haver diálogo, convergências e interação entre o
espaço e a poética do diretor para compor o trabalho artístico, sem que o espaço
ganhe qualquer protagonismo, pois, se isso acontecer, na percepção deste diretor,
algo de errado ocorreu no processo de criação, e resume:

Se a minha poética não conversar com o espaço, vai parecer só


proselitismo estético que só queria surpreender com um espaço
diferente. Eu acho que o espaço não deve superar as suas ambições

58
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
160

poéticas, nem estéticas, o espaço deve estar em diálogo (informação


verbal)59.

Relacionando a pertinência desse diretor como as diferenças objetivas entre o


teatro de sala e o site-specific, que vimos no segundo capítulo, podemos inferir que
nesta prática teatral, além de funcionar como o laboratório cênico que dará forma à
encenação, esse ambiente permite ao diretor:

a) criar o espetáculo em diálogo com o espaço: percebendo suas camadas e


atravessamentos materiais e virtuais (imaginários socialmente construídos),
que irão influenciar diretamente na criação cênica;
b) conectar o espaço à encenação de forma indivisível;
c) desmaterializar a cenografia: utilizar todo o ambiente como prolongamento
do movimento dos atores.
d) compor a cenografia do espetáculo em função das necessidades de cada
cena ou evolução de cada ator específico naquele ambiente;
e) reestruturar o espaço levando-o a basear-se alternadamente no seu
contexto (sociopolítico, cultural) e no desejo da encenação: termos que
superam a visão do senso comum da cenografia como mera superfície
revestida.
f) “abrir” o espaço cênico e multiplicar os pontos de vista a fim de relativizar a
percepção única e fixa do espetáculo de sala, ao distribuir o público em
volta ou eventualmente dentro do evento teatral;
g) vincular o espectador à ação cênica. Se o palco do espetáculo de sala é
percebido como anacrônico, hierarquizado e baseado numa percepção
distante e ilusionista, no site-specific as relações e percepções, em grande
parte, se devem ao envolvimento (sensorial, referencial, dialógico) do
público enquanto a encenação se desenvolve.

Nestes apontamentos, podemos notar, ainda, que o sistema de coordenadas


espaço-tempo é fundamental para constituir o evento teatral site-specific, que
ocorrerá advogado pelo público. Cabendo ao diretor desdobrar os processos
criativos que irão constituir tais relações durante a permanência da encenação
naquele espaço selecionado.

59
Id., 2018.
161

No processo criativo de Diego Pinheiro, os desdobramentos das células e


ações cênicas se configuram a partir do tripé espaço-ator-som, que, organizados
criativamente, na sua concepção, conseguem orientar todos os outros elementos
que, por ventura, venham a compor suas encenações. E pontua:

Claro que os estudos tradicionais vão dizer que você precisa do ator,
do público e do espaço, eu só tirei o público e botei som. Mas o
espaço é muito preponderante nesse lugar, porque, por exemplo, eu
tendo o espaço, isso é bom para o performer. Eu tendo um espaço e
performer, isso é bom para o som. Se eu tenho só esses três
elementos muito coesos, o resto é firula estética (informação
verbal)60.

Embora as palavras do diretor, ao rechaçarem o espectador, possam dar uma


ideia de que esse agente não tem importância nas suas encenações, Pinheiro é
assertivo ao afirmar que a complexidade cognitiva que o teatro site-specific oferece
ao espectador, coloca o diretor diante da necessidade de criar e oferecer uma
experiência espacial transitória e sensitivamente diferenciada para esse público.
Pois tais espectadores escolheram estar naquele espaço não convencional, e
que o diretor deve tirar proveito dessa predisposição, para afetá-los em consonância
com as circunstâncias e especificidades de cada espaço que a obra investiga:

Por exemplo, em Quaseilhas são três espaços diferentes, cada


espaço tem uma cenografia diferente da outra e a forma como o
público se acomoda, também é diferente. Então eu quero que as
pessoas sintam, ou se afetem pela obra, intimamente ligadas com os
agenciadores que eu uso para organizar essas pessoas nesse
espaço. Talvez não tenha uma intencionalidade aristotélica, não tem
uma intencionalidade de leitura, de decifração de códigos ou de
entendimentos narrativos, mas uma intencionalidade de afetar em
algum lugar (informação verbal)61.

Consequentemente, ao levar em conta as interseções que podem afetar


propositalmente a percepção do espectador, a ponto de problematizar os espaços
sob os quais irão assomar-se da encenação, intuitivamente ou não, Pinheiro
compreende que o espaço que o público ocupa é, também, um espaço de criação
(escolhas e renúncias) diante das ações cênicas que se desenrolam naquele
espaço-tempo compartilhado.
Corroborando com essa ideia, Paulina Dagnino, em sua tese, explica:

60
Id., 2018.
61
Ibid., 2018.
162

A pratica cênica nos espaços não convencionais para teatro se torna


permeável aos mais singulares e diversos olhares; esta qualidade
múltipla, aberta à porosidade ao mesmo tempo para que faz e para
quem olha é algo próprio dessas encenações. Todos os possíveis
observadores são um componente instigante, que me faz imaginar
uma encenação que seja sustentada e articulada através de células
cênicas visíveis para todas as pessoas, habitantes e transeuntes do
local, desde todas as possíveis perspectivas que este oferece. Estas
células às vezes acontecem simultaneamente, estabelecendo uma
rede de possíveis sentidos da proposta (DAGNINO, 2013, p. 56).

Esta premissa segue o princípio de igualdade de inteligências artista-


espectador, preconizado por Jacques Rancière (2010) em suas reflexões acerca das
funções do espectador e o teatro contemporâneo.

5.7 HORIZONTE DE EXPECTATIVA

Seguindo estas possibilidades, o que vemos é a oportunidade que a direção


teatral tem em adentrar no horizonte de expectativa do espectador e modificar
alguns hábitos de apreciação estética, como sinaliza Hans-Robert Jauss (1974),
para quem a comunicação entre obra e público só conserva o modo de uma
experiência estética se mantiver o caráter do prazer.
Deleite, essencialmente desenvolvido por meio da experiência compartilhada
que permeia um acontecimento artístico, que deve provocar um deslumbramento,
tirando o contemplador da percepção automatizada do cotidiano, e o conduzindo à
dimensão estética.
Se o horizonte de expectativas examina a recepção pela perspectiva do
desejo e da visão de mundo do espectador, as aberturas propositais do teatro site-
specific, ou os vazios a serem preenchidos pelas referências do espectador,
permitem diferentes leituras e envolvimentos com a encenação. Como tal, a
atualização da obra pelo espectador requer uma coerência interna bem estruturada
por parte dos criadores, bem como provocações cognitivas e sinestésicas, que
compõem tal evento cênico configurado sob o dilema do espaço e suas
contextualizações.
Dentro desta compreensão, o diretor pode intervir orientando a equipe de
criação a processar as técnicas que cada um domina, com o objetivo de tornar o
espaço ocupado pelo espectador num ambiente capaz de ampliar os horizontes e
referências preconcebidas que este público tem sobre o evento cênico.
163

Em conformidade com essa orientação, Diego Pinheiro observa que, assim


como a direção e os atores, toda a equipe de criação deve ser norteada para
compreender a necessidade de viver esses espaços desde o início do processo, não
somente após a criação das cenas, como em geral ocorre no teatro de espetáculo
de sala, no qual os cenógrafos e iluminadores, por exemplo, são solicitados mais
tardiamente.
Nos trabalhos site-specific, vale lembrarmos, as obras são produzidas
partindo de uma ativação do espaço não designado, à priori, para ser um espaço de
criação e exposição artística, e, por essa razão, os artistas precisam inventar os
meios de instalar seus projetos artísticos naquele lugar.
Verificando, dentre outras variantes, as dimensões físicas, os materiais, as
acomodações, as condições climáticas, além das referências sociopolíticas e
culturais que envolvem tal ambiente, que irão impactar diretamente no trabalho final.
Porém, se nas artes plásticas a equação: espaço não convencional +
instalação artística + conjuntura do espaço = obra site-specific, é facilmente
percebida; no teatro, para os criadores das visualidades, essa percepção esbarra na
“cultura teatral”, que estabelece que esses criadores devem intervir posteriormente à
criação das cenas.
Fator que demonstra uma contradição operacional determinante para a
concepção geral do espetáculo site-specific, quando os artistas não entendem a
coerência estética, nem as ordenações e estruturas por trás de tal iniciativa, como
explica Diego:

Não é a mesma lógica do trabalho na sala, onde o iluminador só


precisa saber do rider técnico e das medidas do espaço para fazer
uma escala e um projeto no seu gabinete. Igualmente ao cenógrafo
ao projetar sua maquete num programa de computador. No espaço
não convencional, tem que ser um posicionamento coletivo desses
criadores que vão atuar juntos sobre o espaço o tempo todo
(informação verbal)62.

Nas palavras de Diego, identificamos nitidamente a defesa da permanência


dos criadores das visualidades durante todo o tempo que durar a criação do
espetáculo, juntos com os atores, num processo colaborativo, como uma equipe de
arte coesa, planejando ter uma identidade comum na linguagem que cada um

62
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
164

domina e construir a coerência estética que definirá a encenação. Tanto conceitual,


quanto perceptual, por parte dos espectadores.
Esse raciocínio de Pinheiro pode ser observado em alguns diretores que
trabalham com o site-specific, como, por exemplo, Anderson Maurício e Thiago
Romero, vistos anteriormente, e, também, em Antônio Carlos de Araújo, que
explicita:

No limite, não tínhamos mais um único dramaturgo, mas uma


dramaturgia coletiva, nem apenas um encenador, mas uma
encenação coletiva, e nem mesmo um figurinista ou cenógrafo ou
iluminador, mas uma criação de cenário, luz e figurinos, realizada
conjuntamente por todos os integrantes do grupo (ARAÚJO, 2006, p.
127-128).

Nesta competência, o caráter coletivo da criação se evidencia não apenas


sendo oriundo da colaboração de cada artista na criação da obra, mas num
processo de trabalho onde a coletividade experimenta, sugere e define as opções
técnicas de todos os elementos cênicos que serão justapostos para compor a
encenação, como bem define o dicionário de teatro brasileiro:

Todos os criadores envolvidos colocam experiências, conhecimentos


e talento à serviço da construção do espetáculo, de tal forma que se
tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um
deles, estando esta relação criativa baseada em múltiplas
interferências. [...] Cenografia, figurino, iluminação, sonoplastia e
outros componentes podem ser pesquisados e elaborados
concomitantemente à contração do espetáculo, estando os
responsáveis abertos tanto a dar quanto a receber os comentários e
sugestões da equipe (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 254).

5.8 CRISE OPERACIONAL

Contudo, o teatro site-specific, para Diego Pinheiro, não é apenas um modo


de conceber e fruir o espetáculo que tende a ser diferente do teatro de espetáculo
de sala, mas também a maneira de produzir e veicular esses espetáculos para que
possam ser viáveis para patrocinadores, curadores de festivais e produtores, que
dependem intimamente do espaço para traçar as diligências da produção
(divulgação, acessibilidade, preço, horários das funções, etc.).
No entendimento do diretor, a prática do teatro site-specific desloca toda a
equipe de produção do lugar habitual e a faz pensar estratégias outras, que não
necessariamente se aplicam ao teatro de sala, pois:
165

Os mesmos problemas que vai infligir a direção, vai infligir a


produtora, seja de acesso ao público, seja os materiais ou
divulgação. Em Quaseilhas a produtora entrou em crise, porque não
era apenas por ser realizado em um lugar não convencional, nós
estávamos criando um barracão e ela considerava ser difícil viajar,
vender, divulgar... e ela tinha razão, o espaço causa uma crise
operacional! Os meus problemas poéticos como diretor passam a ser
os dela no ponto de vista da produção, no que se referem à
circulação, manutenção, acessibilidade (informação verbal)63.

Seguindo esta sentença, Diego acrescenta que as singularidades dos


espaços, e o modo de produzir e materializar tais propostas, impactam diretamente
nas temporadas e circulação dos seus espetáculos, dado que as estruturas físicas
podem comprometer ou encurtar o tempo de exposição dos trabalhos, bem como,
impossibilitar apresentações do espetáculo em um espaço diferente daquele para o
qual foi construído.
O ponto crucial destas propostas, portanto, não é tanto a espacialidade física
em si, já que é possível fazer uma adaptação desde que o novo espaço possa
oferecer as acomodações necessárias para receber o espetáculo sob esta ou aquela
característica. Mas o que pesa nesta forma de organizar o evento teatral, como
vimos notando deste o início dos nossos apontamentos, são as especificidades dos
espaços, aquilo que os torna singular para orientar a encenação, não apenas no que
diz respeito à criação das peças, mas, ao mesmo tempo, a fruição de tal obra
cênica.
Assim, quanto a uma possível adaptação do espetáculo em outro sítio distinto
do que originou a obra, faz-se necessário entender os fluxos e relações imateriais
que compõem o espaço, para constituir não apenas as suas funcionalidades, como
também, o imaginário coletivo acerca daquele ambiente que, temporariamente,
servirá de espaço cênico.
Este entendimento, aferido no depoimento de Diego Pinheiro, segue a mesma
orientação interna observada por Thiago Romero, quando se deteve sobre as
adaptações da sua peça em outros espaços diferentes daquele que originou os
espetáculos, ou seja: o conceito operacional por trás da ideia de espaço que o teatro
ocupa. Sendo necessário atentar para os arranjos e dialéticas com esse outro
espaço que servirá de subsidio ao deslocar a encenação.

63
PINHEIRO, 2018. (Apêndice B).
166

Vejamos, por exemplo, uma adaptação que realizei em 2011, quando tive que
realocar a encenação de Dois Perdidos Numa Noite Suja (originalmente concebida
em uma casa na favela do Calabar, na cidade de Salvador) para uma casa na
cidade de Évora, em Portugal, uma cidade interiorana do continente europeu, que,
talvez, tivesse pouca ligação com o que estávamos tentando discutir na peça.
Após aceitarmos o convite, o conflito espacial se instalou: como adaptar uma
encenação criada para um ambiente tão peculiar em um espaço e contexto tão
distante do original?
Ponderando o contexto europeu, nos demos conta que, numa macroescala, o
universo dos personagens – que migram do interior para a capital a fim de encontrar
um futuro próspero economicamente – era similar à realidade vivida pelos refugiados
do oriente médio (e africanos) que a cada dia emigram dos seus países rumo a
Europa, evadidos das guerras e fome.
Diante desse discernimento, vislumbramos que o espaço onde os
personagens poderiam viver nos países europeus, poderia, facilmente, ser uma
garagem de carros em uma casa de classe média, alocação que provocaria uma
reflexão sobre a exploração econômica e humana do capital, o grande conceito da
peça. Consideramos, portanto, o percurso da adaptação da seguinte maneira:

Dialética do espaço trajetória do espaço na encenação espacialização


de cada cena em seus respectivos nichos adaptados alocação do público
preservação das características singulares daquele espaço instalação
dos cenários e equipamentos técnicos usados no espetáculo (energia elétrica,
lâmpadas, disjuntores e encanamento de água) individualização do
trabalho do ator naquele novo espaço ensaios corridos.

Nessa adaptação, sentíamos falta da vizinhança, do barulho dos cachorros,


dos becos e vielas por onde os espectadores brasileiros trafegavam para chegar à
casa dos personagens, na versão que produzimos.
Mas a adequação nos possibilitou abrir o trabalho a uma perspectiva
humanitária, quando enxergávamos apenas a questão socioeconômica ligada ao
contexto brasileiro no qual vivíamos e para qual a encenação foi criada. Perdemos
algumas camadas do trabalho, mas outras se somaram.
167

De tal modo, intuímos que cada ocupação, travessia ou transgressão do


espaço, oferece uma reinterpretação, uma reescrita, porque as adaptações
desvendam novas perspectivas sobre aquele trabalho, perseguindo a intenção
original, que é encontrar, naquele novo lugar, as mesmas (ou similares) condições
sensoriais, referências e leituras através da ativação do ambiente.
Todavia, não é comum a prática de turnês e possíveis adaptações dos
espetáculos site-specific. Na trajetória de Diego Pinheiro, as estruturas sob as quais
os seus trabalhos foram assentados sempre foram um empecilho para apresentar o
espetáculo em outro espaço diferente do original, mesmo quando recebeu convites
de festivais para compor a grade de espetáculos, esbarrou nas especificidades
simbólicas e operacionais dos espaços que geraram suas encenações.
De tal modo, Diego Pinheiro acredita que os produtores dos festivais nem
sempre estarão dispostos a financiar as demandas por trás de um trabalho site-
specific, que exigem uma logística diferente dos espetáculos do teatro de sala, e
pontua:

nunca circulei com Arbítrio, nunca circulei com Oroboro. Inclusive, fui
chamado por Arbítrio para apresentar no Rio de Janeiro, mas quando
viram as especificidades não quiseram ter o trabalho de achar um
lugar parecido. A mesma coisa com Oroboro. E Quaseilhas é um dos
maiores problemas para circular, porque temos que levar a casa.
Alguns curadores de festivais se interessaram em levar, mas aí
quando veem a estrutura (informação verbal)64.

As demandas dos espetáculos site-specific, na percepção deste diretor,


geram uma crise operacional em toda a cadeia da produção teatral (da criação à
circulação), que precisa ser reformulada constantemente para dialogar e dar conta
das especificidades próprias de cada espaço selecionado para ocorrer um evento
cênico. Ou seja: para cada espaço, as propostas cênicas site-specific inventam suas
próprias convenções, arranjos técnicos, formas de percepção, produção e
veiculação, pois, “nada está dado, você tem que produzir tudo”, afirma Pinheiro.
Em vista disso, defende que a produção de um espetáculo site-specific deve
ser orquestrada por uma equipe consciente da dedicação e das renúncias
necessárias nesse gênero teatral, que, no seu entendimento, vão além das
praticadas no teatro de espetáculo de sala, ao colocarem todos os artistas numa

64
Id., 2018.
168

dinâmica de trabalho colaborativa, onde as demandas de cada um são


compartilhadas e dissolvidas no trabalho de todos.
Em contrapartida, sublinha que os artistas devem estar cientes de estar
concebendo um espetáculo para poucos espectadores e com pouca perspectiva de
temporadas e turnês.
No que diz respeito, especificamente, ao trabalho do diretor teatral, Pinheiro
compreende que o teatro site-specific modifica sua atuação porque os
agenciamentos implementados por ele para conceber a obra estarão diretamente
ligados com o diálogo (leituras e reflexão), com as trocas (relações ambientais,
interpessoais, sociais e sensoriais alcançadas) e significados (decodificações
possíveis e serem exploras pela encenação).
Assim como, concessões e arranjos que serão realizados para fazer com que
o lugar encontrado (alheio ao teatro) se torne um espaço cênico, sem o qual, no seu
caso, seria impossível pensar em termos teatrais, visto que o espaço é
preponderante na sua forma de entender-se como artista da cena. Conforme
explana:

O espaço modifica o meu trabalho, porque, primeiro, vai ter sempre


um caráter experimental. A depender de cada obra, vai ser um
método específico para cada ocupação espacial. É claro que você
sustenta uma poética, mas as metodologias, as ferramentas que
você vai usar, vai depender muito do que o espaço está te dizendo.
O espaço sempre vai interferir na forma, nas ferramentas e no modo
que eu vou conceber a encenação. Quando eu decido por um
espaço, eu organizo aquele processo de vivê-lo, morar, se possível,
pois o fato de ser um espaço não convencional nos obriga a acionar
outras ferramentas, outras formas de produção cênica que pode
resultar em um trabalho que você não esperava (informação
verbal)65.

A compreensão total do espaço, na concepção cênica deste diretor, se


estabelece a partir de uma vivência e diálogo do espaço com os seus desejos como
criador, que, posteriormente, irá coadunar com todos os outros agentes do
espetáculo e desenvolver o trabalho final, atentando para as relações que serão
estabelecidas entre obra e público.
Neste enlace, o funcionamento do espaço como agente da encenação é
tamanho que o diretor afirma não poder iniciar o trabalho sem o levar em
consideração, e, justamente por esse motivo, não se interessa em produzir trabalhos

65
Id., 2018.
169

na caixa cênica, pois necessita de algo mais, além das convenções


preestabelecidas praticadas no teatro de espetáculo de sala, como ele próprio
revela:

Meus interesses poéticos não cabem na caixa, não respondem


àquilo ali. A caixa preta não me provoca, não me causa crise, e eu
preciso de um lugar que me dê essa crise. Só a ideia de uma caixa
preta não é suficiente, é necessário, às vezes, quebrar paredes e
protocolos para criar um espetáculo. É nesse sentido que o espaço
não-teatral é preponderante e muito interventivo nas minhas ideias
(informação verbal)66.

Da crise à consciência processual que o espaço lhe desperta, este diretor nos
aponta seus caminhos e motivos para desenvolver um teatro site-specific, que
perpassam, necessariamente, pelos agenciamentos que serão concebidos e
amalgamados ao longo do processo de criação, em consonância com todos os
artistas envolvidos no projeto de encenação, para juntos compreenderem as dobras
e a abrangência sinestésica do espaço que dará forma a uma obra site-specific.
Nesse ponto de vista, a obra teatral concebida sob tais pressupostos é uma
experiência artística que compromete o trabalho da direção teatral numa expansão
extrateatral, não somente por causa do espaço de atuação, experimentação, fruição
e veiculação aquém das convenções largamente praticadas no teatro de sala, mas,
sobretudo, pela consciência acerca da atuação das camadas e circunstâncias desse
ambiente, que operam profundamente, antes, durante e após a execução do projeto
cênico.
Consequentemente, o espaço no teatro site-specific funciona como um texto
continuamente em processo de ser escrito e lido, originando-se da própria tentativa
do encenador de estabelecer um lugar para encenação ao criar uma estrutura que
estará permanentemente sujeita aos processos de clivagem, adiamento e
indeterminação, sob os quais os trabalhos cênicos são constituídos.

66
Id., 2018.
170

6. DA DIREÇÃO NO SITE-SPECIFIC

Nos apontamentos dos três diretores teatrais, justaposto ao exame crítico e


ao cruzamento teórico, observamos que o processo criativo da direção no teatro
site-specific começa por um questionamento sobre a possibilidade de usar um
espaço do cotidiano como espaço cênico, admitido a partir da realidade histórica
daquele lugar ocupado pelo teatro.
Lugares que têm funções explícitas e bem distintas dos lugares teatrais, e
acabam por instaurar um problema processual que será a base do trabalho do
encenador, instituído a partir do espaço ou para ele.
Para tal, os encenadores apontaram como principal procedimento a imersão
solitária no espaço, para traçar uma cartografia do lugar, denominada por eles como
mapeamento e uma escuta: O mapeamento consiste num instrumento de
localização e identificação para orientar espacialmente a investigação cênica, bem
como para perceber o contexto sob qual o espaço está inserido.
Já a escuta, pode ser compreendida como os vetores de comunicação,
significados e percepções que compõem o ambiente, estes que serão atuantes
essenciais desde a origem da encenação.
Ou seja, para criar o espetáculo site-specific, o diretor adentra no espaço (e
permanece lá solitário) para observar as zonas de intersecção que serão
investigadas, problematizadas e exploradas na encenação, igualmente para
elucubrar sobre possíveis ações cênicas desencadeadas em decorrência do espaço
praticado esteticamente.
Somado a isso, os diretores apontaram para as buscas pelas
“performatividades ocultas” do lugar (ou seja, os espaços possíveis de serem
investigados cenicamente), que, para eles, é o marco fundante para iniciarem os
seus processos de criação.
Do mesmo modo, registraram que as articulações e agenciamentos dos seus
anseios artísticos, somados ao contexto dos lugares onde o teatro irá habitar,
formam o amálgama necessário para a fundamentação dos trabalhos cênicos.
Sendo, pois, determinantes na concepção, produção e apresentação das suas
obras, visto que para construir a encenação e materializarem suas obras como site-
171

specific, compreendem que a direção precisa apreender, observar e dialogar com o


espaço.
Este procedimento, assinalaram, difere da tradição teatral que, em geral,
demanda atenção ao espaço apenas como veículo de exposição do espetáculo, ao
principiar os processos criativos pelos instrumentos inerentes à linguagem: literatura
dramática, investigação técnica dos atores, especulação temática, etc., que ao
serem instituídos como início metodológico, prontamente serão explorados em um
espaço mais neutro possível nas salas de ensaio.
Nas práticas pronunciadas pelos diretores, verificamos que os mesmos não
ignoram esses procedimentos utilizados largamente no teatro de sala, muito pelo
contrário, os utilizam de maneira dialógica com as especificidades que constituem os
espaços escolhidos para as suas encenações, nas quais a direção se agarra ou se
esbarra toda vez que desenvolve um trabalho sob estes termos, seja para dialogar,
questionar ou mesmo negar alguma camada do espaço, perante as questões
sociopolíticas, econômicas e discursivas inerentes àquela comunidade na qual o
espaço está inserido.
Notamos que as escolhas de espaços que guiaram os diretores, não tiveram
a ver com padrões estéticos ou arquiteturas históricas (que condicionam o trabalho
artístico, como vimos no primeiro capítulo desse trabalho), mas com o desejo
pessoal em investigar um lugar dado da realidade como lugar de uma ficção.
De modo tal que pudessem imprimir sobre ele uma interpretação conceitual e
estética, partindo das próprias características que os constitui. E, imediatamente
após esse gesto, todos os componentes da produção teatral foram reestruturados,
defendem os diretores.
Neste sentido, ressaltaram que o trabalho da direção consiste, por um lado,
em decodificar o espaço e dialogar com as suas virtualidades (contextos), que, por
sua vez, mediaram a concepção, produção e recepção dos espetáculos, com a
possibilidade, inclusive, de o espaço contar sua própria história, como constatamos
no espetáculo Rebola, dirigido por Thiago Romero.
Por outro lado, demanda da direção a capacidade de conceber e mediar as
invenções dos instrumentos técnicos necessários para construir os códigos da
linguagem teatral neste espaço alheio ao teatro, especialmente no que diz respeito
às narrativas, visualidades e as sonorizações do espetáculo, que serão concebidas
172

numa fronteira limítrofe entre a ficção do evento cênico e a realidade do espaço,


como ressaltamos no depoimento de Anderson Maurício e Diego Pinheiro.
Por essa dualidade, os diretores (mormente Diego Pinheiro) nos expuseram
que o engajamento permanente dos outros artistas que irão intervir no espaço
(principalmente cenógrafos e iluminadores) é fundamental.
Seguindo suas observações, notamos que todos os criadores devem, se
possível, atuar juntos e em um processo colaborativo, pois as demandas que o
teatro site-specific solicita é muito particular para cada um dos lugares que serão
utilizados como espaço cênico. E que por não terem os instrumentos, convenções e
símbolos do lugar teatral, esses criadores terão que unir forças para construir,
ressignificar ou arranjar as ferramentas que a linguagem teatral faz uso para se
concretizar.
Aliado a isso, observamos que os diretores aconselharam que os
procedimentos adotados para incorporar o espectador no ambiente da encenação,
deve prezar por oferecer a esse público uma experiência sensorial que explora
outros canais de percepção, assegurando que a obra seja compreendida pelos
atravessamentos observados, compostos ou presenciados pelos espectadores neste
espaço outro.
Nas propostas cênicas verificadas, atinamos que, assim como os artistas, os
espectadores também serão capazes de percorrer o espaço e se permitir vivenciar
as circunstâncias próprias daquele lugar, pois as encenações foram pensadas tendo
essa fenda como possibilidade imagética.
Dessa forma, cabe à direção teatral a tarefa de projetar e mediar a
intensidade dessa sondagem (no caso de Diego Pinheiro mais interventivo do que
em Thiago Romero e em Anderson Maurício), que ao mesmo tempo em que expôs
as condições pretendidas para a recepção e relacionamento desejado com o
público, ofereceu múltiplas possibilidades de interação do público com a obra e o
espaço.
Nestas criações, os diretores observaram que atores e espectadores
compartilham da intimidade de uma experiência cênica em um espaço-tempo com
características particulares, que, ora os aproxima, e ora espelha o estranhamento
daqueles corpos alheios à realidade do espaço. E, por esse motivo, faz o espaço e a
experiência teatral ser percebida sob novas lentes.
173

Novamente, o trabalho da direção se mostra crucial, ao sugerir quais ângulos


e características podem ser examinadas para modificar ou potencializar algumas
particularidades do espaço na encenação.
Associado a isso, observamos que uma das premissas que regem a prática
do teatro site-specific e, certamente, a que mais intriga os seus criadores, é a
ligação da encenação com o espaço para o qual a peça foi criada. Transação que
revela uma contradição, pois, ao passo que esse vínculo demarca seu território
poético e estético da encenação, esgota, muitas vezes, a possibilidade de o
espetáculo ser apresentado para outros públicos que não aquele para qual o
espetáculo foi concebido.
Mesmo assim, verificamos, principalmente no trabalho de Thiago Romero,
que o diretor se aventurou, por insistência da equipe (ou omissão conceitual), em
sair do seu espaço original e adaptá-lo para a sala de teatro, e até mesmo para um
espaço alternativo, ciente de que as referências sociais e discursivas que compõem
sua encenação, ora adaptada, estariam completamente subtraídas sem a
materialidade do espaço e suas referências.
Esta experiência conduziu o diretor a considerar que, ao adaptar a encenação
para outro espaço, diferente daquele para o qual foi criado, pode dar a impressão de
estar criando outra peça.
Consequentemente, ao não se conformar com a realocação do tipo “um
espaço após o outro”, do teatro de sala, no qual o diretor é pouco solicitado, no
teatro site-specific, a demanda exige que esse criador compreenda as carências do
novo local oferecido à encenação (quando decidir adaptar), para que possa dialogar
com motivações e significados espaciais semelhantes aos que existiram na
concepção do espetáculo.
Entretanto, diante da possibilidade de veiculação da encenação, notamos que
o trabalho do encenador não se estabelece apenas por uma transposição do
espetáculo ao novo espaço pretendido, mas, sob uma negociação com as
especificidades inerentes àquele novo espaço, que serão necessárias para o
entendimento da obra.
O que, de fato, exige do encenador um trabalho minucioso para ajustar os
vetores do espaço original às ambições do novo espaço (adaptado), que possui
suas próprias características conceituais, imagéticas e significativas.
174

Em razão disso, notamos que na percepção geral dos diretores, há


desconfiança sobre a possibilidade dos trabalhos site-specific serem apresentados
em outros recintos distintos daqueles para os quais foram concebidos, porque de
algum modo, cada novo espaço, com suas próprias esferas e contextos, solicita
novos procedimentos técnicos, significantes e expressivos que acaba por gerar um
“novo” espetáculo, não uma simples apresentação da peça naquele novo espaço
sugerido.
Ainda assim, quando o desafio é assumido pela direção e sua equipe de
trabalho, o objetivo passa a ser perseguido no propósito de trazer o próprio local
novo à luz da encenação, uma vez que, nesta poética, o espaço não surge apenas
para figurar na trama ou envolver a encenação, mas para mediar o desenvolvimento
e a fruição daquela experiência cênica para o espectador.
Em consequência disso, Diego Pinheiro assegura que nunca concordou em
adaptar suas obras para outros espaços e nunca conseguiu sair em circulação, pois
entende que os espaços que geraram suas obras eram únicos e faziam parte
indivisível da encenação, e, se acaso fossem apresentados em outros espaços,
teriam que ser em espaços semelhantes, não apenas na forma, mas nas ordens que
os constituem.
É interessante ressaltar, também, o destaque que cada diretor deu à
produção, por conta das características singulares de cada espaço escolhido e
percorrido pela direção, uma vez que o acesso, divulgação, justificativa dos editais
de fomento, o retorno financeiro, a gestão do tempo, etc., muitas vezes serão
distintos das práticas do teatro de sala, e que, por esse motivo, a produtora que irá
erguer e gerir esse trabalho tem que ser muito sensível para entender as demandas
da direção no site-specific.
Não por acaso, os diretores afirmam que a criação no teatro site-specific
modifica o modo de como toda equipe se relaciona com o espaço, posto que ali ele
será um dos agentes da narrativa e da experiência total do espetáculo, não apenas
o lugar de exposição.
Em função disso, destacaram que a dinâmica processual da equipe tende a
ter uma relação mais uniforme e direta com o espaço, calhando de Diego Pinheiro
pedir à sua equipe de criadores uma colaboração mais estreita entre eles, para
intervir no espaço de maneira uníssona, porque ele compreende que a ideia central
175

do teatro site-specific é que o espaço seja uma das ferramentas de expressão e


significado da obra.
Partindo desses pressupostos, por fim, atinamos que a prática do teatro site-
specific estabelece uma variedade de procedimentos e conhecimentos que por si
leva a encenação a ser concebida sob paradigmas espaciais distintos do teatro de
sala. Apoiada, sobretudo, no instante em que a direção lança um olhar estético
sobre aquele ambiente, considerando-o como “palco expandido” e, partido dessa
conceituação, desenvolve os procedimentos criativos que dará margem à
encenação.
Essa atitude especulativa empenhará os outros agentes da cena (às vezes
intuitivamente) a repensarem suas práticas, instrumentos operacionais, relações
comerciais e interações processuais, uma vez que no teatro site-specific forma e
conteúdo, lugar cênico e espaço cênico ocupam o mesmo território na encenação.
Além disso, notamos que as escolhas espaciais de cada encenador,
perpassam, fundamentalmente, por opções políticas, sociais e identitárias ao
concretizarem suas encenações. Pois o espaço não-teatral, como um interstício,
serve de palco para refletirem sobre as desigualdades sociais (classe, raça e
gênero) nas quais os diretores estão imersos como cidadãos.
176

CONCLUSÃO

Ano de 2020, estou novamente na janela de um apartamento, dessa vez


tentando entender as dinâmicas e restrições espaciais nas quais a humanidade está
submetida.
Nesse momento tudo está mais quieto: os carros passam em menor número;
as aranhas fazem suas teias no teto da varanda; um bando de cães caminha e ladra
para as poucas motos que passam; ao largo, um galo atravessa a rua para
acompanhar as galinhas; na esquina, vejo uma ninhada de gatos procurando
alimento; e uma formiga (com sua pequena mandíbula), morde meu pé e segue
suas iguais no ritual permanente de coleta... Enquanto nós, bichos humanos,
estamos trancafiados nas gaiolas que inventamos, temendo a presença de nossos
semelhantes.
Nesta conjuntura de medo e isolamento, o teatro (e seus espaços) é
declarado como local proibido pelas autoridades sanitárias, pois a “intimidade do
organismo vivo”, tão cara à linguagem, pode causar o fim de grande parte da
humanidade.
Contudo, tenho que concluir esta tese, e pendo a dizer que precisamos, com
urgência, repensar os locais onde os eventos teatrais podem acontecer, sem
depender, necessariamente, da locação dos edifícios teatrais com suas estruturas,
limitações, convenções e, neste momento, insalubridade.
Coincidentemente, o desejo de descobrir e compartilhar novas perspectivas
sobre o espaço de criação para a direção teatral, nos trouxe até aqui, e se expandiu
por meio das análises e observações abarcadas ao longo deste estudo. No caminho,
pudemos observar as concepções de cada um dos diretores entrevistados, bem
como o entendimento desses criadores sobre as camadas ressonantes de cada
lugar onde eles produziram suas encenações, que se estruturam a partir da ligação
pessoal de cada um com as circunstâncias históricas, funcionais e imagéticas dos
espaços não-teatrais convencionados como espaço cênico.
A pesquisa revelou que o processo criativo da direção teatral, verificado nos
depoimentos de Anderson Maurício, Diego Pinheiro e Thiago Romero, começa pelo
questionamento sobre a possibilidade de realizar um espetáculo naquele espaço
alheio ao teatro, eleito por eles, que, assumido como laboratório cênico, irá
177

desencadear uma sequência de atividades e hipóteses para transformar um lugar


indistinto em espaço cênico.
Segundo os diretores, o ato inicial consiste na imersão solitária no espaço,
para traçar uma cartografia do lugar, na qual a direção irá observar as forças e
orientações que regem o espaço, para em seguida inserir nele os atores, e, juntos,
desenvolverem uma série de laboratórios, no intuito de impregnar o imaginário dos
atuantes com a “vida” daquele lugar onde a encenação será forjada.
Além dos atores, os criadores das visualidades também são solicitados e
imersos no espaço, para observarem as dobras, contextos e circunstâncias, bem
como as texturas sociais, políticas e identitárias presentes em cada espaço.
Destacamos que o trabalho da direção consiste em duas grandes etapas
distintas, mas complementares: a primeira é decodificar o espaço e dialogar com as
suas virtualidades (contextos), que, por sua vez, mediarão a concepção, produção e
recepção do espetáculo, com a possibilidade, inclusive, do espaço contar sua
própria história, como constatamos no espetáculo Rebola, dirigido por Thiago
Romero.
A segunda etapa consiste em aparelhar, conceber e mediar as invenções dos
instrumentos técnicos necessários para construir os códigos da linguagem teatral
naquele espaço estranho ao teatro, especialmente no que diz respeito às narrativas
visuais e sonoras das encenações, que serão concebidas numa fronteira limítrofe
entre a ficção do evento cênico e a realidade do espaço, como foi observado nos
depoimentos dos três diretores.
Associado a isso, observamos que uma das premissas que mais intrigam os
criadores é, justamente, a ligação da encenação com a realidade do espaço, já que
essa união revela um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que esse vínculo
demarca seu território poético e estético como encenação site-specific, esgota,
muitas vezes, a possibilidade do espetáculo ser apresentado em outros espaços
diferente daquele para qual foi concebido, visto que as encenações pertencem
unicamente ao espaço onde foram geradas.
Contudo, diante da possibilidade de veiculação da encenação, quando houver
chance para tal, advertimos que o trabalho da direção não se estabelecia apenas
por uma transposição do espetáculo ao “novo” espaço pretendido, mas, sob uma
negociação com as especificidades do espaço original, realocadas no espaço
178

adaptado. Particularidades que serão fundamentais para a assimilação da


encenação, o que, de fato, exige do encenador um trabalho minucioso para ajustar
os vetores do espaço original às ambições do espaço adaptado, já que esse novo
lugar terá suas próprias particularidades conceituais, imagéticas e significativas.
Em razão disso, apontamos que a percepção geral dos diretores é de
desconfiança sobre a possibilidade dos trabalhos site-specific serem apresentados
em outros recintos ou ambientes distintos daqueles para os quais foram concebidos,
porque, de algum modo, compreendem que cada novo espaço, com suas próprias
esferas hierárquicas e contextos sociais, solicita novos procedimentos técnicos,
significantes e expressivos, o que acaba por gerar um novo espetáculo, não uma
simples apresentação da peça naquele espaço sugerido.
Entretanto, quando o desafio da adaptação é assumido pela direção e sua
equipe de trabalho, o objetivo é trazer o próprio local “novo” à luz da encenação.
Essa atitude empenhará os outros agentes da cena a repensarem suas práticas,
instrumentos operacionais, relações comerciais e interações processuais que,
segundo as orientações dos diretores, são distintas das experimentadas comumente
nos espetáculos de sala, onde as convenções por ela impingidas levam em
consideração apenas a forma intrínseca à linguagem, sem cogitar intervir no seu
conteúdo.
Ressaltamos, igualmente, o destaque singular que cada diretor deu à
produção, por causa das características individuais de cada espaço escolhido e
percorrido pelos diretores, uma vez que essa opção impacta no acesso, divulgação,
justificativa dos editais de fomento, no retorno financeiro, na gestão do tempo, etc., e
que, por esse motivo, a produtora que irá gerir esse trabalho terá que ser muito
sensível para entender as demandas da direção no teatro site-specific, visto que tal
prática solicita muitos remanejamentos técnicos e operacionais.
No que compete estritamente ao trabalho da direção teatral, Thiago Romero
enfatizou que o site-specific modifica seu modo de criar, porque, quando o diretor
opta por fazer um espetáculo nestas circunstâncias espaciais, terá a reboque um
outro atuante, que é o espaço e a memória daquele espaço, realidades que
possivelmente irão condicionar o seu trabalho criativo, porque demandam outra
postura de estudo e investigação.
179

Para Diego Pinheiro, o lugar não-teatral reorienta totalmente a percepção


espacial do diretor, uma vez que este criador estará absorvido pelas estruturas do
espaço, que são únicas, e o impele a modificar seu trabalho constantemente,
acentuando, assim, o caráter experimental das propostas site-specific. Além disso,
ele realçou que o lugar-não teatral interfere na forma, nas ferramentas, no modo
como o diretor irá conceber e na conjuntura cênica total.
Depreende-se, do trabalho de Anderson Maurício, que ele entende que não
há uma modificação no trabalho do diretor para atuar no site-specific, mas sim na
concepção cênica, que deve considerar a sobreposição de informações do
ambiente, que poderão sobrecarregar o espaço da criação, já que nesta forma de
organizar o evento cênico nunca se tem o “palco nu” encapsulado. Porém, se por um
lado as informações serão basilares para conceber as encenações nestes moldes,
por outro, elas ocupam o diretor, permanentemente, com os atravessamentos
sensoriais, cognitivos e dialéticos da realidade de cada espaço não-teatral.
Sendo uma apropriação gradual das propostas desenvolvidas ao longo do
século XX, esta formatação espacial do evento cênico modificou, mormente, as
condições de recepção, ao impactar diretamente no posicionamento do espectador,
no seu conforto, na sua interação com a obra e na sua autoexpressão como
cocriador da encenação.
Percebemos que nas encenações site-specific, para o espectador, se
sobressai a condição da experiência do lugar, na qual não mais apreciam/ observam
a cenografia, mas vivenciam os espaços dados à obra, que por si, comportam uma
alta capacidade de jogo entre os participantes, decorrente das camadas
fenomenológicas, discursivas e criticas/sociais desveladas nas encenações. Isso se
intensifica, principalmente, quando os elementos do “real” são assimilados pela arte,
nos procedimentos adotados pelos diretores, que passam a sugerir novos arranjos e
intervenções por parte dos espectadores imersos no ambiente da encenação.
A pesquisa revelou, também, que o site-specific é um termo bastante
ambíguo dentro da nossa cultura teatral, e traz no seu escopo semelhanças e
diferenças importantes para o teatro contemporâneo realizado em lugares não-
teatrais, sobretudo no que diz respeito ao teatro em espaços alternativos, teatro não
convencional e teatro imersivo.
180

Alcançamos que o teatro em espaços alternativos se estabelece como uma


possibilidade para a apresentação de um espetáculo teatral em um espaço distinto
da sala de teatro, onde as convenções do teatro de sala são mantidas. Já o teatro
em espaços não convencionais estrutura-se a partir da ocupação de espaços
distintos das salas de teatro e oferece ao público uma relação proximal (uma nova
convenção) entre cena e público, ao colocá-los dentro do espaço cênico,
concebendo a fruição como construção livre e ativada pelo ambiente compartilhado.
Concepção que difere do teatro imersivo, que consiste em mergulhar os
espectadores em um espaço multissensorial (e não-teatral) para que sintam que
estão participando de uma experiência interativa e não simplesmente assistindo
teatro. Tudo é feito para dar aos espectadores a impressão de que os atores estão
se ocupando individualmente deles.
Como pudemos notar nessa tese, o conceito de teatro site-specific incorpora
as demais categorias dentro da sua estrutura, e se individualiza das demais,
justamente pela importância dada ao contexto, à história e à significação daquele
espaço inserido na estrutura da narrativa cênica. Discernimento que media a criação
das cenas, as convenções teatrais, o modo de comunicação, os meios de acesso,
permanência, fruição, produção e veiculação do trabalho artístico.
Assim, as pluralidades de referências, imaginários e estranhamentos,
decorrentes dos lugares vivenciados nas encenações site-specific, que despontaram
como norte de orientação nos processos criativos dos diretores teatrais, mas não só,
já que impactam em toda a cadeia de produção, criação e recepção da encenação,
nos leva a indagar: seria legítimo reivindicar o site-specific, para além de um
conceito, como uma nova tipologia para o teatro contemporâneo?
Fazendo um paralelo com a Performance art (que pode ser alcançada como
um novo gênero, por fundir linguagens artísticas, estilos e se compor por meio de
uma transdisciplinaridade, ao se configurar como evento, como intervenção, como
instalação, como ritual, como política ou pura ação do atuante), o site-specific, do
mesmo modo, se inscreve como lugar teatral multifacetado, repleto de escapismos e
camadas críticas que congregam e respondem a diversos anseios e conceitos dos
criadores contemporâneos, que não se satisfazem com as relações, limitações e
convenções implícitas ao teatro realizado nas tipologias espaciais convencionais.
181

Essas problematizações estão presentes desde a origem do termo nas artes


visuais, mas não só, uma vez que a história do teatro revela que, no início do século
XX, a reivindicação por novas tipologias espaciais era uma pauta constante e
explicita nas práticas e falas dos encenadores, a ponto de sugerirem diversas
ordenações para o espaço da cena, principalmente quando passaram a considerar e
sistematizar o ambiente como parte da experiência teatral, como vimos ao longo
deste trabalho.
Entretanto, diferente das tipologias modernas que aparecem como suporte
para mediar as relações e a construção da ambientação da cena, o site-specific é a
própria ambientação da fábula, e, muitas vezes, passa a compor a narrativa dos
espetáculos ao espelhar as relações sociais presentes naquele lugar selecionado
para o evento cênico. Ainda vai além, ao constituir-se como um atuante, mediador e
base dos processos criativos de todos os agentes da cena.
Somado a isso, o site-specific não se baseia apenas no fornecimento de um
modelo de relacionamento de um não-espaço em espaço cênico, mas perfaz e
reflete uma definição transitiva de espaço, sob a especificidade do lugar em si, seu
contexto. O que, por sua vez, provoca uma ligação com a obra em termos não
apenas físicos, mas virtuais, determinados pelas próprias características do espaço.
É também nesta oposição que as abordagens das artes visuais e da arquitetura
percebem o espaço, ou podem ser lidas através do termo performance.
O espaço site-specific incorpora um conjunto de metáforas espaciais e
produtivas, das quais os artistas se detêm para explorar uma variedade de espaços
não-teatrais, compreendendo esses palcos expandidos como potencialidade
investigativa, marcada pelos contextos de cada ambiente. Logo, a especificidade
potencialmente restritiva do espaço, passa a permitir ambiguidade, multiplicidade e,
até mesmo, uma desmaterialização conceitual e formal do espaço cênico.
A esse entendimento, se soma a ideia de que o site-specific seria revelador
de diversas tensões sociais presentes na constituição do trabalho artístico, já que a
escolha desse espaço, por si, é uma escolha tanto estética quanto política. Os
resultados desta pesquisa, por exemplo, indicam que as opções espaciais de cada
encenador, perpassaram, fundamentalmente, por preferências políticas, sociais e
identitárias ao concretizarem suas encenações, pois o espaço site-specific, como
182

interstício, surgiu como um palco para refletirem sobre as desigualdades sociais


(classe, raça e gênero) nas quais os diretores estão imersos como cidadãos.
Dessa forma, por um lado acreditamos que, em alguma medida, o site-
specific se torna uma tipologia tão consistente e significativa quanto as ditas
tipologias históricas, como o espaço greco-romano, elisabetano, os currales e pátios
ibéricos, justamente por permitir que o debate público seja refletido naquele lugar
onde o evento cênico acontece, e que, em certa medida, responde a uma
determinada demanda da polis.
Por outro lado, não é só por isso que ele se inscreve como tipologia, mas
também por conta da apropriação empregada e utilizada por diversos grupos que
estão buscando uma inserção no mercado, por ser uma opção mais viável
financeiramente, bem como por suscitar outras interações entre obra e público, por
desvelar outras orientações para os agentes criativos, por sugerir outras maneiras
de produção, financiamento e veiculação dos espetáculos, por não admitir as
mesmas convenções, ações burocráticas e econômicas que pesam sobre os
projetos dos criadores do teatro de sala, etc., aspectos constantemente presentes
nas discussões e reivindicações das renovações teatrais.
Ao ter estudado todos esses aspectos a partir da perspectiva da direção
teatral, ao longo dessa tese, concluo que o site-specific, além de um conceito, se
inscreve hoje, na contemporaneidade, como uma tipologia teatral genuína e
amplamente explorada nas práticas e discussões dos artistas, dos críticos e dos
espectadores que, em alguma medida, entendem que o espaço cênico do teatro
site-specific tem um significado estrutural na concepção dos trabalhos artísticos
desde a sua gênese (quando o diretor ainda especula instalar o teatro naquele
espaço), e, como tal, reconfigura o território da encenação através dos novos
agenciamentos inerentes ao espaço praticado, que impele a direção a conceber as
formas de o teatro habitar o espaço insólito.
Por esse motivo, ao concluirmos, podemos aventar que o teatro site-specific,
como uma tipologia teatral, pode ser considerado uma alternativa criativa e
operacional das mais fecundas para diretores teatrais contemporâneos, visto que a
sua prática funciona como um laboratório cênico aberto à realidade social, na qual
os diretores teatrais e equipe irão testar diversas possibilidades de arranjos e
diálogos entre lugares e narrativas para mediar o encontro com os espectadores.
183

Estes, imersos nessa estrutura fundante, e ao mesmo tempo provisória, do evento


cênico, poderão refletir sobre a sociedade nesses espaços cênicos dilatados pelo
poder da fricção entre o real e o ficcional.
184

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APÊNDICE A - ENTREVISTA COM ANDERSON MAURÍCIO

MAURÍCIO, Anderson: depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José Jackson Silva.


São Paulo: via Skype. Filmagem (270min). Entrevista concedida para a tese de
doutorado do entrevistador.

Entrevista realizada nos dias 06, 08 e 13 de junho de 2018.

Entrevistado: Anderson Maurício (AM)


Entrevistador: José Jackson (JJ)

JJ: Anderson, a minha ideia no doutorado é pesquisar o trabalho do encenador em


espaços alternativos. Esse espaço alternativo não é o alternativo pelo alternativo, eu
acolhi um conceito das artes plásticas, que é o site-specific, que se baseia na ideia
de uma peça, uma obra, feita para um local específico, cuja a obra só existe naquele
local. A minha inquietação nesse momento, é entender quais as estratégias, os
caminhos, de onde parte, como desenvolve, quais são os problemas que o próprio
local oferece ao do trabalho do encenador. Basicamente isso. Para começar me fala
quem é você, de onde está falando e diz se você autoriza a filmagem da entrevista.

AM: Primeiro vou começar dizendo que ninguém nunca pesquisou a trupe nem a
nível mestrado nem a nível doutorado. Acho que porque o nosso grupo sofreu uma
rejeição durante muito tempo. Eu digo isso pelo lado dos críticos e da classe teatral.
Por outro lado, o público sempre nos acolheu, nunca tivemos problema de público. E
o próprio trabalho abriu muitas portas pra gente, só o Cordel do Amor Sem Fim, a
gente tem mais de 600 apresentações. E até hoje a gente apresenta. Bom...vou
começar contando um pouco sobre a história da trupe, que funde com a minha
própria história e que talvez, também, você entenda as próprias dificuldade que a
gente foi tendo na trupe nesse começo. O teatro faz com que a gente se entenda
como ser humano no mundo. E ele vai apresentando isso pra gente aos poucos. Eu
moro num bairro periférico e passei muito tempo para me entender como parte
desse lugar. Com 15 anos de idade eu estava em casa e apareceu uma chamada do
Faustão de um concurso. Chama concurso garoto corpo dourado, que era um teste
para participar na novela corpo dourado. E eu fui fazer esse teste. E aí cheguei no
local da inscrição e a atendente me perguntou se eu tinha DRT, falei, mas o que é
isso? Ela disse que também não sabia bem o que era, mas que eu deveria ter. Ai
192

perguntei onde eu conseguia esse DRT. Ela falou, acho que num negocio de cultura.
Dai lembrei que no caminho de casa havia ouvido falar que tinha uma casa de
cultura. Chagando na casa de cultura, falei que tinha ido buscar o DRT e a moça
falou que não davam esse tipo de documento. Aqui a gente não emite o DRT, mas
tem um curso de teatro você quer fazer? E me inscrevi no curso. No primeiro dia do
curso a professora colocou uma musica que eu ouvia em casa, uma musica da
Carmina Burana e pediu pra gente dançar aquela música. E pra mim, aquele
instante, é o instante onde nasci, onde eu descubro a expressão que ate então eu
não conhecia. E pensei no fundo da minha alma que queria fazer isso por toda vida.
Então por 8 anos passei fazendo cursos em vários espaços culturais e depois resolvi
fazer faculdade, que na verdade não era faculdade, mas um curso técnico, na
fundação das artes em São Caetano do sul. Esse curso técnico era pago, mas o
valor era irrisório porque tinha um convenio com o governo. Quando eu chego
fundação das artes encontro a Lídia Zózima. Então Zózima é em homenagem a uma
professora nossa. Lídia Zózimo é uma pessoa muito importante para a fundação da
Trupe porque todos os integrantes foram alunos dela. Todos. Nós morávamos na
periferia da cidade de São Paulo e passavam em média de cinco a cinco horas e
meia no transporte público. A Lídia era uma professora de expressão corporal, e era
coordenadora do curso. Ela teve câncer com 35 anos de idade e não queria fazer o
tratamento convencional. Decidiu ir pra Índia pra fazer um tratamento lá. Depois
dessa experiência ela voltou para a fundação para dar aulas. Quando ia fazer 10
anos que ela tinha passado pela experiência na Índia, a minha turma estava
formando e se conectou fortemente com ela. A Lídia fazia a gente acreditar que a
gente podia criar e fomentava isso em nós. Em 2005 a gente estava
experimentando a sala de aula com espaço cênico e num dia qualquer fomos fazer
uma vivência com a Lídia em Mauá, e fomos de ônibus. O transporte pra mim já era
um lugar de estudo e a Lídia nos incentivou a olhar o ônibus como essa
possibilidade. Dizia que o teatro está fora das universidades, fora dos espaços
fechado, e que passássemos a olhar o mundo como como possibilidade cênica e
isso nunca mais saiu da minha cabeça. Ainda mais quando passei a considerar o
ônibus como possiblidade cênica. Em 2006 eu convido algumas pessoas para poder
fazer teatro no ônibus e falo disso com alguns professores, e alguns riram dessa
possiblidade, e ainda diziam que o único objetivo era chamar a atenção. Mas eu
193

acreditava nisso e a Lídia acreditava que éramos capazes de fazer e liberou o nome
dela para batizar a Trupe e nos abençoa para fazermos esse teatro no ônibus.
Quando a gente começa fazer o teatro, eu não era diretor, mas como a ideia era
minha o grupo me colocou nesse lugar. Não me entendo ainda como diretor, mas
proponho que a primeira coisa que deveria fazer era percebe essa realidade do
transporte público e ver como o teatro pode funcionar ali. Pegamos músicas, textos
poemas, pegamos de tudo um pouco para ver o que funcionava no ônibus e fomos
pra Ubatuba. Então a gente pega esse monte de coisas, cenas, e músicas e vai para
o transporte público. Ai a gente tem duas experiências: a primeira como o ônibus
lotado com as pessoas em pé, abarrotadas, com o ônibus correndo. Foi caótico. E a
outra apresentação foi com o ônibus quase vazio. Ali eu constatei varias questões,
uma delas era que eu precisava de uma velocidade menor, que o motorista fosse
parceiro, que era imprescindível para fazer esse trabalho, que a gente precisa ter um
jogo de distância, que a proximidade não era boa para o jogo cênico. Em fim, eu
percebi isso e a gente começou a ensaiar numa sala de ensaio. Aliado a isso nós
utilizamos a nossa experiência como produtores, já tínhamos um fundo de caixa
para produzir nossa peça, e já começamos a buscar parceiros para auxiliar na
divulgação. A gente já tinha tudo, só faltava o ônibus. Começamos o processo em
fevereiro, quando foi em julho eu já estava desesperado, tive uma intuição e fui num
marceneiro e queria que ele construísse um ônibus de madeira em miniatura pra
materializar o ônibus e fazer aparecer o real que precisamos. Uma dias semanas
depois, nos já havíamos enviado diversos e-mails, para as empresas de ônibus,
recebemos uma resposta de uma empresa de Guarulhos, porque eles estavam
desenvolvendo um projeto para conscientizar as pessoas sobre a depredação do
transporte público, fazer a politica deles, e precisavam de uma grupo de teatro para
fazer essa encenação. Eles precisavam de um grupo de teatro e nós precisávamos
do ônibus, fechamos a parceria. Eles tinham um ônibus especificamente para esse
projeto, que acontecia apenas duas vezes na semana, nos outros dias o ônibus
ficava a nossa disposição. E essa empresa ficou parceira nossa por 3 anos. A gente
conseguiu realizar o cordel por conta dessa parceria com essa empresa. A gente
estreia o espetáculo estreia no dia mundial 14 de setembro, se não me engano, que
é o dia mundial sem carros. A gente não sabia disso. E sai a nossa primeira crítica
do cara falando que no dia mundial sem carros aconteceu esse espetáculo. Dizendo
194

quem dera que todos os ônibus tivessem uma trupe Sinhá Zózima, que pensaríamos
duas vezes antes de pegarmos os nossos carros...uma crítica linda. Quando a gente
resolveu fazer a temporada, que durou três meses, pensei assim: como são apenas
32 lugares, eu acho importante a gente fazer duas sessões nos sábados e duas
sessões no domingo porque imaginávamos que muitas pessoas iriam querer assistir.
Ficamos dois meses e meio sem público. Tivemos público na primeira semana e na
última. Porque no meio disso não dava quase ninguém, aparecia uma, duas, três
pessoas e não apresentávamos para elas, mas preocupados porque não estava
como desejado. A segunda questão foi quando a Claudia Barral veio assistir. Ela
falou assim, falta o ônibus, eu não vejo o ônibus no espetáculo. E eu ouvi aquilo e
comecei a concordar com ela. Porque não era objetivo inserir o ônibus, nos apenas
queria encenar no ônibus, era uma curiosidade. Essa foi a primeira questão. Fui pra
casa com esse problema na cabeça e comecei a pensar na primeira assinatura
como encenador colocando a ação do ônibus, que é o momento que a Teresa fala
que vai esperar o Antônio e Madalena diz que também vai esperar. Que Carminha
vai esperar e que José também espera e todo mundo aqui, ela inclui todos os
passageiros, vai esperar junto e o ônibus freia, para, desliga o motor. E é de uma
beleza quando isso acontece porque o tempo para. E a gente fica 4 ou 5 minutos
parados, mas parece uma eternidade, parece que o tempo parou. O ônibus cria essa
sensação para o público. Ali eu comecei a me encantar por isso, com o que dava pra
fazer. Mas surgiram outras questões. A segunda questão que eu aponto, é que
quanto o público entrava ele abraça a gente, e a gente achava aquilo muito
estranho, porque tínhamos vindo do palco italiano que se vê o público no final e foi
muito engraçado. Por várias vezes eles queriam mudar a história, queriam que
Teresa casasse com José. Uma outra coisa linda que acontece é que Madalena não
sai de casa e a gente colocou a Carminha pra fora do ônibus chamando a Madalena
pra fora e, em são Paulo isso não acontece, mas no interior as pessoas levantam e
ajudam a personagem a descer do ônibus, a carregar a Madalena, a pegá-la na
mão. As pessoas, no ônibus, nós não tínhamos pensado nisso, querem falar,
querem abraçar, querem intervir na história. E a terceira coisa que eu aponto, até
mesmo na avenida paulista, as pessoas falavam ora gente, após a peça, que nunca
tinham assistido a um espetáculo de teatro, era a primeira vez. Várias pessoas
falaram isso, a gente ouvir tudo isso. A gente ouviu todos esses gestos, essas
195

palavras essa ação do ônibus parando e interferindo na recepção do público e isso


foi parar nas nossas discussões do grupo. Isso foi movendo a gente para gente
entender algumas potencias. Primeiro a potência do ônibus como personagem, mas
com símbolo do cotidiano, símbolo desse espaço do trabalhado, meu pai é um
desses trabalhadores, ele sai de casa de madrugada e volta somente 7 horas da
noite. Ele sai de casa de noite, de madrugada, e volta de noite. É a realidade da
população da nossa cidade. O ônibus é a uma casa em movimento para esses
trabalhadores onde as pessoas namoram, mandam mensagem, comem, dormem,
brigam, ouvem musica, pregam, roubam... acontece de tudo nesse lugar. E por ele
ser esse lugar da casa, desse lugar conhecido, ele atrai um público que já conhece
esse espaço que é dele, diferente do teatro municipal, onde eles não conhecem,
quem acham que tem que ter uma boa roupa, não é pra mim. E a gente foi
entendendo esse espaço como espaço desse homem comum. E foi entendendo
também que as pessoas que nunca tinha assistido teatro, uma parte delas, estavam
esperando esse encontro, o ônibus é o lugar propício para o encontro, para olhar
para o outro, A gente está muito próximo um do outro. Essas palavras vieram da
crítica de Thiago Germano, que Ivan Cabral leu e se interessou em levar o
espetáculo para participar do festival da Satirianas, e ligou para Lívia Deodato, que é
uma jornalista do jornal Estadão, e falou assim, conversa com esses meninos. A
Lívia nos ligou e saiu uma puta matéria como destaque da programação da
Satirianas, sendo que nem estávamos na grade oficial. Isso aconteceu no final de
outubro, ou inicio de novembro, da nossa primeira temporada, e tinha público para
uns 10 ônibus. Todo mundo querendo assistir e olhando para pro ônibus e se
perguntando como assim somente duas apresentações. Fizemos 4 apresentações,
mas ficamos sem voz para poder fazer. Mas foi lindo, a gente percebeu que as
pessoas queriam assistir a gente. Dessa apresentação o SESC consolação nos
convidou para fazer uma temporada o SESC verão em janeiro, mas exigiu que
fizéssemos ate seguro de vida para o público, foi um burocracia que tivemos que
organizar. Mas como a gente era muito organizadinho com a produção,
conseguimos dar conta de toda a burocracia exigida, e foi um sucesso lá e
prorrogaram a nossa temporada por mais um mês. Lá o Sebastiào Milaré assistiu e
ele estava criando uma serie de documentários falando sobre o teatro paulistano,
com grupos de 8 a 10 anos, a gente não tinha nem 1 ano, e ele nos convidou para
196

participar desse documentário que chamava teatro e circunstancias. São vários


documentários. A gente está em um desses que chama o não-lugar, a gente divide o
episodio como grupo teatro do centro da terra. São vários documentários. E depois
ele nos convidou para apresentar em vários lugares. Então a trupe começa neste
lugar e aí não para. São três anos de muitas apresentações e a gente começa a
criar o Valsa Número Seis, eu que sugeri o Valsa Número Seis, porque imaginava
que tínhamos que fazer um trabalho completamente diferente pra gente saber o que
realmente gostávamos de fazer. Então foi um trabalho bem cansativo porque a
gente ensaiava ele, mas tinha muitas apresentações do cordel. E aí demorou muito
pra estrear esse trabalho. A gente estreio no SESC paulista em 2009. E com isso,
no meio desse trabalho, a Vanessa escreve o projeto, que a gente ganhou em 2010,
da FUNART, para fazer terceiro trabalho que era o poeta cavaleiro, um infanto-
juvenil, completamente diferente dos outros, são três trabalhos muito diferentes, mas
que foi muito importante para saber o que a gente queria fazer. Depois disso o
grupo entra em crise. E eu fui estar direção. Fiz um não de direção teatral com o Lub
da 19, do grupo XIX de teatro, que era uma escola livre de teatro em Santo André.
Depois passei na primeira turma de direção da escola SP escola de teatro. Então
fiquei 3 anos estudando direção, eu fui estudar. Comecei a questionar muito o grupo,
que a gente não era um grupo de pesquisa, a gente é um grupo de montagem, a
gente tem que entender se vai ser um grupo de pesquisa, tem varias questões, a
questão do público, onde a gente apresenta, o que a gente vai fazer... então eu fui
buscar isso. A Tati foi estudar produção e gestão, que é minha esposa. Durante dois
anos a gente ficou num limbo, entre aspas, de encontros com os grupos, de novas
montagens... eu lembro de um embate muito forte, porque querendo ou não, a gente
conseguiu sobreviver durante três anos com o SESC, apresentando em SESC, e
nesses dois anos parados, surgiu a possibilidade de montar o Cordel no teatro, já
que tínhamos feito tanto sucesso. Aí foi quando eu comecei o grupo começou de
fato entender o que queria ser. Eu falei que a Trupe e um grupo pra pesquisar o
ônibus, não faz sentido fazer um espetáculo no teatro. Não que hoje eu não pense,
hoje eu estou fazendo uma peca que chama a cobradora que vai ser no teatro. Mas
é uma outra perspectiva de ir para o teatro. Mas naquele momento, a justificativa de
ir para o teatro era de sobrevivência. Era de poder vender o trabalho. Nesse período
conheci o Rudiney Borges que foi um parceiro nesse sentido teórico de
197

fundamentação, apresentou para gente Paulo freire, Martim Buber, história oral, a
gente encontrou um núcleo de história oral da USP. Aí eu comecei a estudar
mesmo. Pra mim foi muito importante pra saber o que a gente queria fazer, no que
se aprofundar. Aí foi quando eu fui me aproxima do Alexandre matos, lá na
UNESP... em fim, muitas coisas, conheci a Dani Sampaio, que é esposa do Eduardo
Acamoto, que estava mestrado sobre produção e gestão cultural... Durante esses
dois anos a gente cria o nosso projeto de fomento para fazer... ah! Não falei uma
coisa importante. Nesses três anos na verdade, o inicio da crise foi quanto a gente
decidiu fazer uma mostra de teatro no terminal parque dom Pedro, que na verdade
quem encabeçou isso foi eu e Tati. E A gente resolveu convidar grupos para fazer
apresentações no transporte público e pedir a liberação da SPtrans para fazer a
liberação. Isso em 2009. Quando a gente fez essa mostra, A gente não teve
nenhuma verba, era uma mostra que ia custar 85 mil e a gente fez com 1,500 reais.
A Tati fez uma pesquisa e constatou que das pessoas que estavam no transporte
público, assistindo as apresentações, 75% delas nunca tinha assistido uma
apresentação de teatro. 95% delas escolheriam um ônibus que tivesse
apresentações de teatro para se locomoverem pela cidade, e 100% aprovavam o
que estamos fazendo. E isso foi a cereja do bolo para falar assim, a gente está no
lugar errado. A gente precisava ir para o parque dom Pedro, é aqui que nosso
trabalho var fazer sentido. O Parque Dom Pedro é o maior terminal de ônibus, em
numero de passageiros da américa Latina. Circulam 200 mil pessoas diariamente
por lá, na sua maioria para as periferias da cidade de São Paulo. Então isso foi um
start para vária coisas que foram pipocando que a gente foi realizando ao longo dos
próximos 6 anos. Estou cansado, já falei demais, mas tem muita coisa pra te contar.
Esse momento é crucial pra gente, quando a gente se transforma muito, entende
muitas coisas e faz projetos que são muito potentes, aonde nasce o projeto do
dentro é lugar longe; vai nascer o projeto toda terça tem trabalho e tem também
teatro; nascer a residência artística... em fim, tem muitas coisas pra te contar que
seria legal A gente marcar pra conversar em um outro dia porque agora eu não vou
dar conta, é muita coisa.

JJ: Tudo bem, Anderson, eu te deixei falando para que você pudesse atualizar as
informações que tens em relação ao teu trabalho. O que é mais legal de fazer essa
198

pesquisa é realmente dar voz as nossas pessoas, de teatro, que não são ouvidas
realmente, ainda mais a gente que é muito novo, pouco conhecidos, não
apadrinhados, que a academia não se interessa. E muito interessante saber de onde
a gente vem, quem somos o que estamos dizendo. Eu não quis interromper por
respeitar essa ideia. Mas a minha ideia, Anderson, é entender como você enquanto
diretor, desenvolve as estratégias para construir os espetáculos. Entende? Esse é o
ponto chave da minha pesquisa.

AM: por eu ser um pouco prolixo, a minha intenção é trazer pra você uma estrutura
que depois você compreenda o porquê de tudo que eu disse. Só para arrematar,
quando eu termino a SP, e aí todos esses estudos, esses encontros, a gente cria
uma nova logo, por exemplo, eu consigo contar a história da trupe através das logos,
a gente vai criando as logos porque são transformações do próprio grupo. A gente
nomeia os nossos movimentos de pesquisa. A trupe considera 5 os nossos
movimentos de pesquisa pra dar conta do que a gente percebe, o que A gente faz, o
movimento sobre o espaço. o movimento de atuação, o movimento de pesquisa do
público. A gente nomeia o público como movimento de pesquisa porque ele nos
interessa olhar, para o público entender o público, que público, aonde; a
dramaturgia, porque a partir desse momento a gente começa a desenvolver
dramaturgias, porque até aqui a gente só pegava dramaturgias prontas que é o caso
do cordel do valsa e do poeta, depois a gente não pega mais textos prontos; e da
produção. Depois eu posso te dizer um pouco sobre como cada um. Mas a
produção... sem a produção não existiria a trupe Sinhá Zózima. Quando falo da
produção estou falando também da gestão. Que impulsiona e gera as metodologias
e as estruturas pra esse grupo existir. O mundo não estava preparado para receber
um teatro no ônibus e a gente teve que descobrir, inventar, ferramentas para poder
ele existir, senão ele não existiria. Podemos detalhar isso no nosso próximo
encontro. Pra finalizar ou ler uma coisa que escrevi e vou ler pra você. Está
publicado em uma das revistas que vou mandar pra você. Diz assim: Sempre as
pessoas me perguntam como surgiu a ideia de fazer teatro no ônibus. Em instantes
o tempo-vida se apresenta como resposta. A ideia é fruto da estrada que
atravessamos ao caminhar. É lamparina que necessita do querosene, do pavio, do
fogo e da escuridão pra iluminar.
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JJ: muito bom, querido. Então a gente vai caminhando e nos falamos na sexta-feira
às dez da manhã.

SEGUNDO DIA DE ENTREVISTA


JJ: Quem te formou? Já perguntei. Como fazer teatro já foi... Deixa eu te perguntar:
você me falou que começou a dirigir pela própria demanda do trabalho que você
queria desenvolver e não tinha essa pessoa de fora pra ver e propor as coisas. Foi
pelo fluxo da demanda que você virou diretor?

AM: Isso, foi.

JJ: E, por onde você começa um espetáculo, então?

AM: Pelo ator! Pra mim é o lugar que eu tenho mais identificação, por que eu sou
ator. Então pra mim o primeiro... Eu acho que tem duas coisas muito fortes... Mas,
vamos lá. O primeiro lugar é o ator, é... E... Eu lembro... O cordel, acho também que
tem essas duas diferenças, deixa só eu escrever aqui... Eu esqueci uma coisa... É...
O cordel a gente tinha o texto, então a gente foi pro texto pra poder... E como a
gente vinha da fundação e como eu não era diretor... A gente fez tudo muito
inspirado na própria escola. Então, estudar os personagens, enfim... A gente foi
desenhando isso. Foi desenhando do jeito mais tradicional o personagem. Mais aí,
eu acho que tem uma coisa... Engraçado isso, mesmo no cordel, que tem essa coisa
mais tradicional, de... que a gente pedia para os atores trazerem experimento de
cada personagem... O Vertigem trabalha assim, né? Eles chamam de workshop,
onde o ator trás... Trás aí o seu olhar sob o personagem, sob uma cena, sob um
jogo, uma vivência, enfim... É... A gente encontrou logo no começo, o Emerson
Danese, que trabalha com Antunes Filho, ele apresentou pra gente o Gaston
Bachelar que foi muito útil até hoje pra mim, como eu andava muito a pé e pegava
muito transporte, eu devaneava muito. E eu não conhecia essa palavra, devanear,
eu tinha medo, eu achava que eu era um pouco louco, assim. Saia fora da casa,
sabe? Eu tinha um pouco de receio, até. Quando eu conheci, Gaston Bachelar, e aí
eu conheci a Poética do Espaço, o livro que eu mais amo dele, porque eu não li
200

todos, também. Nossa! Pra mim foi um balsamo, eu me encontrei ali, um pouco. Né?
Os devaneios... Ficar naquela imagem, ficar desdobrando a imagem... Aí eu me
encontrei muito nisso, nele. Aí depois, sei lá... Depois de dez anos de teatro, não de
teatro só, da minha vida, eu tinha essa coisa do devaneio, né, eu te falei já que eu
fugi de casa, essas coisas. Ia pra cima da laje e ficava horas, sei lá... Comigo, né,
Então tinha isso... Essa necessidade. Mas, tinha uma coisa, aí, que eu já contei pra
você, mas que eu vou linkar que pra mim tem haver com todos os trabalhos da
Trupe. O que, que a gente fez? A primeira coisa que a gente fez pra montar o
Cordel, a gente foi pro ônibus. A gente pegou vários textos que a gente conhecia e a
gente foi pro ônibus. Não ensaiou em nenhum ônibus, a gente não conhecia o
itinerário, a gente não conhecia nada, a gente se jogou no ônibus.

Jackson: Ônibus de linha, normal?

AM: Ônibus de linha normal, né, E aí, foi nesse risco, nessa vivência, nessa lida,
com o que se apresentou. Que eu pego algumas coisas, então, ah... O lugar da
velocidade, o lugar restrito do ônibus, o lugar de como ocupar esse ônibus mais,
porque as cenas não podiam acontecer muito próximas... Isso sem eu ser diretor eu
já saquei, logo na experiência, né, ouvindo os próprios atores. Quais foram as
dificuldades? O que vocês perceberam? Aí, eu percebi isso, percebi aquilo... As
músicas foram muito interessantes por que a música ocupava o ônibus inteiro. Ah,
tá! E aí no texto da Cláudia Barral não existe isso, né, mas, tem a personagem que é
o cantador e a cantadora, que canta as músicas. A cantadora, até por causa do
Gaston Bachelard, a gente... Eu trouxe pra ela o elemento do rio, então ela era a
cantadora por que ela era o rio São Francisco, que passava pela cidade e que tinha
também, no Gaston Bachelard você tinha no livro A água e os sonhos, eu acho, eu
acho que é A água e os sonhos, que ele vai falando e vai tendo um desdobramento
sobre a água clara, as águas primaveris, a água barrenta, as águas profundas,
então ele vai tendo várias imagens sobre as águas. Pra cada personagem a gente
trouxe uma água, a Tereza era essa água mais, mais... é... límpida, né, mais
limpinha, mais transparente. A Carminha era a água barrenta e a Madalena era as
águas profundas. E, a Priscila que fazia a cantadora ela era o rio que abarcava
todas as águas. Então, nos momentos cruciais das personagens, nos picos das
201

transformações das personagens, eu duplicava as personagens com o rio, a Priscila


também fazia Tereza, a Priscila também fazia Carminha, a Priscila também fazia
Madalena. Então, tem cena também que ela duplicava por que era uma necessidade
minha de conseguir deixar muito claro o conflito e o momento de transformação de
cada personagem. Então pra eu ganhar o ônibus eu fazia essa brincadeira.

JJ: Entendi.

AM: Então, eu acho muito importante deixar claro, eu posso falar dos outros
trabalhos se você quiser, mas só pra poder deixar claro essas respostas que você
me perguntou. Eu começo pelo ator, mas o ator na vida, na experiência, né, E, a
partir disso que eu olho e depois disso que eu venho.

JJ: Ô, Anderson, desculpa!

AM: Pode falar.

JJ: Isso se repete nos outros espetáculos também?

AM: Se repete.

JJ: Ou foi a metodologia inicial pro Cordel e os outros foi amadurecendo outras
coisas?

AM: Se repete, aí eu não vou falar do Valsa e do Poeta. Eu acho que o Valsa foi
muito complicado, o Valsa ali eu... Enfim... Eu não lembro também. Foi muito
picotado, foi um processo muito picotado, aí dois atores saíram... A gente estava
apresentando muito Cordel, ai eu não tenho muita memória do Valsa, até por que eu
acho que o Valsa, acho não tenho certeza disso, o Valsa e o Poeta eram tentativas
racionais do grupo de experimentar outras coisas, tanto que depois que a gente que
a gente experimentou essas coisas, a gente para pra estudar, faz mostra de teatro, a
gente entende que a estética do Cordel, o tipo de dramaturgia do Cordel de fato
interessava a Trupe. Acho que todos os outros espetáculos, O dentro é lugar longe,
202

conversa muito dentro do Cordel, mas eu tenho um fogo danado e eu gosto de fazer
coisas diferentes dessa estética, não com a Trupe, né, com a Trupe eu venho
preservando a Trupe, venho me aprofundando nessa estética. É... Que eu nem sei
se eu sei nomear direito ela. Mas, eu venho experimentando outras coisas. Eu fiz
Iracema, que é um trabalho muito diferente do que é o da Trupe. Fiz o Desterro,
agora recentemente, que também é uma outra pegada, apesar de ser uma
dramaturgia da Cláudia Barral, é uma outra estética. Então pra mim é um lugar
também de treino pra potencializar aquilo que eu faço com a Trupe. De respiro,
também, né, Me distanciar um pouco daquele universo e sentir vontade de
mergulhar mais fundo naquilo que a Trupe vem fazendo.

JJ: Entendi. Mas isso aí que você faz, esses experimentos são sempre no ônibus?

AM: Sim, por enquanto sempre no ônibus. Sempre no ônibus.

JJ: Entendi. Vamos p... (mudança de ideia) Não! Deixa eu voltar um pouquinho
antes. O último é Os minutos que se vão com o tempo?

AM: Isso.

JJ: Vocês começaram dessa mesma forma, nesse mesmo início?

AM: Então, vou te dizer como que a gente começou. Isso na verdade vem da Lídia.
A Lídia traz isso pra gente, olha vi depois a gente reflete. É... em os minutos a gente
tem uma tríade de inspiração. Então a gente tem a Odisseia de Homero, que conta
essa travessia de Dirceu de vinte anos tentando voltar pra casa, a gente vai pegar
essa história com inspiração para fazer o espetáculo pro passageiro que está indo
pra casa. E se desloca vinte anos, assim, uma eternidade pra poder chegar em
casa. A segunda inspiração é a história de vida de um passageiro, a gente queria
fazer isso com vários, na verdade tem vários, mas eu vou explicar isso, mas a gente
fez com um por que a gente percebeu que era uma demanda, a gente gostaria de
fazer com vários, mas é uma demanda gigante... Porque a pessoa como eu não
para de falar, adjetiva, ela quer contar a história dela, né, Enfim... E aí você fica
203

assim, meu Deus! Eu vou dar conta de uma pessoa, então. Pra você ter ideia, o
Agnaldo levou pra gente sete diários.

JJ: Uau!

AM: Que ele escreveu de anos, eram diários que ele escreveu em dois mil e dez,
diário de noventa e três... Ele escolheu sete diários de momentos da vida dele que
eram importantes e entregou um para cada ator. Sete ou foi seis? Acho que foi seis.
Então tinha essa... Então vamos ficar com ele só. O Agnaldo é um desse
passageiros que é da residência artística que a gente faz no Terminal Parque Don
Pedro, que eu acho que eu não cheguei a falar sobre isso, mas depois de dois mil e
doze, onze, doze... A gente já estava fazendo a residência, a gente já fazia ações
pontuais no Terminal Parque Don Pedro, mas nesse ano a gente resolve ficar, morar
lá. Então, a gente reside, passa muitos dias no Terminal Parque Don Pedro. É...
Porque a gente percebia nos projetos que sei lá, a gente fazia dois meses de
temporada do Cordel, e aí a gente percebia que no finalzinho da temporada
passageiro começava a entender: Aí, tem que vim mais cedo porque tinham poucos
lugares! Poxa eu queria tanto assistir mais já vai acabar! A gente começou a
perceber que o passageiro ele não tinha noção... É do artista sob o espetáculo. A
gente tem uma história bem triste até que, é assim, a gente na última apresentação,
a gente fez até duas sessões nesse dia, vinha muita gente assistir a gente e uma
dessas sessões tinha uma família da cidade de Tiradentes que é bem longe, né,
duas horas e meia, quase, duas horas assim de viagem. E eles vieram pra assistir a
gente no último dia, não tinha mais ingresso e eles nunca tinham assistido uma peça
de teatro. Aí o pessoal da nossa produção começou a falar com público, com os
artistas, tinha muito artista pra assistir, pra poder doar o ingresso e nenhum artista
doou. E a gente ficou assim, tão triste com isso. Gente, a gente da classe artística,
assim, é filho da puta mesmo. Tem um povo assim, desculpa dizer, um povo nojento.
Que fala, fala, mas não prática nada do que fala. E a gente ficou muito mexido com
essa história e é dessa história, que nasce o projeto Toda terça trabalho tem
também teatro. A gente precisa fazer uma coisa toda semana, todo horário, todo dia,
mesmo dia, pro público começar a entender que ele precisa se programar. Ele não
consegue, ele demora pra entender. A gente ficou três anos, Jackson, fazendo
204

ações no Terminal Parque Don Pedro, todas as terças feiras, convidando vários
grupos pra poder se apresentar no nosso ônibus, então teve roda de conversa, é...
Contação de história, música, dança, poesia, teatro, show musical, balada, a gente
fez de tudo. Era um festival multicultural no terminal e foi muito bacana. Ali a gente
atingiu muito passageiro. Não sei se você já chegou ver, mas tem muitos vídeos
desse projeto Toda Terça...
Vídeos que a gente fala com o artista, mas também fala com o público, mais com o
público do que com o artista. E é bem interessante. É... Mas... E aí o Agnaldo é um
desses passageiros, que acompanha, né, Que acompanha a gente. Aparece quase
toda semana, tem o Roberto, o Roberto se ele faltou três ou quatro terças é muito.
Então ele estava todas as terças lá. Então o Agnaldo é um deles. E a terceira e eu
acho que essa é a mais importante, das inspirações é que eu pedi pra que eles... Eu
criei o procedimento e vou falar disso depois, vou anotar aqui vou falar disso depois.
Assim, eu criei. As vezes a gente não cria nada. É a gente vai fazer uma travessia, o
nosso trajeto era na linha mais longa da cidade de São Paulo, então era sair do
Parque Don Pedro e ir para a cidade de Tiradentes, a gente ia fazer só essa linha. E
eu falei assim, a gente vai vivenciar esse trajeto a pé. Então a gente vai fazer das 7h
da manhã até as 7h da noite a gente vai fazer uma travessia, do Terminal Parque
Dom Pedro, pro Terminal de Tiradentes. Nessa travessia, essa travessia vai ser uma
travessia solitária. É sozinho! Então cada um vai escolher um dia, eu pedi pra que
cada um escolhesse o dia, escolhessem a razão. Nossa, eles ficaram loucos... Foi
terrível, teve gente que disse: - Eu não vou fazer. Foi louco isso. E eu falei assim: -
Eu também vou fazer, mas vou fazer por último. Pra poder dar o exemplo, porque eu
também não ia fugir da raia. É... E aí eu falei... Tem alguns dispositivos... Os
dispositivos eram, deixa eu ver se eu lembro, não sei se vou conseguir lembrar de
todos, vou lembrar de alguns. Eles tinham que levar algo pra eles doar, tinha que
doar alguma coisa no caminho, eles tinham que anotar, colher, né, colher imagens,
frases, pensamentos que viam na travessia. É... Eles tinham que permitir, na
verdade era uma deriva, eles tinham que permitir... Acontecer, né, Estar aberto para
o que pudesse acontecer nesse caminho. E foi de uma beleza, nossa! O legal seria
conversar com os atores. Eu fiz a minha, posso dizer sobre a minha. Eu fiz por que
na verdade foi um processo de dois anos, não... (titubeou) vou focar mais. Então,
essa travessia é a mais importante para o processo.
205

JJ: Esse é qual espetáculo mesmo Anderson?

AM: O último que você perguntou, os minutos que se vão com o tempo. E teve gente
que desistiu, que não conseguiu fazer e aí isso foi de uma dramaturgia bela, assim...
Teve gente que fez no caminho contrário, assim, todo mundo fez pela mesma
calçada, mesmo roteiro, teve gente que fez ao contrário e isso modificava
completamente a visão do trajeto. Teve gente que fez no sol mais quente do ano...
Minha esposa, assim, ela foi no dia mais quente. Teve gente que fez no dia mais
frio, na chuva... enfim... foi lindo! Eu ainda fiz o oposto, eu fiz do Terminal de
Tiradentes pro Terminal do Parque São Pedro. E aí foi muito legal porque foi tudo
muito diferente, mesma coisa mais tudo muito diferente. Todos eles, a gente
esperou todo mundo fazer pra gente conversar, menos eu, eu ainda não tinha feito,
ainda. Mas a gente conversou com todos eles, né. Quando eu fiz, a gente tinha
encontro. Então a minha noite foi com eles. Então eu já cheguei morto, assim, era a
experiência ali conversando com tudo que eu tinha vivenciado e os textos que eu fui
escrevendo. Na revista, eu vou mandar isso pra você, já. Você chegou a ter acesso
aos materiais escritos?

JJ: Não.

AM: Tá, deixa eu colocar aqui. Eu vou mandar aqui pra você, porque na revista Os
Minutos que se vão com o tempo... Se chama Fagulhas Dois, tem um texto meu, de
uma composição de todas as frases que eu fui escrevendo. Como que eu faço pra
mandar pra você? Ah, achei! Vou mandar, tá aqui o link, tem todas as revistas.

(Problemas de rede)

AM: E aí... Esse foi o principal dispositivo, dessa travessia solitária, por que o
espetáculo é o caminho de cada um que vai se cruzando, aí eu faço o mensageiro
então eu entrego cartas e vou conectando e ampliando essas travessias. Eu atuo
nesse espetáculo e tem isso também, né? Eu atuo. Eu atuo, eu não consegui, é, foi
bem difícil para mim. Isso, aí é um dos procedimentos mais importantes do
206

Minutos... o segundo e que pra mim tem tudo a ver com a questão desde lá do
Cordel, nego, a gente vai de transporte público. Desses dois anos a gente fica um
ano ensaiando no transporte público e é muito, muito difícil isso, porque você não
tem texto decorado, as marcas não estão prontas, você desafina, gente tem histórias
muito cabeludas... Teve uma história muito foda... que.. é... A minha busca do
transporte público bem difícil porque eu tinha um grande conflito comigo: eu não
quero desrespeitar ninguém, porque as pessoas estão pagando passagem, elas
estão cansadas, elas estão voltando para casa e eu tinha uma grande questão que
era eu tinha que ser muito cuidadoso, tem que ser aos poucos, né? E a gente foi
para isso! E aí chegou um dia que a gente ia testar umas roupas, né? E a gente
queria testar e a gente sabia que eram roupas claras e a gente foi com um monte de
roupas claras, fazer... Ensaiar no ônibus, pegar um ônibus e ensaiar no Terminal
Parque Dom Pedro pra cidade de Tiradentes. E aí num desses ensaios já tinha sido
horrível, tinha sido horrível esses ensaios, era muito difícil, muito difícil mesmo. Por
que a gente escolheu ainda um ônibus, que é um ônibus biarticulado, que é aqueles
ônibus que é o dobro, que é gigante. A gente queria esse ônibus, enfim. E a gente
apanhou muito. É... Nesse ensaio a gente chegou sempre cuidadoso, sempre calmo,
tal... E aí um evangélico, quando a gente começou a cantar, falou que a gente
estava fazendo macumba, que era coisa de macumba. Antes fosse, a gente devia
fazer mesmo. Mas... E aí ele queria bota a gente, ele escorraçou a gente do ônibus
e a gente não conseguiu fazer nada. Eu fiquei, assim, perplexo, e aí eu não
conseguia fazer nada e aí os passageiros começaram a defender a gente.
(pausa)
AM: ... isso foi muito importante ter acontecido, foi difícil ter acontecido, mas foi muito
importante, porque ali a gente começou a perceber que, uma das coisas que a gente
começou a perceber que, o espaço é deles, mas também é nosso. E aí a gente não
vai impor, mas a gente também, entendeu? A gente tem que descobrir uma outra
energia pra lidar no ônibus, que não é aquela energia do vendedor que Ô... no sei o
quê!!!! A gente fez algumas vivências com alguns grupos no próprio transporte e a
gente percebeu esse lugar muito da rua... E é foda isso! Por que o ônibus não é rua,
ele é rua, a rua entra tem um barulho, tem as pessoas que entram e saem, mas é
diferente da rua, porque você está muito próximo, ao mesmo tempo que ele é da rua
ele é intimista, sabe? É arena, né? Enfim... E aí a gente começou a ter uma
207

consciência desse corpo que contamina o espaço, que aos poucos... Que continua
com respeito, com cuidado, mas que presentifica, que respeita aquele que não quer.
E outra coisa que é muito difícil para gente lidar como ator e pro diretor também,
porque eu tinha que ir explicando isso pra eles, tinha que também ir aceitando
porque também estava atuando, é que muitas coisas que a gente programava fazer,
não rolava, não aconteciam. Então você também estava no lugar, ali, de risco,
daquilo que você mais ou menos planejou, não rolar. Então, a gente tinha que
começar a desplanejar algumas coisas deixar as coisas que aconteciam, transformar
a as coisas que aconteciam em dramaturgia, sabe? Então, tem várias histórias. Eu
contei a história da moradora em situação de rua para você, né?

JJ: Não.

AM: Eu contei do outro rapaz que... Conto essa história? Ou vou me prolongar
muito? Não, deixa eu responder outras coisas. Depois eu conto essa história. Então,
acho que assim, essa ideia de vida, de se jogar pra uma coisa que a gente ainda
não sabe o que vai acontecer, deixar que essa experiencia, esses dispositivos, né?
Que é um dispositivo, mas é que ele traga pra gente alguns apontamentos do que
fazer, de como fazer, como resolver. Eu acho que é algo que acompanha todos os
trabalhos, né, ou a maioria deles, os trabalhos mais cruciais da Trupe Sinhá Zózima,
aí eu queria falar duas coisas que eu escrevi aqui... Não! Tem outra pergunta ou
você quer desdobrar essa ainda?

JJ: Vai lá continua, pode continuar.

AM: Tá! Acho que tem uma coisa, também da Trupe muito forte... Não! Vou falar
primeiro como diretor. O que, que eu entendi quando eu fui estudar? Que para mim
isso foi muito importante, duas coisas: que o diretor, ele... eu percebi isso na escola,
né. Tinha... Eu estudei na SP, na SP é um outro modelo de estudo, um estudo
também pela experiência. Então a gente tinha o momento de levantar materiais, um
segundo momento, na época que eu estudei, pode ter que tenha mudado. O
segundo momento que você vai experimentar isso com os próprios aprendizes,
então era o diretor aprendiz, o cenógrafo aprendiz, o figurinista aprendiz, o ator
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aprendiz, todo mundo aprendiz. E a gente tem que criar um experimento para
apresentar. E, aí gente vai para essa experiência, e, depois da experiência e a gente
vai refletir sobre o que aconteceu. Então, na SP tinha esse início que era, o estudo,
o experimento e a reflexão. No estudo eu ficava louco, não estava entendendo nada,
não vou conseguir fazer, ficava boiando. Quando chegava nas experiências eu me
jogava, e me saía e não me saia tão mal, não. E quando a gente ia para reflexão, o
que mais tinha era os paus que acontecia entre os grupos, mas era assim, quase
todo o grupo tinha pau quase de brigar de se bater, coisa feia. Eu ficava assim,
gente, eu não tive nenhum tipo de problema desse. Passou o primeiro semestre,
chegou outro semestre, e isso foi se repetindo e uma das coisas que eu entendi, que
talvez seja para mim um ponto, né, é minha observação é que o diretor tem esse
lugar, também do RH, né. Esse lugar das relações, de cuidar das relações, de como
apresentar o figurino que veio, o ator que curtiu, é porque parece que é um ninho,
um ninho ali, de possibilidades de encrenca, de rolo, por que tudo vem
atravessando, e, são questões humanas. Então, eu saquei, uma das coisas do
diretor, que eu senti e que eu falei: Aí, eu sou bom nisso. Era, era...

JJ: Mediar os conflitos.

AM: Mediar os conflitos, né? Era cuidar, e quando eu tó falando cuidar, não é esse
cuidar de... Aí, nossa coitado! Não, era justamente, né, no provocar. É isso que ele
precisa. Precisa na verdade de ficar louco, precisa ficar nervoso, porque, né, eu
lembro do Júnior. O Júnior em um dos processos ele tem uma questão muito forte
com a bebida, né, o padrasto dele... Várias questões com bebida, e o personagem
dele, como a gente partiu da criação dos personagens pros Minutos que se vão com
tempo, era partir das caminhadas, era partir do que ele trazia. Não era, aí, você vai
fazer isso! É, você que tá criando. Nesse espetáculo, você que tá criando seu
personagem. Eu falava isso pra ele. Cria, se vocês não criarem, não vai ter nada. E
tudo que ele trazia, era um morador em situação de rua, um homem que saiu fora da
casa, um cara que... Ele trazia esse personagem muito a margem, mas ele negava
esse personagem o tempo inteiro, ele negava, e aí era muito foda lidar com ele.
Porque? O figurino vinha isso, suas músicas vinham isso, a dramaturgia vinha isso,
mas ele não via isso, ele não queria ver isso. Pra você ter uma ideia, até hoje a
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gente brinca com ele assim, a gente vai fazer Os Minutos... Ele veste o figurino dele,
mas assim, antes de vestir o figurino dele, é muito incrível porque a gente faz outros
espetáculos e isso não acontece, mas assim não dar dois segundos, dois minutos,
começa a aparecer um monte de bêbado, monte de gente em situação de rua
procurar ele, pegar o violão dele, e ele tem ainda uma questão com isso, sabe?
Então, eu ia provocando ele, explicar não adianta, falar não adianta, tudo também
não adianta, então ele vai ficar louco, ele vai enlouquecer porque é isso, né? Eu ia
provocando ele nesse lugar. Então, com cada ator, também, você vai descobrindo,
eu trabalho muito assim, com cada ator você vai descobrindo como arrancar o
melhor dele, né, como trazer a potência dele. Não é o mesmo jeito, não é do mesmo
jeito que você vai lidar com todos. Então e saquei que pra mim uma das coisas que
o diretor, era lidar com esse humano, né, não era lidar com a obra em si, era lidar
com o humano, né. E a segunda coisa que para mim foi muito... Nossa! Isso foi
muito interessante e eu venho praticando bastante, mas eu sinto também que é bem
angustiante, é por que como eu nunca fui dessa coisa da leitura... Ah, eu conheço
um pouco de cada coisa, não consigo me aprofundar muito, aí os jogos da Viola
Spolin, a metodologia de Stanislavski, eu nunca fui disso. Eu vivenciei isso como
ator, porque eu estudei isso, com certeza eu me inspiro, tem coisas deles, mas eu
não sou aquele que vai se aprofundar naquela metodologia. Aí, vou pegar isso, vou
transformar isso, não! Por que o que eu saquei na SP é que a criação do diretor, pra
mim, tá. É a criação de procedimentos, procedimentos de criação é o lugar de
potência do diretor porque é neles, para mim, que revela a obra, o espetáculo.
Então, eu sinto que eu ao longo desses anos, e aí eu senti isso muito mais depois
que eu fui trabalhar na fábrica de pintura, que é um projeto artístico social, aqui em
São Paulo. Estou trabalhando há 5 anos com jovens, 50 a 60 jovens aprendizes que
eu vou dirigir um espetáculo, que eu vou construir um processo de criação com eles
durante 1 ano e no final desse ano a gente cria um espetáculo e a gente circula com
esse espetáculo por algumas fábricas. E aí, eu, com eles eu descobri a escrita, a
dramaturgia, fui descobrindo algumas coisas e também potencializando esse lugar
de criar procedimentos. É... mas eu sinto que pra mim... Eu estou no processo
agora, que eu fui experimentando várias coisas, todos os outros diretores já têm
toda uma estrutura do espetáculo e eu não tenho, começou a nascer agora, mas aí
eu já estava bem angustiado. Sabe? Eu comecei a eu ficar angustiado. Porque,
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nossa, meu! Eu sou lento mesmo, sou devagar, mais e aí... Aí começaram a surgir
umas coisas muito foda, a que bom, a, então tá... Meu caminho é esse mesmo.
Porque eu vou lidando pra mim com o tempo, então pra mim o tempo... E eu sou
super abstrato, ou não, mas eu não sei explicar muito de outro jeito, mas para mim o
tempo revela, o tempo vai revelando algumas coisas, vai revelando quem vai fazer
aquele personagem, vai revelando que dramaturgia é, vai revelando qual é o
procedimento que a gente foi criando que de fato é importante, porque naquele
grupo, aquele encontro com aquelas pessoas, eu acredito muito nisso, é desse
encontro que nasce espetáculo, então tem alguma coisa que essas pessoas juntas
querem dizer e que um vai se contaminando e um vai se provocando e um vai
nascendo, vai revelando, aquilo que a gente naquele tempo e espaço veio para
dizer. Então eu crio esses procedimentos, eu vou inventando esses procedimentos,
vou devaneando, também, vou me permitindo, falar: nossa! Porque isso? Sei lá! Vou
criando... E aí desses procedimentos nascem as coisas. Então eu acho que são
esses dois pontos, né, que eu descobri que é cuidar dessas relações e inventar
esses procedimentos, que eu sinto que vem em todos os meus trabalhos.

JJ: Me fala, se você conseguir, como você ou a partir de onde, ou, como você
concebe seus espetáculos? Por exemplo, no Cordel você me falou de um signo
muito importante que eu consegui identificar na sua fala que foi o rio, né, a água
como metáfora para a vida daquelas personagens e isso talvez tenha permeado
toda sua encenação, né, durante o percurso do Cordel.

AM: Sim! Acho que no Cordel foi o rio, nos Minutos foi a casa, nos Minutos, não,
mentira, no dentro é lugar longe foi a casa, aí gente se aprofundou na poética do
espaço do Gaston Bachelard e nos Minutos eu acho que foi a viagem pra dentro de
si. Eu acho que resumindo que a viagem pra dentro de si, que a gente busca, que é
esse... A travessia deles é muito forte. Bom, pra responder essa pergunta eu vou
explicar também o Dentro que aí, talvez, dê mais corpo para entender isso. Como
que a gente começa o Dentro? O nosso objetivo, era fazer o que a gente fez nos
Minutos, era fazer no Dentro, então era pegar histórias de vida dos passageiros para
construir o espetáculo, só que quando a gente ganhou o edital de fomento, nosso
primeiro edital de fomento do teatro. A... vai ter um processo de eleição em São
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Paulo, acho que era... Acho não, era a saída do Kassab para entrar o Haddad e
quando acontece isso, como já era uma gestão do Kassab, era uma gestão muito
mais difícil, eles proibiram a gente de entrar no terminal Parque de Dom Pedro, a
gente já vinha fazendo uma vivência, a gente tinha cartas, tinha histórico, tinha tudo
que comprovava que a gente não estava agindo de má fé, que eles tinham liberado
pra gente, mas a desculpa deles é, agora tem eleição. Porque eu acho que o
Kassab ia concorrer, enfim, A gente não pode divulgar nada, nem podia fazer nada e
eles eram medrosos para caramba, tinha um cara lá que era bem complicado de
lidar e eles proibiram a gente e a gente ficou louco com isso. Por que o nosso
projeto era fazer no Parque de Dom Pedro, só isso mudou tudo, né. Fodeu! Aí nessa
lida de entender o que a gente ia fazer a gente... Eu criei um procedimento e disse,
olha, a gente vai fazer um... Junto com Rudinei... E o procedimento era, fazer uma
vivência de história oral, que a gente estava se aproximando da história oral, em 24
horas, a gente ia passar 24 horas contando histórias de vida. E aí, como que isso ia
acontecer? A gente dividiu o tempo por ofícios, aí existia o ofício da manhã, o oficio
do meio dia, o oficio da tarde e ofício da noite, enfim. Dividiu, e cada ofício desse era
experienciado no espaço da casa. Na revista Fagulhas tem tudo isso descrito, na
revista Fagulhas 1, né? Cada oficio era vivenciado no espaço da casa. Então, meio-
dia era na cozinha, a noite era no quarto. A... era o serão? (dúvida) Acho que é era,
porque o ultimo era a Aurora. O último, era o serão? É, acho que era? Então a gente
foi no livro do Gaston Bachelard, do sótão ao porão, que era da Aurora ao serão. Na
madrugada a gente fez na cabana, enfim, então tinha uns espaços, cada ator
cuidava de um espaço, eles tinham que cuidar do espaço, por que aconteciam
refeições. Né? Aconteciam... Tinha umas perguntas. Pra cada espaço tinha algumas
perguntas chaves, cada um carregava mala que trazia consigo uma mala, que ele
abria o espaço pra conversa. Era muita conversa. Isso é uma outra coisa da trupe
que é muito forte, que eu demorei muito para entender porque a gente, vou fazer um
adendo, nossos encontros, sempre tinha uma hora, uma hora e meia de conversa, e
eu como diretor começava a falar gente: a gente não vai e conversa e conversa,
mas eu não conseguia fugir disso, assim. E teve um dia que eu tive... Eu fiz um voto
de silêncio e fiquei uma semana em silêncio. E aí, eu fui pro ensaio, eu não podia
falar, e foi nesse dia eu percebi a beleza da conversa, e falei assim, nossa que
bonito, porque aí eu percebi que era um lugar que a gente sempre teve isso, era
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lugar de encontro, era um lugar onde a gente sanava nossas ansiedades, que a
gente se limpava, também, percebia como o outro estava. Enfim, a gente conversa
muito então eu percebi que a conversa também era um procedimento, sabe? Era um
lugar que o grupo chegou, e que era muito fundamental que isso acontecesse, por
que eu percebi outros desdobramentos disso das para as nossas criações. E é um
grupo que existe, depois que dividiu por, teve um momento que se dividiu, né? Por
exemplo eu a Tati e a Priscila, a gente se conhece... A trupe está com 11 anos, a 15
anos. Então a gente está junto há 15 anos. A Tati Nunes que veio depois para trupe,
eu conheço a Tati Nunes deste 98, a 20 anos, a gente começou a fazer teatro
juntos, ela era professora no começo foi junto com a Tati Nunes. Então é os outros
que entraram depois a Cleide também a 15 anos e a Maria e o Júnior há pelo menos
uns oito então é um grupo de muito tempo a gente se conhece por muito tempo.
Então as conversas são profundas, são longas. A Lídia usava muito a conversa,
tinham encontros que a gente só conversava. Bom, os procedimentos... E aí a gente
passava por esse ofício, contando história de vida, a história do outro já modificada o
que eu ia contar. E a gente faz isso em 24h numa casa no sítio que tinha porão e
que tinha só sótão.

JJ: Então, peraí, vocês fizeram isso aí em uma casa, não no ônibus.

Anderson Maurício: Isso, também é uma coisa forte, acho que a gente (vídeo
travado)... Nem sempre nossos procedimentos acontecem só no ônibus. Sei lá, os
ensaios todos são no ônibus 80%. A acontecem só no ônibus a gente tem algumas
saídas algumas coisas fora e desenvolver alguma coisa ali a gente foi para uma
casa mesmo um sítio tinha piscina tinha quintal era gigante esse material isso é
muito foda, essa vivência, é dali que eu tiro toda a encenação e ali que nasce toda
dramaturgia do espetáculo na verdade ali na nasceria mais uns três espetáculos
mas um dentro um lugar longe nasce desse lugar.

JJ: vocês desenvolveram o substrato para desenvolver um espetáculo apresentado


no ônibus é isso?
213

AM: no ônibus em diálogo com a cidade então quando a gente entra dentro do
ônibus e a gente vai fazer o percurso pela cidade para mim é o espetáculo que eu
mais gosto por eu consigo entender essa potência entre o ônibus e o lugar da cidade
a gente vai buscar na cidade os espaços da casa a cidade como casa. Então eu vou
fazendo aí uma mistura passo interno do ser humano a casa interna o porão interno
das histórias que a gente conta porque são histórias de vida dos próprios atores,
relacionada com os espaços da cidade. Então, por exemplo, tem um momento porão
no espetáculo, a gente não divulga sobre isso porque para a gente é interessante
também aumento do espetáculo que a gente vai falar sobre o porão que a gente vai
contar histórias do que já estão sendo desenhadas passa no fluxo que foi o porão
que a gente encontrou da cidade essa esse lugar da vivência sempre em lugar que
um dispositivo que faz com que a gente vá amarrando poeticamente essas vivências
que tá essa imagem poética dos dispositivos é sempre um lugar da vida é ali que a
gente vai perceber o que funcionou e o que não funcionou o que disparou sempre
vai para outros lugares que a gente não imaginava. Eu acho que é isso.

JJ: Venha cá nos espetáculos em geral, seus ou no grupo de vocês desenvolvem


algum discurso social político de gênero alguma coisa constante nessas encenações
de vocês?

AM: não sei responder isso é delicado... O que o Kio Abreu, eu também vou usar
ele aqui você conhece o teatro jornal?

JJ: Eu até li essa critica dele que falou sobre a estreia de vocês.

AM: Os minutos que são vão com o tempo? Ah então você leu então ótimo o que
ajuda a gente porque eu acho que assim a questão política desenvolve ao meu ver
tá já na nossa escolha para quem a gente faz aonde a gente faz somos porque são
todos hoje eu tenho a minha casa graças a Deus consegui o meu esforço eu
consegui de alguma coisa de alguma forma estava na periferia, sou branco, então
também tenho meus privilégios da onde vem tenho consciência das questões das
enfrentei do que me foi negado como sujeito periférico. Mas não utilizo desse
discurso para defender os meus projetos. Talvez assim, vou fazer para os
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trabalhadores trabalhador X, não falo que eu vim desse lugar, não é um discurso
político nesse lugar. E se eu estiver errado vai me ajudando a responder por quê...

JJ: Não é o político panfletário...

AM É... Eu também não sei os grupos que estão fazendo teatro político panfletário é
teatro político panfletário, também existe neles rol, as nuances. Mas talvez seja a
forma de conseguir dividir. Porque eu já estou, aí é legal porque o Kio ele fala, aí,
eles não estão no lugar do ônibus para poder discorrer um discurso sobre a diz
potência desse lugar, sobre a crueldade desse lugar, o valor da passagem, os
assédios que acontecem, os poucos ônibus que existem, as longas viagens. Não a
gente não está ali para frisar isso, porém, a gente escolhe esse lugar. A simbologia
desse espaço, ela é muito forte ali, está ali para poder transformar esse lugar em
potência. Eu acho que essa frase que ele traz é uma frase que ajuda a gente dizer
sobre a nossa ação. Então o que eu acho que a gente fala, como recorrente nos
nossos é uma busca de, primeiro o lugar da imagem é muito forte, e é no caso do
Gaston Bachelard, também, são os desdobramentos das imagens são um olhar para
si. Um olhar para o humano que é ele que somos nós tá falando de uma forma
poética de uma forma dessas imagens que elas penetram no outro e ecoam no
outro. São imagens que vão trabalhando essa possibilidade de transformar o olhar.
Porque a partir do momento que o cara olha ele olha muito estranho muito estranho
é quase que um soco poético, quando ele olha para o ônibus e o ônibus tem teatro.
Esse ônibus tem arte. Porque para esse trabalhador ali que está naquela rotina
trabalho para casa e vai no shopping e pega o celular... é um fluxo, um circulo que o
fecha ele para outras possibilidades, quando ele ver ônibus é uma porrada sim. E eu
acho que esse espanto é muito potente, é uma imagem de possibilidades de
transformação daquilo que ele está acostumado a ver. Se ônibus se transforma, a
pergunta é, o que mais pode se transformar? A casa, o trajeto, a vida, ele. a
cidade... o que mais que existe, mas que poderia ser de outra forma? E aí eu acho
que a nossa função política e social esta nesse lugar.

JJ: Anderson, então vocês têm um ônibus específico que vocês customizam ele ou
não e ele faz o trajeto do trabalhador ou tem um trajeto do espetáculo?
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AM: o do transporte público é do transporte público, a gente não consegue modificar


isso. O do espetáculo é o do espetáculo, a gente cria o trajeto, cria paradas, tem
pontos específicos que a gente quer passar, no sentindo de potencializar o que a
gente está narrando. E o ônibus a gente conseguiu comprar esse ônibus, depois de
seis ou sete anos de existência. Eu falei que no inicio a gente teve a empresa que foi
uma mãe durante 3 anos, mas depois a gente apanhou muito. Tem histórias de
apresentações que o motorista não veio e eu tive que caçar o motorista pra poder
fazer a apresentação. Por sorte a gente estava numa garagem de ônibus e
conseguimos outro motorista, mas tinha somente meia hora para fazer o roteiro, a
minha esposa gravida foi guiando ele pelo roteiro, justo no dia que iam vários críticos
que iam selecionar a gente para um fomento e não podíamos perder isso de jeito
nenhum. O ônibus é um ônibus de linha que só não tem somente a catraca, e a
gente faz uma cenografia simples. São cortinas, encosto de ônibus, tapetinhos, são
coisas simples. Eu já tive vontade de fazer muita coisa, mas no ônibus eu acho que
esse tipo de material distancia o passageiro, assim como o teatro municipal que é
lindo, imponente, que você vê e diz nossa isso é um teatro. Eu tento fazer o
contrário, isso aqui é o um ônibus, entra no ônibus que você já conhece, e lá dentro
você vai encontrar o teatro. Eu tento manter isso, que parece bobo, mas não é.

JJ: Algum tema recorrente nos trabalhos de vocês?

AM: O tempo. Tenho percebido isso cada vez mais.

JJ: você acha que está desenvolvendo alguma poética?

AM: como ê isso, me explica.

JJ: poética é quando há uma marca, digamos registrada, da nossa pulsação pessoal
que está presente em todos os nossos trabalhos.

AM: eu não tenho consciência disso ainda, ate porque, como eu estou me
arriscando... quem assiste o cordel e os minutos e o dentro, percebem ali um traço,
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um traço forte, mas eu achava que era da trupe não um traço do diretor. Quando tu
fui para as fabricas de cultura, que eu dirijo em teatro, não no ônibus, tem um lugar...
a poesia é muito forte, mas é como eu consigo me explicar, as vezes eu sinto que
tudo pode ser poesia, eu acho que isso ainda é muito frágil como justificativa. Mas é
uma dramaturgia, uma encenação que é meio poética. Eu ate estou chama a Beth
Mescuri para assistir outros trabalhos que estou fazendo, porque ela fala isso. Ela
fala que os trabalhos da trupe, eu acho que esse trabalho do dentro.... porque ele
ela fala? Ela foi assistir um outro trabalho, desterro, e ela não gostou. Desterro foi
um convite do SESC Consolação pra poder fazer um trabalho que tenha a ver com
terror. que queria falar sobre terror, mas eu tenho a ver com terror, mas como estava
num período de me desafiar, aceitei fazer e eu tinha um mês e meio para fazer o
trabalho. Era uma intervenção e acabei por dirigi um espetáculo em um mês e meio.
E eu preciso de tempo pra fazer. Aí chamei a Beth e ela foi assistir. Ela falou varias
coisas... uma das coisas é que no desterro ela percebia um simulacro, uma não
verdade, o texto dito de uma forma que.... em tudo, ela percebia isso. E nos
trabalhos da trupe ela percebe um ato presente no dizer, uma vida no dizer, uma
verdade por mais que seja teatro. E eu acho que nos trabalhos que eu faço é uma
busca minha, porque a primeira coisa pra mim é o ator, eu busco essa verdade.
Quando digo verdade eu estou falando de um jeito dele, não de um jeito de como
alguém faz, mas o seu jeito. Esses dias na fabrica, teve uma pergunta e uma menina
lá que respondeu, ah são todos os sentimentos. A pergunta acho que era, de onde o
silencio nascia, e uns diziam da tristeza... e eles começaram a falar de sentimentos
e ela falou, ah é de todos os sentimentos. Eu falei não, e o seu qual que é? não, é
todos os sentimentos. E eu falei você não está entendendo, jogando com ela, presta
atenção, eu estou falando da sua imagem, e você está respondendo, você está
querendo ter uma resposta que explica a pergunta. Não dando uma resposta. Ela
falou que não estava entendendo, e eu disse, olha, quando eu faço a pergunta
imagina uma pedra, e você é um poço, quando a pedra cai no poço o que acontece?
Ah, ela faz umas ondinhas. Então colhe uma ondinha dessas pra quando eu te
perguntar você vai colher. Pedi pra fecha os olhos e refiz a pergunta. E ela demorou
pra responder. Dai falou medo. Ah tá, então essa é a sua imagem, não é todos os
sentimentos, é a usa imagem. Você percebe que você estava fora e eu precisava
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que você encontrasse dentro a resposta. Então eu acho que eu habito esses
lugares. Porque foi o que a Lídia ativou em mim, como gatilho de potência.

JJ: consegue perceber algum elemento presente como marca de suas encenações?

AM: me falaram isso. Mas isso foi na fabrica de cultura, eu identifico isso sim. Eu
dirigi três espetáculos e uma mulher assistiu e chegou assim, emocionada, ne, e ela
falou assim: nossa, é tão bonito que nossa senhora está nos seus espetáculos. E eu
fiquei com aquilo na minha cabeça. Porque o único espetáculo que tinha a tal da
nossa senhora, era um espetáculo sobre Luiz Gonzaga. Onde ela está vendo essa
nossa senhora, aí eu fiquei com essa pergunta na cabeça e fiquei tentando caçar. E
num é que era verdade? Num espetáculo era a nossa senhora, no outro espetáculo,
era uma criatura que tinha mais de quarenta saias... mentira, não era essa, era outra
menina que pegava o bebe e cantava, pra ela era a imagem de nossa senhora. E no
terceiro espetáculo era iemanjá, eu trabalhei a figura da sereia. e no quarto
espetáculo que eu já estava buscando eu trabalhei com a mãe noite. E nesse
espetáculo que agora estou dirigindo já surgiu pra mim, a Iansã, que é a senhora
dos ventos... porque eu estou trabalhando com a palavra e o vento. E no cordel a
Priscila fazia o rio são Francisco. Então eu acho que quando ela fala da nossa
senhora, é da matriarca, esse poder muito forte nos espetáculos. No dentro, por
exemplo, a Priscila desce do ônibus. Desce e fica pelo caminho, só que no final ela
reaparece como uma cheia de bexigas, varias bexigas de gás hélio, era uma
imagem linda de uma mulher esperando a gente. E eu trabalho com muitas
mulheres, eu tenho um jeito muito feminino não de dirigir, mas de conceber os
espetáculos. Mas sinto que na direção eu sou muito masculino, sou muito rígido,
talvez seja preconceito achar que a mulher não possa ser rígida. Mas é essa figura
de uma mulher, uma mãe, uma figura feminina que atravessa e aparece no meio do
espetáculo.

JJ: quais teorias ou linhagens você percebe como recorrente no seu processo?

AM: acho que o Bachelard, a Lídia Zózima...eu sinto que sou muito poroso, como
tem muito conversa, os meus aprendizes me mandam músicas, me manda... eu
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ouço tudo e sinto que dialogo com tudo, com o tempo, a expressão que o outro traz,
colhe. Quando a gente fala de teoria, como que a gente utiliza na trupe? A gente tem
um jeito que a gente nomeia de conversações, em quase todos os nossos projetos a
gente convida pessoas para essas conversações e essas pessoas trazem as suas
teorias, traz um monte de coisa... a gente não vai ler e estudar um livro, vai chamar
a pessoa que escreveu para conversações. A gente tem outro que é partilha de
vivencias. Ah o grupo que está pesquisando alguma coisa, vários teóricos ou fez
uma vivencias tal, a gente chama esse grupo para uma troca. E o ultimo são
carpintarias aí são oficinas. Convidamos pessoas para fazer oficinas com a gente.
Eu acho que nesse encontro com o outro que se dá a nossa trajetória, mais do que
pegar um livro e dissecar um livro e apontar as teorias, e aí, claro, vários teóricos,
varias teorias, vários filósofos vem através do olhar e vivência do outro.

JJ: qual a principal diferença que você percebe entre a caixa cênica e o ônibus?

AM: o encontro com o público. Eu acho que a principal diferença é essa. O palco
italiano eu lido de uma outra forma com o público. Essa coisa de olhar nos olhos isso
de verdade é muito foda de lidar com isso no ônibus. Como ator sabe, você olha pra
pessoa e ela não está curtindo seu trabalho, a pessoa está chorando com a cena...
como você lida com isso? Essa lida com o outro, no ônibus, isso não tem... o
símbolo do ônibus... o que o ônibus faz...

JJ: você falou como ator, mas e como você como diretor, como percebe essa
relação?

AM: no palco eu percebo que no palco eu consigo trabalhar melhor a imagem, e


venho gostando de trabalhar com o coro, um coro coletivo, parece a mesma coisa,
mas não é. Eu acho que é intuitivo, porque não é um coro que é uníssono, sabe, que
é todo mundo junto, certinho... tem uma sujeira ali.... e no ônibus eu sinto que
trabalho melhor a palavra. Mas em contraponto, eu venho trabalhando mais a
personagem do ator, essa persona.

JJ: a utilização do ônibus é uma escolha estética ou foi falta de opção?


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AM: eu acho que é uma escolha. É uma escolha de aprofundamento desse ônibus
como espaço cênico, nessa dialogo com a cidade. Eu percebi na trajetória que a
cidade precisa de um trabalho como esse. A cidade precisa de alguma forma
desconstruir essa imagem de dureza. E esse trabalho contribui para isso.

JJ: Quais são as dificuldades principais que você poderia elencar na utilização desse
espaço não convencional, no caso o ônibus, ao desenvolver um espetáculo teatral?

AM: Deixa eu te fazer uma pergunta: você tem quantas perguntas ainda?

Jj: algumas.

AM: então a gente pode deixar pra continuar na segunda, porque eu preciso sair as
11:40.

JJ: claro sem problemas. Então a gente dá uma pausa aqui e voltamos na segunda
às 10?

AM: combinado, segunda às 10.

JJ: até lá então. Bom fim de semana e obrigado. Nos vemos na segunda-feira.

TERCEIRO DIA DE ENTREVISTA

JJ: você acha que o espaço cênico é a cenografia ou vai além?

AM: eu acho que é uma parte da cenografia. Eu acho que vai além. Ônibus permite
outras possiblidades de cenografia, a cidade pode ser a cenografia junto com o
ônibus, a gente cria uma cenografia para o ônibus, então a gente e cria uma
ambientação para o ônibus, mas é uma parte, a outra pode ser a cidade... a cidade
pode ser a cenografia, no sentido da arquitetura, mas também do que está
acontecendo na cidade, a luz da cidade, se é de dia ou de noite, se passa um carro
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de policia, uma ambulância, as pessoas... tudo isso que é meio imprevisível, mas
também tem uma parte previsível, quando a gente escolhe passar pela cracolândia,
existe ali algo, uma atmosfera que a gente busca. A cracolândia é um lugar onde
não se transita, não transitam cidadãos. Você vê pelas imagens na TV, tem os
médicos, assistentes sociais, os próprios familiares em busca de pessoas, são
centenas de pessoas. E o nosso ônibus adentrava a cracolândia e era uma
sensação muito forte porque parece que você está entrando num umbral, sabe? E
para passarmos eles tinham que dar passagem, a gente não conseguia passar sem
ajuda deles porque era muita gente na rua. E é uma imagem muito forte, como se
você estivesse entrando dentro de um corpo humano, de um lugar que você não
teria coragem de entrar sozinho e o ônibus te leva para esse lugar. Mas tem... é que
quando você fala em cenografia eu penso nessas imagens que alteram o que está
sendo dito, o que está sendo comunicado, ou que potencializa, ou que desloca. Eu
sinto que o ônibus, por ser esse lugar que a gente... eu escrevi uma frase, vou pegar
aqui... quando eu fui fazer a minha travessia, no deslocamento de 12 horas, eu
escrevi uma coisa aqui que me ajuda a explicar: o oficio do dia não acolhe o homem,
nem acaricia o cidadão saudoso do colo da mãe. Por essa razão é que ele dorme no
balançar dos ônibus, nas histórias de ninar que as janelas contam quando passam
pelas rugas da cidade. Ele se torna semente. O ônibus, útero gigante. O que estou
querendo dizer é que o transporte público, o ônibus, o metro, o trem... eu acho que a
gente em uma coisa ancestral que ativa no corpo um lugar de memória, de hibernar
de devaneio. E eu acho que isso também ativa outros cenários que aí eu não tenho
acesso. São cenários que eu lembro de pessoas, falando... eu lembro de uma cara
que falou assim rapaz, esse espetáculo, dentro é lugar longe, me fez lembra eu
tomando banho de tanque com a minha avó. E o mais impressionante é que essa
imagem eu não tinha. Ele não tinha vivido, ele não tinha acessado essa imagem,
não tinha empoderamento dessa imagem. Eu achei tão bonito ele dizer isso, porque
de alguma forma, o espetáculo, o encontro com ele fez revelar essa imagem. Então
quando você fala de cenário, eu acho que tem tudo isso. Mas tem outra coisa... acho
que era isso esqueci.

JJ: você como diretor como você se relaciona com o espaço no seu processo
criativo?
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AM: Eu sempre meto o bedelho em tudo. Então a luz, o cenário, o figurino... não tem
essa coisa de uma pessoa que faz, a trupe sempre fez, depois convidei pessoas
para melhora o que a gente já fazia, mas pra mim isso é muito importante. Uma cor,
uma textura, pra mim é muito importante. Pra mim o ônibus não pode estar
bagunçado. Eu tenho esse lugar do ônibus... como uma casa, a gente come, bebe,
já dormi no ônibus... a gente chora a gente rir... as vezes eu penso que o ônibus,
essa imagem do útero, muitas vezes a gente não está me movimento com o ônibus,
na direção, então parece que a gente está em um lugar outro, quase como protegido
ali, e é nosso o ônibus, então tem muita diferença isso. Quando a gente foi para o
transporte público, eu me sentia como visitante, eu me sentia que estava na casa de
alguém, mas era alguém próximo, não era de alguém eu não conheci. Era alguém
que eu conhecia. Acho que a imagem da casa, por causa de Gaston Bachelard, que
traz a poética da casa, os espaços da casa como a casa do ser humano... tem duas
perguntas que eu faço, em oficinas e encontros com as pessoas no nosso ônibus:
até onde o ônibus poderia te levar? Essa é uma pergunta chave que a gente faz com
varias pessoas, uma resposta vai interferindo na outra. Então a gente já colheu
imagens belas como ir para o coração da minha mãe... para uma saudade antiga....
e a outra pergunta é: o que o ônibus poderia ser que não um ônibus?

JJ: Essas perguntas são recorrentes para você quando vai montar um espetáculo?

AM: espera vou pegar uma coisa aqui para ler para você... não achei. As perguntas
foi uma coisa legal, porque eu estou fazendo um processo de um trabalho e a
gente... Estava muito confuso pra mim a figura de um personagem, porque a gente
estava com a ideia de trabalhar um personagem era... são trem atores, uma a triz e
dois atores, uma é a cidade e a outra é a rua e um cara que eu não sabia o que era.
E aí, tinha uma figura de pai mãe e filho, sabe, mas eu queria saber essa imagem
alegórica e tal. A gente tinha marcado um dia que a gente tinha que saber pra
continuar se não dava pra continuar. E aí, eu... eu tenho muito isso pra mim, eu não
consigo planeja os encontros, as vezes eu planejo algumas coisas, não é sempre.
Planejo, mas os melhores é quando eu não planejo. Aí eu não sabia como ia fazer, a
gente começou a conversar e daqui a pouco eu comecei a anotar um monte de
222

perguntas. E falei ó, eu vou fazer um jogo de perguntas e vocês vão respondendo e


assim por diante. E na pergunta veio a imagem de que figura ele era. Uma imagem
que eu não imaginava, mas que tudo tinha a a ver com o que ele estava
desenvolvendo. As perguntas são grandes. É uma coisa que surge pra mim. Vou ler
umas pra você aqui umas que estou trabalhando na fabrica de cultura. O nosso
tema lá é territórios e trajetórias. O recorte do tema, abstrato e poético, sobre a
sabedoria do vento e os seus ensinamentos, a palavra e o silêncio. E aí num
exercício surgiu algumas perguntas que lancei pra eles e vou ler pra você algumas.
O que pode ser palavras? Quem disse que a palavra sempre diz? E o silencio é
sempre a ausência de dizer? Donde nasce a palavra? depois que se diz o que
acontece com esse som? Ele finda? Ele encontra morada? Ele move o que? Ate
onde ele chega? Ate quando ele perdura? você tem algum lugar onde moram
palavras eternas? O que você emana ao mundo? O que se vê da palavra se o vento
do que ela é feita é invisível? Se a palavra for uma semente o que podemos
semear? Em fim...a questão das perguntas talvez seja um dispositivo muito forte pra
mim, porque vai desencadeando varias camadas, varias imagens, varias propostas.

JJ: mas em relação ao espaço, você vai para o espaço antes e fica lá viajando no
espaço?

AM: fico, fico... eu converso com o espaço. eu converso, pergunto, busco respostas,
mesmo antes de ter o ônibus.

JJ: quais são os principais desafios que o espaço impõe ao diretor deferentemente
da sala?

AM: eu acho que uma das grandes dificuldades é que a imagem que se cria, a
direção que se cria, ela é sempre... não existe o espaço nu, eu não tenho essa
limpeza, esse quadro em branco. Eu não consigo ter isso no ônibus. Eu sei que
estou num lugar de muitas informações. Eu acho que essa é uma das grandes
dificuldades, tanto pra direção quanto pra atuação, quanto dramaturgia... já tem
muita coisa ali dentro. Só o público inteiro dentro da cenografia, o público está
dentro. Então não tem uma imagem limpa, sozinha. Pra construir esse lugar da
223

ausência da solidão, do vazio, ele é sempre uma busca com ator, ele precisa evocar
emanar esses espaços internos e trazer os passageiros junto dele, porque eu não
tenho esse vazio. Num sentindo mais técnico da direção de imaginar o espaço.
agora existem muitas dificuldades, você tem a dificuldade do barulho, então não tem
o silencio e os espetáculos tem muito silencio. De você poder construir... isso
também demorou entender... no transporte público... hoje eu estou bem cansado...
todas as vezes que a gente ia explicar as pessoas que fazia teatro no ônibus, elas
não compreendiam, isso sempre foi tão difícil...mas a gente também deixa tudo meio
complexo porque casa hora a gente faz uma coisa também, então fica difícil deles
compreenderem. Ah, mas o ônibus vem, e é fora do ônibus? Sempre muitas
duvidas. E por mais que eu sanasse todas as duvidas sempre tinha uma surpresa.
Ai a gente falava, nossa a pessoa não compreende. Então era muito difícil as
pessoas entenderem o que a gente fazia. No sentido da comunicação de dizer o que
a gente fazia, mandávamos fotos, vídeos...e era muito difícil. Muito difícil também
das pessoas irem, os críticos, a classe artística... era difícil convencer as pessoas de
ir. Esse ultimo espetáculo, os minutos que se vão com o tempo, as pessoas não
foram, e tudo bem porque o espetáculo não foi feito pra ela, foi feito para o
passageiro que estava por lá. Mas um dia eu me fiz uma pergunta: se uma pessoa
me dissesse que faz teatro num ônibus e o que eu imaginaria. Eu fiz esse exercício.
Tentei limpar todas a imagens da trupe vem desenvolvendo e tentei imaginar o que
o outro imaginaria, e eu fiquei tão decepcionar, porque é muito horrenda a imagem
que vem, nossa é muito feia a imagem de um espetáculo no ônibus, porque você
tem a imagem do ônibus lotado, da violência, do cansaço, do vendedor ambulante,
que é ela que nutre o nosso imaginário. E o que a trupe faz é muito diferente desse
imaginário. Eu consegui ter uma clareza. Pra mim foi bem importante pensar nessa
imagem, porque comecei a lidar com a imagem que os outros tem do espetáculo
que nunca viu, pra de alguma forma desconstruir.

JJ: de que maneira você trabalha a realidade tangível do espaço com a realidade
ficcional da obra que você está criando? De que modo a realidade interfere no teu
espetáculo?
224

AM: a primeira coisa é que eu não tento negar essa realidade tangível. Eu acho que
tem uma coisa que a Lídia ensinou pra gente, e que é muito difícil da gente aceitar, é
a nossa luz e sombra. Essa coisa humana que é muitas coisas, não é só uma. Essa
coisa de você se achar santo, ou achar que o outro é só demônio, não cola. Então a
primeira coisa é trabalhar com os atores esse aqui agora, e se o ônibus parar, se o
ônibus quebrar, se o ônibus bater, se o outro chorar... eu vou jogar com isso. Eu
jogo o tempo inteiro, é uma busca. É o aqui e agora, o momento presente. Talvez
seja não negar esse dispositivo. No cordel tem essa tentativa de como fazer com
que o público perceba algumas coisas sensorialmente, como, por exemplo, o
começo e o fim do espetáculo. No cordel a gente tem essa inserção do ônibus que
vai começar. Tem um prólogo que a gente faz com o ônibus parado e prepara o
público para o começo da história que é também o momento em que o motor do
ônibus é ligado e o ônibus inicia a viagem pelo roteiro que vai trafegar. O mesmo
acontece com o fim da peça que é no instante em que o ônibus estaciona no mesmo
local de partida e desliga o motor pela última vez, marcando o fim do espetáculo,
que não é apenas uma percepção visual, mas uma percepção sensorial. No Dentro,
a gente encontrou uma praça que era circular aonde o público estava dentro do
ônibus e o ônibus ficava girando em torno dela e as portas do ônibus abriam e os
atores entravam e saíam e representavam dentro e fora do ônibus. E é uma cena
linda, porque parece que você está dentro de um filme, de uma memória, porque vai
ativando as suas memórias, vai ativando o espaço, vai ativando um outro estado de
recepção para o público. O segundo ponto é perceber o poder que o artista tem em
evocar mundo, em pegar na mão do outro e transportar ele. Pra mim quem
transporta o público não é o ônibus, são os atores, mais do que o ônibus. Isso é o
que a Lídia ensinou pra gente, esse poder de criar uma atmosfera de transformar o
instante. O ônibus é realidade, mas a gente transforma essa realidade em outras
realidades, o poder do imaginário da imaginação. Acho que a gente esqueceu isso,
a gente está muito real, muito matéria, muito concreto, estamos fora da energia,
desse invisível que existe. A gente só acredita do que ver. Então é perceber esse
poder que o artista tem.

JJ: é possível dizer que a concretude do espaço se impõe perante a ficção do


teatro?
225

AM: eu acho que não. Acho que é 50 %, se um ator deixar ele se impõe. Ali é uma
tomando do outro, é um parceiro. Ah se passou uma moto eu silencio, ano vou
negar. Depois é a minha vez. É esse diálogo constante com o ônibus... que eu acho
que não é... mas é um risco, é um jogo. No transporte público tiveram momentos
que o ônibus engoliu a gente. E teve outros momentos que a gente engoliu ele, mas
eu também não acho que engolir o ônibus é bom. As vezes é necessário, mas eu
acho que o melhor é 50 50. É impossível neutralizar ele. Quem neutraliza é o público
não a gente.

JJ: qual a importância do espaço para a sua encenação?

AM: a importância dele é pela possibilidade de eu poder trafegar por esses


imaginários. Por em algumas vezes eu conseguir transmitir e colar, e costurar, e
tecer outras imagens nele, de revelar, eu acho tão bonito isso. De alguma forma de
trazer para o tangível e o intangível, trazer a humanidade para um espaço que é
desumano. A importância dele de poder se mover com ele, eu me movo com ele. Eu
paro, abro as portas, do movimento do vento que passa. Eu acho tão bonito quando
as cortinas balançam, quando ele freia. E de poder de alguma forma trazer, eu não
sei se tenho a resposta, porque não é isso, porque no palco você também faz isso,
fazer com que o público tenha sensações...mas é a sensação do ônibus, é dele
poder se comunicar, dele que eu digo é o espaço, poder dizer, poder falar, poder
correr... eu acho que ele tem essa importância. Ah, e porque é a minha missão, é
uma missa que me veio. Acho que tenho a importância de que a cada vez eu vou
me descobrindo também, descobrindo o que eu vim fazer nesse mundo.

JJ: e de alguma forma o ônibus te forjou um diretor, ne?

AM: me forjou diretor, me forjou artista, sujeito periférico, me forjou....


espiritualmente também.

JJ: o espaço modifica o teu processo criativo de que maneira?


226

AM: eu responderia que não, a principio, porque eu venho percebendo nas fabricas
de cultura, que o meu processo de criação é parecido, independente do ônibus. Ele
se modifica com a relação com o público. Com a relação que o público vai receber.
Eu responderia isso, mas é mais complexo. Acho que vou entender melhor isso mais
pra frente. Eu acho que quando eu começo a criar eu não estou pensando do
ônibus, eu não estou pensando no público ainda. Eu estou pensando o que que a
gente precisa dizer.

JJ: você consegue perceber alguma diferença na sala e a encenação no ônibus?


AM: Ah sim, todas! No sentido de uma concepção cênica. Mas quando você me
pergunta se modifica o meu processo de criação, eu vou ainda pra um lugar, eu
acho que o processo de criação tem varias parte, então no início não, mas do meio
pra fim sim.

JJ: como você percebe a recepção do público para os seus espetáculos”

AM: a gente tem muito contato com o público. Isso é muito diferente do palco
italiano, mesmo. No palco eu não sei quem está entrando, eu não sei se a pessoa
está gostando, se a pessoa chorou, se sorriu, se sorriu sim porque faz barulho, mas
eu não sei. E quando termina geralmente a pessoa vai embora sem você vê. No
ônibus não, a pessoa entrou eu sei, estou vendo que ela chorando, rindo, estou
vendo que ela não tá gostando... Estou vendo que ela está encantada... e quando
ela vai embora ela vai passar por mim, eu estou com ele ali o tempo todo.
Geralmente eu percebo um dado de muita curiosidade, de muito entusiasmo. As
vezes eu sinto que quando as pessoas vão para o palco italiano não tem muita
novidade, é aquela cadeira, as vezes está acontecendo no palco e isso me desperta,
as vezes não. Às vezes tem a cenografia que eu vejo... mas o ônibus desperta
outros sentidos, não é só o da visão. Eu estou tocando, eu vejo aquele encontro ali,
ai eles pegam nas cortinas, ai sentem o cheiro da mexerica que estamos
descascando, as vezes comem a mexerica porque a gente dá uma mexerica pra
eles comerem, no Cordel, por exemplo. Liga o motor ele tá ouvindo as coisas fora...
Eu sinto que ele tem essa curiosidade e um certo entusiasmo mesmo, o que que vai
acontecer, onde a gente vai? Sabe essa coisa que quando a gente vai para uma
227

excussão, acho que tem essa memória da excussão, que hora que vai sair, onde vai
passar, se andar se não anda... eu sinto esse entusiasmo. Claro que tem gente que
não gosta, que não consegue ouvir o texto...tem vários problemas não é só
vantagem, tem muitas desvantagens também. Mas na grande maioria tem esse
entusiasmo. Muitas pessoas dizem que o ônibus é uma experiência. Quem nunca
assistiu um espetáculo no ônibus, isso é uma experiência por si só. A gente está
num lugar de risco o tempo inteiro, você está exposto a alguma coisa acontecer. E
temos sempre que pedir para que nada aconteça, porque isso pode ser o fim de
uma trajetória.

JJ: como você acha que o espaço opera na percepção do espectador?

AM: eu acho que ele interfere na recepção, não são todas as cenas que consigo ver.
Eu preciso as vezes me mexer... Eu sempre trabalho com planos médios e altos,
porque no baixo quase você não se vê. Eu acho que ele opera desse lugar da
viagem, do movimento, ou da expectativa do movimento de se locomover, da
curiosidade... acho que é por aí.

JJ: tem um momento bonito que você descreveu que é quando o ônibus para no
Cordel e faz todo mundo esperar e isso deve ser muito legal para o público
vivenciar.

AM: é sim... o ônibus vira personagem, também.

JJ: tem um teórico do teatro que diz que somos todos convidados do espaço, você
concorda?

AM: eu concordo, porque mesmo o ator que conhece o lugar, dialoga com o lugar e
sabe o que vai fazer... ele não sabe como o público vai lidar com o espaço. isso é
uma surpresa, não é com o espetáculo, o espetáculo é obvio, mas com o espaço é
outra surpresa porque logo que ele chega ele é arrebatado e agente já vai lidar com
ele nesse lugar que os criadores não sabem o que esperar deles. O público no
espaço ele é tomado, ele é convidado e para o ator isso é uma novidade...se ele
228

recusa... aí o Bachelard, eu amo o Bachelard, porque a gente está visitando o lugar


do ser humano, da alma, do espirito. Então se eu vou num lugar onde está tudo
destruído, que lugar que o outro vai acessar. Porque não eu não sei o que está
destruído nele. Eu não sei se ele quer ver o que está destruído, não sei se ele está
preparado para perceber isso, pro desmoronamento, pros cacos, pros restos... e
cada um vai lidar com isso porque essa arquitetura está falando, ela está
comunicando... ai tem o pó, e a pessoa diz que não quer... quando ele não quer, ele
está negando um espaço interno dele.

JJ: em média quantas apresentações e em quais dias?

AM: como a trupe é um grupo de repertorio, a gente sempre está apresentando. E


sempre faz mais de uma apresentação por dia pra abarcar mais pessoas. A gente já
sofreu muito preconceito por razão do ônibus so ter 30 lugares, e a gente demorou
para ter uma resposta pra isso. E hoje eu tento responder que um espetáculo como
o nosso, que nem sempre os espetáculos eles precisam estar no lugar de
quantidade, claro que quanto mais pessoas a gente conseguir abarcar melhor, mas
nem todos os espetáculos são para isso. Eu gosto de falar, por exemplo, o Vertigem,
eu não assisti a trilogia bíblica do Vertigem. Não vi o B3 do Vertigem, nem por isso p
espetáculo deixou de me atingir. Porque o trabalho artístico ele não é só para atingir
o passageiro, ele para atingir o nosso país, o nosso imaginário, a nossa concepção
artística. Então um trabalho como esse que a gente desenvolve ele não pode entrar
nessa logica de quantidade de pessoas. Porque quando o trabalho nosso vai para
caruaru, ele não vai semear o imaginário só se quem assiste, ele vai semear o
imaginário de uma cidade.

JJ: você foi convidado para adaptar algum espetáculo para o teatro convencional?

AM: já e não aceitei. Porque o nosso espetáculo é feito no ônibus, existe toda uma
concepção, uma pesquisa, uma investigação. Ele é uma coisa no ônibus e fora dela
eu nem sei o que seria.
229

JJ: diante de tudo isso, a gente pode afirmar que o trabalho site-specific modifica o
trabalho metodológico do diretor?

AM: o trabalho da concepção cênica sim. Pra mim quando você fala em trabalho
metodológico, não sei porque, sempre me vem em duas partes. Me vem o trabalho
de construção... eu sei porque está me vendo isso, porque depois eu me tornei
diretor eu não trabalho mais com texto pronto, eu sempre trabalhei... e como eu
sempre gostei do trabalho do ator... então pra mim o processo esta dividido em duas
partes: uma é essa construção dramatúrgica e o entendimento do que a a gente vai
dizer, quem somos... e a segunda parte é a direção dessa fabula no ônibus. Ai
sempre que você me pergunta eu fico, sim, não. Porque essa construção da fabula,
que também trabalho nas fabricas de cultura, ela é muito próxima do que faço com
os atores da trupe. Quando eu vou pensar no espetáculo após a construção dessa
fabula ai tudo se modifica, tudo se transforma.ai eu sempre penso nesses dois
lugares.

JJ: vamos partir de uma hipótese: se agente convida um diretor que sempre fez
teatro no edifício teatral e pra fazer um espetáculo num site-specific, o ônibus, tu
achas que esse espaço vai modificar o trabalho metodológico dele?

AM: eu acredito que sim, que vai modificar. Quando a gente fez a segunda mostra
de teatro no ônibus, a gente convidou grupos para fazer teatro no ônibus, então eu
dei algumas oficinas e fiquei perto deles não para modificar o trabalho, mas pra
alertar algumas coisas e poder passar a experiência que eu tinha com o ônibus.
Tinha um trabalho que utilizava muito chão...isso é uma coisa superdifícil porque o
ônibus está vazio, e pode ser parecido com o palco italiano. Só que ele não vai estar
vazio, vai estar cheio de gente. Tem imagens que você está construindo que não vai
funcionar. Como eu dirijo muito tempo no ônibus eu sei que não funciona. E ai eu
dizia cuidado que a imagem que vocês estão construindo so quem vai ver é quem
está voltado para o corredor, quem está nas outras laterais não veem. Ai eles se
dava conta e tinha que modificar a cena. Mas quando você fala, ah, vai modificar os
procedimentos metodológicos, eu não sei se os procedimentos, talvez uma parte. eu
não sei se os meus procedimentos são específicos do ônibus, eu acho que ainda
230

sou novo pra saber disso. Eu não sei ainda. Agora eu vou dirigir um espetáculo
profissional fora do ônibus, e eu não sei se os meus procedimentos são exclusivos
do ônibus, para o ônibus. Alguns sim, mas sinto que são procedimentos pontuais.

JJ: quais seriam esses pontuais.

AM: voz. Como direcionar a voz. Como pensar a voz mesmo de costas para o outro.
Eu vou manter e acionar uma outra emissão dessa voz que abarque essa percepção
do espaço. eu acho que são coisas bem pontuais. Eu digo isso porque a trupe faz
ponte com varias outras coisas, e talvez o ônibus seja uma ferramenta para isso. A
voz, mas também o olhar, o jogo. Então por exemplo, eu nunca vou fazer um
espetáculo inteiro voltado pra você, vou olhar para o público, considerando que
todos são personagens, porque me interessa dialogar com o público. O público sabe
que a gente está junto. Isso é uma coisa que a gente faz bastante... como abarcar a
entrada do público, coisa que pouco acontece no palco italiano, eu sempre cuido
dessa entrada. Coisas que o ônibus traz... Mas sinto que é meio a meio. Sinto que
existe uma parte do procedimento que ônibus interfere muito, mas tem outra parte
que é o arroz com feijão de qualquer trabalho que você vai fazer, na rua, no palco,
que você precisa passar por essas coisas.

JJ: teve dificuldade para conseguir patrocínio?

AM: eu acho que tem uma coisa que a gente vive hoje, que é o momento de uma
terra muito voltada para o intelectal, onde todo mundo tem que ter mestrado,
doutorado... precisa do diploma.... o saber do dia a dia vem sendo muito
desprezado. Então por essa razão vale mais o papel do que o gesto, a ação. Então
vale mais a teoria do que a pratica. Então você tem uma exigência de uma escrita de
projeto que são mestrados. E vale mais o discurso daquilo que eu conheço, o cara
quer ver o como você consegue defender o que você quer fazer por todos os
pensadores... pensadores que eles conhecem. Porque quem são os críticos, as
bancas que vão escolher, também são pessoas que conquistaram esse lugar,
porque a gente também escolhe essas pessoas para escolherem esses projetos. E
quem não tem isso? Quem não tem essa bagagem? Por exemplo, na mostra de
231

teatro a gente colocou, a gente abriu um edital pras pessoas se escreverem, mas a
gente colocou a opção, olha se você não quiser se inscrever, você pode agendar
uma entrevista e você diz pra gente o que você quer fazer. E a gente selecionou
gente que disso pra gente que disse pra gente o que queria fazer no ônibus. E não
existe essa possibilidade nos editais, não existe essa possibilidade da oralidade dar
conta. E é tão foda, porque o que é a oralidade, o que se percebe com a oralidade?
Se percebe tantas coisas, se emana tantas coisas que não cabem no papel. Então a
trupe passou por esse lugar ter que aprender a fundamentar, desse lugar mais
técnico... a nossa escrita é mais poética... agente ainda sofre um pouco por causa
disso. Mas a gente vem enfrentando esse desafio. Agente vem lendo, escrevendo, a
gente vem aprimorando para que a gente também possa escrever sobre o que a
gente faz. Para que as pessoas saibam o que a gente faz pelo nosso jeito de dizer.
Mas por enquanto ainda é esse lugar do mestrado para você conseguir uma verba
para fazer seus trabalhos.

JJ: Anderson Maurício, finalizamos aqui. Se você puder me disponibilizar


documentos, publicações, fotos para que eu possa sedimentar toda essa história de
vocês e colocar na plataforma que me cabe, seria perfeito.

AM: Claro. Me pede tudo isso por e-mail que eu me organizo e te mando, mando
sim.

JJ: Muito obrigado pela colaboração. Eu vou tentar ver o que consigo filtrar dessa
nossa conversar, porque tem muito material. A gente vai se falando para trocarmos
mais materiais e experiências.

AM: Combinado. Boa sorte aí com o material.


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APÊNDICE B - ENTREVISTA COM DIEGO PINHEIRO

PINHEIRO, Diego: depoimento [mai. 2018]. Entrevistador: José Jackson Silva.


Salvador: Escola de Teatro da UFBA - BA. Filmagem (120min). Entrevista concedida
para a tese de doutorado do entrevistador.

Entrevista realizada em 30 de maio de 2018.

Entrevistado: Diego Pinheiro (DP)


Entrevistador: José Jackson (JJ)

JJ: Diego, a minha ideia no doutorado é pesquisar o trabalho do encenador em


espaços alternativos. Esse espaço alternativo não é o alternativo pelo alternativo, eu
acolhi um conceito das artes plásticas, que é o site-specific, que se baseia na ideia
de uma peça, uma obra, feita para um local específico, cuja a obra só existe naquele
local. A minha inquietação nesse momento, é entender quais as estratégias, os
caminhos, de onde parte, como desenvolve, quais são os problemas que o próprio
local oferece ao do trabalho do encenador. Basicamente isso. Para começar me fala
quem é você, de onde está falando e diz se você autoriza a filmagem da entrevista.

DP: Eu sou Diego Pinheiro, artista da cidade de salvador, e estou autorizando o uso
da minha imagem para José Jackson com foco na investigação dele de doutorado.

JJ: ME FALA QUEM É VOCÊ, QUANDO E PORQUE VOCÊ COMEÇOU A FAZER


TEATRO.

DP: Meu nome é Diego Pinheiro, eu sou artista aqui de Salvador e eu comecei a me
interessar por arte muito cedo. a primeira expressão artística foi a escrita e até hoje,
tudo que eu faço, tem uma ligação com a escrita, é como se eu quisesse dar mais
potencialidade às palavras, mesmo quando minhas obras não usam da palavra.
Então a minha primeira impressão da escrita foi logo quando aprendi a ler e escrever
eu começava criava narrativas, tinha um caderno de histórias que o mesmo
inventava, engraçado que eu não cuidava do caderno, eu tirava a folha do caderno,
dobrava, e botava numa prateleira, até que meu pai viu e fez uma caixa de madeira
233

e eu comecei a guardar essas coisas empilhadas assim, eu não guardava o


caderno. Então a minha primeira relação com uma expressão foi a escrita está pelos
6, 7 anos de idade. Depois eu me envolvi com Arte visuais com as plásticas, minha
prima é artista plástica, e eu comecei a ajudar ela, no que podemos dizer, no atelier
dela, ela trabalhava com camisas, pintura em tela, escultura em argila, fazia painel
para aniversário de criança... era meio que a artista do bairro. Então as pessoas iam
até ela se precisasse de uma camisa bonita ou a festa do filho, ela sempre foi muito
chegada a essas coisas mais plásticas, pintura, escultura, desenho... agora tá um
pouco parada, mas ela que me ensinou desenhar, me ensinou a pintar, me passou
umas noções de escultura, embora não seguisse muito na escultura, mas ela
ajudava muito nesse lugar da pintura e do desenho, isso foi lá pelos 12, 13 anos.
Logo depois comecei a me envolver com musica. Comecei a tocar em bandas,
comecei a fazer é cursos meio esporádicos e conseguir uma bolsa de estudos na
escola de música da UFBA, estudei lá quase dois anos, porque eu decidi abandonar
por dar a parecer que eu era um pouco excêntrico demais para aquele ambiente que
passou a me incomodar, fiquei meio constrangido, na época... ali entre os 17 anos
acabei saindo da escola, mas foi um momento muito bom de pensamento musical.
Então eu vou me envolver com artes visuais, com escrita e com música. quando
você acabar de se formar, no ensino médio, e acaba protelando entrar na
Universidade etc., eu já sabia que queria ser artista, mas não sabia onde canalizar.
Qual foi minha viagem? Fiz um curso de iniciação teatral em 2008, aí eu olhei e falei,
assim, aqui tem potência para jantar tudo isso, todas essas minhas ambições
artísticas, a escrita as visualidades e a música. E aí decidi entrar na no curso de
direção da escola de teatro da UFBA, soube nesse período que se tinha graduação
em teatro, eu não tinha essa noção. E aí foi quando eu fiz o vestibular, passei, ao
mesmo tempo, nos primeiros anos, eu comecei a me perguntar porque eu tinha
decidido escolher esse curso, porque não era exatamente o que esperava, porque
achava que podia misturar as coisas, e aqui se focava muito na arte dramática em
si. Hoje eu identifico que naquele período, eu queria uma coisa mais interdisciplinar
mais transdisciplinar... que envolvesse todas as linguagens no mesmo evento
artístico, que no caso é o teatro mesmo, não tem outra coisa, por mais que você vá
chamar de ópera, de musical, você vai pensa o teatro uma função de linguagens, é
justamente o objetivo. Talvez a gente foi se acostumando com as questões
234

pedagógicas de que o teatro é só apoiado na narrativa, na dramaturgia, na


construção dos personagens, que é muito bom também, mas não é só isso. Acabou
que eu tive que me conformar com aquilo e decidi me informar, em seguida o curso.
E aí comecei a me envolver também muito cedo com esse cenário dito profissional
de teatro, porque logo no meu terceiro semestre, eu tranco, termina o terceiro
semestre eu não me inscrevo no módulo seguinte, né, ou seja, não é exatamente o
tratamento, não sei se como é hoje aqui, né, mas na época era módulo, aí não
escrevo no modelo do curso de direção, e passo a pegar outras matérias em Belas
Artes, fiz até medicina, peguei o matéria de anatomia, peguei algumas em São
Lázaro, peguei em música, principalmente, que era o interesse. Tranquei decidiu
montar uma peça logo. De novo aí, não queria que fosse na caixa, não queria usar
uma iluminação de refletores... eu estava interessado em uma composição ligada
aos atores que fosse diferente. Na graduação, que foi quando eu entrei em contato
com os pensamentos grotowskianos, isso gerou um estigma para mim, era visto
como o diretor que gosta de Grotowski. E não era exatamente assim, engraçado que
eu me interesso mais pela história de Grotowski do que pela obra dele em sim, mas
o que ele falava ele ficava muito na minha família, nas vivências da minha família, na
boa morte, que foi uma festa que frequentei muito e de certa forma me fez entender
essa ideia de fazer teatro. E aí eu não queria que a peça que eu ia montar fosse de
maneira convencional, e a ideia de casa sempre foi uma coisa que me chamou
atenção.
Aí eu montei a minha primeira minha primeira peça no espaço não convencional,
que foi Arbítrio em 2011, comecei a dirigir lá no finalzinho de 2010 e a estrear em
novembro, se não me engano, finalzinho de outubro na verdade de 2011... foi a
minha primeira direção, eu só tinha dirigido uma cena de teatro ate o momento que
foi uma cena de Ricardo Terceiro, e já foi num espaço alternativo, naquele período,
não sei se ainda hoje, o terceiro semestre tinha essa coisa que a gente tinha que
passar por espaços outros, então, foi lá no Museu de Arte Sacra, no meu ano, aí eu
dirigi Ricardo Terceiro, tendo é o Elmir Mateus e Brisa Rodrigues fazendo a Leid Ane
e Vica fazendo a Elizabeth. E eu dirigi em dois espaços, me obrigaram a dirigir duas
cenas, eu era um dos poucos alunos que eles obrigaram a dirigi duas cenas... então
pensei que seriam em dois espaços diferentes. Então fui eu que consegui Museu de
Artes Sacrar, porque eu já estava na Psico de fazer uma coisa fora da caixa, então
235

sai, correr atrás, saí buscando, chamei todo mundo para conhecer o espaço. Aí, eu
dirigi a cena em dois espaços naquele corredor, era no subsolo de lá, então foi um
corredor que é central e onde antigamente os monges faziam as refeições. Então
botava o público na mesa, tinha relação com a mesa, os atores subiam na mesa,
tinha toda aquela coisa, janelas... Então ali entendi que estava pronto pra começa,
agora que eu dirigir duas cenas, que era mais ou menos 30 minutos, juntando as
duas peças, vou fazer uma peça de uma hora e quinze, uma hora e meia. E foi essa
a experiência. Aí eu fiz Arbítrio e me toquei que a relação com a casa E aí que
imitou quem que é essa relação com a casa era muito é muito importante, não era
qualquer espaço, comecei a me tocar e fazer relação com as casas que eu tive
acesso, com essas que eu vivi, por exemplo, tanto Arbítrio, que foi a primeira peça
que dirigir, quanto Oroboros, que foi a minha formatura em direção teatral, foram
dentro de casas diferentes e todas elas porque eu tinha que o máximo de referência
que tinha uma casa bonita na casa de minha bisavó, e todas essas casas era no
começo do século 20, tanto casa preta, dos anos 30, quanto esse prédio que hoje é
o que o Cria Cura, que antes o Antuac e que agora é o Criacrua, que é um centro de
artes sustentáveis, algo desse tipo, é uma casa do começo, pelo menos primeira
metade do século 20... e minha bizavó morava numa casa assim, então minha
referencia de uma casa, mais bonitinha, mais arrumadinha era essa, porque a minha
casa era de madeirite, a casa de minha avó era de madeira... é claro que com tempo
minha avó, com os filhos dela, conseguiram que ela tivesse a casa de alvenaria
antes deles, mas eu vivi até meus... até quase entrando na faculdade, os dois anos
antes de entrar a minha casa era madeira, aí agora já é de alvenaria bonitinha, a
casa dos meus pais. Então essa coisa com a casa sempre me chamou muita
atenção e agora, minha última peça, está sendo na casa de madeira, na casa de
madeirite que é Quaseilhas. Quando você fala em métodos, eu não falo exatamente
em métodos de trabalho dentro desses espaços, mas eu tenho um processo inicial,
por exemplo, que me identifiquei com todos esses espaços, inclusive com
Quaseilhas, que foi, antes de começar qualquer coisa de montagem bota a equipe
lá, etc., eu passei um período na casa sozinho. Por exemplo, na casa preta, eu
dormi na casa da Preta durante um mês, assim, esporádico, não todos os dias e
fiquei lá dormindo sozinho... terminava a aula da faculdade e aparecia lá, ficava
olhando, ficava só andando pela casa, e aí passava a noite lá, eu levei um colchão
236

travesseiro, fiquei dormindo lá, isso sem ou donos saberem, eles só tinham alugado
para peça e para ensaio, mas pra dormindo não. Mas eu ia nas entoca, eu queria
absolver, entender a coisa espacial, subindo no sótão, para saber as potencialidades
que aquilo ia me dá... No Criacura a mesma coisa, embora fosse outro sistema, eu
pegava a chave e ficava perambulando pela casa até tarde da noite. Então, antes de
todo mundo chegar, eu organizar uma vivência. Quando Eric terminou de levantar o
meu barracão, também fiquei lá sozinho no barracão de Quaseilhas. Engraçado que
agora também eu fui chamado para dirigir uma performance de 20 a 30 minutos e
que também é num espaço não convencional, que o Quati, você conhece? É um
espaço incrível de arquitetura... é na ladeira da Misericórdia, tá abandonado, aí uma
equipe de filme viu minha peça, e me chamou para dirigir com eles uma
performance para eles filmarem para esse filme, que é um filme meio arte, pra uma
galeria não sala de cinema. Eu fui lá de novo com esse mesmo procedimento, foi
dois dias sento e fico ... Ai quando essa equipe chega, geralmente tem um trabalho
que une todo mundo, numa grande improvisação, eu vou direcionando, As pessoas
falam que eu fico falando baixinho no ouvido dos atores... às vezes aponto algum
lugar que me parece interessante, eu vou indicando, experimentando esses
espaços. Ou seja, tem um primeiro momento de experimentação eu sozinho, assim
de viver o espaço de entender qual é a performatividade que tá escondida nele, qual
é o caráter cênico que está escondido nele. Ou seja, para mim, todo espaço tem
uma performatividade tácita escondida, oculta, mas tem. É claro que no caso da
caixa cênica, como ela é protocolar, por assim dizer, você tem aquele equipamento
todo para usar, não tem nada oculto, você sabe que vai encontrar minimamente,
nesses lugares não. Então eu vou no sentido de capitar qual é a performatividade
escondida, aí depois eu organizo varias sessões de improvisações, a depender do
que é a obra, então essas improvisações oscilam, não faço nada meio ligado à
dramaturgia composição de personagem, mas ligadas a jogos. Dessa vez eu boto
uma música que os músculos da peça entra muito som, e os atores, os
performances, passam por uma espécie de concentração e depois dou os pequenos
textinhos, ou eles chegam com uma proposta de performance fazendo improvisação
grande, às vezes essas improvisações duram duas horas, 3 horas, durante o
processos inteiro, aí no final eu vou escrevendo coisas, anotando os espaços que
eles estão usando, as imagens que provocam... no final eles terminam escrevem
237

coisas, marcam os espaços, e aí eu vou montando a obra a partir disso, eu vou


montando a peça a partir dessas questões, isso se não tiver também outros
elementos que vão interferir muito no espaço. Geralmente eu chamo um cenógrafo,
ou alguém que vai lidar com os espaços diretamente, o iluminador... eu chamo
desde o início, geralmente se chama muito depois, né, aí ele vai lá quanto está tudo
pronto e... eu chamo muito antes. Ás vezes nesses momentos, quando eu estou
sozinho, eu vou com um deles para eles olharem, eles acompanham algumas
improvisações sem estar preocupados de entender uma lógica. Então eu funciono
bem assim nas montagens, e claro, cada obra tem um método de trabalho, eu nunca
sei o que eu vou fazer exatamente, é claro que eu acredito que eu tenho uma
poética, mas essa poética é muito flexível de obra para obra, os métodos são
totalmente diferentes, o método para Quaseilhas foi organizar improvisações
musicais, por exemplo. Então essas improvisações que eu falei, em Quaseilhas
eram Happenings musicais, eles começaram a cantar, pegava um texto, improvisa,
eles acabaram sendo compositores melódicos. Então foi, basicamente, improvisação
musical junto com o corpo, enquanto se dança, está se cantando que não é a
mesma coisa que musical, né, tem isso.

JJ: POR ONDE VOCÊ COMEÇA O ESPETÁCULO?

DP: Se você falasse assim, Diego, por onde você começa uma dramaturgia, eu ia
dizer assim pra você, pelo nome, nome aparece primeiro que o conceito. Mas
geralmente eu não me interesso em montar meus textos, ele é exatamente um é
espetáculo, é somente um texto. Já o espetáculo, ou seja, a experiência que isso vai
ter, a experiência realmente eu não sei por onde começa ou como isso começa, por
que as coisas se confundem muito. De maneira objetiva eu poderia dizer para você,
a peça começa quando eu passo no edital. Mas antes do edital, eu não escrevo
nenhum edital, se você for ver Arbítrio é de 2008, Oroboro de 2013 e Quaseilhas de
2018, eu não preocupo em ficar montando todo ano, monto quando a coisa aparece.
É claro que durante esse meio tempo eu contribuí com algumas coisas para o Teatro
base, eu não sou autor das obras do teatro base, eu autor de Arbítrio, não sou autor
das outras obras. Então, a bunda Simone que foi uma cobra que dirigia, por
concepções Gerais, eu só estava como alguém que está direcionado, está lá Diego
238

diretor, não autor. E foi a única peça num edifício teatral. Então a forma como esses
espetáculos começam, geralmente, acho que ela surge de uma motivação, porque,
assim, eu não eu não tenho interesse em temas, não me interessa por temas, talvez
quando eu comecei a fazer eu falar assim, não é árbitro é sobre liberdade, mas é
aquela ingenuidade toda, liberdade é muito amplo, de que liberdade você está
falando. Montei a peça dizendo pra todo mundo que estava falando de liberdade, e
pra afirmar a liberdade eu estava criando uma encenação de cárcere. Não diz nada,
é melhor eu dizer que estava querendo experimentar uma peça longa mesmo, que
experimentei esses textos e organizei a partir disso. Mas eu não trabalho mais sobre
temas, nem sobre conceitos, porque conceito, eu gosto de conceito enquanto um
pensamento poético, mas eu acho que não é algo que fundamenta uma obra minha.
O que existe, para eu criar uma obra é uma motivação independente de onde ela
seja, é uma motivação para, né? Então, por exemplo, para te dar um exemplo, em
Quaseilhas comecei investigando o tempo como materialidade cênica. O genocídio
dos jovens negros, por exemplo, me toca muito, eu perdi amigos, eu quase morto...e
então eu estou agora com 32 anos, fiz 32 anos, recentemente, isso é que é um
privilégio. Não privilégio porque todo mundo tem que viver, é obvio, mas se você
pensar da periferia é uma sobrevivência, você acabou sobrevivendo, a media é de
25 anos. mas é um tema que me toca, mas eu nunca vou tratar isso como tema, a
minha motivação vão ser meus amigos, não é qualquer um. Não é o genocídio da
juventude negra, é Tiago que era meu amigo, é kinho que foi assassinado, foi Val
que era um era mestre de capoeira com 20 anos, que foi assassinado e não era
ladrão nem nada. Todas essas pessoas são meus amigos e foram assassinada,
essa seria a motivação. No caso de Quaseilhas foi parecido porque eu estou com a
investigação sobre o tempo como materialidade cênica, divagando sobre isso, e
essa questão da casa, da memória, sempre povoa as minhas obras. Então eu
acabei descobrindo, por exemplo, que o idioma de Iorubá era falado há duas
gerações da minha família. Minha avó falava em Iorubá criança com a mãe, com as
tias, só que elas chamavam de ioruba, falam trocar a língua. Eu fui descobrindo
algumas coisas dessa ancestralidade, acabei descobrindo que a minha família vem
de uma etnia chamada de Ijexá, que é uma cidade nigeriana chamada Quilexa, que
era uma cidade que privilegiava muito as mulheres, ou seja, era uma sociedade
muito feminina, talvez até matriarcal no sistema, tanto que a Padroeira, a rainha
239

dessa etnia é Oxum. Então, engraçado, aqui na minha família é mulher para cacete,
tipo assim, eu sou uma exceção, eu um primo e outro... então sempre nasce mulher.
Eu comecei a tomar isso como motivação e descobrir também qual era a verdadeira
função do Oriki que é uma espécie de identidade oral, em literatura oral, e como
minha família tem uma memória, como a maioria das famílias negras no país, é
vaga, lacunar, eu comecei a escrever um Oriki nessas lacunas. Então a motivação
foi essa, minhas surpresas e as minhas descobertas nesse processo com minha
família, foi a minha motivação poética, não estava defendendo ou falando sobre, por
exemplo, a memória afrodiaspórica como um todo, estava falando da minha
memória diaspórica, ou seja, nesse processo eu sou bem egoísta. Então as
motivações surgem não tem uma coisa que começa, eu posso dizer que talvez o
início de Quaseilhas, o estalo foi há dois anos atrás quando minha a avó começou a
me contar essas histórias, e minha vó não é dada a ficar contando historias, não
tinha o arquétipo do negro velho que conta historia, não tinha nada, não contava
nada, era muito fechada, muito sisuda. Aí quando ela completou 80 anos ela
começou a falar, e falar pra mim, aí fui coletando, escrevendo, gravando áudio aqui
e ali ... e isso foi me motivando a criar algo, vou aliar isso a uma investigação poética
do tempo, que sim, aí eu estou lidando com conceito. Eu tenho as minhas
inquietações sociais, políticas e filosóficas, mas nem tudo isso vira peça. né? Nem
tudo vira obra de arte, vai virar obra de arte, talvez aquilo que tocar muito, como no
caso de Quaseilhas.

JJ: TODO ESPETÁCULO EM GERAL FALA DE SI?

DP: Acho que não necessariamente, mas nas minhas obras sim. Estou falando
muito de mim. Independente se tem personagem ou não, se é uma performance ou
não, se ê só um ator sentado, independente disso, todas foram sobre mim, todas,
Arbítrio, Oroboro, Quaseilhas... todas essas obras estão sempre falando de mim. O
ato do artista se voltando para si mesmo não significa que a obra se tornar
hermética, que a obra se torna fechada, muito pelo contrário, eu acredito que a
partir daí eu tenho uma abertura fenomenal, eu posso, a partir de voltar para mim, e
eu na verdade eu não estou fechando um leque, a minha obra é esse leque fechado.
Na verdade, eu estou fazendo uma abertura, olha só tem esse leque aqui, que tem
240

essas coisinhas bonitas e falar sobre essas flores bonitas, e falar dessas flores aqui.
Não exatamente um ensimesmamento, eu acho que é a mesma coisa de você achar
que BASKIAT era ensimesmado, e não era.

JJ: QUANDO DIGO QUE É PERIGOSO, EU FALO QUE TEM GENTE QUE SE
REVELA NA ARTE E NÃO PERCEBE.

DP: Aí é perigoso no sentido de você se revelar muito. Por isso meus processos
demoram muito, em geral são nove meses, em Quaseilhas foi assim e no Arbítrio
também.

JJ:VOCÊ DEFENDE ALGUM DISCURSO SOCIAL, POLÍTICO, ÉTNICO?

DP- Acaba sendo, mas não necessariamente panfletário, eu já vi obras incríveis e


que eram assumidamente panfletário, mas geralmente não sou tão afetado por uma
coisa assim ou, com obras líricas, ou dita líricas que no meio tem uma comoção...
mas acaba sendo. O que eu faço, principalmente do ponto de vista ético, todas as
minhas obras eu busco sempre dizer que eu penso daquele jeito mesmo e assumo
as minhas limitações, se isso for ou aparecer um comportamento sem noção. Mas
acaba sendo social, sendo ético e tendo uma carga política. Mas sempre pega mais
nesse tempo mais metafísico, talvez, assim as coisas vêm mais para mim de
maneira mais metafísica, filosófica sei lá. E aí quando vai virando obra, isso vai
reverberando no social. Por exemplo, muita gente que viu Quaseilhas achou que eu
estava falando de Candomblé só porque era falado em ioruba, mas não era, era um
oriki sobre a minha avó, sobre minha mãe, é um oriki que é sobre alagados. Tem um
oriki para Alagados que pode aparecer algo político, por que o ator que compôs a
melodia, colocou numa sonoridade melódica que se aproxima mais do ritmo e,
logicamente, do rap, então parecia político, porque o rap tem esse lugar político,
mas não exatamente. Era um oriki que fala de alagados, que fala das condições de
alagados que eu vivi, tem sim já fosse só, uma questão social aí e política. Mas
quando se junta ao gênero estético uma linguagem política, todo mundo acha que
está se inspirando em Brecht e se espera que essa pessoa que se inspira em Brecht
faça um teatro épico, não necessariamente. Mas minhas obras acabam ganhando,
241

às vezes, mais social, às vezes mais ético, acaba atingindo assim nesse lugar.
algumas coisas por exemplo, aí toca no método de direção. Eu costumo não estar
muito querendo produzir símbolos ou signos, eu não sei, muita gente entende signo
como símbolo eu não. Eu acho que signo é uma produção, uma crise, o signo é fruto
de uma crise. Então se ele é fruto de uma crise eu não vou ficar criando códigos
para você ler o que eu estou fazendo. Eu vou jogar aqui uma crise, você vai jogar
sua outra como alguém que tá vendo isso ou experiênciando isso, e vai nascer uma
parada dessas duas coisas, que é isso que eu estou chamando de signo. Ai eu não
sei se a galera da semiótica vai achar isso, mas inclusive, em dialogo com eles, eu
acho que o signo é uma produção. Então eu não fico criando signos, é claro que
dessas crises existem diversas interpretações, que é o que chamam de obra
sugestiva, ne, sei lá, falam isso das obras que eu faço, como se fossem abertas e
você pode interpretar de qualquer jeito. Eu acho que é isso sim, é para se interpretar
de qualquer jeito mesmo, mas não significa que é uma interpretação leviana, a
pessoa vai captar dali, porque está honestamente vivendo uma coisa, e vai chegar
para ela o que tiver chegar. Tinha gente que disse que via Nanã minha peça, eu
não uso o roxo o que é de Nanã, nem Búzios, os figurinos são todos pretos,
entende, é só porque a menina botava uma bacia de porcelana na cabeça e o
chuveiro caía, aí que é uma espécie de coroazinha associou a imagem de Nanã,
com aquela coroa, eu esqueci o nome, mas não era. Agora isso é impressionante,
porque era o oriki falando de minha mãe e minha mãe é de Nanã, ora, está tudo
interligado, e o pior é que eu não pensei na hora. Lembro que quando cheguei para
atriz e falei bota essa bacia na cabeça que parece um guarda-chuvinha... ela botou,
ficou bonito a água caindo, a luz entrando... A mesma coisa de Laís, tinha uma cena
que ela fazia que ela entrava por baixo do pano vermelho e botava um óculos de
lâmpada, e associaram a imagem de um egum, e ela falou assim, como era uma
performatividade da lembrança estava se lembrando da reunião das mulheres da
família dela no quarto quando faltava a luz e ela fica brincando debaixo do lençol.
Então ela começou a criar essas ações físicas a partir dessa memória infantil. Ou
seja, eu não tenho como controlar a leitura da obra da gente, quando eu descobri
que era incontrolável, eu decidi não controlar, eu vou criar uma obra aqui. Então,
algumas leituras eu não tenho domínio, eu não tenho. É claro que eu não vou querer
242

usar símbolos que, por exemplo, machuque ou que o incomodem alguém, isso eu
tome cuidado, mas quanto ao resto não.

JJ: ALGUM TEMA RECORRENTE?

DP- Não exatamente. Em termo conceituais e poéticos sim, que é memória


frodiaspórica, que está se tornando um caminho conceitual de investigação, estou
estudando muito literatura oral africana, principalmente, o oriki, e ajalá que é poema
dos caçadores, mas tudo isso para fomentar a pesquisa geral, que a memória
afrodiaspórica e tempo como materialidade cênica. Às obras em si são outras
motivações que aparece, que é isso que eu chamo de motivações para criar. Mas
em termos investigativos poéticos há esse conceito e tema, que é ligado essa
memória afrodiaspórica. Agora estou investigando muitas biografias e não só, por
exemplo, Beatriz Nascimento, que é uma pensadora nordestina, Alagoana, se não
me engano, que viveu no Rio de Janeiro, todo pensamento acadêmico intelectual
dela foi no Rio de Janeiro. E além de entender a poética dela, era também era
poetiza, e os pensamentos acadêmicos dela, eu estou querendo investigar sobre
ela, eu estou lendo coisas sobre ela, algo como a vida de Beatriz... Então eu estou
num momento de ver biografias assim.

JJ: ESSA RELAÇÃO COM A RELIGIÃO E A IDENTIDADE AFRICANA SEMPRE


FOI UMA CONSTANTE NA SUA VIDA?

DP: Na minha vida sim, nas minhas obras não. Não exatamente de religiões de
matrizes africanas, porque, em arbítrio parte de uma fusão dessa ideia de negro com
a religião cristã dentro da minha família. Mas na minha vida sim, a questão com a
espiritualidade afro-brasileira, a minha bisavó era mãe de santo, minha avó é ekedi,
a minha família com uma certa ancestralidade ligada a casas de axé... a questão é
que eu insistia muito em usar isso como motivação das minhas obras, muito, porque
eu não queria que aparecesse algo folclorizado, queria usar de modo leviano e eu
não queria que aparecesse folclorizado, muito vendido, sabe, tanto que Quaseilhas
era para ser minha formatura em direção, ai por outras coisas, fui orientado a não
fazer, o que foi até bom, sei lá, deixar para fazer agora em 2018, que foi mais
243

maduro e encontrei uma motivação mais consistente. Mas na minha vida essa coisa
da religião e espiritualidade afro-brasileira, na minha filha, sempre foi desde criança,
desde criança.

JJ: ESTÁ DESENVOLVENDO ALGUMA POÉTICA?

DP: Sim, não deixa de ser não, sim é uma poética, e eu chamo de não-tempo.
Chamo assim para que não pensem que estou investigando o tempo cronológico,
então coloquei esse não, mas o tempo sempre é qualitativo. Primeiro chamei essa
poética de investigação de “estética para um não-tempo”, não, primeiro chamei de
“tempo estético”, por causo de Oroboro minha formatura em 2013, aí descobri
Oiticica, mas ele fala de outro modo. Então pensei ser melhor o outro nome, porque
não é isso mesmo então não tem porque usar esse termo. Aí eu fui chamar de
“estética para um não-tempo”, depois só chamei de tempo, aí decide manter ou não,
no sentido qualitativo. O que significa é experimentar uma conceitualização que
significa o tempo enquanto consciência da carne, da memória, nesse caso, da
memória desse corpo afrodiaspórico. Meu interesse é pelo afrodiaspórico, não essa
coisa da África, mais Brasil, mais latino mesmo. Esse evento que Laís está
participando é com mulheres negras da América Latina. Tem gente da Republica
Dominicana, de Barbados, Peru, de São Paulo, nessa residência artística naquela tá
coordenando. Então, tanto eu quanto ela estamos com esse foco na América Latina,
eu ligado essa coisa memória afrodiaspórica e ela ligada as produções de artistas
contemporâneos, em arte multidisciplinar. E, é claro, isso faz com que eu entre no
jogo transdisciplinar, na verdade, nem multi e nem é inter, é trans, trans alguma
coisa. Eu acho que eu estou num momento de fazer teatro trans alguma coisa,
sabe? tá sendo a mistura, por isso, que eu não consigo mais trabalhar com ator, ou
ele é hibrido ou um dançarino, uma pessoa que faz performance, que só canta
pegar, esses artistas do corpo, tanto que eu chamo esse essa concepção de que ao
que se refere ao grupo de alarinjó, que significa do iorubá: aquele que canta e dança
enquanto caminha, tudo junto enquanto se expressa. É uma espécie de teatro
arcaico iorubano, tanto que na ficha técnica de Quaseilhas o elenco é descrito como
alarinjo, está lá o nome dos três, a gente podia chama de atores, mas não são
somente atores. É engraçado porque essa investigação com tempo me fez entrar
244

em crise com a dramaturgia em si, que tanto que quando uma das melhores coisas
que tinha pegado na escola de teatro ela acabou sendo descartável e foi difícil
aceitar que ela não tinha como colar na investigação do tempo, as éticas não
batiam, a ética de produção cênica do tempo não batia com essa ética de produção
textual, e foi aí que eu encontrei o Oriki. No caso de Quaseilhas, eu escrevi um oriki,
não dramaturgia. Talvez a dramaturgia seja da composição dos meninos, dos
corpos, porque eles criaram uma lógica dramatúrgica, mas o oriki em si não é uma
dramaturgia. É um texto, um poema. E aí estou buscando essa ligação do tempo
com a memória, com essa memória enquanto consciência da carne afrodiasporica,
então, o oriki me ajuda nisso, a ideia de trabalhar com um elenco mais diverso. oriki
no Brasil é muito ligado às os orixás, mas não exatamente. oriki que é como eu
disse, uma literatura, uma identidade em Literatura oral, seja é uma identidade da
literatura oral uma pessoa, de uma comunidade, de um grupo, da família, era muito
comum cada família ter o seu oriki, como se fosse o brasão dos europeus. Tanto
que é dividido em oriki e itã, itã mais ligado numa relação das mitológico. O oriki lida
com os fatos. Então tem uma coisa de falar quem a pessoa é, uma procedência
dessa pessoa, tanto que ori é a cabeça e ki é ligado a saudação, ao louvar. A
tradução seria saudar a cabeça, saudar a cabeça de alguém. É quando você fala de
alguém. São vários tipos e oriki e todos ligados à memória. Então imagine que todos
esses iorubas que foram trazidos pra cá, possivelmente tinham o seu oriki e foi
perdido. Imagina e esses orikis sobrevivessem, como se esses negros de hoje
soubessem de onde vieram, seus ancestrais... é como se fosse um livro em
oralidade. O oriki é ligado à identidade é de alguém, de uma família, de uma
divindade, de um rei... é bem especifico, você está louvando alguém com ele. E tem
também alguns orikis que são cânticos de fundamentos do axé, por exemplo,
possivelmente, é um oriki, não um itã, nem um orìn, uma cantiga, possivelmente ele
é um oriki, porque é de raiz, de memória.

JJ: MARCA REGISTRADA NAS SUAS ENCENACÕES?

DP: Rapaz, acho que tem sim, só a ideia desse espaço que você chama de site-
specífic, ser muito relacionado a uma casa, independente como ela seja, já toma
isso com um elemento preponderante. Uma outra coisa que está se tornando
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preponderante é a água. Em Arbítrio eu usava a água, a bunda de Simone que tinha


um cenário de jorrava água, em Quaseilhas que um dos espaços é todo alagado, ou
outro tem uma torneira, no outro um chuveiro...então a água é preponderante porque
eu venho de um lugar alagado mesmo, onde a água estava sempre no nosso
cotidiano, era ali a baia mesmo da península itapagipana, água das palafitas... tanto
que é outro termo que eu uso para a memória afrodiaspória que é água parada, e
que nas culturas da memória afrodiasporica, água parada estão muito relacionadas
a água da criação, essa água está parada para você dar movimento criativo para
ela, ou seja, não é uma água morta, quando a gente fala em águas paradas lembra
logo de doenças... nesse caso é água para você dar movimento criativo pra ela.
Então a água é preponderante, esses espaços cenográficos são muito ligados a
ideia de casa, de ambiente familiar... Com certeza, a partir de agora, o oriki vai estar
mais presente, a primeira vez que eu usei foi em Quaseilhas. Então são elementos
que se repetem muito, principalmente, espaço esse elemento específico que
percebo recorrente nas minhas obras, muito ligado ao espaço e a água, o espaço de
onde eu venho.

JJ: QUAIS LINGUAGENS POÉTICA, FILOSOFIAS QUE VOCÊ DIALOGA??

DP: Atualmente eu tenho estudado muito estudos culturais. Na verdade eu estou


retomando, por causa desse ritmo final de Quaseilhas de ensaios, montagem... eu
deixei uma pilha de livros de lado para dar conta lá, mas no momento eu tô batendo
muito tempo decolonialidade, que é um conceito muito velho, do começo dos 90, e é
um conceito muito sul-americano, ou seja, o grupo de decolonialidade onde e
modernidade sul-americano, pensou isso, justamente, porque, o pós-estruturalismo
europeu não dava conta da colonialidade e das sub-opressoes que estão da
colonialidade: classismo, racismo... então eles começaram a pensar por esse viés,
ou seja, a decolonialidade é o contraponto aos pensamentos pós-coloniais. A
decolonialidade sugere um posicionamento ético da coisa comportamental, ou seja,
quando a gente fala assim decolonialização, você vai ter que tirar o que é decolonial
no seu pensamento.

JJ: ALGUM PENSADOR?


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DP: Beatriz Nascimento tem me influenciado bastante, me interessado na verdade,


uma teórica negra, brasileira, esquecida... e ela tem um posicionamento não deixa
nada dever, por exemplo, a um conceito de corpo sem órgãos Deleuzeano, ela fala a
mesma coisa pelo viés decolonial, isso é impressionante! E a gente não olhou para
essa mulher ainda, devidamente, foi assassinada no 90 e parece que matou,
inclusive, a ideia dela.

JJ:VOCÊ JÁ DIRIGIU ESPETÁCULOS EM SALAS DE TEATRO? PORQUE A SALA


TE INTERESSA MENOS QUE SITE-SPECIFIC?

DP: Eu acho que meus interesses poéticos não cabem caixa. Não respondem àquilo
ali. não é que eu gosto, eu assisto, inclusive, obras em palco italiano que são
bacanas e tal. Não é que eu não goste, como alguém que consome arte, entende,
eu identifico que aquilo não é pra mim, não é para as minhas iniciativas artísticas.
Só a ideia de uma caixa preta não é suficiente, é necessário quebrar a parede às
vezes, sabe? Se você levar em conta que é caixa preta, didascália, rubrica, e
composição de personagem todo mundo faz, parece que está se expondo varias
peças iguais, claro que cada uma vai fazer de maneira diferente, obvio. Mas todos
esses elementos os criadores levam em conta, são as convenções, é o protocolo... é
que eu não consigo criar uma obra sem levar em consideração o espaço. Mas
quando olha para a caixa preta... quando eu começo a montar uma peça e as vezes
não tenho o espaço, demorou muito, por exemplo, para eu consigo espaço para
Quasilhas, eu não consegui dirigir sem ter espaço primeiro, é muito preponderante...
é muito interventivo nas minhas ideias. Então a caixa-preta não me provoca, não me
causa crise, entendeu? Então eu preciso de uma coisa que me dê crise. Agora
mesmo no projeto no Quati eu estou com uma crise, porque é um espaço muito
doido arquitetonicamente, e tenho que dirigir em 3 semanas... esse processo de
viver o espaço é muito importante, esse processo inicial que eu falei.

JJ:TRABALHA COM ALGUMA LINGUAGEM ARTÍSTICA ALÉM DO TEATRO?


247

DP: A música, a música, a música... E agora estou na onda de entender dança, né,
sou não cara que acostumando a ir pra espetáculo de dança, agora eu vou mais.
trabalhei com um grupo só de dançarinos, também, foi muito bom trabalhar, é outro
jeito de responder as coisas. Mas a música é muito forte, muito. E eu leio muito
também, né, então já a leitura não conta e a escrita, não conta porque é algo tipo...
Aqui se uma ideia aparecer, já tá aqui, já tá na mão. Escrever já é como respirar,
qualquer coisa... talvez não conta, nem escrever, nem ler, nem digo ler coisas de
teatro, ler literatura mesmo, romance, conto, não as coisas mais teóricas, mas
romance, conto, quadrinhos e música. Mas em termos de encenação, música é um
elemento muito importante, atualmente, está tomando proporções grandes.

JJ:JÁ FEZ TEATRO DE RUA?

DP: Não. Porque é outro lugar que não comportar as minhas poéticas. Eu não acho
que toda arte que é população tem que ir para rua. Se é para ser popular, se é para
o povo ir deve ser na rua. Estava conversando com um amigo meu ontem, mas é
uma arte que eu gosto, de novo, não é que eu não gosto, só não cabe no que eu
proponho. Existem artistas incríveis... se formou uma menina aqui na escola de
teatro, a Clea, que faz um teatro de rua incrível. Clea leva isso como poética de vida,
como bandeira, e ela faz muito bem mesmo. Performances de rua, de maneira geral,
não e a minha, porque se eu preciso de um tempo, de um processo de imersão, a
rua não me dá. É por causa disso.

JJ: QUAIS SÃO SEUS ESPETÁCULO FORA DA CAIXA?

DP: Árbitro, minha primeira peça, Oroboro que foi minha peça de formatura, e
Quaseilhas, ultimamente, minha última peça. Foram essas três obras, isso sem
contar com a bunda de Simone, foi junto com o teatro base, igualmente Oroboro que
teve processo muito mais autoral de minha parte, mas, também, muito autoral de
minha parte. Essas três Arbítrio, Oroboro, Quaseilhas.

JJ: DIFICULDADES DE ESTETIZAR O ESPAÇO NÃO TEATRAL?


248

DP: Eu comecei a entender que eu preciso de uma equipe de trabalho muito junto.
Isso eu descobri com Quaseilhas mesmo, porque em Oroboro eu não tinha muito
essa noção e Arbítrio foi muito na guerrilha. Quaseilhas me fez entender que, por
exemplo, preciso de uma espécie de sabe direção de arte, sabe, tipo cinema, onde o
cenográfico, iluminador, figurinista, vídeo, se for usar, trabalham todos juntos
mesmo, juntos. Porque não é a mesma lógica do trabalho na sala, na caixa preta
caixa, porque o iluminador só precisa do raider de lua do lugar, as medidas do
espaço, pra fazer uma escala, uma maquete, um programa aqui... No espaço não
convencional, ou alternativo, eu acho que é melhor usar o seu conceito mesmo, o
site-specific, porque não é alternativo qualquer alternativo, sabe, esse site- specific,
acho que tem que ser uma posicionamento dessa galera que vai atuar sobre o
espaço muito junto. Cada um tem a sua assinatura ali, é bacana, claro. Mas
trabalhar muito junto. Então é muito difícil ainda fazer isso em Salvador, é muito
difícil fazer as pessoas entenderem que funcionar assim. Eu tentei fazer isso em
Quaseilhas, consegui, a muito custo 10%. Era difícil a galera entender que deveria
atuar como uma equipe de arte, sabe, principalmente essa galera das visualidades,
esse grupo que vai lidar com a luz, cenário, figurino, com projeções...com o espaço
em si. Mas acabou que na hora que colou, ficou bacana em Quaseilhas, mas eu
acho que o primeiro ponto, a primeira dificuldade não está exatamente no espaço,
mas como o diretor articula as pessoas pra atuar sobre ele. Em Quaseilhas eu
consegui um pouquinho, espero que da próxima vez eu consiga mais, ou total, como
eu desejo.

JJ: EM QUE MOMENTO O ESPAÇO ENTRA NA SUA ENCENAÇÃO?

DP: Rapaz... olha, no caso de Quaseilhas o espaço entrou muito depois, a gente
enfrentou muitas crises do espaço, que eu não queria num teatro, então tinha que
ter um que contemplasse, até que eu decidi que eu tinha que levantar em casa
mesmo. Então o espaço veio depois, tanto que depois que o espaço apareceu, foi
um mês pra montar. E foi assim com quase todos. Em Arbítrio eu fiquei alguns
meses ensaiando no espaço ensaio, aí com as negociações com a casa preta, a
gente foi pra lá. O que demorou mais tempo, eu acho, era que nós ainda éramos
estudantes ainda aqui, aí levamos mais tempo para entender, então levou muito,
249

mais tempo para conceber esse. Mas também foi mais rápido, assim, não tinha
muita crise, estava ali. Tinha dificuldade que era lidar com aquilo, mas dizer que a
coisa não existia, não, a janela esta na sua frente, você vê que essa madeira está
fazendo um som, se você quiser usar pode usar. Então esse processo de
experimentação sobre o espaço que você sabe que vai ser a sua cenografia, a gente
conseguiu até um tempo muito em Arbítrio. Acho que Arbítrio se protelou mais por
falta de dinheiro, do que pelos próprios artistas. Em Oroboro, isso foi uma coisa meio
estranha, porque era uma série de solos, de intervenções performativas, foi a peça
mais longa que já dirigi, 2:30. Eu dirigia as cenas separadas, mas talvez por esse
momento meu de viver o espaço, os meninos não tiveram muito momentos
espaciais, ali. Então na verdade, eu não consigo identificar bem a forma como eu
usei aquele espaço em Oroboro, no Criacura, eu me lembro que foi muito rápido, no
momento em que a gente decidiu vai ser aqui...mas os espaços estavam meio que
fixos, sabe, talvez, também, pela intervenção de Jahli, que dava uma liberdade
restrita, pode usar isso, não pode usar aquilo... talvez.

JJ: COMO VOCÊ SE RELACIONA COM O ESPAÇO NO SEU PROCESSO


CRIATIVO?

DP: Eu vivo muito o espaço inicialmente, esse processo de ir sozinho, e às vezes


eu vou chamando alguém que vai interferir nele, cenógrafo, iluminador, mas eu
gosto muito de viver ele sozinho, depois eu organizo, junto com os atores, alguns
dias de improvisação encima do que está se propondo com aquela peça, o exemplo
de Quaseilhas as improvisações eram musicais, happenings musicais, uma espécie
de Jam session. Já em arbítrio era a coisa mais de jogo energéticos e cinéticos
exercícios grotowskianos, antropológicos... E aí eu vou montando a obra parte disso
aí, é claro que quando você tem uma certa entre aspas montagem aí você vai
direcionando alguma algumas coisas, a gente já ficando mais tempo com um dos
atores, ou com 2, você vai trabalhar um de vez, você vai criando exercícios e
laboratórios específicos para uma ou duas pessoas. Então quando você já tem mais
ou menos uma noção do que vai ser a coisa, aí você começa a ser mais cirúrgico...
a ideia é que você vai ser mais cirúrgico no decorrer do processo.
250

JJ: O ESPAÇO É A CENOGRAFIA OU VAI ALÉM?

DP: Tem nada a ver, é quase arquitetônico, é mais arquitetura. Em Quaseilhas é


arquitetura, não é cenografia. A gente chama de instalação cenográfica. Tipo assim,
esse barracão, mesmo, ele é um barracão dividido em três espaços e uma cabine,
cada espaço tem uma pequena cenografia. Então, praticamente, foram três
cenografias, três projetos de luz, dentro de um barracão grande. Então nesse
sentido talvez pequena cenografia ali dentro daquela estrutura, talvez, por isso
chamamos de instalação.

JJ: QUAL A PRINCIPAL DIFICULDADE DO DIRETOR NA POÉTICA SITE -


SPECIFIC?

DP: Para conceber um espetáculo dentro de um site-specific, a maior dificuldade é o


tempo para que você possa identificar as performatividades ocultas do espaço. Se a
peça vai ser nessa sala, eu tenho que identificar todas as potencialidades, o ar-
condicionado, as fotos, a estante a mesa... tudo isso tem que falar alguma coisa,
tem que agenciar, tem que mover alguma coisa. Então você tem que pensar um
pouco para tentar identificar a performatividade tácita ali, escondida, sabe? Por que
senão você não o deixa falar também, ou às vezes ele já fala demais e você precisa
deixar ele quieto. Você pode, também, chegar a essa conclusão, o espaço já diz
muito, então eu vou pirar encima de uma outra coisa e vou colar aqui, entende?
Então isso também é importante. O espaço teatral não oferece essa possibilidade
porque e mais protocolar. Entende? Eu acho que a dificuldade é saber como vai ser
a cenografia. Acho assim, mas dentro das menina desenho, do raider que ele já
tem... eu não quero ser arrogante, mas já sendo, eu acho muito mais tranquilo dirigir
no teatro normal, eu não faço porque não me move, não responde aos meus
anseios poéticos, mas é... não estou dizendo que é extremamente fácil, tem as suas
dificuldades, mas é muito complicado você comparar a dificuldade de um espaço o
outro, que não é que não tá preparado para receber uma obra cênica, para um
espaço que está preparado para receber, a caixa cênica está preparada, você
consegue até prever os problemas.
251

JJ: DE QUE MANEIRA VOCÊ TRABALHA A REALIDADE DO ESPAÇO NA SUA


FICÇÃO?

DP: É justamente por isso que não pode ser qualquer espaço, tem que ser um
espaço que converse com o que você está propondo, não atoa, no processo de
Quaseilhas, eu decidi construir a minha casa, a casa onde eu vivi, só não tem o
telhado de eternit, porque Erick ficou com medo das madeiras caírem. É uma serie
de lonas, mas é igualzinho as casas que vivi. Quando você tiver oportunidade de
você assisti, você vai ver que eram as casas daquele jeito. Então tem que ser um
espaço que converse com o que você está propondo. Em Arbítrio, aquele Casarão
dos anos 30, conversava com as referências que eu tinha, era a casa de minha
bisavó, aqueles corredores grandes... Não era igual, mas dialogava. Ela responde
algumas necessidades minhas, não só dessas motivações no período pessoais,
mas, também, das minhas motivações estéticas, eu queria experimentar mais,
queria fazer aquelas coisas de teatro experimental, então eu achava que dialogar
com algo que parecesse também antigo no espaço ajudaria. E no caso do Criacura
as possibilidades de câmera, né, como eram vários solos, cada sala compartilhada
continha um solo, como uma espécie de baú. Então esse espaço tem que dialogar
com o que eu estou criando, porque senão não tem nada a ver.

JJ: É POSSIVEL DIZER A CONCRETUDE DO ESPAÇO SE IMPÕE NO SEU


TRABALHO CRIATIVO?

DP- Não... não exatamente. Se não tiver uma conversa é só o espaço quem está
falando. Eu tive uma experiência que não é o caso de site específico, mas uma
experiência parecida com a bunda de Simone, a gente ia fazer no teatro da
barroquinha, mas aquele espaço já é muito atraente, tem uma beleza...então eu
pensava em uma cenografia que seja superior ao espaço da barroquinha, que seja
maior que ela. Acabou que o espaço que a gente criou superou o espaço da
barroquinha e superou a peça. Nós fizemos uma instalação gigante cheia de
chuveiro, tanto que Erik ganhou o prêmio Braskem aqui por essa instalação. Era
uma instalação inusitada, era água por todos os lados, piscina... fazíamos
corredores, fazíamos cortina de água... E ficou superior à própria obra, e no final
252

ficou descompensado, a gente queria tanto superar o espaço, que a gente superou o
espaço e a peça em si. Pior que a galera achava feia a instalação, mas quando
colocava a luz ganhava outra dimensão. Em Quaseilhas isso não acontece, há um
dialogo entre a instalação, as performances, o som, entende? Se ela não conversar
vai parecer só proselitismo estético, que só queria surpreender com esse espaço
deferente. Eu acho que ele não deve superar as suas ambições poéticas nem
estéticas, ele deve entrar em diálogo.

JJ: QUAL A IMPORTÂNCIA DO ESPAÇO NA SUA ENCENAÇÃO??

DP: Rapaz é uma das mais importante, inclusive, em um não-tempo que é


investigação que eu tenho, tem um tripé que eu chamo de som, performance e
espaço. Claro que os estudos tradicionais vão dizer que você precisa do ator, do
público e do espaço, ne? Eu só tirei o público e botei som. Mas o espaço é muito
preponderante nesse lugar, porque, por exemplo, eu tendo o espaço, isso é bom
para o performer. Eu tendo um espaço e performer, isso é bom para o som. Se eu
tenho só esses três elementos muito coesos, o resto é firula estética. Se tem uma
projeção é firula, se tem uma luz mais estilizada é firula. Na próxima coisa que eu
vou fazer, quero explorar só esses três aspectos.

JJ: PERCEBE DIFERENÇA NO SEU PROCESSO CRIATIVO NA SALA E NO SS?

DP: Sim, eu percebo, mas na verdade não é. Se é numa sala convencional, numa
sala preta, não é meu trabalho.

JJ: COMO VC PERCEBE A RECEPCAO DO PÚBLICO??

DP: Eu não sei falar sobre isso a sério. Na verdade, se você quer propor uma
experiência, você tem que contar com esse outro fator da ação, que são as pessoas
que vão chegar para compartilhar com aquilo. Mas eu, sinceramente, eu não
consigo... eu não sei se percebo, eu sei que causa algum efeito.

JJ: COMO VOCÊ ORGANIZA O ESPAÇO PARA AFETAR O PÚBLICO?


253

DP: Outro fator importantíssimo, eu faço pensando em quais são os meus interesses
em fazer com que elas percebam coisas...ou confundi-las, geralmente para
confundir. Por exemplo, em Quaseilhas são três espaços diferentes, cada espaço
tem uma cenografia diferente da outra e a forma como o público se acomoda,
também é diferente. No espaço que a gente chama Camamu o espaço é o mais
confortável de todos, primeiro que é o maior, as cadeiras são acolchoadas, tem uma
coisa de casa mais marcante. No outro, quebra Machado, é só um banco em L de
madeira e as pessoas se sentam ali durante uma hora e é muito desconfortável. E o
outro que é pantaleón, todas as pessoas estão em pé em um chão totalmente
alagado. Então eu quero que as pessoas sintam, ou se afetem pela obra,
intimamente ligadas com os agenciadores que eu uso para organizar essas pessoas
nesse espaço. Em quebra machado eu queria que eles se sentissem
desconfortáveis dentro de um espaço que é pequeno e úmido. E ele só pequeno e
úmido não era suficiente, então eu coloco eles sentados em um local péssimo,
porque ficar em pé seria mais confortável. E no outro que era algo mais ligado a uma
memória mais feminina e familiar, era mais confortável, as pessoas se acomodavam
bem, tanto que era um espaço que a gente deixava para as pessoas da terceira
idade. É a forma como eu quero que eles se afetem, eu quero que eles vejam e
experienciem em Camamu de uma forma confortável. Eu quero que ele experimente
o quebra machado de uma forma desconfortável. E quero que eles experienciem
pataleon de uma forma mais em movimento, tanto que em pantaleon a ideia era que
as pessoas entrassem numa espécie de coreografia, elas tinham que se mover, elas
tinham que dançar, também. Então aí tem os meus interesses, agora o que ela
capita disso, o que ela percebe disso, eu não tenho poder de saber, está num lugar
mais pessoal... Algumas pessoas vêm me dizem coisas desconhecidas. Alguma
coisa eu quero provocar, independente da obra, eu quero provocar. Talvez eu não
queria dizer, talvez eu não quero que elas leiam, mas provocar sempre. Sempre tem
uma intencionalidade. Talvez não tenha uma intencionalidade aristotélica, não tem
uma intencionalidade de leitura, de decifração de códigos ou de entendimentos
narrativo, mas uma intencionalidade de afetar em algum lugar.

JJ: SOMOS CONVIDADOS DO ESPAÇO?


254

DP: Levando em conta um site específico de que que já existe sim, levando em
conta inclusive, talvez, a caixa preta pura, também, sim. No caso de Quaseilhas que
eu tive que levantar uma casa, na verdade, eu não sei se essa informação... como é
mesmo direito... (repete a pergunta) Não se aplica em Quase ilhas porque eu criei
um espaço para aqueles criadores. Em Arbítrio sim, acho que essa informação base,
em Oroboro, também... Mas em Quaseilhas não, eu convido as pessoas para minha
casa. Eu levantei a minha casa e chamei a galera para curtir umas músicas dentro
dela. Eu não fiz em alagados, na verdade, porque eu teria o dobro do gasto, eu não
tinha dinheiro suficiente. Principalmente transporte do público. Mas consegui levar
quase 200 pessoas da comunidade para ver a peça. Consegui ônibus para eles irem
até a peça.

JJ: QUANTAS APRESENTAÇÕES?

DP- Eu só não faço segunda nem terça, mas de quarta à domingo, se puder eu
estou fazendo. A media convencional daqui de Salvador são 12, 16 apresentações...

JJ: JÁ CONSEGUIU FAZER MAIS DE UMA TEMPORADA?

DP: Com Arbítrio sim, aqui em salvador. Fizemos pelo menos 3. Oroboro não,
porque era somente para aquele momento, eu não queria continuar, não por eu não
gostava, eu adorava, mas eu achava que era aquilo mesmo, já tinha acontecido. E
ela só teve 9 apresentações, de todas, ela é a que menos apresentamos. Já Arbítrio
mais, a primeira temporada mais de 20 apresentações. Quaseilhas só fez 12, mas
volta agora em agosto, talvez. Em novembro eu tenho uma temporada para fazer de
18 apresentações, mas é uma coisa que ainda não está certa.

JJ: E POSSÍVEL CIRCULAR COM UM ESPETÁCULO NESSA POÉTICA?

DP: Nunca circulei com Arbítrio. Nunca circulei com Oroboro. Inclusive, fui chamado
por Arbítrio para apresentar no Rio de Janeiro, quando viram as especificidades não
queriam o trabalho de achar um lugar parecido. A mesma coisa com Oroboro.
255

Assim, um dos solos conseguiu circular por uma cidade do interior da Bahia. E
Quaseilhas é um dos maiores problemas para circular, porque você tem que levar a
casa. Alguns curadores de outros festivais se interessaram em levar, mas aí quando
veem a estrutura…

JJ: VOCÊ JA TEVE QUE ADAPTAR ALGUM ESPETÁCULO PARA O PALCO.

DP: Não, pelo menos por isso eu nunca passei, eu teria um treco.
Eu estou com resistência de colocar Quaseilhas dentro de um lugar que é coberto,
sabe? Só dela estar ali de do vento entrar nas frestas... e claro que eu posso liberar,
ate porque a peça acontece dentro da casa, ne, mas só esse fato de, talvez, colocar
no lugar coberto já fico meio sem jeito.

JJ: JÁ TEVE QUE ADAPTAR O ESPTÁCULO PARA OUTRO ESPAÇO


ALTERNATIVO?

DP: a peça toda não, apenas um dos solos de Oroboro. O solo de Diego Alcantara,
a gente fez o solo dele na casa preta e fez aqui na sala cinco. Mas é outra coisa,
não é igual. Mas a peça toda em outro espaço alternativo não. É muito difícil circular
com minhas obras, na verdade.

JJ: PODEMOS AFIRMAR, DIANTE DE TUDO ISSO QUE FALAMOS, QUE SITE-
SPECIFIC MODIFICA O PROCESSO METODOLOGICO DO ENCENADOR?

DP: Absolutamente.

JJ: DE QUE MANEIRA?

DP: Ele modifica porque primeiro vai ter sempre um caráter experimental, a
depender de cada obra, vai ser um método para essa, pra outra e pra outra... é claro
que você sustenta uma poética, mas as metodologias, as ferramentas que você vai
usar, vai depender muito do que o espaço está te dizendo. Claro que vai depender
do que o ator vai te dar, do que os outros artistas vão te dar, os dançarino... Mas
256

também o espaço vai te entregar alguns materiais, tanto que é uma saga antiga
essa relação do diretor com o espaço, muitos diretores na história eram os
cenógrafos, ou cenógrafos que viraram diretores e diretores que assinavam os
cenários um dos outros... essa relação, talvez, do dramaturgo, espaço e diretor
sempre se confundiu demais. Então no meu trabalho é diferente, sempre vai
interferir. Sempre vai interferir na forma como as ferramentas. Então geralmente
quando eu vou quando começa uma obra, o máximo que eu posso me tornar é estar
aberto para o espaço vai me dizer. E geralmente eu vejo muitos espaços, quando
eu decido por um, eu organizo esse processo de viver ele lá, morar se possível. Mas
o fato de ser um espaço não convencional te obriga a você acionar outras
ferramentas, outras formas de produção cênica que pode resultar em uma parada
que você não esperava, também. Eu não esperava que a fazer numa palafita, uma
casa de madeira quando iniciou o processo de Quaseilhas, entende? Nada está
dado, você tem que produzir tudo. Na casa preta eu tive que construir uma
instalação elétrica.

JJ: DIFICULDADE DE SE FAZER ENTENDER PARA COM A PRODUTORA?

DP: Não... Gabi é muito atenta ao que está sendo produzido nas artes
contemporâneas, ela produz artes mais convencionais, é uma produtora que
trabalha com varias linguagens artísticas, mas ela é responsável pela parte de
teatro, então ela é muito atenta para a arte contemporânea, para o não
convencional, como todas as preocupações que uma produtora tem, ne?

JJ: QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DIFICULDADES QUE O SS IMPOE A


PRODUCÃO?

DP: Os mesmos problemas que vai infligir a direção, vai infligir a produtora. Seja de
acesso ao PÚBLICO, seja os materiais... Gabi entrou em crise em Quaseilhas,
porque não é nem apenas por ser em um lugar não convencional, você está criando
um barraco, vai ser dificil de viajar... onde se consegue essa madeira...todo o
Madeirit a gente conseguiu do carnaval, pra você ter uma noção. Então tudo isso
causa uma crise, as mesmas crises que eu tinha, claro que no meu caso do ponto
257

de vista poético, e ela tinha que viabilizar. Aí os meus problemas poéticos passam a
ser os dela no ponto de vista da produção que é circulação, acessibilidade... na
primeira temporada de Quaseilhas a gente teve um público médio, não vazio, mas
médio... porque você apresenta em outro lugar que pode ser difícil de chegar,
perigoso...

JJ: VOCÊ É UM ARTISTA SOLO OU GRUPO?

DP: Atualmente sozinho. Atualmente sozinho com algumas pessoas que confio, aí
convido alguns atores. Eu e Laís temos uma plataforma de rede em artistas nessa
ideia da afrodiaspora, tanto que Quaseilhas é um projeto dessa plataforma e agora a
ocupação dela também é dessa plataforma. Então não é exatamente um grupo, é
uma plataforma de criação e produção d investigação e claro que tem algumas
pessoas que se repetem, eu gosto muito de trabalhar com Laís, não é só porque ela
é minha companheira, mas porque ela está na mesma frequência poética, Diego que
também é meu amigo, trabalhou comigo no teatro base e agora fez o Quaseilhas,
Erik já fez muitos cenários, Luizinho muitas luzes... Nina fez muito registros de
vídeos, mas dessa vez ela concebeu os vídeos da peça, a concepção videografica...
Então, algumas coisas vão mudando, mas esse núcleo, nessa configuração, se
repete. Grupo é que eu não quero mais, não acredito em grupo.

JJ: O SITE-SPECIFIC MODIFICA O PROCESSO CRIATIVO DOS OUTROS


AGENTES CÊNICOS, ALÉM DO DIRETOR?

DP: Muito... é muito difícil a equipe entender como eles operam, mais juntos, mais
um grupo de arte inserido nesse espaço. Por exemplo, Luizinho só poderia trabalhar
na iluminação de Quaseilhas se tivesse um eletricista que fizesse a ligação elétrica,
e além disso, tivesse uma especificidade em iluminação teatral. Esse eletricista não
poderia ser qualquer um. Erik precisou de 8 pessoas pra levantar a casa no tempo
que precisávamos... num espaço como esse tem que estar meio que, vai aparecer
coisas, nesse caso de Erik, por exemplo, ele poderia ter apenas 2 cenotécnicos se
fosse num espaço normal, às vezes nem precisa de um cenotécnico, neste caso,
precisou de 8, Erik precisou de um assistente e 8 pessoas pra montar, entende, ele
258

chamou o pai dele para fazer a parte hidráulica que a peça pedia... Luizinho
precisava de 2 operadores de luz... Então isso não muda somente a forma como eu
trabalho, mesmo, às vezes em graus maiores, em outras em graus menores, em
Quaseilhas foi em graus maiores.

JJ: ACHO QUE É ISSO, DIEGO, OBRIGADO! A GENTE FINALIZA AQUI. SE VOCÊ
PUDER DISPONIBILIZAR DOCUMENTO, FOTOS, CRÍTICAS... DO SEU
PROCESSO CRIATIVO SERIA PERFEITO.

DP: Posso sim, vou organizar e combino com você pra ir lá em casa.

JJ: OBRIGADO.
259

APÊNDICE C - ENTREVISTA COM THIAGO ROMERO

ROMERO, Thiago: depoimento [jun. 2018]. Entrevistador: José Jackson Silva.


Salvador: Museu geológico - BA. Filmagem (120min). Entrevista concedida para a
tese de doutorado do entrevistador.

Entrevista realizada em 06 de junho de 2018.


Entrevistado: Thiago Romero (TR)
Entrevistador: José Jackson (JJ)

JJ: Thiago, a minha ideia no doutorado é pesquisar o trabalho do encenador em


espaços alternativos. Esse espaço alternativo não é o alternativo pelo alternativo, eu
acolhi um conceito das artes plásticas, que é o site-specific, que se baseia na ideia
de uma peça, uma obra, feita para um local específico, cuja a obra só existe naquele
local. A minha inquietação nesse momento, é entender quais as estratégias, os
caminhos, de onde parte, como desenvolve, quais são os problemas que o próprio
local oferece ao do trabalho do encenador. Basicamente isso. Para começar me fala
quem é você, de onde está falando e diz se você autoriza a filmagem da entrevista.

TR: Meu nome e Thiago Romero, estou em Salvador-Bahia, e autorizo o uso da


minha imagem para esse trabalho, esse projeto.

JJ: THIAGO, ONDE VOCÊ COMEÇOU A FAZER TEATRO E SOB QUAIS


CIRCUNSTÂNCIAS? QUEM TE FORMOU OU TE DEFORMOU NO TEATRO?

TR: Comecei a fazer teatro em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Eu sou do Rio, do
interior do Rio, sou natural de uma cidade chamada Volta Redonda. Comecei lá
fazendo em num cineteatro que tinha lá. fui pro Rio fazer faculdade, não fui fazer
faculdade de teatro. Quando entrei na UERJ, pra fazer história da arte, lá tinha um
núcleo de pesquisa e tal... Foi de onde eu continuei fazendo. Mas que me abriu na
verdade para essa área de direção, foi um projeto que a Ana Kfouri tinha no SESC
Tijuca, que chamava Centro de Estudo Artístico Experimental, era uma escola livre,
não era uma escola técnica nem nada, mas que você ficava lá fazendo várias aulas
260

lá e tal. Acho que o projeto durou uns 6 anos. Nestes 6 anos, enquanto anos eu
fiquei lá, então quem formou muito meu pensamento, ate pelas estéticas do teatro
contemporâneo foi a Ana Kfouri e o grupo dela. O projeto era assim, a Ana era a
coordenadora, e os atores que eram da companhia dela, companhia teatral do
movimento, que dava as oficinas. Outra pessoa muito importante no na minha
formação foi Ana Paula Bouzas que é daqui, mas na época morava lá e agora mora
em são Paulo, foi uma pessoa que norteou para a montagem. Depois eu entrei em
um outro grupo chamado casa sete, que era um grupo de Renato Carrera, que na
época era ator da Ana Kfouri, e nessa época montamos um espetáculo que na
época já falava um pouco do espaço alternativo, que foi lá no centro cultural carioca,
que era um armazém, nem sei se existe ainda, na praça Tiradentes, e a gente
montou um peça chamada Autopsia que era inspirada no Gritos e Sussurros do
Bergman. Aí depois eu montei o Teatro da Queda, o núcleo carioca, no trabalho final
do curso do projeto da Ana, já com esse nome. Aí vim pra salvador e continuei com
esse nome. Na verdade, a minha vivencia de ator e também de diretor foi muito uma
vivencia prática. Hoje que estou fazendo graduação em direção depois de 20 anos
fazendo teatro. Mas é um outro tipo de inquietação. Eu aprendi os mecanismos do
teatro muito na prática. E aí foi trabalhando com essas pessoas. Aí vim pra Salvador
e já comecei com Fernanda, no ano seguinte em que eu cheguei aqui, trabalhando
com o NATA e com outros projetos autônomos, no teatro da queda e tal. Depois a
gente se muda um pouco a estrutura. Então eu acho que a minha formação teatral é
nesse êxodo do Rio para Salvador e trabalhando com essas pessoas.

JJ: NESSE PERÍODO INICIAL NO RIO, FOI EM QUE ANO?

TR: 2001 ainda, acho que 2001.

JJ: E VOCÊ VEIO PRA CÁ EM 2008?

TR: Isso 2008, Final de 2007.

JJ: O TEATRO DA QUEDA SURGE QUANDO?


261

TR: Ele vem comigo na mala pra salvador. Ele surge em 2004. Ate esse momento
eu era apenas ator, não tinha a menor vontade de dirigir, gostava da direção mas
queria ser ator. Aí um dia a Ana kifuri me disse que se eu quisesse ser um bom ator,
é interessante que dirigir uma coisa pelo menos uma vez. então fui fazer uma oficina
de direção lá no curso com a Marilia Martins, na verdade, que dava esse curso
dentro do projeto, e fiquei enlouquecido, o diretor tomou uma proporção maior que o
ator. Às vezes eu sinto falto de atuar, aí eu volto, mas criar, pensar no espetáculo, a
arquitetura do espetáculo enquanto encenador, me dá muito mais tesão.

JJ - POR ONDE VOCÊ COMECA UM ESPETÁCULO?

TR: Depende muito, agora, nestes últimos anos, desde de 2011, que estou
pesquisando essa coisa da homossexualidade, da representatividade do
homossexual em cena... então, sempre vem por um tema. A própria pesquisa que
eu desenvolvo com o teatro documentário, os limites entre real e a ficção, partia
muito disso. Mas é muito especifico alguns espetáculos meus. Se a gente for falar
do rebola, que é que vamos falar bastante, o Rebola só aconteceu porque eu tinha
um projeto do Beco eu não pensei na peça, a peça surgiu no lugar. Mas sempre
parto de um tema, de uma questão que está me inquietando no momento. A partir
desse tema, a criação vai fluindo. Às vezes parto de uma imagem, eu tenho um
pensamento visual, eu tenho muito isso, você vai nas minhas peças e por mais
simples que possa ser, calças jeans, com coisa qualquer, eu tenho a imagem, o que
é a imagem a indumentária da peça vem sempre antes mesmo da encenação, da
dramaturgia. Mas, em geral, cada espetáculo é autônomo neste sentido.

JJ: ESSA VISUALIDADE VEM DA TUA FORMACÃO ACADEMICA OU VOCÊ


SEMPRE TEVE ESSE INTERESSE?

TR: Da minha formação, possivelmente, por causa da minha formação. Eu não sabia
que tinha isso, fui descobrir depois. Quando eu fui fazer o vestibular passei em três
cursos distintos e optei pelo o que na época me pareceu mais exótico, História da
Arte, que era um curso na universidade estadual do rio de janeiro. E a consequência
de entender a imagem vem muito desse estudo que fiz na UERJ, isso eu tenho
262

percebido há uns dez anos depois da formatura, eu tenho 17 anos de formado, há


uns 10 anos eu entendi que a contribuição visual de tudo que eu faço é muito do
estudo que partiu da Universidade. Porque ate então eu era um menino do interior,
normal, que não entendia nada. E na universidade eu estudava numa escola
clássica, europeia, estudei Grécia por anos, então sei todos os arabescos, coríntios,
jônicos essas coisas todas. E isso de uma certa maneira ficou adormecido por que
eu não segui quando me formei, fui trabalhar com cultura popular, fazendo
mapeamento dos artistas populares do Brasil, foi por isso que vim parar na Bahia. E
por necessidades financeiras, eu tive que aprender a fazer muita coisa, minha avó
costurava, então eu aprendi de uma certa maneira de lidar com roupa com figurino,
com indumentária, muito da memória afetiva que eu tenho por ver minha avó
costurar. Mas eu não costurava, por ser menino, menino não costurava, tinha essas
coisas. Então tenho a memória dessas coisas me ajudaram muito no que tange o
trabalho visual que eu tenho feito.

JJ: tem algum artista na sua família?

TH: não, somente eu.

JJ: e de onde vem essa sua vontade de fazer teatro?

TH: não sei. Minha família... eu sempre fui criado por mulheres sem muita
escolaridade. Eu sempre gostei muito desde criança, criança bicha, eu sempre
gostei de novela, sempre gostei de representar, de fazer pecas na varanda com os
meus colegas de rua. Brincando de fazer novela. Em volta Redonda, na minha
cidade, tinha dois teatros la, e sempre vinha muita coisa de fora, e eu sempre ia
muito assistir. Mas não tive nenhum incentivo da minha família, eu fui escondido.
Minha mãe queria me colocar no caratê que era mais viril, mas eu ia escondido. Pedi
uma bolsa, consegui, fique estudando um tempo lá. Então não tem nenhuma origem
que lidou com arte... tinha um tio que era jornalista... uma madrinha que era muito
ligada a musica, a encenação... eu mas nem sabia que teatro sabia teatro, pra mim
foi tudo muito instintivo. Depois da escola eu fui pro Rio no instinto, numa estratégia
de me libertar, meu foco nem era fazer a universidade, mas eu sabia que a
263

universidade me levaria para o Rio e lá eu tinha conhecido/ a minha escola, eu


estudei em uma escola tradicional de Volta Redonda, uma escola de freiras, e tinha
a semana da arte onde se inspiravam as crianças a fazeres, e fazia peças sobre
ditadura militar. Bem cafona hoje em dia, mas na época era ótimo. E teve uma
excussão da escola pra assistir uma peça de Sergio Brito no Rio, e no final, eu
sempre fui uma criança tímida, mas no final eu pedi pra falar com Sergio Brito,
alguém chamou e eu falei pra ele: quero fazer teatro, como é isso?... eu nem sabia
que Sergio Brito era Sergio Brito nem nada...e me deu o telefone dele, falou que ia
me ajudar. Liguei algumas vezes... quando cheguei no Rio falei com ele e nos
encontramos, me deu um livro sobre o teatro oficina, e falou que se eu quisesse
mesmo ele me ajudaria... mas depois perdemos contato, vi algumas peças dele,
mas depois perdemos contato. Era uma pessoa que em tres ou quatro conversas
que tivemos disse que era possível eu fazer teatro e tal, mas depois a gente se
perdeu. E ai eu fui pro Rio nessa perspectiva, fiz a UNIRIO, fui desclassificado, tirei
tres na prova de habilidade, e fui invalidado, reprovado. A minha primeira peça de
verdade foi na UERJ, foi o texto a invasão de dias gomes que a UERJ tinha um
anexo, uma obra fechada a muito tempo, ai o diretor Carlos Pimentel, na época, quis
montar esse texto e a gente começou a estudar aquela estrutura mal acabada e
fizemos a peça lá. esse foi o meu marco, até antão só tinha feito peças pequenas,
escrito texto épico, complexos pra minha idade na época... era ótimo. Ai depois
entrei no SESC tijuca e la fiz muita coisa, conheci o Renato, fizemos o autopsia... e
comecei a dirigir. Dirigi meu primeiro espetáculo em 2005 eu acho, já com o nome
teatro da queda. O nome veio nada, na época tinha aquele filme, a queda de Hittler,
que não tinha nada a ver com o trabalho, mas o nome surgiu dali. Eu queria um
nome que fosse uma quebra de padrão, quebra de valor e ai veio Teatro da Queda.

JJ: VOCÊ DESENVOLVE ALGUM DISCURSO SOCIAL/ POLÍTICO COMO MOTE


CONSTANTE DAS SUAS ENCENAÇÕES?

TR: Sim ultimamente eu acho que o teatro da queda, eu, enquanto diretor a gente
sempre tem que ser muito nessa questão de um homem né, o início, início dos meus
parabéns é muito difícil assim essa coisa de qualidade à sociedade revolução a
velocidade de informação e como deixa o cara meio com falta de afeto com alheio
264

as coisas acontecendo. Depois eu comecei a estudar documentário então comecei


a pesquisar muitas a relação afetiva com a memória com a biografia, o que que a
gente pode usar para estar em cena quais são essas como é que ele faz nada, mas
hoje a partir do ator dessa coisa do confessional, do depoimento, né, de como o
material afetivos tem grande potência para poder fazer. E depois eu comecei, aí
depois eu tive mais coragem, eu acho que eu tenho coragem, e comecei a pesquisar
a relação da homossexualidade da identidade gay com a identidade brasileira e
essas representações da figura do homossexual e quais peças eu podia falar sobre
isso, que eu acho que o grande do discurso estético político que eu tenho
desenvolvido enquanto diretor.

JJ: DIRETOR TEATRAL LATINO AMERICANO, BRASILEIRO, VIVENDO EM


SALVADOR. QUEM É ESSE DIRETOR, THIAGO?

TR: Eu sou um cara que fala sobre coisas do meu tempo, mas não esquecendo do
passado, e que tem cada vez mais me afirmado enquanto gay, negro, dentro de um
lugar de uma sociedade capitalista opressora que quer silenciar o tempo inteiro. Eu
hoje eu posso te dizer que eu sou um artivista, assim, e isso eu tenho descoberto,
não é uma coisa que eu sou, agora não eu acho que o NATA me trouxe muita coisa
de Negritude, de me entender negro, militar por isso, dessa coisa de ancestral, ter
ido para o candomblé, ter iniciado no candomblé, também, me deu uma outro tipo de
força, de luta, de discurso, de coisa que eu preciso defender, que eu defendo com
maior prazer, com carinho... mas também entender que uma obra, que um artista ele
pode até fora do panfleto assim, meus espetáculos não são panfleto no sentido de
bater de frente e militar. mas o teatro é uma grande ferramenta de transformação
social, eu acho que eu tenho utilizado isso enquanto esse encenador. Sou um cara
que só consegue montar coisas que realmente me interessa, Eu ainda não tenho
essa coisa que muitos diretores te chamei com o projeto se não quiser falar que eu
não vou dizer, sabe, não vai não sou eu... e as obras ela tem perseguido um pouco
isso. Eu tenho me afirmado agora, profundamente, no que é ser uma bicha preta e
que como é difícil isso. E aí agora estou montando Madame Satan, que é já um
pouco desse discurso, acho que ele vai afunilando... eu tinha uma linha toda afetiva
do documentário, é aí tem o Breve que é um espetáculo com temática carinhosa e
265

tal.. Depois eu comecei a estudar essa coisa mesmo muito, muito a partir do
encontro que eu tive com o teatro Conin, de São Paulo, de Ronaldo que me deu aula
e depois do meu colega em Cachoeira, morávamos juntos, fazia um projeto é dentro
de um quilombo, dando aula de teatro, e aí a gente estava começando a fazer as
peças, aí comecei a estudar ele me apresentou Devassos no Paraíso de Trevisan
que fala sobre a Sexualidade, e pensei, eu quero falar sobre isso. O beco me
ensinou muito que eu precisava militar, sabe, porque foi um projeto muito legal, mas
o projeto muito difícil, na espera política social, eu era quase um bandido, por estar
fazendo aquele projeto ali. Então acho que eu sou um cara que precisa dizer, mas
eu só consigo dizer as coisas que atravessam. Eu só consigo dizer da minha arte
minha militância nesse sentido, é meu lugar no mundo, sabe, o que eu faço meu
trabalho é meu lugar no mundo aí pode ser qual a espera que eu tô participando, eu
acho que sou esse cara uma bicha preta, de Candomblé, todo um projeto para não
dar certo e tenho avançado.

JJ: ALGUEM TEMA RECORRENTE?

TR: Bicha, veado. veado preto, bicha preta, é isso! Assim, eu acho que as coisas
bem expressivas do meu trabalho dizem desse lugar, de como é como a gente pode
pensar essa homossexualidade, esse homossexual, essas personagens silenciadas,
são os temas recorrentes. Escuto muito isso inclusive que só monto peças de
bichas. E confirmo, é, pois é. Acho que é por aí. E isso abre pra gente falar para
muito cantos, ne? Eu sou bem autobiográfico, o teatro documentário me ensinou
muito disso. Sem ser autorreferente, mas, com eu posso observar a minha visão de
mundo, minha trajetória, minhas vivências e potencializar alguma coisa em cena.

JJ: ESTÁ DESENVOLVENDO ALGUMA POÉTICA?

TR: Tenho pensado nisso... eu acho que a minha cabeça, talvez a minha vontade de
fazer um mestrado, que foi uma coisa que eu neguei desde que sai da Universidade,
e decidi fazer só teatro e tal. Só que a gente vai envelhecendo e começa a entender
que está desenvolvendo uma poética, que passam, por que passam por muitos
lugares, sabe, aí não passa pelos estudos de Grotowski, mas está contido porque
266

nos estudamos isso fora e dentro da Universidade. Mas eu acho que eu tenho
desenvolvido muito pensamento do teatro documentário, junto com uma estética, um
pensamento da sua representação do homossexual, de como se denomina, não sei
se é teatro gay que fala, mas pelo menos estou flertando nisso. Tem uma coisa que
é o documento a memória, tem uma coisa que a pesquisa da homossexualidade que
vai verticalizar numa obra poética, que vai trazendo um monte de outras
vertentezinhas que leva a gente vai pensar a visualidade, na música, na própria
encenação. Se a gente for observar os espetáculos de perto eles não são tão
distintos, eles tem uma linguagem na abordagem daquilo que eu falo... Agora que eu
estou pensando um pouco nessas estruturas, nessas nomenclaturas para poder dar
a isso, mas eu tenho muito tempo já fazendo e a forma que eu faço ela tem
avançado, acho que eu estou um diretor melhor, assim, é muita caminhada ainda,
mas, depois dos 30, eu acho que a gente vai ficando mais tranquilo, sem todas
aquelas urgência que a gente tinha, sabendo mais, e acho avançando na pesquisa.
Cada espetáculo que eu faço eu tento me provocar nesse sentido. Não sei bem se é
teatro gay, teatro de gênero... sei que ele tem uma relação artivista, politica forte e
cada vez mais tenho me interessado nisso, tem uma relacao com o teatro
documentário que já é uma estética, eu pesquiso muito a coisa da dragqueen,
desse corpo fora da norma... essas vertentes todas vai se tornar um teatro alguma
coisa. Tem uma poética Thiago Romero acontecendo e disso eu vou me
impregnando, porque se você for ver a peça que fiz com a Outra CIA, tem muita
coisa minha impregnada ali, diferente do que a CIA faz, e isso de alguma maneira
impregnou no trabalho deles, porque em outros trabalho, que eu nem estava tão
envolvido, tinha um pouco essa dinâmica e esses procedimentos. Eu sou muito
metódico, ante de começa o processo eu sei o que quero dizer, o que quero atingir...
e aí tem vario exercícios que eu vou desenvolvendo e aprofundando, ate porque eu
trabalhei com as mesmas pessoas por muito tempo, e tem uma constância de
pessoas que vão fazendo mais de um espetáculo comigo, que é. minha equipe, mas
eu quero surpreender os atores, Então vou criando... Agora que estou
sistematizando isso, pensando, naquele espetáculo eu fiz assim, no outro fiz esse
procedimento que resultou naquilo. Agora que estou pensando, porque antes era
muito intuitivo, claro que agente vai lendo muita coisa, mas eu não tinha muito
interesse teórico, o meu desejo era fazer teatro. Agora que estou pensando... mas
267

não tenho um nome para dar a isso tudo. Mas tem uma poética, um pilar, o
documento, a memória, a encenação do corpo, a apresentação gay, a identidade
brasileira versus a identidade gay, de como ela é carnavalizada a imagem do
homossexual, de como é estigmatizada, e do como por muito tempo não foi
representada fora do pejorativo, percorro por isso.

JJ - ALGUMA MARCA RECORRENTE?

TR: Tem, tem uma estrutura dramatúrgica, que por mais que Daniel escreva, eles
pedem muito como encenação que ele conhece e com carinho que ele faz junto,
Porque Daniel raramente escreve um texto entrega, ele vai entregando conforme ele
vai vendo. Tem uma pesquisa forte agora eu acho musical desse lugar da revista,
mas isso já vinha coisa da música, da visualidade dos espetáculos que tem tantos
os meus quanto o de outros que faz a própria visualidade. eu acho que você ver
você identifica um pouco que é meu. Eu acho que tenho aumentado essa
assinatura, ainda mais agora com essas coisas da drag...vai ter uma cena tem uma
cena que é... poesia, Eu gosto muito de trabalhar com eu lírico, eu gosto muito de
sistema deles tem uma delicadeza para serem abordados. Eu gosto muito de poesia
quanto ferramenta para discurso da abordagem mais lírica poética, tem uma coisa
do interlocutor, o ator sempre por mais que esteja no personagem, sempre disposto
eu gosto que ele se coloque, por mais que ele faça uma personagem que seja
completamente oposto a ele, eu acho que é um pouco por aí.

JJ: ALGUMA TEORIA, PENSADOR?

TR: Eu pesquiso o teatro documentário. O documentário eu conheci pela Janaina


Leite, de São Paulo, do Grupo XIX, quando ela veio para cá E aí eu comecei a
estudar essas teorias de Piscator e outras coisas que a própria Janaína, que é uma
pessoa que tem trabalhado a pesquisa nessa coisa autobiografia de cena, é um pilar
bem marcado. Foi a partir desse encontro com ela que eu comecei a pensar o teatro
documentário e começar a criar sistemas muito próprios do teatro documentário.
Fora isso tem uma pesquisa do diretor antropólogo, históriador, que fui formado
para, que é eu tenho pesquisado a esses personagens históricos homossexuais que
268

que talvez tem uma história não oficial que essa história não oficial foi silenciado
para mostrar a oficial por isso escolhi fazer Madame Satã agora. Daneil está
escrevendo o texto baseado no livra biografia, o mesmo livro que inspirou o filme do
Carin... porque eu tenho uma relação muito afetiva com o rio de janeiro, eu sou
carioca, e também porque que ria fazer um espetáculo histórico. Histórico no sentido
do personagem ter existido, que é o outro braço do teatro documentário que eu não
tinha trabalhado ainda, que seja um ícone que as pessoas conheçam ou não, mas
como a gente pode trabalhar essa história oficial versus a não- oficial, aí eu trabalho
com uma carpintaria de informações documentadas, tem até os processos que
madame satã sofreu quanto foi preso. Então eu vou me aprofundando, investigando
nesse personagem que tenho gostado muito de fazer.

JJ: ALGUMA TEORIA CONSTANTE?

TR: Flerto muito com o teatro Épico de Brecht, gosto da maneira... Mas já mas já
tenho imbricado dentro do teatro do Stanislavski, adoro trabalhar Stanislavski com
os atores, adoro! Eu gosto muito das coisas que o Henrique Dias faz... foi um cara
que me mostrou muito também. fiz veiwpoints que foi uma parada que eu estudei
bastante, para poder fazer, hoje em dia não faça tanto treinamentos, mas eu passei
dois anos da minha vida no Rio de Janeiro estudando veiwponts, Suzuki,
composition, aquelas coisas todas, e isso ajudou muito e ajuda muito quando eu
penso na cena. E a minha Bíblia é muito livro de Trevisan, ultimamente, tenho lido e
relido o Devassos do Paraíso, leio, releio, e para cada novo espetáculo, eu vou
lendo coisas. eu gosto muito de ler, conhecer, mas eu não sou tão focado nesse
sentido. Eu gosto de gostar das coisas, igual Caetano fala!

JJ: QUANDO VOCÊ SAI DA ARQUITETURA TEATRAL É POR FALTA DE ESPAÇO


OU UMA OPÇÃO ESTÉTICA?

TR: Das vezes que sai da sala foi por escolha. Tem três momentos interessantes
quando eu sai da sala porque eu precisava ligar o discurso a uma outra coisa. Fiz
uma peça chamada Abismo, que foi um projeto de circulação que escrevemos, já
tinha feito uma versão no Rio, mas ela sempre me incomodou muito ela no teatro de
269

auditório, porque era uma peça que é uma briga de dois caras no último dia da
relação deles, é a última noite deles, e aí a ideia era fazer na casa das pessoas.
Porque fazer uma casa de pessoas? porque era interessante para o espetáculo que
o discurso usasse a sala como debate, ou a casa como debate, então foi um projeto
que a gente fez aqui e no interior, em algumas casas em Alagoinhas e Inhambupe.
Montei a peça toda dentro do apartamento e era interessante porque era uma
apropriação desse espaço e a discussão levado para sala da família brasileira, para
justificativa porque eu queria fazer. A gente montou no apartamento da minha casa,
e a gente chegava ou a gente fazia uma visita técnica antes da apresentação, como
era um projeto de circulação, a gente chegava um dia antes na casa da pessoa, se
apropriava daquela casa e não mudava nada, a casa não virava teatro, se a sala era
3 metros quadrados ela tinha 3 metros, se ela era um kitnet, era um kitnet,
entendeu? Então a gente estudava aquela coisa e colocava a peça ali dentro. O
dono da casa convidava as pessoas para assistirem ( a gente não fazia uma
divulgação aberta, a plateia eram as pessoas que ele queria). foi muito bacana,
porque era um lugar para gente debater o limite do Real ficcional, mas
posicionamento político de porque estar indo com uma peça para casa das pessoas.
Depois que o Revê-lo que era uma época que estava no debate da União
homossexual, ou não, então falei: quero montar uma peça sobre casamento. Queria
levar a discussão por um outro espaço, então eu escolho fazer no Museu Rodan,
porque é um espaço burguês, porque a gente estava alí alta classe dos bairros da
Graça da Vitória e por que eu achava interessante que esse entorno, e não somente
ele, estivesse ali na recepção de um casamento entre dois homens. Foi uma
escolha! No entanto, quando a gente tira essas peças desses lugares elas não são
as coisas.
E depois veio um outro projeto que eu escrevi, totalmente afetivo, que foi no Beco
dos Artistas, que foi a ocupação do de Beco dos artistas, no momento que o Beco
estava bem morto, assassinado, e aí surgiu Rebola, o Rebola é, na verdade, fruto
dessa ocupação. Ele não ele não existiria se não tivesse passado por coisas
durante esse projeto. O Rebola falava exatamente disso, da morte dos espaços
LGBT em Salvador. Porque o Rebola nada mais é do que um cara, uma bicha mais
velha, decide fechar um dos bares do Beco dos Artistas. Então o debate da peça
todo esse, cadê esses espaços? Porque estão sendo silenciados? aonde eu posso
270

estar ali, né? então vamos rebolar para que isso não aconteça. Mas o rebola ele é
fruto disso tudo. Acho que se tivesse sido um projeto tranquilo, ele não seria a
potência que foi, porque a gente escreveu o projeto achando que seria tudo legal
para levar as bichas de volta... aí quando a gente chegou lá, depois, na abertura do
projeto, a gente descobriu que ninguém queria estar mais naquilo, eu fui
denunciado, a SUCOM ficou durante os quatro, cinco meses que o Beco ficou
aberto, a SUCOM ia lá diariamente. Eu sofri ameaça da síndica de um prédio
falando que eu era um baderneiro... Então, assim, era, para além de um projeto
artístico, de ocupação artística que ia trazer artistas ligados ao gênero ou
dragquens... Não, descobri que era um projeto de resistência, eu tinha que manter
este projeto funcionando até o final. O espaço começou a dizer para mim que aqui
você não tá brincando aqui você me aceita e aceita que sua obra tá em função do
espaço, ou você não vai conseguir fazer a peça nem terminar o projeto. Então, era
ao mesmo tempo uma resistência militante, e uma obra falando: vamos falar disso,
porque agora o espaço está pedindo para você disso, que você fale disso. Tanto que
depois do projeto acabou, que a gente não sabia se a peça ia continuar, porque
financeiramente era muito caro, mas a gente decidi não matar a peça pelo que ela
dizia. E quando a peça foi para o Teatro, o espetáculo se tornou um show de
travesti. A gente só conseguiu fazer aproximado do Beco, quando a gente foi para o
Barbalho foi na mostra Braskem, que foi num lugar um pouco parecido, a gente
conseguia fazer, de uma certa maneira, fazer com que a fábula acontecesse ali,
também.

JJ: QUANDO VOCÊS FORAM PRA MOSTRA NÃO CONSEGUIRAM O BECO DE


VOLTA?

TR: Não, não. Já tinha virado outra coisa, um restaurante. As pessoas torciam muito
que não continuasse, ne? elas queriam isso. Na ultima apresentação eu escutei uma
pessoa falando vou te denunciar ao Ministério Público seu baderneiro. E falei, calma,
é só mais essa semana, já está finalizando. E ela deu graças a Deus por aquilo
acabar. Porque deu aquele lugar, ne? Quando a gente foi para a mostra Braskem, a
gente já tinha feito Vila e Gregório, a gente tentou voltar para o beco, mas ficava
inviável financeiramente diante de tantos entraves que colocaram. Então a gente
271

conseguiu lá no Barbalho e a peça volta um pouco a força que ela tem. Quando
você vê no teatro, no Gregório era legal, porque tem uma estrutura diferente, mas
está no teatro. Não adianta você estar na alternativo, levar para teatro e querer ser
diferentão, não. Você tem que entender que está levando para uma caixa, que tem
todas as suas convenções e suas estruturas. Então você vai ter que adequar um
pouco, ele fica uma peça, o Rebola é um ato político. Porque você chegava lá, a
peça era uma 10,11 da noite, você chegava e os atores já estavam lá. Então, você
bebia, fumava e de repente acontecia uma peça. Era um acontecimento ali. Quando
você vai para o teatro, vira uma peça, peça ali, começando as 8 horas, acabando as
9, senão, paga multa... No Beco não tinha isso.

JJ: sobre Abismo e Revê-lo eram lugares muito próprios para a encenação. Eles
foram criados para serrem nesses lugares, ou o espaço veio a calhar?

TR: O Abismo e Revê-lo foram criados para esse lugar. O Abismo a gente fez
bastante a gente fez 10 cidades, eu acho, no entorno de Alagoinhas, o projeto
proposto por Daniel e Marcelo, que queriam que eu dirigisse eles, no Calendário das
Artes. E a gente já sabia que ia apresentar dentro da casa de pessoas.
O processo começou no Barra do Itariri, a gente alugou uma casa, ficou lá uma
semana, eu fazendo os procedimentos deles... vivendo aquilo, criando as estruturas
das cenas e tal, para depois a gente ir para casa das pessoas. Ele não foi uma
consequência, eu já pensei em fazer.
E o Revê-lo a mesma coisa, que eu queria fazer uma recepção, a estrutura do
espetáculo é numa recepção do casamento, e como eu tenho essa coisa de pensar
no espectador, da relação do espectador com a obra, e nesses espaços a gente tem
que colocar o espectador do simples assistir. Era uma recepção com cerimonialista,
e eu queria fazer num lugar pomposo, assim, no lugar, talvez, interessante para
fazer. A ideia era fazer nessas casas de festas, né, só que o orçamento não deixou
que a gente fizesse. Mas aí a gente conseguiu levar para o museu. Ele foi criado
para ser no espaço de festa, um lugar aqui que tivesse a possibilidade de levar as
pessoas, eu queria que as senhoras da Graça fossem, e ela iam, e elas adoravam,
falando disso, né? Eu acho que o meu trabalho tem uma contribuição social, eu
272

formo muita gente, que forma o pensamento e reflete sobre isso. Se você for a uma
peça minha e não sair pensando sobre alguma coisa, não deu certo.

JJ: FALTA DE ESPAÇO OU OPCAO ESTÉTICA?

TR: Não, as 3 horas que fui, foi por opção, por opção... para entender, as obras
pediram isso. mas pediram que elas não acontecessem dentro de uma caixa. Eu tive
sorte porque essas três específicas, tiveram um edital e isso porque a gente quando
a gente sai a gente eu sempre falo assim sair do teatro às vezes é até mais custoso,
né? Então, assim, eu nunca pensei assim: ah! vamos fazer, até porque você que foi
da outra companhia, a gente estava recém mudados para a sede eu falei assim que
usar esse espaço aqui no corredor, mas aí a gente vai ensaiar no espaço não faço
questão de não levar para o teatro, mas todas as vezes que eu fui eu tinha intenção
de ir, eu acho dobras pediram e o discurso do espetáculo era interessante que
contém esses lugares. O que torna a gente bem complexa a gente consegue voltar
mais bola para ele, pela força mesmo assim um pouco traindo. Mas nunca... não
gosto assim.

JJ: PRINCIPAIS DIFICULDADES. DE DIRIGIR NO SITE-SPECIFIC?

TR: Estruturais. As peças que eu montei elas precisavam de uma estrutura... que
esbarram uma dificuldade financeira. Tem uma coisa... o beco tem uma dificuldade
social, política que foi uma série de denúncias que a gente sofreu por tá lhe fazendo,
então tem uma coisa da sociedade também meio comprimido quem já estava
comprimido. Sempre as minhas coisas de peças técnicas, não que o espaço não
fale, mas nessas três experiências que são bem distintas, elas sempre precisaram
de algumas coisas técnicas. Então, a gente às vezes esbarra nessa coisa... agente
esbarra no poder público que não tá muito interessado que você saia, entendeu que
é legal fazer teatro até meio encaixotado ali sem tá sem perigo, porque você vai para
rua você tem um risco, né, e esse risco muitas vezes afeta o poder público no
sentido de... o rebola é uma comédia, mas é uma comédia que denuncia, que
ocupa um lugar. então isso cresceu aos olhos assim um dia vamos parar não deixar
ele continuar fazendo aquilo. você passa a se tornar perigoso quando você tem um
273

espetáculo que você precisa falar muito estou na perigoso. Então às vezes vocês
esbarram nessas coisas. Espectador do teatro já entendo que ele vai lhe dar com os
passos tal qual o espetáculo vai lhe dar, porque eu acho que quando você sai do
teatro você volta para fazer espetáculos em outros lugares o lugar o espaço vai te
dizer muita coisa então você não precisa talvez de... porque eu acho muito chato
assim ir a peças que poderiam ser feitas no teatro, mas como virou modismo época
a peça está no espaço alternativo, pra gente precisa ser diferentão, sabe? Mas a
gente acaba esbarrando assim... tem umas coisas técnicas de luz, som que, às
vezes, precisa, a gente não consegue algumas estruturas fazer, apesar de os
espetáculos não serem tão complexos e sua estrutura, mas a gente sempre vai estar
nesse lugar.

JJ: PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE PALCO E SITE-SPECIFIC?

TR: Eu acho que quando você opta em sair da sala, você tem que entender o lugar.
O lugar vai te dizer, ele pode até não mandar na sua obra, mas ele vai te dizer
demais! você não pode escolher um espaço e anulá-lo por que você acha que deve,
ele vai dizer. Então, por exemplo, quando a ente fazia Abismo, cada casa dizia para
a gente como a peça seria. Quando a gente foi fazer o Rebola, as janelas, o espaço,
o espectador... então assim, eu acho que quando você sai, você tem que entender o
espaço para onde está indo, tem que deixar que ele diga também. Eu acho que o
espaço, por muitas vezes, fica quase o protagonista da peça, e é importante que
você entenda que ele tem um lugar representativo. Você desloca o espectador e tem
que entender qual lugar deste espectador que você quer colocar ali, porque você
saiu da sala e que espectador é esse que você quer nesse espaço outro, que
interferência esse despertador vai fazer, porque o público também tem outra
importância quando você tira da caixa e diz agora vamos ali ver uma peça de teatro.
Mas quando você faz isso, você já tá quase falando para o espectador que ele vai
assumir um outro tipo de postura. Quando você opta por sair, você tem que pensar
qual é esse espaço, entende-lo dialogando com ele. Das vezes que sai, por
exemplo, nunca conseguia ir para sala de ensaio fechada e fazer a minha peça e
depois pega-la e colocar lá no espaço, era preciso que esse procedimento
acontecesse, ou no próprio espaço, como foi o caso rebola, quando a gente ficou lá
274

o tempo todo fazendo essa peça, ou um lugar que se aproxime. Não adiantava em o
Abismo não ser ensaiado dentro do apartamento.

JJ: EM QUE MOMENTO O ESPAÇO E DEFINIDO NA SUA ENCENAÇÃO?

TR: É bem no inicio, antes de existir a peça. Eu penso mesmo até quando vou para
o teatro e às vezes fazer isso percorro teatro batalho para fazer nesse teatro, acho
que cabe nesse teatro, tem que ser mesmo. Ainda mais quando é em lugares fora
eu sei que eu preciso encontrar... eu estava com outro projeto, que tive que
abandonada porque já estava em outro, que era pra estudar o casario antigo ali do
Pelourinho e a gente na época já estava pesquisando qual seria se casarão ali do
Pelourinho da Bahia sapateira, qual seria esse espaço porque eu queria que a
construção de cantar com força a partir daquilo ali, o espaço. o Madame Satan eu
sabia que queria fazer no Martin Gonçalves. Vejo eu, vejo a peça, essa coisa da
projeção visual, eu vejo e digo, vai ser ali. E fico processando e pensando como vai
ser desenvolvido o espetáculo naquele lugar.

JJ: COMO SE DÁ O SEU PROCESSO CRIATIVO COM O ESPAÇO?

TR: No rebola eu fui antes. Fui antes porque queria escolher qual era o bar que eu
queria culpar no beco, eu sabia que queria bar grande, mas o procedimento da peça
começou logo quando eu abri o Projeto. então eu não fiz um reconhecimento de
espaço com a equipe, o espaço está aqui vamos nos apropriar dele. Mas é
importante que esse espaço seja impregnado no ator, que conheça as quinas, as
cadeiras e as paredes daquele lugar. O projeto de ocupação do beco foi assim: eu
montei um escola de drag-quens, porque eu queria pesquisar um pouco o desse
lugar do ator transformista, por uma questão afetiva que o belo que abriu a esse
espaço e aí com uma promessa para agenda de mascar, que foi o último Bar antes
do beco chegar completamente, falei eu vou fazer um projeto para trazer todo
mundo de volta. E aí convidei a vários grupos, que de uma certa maneira debatiam
gênero, ou tinha um lugar com a rua, com a cidade, e convidei várias artistas
transformistas e queria que os atores, que tivessem interesse de se montar, durante
a ocupação do beco, ás tarde, teriam uma escola de draqueen, maquiagem drag,
275

figurinos, dublagens e tudo. Esse foi o processo do rebola, que eu já sabia que ia
montar, que seria sobre o beco, mas não sabia como seria. Uma coisa muito
engraçada foi que as personagens do rebola surgiram antes da peça, por essa coisa
da apropriação do espaço de trabalhar com essa coisa da drag, do ator
transformista... era importante que a vivência deles fosse como atuantes, como
pessoas que trabalhava à noite. Então, assim, a gente foi construindo personagens
da vivencia mesmo ali no beco. Tem muito do ator, por isso que é difícil substituir o
ator que fez porque a Coanza, por exemplo, foi Sulivan quem criou. Um
personagem que surgiu antes do Rebola, ela tinha um discurso político, ela tinha um
repertório, e ela fazia achou ele fazer um Show... sem ninguém saber como era a
peça. O processo de ocupação durou três meses, mas eu montei em quinze dias
porque era muita atividade no beco, muita loucura acontecendo. Mas quando eu
montei, aquela personagem já tinham todo o arcabouço para viver, então era só
colocar alguma coisa na boca dela que tivesse a ver elas. Daniel escreveu para
aquelas personagens, ele não criou os personagens. Ele participou de todo o
processo, mas ele criou a peça a partir do que aconteceu no beco. E é muito
engraçado porque muitas delas existem para além da peça, viraram personalidades.
Os outros dois: o revê-lo a gente ensaiou no forte do Barbalho, mas gente depois já
fomos pro Rodan, a gente não ensaiou muito efetivo. E o abismo a gente ensaiou na
minha casa, num no apartamento que eu morava na época, na Cardeal, que era
importante que ele estivesse essa vivência de estar em uma casa, que não podia
mentir muito, não podia muito fazer teatro, tinha que acontecer. Então era importante
eles entenderem essa coisa do cômodo da casa, do debate dentro de casa.

JJ: VC ACHA QUE O ESPAÇO E CENOGRAFIA?

TR: Eu acho que o espaço e a Arquitetura do espetáculo, é o cenário dali, eu


sempre procuro não modificá-lo tanto. No Revê-lo eu modifiquei bastante por ser um
cerimonial, mas o espaço dizia. Eu gosto de entender o espaço como arquitetura,
talvez, como cenário. Entender que eu tenho aquele espaço eu escolhi ele, então
pouca coisa eu modifico nele, para que a peça aconteça.
276

JJ: COMO VOCÊ SE RELACIONA COM O ESPAÇO NO SEU PROCESSO


CRIATIVO COMO DIRETOR? (8.13:26)

TR: Na escolha desse espaço extra-palco, o espaço vai dizer pra caramba, então eu
vou me relacionar com ele fortemente. Quanto estou numa peça de palco, eu tenho
a imagem do cenário e ela vai norteando um pouco a concepção, mas é diferente
como ele influencia. Quando eu sai, às vezes que eu sai da caixa, o espaço disse
para mim várias coisas, então ele era quase um parceiro. Naquele bar era quase
parceiro, sabe, eu abria aquele bar, eu vendia naquele bar, eu botava o som daquele
bar, fechava as paredes daquele bar, eu coordenava a faxina daquele bar, virei um
dono de bar porque ele foi meu parceiro durante cinco meses. Então ele dizia para
mim a peça, se formos personificar o espaço, essa cena não pode ser aqui. Você
tem que entender, as passagens, as possibilidades, você não vai ter um palco com
uma luz com contra que vai surgir, mas como é que esse contra vem? Vem de uma
luz externa... Às vezes o ator estava iluminado pelo poste da janela. Então o espaço
vai dizer. Quando vou para caixa, a gente marca no chão e tal... não estou falando
que é menor, que fazemos um juízo de valor, é só que é diferente, entendeu?

JJ: QUAIS OS PRINCIPAIS DESAFIOS DO ESPAÇO PARA DIREÇÃO?

TR: Ele, ele próprio. Ele já está fora do habitual, e é sempre um risco você sair,
sempre o risco, você tem que ter ideia disso. Vai ter que rebolar muito pra entender
o espaço, entende porque ele escolheu, escutar ele, entender o silêncio e as
negativas. Eu sou de Candomblé, né, então o tempo fala com a gente, a folha fala, o
espaço a dizer. No rebola a gente preparou o espaço para ser massa, porque às
vezes você pode ir para um espaço que não ser quer que aconteça sua obra e aí
você vai ter que dialogar com aquilo. Lembro um dos meninos fazendo os anjos
agora, também, ele tinha que entender a rua, não era ele se fantasiar de
personagens da rua e fazer, tem que entender a rua, a mecânica da rua, como eu
que tive que entender a mecânica do bar e saber que eu estava em risco. Acho que
o seu maior desafio peitar que você vai sair da caixa, entendeu, que é o grande
risco.
277

JJ: DE QUE MANEIRA VOCÊ TRABALHA O REAL DO ESPAÇO NA SUA FICÇÃO?

TR: O teatro documentário me deu muito subsidio para entender os esses limites.
Quando você sai, eu acho que o abismo e o rebola fala bastante nesse lugar, o ator
atuante ali, ele tem que entender que a opção foi para lhe dar nesse limite entre a
ficção e a potencialidade do real, são os teatros do real. Então, as pessoas que
estavam no beco dos Artistas precisavam entender que aquilo podia acontecer em
qualquer lugar no sentido de real que está dizendo, e isso coloca para o ator, um
outro tipo de postura. Eu gosto de lidar com esse limite quando você não sabe que é
verdade sem mentira se acontecesse não aconteceu, o Rebola começa com
Hamilton surtando, fechando as portas, botando todo mundo pra fora, ele não tá
mais aguentando viver ali, não tem futuro ali. Mas aí o que trabalho que eu tive que
fazer com Hamilton para entender que ele não podia interpretar e é foda quando
você fala para o ator não interpretar. Aí ele me falava, então porque você me
chamou? O ator que fazer personagem. A gente lidava no Rebola com um
personagem, mas é um outro personagem, que já fricciona real o tempo inteiro que
é a drag queen. Você vai no show de Valeri Orara, e ali é Valeri, você vai sair com
ela, vai tomar uma cerveja com você, ela vai conversar como Valeri, não é o ator
interpretando a Valeri, ela já tá borrada no real ali. O Abismo começava com um
quebra pau de dois caras. A peça começa com um cara saindo de carro indo
embora de casa. O trabalho que fiz com Marcelo foi de entender que quanto menos
você achar que o personagem não está próximo de você mais a peça vai acontecer.
E isso tem muito espaço também porque quando você opta, o espaço é real, você
vai trabalhar com uma realidade, por mais que esteja fazendo ficção o tempo inteiro.
É importante que o ator entenda também esse limite e friccione essa barreira e
dialogue com essa barreira entre real e ficção.

JJ: E COMO ENCENADOR?

TR: Estou no tempo real, num espaço real construindo uma ficção, mas essa ficção
tem que ter tons fortíssimos daquela realidade, então eu entendo, quando da
escolha do espaço, que estou lidando com um ambiente da realidade, que por
acaso, eu vou fazer uma ficção ali dentro. Mas o teor real tem que ser muito forte,
278

muito próximo. Por mais que eu esteja trabalhando com uma grande fábula, eu vou
entender sempre a realidade daqueles espaços, a história que aquele espaço tem. É
importante dizer isso, no rebola eu não fui arbitrário, tinham muitas vozes silenciadas
e muitos lugares que eu precisava entender. Então a gente fez uma pesquisa
histórica muito forte ali, até para escolha do bar. Aquele bar teve mais aberturas e
fechamentos, então, esse limite que está no beco dos Artistas... até o tempo do
projeto, a escolha do espetáculo o último, porque eu podia abrir com o Rebola, mas
eu não teria tido tempo de entender a realidade daquele lugar, que a gente
escolheu. Então, acho que a postura da encenação muda, nesse sentido, porque por
mais que você for maquiar o espaço, cenograficamente, com luzes..., você tem que
entender que você está no espaço real, que está ali imbuído de memória. Essa
memória não pode ser apagada por você, pode, talvez, ser manipulada por você ou
então ficcionalizada por uma outra memória, mas quando eu escolho, enquanto
encenador, eu preciso entender aquele espaço, e não o conceber, no sentido de que
podia ser em qualquer lugar. É aquele último bar do Beco dos Artistas, aquele bar
tem uma história, aquele bar foi o primeiro bar que eu conheci quando eu vim para
Salvador, então também tem o lugar afetivo das escolhas. A minha encenação vai
se guiar por isso: entendendo a memória daqueles espaços, entendendo as
possibilidades do real que aquele espaço tem, por mais que eu vá fazer uma grande
ficção.

JJ: É POSSIVEL DIZER QUE A CONCRETUDE DO ESPAÇO SE IMPOE NA


FICCÇÃO DO TEATRO?

TR: Claro! O espaço vai dizer muita coisa pra você. Você deve ter tido essa
experiência com dois perdidos, né, você estava no Calabar, você não pode fazer
teatro no Calabar, no sentido de não entender aquele espaço, você escolheu aquele
espaço. Então, a partir do momento que você escolhe o espaço, você tem que
dialogar com ele. Você não tem que lidar apenas com o espaço, mas onde ele está
inserido. As minhas experiências não foi fazer teatro dentro do espaço extra, foi
entender o espaço que estava sendo apresentado, e o espaço vai dizendo. Você vai
se tornar um parceiro daquele lugar, aquele lugar tem as histórias dele, tem uma
energia dele, um imaginário... O espectador muda de postura, ele vira quase, não,
279

no rebola ele era participante, personagem em si mesmo ali dentro. Teve uma
apresentação do Rebola que chegou uma pessoa bêbada, que já estava lá ha muito
tempo, que era um bar... a escolha da concepção, eu pensava, cara, vou fazer uma
peça as 10 da noite, não pode ser teatro, porque seria um saco depois de ter
cantado no vídeo-quê, escutar música, bebido a noite toda... vir uma peça para pedir
para ela ser séria? aí essa pessoa bêbada chegou lá cedo, tranquila tomando a
cachaça dela, Hamilton também lá, sabia que estava estranho, porque estava com
um figurino estranho, porque Hamilton daquele jeito que você não sabe se ele está
interpretando se é ele mesmo...Aí tinha uma cena que os meninos amarravam
Hamilton para tentar salvar o bar, essa mulher bêbada começou a discutir com as
pessoas estão amarrando e depois começou a discutir com Hamilton ele cala a boca
que ela queria ver o show das drags e ele não estava deixando, começou a brigar
com ele e ele não podia fazer nada. Então o ator também tem outra preparação, né,
porque às vezes vai fazer a marca mas a pessoa chegou e sentou aqui, é claro que
a gente tentar mudar. No rebola eu não quis fazer muito isso de indicar onde você
deve sentar, porque era um bar. Então enquanto a peça está rolando as pessoas
podiam levantar, pegar uma cerveja, sair se quisesse, voltar depois... Então eles
tinham outro tipo de preparo, e por ter feito o processo todo naquele espaço, ajudou
muito. A gente não teve aquela técnica de entender o espaço, eles já eram donos
daquele lugar. Então, ele, sabiam que se tinha uma pessoa sentada aqui, a marca
tinha que puxar para outro lugar. Então vai se lidando com outros meios e outras
maneiras de entender a própria arquitetura do espetáculo que você está montando.
E é louco por que é vivo o tempo inteiro, cada dia era uma novidade. Teve um dia
que deu um curto-circuito, que a gente não sabe se foi provocado, ou mesmo das
estruturas da coisa, porque a gente pegou um bar sucateado, a gente teve que
refazer o telhado, num projeto que não tinha esse dinheiro para telhado, porque
chovia, caia goteira, e a gente não sabia dessa parte elétrica... E aí, na hora que
Hamilton fecha as cortinas, para tudo, um curto. Por acaso tinha Fred Alvim que
estava lá pra entender e ele tinha 10 minutos para resolver essa parada. E aí, foi o
espaço que se escolheu. Podíamos estar confortáveis na caixa, que dá problema
também, mas você podia estar tranquilo num contra, num LED, essas coisas... mas
se você escolheu, vai ter que lidar com isso.
280

JJ: DE QUE MANEIRA O ESPAÇO MODIFICA O TEU PRECESSO CRIATIVO?

TR: Como eu optei por um espaço, a primeira parte quando eu sai do teatro foi
entender o espaço. Então eu não estava preocupado com a dramaturgia, não estava
preocupado com o trabalho do ator, no sentido de decorar um texto, queria que ele
vivesse aquele lugar. Aí você faz outro tipo de processo, até para os exercícios
mesmo, para você se adaptar e tal. Quando você vai para peça na caixa ela tem
outra mecânica, de repente você vai no texto, na concepção, ou você risca no chão
espaço... eu acho que são inícios diferentes, a poética é próxima, porque sou eu
fazendo, tem na minha assinatura, mas o início é diferente. Eu talvez não penso
muito no espaço quando eu estou dentro do teatro, até porque seria lindo a gente
conseguir ensaiar no teatro ensaiando com o cenário, mas a gente sabe que a
realidade do país é outra, mas eu tive sorte que nos espaços que eu escolhi quando
sai, tinha possibilidade de dar nele, ou em algo muito próximo dele, o que ajudou
bastante. Acho que o que modifica, é que quando você escolhe um espaço, ele tem
que ser o primeiro, o primeiro lugar que você tem que ter é a intimidade com ele,
sabe? Quando você vai para outro espaço tem que repensar tudo e reconfigurar
tudo no sentido da linguagem.

JJ: COMO PERCEBE A RECEPCAO DO PÚBLICO?

TR: O espectador é pensado de uma outra maneira, a recepção dele é de uma outra
maneira, porque nas experiências que eu tive, o espectador é muito participante, é
muito autor junto com ator, né, é muito ator também, a gente desloca desse lugar de
assistir a tela, ele pode interferir. Eu sempre me preocupo que a peça que dialogue
com o espectador, mesmo se ela for uma peça por mais agressiva, como era o caso
do Abismo que os atores usavam facas que poderia machucar o espectador, mas
ele está lá e tem que sentir aquela tensão, também. Mas eu acho que quando eu
sai, das vezes que eu saí, a recepção muda, porque quando você desloca o
espectador da caixa, do quadrado ali, ele tem outra relação, e eu acho que esses
espetáculos causaram no espectador outras reações, como cumplicidade, com
aquilo que estava disposto, de participante daquilo, dele poderia interferir naquela
história. Quando você optar por fazer uma peça dentro da casa uma pessoa, que a
281

pessoa que vai chamar os amigos para ver um lugar que é de término, você não é
capaz de prever o que pode acontecer. A gente foi fazer Abismo em uma casa, em
Alagoinhas, e tem uma cena que um dos atores pegava uma faca para poder matar
o outro, num ímpeto de ser agressivo e violento com o outro, uma cena densa, e o
dono da casa caiu na gargalhada, ele começou a rir, rir, rir, o tempo inteiro. No final,
teve uma roda de conversa e ele pediu desculpa, porque, na verdade, a risada dele
não era de sarcasmo, nem de alegria, mas sim de identificação, porque ele tinha
vivido a mesma coisa na sala dele, naquele mesmo lugar, parece que estávamos
reproduzido o episódio que tinha acontecido há pouco tempo, só que a diferença
que não era uma faca, era um revólver. Ele também era gay, ele também estava
casado e também terminou o relacionamento. Então, assim, a recepção, quando
você desloca a pessoa, fica ali na identificação e na participação o tempo inteiro.
Nas experiências que eu tive, eu colocava o espectador também ali como
responsável daquilo, como uma pessoa que possa intervir. Teve uma cena que
Daniel cortou o pé em uma garrafa quebrada, sangrou, e veio pisando com sangue
na sala da pessoa. A pessoa pegou um curativo e enquanto a peça acontecia, ela
fazia o curativo. Então você desloca e a recepção é diferente. Muitas vezes as
pessoas se sentem parte daquela ficção que está acompanhando. Eu gosto dessas
coisas assim, tipo, eu não trouxe você para talvez ficar desconfortável vendo uma
peça de teatro, eu trouxe você para ver uma história, para ter experiência.

JJ: COMO VC ORGANIZAR O ESPAÇO PARA AFETAR O PÚBLICO?

TR: Não organizo, não. Não sei se organizo... Eu penso no espectador naquele
lugar, não sei se eu preciso de uma organização para afetar, eu penso naquele
lugar, eu penso na possibilidade da dramaturgia e qual a participação que eu quero
do espectador...

JJ: VC TENTA ORGANIZAR A PERCEPCAO DO PÚBLICO?

TR: Não... eu tento fazer com que ele participe, com que ele queira participar. Eu
tento fazer com que um lugar seja diferente, sem aqueles clichês de chamá-lo para
participar, ele está misturado naquela coisa toda. Então eu não sei se eu organizo
282

espacialmente. As experiências que eu tive, tinha os expectadores muito mais como


participantes do que organizar um espaço para que o espectador sinta qualquer
coisa.

JJ: QUAL O PAPEL DO PÚBLICO?

TR: O público participa ali. O público não é passivo da coisa, mesmo quando está
dentro da caixa, mesmo quando eu estou lá no teatrão ele tem que refletir sobre
aquilo, sem essa coisa boba de reflexão como moral, nada disso. Ele tem que refletir
sobre aquilo, ele tem que participar daquilo, entender teatro como essa ferramenta
da experiência ou da transformação. Eu não gosto de entendê-lo como passivo,
nesse sentido de vou assistir e vou para casa. Eu gosto de entender espectador e
para quê eu quero espectador em cada peça que eu estou fazendo. Eu penso logo
no início, para quem é essa peça, o que eu quero dos espectadores, em que lugar
eu quero que ele esteja, quase um pensamento, tipo, meu cenário é uma casa, meu
figurino é vermelho e o público são os donos da casa. Eu faço a peça para o público.
Eu penso no público tempo inteiro, e tem uma preocupação, e tem uma coisa
didática também no mesmo trabalho, sabe, eu gosto de ser didático, acho que o
público precisa.

JJ: COMO O ESPAÇO AFETA O ESPECTADOR?

TR: O acontecimento de um espetáculo dentro do espaço, é o espaço vai dizer, e o


espectador vai ser atravessado por aquele espaço. Por mais que você não mexa
nada, por mais que você mexa nele todo, você já deslocou o espectador. A obra é
uma coisa no espaço teatral e fora dele é outra coisa, com o espectador vai ser a
mesma coisa. Ele vai ser atravessado por aquele espaço, mesmo que você nem
pense nisso. Quando falo em espaço, não falo apenas no espaço de dentro, falo do
espaço como um todo. Ele optou por ir naquele espaço, se não se permitir, é melhor
não ir. Eu acho que eu fomentei um olhar para o espaço adormecido no centro da
cidade. Porque muita gente que passa por aquele lugar não sabe o que tem ali.
Acho que a gente formou um pensamento sobre aquele lugar, e nisso fomos muito
283

felizes. Então eu acho que a gente puxa o olhar para o espaço, com espectador,
para memória daqueles, para além daqueles espaços.

JJ: SOMOS CONVIDADOS DO ESPAÇO?

TR: Sim.

JJ: FEZ MAIS DE UMA TEMPORADA?

TR: O Revê-lo foi uma temporada bem regular, porque a gente estava em uma
instituição, tinha uma pauta, tinha dias e tal, fizemos nas sextas e sábados. O
rebolar ele era de quarta a sábado e o Abismo era um projeto itinerante, foi sempre
uma apresentação em cada casa. No rebola tinha uma coisa do projeto que previa x
apresentações a gente fez até mais, mas era porque nos tínhamos o espaço nosso
ali, e era possível fazer na hora que a gente quisesse.

JJ: MAIS DE UMA TEMPORADA NO MESMO ESPAÇO?

TR: Não, não, não... engraçado, né, as vezes são experiências tão interessante,
mas estão fadados a morrer. não fiz. O Rebola acabou logo, a gente foi fazer em
outros lugares. Eu não tinha nenhuma perspectiva do Rebora voltar, ele foi criado
para morrer com o fim da ocupação do beco, eu sabia disso, ele voltou por
resistência da própria peça, porque quando acabou, os meninos pediram pra
continuar, aí veio o prêmio... aí conseguiu ter um folego, mas não no mesmo
espaço.

JJ: É POSSIVEL SAIR EM CIRCULAÇÃO?

TR: É possível. O abismo nasceu de uma circulação, o Revê-lo faz outras


apresentações, em teatros, pois é bem simples, a gente pode fazer em qualquer
casa de festas, por ser um casamento. O Abismo e já nasceu com essa com essa
ideia de qualquer lugar que ele pode acontecer, é bem simples, não tem luz não tem
284

som, tem nada, é a casa que interessa pra gente. E o Rebola é mais complexo, mas
é possível existir em qualquer casa e o bar boteco.

JJ: É POSSIVEL CIRCULAR MANTENDO A MESMA POTENCIA DO ESPAÇO


INICIAL, SE SUBMETER A OBRA A LOGICA DO TEATRO CONVENCIAL?

TR: É possível. Eu não escolhi nada louco de espaços, né, a gente entendeu o
espaço, a mecânica do espaço e a peça acontece. O difícil é você circular e fazer
essa logística de entender que existe esse espaço, mas a gente já fez até um
mapeamento, diante da possibilidade de fazê-lo circular, de onde poderia ter as
possibilidades de acontecer.

JJ: JÁ FEZ ALGUMA ADAPTAÇÃO PARA OUTRO ESPAÇO?

TR: Todos eles foram. Perde tudo, perde o espaço, acaba com a conexão com a
realidade, é apenas teatro, dentro da convenção do teatro. O Rebola é o que mais
sinto isso. No Revê-lo, quando a gente tirou do cerimonial do museu Rodan e levou
para o teatro da Barroquinha, foi incrível porque era uma igreja, foi interessante
acontecer lá. O abismo virou uma peça meio chata. E a gente fez bastante, mas
quando ele está em locus, a coisa acontece. A gente fez essas apresentações numa
atitude de sobrevivência, da peça não acabar e dos convites que recebemos dos
festivais, mas o festival não tinha dinheiro para bancar a estrutura original, nem
talvez interesse de você estar em outro lugar, e aí a gente fez no teatro, mas perde a
força do espaço que você escolheu. A peça acontece, mas a sensação do
encenador, eu, que criei, é sempre de estar faltando um negócio. Falei isso no
Rebola e ou meninos perguntaram, falta o que respondi, o bar, falta o bar! A apesar
de apresentarmos em um lugar onde tinha um bar, a peça virava uma revista, um
cabaré, falta o espaço. Das vezes que eu tirei o espetáculo do espaço e fui para o
teatro, eu tive que fazer um trabalho interno em mim de não querer a essência da
peça que não ia ter. O que que a gente fez? No Rebola a gente fez uma adaptação,
não da encenação em si, mas de entender que estávamos no teatro; e quando ele
foi pro teatro ele precisava de outros aparatos, que pela falta do espaço, mudava de
lugar a peça. Então ele se tornou um teatro de revista, que contava uma história. A
285

gente precisava ter um bar com bebida, mas a gente fez uma luz, pensada para o
teatro, que o transporta para outro lugar, a estrutura do cenário muda um pouco, a
gente criou um cenário para a peça acontecer. Eu não vivi essa ilusão de fazer uma
adaptação que se aproxime, pois foram peças muito especificas. Mas o teatro
também influencia, todas as vezes que eu precisei fazer um teatro, pensei que teatro
era esse. Por exemplo, tem uma ele apresentação do Rebola no Vila, que não é
muito legal, porque no Vila você não pode entrar bebendo... aí ele virou peça
mesmo, Teatro, história, ficção... mas no Gregório a gente conseguiu um meio
termo.

JJ: A ENCENAÇÃO SE MANTINHA OU ERA UMA SOMBRA DO QUE FOI?

TR: Ela se mantinha, a estrutura da encenação se mantém. Mas a gente a desloca e


falta o ambiente real. Não que seja impossível, acho que tem gente que consegue
fazer adaptação incríveis, eu não queria mexer muito, principalmente no Rebola, não
queria mentir para eles, porque eu tenho uma relação afetiva muito grande e quando
tirei do beco, não dava pra deslocar o bar, a casa de um lugar para outro. Ate teria,
mas aí seria a história da história, mas tem diretores que conseguem.

JJ: JÁ ADAPTOU PARA OUTRO ESPAÇO ALTERNATIVO?

TR: O teatro feito em um espaço alternativo, colocado em um outro espaço


alternativo não funciona, por exemplo: A gente fez o revê-lo que é todo com
pompozinho, tem bem casados, tem pró secos... quando levei pro projeto do Beco, e
eu não mexi, a estrutura do Beco era totalmente diferente do espaço do museu, não
deu certo. Ele saiu do espaço x, para outro espaço, que não era um teatro, e não
deu certo. Engraçado, choca, mas você acaba tendo que fazer uma outra peça, o
espaço fala muito, ne?

JJ: O SITE-SPECIFIC MODIFICA O PROCESSO CRIATIVO DO ENCENADOR DE


QUE MANEIRA?
286

TR: Sim, sim é outro pensamento, quer dizer, você tem toda uma pegada estética e
política na pesquisa sobre o que você vai fazer, eu acho que o encenador tem que
estar consciente da escolha quando quer sair para outro lugar. Esse lugar tem que
ser escutado, ele tem que ser estudado, e isso vai interferir na sua encenação, por
que a sua escolha espacial vai ditar sua encenação. Diferente de você fazer nos
outros moldes, você vai até construir, mas ali você está lidando com um lugar real,
ali você tá lidando com os espaços que precisam de escuta, de serem vistos,
apreciados. O ator que tá ali muda de lugar, também, porque, automaticamente, ele
é colocado em outro lugar, precisa entender aquele espaço, entender como ele vai
interferir na atuação dele, na relação com o espectador. Eu acho que são coisas
completamente diferente quando você opta por fazer um espetáculo fora, é outro
modo de estudo, por mais que sua poética, estética, filosofia, posição política
continue a mesma, você tem um outro atuante que é o espaço e a memória daquele
espaço.

JJ: EDITAL, DIFICULDADE DE SER ENTENDIDO?

TR: Não menti, inclusive eles nasceram da necessidade desse mesmo assim
quando ele escreveu Abismo era na casa das pessoas a gente não tio e o projeto do
Beco era para o beco a peça era apenas mais uma mais um item do pacote.

JJ: HÁ UM MERCADO?

TR: Existe uma moda. Mercado claro que existe, eu acho que a gente tem que
entender muita coisa, acho que o teatro inclusive quando o teatro dialoga com a
cidade é muito mais potente, eu acho, sabe? Eu acho que teve uma moda muito
grande de peças, acho que agora amenizou um pouco, mas que nem sempre eram
experiências felizes, porque eram experiências que não entendiam muito o espaço
onde estava encenado. Acho que quando você propõe ao espectador uma nova
experiência ele fica mais instigado, também... acho que tem mercado sim, enquanto
mais a gente entende essa mecânica mais incita.

JJ: DIFICULDADE DE SER ENTENDIDO PELA PRODUTORA?


287

TR: Não. O projeto do beco foi um projeto mais complexo, porque não era muita
grana, mas não tivemos grande dificuldades não, para além de coisas pontuais
como o deslocamento do horário convencional do teatro, a equipe que trabalhei
nestes três projetos distintos, aceitaram muito.

JJ: DESAFIOS DA PRODUÇÃO?

TR: Eu acho que primeiro você tem que entender o perfil do Produtor que você quer
para esse espaço, porque o pensamento do produtor está na execução, divulgação
e o que isso vai dar de retorno, pois é dinheiro público e a gente não pode perder
esse dinheiro, você não está brincando de fazer teatro, etc., e isso é difícil pra
caramba. Então, a escolha do Produtor que vai peitar isso é muito específico, tem
gente que produz super bem teatro, mas quando você propõe uma estética
diferenciada, vai dificultar sua relação, nesse sentido. Então eu acho que tem que
ser alguém sensível para esse lugar. Quando você sai do teatro já é caro, por mais
que você faça nada, é caro sair. E o produto tem que pensar numa estrutura daquilo
dá retorno, daquilo conseguir se manter pelo menos na temporada que ele está
acontecendo, que está sendo proposto, por que é diferente. As especificidades do
Rebola eram completamente diferentes das especificidades de um espetáculo de
teatro, no teatro, e isso é custoso. Ainda mais quando se tem que levar público,
divulgar... eu tive sorte das minhas experiências serem em lugares acessíveis, mas
ainda assim é caro. Mesmo simples é caro. Mesmo simples não cabe uma lotação
de um teatro. Dependendo do espaço você faz pra 10 pessoas, 15, depende do
tamanho do espaço. Aí o produtor tem que ser sensível neste sentido e pensar como
vai gerir isso. As estratégias de marketing e divulgação tem que se dar conta disso,
você não está no teatro, então tem que pensar qual será essa divulgação, qual o
apelo que vai ter... por isso, para além de tudo isso, a escolha do produtor tem que
ser bem estudada. Ou é uma pessoa que trabalha com você há muito tempo, ou é
um produtor sensível para entender que não vai ser muito rentável.

JJ: VOCÊ É ARTISTA SOLO OU DE GRUPO?


288

TR: Por ser um processo de pesquisa continuada, geralmente existe a necessidade


dessas pessoas que continuamente trabalharam comigo no grupo. Eu não sei se
chamo de grupo porque não é mais uma estrutura de grupo, até por opção, mas eu
também não sou autônomo. O Teatro da Queda é mais um nome onde abarca esses
espetáculos, onde essa pesquisa acontece.

JJ: ELEMENTOS VISUAIS EM RELACÃO AO ESPAÇO.

TR: Figurino sempre quando as pessoas, com como Tina porque a gente é uma
dupla, e como eu não consigo pensar a peça sem pensar o figurino...ela trabalha
comigo há muito tempo, dez anos, os primeiros figurinos do teatro da queda e faz
ate hoje. Eu não consigo fazer os figurinos sozinho, então recorro a ela... Trabalhei
muito trabalho com Rodrigo, agora que eu trabalho com Erick Saboya, já é o terceiro
espetáculo que ele vai fazer meu cenário. Luz é mais flutuante, trabalho muito tempo
Luizinho, mas agora ele está num negócio da Aldeia... A ficha técnica se repete
também por um tempo ou por uma recorrência. E Daniel sempre faz os textos.

JJ: O SITE-SPECIFIC MODIFICA O PROCESSO DOS OUTROS AGENTES? DE


QUE MANEIRA?

TR: Por exemplo, o Luizinho fez a luz do rebola, não podia ser espetacular, tinha
que lidar com os espaços, com as possibilidades do espaço. O figurino tinha um
conceito também com o espaço, até com a cor que o espaço próprio tinha, eu não
mudei muito o beco, dei uma pintura, porque queria que ficasse mais neutro, mas
não mudei muito. Era a estrutura do bar, as mesmas coisas que já estava lá, só que
estavam muito sujo, descascado, deteriorado... não era legal tem um bar naquelas
condições. Mas, por exemplo, a dramaturgia, o texto era preciso acontecer
pensando nisso, eu não botei uma peça dentro do lugar, inclusive Daniel Arcades,
como estava sempre muito lá, até as rubricas que ele propôs, tinham a ver com
aquele espaço que ele estava vivendo. A gente fica muito envolvido com aquele
lugar e esse lugar diz muito pra gente.
289

JJ: ACHO QUE É ISSO, THIAGO, OBRIGADO. A GENTE FINALIZA AQUI. VOCÊ
PODE DISPONIBILIZAR OS ARQUIVOS DOS SEUS ESPETÁCULOS PARA QUE
EU POSSO CONFIGURAR TODA ESSA NOSSA CONVERSAS: TEXTOS,
ARTIGOS, CRÍTICAS, FOTOS...

TH: Claro. Eu tenho todo esse material e vou deixar à sua disposição.
JJ: OBRIGADO.

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