(1132) BoletimdeDireitosHumanosJusticaGlobal
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(1132) BoletimdeDireitosHumanosJusticaGlobal
Equipe de Pesquisa: Adenilson Duarte, Adriana Carvalho, Alex Toledo, Andressa Caldas, Carlos Eduardo Gaio, Carlos Pampín
Garcia, Diogo Azevedo Lyra, Emily Schaffer, Gustavo Goulart Ierardi, Ivanilda Figueiredo Lyra, James Cavallaro, Juliana
Neves Barros, Lincoln Ellis, Mahine Dorea, Marcelo Freixo, Marie-Eve Sylvestre, Nadejda Marques, Paula Spieler, Renata
Verônica Cortes de Lira, Sandra Carvalho, Sven Hilbig, Tatiana Lichtig.
Tradução: Carlos Eduardo Gaio, David Flechner, Emily Schaffer, James Cavallaro, João Gustavo Velloso, Lincoln Ellis, Mahine
Dorea, Marie-Eve Sylvestre.
ISBN- 85-98414-01-8
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 11
CAPÍTULO I — PRISÕES
Mazelas do sistema prisional ........................................................................................................... 19
CAPÍTULO II — TORTURA
Panorama da tortura no Brasil ......................................................................................................... 31
10
APRESENTAÇÃO
Direitos Humanos no Brasil 2003 apre- Na cidade, a polícia mais violenta do país, a
senta 12 capítulos de um Brasil marginal — do Rio de Janeiro, mata 3, 2 pessoas por
refém da profunda desigualdade, da ausên- dia. A de São Paulo não fica atrás, mata 2,
cia de perspectivas e das diferenças e con- 37 pessoas diariamente. A violência vem
tradições sociais. Retrata histórias unidas por aumentando em ritmo alucinante. A taxa
um perfil similar no qual a vítima é o mise- nacional de mortalidade por homicídio cres-
rável. Histórias de um povo submetido a um ceu, de acordo com o IBGE, 130%, entre
sistema jurídico, uma polícia e políticas pú- 1980 e 2000, passando de 11,7 por cada 100
blicas voltados para a manutenção da ordem mil habitantes para 27 por 100 mil.
através do controle e repressão de guetos Cada um dos 12 capítulos contidos nes-
pobres e que contribui para a marginalização te que é o terceiro anuário do Centro de Jus-
de uma população carcerária excluída já an- tiça Global reflete histórias e análises de um
tes da prisão, para a criminalização da po- Brasil no qual — em seis de suas maiores
breza, dos grupos e movimentos sociais e a regiões metropolitanas — 12, 8 % da popu-
consolidação da pena de morte social. Sob lação economicamente ativa está desempre-
a constatação de que esse quadro, que se gada, no qual 10 % dos mais ricos aboca-
arrasta por anos, permanece praticamente nham 51, 3 % do PIB e 40 % dos mais po-
inalterado sob o mandato de um presidente bres ficam com somente 7 % de acordo com
e de um partido originários de movimen- o Banco Mundial. Entre 1996 e 2002, se-
tos sociais, o caldeirão aquecido pela mi- gundo o IBGE, o rendimento médio real dos
séria ferve com a esperança e a impaciên- brasileiros caiu 14%.
cia redobradas por mudanças no campo e O relatório reflete as áreas de atuação
na cidade. do Centro de Justiça Global em 2003 e
Lidar com tanta expectativa em meio à contextualiza a situação dos direitos huma-
miséria fez, em 2003, e faz, em 2004, a mis- nos no país. Traz uma série de recomenda-
são de controlar um Brasil incomodado pela ções ao final de cada capítulo, buscando con-
pobreza ainda mais difícil. A violência au- gregar uma abordagem analítica a um perfil
mentou. Desde 1991, a CPT, Comissão Pas- mais propositivo. Cada capítulo começa com
toral da Terra, não registra um índice tão ele- um caso emblemático analisado e diagnos-
vado de assassinato de trabalhadores rurais ticado. O objetivo é garantir não apenas o
no campo. Desde 1997, o CIMI, Conselho reconhecimento das violações como também
Indigenista Missionário, não contabiliza um pressionar as autoridades governamentais a
número tão grande de índios assassinados. realizar políticas públicas que efetivamente
11
Direitos Humanos no Brasil 2003
12
Apresentação
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Direitos Humanos no Brasil 2003
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Apresentação
economicamente, com os negros que for- conceito racial. Foi a morte de um dentista.
mam 46% da população brasileira — repre- E um dentista está, aparentemente, revesti-
sentando 61% dos pobres — segundo estu- do pela carapaça de reconhecimento que
do da Secretaria do Desenvolvimento Tra- deve funcionar — a despeito de seus traços
balho e Solidariedade do município de São “negróides”.
Paulo, seja no tratamento recebido da socie-
dade e agentes do Estado. Muitos atos de
racismo só são registrados como tal pelas ORIENTAÇÃO SEXUAL
autoridades quando entram em cena adendos
que tanto confundem e diferenciam a con- Aqui o preconceito é tanto que mesmo
cepção de preconceito. quando a violência ocorre entre cidadãos das
O racismo e a discriminação se mani- classes altas, a família e os amigos tentam
festam até mesmo no momento da queixa. abafar ou desvincular qualquer relação en-
A probabilidade de um policial levar em tre crime e orientação sexual. Autoridades e
consideração uma reclamação por racismo a polícia fazem pouco ou nada para encon-
tem se mostrado menor quando a vítima é trar os culpados. Tamanha escassez na apu-
pobre. Um exemplo é o caso de racismo que ração e investigação de ocorrências leva a
vitimou, este ano, o filho da empregada do- uma subestimação no registro. Os dados e
méstica de Caetano Veloso, Luciano Ferreira estatísticas disponíveis baseiam-se quase que
da Silva, 18 anos, em um shopping do Rio exclusivamente em notícias publicadas pela
de Janeiro. Ele foi expulso do shopping imprensa ou dados de serviços de disque-
Fashion Mall pelo policial militar Leonar- denúncia.
do Medeiros, que serve como segurança dos Homossexuais e bissexuais sofrem di-
filhos do novelista Manoel Carlos. O poli- versos tipos de violência, a começar pela
cial acusou o rapaz de estar vendendo dro- própria família que em muitos casos não
gas. O delito foi registrado como racismo. aceita sua orientação sexual. São comuns
Esforços foram feitos em busca do autor que ainda crimes de extorsão, roubo e furto. O
fugiu, com a ajuda de colegas seguranças chamado crime de ódio é outra modalidade
que também estavam no shopping, ao per- bastante comum, tal qual a ação de grupos
ceber que mexera com alguém “importan- neonazistas, a exemplo do assassinato do
te”. Provavelmente o tratamento e a atenção adestrador de cães Edson Neris, em 2000,
dispensados para o caso seriam outros se o por skinheads em São Paulo.
rapaz não tivesse um padrinho famoso.
Em São Paulo, cinco policiais assassi-
naram o dentista Flávio Sant'Ana, enquadrado INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS
pelo “olho policial” como assaltante, por
meio de um critério preconceituoso e dis- Com o avanço da privatização e o anê-
criminatório que infesta as corporações. mico investimento oficial no setor, quem não
Mas, ainda sim, não foi pela morte de um tem dinheiro fica sem tratamento. Aqueles
negro que o caso chamou atenção. Eventos que podem se internam em clínicas particu-
como este acontecem todos os dias, dezenas lares, muitas fora de controle e fiscalização.
deles por todo o Brasil. Não foi por causa Em torno de 80% dos leitos do sistema ma-
da morte de um ser humano, vítima de pre- nicomial brasileiro pertencem à rede priva-
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Direitos Humanos no Brasil 2003
da. Transtornos mentais representam a quarta ções Unidas sobre a Independência de Juízes
colocação nacional em termos de gastos com e Advogados realize uma missão urgente ao
internação do SUS (Sistema Único de Saú- país. O pedido colocou mais pólvora na re-
de). Nos últimos anos, as denúncias de abu- forma do judiciário que continua tramitan-
sos e violência contra pacientes em institui- do no Congresso Nacional.
ções psiquiátricas e a falta de resposta ade-
quada por parte do Estado favoreceram a pre-
valência da impunidade e do descaso, preo- SISTEMAS INTERNACIONAIS
cupando militantes do movimento para a re- DE DIREITOS HUMANOS
forma psiquiátrica. As mortes de Damião
Ximenes, vítima de espancamento, em uma Falta vontade política para por fim aos
clínica psiquiátrica no Ceará; de Sandro Costa abusos de direitos humanos perpetuados em
Fragoso, carbonizado, e José Martins da Sil- todo o território nacional. Apesar de o país
va, por maus tratos, no Hospital Psiquiátrico ter avançado no plano internacional, ao re-
particular Milton Marinho, no Rio Grande do conhecer, em 2002, a competência do Co-
Norte, são exemplos gritantes do descaso. mitê contra a Discriminação Racial e do
Comitê para a Eliminação de Todas as For-
mas de Discriminação contra a Mulher — o
IMPUNIDADE Brasil ainda não reconheceu a competência
do Comitê contra a Tortura e do Comitê de
O Poder Judiciário possui responsabili- Direitos Humanos da Organização das Na-
dade direta e determinante sobre a impuni- ções Unidas. Ao fazê-lo, estaria aceitando a
dade de quem viola a lei, principalmente, competência desses órgãos internacionais
quando se trata de crime relacionado a di- para receber e julgar petições individuais e
reitos humanos no qual a vítima pertence às estaria disponibilizando acesso ao povo bra-
camadas excluídas da sociedade. Em um sileiro a instâncias internacionais importan-
cenário como esse, casos como Vigário Ge- tes na garantia de direitos e na defesa e pro-
ral deixam de ser exceção para se tornar pa- teção dos direitos humanos. O acesso a es-
drão de funcionamento. 21 pessoas pobres sas instituições é fundamental sobretudo
morreram em 29 de agosto de 1993, quando quando graves violações continuam ocorren-
policiais, em uma ação extra-oficial, entra- do. Em 2003, o Centro de Justiça Global
ram na favela. Dos 33 acusados na primeira encaminhou três casos de assassinatos de
fase, apenas dois foram condenados e cum- trabalhadores rurais à Comissão Interame-
prem pena, cinco morreram, três estão fora- ricana de Direitos Humanos da OEA (Orga-
gidos, três foram soltos por habeas corpus, nização dos Estados Americanos), além de
um não foi julgado por falta de provas, um 20 denúncias sobre execuções sumárias, tor-
ainda aguarda julgamento e — de maneira tura, trabalho escravo, ameaças de morte e
surpreendente, dezoito foram absolvidos. assassinatos de defensores de direitos huma-
Essa é uma das muitas razões pelas quais, nos aos mecanismos especiais de direitos
durante sua visita ao Brasil, a relatora espe- humanos da ONU — Organização das Na-
cial da ONU para Execuções Extrajudiciais, ções Unidas.
Sumárias ou Arbitrárias, Asma Jahangir, re-
comendou que o Relator Especial das Na- ***
16
Apresentação
17
Direitos Humanos no Brasil 2003
18
CAPÍTULO I — PRISÕES
1
Laudo n.º 7589/02, IML. Edson faleceu em virtude do disparo efetuado contra ele na cabeça. Edson também sofreu um disparo na barriga.
Além dos tiros, o corpo de Edson também apresentava marcas de espancamento.
2
Relato do ocorrido em comunicação interna do DESIPE/HM, n.º 236 de 18/11/2002, fls. 03 e 04.
3
Registro de Ocorrência n.º 034-08152/2002, 34ª DP. É importante ressaltar o fato de que nenhum dos internos foi ouvido pela autoridade
policial no momento do Registro de Ocorrência.
4
Marcos Antônio da Costa Ribeiro e Adjair Justino de Oliveira, em depoimento prestado aos representantes do Centro de Justiça Global, 12/02/
03.
5
Sindicância n.º E-06/933.082/2002, publicada no Diário Oficial dia 16/01/03, fl. 23 verso.
6
Depoimento prestado ao Centro de Justiça Global no dia 12/02/02.
19
Direitos Humanos no Brasil 2003
7
Parecer da Sindicância n.º E-06/933.082/2002, 27/01/03.
8
Idem.
20
Capítulo I — Prisões
Brasil 0,607
País %
Paraguai 0,577
Equador 49,3
Chile 0,575
Paraguai 49,3
Colômbia 0,56
Venezuela 47,0
México 0,519
El Salvador 44,5
El Salvador 0,508
Peru 41,4
Venezuela 0,491
México 37,7
Costa Rica 0,459
Colômbia 36,0
Uruguai 0,448
Guatemala 33,8
9
Pochmann, Marcio (org.), Atlas da Exclusão Social — volume 3 — Os Ricos no Brasil. São Paulo, Cortez Editora, 2004.
10
Para análise do tema ver: Coimbra, C. “Operações Rio: o mito das classes perigosas. Um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa
e os discursos de segurança pública”. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 2001.
21
Direitos Humanos no Brasil 2003
11
Bauman, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
12
Wacquant, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
13
Trata-se de um levantamento sobre a situação do Sistema Penitenciário brasileiro, cuja pesquisa, ainda em andamento, é de responsabilidade
do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Estes gráficos são fruto de um questionário elaborado pelo
CESEC e entregue aos governos estaduais no intuito de responder à diversas questões sobre o Sistema Penitenciário de cada unidade federativa.
22
Capítulo I — Prisões
14
Art. 155 e 157: furto e roubo, respectivamente.
15
Art. 12, Lei 6368 de 1976: tráfico de drogas.
16
Ver: “Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da ONU”. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime
e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Em 25 de maio de 1984, através
da resolução 1984/47, o Conselho Econômico e Social aprovou treze procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas.
17
Kolker, Tânia: “O que se faz em nosso nome: tortura nas prisões do Rio de Janeiro, Estado e Sociedade. 2004”, mimeo.
23
Direitos Humanos no Brasil 2003
zam do mesmo grau de visibilidade e mui- Os gráficos mostram que 17% dos esta-
tas já são vistas como naturais. Lá, onde nada dos informam não exercer controle sobre o
do que acontece parece comover a socieda- término das penas dos presos. Dos estados
de, ou mobilizar as autoridades, presos e que afirmaram exercer esse controle, 32%
funcionários habituam-se a condições abso- não informatizaram esse processo. Vale lem-
lutamente desumanas e desumanizadoras”. brar a recente mudança na Lei de Execução
A repressão não é esporádica dentro do Penal, que garante ao preso o direito de re-
sistema penal, pelo contrário, toda sua en- ceber o atestado de pena a cumprir, emitido
grenagem é movida pela lógica da punição. anualmente. Literalmente, as pessoas são
A falta de política para o sistema penitenci- abandonadas dentro das prisões.
ário deve ser entendida como a atual políti- Um outro problema detectado é o da falta
ca do próprio sistema penal. O inaceitável de regulamentação das atividades e proce-
abandono do sistema é uma opção política dimentos dos sistemas prisionais em mui-
dos governos estaduais no Brasil. tos estados da federação. De acordo com a
pesquisa supracitada do Cesec, metade de-
Distribuição dos estados segundo les não possui Manual de Atribuições18 das
controle do término de pena diferentes funções, 31,8% não possuem pro-
cedimentos19 descritos em decretos e porta-
Não-informatizado 32%
Informatizado 68% rias e 25% não possuem Regulamento Peni-
tenciário Estadual. Cabe ressaltar que a Lei
de Execução Penal define apenas as faltas
graves, deixando para a responsabilidade dos
Estados a definição das faltas médias e le-
ves. A ausência do Regulamento Penitenci-
Nota: a UF AM não forneceu as informações referen- ário dificulta profundamente qualquer for-
tes a este quesito. ma de monitoramento interno e externo,
além de concentrar perigosamente grande
Distribuição dos estados em que há poder nas mãos dos diretores das unidades
controle do término de pena segundo tipo: penais.
A falta de uma política para o sistema
Não há controle: 17%
penitenciário também gera o desrespeito fre-
qüente à lei e as conseqüentes violações dos
Há controle: 83%
direitos humanos. Mesmo diante de um pú-
blico cada vez mais jovem, o sistema se ca-
racteriza por forte ociosidade no seu cotidi-
ano.
18
Trata-se do conjunto de diretrizes que rege as atribuições de cada funcionário dentro do Sistema Penitenciário, determinando as funções,
deveres e regras de atuação das diferentes atividades exercidas dentro do Sistema.
19
São os procedimentos relativos ao cotidiano de trabalho dentro das unidades. A falta destes procedimentos explicitamente determinados
inviabiliza o planejamento do trabalho, sendo as decisões tomadas em diferentes situações fruto do improviso e, consequentemente, impassí-
veis de reflexão e uniformidade. Com isso, mesmo ocorrências rotineiras dentro do sistema acabam por serem tratadas sem o mínimo de
previsibilidade, o que acarreta falta de segurança e prorroga suas soluções.
24
Capítulo I — Prisões
20
Trata-se de um levantamento sobre a situação do Sistema Penitenciário brasileiro, cuja pesquisa, ainda em andamento, é de responsabilidade
do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Estes gráficos são fruto de um questionário elaborado pelo
Cesec e entregue aos governos estaduais no intuito de responder à diversas questões sobre o Sistema Penitenciário de cada unidade federativa
21
Idem.
25
Direitos Humanos no Brasil 2003
22
Fonte: Depen.
26
Capítulo I — Prisões
23
Declaração de Marcelo Freixo, Presidente do Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro e Pesquisador do Centro de Justiça
Global. Marcelo realiza visitas à diversas unidades prisionais do Rio de Janeiro nas quais, além de coletar denúncias de violações, desenvolve
um profundo contato com o cotidiano de internos, agentes penitenciários, policiais e autoridades.
27
Direitos Humanos no Brasil 2003
28
Capítulo I — Prisões
n Garantir tratamento médico específi- lha dos Diretores das unidades penais.
co para o preso dependente químico, na me- n Estimular os estados em que o siste-
dida em que o consumo de drogas nas uni- ma penitenciário esteja vinculado às secre-
dades prisionais gera violência e endivida- tarias de segurança pública, que o transfi-
mento entre os internos. ram para uma secretaria específica de admi-
n Garantir que todo preso possa apre- nistração penitenciária.
sentar diretamente queixa ao diretor do es- n O governo federal deve exigir que to-
tabelecimento, ou ao funcionário autoriza- dos os estados da federação elaborem, com
do a representá-lo, sendo a cópia da denún- máxima urgência, os regulamentos peniten-
cia encaminhada ao Defensor Público res- ciários, pois 25% dos estados ainda não pos-
ponsável pela Unidade. suem o regulamento.
n Criar um programa nacional de educa- n O governo federal deve buscar uma
ção, em parceria com o Ministério da Educa- padronização nacional dos vencimentos dos
ção, específico para a população carcerária. agentes de segurança e dos técnicos.
n Criar critérios objetivos para a esco- n Cumprir a Lei de Execução Penal.
29
Direitos Humanos no Brasil 2003
30
CAPÍTULO II — TORTURA
1
Para maiores detalhes sobre o caso Chang, ver “Execuções Sumárias no Brasil: 1997-2003”, Centro de Justiça Global, 2003, p. 199-201. O
Centro de Justiça Global enviou comunicado ao Relator Especial da ONU sobre Tortura, Theo C. van Bohen, através do ofício JG/RJ 0129/03.
31
Direitos Humanos no Brasil 2003
2
Fonte: Jornal “O Monitor”, acessível em http://www.bluenet.com.br/omonitor/2003/mai/72/opiniao.html, citando pesquisa do Conselho Na-
cional de Procuradores de Justiça.
32
Capítulo II — Tortura
modus operandi em que se percebe a liga- po social significa afirmar que há oposição
ção entre investigação/repressão do crime e limitada entre Estado e sociedade, e que esta
a prática da tortura. limitação se dá em relação ao perfil da víti-
Tendo em vista a relação entre a prática ma escolhida, mais especificamente seu
da tortura e a investigação/repressão da cri- status social. Dessa forma, identificar qual
minalidade, devemos observar também, en- grupo ou classe social é visado quando se
tre os casos enquadrados como tortura, a sua pratica a tortura torna-se essencial para ana-
motivação, ou seja, quais os objetivos con- lisar o crime, caso queiramos entender as
tidos na manifestação do crime. suas implicações.
Uma análise menos superficial dos ca- Um retrato mais acurado pode ser emi-
sos de tortura denunciados demonstra que a tido pelo perfil do encarcerado brasileiro,
tortura-prova é a principal motivação do uma vez que a prática da tortura nos impele
crime. Como tortura-prova, enquadram-se os a associá-la, quase que necessariamente, a
casos de tortura onde esta é aplicada para se um complexo sistema de produção em mas-
obter uma confissão, para se imputar a au- sa de culpados a partir do que podemos cha-
toria de algum crime a alguém. Em segui- mar de “etiquetamento penal”. Tal afirma-
da, tem-se a tortura-castigo, utilizada ção pauta-se na motivação (prova e castigo)
como mecanismo de contenção social, de dos principais perpetradores do crime (polí-
caráter preventivo ou mesmo punitivo, ge- cia e agentes carcerários), motivação esta
ralmente observada nos porões dos centros indiscutivelmente associada ao nosso siste-
de detenção. ma de justiça criminal.
A conclusão lógica a que se pode che- Com base no último Censo Penitenciá-
gar em relação à primeira fase interpretativa rio Nacional, realizado no ano de 1997, evi-
do crime é a de que em todos os níveis ana- dencia-se uma estreita ligação entre a po-
líticos a tortura se apresenta predominante- breza e a população carcerária.3 Do total de
mente ligada à atuação do Estado e que está pessoas que se encontram sob custódia do
dirigida, particularmente, a um método de Estado, cerca de 98% delas têm origem na
repressão e investigação dos crimes. camada mais miserável da população e não
Seria, porém, este método socialmente possuem nenhuma condição de pagar por um
distribuído? Ou seja, a incidência da tortura advogado. Ainda, um percentual de 10,4%
ocorre em todos os níveis sociais ou está dessa população é analfabeta e 69,5% pos-
dirigida a um público específico? Que ca- sui o primário incompleto, sendo que cerca
racterísticas compartilham as vítimas? Ve- de 51,3% deles ingressaram no sistema por
remos a seguir. crime contra o patrimônio.4
Embora não haja uma relação direta en-
tre tais dados e a tortura, podemos perceber
PERFIL SOCIAL DA TORTURA: que nosso sistema carcerário encontra-se, em
sua grande maioria, constituído por repre-
Dizer que existe uma relação entre a sentantes da miséria brasileira. A seletividade
aplicação da tortura e um determinado gru- da justiça penal, nesse sentido, apresenta uma
3
Note que dizemos aqui que a relação é entre pobreza e população carcerária e não entre pobreza e crime.
4
Fonte: Depen. Estão incluídos nessa estatística somente os crimes de roubo e furto. Veja mais informações no capítulo sobre o sistema
prisional.
33
Direitos Humanos no Brasil 2003
íntima ligação com alguns aspectos do crime cial — que por sinal não está incluído na lei
de tortura, uma vez que este surge como fator de tortura — que associa pobreza e crime e,
de entrada (prova) no sistema, além de sua por conta disso, proporciona uma pseudole-
aplicação repressiva (castigo) nas ruas, dele- gitimidade para, aleatoriamente, serem ex-
gacias e no âmbito penitenciário. cluídas do convívio social.
A tortura também aparece com maior A tortura é manifestamente um método
incidência dentro das delegacias, o que pode semi-oficial de “prestação de contas” à so-
ser comparado com o perfil acima descrito ciedade e de controle social ferrenho — pro-
— uma vez que, de acordo com os dados duz e encarcera os culpados que escolhe,
do Censo de 97, pelo menos 30% dos pre- atemorizando e intimidando aqueles que ain-
sos encontram-se fora do sistema, ocupan- da se encontram livres para observar o exem-
do e superlotando as delegacias de todo o plo. Está focada em uma parcela bem espe-
país.5 cífica da população e se sustenta a partir das
Por fim, um outro indicador necessário próprias condições degradantes em que vive
para fazermos a ligação entre o perfil do tor- tal parcela, bem como no quase nulo grau
turado e o perfil do encarcerado, de modo a de relevância social de suas vítimas6 e sua
traçarmos um pequeno retrato social da tor- ínfima inserção social.
tura, é o que chamamos tortura como inci- Infelizmente o que podemos observar em
dente processual. relação à tortura é que esta acaba por ganhar
A tortura como incidente processual é veladamente uma certa legitimidade da so-
aquela invocada no curso de um outro pro- ciedade, na medida em que esta partilha —
cesso para desconstituir uma prova obtida e talvez seja a origem — da maioria dos
ilicitamente — confissão. A tortura como preconceitos que assolam não só as
incidente processual aparece na maioria dos corporações policiais e os agentes públicos
casos pesquisados no judiciário, o que nos de custódia, mas também de membros do
impele a acreditar em seu uso como parte Ministério Público, legisladores, juizes e
da engrenagem de seletividade penal e con- toda uma gama de “nobres” que insistem em
firma a estreita ligação entre a prática da tor- se colocar acima da lei, a despeito de terem
tura e a obtenção de provas para a produção como dever a sua aplicação.
de culpados.
Dessa maneira, a conclusão a que se
chega em relação ao perfil social da vítima SOCIEDADE E CONIVÊNCIA:
de tortura é que esta é quase sempre de ori-
gem social baixa, jovem, de cor parda ou Não só ao aparelho estatal pode-se de-
negra, sem acesso à informação e, portanto, positar a plena responsabilidade pelo recru-
apta a ser inserida no sistema penitenciário. descimento da tortura no Brasil. Uma boa
A vítima de tortura acaba por ser, em mui- parte da sociedade vive, atualmente, iludida
tas ocasiões, vítima de um preconceito so- por opções autoritárias, acreditando cega-
5
Idem.
6
O caso Chang, apresentado no início deste capítulo, embora não seja representativo do baixo status social da vítima, confirma em parte nossa
interpretação, na medida em que, justamente por seu diferencial, ocupou as primeiras páginas de todos os jornais, além de demandar maior
diligência das autoridades do que a maioria absoluta dos casos de tortura que costumamos denunciar.
34
Capítulo II — Tortura
mente no uso da violência como forma de que só pode ser vencida via eliminação, seja
coibi-la. Não que este comportamento tam- ela do convívio (penitenciárias), seja da vida
bém não encontre sua origem na deficiência (tortura e execuções). O problema se agrava
do Estado, mas outros fatores, agindo em quando observamos que os “alvos” da tor-
consonância, também devem ser destacados. tura atualmente são pessoas despidas de
O aumento da criminalidade, impulsio- qualquer prestígio social, inimigos virtuais
nado por uma das mais calamitosas situa- ou em potencial.
ções de falta de oportunidade e inclusão, vem No Rio de Janeiro, outro grande centro
sendo explorado de forma sensacionalista e urbano nacional, o uso da tortura é freqüen-
irresponsável por alguns políticos e por par- te, muito embora só seja considerado indig-
cela da mídia, estimulando o pânico e a cren- no — e investigado — quando a vítima
ça de que os criminosos devem ser detidos a pertence a alguma outra classe social que
qualquer custo. Basta procurar em algum não a rotineira.8 Nos últimos dois anos, so-
canal televisivo, programas de rádio ou jor- mente três casos de tortura tornaram-se um
nais para encontrar conteúdos de apologia à escândalo: os de Antônio G. de Abreu, o
violência ao criminoso, ou mesmo suspeito. cozinheiro torturado pela Polícia Federal;
Um fato interessante é o de que justa- Chan Kim Chang, comerciante chinês tor-
mente nos maiores centros urbanos a tortu- turado e morto por agentes penitenciários no
ra seja, ao mesmo tempo, mais utilizada e presídio Ary Franco e, atualmente, o caso
aceita por uma boa parcela de indivíduos. E do jovem estudante Rômulo Batista de Melo,
são nos bolsões de miséria que este “apego” em Cabo Frio, brutalmente torturado até a
à tortura se manifesta de forma mais vee- sua morte por policiais militares.9
mente. De acordo com a mesma pesquisa, Não nos causa estranheza o fato de que
pessoas com níveis salariais e educacionais todos os três casos aludidos tinham como
mais altos posicionam-se em maior número vítimas pessoas que não pertenciam à clas-
contra a tortura em comparação àqueles so- se rotineira.
cialmente menos afortunados. Infelizmente a ineficiência do poder pú-
Uma pesquisa realizada pela Datafolha7 blico em prover segurança aos seus cidadãos,
revela que 24% dos paulistanos admitem a associado à interesses obtusos que insistem
tortura. Este número veio a crescer quatro na violência do Estado via terror psicológi-
pontos percentuais nos últimos sete anos, ou co, têm levado à despolitização da luta por
seja, quase 0,5% por ano. Ainda, deste to- segurança e garantido, da mesma forma, seu
tal, cerca de 7% são favoráveis à tortura em retrocesso e agravamento.
qualquer ocasião. O posicionamento de uma parcela da
O desespero por uma vida segura tem população em relação a admissão da tortura
levado as pessoas a um verdadeiro frenesi como mecanismo de atuação policial reve-
punitivo, pois acreditam existir uma guerra la, em última instância, a hierarquização da
7
“24% dos paulistanos admitem a tortura”. Folha de S. Paulo, 1º de fevereiro de 2004, p. C1.
8
Ainda que não seja necessário explicita-la, usamos o termo “classe rotineira” neste capítulo em relação às camadas miseráveis da população.
Leia-se os moradores de favelas e subúrbios.
9
Os ofícios: JG/RJ n.º 197/02; 129/03 e 033/04, em referência às violações, respectivamente, de Antônio G. de Abreu, Chang Kim Chan e
Rômulo Batista de Melo.
35
Direitos Humanos no Brasil 2003
vida e da dignidade, demonstrando que as “Art. 7º: Ninguém poderá ser submetido à
corporações policiais não detém o monopó- tortura, nem a penas ou tratamentos cru-
lio exclusivo deste comportamento — éis, desumanos ou degradantes. Será proi-
aprendido desde muito cedo no dia a dia de bido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem
uma sociedade de consumo. seu livre consentimento, a experiências
médicas ou científicas”.
10
Embora tenha influenciado diretamente a legislação brasileira, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU só veio a ser de fato incorporado
em nosso ordenamento jurídico em abril de 1992, quando finalmente ocorreu sua promulgação.
11
Crime próprio é aquele em que o sujeito ativo deve estar revestido de um cargo público para caracterizá-lo.
12
No art. 1º da Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Desumanas ou Degradantes a tortura é qualificada como um crime
imposto por um “funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu
consentimento ou aquiescência”.
36
Capítulo II — Tortura
do em conta a realidade nacional, tal opção cance de fato da lei. O conjunto de decisões
acaba por desvirtuar o objetivo da lei, na judiciais versando sobre tortura é uma das
medida em que desvia o foco de atenção do medidas determinantes do grau de “envol-
Estado para o cidadão comum. vimento” do Estado em relação a sua sus-
O legislador também contribuiu para pensão. Nesse sentido, desde a promulga-
tornar a punição do crime de tortura mais ção da Lei de Tortura em 1997, o número de
branda do que se pretendia, ao definir que o decisões judiciais condenatórias e até mes-
cumprimento da pena se iniciará em regime mo o quantitativo de ações penais versando
fechado. Dessa forma, ainda que no dispo- sobre tortura mantém-se muito aquém do
sitivo constitucional a tortura seja caracteri- desejável, face ao vastíssimo número de ale-
zada como crime hediondo — e em conse- gações que se apresentam em oposição ao
qüência, impassível de benefícios e progres- tímido número de condenações obtidas.
sões de pena — a regra brasileira dá preva- Para falar da tortura no âmbito das deci-
lência à norma específica quando em con- sões judiciais, temos, em princípio, de iden-
flito com uma norma geral, consolidando, tificar a maneira pela qual o crime se insere
definitivamente, tal privilégio ao torturador. nos tribunais brasileiros. Podemos então
A lei 9455/97 padece ainda de uma sé- separar o crime de tortura em dois grupos
rie de outros elementos confusos e distintos: a tortura como ação penal e como
conflitantes, que tem contribuído seriamen- incidente processual.
te para seu mau uso, quando não sua não Dizemos que um caso de tortura apare-
aplicação. A realidade brasileira demonstra ce como ação penal toda vez que este repre-
claramente que a elaboração de uma lei está senta um processo autônomo e independen-
longe de representar de fato alguma modifi- te, ou seja, toda vez que uma denúncia é fei-
cação em determinada “rotina”. A experiên- ta e enquadrada com base nos dispositivos
cia atesta da mesma forma que, se o que da Lei 9.455/97. Já a tortura como incidente
acabamos de afirmar for verdade, a situação processual é aquela em que o crime é alega-
torna-se ainda mais grave quando a lei é mal do no curso de outro processo, visando des-
elaborada, pois acaba por impedir novas ini- qualificar provas obtidas em ação penal de
ciativas de mudança. O governo brasileiro, delito diverso, representando a maioria das
na verdade, teve nove anos para regular o inserções do crime nos tribunais brasileiros.
crime de tortura e, não o fazendo, caiu em Ainda que tímidas, a presença crescente
inconstitucionalidade. Atualmente, com seis de denúncias versando sobre tortura, seja
anos de existência, a lei continua contribu- como forma de incriminação, seja como
indo para a sua não aplicação, principalmente ação penal autônoma, representa um enor-
por não estimular e informar, dentro do uni- me progresso para o direito brasileiro, não
verso dos aplicadores da lei, as condições acompanhado, entretanto, pelo poder judi-
básicas para que a punição do crime de tor- ciário. Um bom exemplo consiste no eleva-
tura seja definitivamente efetivada. do número de denúncias enquadradas como
tortura pela Ação dos Cristãos pela Abolição
Judiciário: da Tortura (ACAT), no estado de São Paulo.
Analisar a atuação do poder judiciário Segundo a ACAT, neste estado foram apre-
em relação ao crime de tortura confunde-se sentadas 1.651 casos nos últimos dois anos.
com a análise, em última instância, do al- Todos permanecem sem resolução.
37
Direitos Humanos no Brasil 2003
13
Jornal “O Monitor”, acessível em http://www.bluenet.com.br/omonitor/2003/mai/72/opiniao.html.
38
Capítulo II — Tortura
Dentre as marcas mais visíveis e funes- visando o implemento de uma rede nacio-
tas deste período, a tortura e as execuções nal de monitoramento do crime. Em uma
oficiais se destacam, sem, contudo, ganhar parceria com a sociedade civil, representa-
a devida atenção e esforços necessários para da pelo Movimento Nacional de Direitos
sua supressão definitiva. Humanos (MNDH), a Campanha procura-
A tortura, nesse contexto, foi alvo de ria coletar dados e denúncias sobre a tortu-
repúdio constitucional, ficando, porém, es- ra, por meio de um disque-denúncia deno-
tagnada como letra morta durante quase dez minado SOS Tortura, com forte inserção na
anos, em virtude de sua não regulamenta- mídia. Além disso, deveria haver, por parte
ção por meio de lei posterior. Assim sendo, do governo, a capacitação dos operadores
a omissão legislativa brasileira possibilitou jurídicos, para “a compreensão do conteúdo
a larga difusão da tortura como prática não e significado das normas proibindo a tortu-
oficial, porém real, dos agentes de estado, em ra, e determinando mecanismos para a sua
especial a polícia, nas relações diárias entre prevenção, punição e reparação”.15
esta e as camadas de baixo status social. Lamentavelmente a Campanha não lo-
Tendo em vista esta situação, bem como grou mais do que a formação de um banco
uma grande pressão internacional a respeito de dados sobre a tortura no Brasil e, muito
das constantes denúncias de tortura envol- embora este já seja um avanço inconteste,
vendo o Estado, foi promulgada a Lei 9455/ não representou ou acarretou mudanças de-
97, a Lei de Tortura, cujos aspectos deficitá- finitivas no cotidiano desta prática em nos-
rios já foram comentados. so país. Isto porque, em relação às etapas
Infelizmente, somente a elaboração de desenhadas para seu êxito, a parte que cabia
uma lei, sem as devidas iniciativas para ao governo — como a capacitação dos ope-
torná-la efetiva, não foram suficientes para radores jurídicos — ou não existiu ou foi
deter o espectro da tortura. No ano de 2001, tímida demais na maioria dos estados.
treze anos após a retomada democrática e Aspectos importantes como a dotação
quatro anos após a promulgação da referida de recursos às Centrais Estaduais, uma in-
Lei, o relatório de Sir Nigel Rodley, Relator serção mais duradoura na mídia, além de
Especial sobre Tortura da ONU, definiu a criar um entendimento uniforme entre juízes
situação da tortura no Brasil como “genera- e promotores, de que o crime de tortura deve
lizada e sistemática”.14 Aliás, dos 348 casos ser punido como tortura, foram tratados com
encaminhados pelo Relator, 40% ficaram menos ênfase do que se deveria.
sem nenhum tipo de retorno das autorida- Faz-se necessário, porém, reconhecer
des, conforme os dados fornecidos pela que não só ao governo federal cabe iniciati-
Campanha Nacional Contra a Tortura. vas que visem a supressão da tortura. Ao
Esta situação obrigou o governo federal contrário, aos estados cabem a maioria das
a tomar novas iniciativas e durante a gestão formulações básicas em suas estruturas. Há
de Fernando Henrique Cardoso foi lançada um forte hiato entre as políticas desenvolvi-
a Campanha Nacional Contra a Tortura, das no plano federal e estadual, e o próprio
14
Relatório sobre a Tortura no Brasil, produzido pelo Relator Especial sobre Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas (ONU), 11 de abril de 2001, Genebra, Suíça.
15
“Protocolo da Ação Contra a Tortura”, Brasília, Superior Tribunal de Justiça, em 26 de Junho de 2003.
39
Direitos Humanos no Brasil 2003
modelo federativo atípico brasileiro muitas Ainda que caótico, o cenário da tortura
vezes representa um forte entrave na resolu- no Brasil — assim como em outras verten-
ção desse tipo de problema. tes dos direitos humanos — inicia um lento
Cientes de tal situação, o governo fede- processo de avanço. Um indicativo desta si-
ral vem sinalizando com a ampliação de suas tuação encontra-se nas conquistas alcançadas
atribuições em relação às práticas atentató- no plano internacional.
rias aos direitos humanos, em particular a Em meados de 2003, após árduas dis-
tortura. Nesse ínterim foi lançado o SUSP cussões entre Estados e ONGs de todo o
(Sistema Único de Segurança Pública), cujo mundo, firmou-se um novo tratado interna-
eixo temático consiste justamente em “uni- cional de prevenção e combate à tortura,
formizar” as políticas de segurança pública aprovado por maioria esmagadora (127 vo-
dos estados, de modo a atingir tanto um tos a favor, 42 abstenções e 4 votos contra16 )
maior grau de eficiência quanto de controle na Assembléia Geral das Nações Unidas.
e responsabilidade de seus gestores. Após ter se declarado e votado a favor do
Pouco, porém, têm-se visto de efetivo e acordo, em outubro de 2003 o Brasil veio a
as perspectivas de mudança não parecem das ratificar o “Protocolo Facultativo de Com-
mais alentadoras. Com toda a certeza a exo- bate a Tortura”, abrindo espaço para a visita
neração do ex-Secretário Nacional de Segu- regular de peritos independentes da comu-
rança Pública, Luiz Eduardo Soares, de- nidade internacional. Esta medida rompe o
monstra que os altos escalões que lucram isolamento habitual e favorece cada vez mais
com a insegurança, violência e corrupção a aproximação do Estado brasileiro aos
possuem um vasto poder de resistência e que parâmetros e tutela internacionais de prote-
uma mudança radical ainda necessitará de ção aos direitos humanos. Resta saber se esta
muitos esforços conjuntos. iniciativa ensejará, de fato, modificações
Seguindo essa linha, o governo federal relevantes no cenário nacional.
estuda a possibilidade de passar à sua esfera Porém, ainda que tenha evoluído no pla-
todos os crimes que venham a constituir no internacional, o governo brasileiro resis-
atentado aos direitos humanos, assumindo te a reconhecer a competência do Comitê
assim a responsabilidade pela punição de Contra a Tortura da ONU, o que indica a
seus infratores. Ainda que em um primeiro ausência de passos concretos em relação ao
momento esta iniciativa possa surtir efeitos seu controle e supressão.
positivos, o que se espera não é que fique Seguindo a linha do não comprometi-
demonstrada a incapacidade — ou falta de mento concreto, podemos destacar a nova
vontade — dos governos estaduais em lidar iniciativa federal denominada “Protocolo de
com o problema, mas sim que se crie a de- Ação Contra a Tortura”, lançada no dia 26
vida consciência e responsabilidade nesses de junho de 2003 em Brasília, no Superior
governos de que não podem agir e/ou esti- Tribunal de Justiça. Na verdade este proto-
mular comportamentos que singularizam e colo consiste em uma gama de “compromis-
antagonizam a sociedade em relação à parte sos” a serem cumpridos com o objetivo de
de seus componentes. combater e suprimir a tortura, acrescentan-
16
Estados Unidos, Ilhas Marshall, Nigéria e Palau foram os únicos Estados a se manifestarem contra o acordo.
40
Capítulo II — Tortura
do muito pouco ao que já havia sido prome- sobre quando a pessoa foi solta ou transferida
tido em gestões anteriores. Caso venha a ser para um estabelecimento de prisão provisó-
seguido à risca, este documento representa- ria. O registro ou uma cópia do registro de-
ria sem dúvidas um avanço nesse âmbito. veria acompanhar a pessoa detida se ela fos-
Entretanto, passados vários meses do lança- se transferida para outra delegacia de polí-
mento do Protocolo, pouco se avançou na cia ou para um estabelecimento de prisão
implementação de suas ações. provisória.
n Nenhuma declaração ou confissão feita
por uma pessoa privada da liberdade que não
... uma declaração ou confissão feita na pre-
sença de um juiz ou de um advogado deve-
O cenário nacional passa por forte efer- ria ter valor probatório para fins judiciais,
vescência em relação à luta pelos direitos salvo como prova contra as pessoas acusa-
humanos, sendo a tortura o maior paradigma das de haverem obtido a confissão por mei-
dessa situação. Enquanto passarmos do pa- os ilícitos. O Governo é convidado a consi-
pel à ação, assim como enquanto não se com- derar urgentemente a introdução da grava-
baterem os males circunscritos às diferen- ção em vídeo e em áudio das sessões reali-
ças sociais, oportunidades, acesso à infor- zadas em salas de interrogatório de delega-
mação e inserção democrática no cotidiano cias de polícia.
jurídico-formal brasileiro, a tortura continu- n Nos casos em que as denúncias de tor-
ará a ser vista de forma branda, como um tura ou outras formas de maus tratos forem
simples excesso justificável. levantadas por um réu durante o julgamen-
É o fortalecimento e reconhecimento da to, o ônus da prova deveria ser transferido
sociedade civil — por inteiro — como de- para a promotoria, para que esta prove, além
tentora de direitos que determinará o recru- de um nível de dúvida razoável, que a con-
descimento ou não da tortura no Brasil. En- fissão não foi obtida por meios ilícitos, in-
quanto houver uma hierarquia que determi- clusive tortura ou maus tratos semelhantes.
ne quem é ou não cidadão, nem a tortura n As queixas de maus tratos, quer fei-
nem qualquer outra questão relativa à prote- tas à polícia ou a outro serviço, à corregedo-
ção e afirmação da cidadania e dos direitos ria do serviço policial ou a seu ouvidor, ou a
humanos logrará êxito. um promotor, deveriam ser investigadas com
celeridade e diligência. Em particular, im-
porta que o resultado não dependa unicamen-
RECOMENDAÇÕES: te de provas referentes ao caso individual;
deveriam ser igualmente investigados os
n Um registro de custódia separado de- padrões de maus tratos. A menos que a de-
veria ser aberto para cada pessoa presa, in- núncia seja manifestamente improcedente,
dicando-se a hora e as razões da prisão, a as pessoas envolvidas deveriam ser suspen-
identidade dos policiais que efetuaram a pri- sas de suas atribuições até que se estabeleça
são, a hora e as razões de quaisquer transfe- o resultado da investigação e de quaisquer
rências subseqüentes, particularmente trans- processos judiciais ou disciplinares subse-
ferências para um tribunal ou para um Insti- qüentes. Nos casos em que ficar demonstra-
tuto Médico Legal, bem como informação da uma denúncia específica ou um padrão
41
Direitos Humanos no Brasil 2003
de atos de tortura ou de maus tratos seme- n Instituições tais como conselhos co-
lhantes, o pessoal envolvido deveria ser pe- munitários, conselhos estaduais de direitos
remptoriamente demitido, inclusive os en- humanos e as ouvidorias policiais e
carregados da instituição. Essa medida en- prisionais deveriam ser mais amplamente
volverá uma purgação radical de alguns ser- utilizadas; essas instituições deveriam ser
viços. Um primeiro passo nesse sentido po- dotadas dos recursos que lhe são necessári-
deria ser a purgação de torturadores conhe- os. Em particular, cada estado deveria esta-
cidos, remanescentes do período do gover- belecer conselhos comunitários plenamente
no militar. dotados de recursos, que incluam represen-
n Os promotores deveriam formalizar tantes da sociedade civil, sobretudo organi-
acusações nos termos da Lei Contra a Tor- zações não-governamentais de direitos hu-
tura de 1997, com a freqüência definida com manos, com acesso irrestrito a todos os es-
base no alcance e na gravidade do proble- tabelecimentos de detenção e o poder de
ma, e deveriam requerer que os juízes apli- coletar provas de irregularidades cometidas
quem as disposições legais que proíbem o por funcionários.
uso de fiança em benefício dos acusados. n Um profissional médico qualificado
Os Procuradores Gerais, com o apoio mate- (um médico escolhido, quando possível)
rial das autoridades governamentais e ou- deveria estar disponível para examinar cada
tras autoridades estaduais competentes, de- pessoa, quando de sua chegada ou saída, em
veriam destinar recursos suficientes, quali- um lugar de detenção. Os profissionais mé-
ficados e comprometidos para a investiga- dicos também deveriam dispor dos medica-
ção penal de casos de tortura e maus tratos mentos necessários para atender às necessi-
semelhantes, bem como para quaisquer pro- dades médicas dos detentos e, caso não pos-
cessos em grau de recurso. Em princípio, os sam atender a suas necessidades, deveriam
promotores em referência não deveriam ser ter autoridade para determinar que os
os mesmos que os responsáveis pela instau- detentos sejam transferidos para um hospi-
ração de processos penais ordinários. tal, independentemente da autoridade que
n As investigações de crimes cometidos efetuou a detenção. O acesso ao profissio-
por policiais não deveriam estar sob a auto- nal médico não deveria depender do pessoal
ridade da própria polícia. Em princípio, um da autoridade que efetua a detenção. Tais
órgão independente, dotado de seus própri- profissionais que trabalham em instituições
os recursos de investigação e de um mínimo de privação de liberdade não deveriam estar
de pessoal — o Ministério Público — de- sob autoridade da instituição, nem da auto-
veria ter autoridade de controlar e dirigir a ridade política por ela responsável.
investigação, bem como acesso irrestrito às n Os serviços médico-forenses deveri-
delegacias de polícia. Os níveis federal e am estar sob a autoridade judicial ou outra
estaduais deveriam considerar positivamen- autoridade independente, e não sob a mes-
te a proposta de criação da função de juiz ma autoridade governamental que a polícia;
investigador, cuja tarefa consistiria em sal- nem deveriam exercer monopólio sobre as
vaguardar os direitos das pessoas privadas provas forenses especializadas para fins ju-
de liberdade. diciais.
42
CAPÍTULO III — VIOLÊNCIA POLICIAL
1
“PMs acusados de matar 4 no Borel”. O Globo, 09/5/03. O subcomandante do 6º BPM, tenente-coronel José Luiz Nepomuceno, informou à
imprensa que os mortos faziam parte de uma quadrilha de traficantes, e que teria sido apreendido com eles drogas, armas e munição.
2
Carlos Magno morreu com seis tiros, dentre os quais três pelas costas (cabeça, braço direito e região escapular esquerda), três tiros pela frente
(ombro esquerdo, bacia, clavícula). Laudo cadavérico 26258/2003 — IML.
3
Tiago levou cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas (região dorsal direita). Laudo cadavérico n.º 2659/2003 — IML. O laudo ainda
atesta uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados à “queima roupa”. Tiago não
morreu instantaneamente. Agonizou por cerca de meia hora, tendo os policiais impedido seu socorro. O fato pôde ser confirmado pela testemu-
nha Pedro da Silva Rodrigues, uma vez que o mesmo encontrava-se baleado, escondido e ciente do que se passava a sua volta. Pedro contou que
ouviu Tiago clamar por socorro médico, no que foi respondido por um dos policiais que o mesmo era “bandido” e que iria morrer. Ver
“Sobrevivente vira testemunha”. O Dia, 19/5/03.
4
“Encontro com a morte”. O Dia, 18/5/03.
5
Carlos Alberto sofreu 12 disparos, sete deles pelas costas, além de fratura no antebraço e no fêmur. É importante salientar que cinco dos
disparos atingiram seu braço direito e mãos direita e esquerda — o que demonstra que Carlos tentava se defender dos tiros efetuados contra ele.
O laudo também aponta para uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o que confirma a tese dos disparos a curta distância. Laudo
cadavérico n.º 2657/2003, IML.
43
Direitos Humanos no Brasil 2003
passar na barbearia, quando se deparou como mais um embate entre policiais e tra-
com o tiroteio e correu. Uma bala de fuzil ficantes. Porém, após denúncia feita por
acertou em cheio sua cabeça. moradores e familiares das vítimas, que re-
Everson Gonçalves Silote6 , 26 anos, era alizaram no dia 7 de maio a “Caminhada
taxista e havia passado todo o dia nas uni- Pela Paz e Contra a Impunidade”, iniciou-
dades do Departamento de Trânsito (Detran) se grande mobilização com o objetivo de
da Tijuca e São Cristóvão a fim de regulari- investigar as mortes.8
zar seu automóvel. Na volta para casa, es- A princípio, a versão oficial de que os
tacionou o carro em uma das ruas próxi- mortos eram perigosos traficantes envolvi-
mas à comunidade, pois o acesso estava fe- dos em troca de tiros com a polícia perma-
chado pela polícia. Voltava para casa a pé, neceu. Entretanto, após a divulgação dos
com documentos pessoais e do carro em um laudos cadavéricos do Instituto Médico Le-
envelope, quando, ao chegar à rua Indepen- gal (IML) — em que se constata que os dis-
dência, deparou-se com policiais que lhe paros foram realizados à queima roupa —
renderam. Everson tentava se identificar, os Policiais Militares envolvidos nas mor-
quando recebeu um golpe que quebrou seu tes afirmaram, em depoimento na 19ª DP,
braço direito. Desesperado, afirmava que “não ter certeza” se os quatro mortos eram
era trabalhador e quando tentou retirar os ou não traficantes.9
documentos do envelope para se identificar Em virtude das contradições sobre o que
foi executado antes mesmo de apresentá-los. de fato ocorreu e da grande mobilização dos
Além dos quatro mortos, há também uma moradores e familiares das vítimas, o então
outra vítima, Pedro da Silva Rodrigues, 32 Secretário Nacional de Segurança Pública,
anos, motorista escolar e coordenador do Luís Eduardo Soares e o Secretário Nacio-
“Projeto Mel”, da prefeitura do Rio de Ja- nal de Direitos Humanos, Nilmário Miranda
neiro. Ele foi baleado durante o tiroteio visitaram a comunidade do Borel no dia 30
quando saía de casa. Conseguiu retornar de maio, a fim de colher depoimentos sobre
para casa onde se manteve, consciente e o caso. Os depoimentos colhidos durante a
ouvindo tudo o que se sucedeu.7 Tornou-se visita dos Secretários, bem como a “ação”
a principal testemunha do caso. policial horas antes da visita, levaram o
Inicialmente as mortes no Borel não governo federal a determinar a presença da
suscitaram grande comoção na opinião pú- Polícia Federal no local para a realização
blica, sendo considerada pelas autoridades de uma nova perícia. Tal perícia constatou
6
Everson levou cinco tiros, um pelas costas (próximo à coluna cervical), quatro pela frente (dois em regiões vitais: cabeça e coração). Laudo do
IML n.º 2660/2003.
7
“Sobrevivente vira testemunha”, O Dia, 19/5/03. Graças a Pedro, tanto os familiares dos mortos, quanto a polícia puderam saber exatamente
o que se passou com as quatro vítimas do Borel. Depoimento obtido na Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, 28/5/
03. Transcrição, p. 20.
8
Vide as visitas ao Borel com Secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda e do Secretário Nacional de Segurança Pública, Luís
Eduardo Soares, acompanhadas pelo Centro de Justiça Global em 14/5/03 e 22/5/03, bem como a Audiência Pública realizada pela Comissão
de Direitos Humanos da ALERJ, em 28/5/03.
9
“PMs dizem não ter certeza de que mortos no Borel eram traficantes”, Folha de São Paulo, 28/5/03. A princípio, os policiais militares
afirmaram em depoimento ao Delegado Orlando Zaccone, responsável pelas investigações, que não dispararam a curta distância, alegação
derrubada pelos laudos cadavéricos do IML, que apontavam disparos realizados à queima roupa.
44
Capítulo III — Violência Policial
que os quatro moradores haviam sido mor- vado e legalmente distorcido, onde os fins
tos em uma emboscada, desmentindo a ale- justificam os meios — ainda que os fins
gação oficial de confronto com a polícia.10 passem muito longe do slogan policial “ser-
Embora o caso pareça se encaminhar vir e proteger”. É inegável a contribuição
para a punição dos responsáveis, é preciso negativa que os últimos mandatos estaduais
ressaltar que os fatos ocorridos na comuni- — sob a égide da família Garotinho no Rio
dade do Borel têm sido comuns nas opera- de Janeiro e de Geraldo Alckmin em São
ções policiais no estado do Rio de Janeiro. Paulo — proporcionaram na área de segu-
Somente nos quatro primeiros meses do ano rança pública, promovendo uma matança de
de 2003, já haviam morrido mais pessoas civis em intervenções policiais. No Rio de
em supostos confrontos com a polícia do que Janeiro e em São Paulo, verificou-se em
em todo ano de 200011 , e a prática da incri- 2003 um incremento no número de civis
minação por meio de “apreensões” de ar- mortos por policiais em relação a 2002, atin-
mas e drogas forjadamente colocadas pelos gindo números expressivos de 119513 e
policias ao lado das vítimas de execuções, 86814 respectivamente.
foi denunciada pelo ex-Secretário Nacional A violência policial também tem sido
de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soa- alimentada por governos estaduais como si-
res, como “kit-assassino”.12 Este “kit” é nônimo de eficiência. Este fato é exemplifi-
utilizado por alguns policiais como garan- cado na fala do atual Secretário de Seguran-
tia de impunidade. ça Pública do estado de São Paulo, Saulo de
Castro Abreu Filho, a respeito do aumento
O trecho acima foi extraído do Relató- de civis mortos em ações da polícia em 2003.
rio Execuções Sumárias no Brasil (1997- O Secretário afirma que “não há uma ten-
2003), divulgado em setembro de 2003 pelo dência de crescimento dessas mortes em
Centro de Justiça Global em parceria com o confronto com a Polícia Militar”, segundo
Núcleo de Estudos Negros. Este relatório ele a alta no número de “confronto com cri-
chama a atenção para uma sistemática de minosos está relacionada com a elevação do
extermínio e opressão perpetrada diariamen- efetivo nas ruas”.15 De fato, quando a cri-
te por agentes do estado, principalmente minalidade se converte em um problema,
policiais, em praticamente todo o território observa-se com freqüência a emergência de
nacional. uma constante: frente a criminosos cada vez
A violência policial, embora não seja mais violentos, aumenta o apoio público a
exclusividade do Rio de Janeiro e de São ações mais duras por parte dos governos.
Paulo, tem apresentado nesses estados um Estas ações muitas vezes, significam apoio
recrudescimento feroz, politicamente moti- às violações de direitos humanos.16 Assim
10
“Versão de Pms cai de novo”. Jornal do Brasil, 6 de junho de 2003
11
“Morador foi morto em tocaia, diz polícia”. Folha de S. Paulo, 6 de junho de 2003.
12
“De vítimas a bandidos”. O Dia, dia 23 de maio de 2003.
13
“Em 6 anos, nº de mortes triplica. Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2004.
14
Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo, http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br
o
15
“Morte em Confronto com a PM sobe 60%”. Folha de S. Paulo, 1 de fevereiro de 2004.
16
Crime, Public order and Human Rights. Iternational Council on Human Rights Policy, Versoix, Switzerland. 2003.
45
Direitos Humanos no Brasil 2003
como na ditadura, a arbitrariedade dos agen- gamento de crimes cometidos por policiais
tes do estado não se circunscreve somente militares em funções de policiamento para
ao seu grupo alvo, mas ultrapassa frontei- a justiça comum. No entanto, apenas o jul-
ras, de modo a tornar refém toda a socieda- gamento dos homicídios dolosos contra a
de civil. vida passou a ser de atribuição da justiça
Um dos problemas cruciais concentra- comum com a promulgação da Lei nº 9299-
se no fato de que a polícia, da forma como 96, conhecida como “Lei Bicudo”. Entre-
existe hoje — concebida nos anos de dita- tanto, o inquérito policial inicial continua
dura militar, na linha da ideologia da segu- nas mãos da polícia, bem como a classifica-
rança nacional, e dividida em polícia militar ção pela qual um crime é considerado “ho-
e civil17 — não atende as necessidades da micídio doloso” ou “homicídio culposo”. Os
sociedade e de um governo democrático, crimes de lesão corporal, tortura e homicí-
colocando em pauta a discussão sobre a sua dio culposo, quando cometidos por polici-
reforma. ais militares, continuam sendo da jurisdição
O término do regime ditatorial e a tran- exclusiva dos tribunais militares.19
sição ao governo democrático não refletiram Um Projeto de Lei foi apresentado ao
em alterações significativas das polícias, que Congresso para ampliar a competência da
mantiveram seu modelo imposto pelo De- justiça comum na elucidação e no julgamen-
creto nº 1.072, de 30 de dezembro de 1969. to dos crimes praticados por policiais mili-
Este decreto extinguiu as guardas civis em tares em suas atividades de policiamento, de
todo o país, anexando-as às forças militares modo a incluir homicídio culposo, lesão
estaduais existentes, então chamadas de for- corporal e tortura.20 No entanto, o forte lobby
ças públicas.18 Nem mesmo a Constituição da Polícia Militar, contrária ao projeto, no
Federal de1988 conseguir transformar radi- Congresso Nacional tem impedido a sua
calmente esse cenário, mantendo a estrutu- aprovação.
ra policial e um sistema judiciário corpora- Outra questão central a ser tratada é a
tivo no caso da polícia militar. A Justiça Mi- aprovação de projeto de emenda constituci-
litar, responsável pelo julgamento da maioria onal que tramita no Congresso, criando uma
dos crimes cometidos por policiais militares polícia única, com unidade de comando, de
é, em grande medida, responsável pela im- caráter civil, instituindo uma carreira
punidade garantida aos maus policiais. unificada, com acesso condicionado ao per-
A existência de um foro especial para manente aperfeiçoamento policial.
processar e julgar os policiais militares re- A proposta do governo Lula para enfren-
sultou na apresentação, ao longo dos anos, tar essas questões foi a adoção de um Plano
de diversos Projetos de Lei com o objetivo Nacional de Segurança Pública que prevê a
transferir a competência do processo e jul- implantação de um Sistema Único de Segu-
17
A Polícia Militar é encarregada do policiamento ostensivo e a civil tem atribuição de polícia investigativa.
18
Bicudo, Hélio. “O que significa a Unificação das Polícias?”. In: Violência Policial. Tolerância zero?. Oliveira, Dijaci Dadid; Santos, Augusto
dos Santos & Silva, Valéria Getulio de Brito e. Goiânia: Ed. da UFG; Brasília:MNDH, 2001.
19
Relatório sobre a Tortura no Brasil, produzido pelo Relator Especial sobre a Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas (ONU),Genebra, 11 de abril de 2001. Disponível no sítio http://www.global.org.br
20
Bicudo, Hélio. “O que significa a Unificação das Polícias?”. In: Violência Policial. Tolerância zero?. Oliveira, Dijaci Dadid; Santos, Augusto
dos Santos & Silva, Valéria Getulio de Brito e. Goiânia: Ed. Da UFG; Brasília:MNDH, 2001.
46
Capítulo III — Violência Policial
rança Pública21 (SUSP), centrado nas polí- gânica única para as polícias estaduais, a
cias estaduais, que devem estabelecer a desvinculação entre polícias militares e o
interface com a Polícia Federal e com as exército, a independência dos órgãos perici-
guardas municipais. Pretende, com uma ais, entre outras.24
integração progressiva, constituir uma rees- A adoção de um Plano Nacional de Se-
truturação gradual das instituições policiais gurança Pública realmente significa um im-
estaduais. portante avanço, mas é preciso entendê-lo
A proposta do governo federal é que a como um processo e levar em consideração
Secretaria Nacional de Segurança Pública as dificuldades reais de implementação des-
(Senasp) deixe de “pautar-se na sua relação sas mudanças.
com os estados pelo mero financiamento Em um primeiro momento deve-se des-
passivo de projetos específicos e passe a pro- tacar que o sistema depende fundamental-
por uma dinâmica de maior parceria e coo- mente dos governadores de Estado, ou seja,
peração em torno da elaboração e implanta- depende de um pacto entre o governo fede-
ção de planos estaduais de segurança públi- ral, os Estados da federação e Municípios,
ca”22 , condicionando o repasse de verbas no que concerne às responsabilidades sobre
previstas no Fundo Nacional de Segurança as políticas públicas de segurança. Isto por-
Pública23 à apresentação e discussão con- que as polícias são de competência dos Es-
junta de tais planos. Os Planos Estaduais de tados e o poder de intervenção federal é ex-
Segurança devem ser norteados pelas medi- tremamente limitado.
das previstas no SUSP. Essas medidas com- Outra dificuldade é vencer as resistênci-
preendem reformas importantes, que ao lon- as corporativas que caracterizam as institui-
go dos anos têm enfrentado um lobby ções policiais e seu forte lobby nas assem-
fortíssimo da bancada policial no Congres- bléias legislativas estaduais e no Congresso
so Nacional. Entre as principais medidas Nacional. Um dos principais idealizadores
estariam a unificação progressiva das aca- do SUSP, o sociólogo Luis Eduardo Soares,
demias e escolas de formação das polícias, já foi derrotado pelo lobby das polícias du-
a criação de ouvidorias de polícias autôno- rante sua gestão à frente da Secretaria de
mas e independentes, mudanças nos regula- Segurança Pública do Estado do Rio de Ja-
mentos disciplinares e controle rigoroso do neiro, quando tentou banir a chamada “ban-
uso da força letal. Entre as medidas que ne- da podre” da polícia fluminense. Recente-
cessitam de alteração legislativa estão pre- mente, foi destituído de seu cargo de Secre-
vistas a extinção dos tribunais e auditorias tário Nacional de Segurança Pública por ra-
militares estaduais, a criação de uma lei or- zões nada convincentes.25 Para seu lugar, foi
21
Ver o sítio da Secretaria Nacional de Segurança Pública, http://www.mj.gov.br/senasp
22
“Apresentação dos Planos Estaduais de Segurança”. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública, http://www.mj.gov.br/
noticias/2003/abril/formatosusp.pdf
23
Lei 10.201, de 14/02/01.
24
“Apresentação dos Planos Estaduais de Segurança”. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública. http://www.mj.gov.br/
noticias/2003/abril/formatosusp.pdf
25
Em outubro de 2003, depois de uma série de denúncias sobre contratação de seus familiares pelo Ministério da Justiça, Luiz Eduardo Soares
exonerou-se do cargo.
47
Direitos Humanos no Brasil 2003
nomeado o delegado da Polícia Federal Luiz dades aqui apontadas e, mais do que isso,
Fernando Corrêa, que não participou da con- terá que priorizar politicamente a aprovação
cepção do atual Plano Nacional de Seguran- de leis e emendas constitucionais que dariam
ça Pública. um novo formato às instituições policiais.
Outro fator importante é lembrar que o
Plano Nacional de Segurança Pública é, a
exemplo do Programa Nacional de Direitos COMBATE AO NARCOTRÁFICO: A GUERRA ÀS
Humanos nas suas duas edições, um con- DROGAS E A GUERRA AOS POBRES
junto de medidas a serem implementadas,
mas sem definição de prioridades, metas e A legitimação do extermínio no Brasil
cronograma, o que pode fazer com que me- Sem muito temor, podemos afirmar que
didas iniciais que deveriam ser priorizadas a questão do tráfico de drogas ocupa hoje uma
fiquem de lado, inviabilizando a sua imple- posição destacada no contexto da política in-
mentação prática. terna brasileira. Não só nos grandes centros
O que preocupa no SUSP é a crença de urbanos, onde, de fato, o problema alça ní-
que as primeiras modificações nesta área veis cinematográficos, mas também no meio
seriam suficientes para impulsionar, a mé- rural, visto toda a problemática que envolve
dio e longo prazo, mudanças constitucionais os agricultores de substâncias ilícitas e sua
extremamente complexas. Levando em conta caracterização frente aos aplicadores da lei, o
que o modelo de polícia vigente hoje no problema se apresenta de forma endêmica.
Brasil é o mesmo forjado durante a ditadura Ainda assim, como país predominante-
militar e que tem se mostrado ineficiente no mente urbano, o foco principal do “proble-
combate à criminalidade, a implementação ma das drogas” encontra eco mais forte nas
do SUSP deveria seguir um cronograma em grandes cidades brasileiras, estendendo seus
que estivessem inicialmente previstas as tentáculos desde o “varejo” na periferia, até
medidas que darão um novo caráter às polí- os vultuosos montantes mobilizados para o
cias, baseado em um marco legal e nos prin- funcionamento das grandes engrenagens de
cípios democráticos. A aprovação imediata intermediários, de garantidores, da corrupção
dos projetos de lei e emendas constitucio- e da lavagem de dinheiro.
nais apresentados no início desse capítulo é Como problema, ultrapassa o nível lo-
fundamental para a implantação do SUSP. cal e as fronteiras entre os países, estimula
A implantação das propostas para segu- intervenções, contribui para a redução da
rança pública também tem esbarrado em di- soberania das nações periféricas, além de
ficuldades financeiras. Em 2003, a execu- fazer surtir seus catastróficos efeitos no pla-
ção de gastos na área de segurança pública no da segurança interna de cada Estado.
representou apenas 0,24 % do orçamento Porém, muito mais do que a discussão
nacional.26 da problemática oficial em torno do tráfico
O SUSP ainda é muito recente para uma de drogas, interessante é a perspectiva das
análise comparativa, mas está posto que o justificativas e conseqüências atreladas às
governo federal terá de enfrentar as dificul- ações que supostamente deveriam ser em-
26
Orçamento. Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos — INESC. Ano III, nº3, fevereiro de 2004.
48
Capítulo III — Violência Policial
preendidas para seu combate, bem como al- difusoras da violência, justamente pela sua
guns objetivos implícitos — e não raro, mais condição geográfico social de “centro de
danosos — do que o problema em si carrega. excelência” do tráfico de drogas.
Nesse sentido, da mesma forma em que O estado do Rio de Janeiro, pela con-
se pode tecer severas críticas e contestações centração quase democrática de bolsões de
ao que o governo norte-americano chama miséria, mesmo em suas áreas mais nobres,
desde a era Reagan de “Guerra às Drogas” além da enorme projeção na mídia atribuída
— que serve para legitimar ações como o ao tráfico de drogas, constitui o paradigma
Plano Colômbia, por exemplo — também nacional das ações de criminalização das
no plano interno a presença de um “inimigo camadas carentes e, por esse motivo, será
invisível”27 contribui significativamente para tratado aqui de forma a se chegar ao enten-
a consecução de metas intencionalmente dis- dimento geral desta situação em todo o
simuladas pela justificativa principal. Como Brasil.Cabem, de início, algumas conside-
no Brasil. rações.
Desde o final da década de oitenta, onde Três instrumentos legalmente fictícios
uma fortíssima mentalidade de mercado constituem os pilares da perseguição aos
especulador se consolidou em detrimento da pobres e de sua eliminação, seja via encar-
produção, regida pelo que se entende por ceramento, seja via execução. Estamos falan-
“globalização” e “neoliberalismo”, a diferen- do, obviamente, dos autos de resistência, do
ça de renda deixou de ser o principal proble- mandado de busca e apreensão itinerante e
ma social do Brasil, dando lugar ao mecanis- do crime de associação ao tráfico.
mo mais complexo e danoso da exclusão. O problema começa já com a transpa-
Assim, em um horizonte democratica- rência das ações policiais em relação à soci-
mente ainda trêmulo, a pouca inserção das edade civil. Por meio de um documento sem
camadas populares neste novo contexto so- bases legais — os autos de resistência — a
mou-se, catastroficamente, o seu “enquadra- atividade policial mascara sua letalidade,
mento” como nova classe ou grupo estatal- pois inverte a situação em que um homicí-
mente perseguido, em perfeita consonância dio é praticado por um policial, colocando-
com os efeitos globais de eliminação dos se este como vítima (de tentativa de homicí-
pobres — e não da pobreza — observados dio) e o morto como seu autor. A justificati-
nas mais diversas nações de todo o mundo.28 va, quase sempre, é a resistência à prisão —
Atualmente no Brasil, sob o manto do por tráfico de drogas — situação esta que
“flagelo das drogas”, têm-se empreendido supostamente o teria levado a morte. Como
em larga escala a criminalização das popu- “provas” apresentadas para tanto temos, qua-
lações excluídas, sempre identificadas como se que como um rito, a apresentação de uma
27
É interessante notar como a produção subjetiva de uma ameaça constitui um excelente instrumento de legitimação do uso unilateral do poder,
respondendo sempre à objetivos muito mais obscuros e contestáveis do que o que se prega. Assim, não só a “guerra às drogas”, mas também a
“ameaça comunista”, o “terror” ou mesmo a “democracia” tornam-se justificações para a consecução de interesses outros, no plano internaci-
onal, cujos resultados encontram-se diametralmente opostos ao motivo de intervenção, bem como são apropriados, no plano interno, para
responder e mascarar os interesses dos governos locais que os assimilam.
28
Ver Löic Wacquant, “As prisões da miséria”.
49
Direitos Humanos no Brasil 2003
50
Capítulo III — Violência Policial
51
Direitos Humanos no Brasil 2003
52
CAPÍTULO IV — CONFLITOS NO CAMPO
1
O Centro de Justiça Global enviou uma denúncia à Relatora Especial da ONU, Sra. Asma Jahangir, em relação a este caso em 3 de julho de
2003 (of. n º JG/RJ 079/03).
2
Últimas Notícias. Ministério do Desenvolvimento Agrário. http://www.mda.gov.br/index.php?pg=caderno&id_menu=5&id=60
53
Direitos Humanos no Brasil 2003
3
“Para MST, jogo da Reforma Agrária este ano dá empate”. Agência Carta maior, 29 de dezembro de 2003. http://www.cartamaior.com.br
4
Advogado e ex-deputado federal pelo PT, Plínio de Arruda Sampaio é um especialista na questão fundiária no Brasil, tendo trabalhado por 30
anos na FAO (Organização da ONU voltado para a agricultura e a alimentação).
5
“O sonho da reforma agrária começa a tomar forma”. Boletim Eletrônico Mensal. Fundação Perseu Abramo e Secretária Nacional de Forma-
ção Política do PT. http://www.fpabramo.org.br/periscopio/122003/texto01.htm
6
Ver o sítio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, http://www.mda.gov.br
7
“Sai o Plano Nacional de Reforma Agrária.” Agência de Informação Frei Tito para a América Latina. 23 de novembro de 2003. http://
www.adital.org.br
8
“Radiografia do conflito fundiário”. Revista Veja, 26 de março de 2003.
9
Relatório sobre Crimes no Latifúndio. Comissão Pastoral da Terra e Outros. Agosto de 2003.
54
Capítulo IV — Conflitos no Campo
10
Relatório sobre Crimes no Latifúndio. Comissão Pastoral da Terra e Outros. Agosto de 2003.
11
“Proprietários de terras acusam Incra de apoiar invasões e contratam milícias privadas”. Diário de Pernambuco, 12 de março de 2003.
12
“Milícias Privadas: Estratégias para Impedir a Reforma Agrária em Defesa do Latifúndio”. Relatório da Organização de Defesa dos Direitos
Humanos, Terra de Direitos.
13
Fogolin, Marco Antônio Scaliante. “Segurança privada na propriedade rural: direito”, julho de 2002. http://www.udr.org.br
14
Como crédito do Delegado consta na página da UDR. http://www.udr.org.br: Delegado de Polícia da Delegacia de Entorpecentes de Pres.Prudente
– SP, Professor Autorizado pela Polícia Federal a Ministrar aulas de Cursos de Vigilantes e Empresas de Segurança Particular, Professor de Tiro,
Investigação e Direção Defensiva da Academia de Polícia de São Paulo, Professor Universitário da Cadeira de Direito Penal – Unoeste e autor
do Livro “A outra face do MST...O crime organizado!!!”
15
Fogolin, Marco Antônio Scaliante. “Segurança privada na propriedade rural: direito”, julho de 2002. http://www.udr.org.br
55
Direitos Humanos no Brasil 2003
16
Idem.
17
“Milícias Privadas: Estratégias para Impedir a Reforma Agrária em Defesa do Latifúndio”. Relatório da organização de defesa dos direitos
humanos Terra de Direitos.
18
Marcos Prochet é acusado do assassinato do trabalhador rural Sebastião Camargo, em 7 de fevereiro de 1998, na cidade de Marilena no
Paraná. O caso foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em 30 de junho de 2000 e aberto (nº 12.310), julho
de 2000. Documento acessível no sítio http://www.global.org.br
19
“Proprietários de terras acusam Incra de apoiar invasões e contratam milícias privadas”. Diário de Pernambuco, 12 de março de 2003.
20
Canuto, Antônio; Luz, Cássia Regina da Silva; Afonso, José Batista Gonçalves. “Conflitos no Campo – Brasil 2003”, Relatório Anual da
Comissão Pastoral da Terra, abril de 2004.
21
Conflitos no Campo. http://www.cptnac.com.br
22
Canuto, Antônio; Luz, Cássia Regina da Silva; Afonso, José Batista Gonçalves. “Conflitos no Campo – Brasil 2003”, Relatório Anual da
Comissão Pastoral da Terra, abril de 2004.
56
Capítulo IV — Conflitos no Campo
estados de maior tensão no campo (Pará, cada como criminosa, mas apenas pelo fato
Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso, São de pertencerem às cooperativas do Movi-
Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul). mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Também neste período de sessões, o (MST) ou terem parentesco com José Rai-
Centro de Justiça Global apresentou novas nha, importante liderança do MST na região
informações sobre as investigações do as- do Pontal do Paranapanema.26
sassinato de Sebastião Camargo Filho23 , tra- O poder judiciário emitiu ordens de des-
balhador rural assassinado no Paraná em 7 pejo contra 35.292 famílias, envolvendo
de fevereiro de 1999. 176.485 pessoas, um número recorde desde
que a CPT iniciou este registro em 1985.
Um aumento de 263,2% sobre os números
CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS do ano de 2002. O estado com o maior nú-
mero de pessoas despejadas foi o de Mato
A violência contra os trabalhadores ru- Grosso com 62.995, representando 35,7%
rais também está presente na ação de seto- do total.27
res do Judiciário que se aliaram aos interes-
ses do latifúndio. Em 2003 a Comissão Pas-
toral da Terra Registrou um aumento de UMA SITUAÇÃO DRAMÁTICA:
140,5% no número de trabalhadores rurais RONDON DO PARÁ
presos em relação a 2002.24 A maior parte
desses trabalhadores foi presa sob a acusa- Ao longo dos anos, o sul e sudeste do
ção de “formação de quadrilha”.25 Pará, têm sido palco de uma crescente vio-
Exemplo emblemático da perseguição lência no campo resultando no assassinato
aos trabalhadores rurais foram as prisões que de centenas de trabalhadores rurais, lideran-
aconteceram no Pontal do Paranapanema, no ças sindicais, religiosos (as) e profissionais
interior do estado de São Paulo. Ao explicar que atuam na assessoria das organizações dos
a prisão de 11 integrantes do MST, o juiz trabalhadores. Segundo dados da CPT da
Araújo de Oliveira declarou à imprensa que diocese de Marabá, cerca de 600 trabalha-
a sua decisão foi exclusivamente técnica: dores e lideranças foram assassinados nos
“minha decisão não é movida por persegui- últimos 30 anos. Os dados comprovam a
ção ou por qualquer tipo de criminalização inequívoca conivência dos poderes públicos
do Movimento dos Sem Terra”. No entanto, com o crime organizado pelo latifúndio,
segundo o texto da sentença, os acusados pois, mandantes e assassinos não são presos
são condenados sem que se aponte qual ati- e nem vão a julgamento. Mandados de pri-
tude destes implicaria em uma ação qualifi- são não são cumpridos, e em muitos casos,
23
A denúncia sobre o assassinato de Sebastião Camargo foi encaminhada pela Justiça Global e Comissão Pastoral da Terra/PR à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA e o caso foi aberto (Nº 12.310) em julho de 2000
24
Canuto, Antônio; Luz, Cássia Regina da Silva; Afonso, José Batista Gonçalves. “Conflitos no Campo – Brasil 2003”, Relatório Anual da
Comissão Pastoral da Terra, abril de 2004.
25
Idem.
26
Prisões políticas e criminalização dos movimentos sociais. Agência de Informação Frei Tito para a América Latina, 16 de setembro de2003.
http://www.adital.org.br
27
Canuto, Antônio; Luz, Cássia Regina da Silva; Afonso, José Batista Gonçalves. “Conflitos no Campo – Brasil 2003”, Relatório Anual da
Comissão Pastoral da Terra, abril de 2004.
57
Direitos Humanos no Brasil 2003
policiais e pistoleiros agem em conjunto nos passam pelo município, ou se aliam a eles
assassinatos. Esse é um dos fatores decisi- ou não os incomodam. Quem ousa enfrentá-
vos que faz prevalecer a violência e a impu- los ou é assassinado ou tem que abandonar
nidade na região. a cidade.
Rondon do Pará, no sudeste do Pará, é O documento sobre Rondon do Pará,
um dos municípios da região conhecidos encaminhado ao Ministro do Desenvolvi-
pela ação do crime organizado pelo latifún- mento Agrário em 15 de fevereiro, relacio-
dio, como demonstra documento elaborado na uma série de ações criminosas cometidas
pela Comissão Pastoral da Terra de Marabá, por latifundiários29 :
Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (Contag), Federação dos Tra- l Trabalhadores assassinados na Fa-
midos, mas, somam-se a esses muitos ou- pistoleiros de Josélio Barros. Em 1985, o
tros. Percebendo a fragilidade da documen- pequeno proprietário Antônio Roldão, foi
tação de suas propriedades, pretendem barrar assassinado por pistoleiros a mando de
o processo de Reforma Agrária no municí- Josélio, porque não concordava em vender
pio a qualquer custo. Delsão e Josélio são sua propriedade que ficava na divisa da fa-
acusados de serem mandantes de vários cri- zenda de Josélio. Após o assassinato, a viú-
mes no município, mas os processos ficam va foi forçada a vender a propriedade.
na gaveta das autoridades ou “desaparecem”
do Fórum local. As autoridades de Rondon l Trabalhador assassinado por pisto-
do Pará, Juiz, delegado e promotor mani- leiros de José Hilário. Em junho de 1993,
festam claramente seus temores em relação na Vila Gavião, o lavrador Alfim Alves
a esse grupo criminoso. As autoridades que Fagundes, pai de quatro filhos, foi assassi-
28
Documento elaborado pela Comissão Pastoral da Terra de Marabá, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag),
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri), Fetagri/Regional sudeste e Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Rondon do Pará (STR), e encaminhado ao Ministro do Desenvolvimento Agrário em 15 de fevereiro de 2004.
29
Idem.
58
Capítulo IV — Conflitos no Campo
nado por pistoleiros, a mando do fazendeiro constantes ameaças de morte por parte de
José Hilário, que agia em conjunto com fazendeiros que comandam o crime organi-
Josélio Barros. Ninguém foi punido pelo zado na região, especialmente por Josélio
crime. Barros. Em 05 de fevereiro de 1998, todos
esses fatos foram apresentados por Dezinho
lTrabalho escravo e cemitério clandes- ao Conselho de Segurança Pública do Esta-
tino na fazenda de Josélio Barros. Em do do Pará, em audiência realizada na cida-
1995, foi descoberto nas fazendas T-chaga- de de Rondon. Nada foi feito para apurar as
u e Nova Deli, propriedades de Josélio, tra- denúncias. Nos anos subseqüentes, inúme-
balho escravo e cemitério clandestino. Uma ras vezes, Dezinho ocupou os meios de co-
comissão formada por policiais civis, repre- municação e encaminhou denúncias aos
sentantes da Fetagri e STR de Rondon, en- Órgãos de Segurança Pública sobre as cons-
controu ossadas humanas nas referidas fa- tantes ameaças de morte que recebia.
zendas. Os assassinatos eram comandados No início do ano 2000, o então juiz de
por um pistoleiro conhecido por “Raí”. Rondon, afinado com os interesses dos fa-
zendeiros, mandou prender Dezinho por três
l Tentativa de seqüestro do sindicalis- dias, sem que ele estivesse respondendo a
ta Brito. Em agosto de 1996, o então secre- inquérito ou processo, mas, simplesmente
tário do STR de Rondon do Pará, José Soa- porque ele dera uma entrevista na imprensa
res de Brito, foi vítima de uma tentativa de local afirmando que a ocupação de latifún-
seqüestro. Dois pistoleiros que se identifi- dios improdutivos era legítima.
caram como “policiais”, o obrigaram a en-
trar em um carro Gol. Percebendo o plano, l O sindicalista Dezinho é assassina-
o sindicalista resistiu e conseguiu escapar. do. Em 21 de novembro de 2000, Dezinho
Em 1991, Brito teve sua casa incendiada por foi assassinado em frente sua casa, com três
pistoleiros, escapando por pouco de ser as- tiros, disparados pelo pistoleiro Welington
sassinado. de Jesus. As investigações apontaram
Delsão, como sendo o mandante do crime.
l Assassinato de Reinaldo Félix. Em Os intermediários do crime (Igoismar
Março de 1997, na Vila Gavião, o lavrador Mariano e Rogério) nunca foram presos.
Reinaldo Félix, foi assassinado com vários A razão de Delsão ter encomendado a
tiros, pelo pistoleiro “Neguinho”. Reinaldo, morte de Dezinho está relacionada às denun-
assim como Alfim, era posseiro da fazenda cias do sindicalista e a uma ocupação que
Simpau. O pistoleiro teve sua prisão preven- organizou na fazenda Tulipa Negra, de pro-
tiva decretada, mas nunca foi preso. Nada priedade de um dos fazendeiros ligados a
foi apurado sobre os possíveis mandantes do Delsão, localizada próxima a suas fazendas.
crime. O temor de Delsão era que Dezinho pudesse
organizar futuras ocupações em suas terras.
l Ameaças de morte contra o sindica- A polícia chegou até Delsão através de
lista Dezinho. A partir de 1998, o então pre- uma testemunha apresentada pelas próprias
sidente de Sindicato dos Trabalhadores Ru- entidades. Segundo depoimento da testemu-
rais de Rondon, José Dutra da Costa, co- nha em juízo, Delsão teria encomendado a
nhecido como “Dezinho”, passou a receber morte de Dezinho há mais de um mês a um
59
Direitos Humanos no Brasil 2003
das as manifestações de aniversário de mor- lista Maria Joel Costa. Maria Joel Dias Cos-
te de Dezinho são acompanhadas de perto ta, viúva de Dezinho, assumiu a direção do
por ele, como forma de provocação e inti- STR em meados de 2002. A partir do início
midação. de 2003, o STR iniciou o cadastramento de
Delsão chegou a ser preso, mas por ape- famílias sem terra no município. As amea-
nas 13 dias. Foi posto em liberdade por de- ças de morte vinda da parte de fazendeiros
cisão do então desembargador Otávio se tornaram freqüentes. Fazendeiros entra-
Maciel, hoje ouvidor agrário estadual. A ins- ram com quatro ações de interdito proibitório
trução do processo está suspensa a quase três contra o Sindicato. Passaram a ir ao Sindi-
anos por decisão do mesmo desembargador. cato e à casa de Maria Joel acompanhados
Magno Fernandes do Nascimento, 39 de pistoleiros para exigirem satisfação so-
anos, conhecido como “Careca”, uma das bre possíveis acampamentos. Preocupado
principais testemunhas do crime, foi assas- com as ameaças, o STR decidiu não montar
sinado com dois tiros na cabeça, na madru- acampamentos e negociou com o Incra, em
gada do dia 10 de setembro de 2002, por 04 de abril de 2002, a vistoria em três imó-
dois pistoleiros, a uma distância de, aproxi- veis objetivando assentar as famílias. No
madamente, 200 metros de sua residência. entanto, até o final de 2003 o Incra não ha-
Os indícios apontam para que tenha sido um via concluído as vistorias.
crime de encomenda como forma de quei- Em virtude dessa morosidade, o STR
ma de arquivo, pois, Magno não tinha ini- decidiu organizar dois acampamentos com
mizades na cidade e não tinha envolvimento 150 famílias cada. Os acampamentos foram
com atividades ilícitas. Segundo as informa- organizados em áreas de assentados, distan-
ções apuradas pela CPT e Fetagri, Magno te das fazendas. Mesmo assim, as ameaças
tinha comentado com seus colegas de traba- se intensificam. Recados chegaram até a pre-
lho que “estava sendo ameaçado por gente sidente informando que a decisão dos fazen-
grande de Rondon do Pará”. No amanhecer deiros era tirar alguém muito próximo à vi-
60
Capítulo IV — Conflitos no Campo
úva de Dezinho. Preocupados com a segu- de 12 pistoleiros. Esse fazendeiro foi visto
rança da família de Maria em virtude das várias vezes passando próximo à residência
crescentes ameaças, em 28 de outubro de do vice-presidente do sindicato em um bair-
2003, os representantes da Fetagri e da CPT ro da periferia de Rondon.
reuniram-se com o Delegado Roberto No dia seguinte ao assassinato de Riba-
Teixeira, responsável pela polícia civil do mar, uma caminhonete branca, seguiu por
interior, e solicitaram que o Delegado envi- cerca de 20 quilômetros o em que viajava
asse investigadores a paisana para apurar as um dos coordenadores da regional da
denúncias, realizando um trabalho preven- Fetagri. Esse carro tinha sido usado durante
tivo. A proposta foi aceita pelo delegado que todo o dia pelo advogado da CPT que acom-
deu um prazo de 15 dias para colocar a polí- panha os processos e assessora o STR de
cia em ação. Até a finalização desse relató- Rondon. Três dias após a morte de Riba-
rio o delegado ainda não havia providencia- mar, um dos advogados da CPT foi até o
do a investigação. fórum de Rondon verificar o andamento de
alguns processos, logo que chegou foi pro-
Assassinato do sindicalista Ribamar
l curado por dois homens desconhecidos que
Francisco dos Santos. No dia 8 de feverei- queriam saber se ele era um dos advogados
ro de 2004, por volta das 19h, o sindicalista da CPT. Os dois desconhecidos trafegavam
Ribamar estava em frente a sua casa, quan- em uma moto.
do inesperadamente apareceram dois No documento encaminhado ao Minis-
pistoleiros em uma moto e dispararam dois tro do Desenvolvimento Agrário, as organi-
tiros. Um dos tiros acertou a cabeça de Ri- zações solicitaram a realização imediata de
bamar, que faleceu cerca de uma hora de- levantamento fundiário no município de
pois. Ribamar era uma das principais lide- Rondon do Pará e assentamento de todas as
ranças do STR junto com a presidente Ma- famílias cadastradas pelo STR nas áreas ar-
ria Joel. Ajudou a organizar os acampamen- recadadas; envio imediato de reforço fede-
tos e fazia as articulações com o Incra e com ral para fazer ação de desarmamento dos fa-
as entidades de apoio. zendeiros de Rondon, investigar os crimes
Denunciou com firmeza o dono de uma cometidos, localizar pistoleiros e interme-
construtora de casas que recebeu recursos diários com prisões preventivas decretadas;
do Incra para realizar a obra e não a concluiu. ampliação imediata do quadro de servido-
Em razão disso também sofreu ameaças. res do departamento fundiário da Superin-
Na véspera do assassinato de Ribamar, tendência Regional do Incra (SR27); redefi-
um fazendeiro conhecido como “Pirrucha” nição da atuação das Ouvidorias Agrárias e
disse pela cidade que mandaria matar a to- Varas Agrárias no Estado; cumprimento dos
dos que entrassem em suas terras. Na ulti- acordos firmados entre movimentos sociais
ma tentativa de ocupação em sua fazenda, e o Incra em 2003.
os trabalhadores foram retirados da área com No dia 13 de fevereiro de 2004 o Centro
armas de grosso calibre apontadas para suas de Justiça Global, a Comissão Pastoral da
costas e cabeças, por uma quadrilha de mais Terra e a Terra de Direitos solicitaram30 ao
30
Ofício JG-SP 10/04, de 13 de fevereiro de 2004.
61
Direitos Humanos no Brasil 2003
31
A redação da Emenda ficaria da seguinte maneira: “V - área total do imóvel correspondente a, no máximo, trinta e cinco módulos fiscais, no
conjunto das áreas, em todo o território nacional, sob o domínio, a qualquer título, de uma mesma pessoa física ou jurídica. Parágrafo único.
O requisito fixado no inciso V será auto-aplicável, sendo que a incorporação ao patrimônio público de imóvel rural com área acima do limite
estabelecido nesse inciso será livre de indenização, ao titular, do respectivo valor da terra nua correspondente à parcela de área excedente aos
trinta e cinco módulos fiscais.”. Fórum Nacional pela Reforma Agrária e pela Justiça no Campo. CAMPANHA PELA EMENDA CONSTITU-
CIONAL QUE ESTABELECE UM LIMITE MÁXIMO À PROPRIEDADE DA TERRA NO BRASIL.
62
CAPÍTULO V — A QUESTÃO INDÍGENA
Extermínio e resistência
O índio Aldo da Silva Mota1 , da etnia de Aldo não é um fato isolado, destaca a
Macuxi, não tinha a menor idéia do que es- advogada indigenista Ana Paula Souto Mai-
tava por vir quando foi convidado, no dia 2 or: “é só mais um índio Macuxi, da Terra
de janeiro de 2003, por um empregado de Indígena Raposa/Serra do Sol a ser assas-
Francisco das Chagas Oliveira, vereador de sinado, desde que a Funai começou o pro-
Uiramutã, a buscar um bezerro na Fazenda cesso de demarcação em 1978. Espero,
Retiro, de sua propriedade. Desde então imensamente, que seja o último. Há dez
desaparecera. anos, em maio de 1993, o ancião Damião,
Somente no dia 09 de janeiro, devido a 72, foi assassinado a pauladas pelo vaquei-
uma forte concentração de urubus sobrevo- ro do fazendeiro José Saraiva, com quem
ando o local, Aldo foi encontrado enterra- disputava terras próximas à aldeia Napo-
do em uma cova rasa, dentro dos limites da leão. Em 1990, outro Damião, este Mendes,
fazenda. Tanto a fazenda, quanto o próprio e Mario Davis, da aldeia Macaco, foram
município de Uiramutã, encontram-se situ- também covardemente assassinados, com ti-
ados dentro da reserva indígena Raposa/ ros dados pelas costas, pelo vaqueiro Ma-
Serra do Sol. nuel dos Santos, da Fazenda Guanabara,
Muito embora o Instituto Médico Legal que engloba cinco aldeias Macuxi, do fa-
(IML) de Roraima tenha concluído que a zendeiro Newton Tavares, localizada próxi-
causa mortis foi “natural e indeterminada”, ma à vila de Normandia. Nesta vila, em
outro laudo, desta vez do IML de Brasília, 1988, Ovelário Tames, de 17 anos, da al-
constatou que Aldo havia sido “executado deia Cachoeirinha, foi preso ilegalmente e
quando estava com os dois braços para espancado até a morte por cinco policiais
cima”. civis, entre eles, um sobrinho de um ex- go-
A emboscada que matou o índio Macuxi vernador do estado. Poderia prosseguir nos
Aldo da Silva Mota, foi minuciosamente re- nomes e detalhes das mortes dos demais: qua-
latada pelo Centro de Justiça Global à tro mortos por garimpeiros, outro pelo va-
Relatora sobre Execuções Sumárias da queiro Izan Matos, um em frente ao fechado
ONU, Asma Jahangir.2 Infelizmente, o caso bar da Placa, mas quem se importa?” 3
1
Um relato completo sobre o caso pode ser encontrado no relatório “Execuções Sumárias no Brasil: 1997-2003”, Centro de Justiça Global,
setembro de 2003, p.243-245.
2
Ofício encaminhado à Relatora da ONU para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, pelo Centro de Justiça Global,
em 21 de março de 2003.
3
“Roraima Dez anos de Retrocesso”. Ana Paula Souto Maior, 22 de fevereiro de 2003. http://www.cir.org.br/artigos
63
Direitos Humanos no Brasil 2003
A questão indígena passa atualmente por mente, os recursos naturais encontrados nas
um momento delicado. Historicamente opri- áreas demarcadas, motivo da ganância e ou-
midos e espoliados, a população nativa do sadia de latifundiários, garimpeiros e das
Brasil viu ser reduzida a frangalhos o que milícias privadas por eles constituídas, a fim
antes era um conjunto de opulentas e desen- de intimidar e dizimar as populações indí-
voltas nações em termos de seu respeito às genas que não se deixam seduzir pelas pro-
terras, recursos naturais e quantitativo hu- messas e/ou ameaças constantemente feitas
mano propriamente dito.4 nessas regiões.
O conflito de interesses entre poderosos Uma vez mais, a ação de grupos pode-
e excluídos, marca não só da relação entre rosos em conjunção com a omissão do Es-
índios e latifundiários, mas de todo o pro- tado possibilita, de forma fulminante, uma
cesso histórico nacional. Isto tem impulsio- série de abusos e práticas criminosas garan-
nado as comunidades nativas a se levantar e tidas pelo preconceito social e inoperância
lutar por algo que desde muito tempo deve- jurídica em relação a tais áreas. O governo
ria estar sedimentado: a homologação e re- brasileiro é responsável direto pelo estado de
conhecimento de suas terras, bem como a depauperação em que se encontram as comu-
proteção e efetivação de toda a gama de di- nidades indígenas, tomando partido, por não
reitos que circunda a luta por respeito e iden- aplicar a Lei, daqueles que empreendem as
tidade dos verdadeiros “donos” do Brasil. mais terríveis atrocidades em nome dos altos
Entretanto, sabemos que, como muito bem lucros e da especulação imobiliária.
assinalado por Raymundo Faoro, jurista e
cientista social de grande renome no Brasil,
os donos do poder por aqui são outros, tão ASSASSINATOS DE INDÍGENAS —
antigos em seus postos quanto a nossa pró- 1993 A 2003
pria nação.
Nesse sentido, podemos dizer que a to- O ano de 2003 registrou o assassinato
talidade das tensões observadas na luta en- de 27 índios5 no Brasil, número que não se
tre índios e não-índios no Brasil deve-se, em registrava desde 1997, quando foram mor-
última escala, à não demarcação de suas tos 29 índios. O aumento no número de as-
terras, à não fiscalização e efetivação de tais sassinatos se deve, em grande parte, ao re-
direitos, bem como à inexistência de meios crudescimento das ações de latifundiários e
que possibilitem a autonomia e desenvolvi- fazendeiros, entre outros, contra movimen-
mento desses povos. tos sociais que outrora encontravam-se pró-
Isto acontece tendo em vista, principal- ximos do presidente eleito em 2003.6
4
A título explicativo, destaca-se o povo Cinta Larga — Rondônia — povo identificado em meados da década de setenta, quando contava com
mais de 5000 habitantes. Hoje, pouco mais de 30 anos depois, este mesmo povo conta com cerca de 1400 membros, tendo sido quase totalmente
dizimado. In: “Conflitos em Terras Indígenas”. Relatório da VIII Caravana de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — 7 a 17 de outubro
de 2003.
5
Dados fornecidos ao Centro de Justiça Global pelas advogadas do CIMI Michael Mary Nolan e Rosane Lacerda em 13 de abril de 2004.
6
Veja capítulo sobre Violência no Campo.
64
Capítulo V — A questão Indígena
7
“Povos Indígenas: a busca de seus direitos”, in: Moser, Cláudio e Rech, Daniel. Direitos Humanos no Brasil — Diagnóstico e Perspectivas. Rio
de Janeiro: Ceris/Mauad, 2003
8
“Execuções Sumárias no Brasil — 1997-2003”. Centro de Justiça Global, setembro de 2003.
9
Idem.
10
Informações enviadas por correspondência eletrônica pelo Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ao Centro de
Justiça Global em 12 de fevereiro de 2004.
65
Direitos Humanos no Brasil 2003
te. O Cacique Marquinhos e sua mãe Zenilda petindo à União demarcá-las, proteger e
Maria de Araújo vêm recebendo sistemáti- fazer respeitar todos os seus bens”. Segue,
cas ameaças de morte nos últimos três ainda, ressaltando que “as terras de que trata
anos.11 este artigo são inalienáveis e indisponíveis,
O pai do Cacique Marquinhos, Francis- e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
co de Assis Araújo, Cacique Chicão, foi A distância que separa o ordenamento
morto por um pistoleiro em 20 de Maio de constitucional da realidade na questão da
1998. Em 23 de Abril de 2001, outro líder homologação de terras das comunidades in-
Xukuru, Francisco de Assis Santana, Chico dígenas tem contribuído decisivamente para
Quelé, foi assassinado a tiros dentro da área o agravamento dos conflitos entre índios e
indígena.12 não índios. A incerteza jurídica que paira
De acordo com o Conselho Indigenista sobre a posse da terra, via de regra, propor-
Missionário (CIMI), a exemplo do que acon- cionada pela inatividade do governo federal
teceu com os Xukuru, a grande maioria dos e agravada pela cumplicidade dos governos
assassinatos de índios registrados nos últi- estaduais, tem possibilitado uma série de
mos 10 anos foi motivada pela luta pela ter- manobras violentas contra os índios e a per-
ra, ou exploração e saque dos recursos natu- da gradativa de seus territórios e vida.
rais (mineração, madeira, pesca e caça). Em Nesse sentido, um fortíssimo fator de
alguns casos, os assassinatos foram causa- instabilidade na questão das terras tem sido
dos por conflitos internos que, de alguma o entendimento de muitos magistrados de
forma, também têm como pano de fundo o que, enquanto não for homologada, a terra
problema da terra. destinada aos índios não goza de nenhum
Outras mortes ocorreram por brigas en- tipo de garantia ou privilégio14 , ocasionan-
tre os próprios índios. Essas brigas, na mai- do uma série de práticas abusivas tais como
or parte dos casos, estão relacionadas ao a construção de estradas, drenagem de rios,
consumo de álcool, e tem como agravante a e mesmo a criação de municípios inteira-
desestruturação social em função da perda mente localizados dentro destas regiões.15
da terra, da miséria a que foram relegados.13 A instabilidade criada serve então para a
desmobilização dos grupos indígenas e des-
crédito de suas reivindicações, dada a difi-
A QUESTÃO DA HOMOLOGAÇÃO: culdade de superação dos fatos.
A imobilidade do governo federal fren-
A constituição brasileira de 1988, em seu te aos conflitos em terras indígenas se deve,
art. 231 reconhece aos índios “sua organi- em muito, aos laços de poder costurados em
zação social, costumes, línguas, crenças e anos de influência dos grupos de latifundiá-
tradições, e os direitos originários sobre as rios no Congresso Nacional, suas ligações
terras que tradicionalmente ocupam, com- com os governos regionais16 e a falta de re-
11
“Protagonistas Essenciais de Nosso tempo”: defensores de direitos humanos nas Américas. Anistia Internacional, novembro de 2003.
12
Idem.
13
Informações enviadas por correspondência eletrônica pelo Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ao Centro de
Justiça Global em 12 de fevereiro de 2004.
14
“Conflitos em Terras Indígenas”. Relatório da VIII Caravana de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — 7 a 17 de outubro de 2003.
15
Idem.
66
Capítulo V — A questão Indígena
16
Os integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em visita à Roraima, ouviram diversas queixas dos índios no sentido de que
manobras políticas tem dificultado a resolução do conflito. Apontam, inclusive, a filiação do governador de Roraima, Flamarion Portela, ao
Partido dos Trabalhadores, como um ato negociado em que, por um lado aumentava a base de sustentação do governo federal no Congresso e,
por outro, impediu a homologação da terra indígena Raposa/ Serra do Sol.
17
Sítio do CIMI. http://www.cimi.org.br
18
A extensão do poder dos fazendeiros não se limita ao confronto com os índios. Durante as visitas realizadas pela Caravana de Direitos
Humanos da CDH, seus membros puderam presenciar um fazendeiro ameaçando explicitamente um membro do Conselho Indigenista Missi-
onário (CIMI), assim como foram eles próprios vítimas da intimidação de fazendeiros e de um prefeito local em Santa Catarina.
67
Direitos Humanos no Brasil 2003
19
AC 19 5 2 0 6 1 5 38
AL 1 0 0 2 2 1 4 10
AM 68 21 24 13 58 0 7 191
AP 4 0 0 0 0 0 1 5
BA 5 5 1 2 5 3 3 24
CE 0 1 1 2 1 0 5 10
ES 2 1 1 0 0 0 0 4
GO 4 0 1 0 0 0 0 5
MA 10 4 2 0 1 0 0 17
MG 3 2 0 1 0 1 2 9
MT 48 2 2 4 14 1 12 83
MS 9 12 4 1 17 8 68 119
PA 17 6 7 4 10 3 20 67
PB 2 0 0 1 0 0 0 3
PE 3 2 1 1 3 1 0 11
PR 9 2 0 1 5 5 10 32
RJ 2 1 0 0 0 0 0 3
RO 15 1 1 0 5 0 11 33
RR 21 6 2 0 1 0 0 30
RS 11 5 2 4 7 0 20 49
SC 2 2 2 5 5 2 4 22
SP 6 5 1 2 4 0 2 20
SE 1 0 0 0 0 0 0 1
TO 6 0 1 0 1 0 0 8
TOTAL 268 83 54 43 146 26 174 794
19
Dados disponíveis no site do Conselho Indigenista Missionário. http://www.cimi.org.br
68
Capítulo V — A questão Indígena
20
“Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro
de 2003, p. 07-08. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao .
21
Institui a partir do Decreto 3.156 de 27 de agosto de 1999 a “Prestação de Assistência aos Povos Indígenas”, com verba específica para
implementar programas em consonância com as necessidades e tradições de cada população.
22
“Conflitos em Terras Indígenas”. Relatório da VIII Caravana de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — 7 a 17 de outubro de 2003.
69
Direitos Humanos no Brasil 2003
porou efetivamente estas escolas aos seus ma próprio para tratar da educação escolar
sistemas de ensino, garantindo a especifici- indígena desde a educação básica até ao en-
dade que lhes é própria.23 sino superior poderá efetivamente garantir
A grave situação que decorre do fato de os princípios da especificidade, diferencia-
os estados não assumirem suas responsabi- ção e autonomia, subvertendo o modelo de
lidades se reflete na condição de a imensa escola colonialista e homogeneizadora”, diz
maioria das escolas indígenas estarem sub- o CIMI.25
metidas ainda à esfera municipal. Isso faz O problema da autogestão indígena se
com que as secretarias municipais de edu- assemelha, em muito, ao problema da falta
cação imponham modelos de currículos, de incorporação da sociedade civil no coti-
calendários, gestão, formas de avaliação, etc, diano das decisões. Quanto mais indepen-
iguais aos das escolas não-índias, num total dente, quanto maior o poder de “barganha”,
desrespeito ao princípio da autonomia esta- maior a necessidade de respeito e,
belecido pela legislação. Outro problema é consequentemente, mais exigências e me-
a situação dos professores/as indígenas que, nos favorecimento são cobrados. A lógica
diante da não regularização da sua situação cruel que escraviza o índio brasileiro em um
profissional, vêem seus direitos trabalhistas estereótipo caricaturado dele mesmo, tem
usurpados, sendo submetidos a contratos por objetivo a satisfação de interesses ou-
temporários, sem direito a férias remunera- tros, muito distantes de qualquer intenção
das, nem décimo terceiro e outros direitos de protegê-lo. O indígena, como qualquer
assegurados aos demais trabalhadores da outro, deve ter garantido seus meios de de-
educação.24 senvolvimento e sustentação, com o agra-
Diante desse quadro a Articulação Na- vante de se provê-lo, nesse sentido, de for-
cional de Educação do Conselho Indigenista ma respeitosa às tradições e cultura própria.
Missionário (ANE/Cimi) afirma que o mo-
delo de administração pública do Estado
brasileiro tem se mostrado ainda muito inerte A QUESTÃO DA FISCALIZAÇÃO:
para atender as necessidades da educação
escolar indígena no Brasil e propõe a cria- Conforme preceito constitucional26,
ção de um sistema próprio de educação que
respeite a diversidade territorial, lingüísti- “são nulos e extintos, não produzindo efei-
ca, as pedagogias próprias dos povos, suas tos jurídicos, os atos que tenham por obje-
formas de organizar, sistematizar, registrar to a ocupação, o domínio e a posse das ter-
saberes, e também suas regras e normas ad- ras a que se refere este artigo, ou a explo-
ministrativas: “Só a existência de um siste- ração das riquezas naturais do solo, dos rios
23
“Educação Escolar Indígena: Entre a Lei e a Prática”. Posicionamento da Articulação Nacional de Educação do Conselho Indigenista Missi-
onário (ANE/Cimi), sobre a situação da Educação Escolar Indígena enquanto política desenvolvida pelo Estado brasileiro junto aos povos
indígenas. Luziânia, Goiás, 10 de dezembro de 2003.
24
“Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro
de 2003, p. 07-08. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao .
25
“Educação Escolar Indígena: Entre a Lei e a Prática”. Posicionamento da Articulação Nacional de Educação do Conselho Indigenista Missi-
onário (ANE/Cimi), sobre a situação da Educação Escolar Indígena enquanto política desenvolvida pelo Estado brasileiro junto aos povos
indígenas. Luziânia, Goiás, 10 de dezembro de 2003.
26
Constituição Federal, artigo 231, parágrafo 6º.
70
Capítulo V — A questão Indígena
e dos lagos nelas existentes, ressalvado re- contribui para a má atuação da Funai, mas a
levante interesse público da União, segun- própria Fundação muitas vezes trabalha em
do o que dispuser lei complementar, não sentido oposto ao que deveria, assumindo
gerando a nulidade e a extinção direito a claramente, em diversas oportunidades, a
indenização ou a ações contra a União, sal- parcialidade em relação aos não-índios. Em
vo, na forma da lei, quanto às benfeitorias uma dessas ocasiões, chegou a apoiar em
derivadas da ocupação de boa fé”. Mato Grosso uma “parceria agrícola” entre
índios e fazendeiros, cuja principal condi-
Como pudemos constatar, não é pelo
ção era a de que os primeiros deveriam “abrir
vazio legislativo que as terras indígenas en-
mão” da demarcação de terras.28
contram-se hoje à sua própria sorte. Os pro-
Há ainda o fato de que muitas lideran-
blemas advindos da luta pela terra não se
ças indígenas são facilmente seduzidas pelo
restringem exclusivamente à falta de meca-
corporativismo da Funai, passando a servir
nismos jurídicos para a sua proteção —
a outros interesses. Isto ocorre pelo hábito
como a necessidade de homologação, por
de nomear caciques para ocupação de car-
exemplo, mas, principalmente, pela impos-
gos em comissão naquele órgão, servindo
sibilidade de torná-los efetivos.
para promover a ilusão de que são os pró-
Sem a devida estrutura, os povos indí-
genas vêem-se em completo desespero, pois, prios índios que estão no comando e, ao
incapazes de agir em prol da manutenção de mesmo tempo, colocá-los ao alcance de sua
suas terras, são obrigados a escolher entre o supervisão e controle.
conflito direto, a fim de se defenderem, ou, Porém, não só de subjugação vive hoje
pior, suportar as mazelas e arbitrariedades a Funai. São muitos profissionais sérios e
de seus oponentes. comprometidos que têm seu trabalho difi-
O sucateamento da Funai ao longo dos cultado — para não dizer impedido — pela
anos tem representado um grande entrave violência promovida por fazendeiros, garim-
para a efetivação da política indigenista na- peiros e suas milícias privadas. Em Rondô-
cional, além de contribuir fortemente para a nia, um Grupo Tarefa29 conseguiu retirar di-
relação ambígua entre Estado e índios. Seu versos garimpeiros da reserva indígena
orçamento tem demonstrado ser insuficien- Roosevelt, o que lhes rendeu uma série de
te para a missão que tem a cumprir, impos- ameaças de morte. Da mesma forma como
sibilitando a resolução dos conflitos de for- ocorrido em Roraima, em Santa Catarina,
ma pacífica e em conformidade com a legis- em setembro de 2003, um funcionário da
lação nacional.27 Funai foi baleado.30
Além disso, não só o baixo orçamento Tendo em vista a impossibilidade de
27
Só para se ter uma idéia, a Funai não realiza concurso público há 15 anos, impedindo a renovação de seus quadros e tornando deficiente sua
assistência às comunidades indígenas. Ver: “Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro de 2003, p. 09-10. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao .
28
Um problema muito comum tem sido o apoio da Funai a grupos de índios dissidentes, favoráveis à parceria entre fazendeiros e índios, o que
não só tem aumentado a possibilidade de conflito, como também enfraquece a organização entre os índios. Ver: “Conflitos em Terras Indígenas:
Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro de 2003, p.09. Ver: http://
www.camara.gov.br/internet/comissao .
29
Instituído pela Portaria 1.166 da Funai.
30
“Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro
de 2003, p. 09. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao .
71
Direitos Humanos no Brasil 2003
31
Em Roraima, por exemplo, existem 30 índios presos em virtude do conflito contra nenhum não-índio dentro das mesmas alegações.
32
Fonte: Conselho Indigenista Missionário — CIMI. Ver: http://www.cimi.org.br
33
“Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro
de 2003, p. 04. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao .
34
Somente 20 anos foram o suficiente para que se extinguisse todo o mogno — madeira nobre — da reserva Roosevelt, RO. A mesma área,
atualmente, vem se transformando em uma grande pastagem, que hoje situa-se, em parte, dentro da reserva.
35
Em 14 de março de 1977, a presidência da Funai assinou a portaria GM/111 (processo BSB/3.233/77) instituindo Grupo de Trabalho
Interministerial para proceder a demarcação da terra, que não apresentou qualquer proposta de extensão territorial. “Conflitos em Terras Indí-
genas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro de 2003, p. 07. Ver: http:/
/www.camara.gov.br/internet/comissao .
72
Capítulo V — A questão Indígena
políticos — vêm tentando a todo custo criar o Ministro anunciou que “alguns pequenos
entraves para a sua homologação. Um exem- ajustes, ditados pelo interesse público em
plo é a criação, conforme já mencionado, preservar núcleos populacionais não indíge-
do município de Uiramutã, que apesar de nas, já consolidados, ou em resguardar situ-
sua evidente inconstitucionalidade foi pro- ações jurídicas estabelecidas pelo próprio
mulgado pelo Governo do Estado em 1995, Poder Público Federal”38 , excluindo da área
dentro dos limites de Raposa/Serra do Sol. antigas bases de apoio à garimpagem, deno-
Até 1995 o vilarejo servia de base de apoio minadas vilas, as estradas e fazendas titula-
à garimpagem ilegal na terra Macuxi. Com das pelo Incra a partir de 1981, perfazendo
a criação do município, os invasores da área um total de 300 mil hectares.39
sentem-se amparados pelo Estado para per- Com a pressão do Conselho Indígena de
manecerem nas invasões. Por ser um ponto Roraima e de todo o movimento indígena e
de venda de bebida alcoólica, Uiramutã tor- indigenista em nível nacional, o Ministro da
nou-se o centro de conflitos envolvendo Justiça Renan Calheiros revogou o Despa-
moradores do lugar, índios e fazendeiros.36 cho nº 080/MJ/96.40 Na mesma data Renan
Outros empecilhos foram criados para Calheiros, assinou a portaria n° 820, de 11/
dificultar o reconhecimento da terra, como 12/98, declarando a Terra Indígena Raposa/
a criação do Parque Nacional Monte de Ro- Serra do Sol posse tradicional permanente
raima (uma Unidade de Conservação sobre- dos povos indígenas Ingarikó, Macuxi,
posta à terra indígena) e o 6º Pelotão Espe- Wapixana e Taurepang, excluindo da área
cial de Fronteiras do Exército Brasileiro. Um as instalações do 6º Pelotão Especial de
agente novo no cenário é o grupo de sete Fronteias e reconhecendo a unidade admi-
rizicultores instalados no interior na área a nistrativa municipal de Uiramutã.
partir desde 1996 com o apoio do governo Apesar de criar tantos entraves, políti-
estadual. cos locais e fazendeiros têm perdido todas
Também em 1996, o então Ministro da as ações judiciais e procedimentos adminis-
Justiça Nelson Jobim, instituiu o “direito ao trativos para impedir a homologação das ter-
contraditório”37, garantindo aos invasores ras, fato que já transitou em julgado há cin-
das terras indígenas contestações aos proce- co anos, ou seja, alcançou a instância defi-
dimentos demarcatórios, contrariando o dis- nitiva no processo judicial.41
posto no artigo 231 da Constituição Fede- Tendo já ultrapassado todos os trâmites
ral. Mas em Raposa/Serra do Sol todas as processuais necessários, inclusive com jul-
contestações administrativas interpostas fo- gamento do Superior Tribunal de Justiça fa-
ram julgadas improcedentes. vorável aos direitos territoriais dos povos
No entanto, em 20 de dezembro de 1996 indígenas Macuxi, Taurepang, Wapixana e
36
Raposa Serra do Sol: índios lutam há 30 anos pelo reconhecimento de suas terras. http://www.cir.org.br
37
Decreto 1.775/96.
38
Despacho nº 080, publicado no DOU de 24/12/96.
39
“Raposa Terra do Sol: Avanços e impasses burocráticos”.www.cir.org.br
40
Despacho n° 050 de 10/12/98, publicado no DOU 11/12/98.
41
“Conflitos em Terras Indígenas”. Relatório da VIII Caravana de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — 7 a 17 de outubro de 2003.
73
Direitos Humanos no Brasil 2003
42
Aqui eu mencionei na versão em inglês que se tivessemos uma nota do Lula falando isso seria bom...
43
“Conflitos em Terras Indígenas: Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados” VIII Caravana de Direitos, outubro
de 2003. Ver: http://www.camara.gov.br/internet/comissao . A Proposta de Emenda Constitucional do Senador Mozarildo Cavalcanti é a PEC
00038/1999 de 05/5/1999.
44
O ataque foi comandado pelo líder dos arrozeiros, Paulo César Quartieiro, juntamente com 100 indígenas dissidentes, contrários à homolo-
gação. Paulo César deu a ordem de invasão ao grupo, que retirou os funcionários do local sem encontrar resistência.
45
Comunicação eletrônica do CIR endereçada ao Centro de Justiça Global em 6 de janeiro de 2004.
46
Comunicação eletrônica do CIR endereçada ao Centro de Justiça Global em 8 de janeiro de 2004.
74
Capítulo V — A questão Indígena
Os atos criminosos dos “manifestantes”, posa/ Serra do Sol, mantendo os limites pro-
segundo O Conselho Indígena de Roraima postos na Portaria 820/98.
(CIR) foram decididos em reunião na aldeia n Garantir a participação direta dos po-
de Contão47 , no dia 29 de dezembro de 2003, vos indígenas na definição da política
na presença do líder dos arrozeiros Paulo indigenista.
César Quartieiro e confirmados em outra reu- n Garantir meios concretos e disponibi-
nião, dessa vez na Associação Comercial de lizar recursos públicos suficientes para o
Boa Vista, contando com a ilustre presença exercício e a implementação dos direitos
do vice-governador, Salomão Cruz. Em nota indígenas
emitida à imprensa, o governador não se n Que os direitos dos povos indígenas
posicionou contra as “manifestações”.48 sejam tratados pelo Estado em sua inteire-
Até o momento ninguém foi preso pelo za, integralidade e universalidade e não ob-
seqüestro e, mesmo tendo sido surpreendi- jeto de políticas públicas fragmentadas e
dos em flagrante, a Polícia Federal abriu dois desarticuladas.
inquéritos para investigar o crime.49 n Criação de mecanismos de diálogo e
A situação vivida hoje na Terra Indíge- articulação entre os diversos setores do Es-
na Raposa/Serra do Sol é fruto, primeira- tado e da sociedade civil, com destaque para
mente, da organização e consciência dos in- as organizações indígenas, mecanismos es-
dígenas que lutam por seus direitos. Isto tes que produzam os elementos necessários
porque, não fosse a mobilização destas co- à formulação de políticas públicas e de dis-
munidades, a situação já estaria resolvida, e positivos eficazes de controle social de sua
a reserva provavelmente seria hoje uma gran- execução, como vêm sendo propostos por
de fazenda de soja. um amplo espectro de forças nas figuras de
Em segundo lugar, o recrudescimento da um conselho de política indigenista, de uma
violência e manobras políticas — que nos re- conferência dos povos indígenas e da apro-
metem à era pré-revolucionária de 1930 — vação do Estatuto dos Povos Indígenas.
significam, em boa medida, a averbação do n Garantir o cumprimento da Constitui-
atual governo às injustiças sociais cujo com- ção Federal, artigos 231 que afirma que são
prometimento sempre foi o de combater. A reconhecidos aos índios sua organização
atuação omissa do governo Lula em relação social, costumes, línguas, crenças e tradi-
à não homologação das terras50 , põe em dú- ções, e os direitos originários sobre as terras
vida a esperança de uma resolução em con- que tradicionalmente ocupam, competindo
sonância com a os preceitos constitucionais. á União demarcá-las, proteger e fazer res-
peitar todos os seus bens; artigo 67 (dispo-
sições transitórias ) que estabelece a União
RECOMENDAÇÕES o dever de concluir e demarcar as terras in-
dígenas no prazo de cinco anos a partir da
n Homologação da terra indígena Ra- promulgação da Constituição.
47
Aldeia dissidente para onde foram levados os missionários seqüestrados.
48
Idem.
49
Nota da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal http://www.adpf.org.br/FrmImpNoticia.asp?cod_noticia=5771
50
Até a conclusão desse capítulo em 13 de abril de 2004, a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol ainda aguardava homologação.
75
Direitos Humanos no Brasil 2003
76
CAPÍTULO VI — TRABALHO ESCRAVO
1
As informações sobre a experiência de Cila e Ana Cléia são baseadas em entrevista realizada pelo Centro de Justiça Global em 29 de setembro
de 2003, Marabá-PA
2
Empregadores normalmente não lidam diretamente com os trabalhadores, e sim os contratam através de recrutadores conhecidos como gatos.
3
Uma medida de terra correspondente a 27.225m2 no Pará; outras regiões medem alqueires diferentemente.
4
Estatísticas do Ministério do Trabalho mostram que, durante a inspeção na fazenda Cabaceira em setembro de 2003, 104 trabalhadores foram
encontrados, dos quais quarenta e um foram libertos.
5
Estatísticas do Ministério do Trabalho mostram que, durante a inspeção ocorrida na fazenda cabeceira em setembro de 2003, 104 trabalhado-
res foram encontrados, dos quais quarenta e um foram libertos.
77
Direitos Humanos no Brasil 2003
da trilha, e não havia nenhuma rua para res para desmatar áreas florestais, extraindo
chegar lá. O Grupo Móvel veio, mas só con- mogno e outros valiosos recursos naturais
seguiu chegar até onde era a parte boa. Até exportáveis, para converter a terra em pasto
lá eles acharam irregularidades, pessoas para gado ou em plantio de monoculturas
trabalhando sem carteira assinada. O Gru- rentáveis como a cana-de-açúcar. Os
po Móvel não chegou onde a gente estava. recrutadores, conhecidos como “gatos”, tra-
Os outros trabalhadores sabiam que nós es- balham para os fazendeiros procurando por
távamos lá embaixo na parte feia, mas não desempregados, quase sempre trabalhadores
falaram nada para o Grupo Móvel — eles desesperados das regiões mais pobres do
estavam com muito medo”. Cila e Ana Cléia país, e os seduzindo a trabalhar nas fazen-
fugiram, deixando a fazenda às 3 horas da das com promessas de altos salários e boas
madrugada e andando vinte quilômetros a condições de trabalho.8 Mas logo que os tra-
pé até alcançarem Marabá, onde reportaram balhadores chegam nos seus distantes locais
suas experiências para a Comissão Pastoral de trabalho, descobrem condições muito di-
da Terra (CPT).6 ferentes daquelas que foram prometidas.
A história de Cila e Ana Cléia não é um De acordo com Marcelo Campos, asses-
caso isolado, mas um exemplo característi- sor da coordenadora da Secretaria de Inspe-
co de um problema persistente. De fato, so- ção do Trabalho do Ministério do Trabalho
mente no ano de 2003, o Grupo Móvel li- e Emprego: “o método de implementação
bertou 5010 trabalhadores de centenas de da moderna escravidão é extremamente cruel
fazendas.7 e ainda mais nefasto do que aquele repre-
No exemplo clássico de escravidão mo- sentado pelo antigo modelo. Agora, o escra-
derna, prósperos fazendeiros — geralmente vo já não mais se constitui em mercadoria,
em remotas áreas rurais — empregam tra- não possui valor em si mesmo para que seu
balhadores em condições degradantes e pe- ‘dono’ o negocie nos mercados e feiras. Não
rigosas, com pouca ou nenhuma compensa- é mercadoria e ao mesmo tempo não possui
ção. Endividados com seus empregadores qualquer elemento de cidadania. Constitui-
através dos custos de alimentação e de su- se, antes de tudo, em objeto para consumo
primentos de trabalho (roupas, ferramentas imediato e posterior descarte. Assim, nenhu-
etc.), os trabalhadores não possuem habili- ma preocupação deve ser a ele dirigida: o
dades ou meios para partir. Em um esquema que come, o que bebe, onde dorme, sua saú-
típico, empregadores contratam trabalhado- de. Nada disso interessa aos novos escravo-
6
Em 10 de dezembro de 2003, o Governo brasileiro premiou a CPT com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria Erradicação da
Escravidão (Instituição).
7
De acordo com as informações da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, 154 propriedades foram
inspecionadas em 2003 e 5010 trabalhadores foram libertados. Em outubro de 2003, o Ministério Público do Trabalho do Pará promoveu uma
ação contra a companhia Lima Araújo Agropecuária — dona de duas propriedades, sendo uma delas (a Estrela de Maceió) citada na denúncia
da CPT. Esta ação busca R$ 22 milhões de indenizações e tem o propósito de servir de aviso aos reincidentes. As duas propriedades foram
inspecionadas quatro vezes entre 1998 e 2002, durante estas visitas foram encontrados um total de 180 trabalhadores em condições degradantes
de trabalho. Ver Trabalho Escravo no Sul do Pará: Pedido de 22 Milhões de Indenização, documento elaborado pela CPT em 25 de outubro de
2003.
8
O Maranhão e o Piauí, estados extremamente pobres das regiões Norte e Nordeste, são a origem do maior número de trabalhadores escravos.
Ver: Campos, Marcelo Gonçalves. O trabalho escravo e as políticas governamentais para sua erradicação, Ministério do Trabalho e Emprego,
Secretaria de Inspeção do Trabalho; Brasília, 2003.
78
Capítulo VI — Trabalho Escravo
9
Campos, Marcelo Gonçalves. Op. Cit., p. 4-5.
10
Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo, disponível em: http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/
trabalho_forcado/brasil/iniciativas/plano_nacional.pdf, último acesso em 21 de janeiro de 2004.
11
Governo e OIT lançam campanha de combate ao trabalho escravo (Government and WLO Launch Campaign to Combat Slave Labor) Carta
Maior, 22 de outubro de 2003, disponível em: http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=curtas&id=2876, último acesso em 21
de janeiro de 2004.
12
De acordo com as estatísticas da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de setembro de 2003, 149 casos de condições de trabalho forçado ou
exploratório foram reportados no Pará, 4 em Rondônia, 22 no Tocantins, 23 no Mato Grosso, 30 no Maranhão, 5 na Bahia, e 4 no Rio de Janeiro.
Vide: Somando-se aos estados já citados pela CPT, a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho registrou casos em São
Paulo e Mato Grosso do Sul. É importante apontar que o que é referido como um “caso”, trata-se da acusação contra um empregador em
particular, o que muitas vezes envolve vários trabalhadores. Conforme os dados desta Secretaria, o Grupo Móvel libertou cerca de 745 trabalha-
dores em uma única fazenda no ano de 2003.
13
Estatísticas do Ministério do Trabalho, Quadro das Operações de Fiscalização Móvel 2003 Geral.
79
Direitos Humanos no Brasil 2003
“A ineficácia das sanções é provada pela de três trabalhadores rurais, que em conjun-
reincidência: não obstante as fiscalizações to declararam: “Que o gato não gostava de
realizadas em 1996, 1997 e 1998, as multas deixar os trabalhadores saírem da fazenda.
aplicadas nessa oportunidade e mesmo os Que o cozinheiro, por ordem do gato, ame-
processos criminais encaminhados, as fazen- açava os trabalhadores, dizendo que se al-
das Primavera (município de Curionópolis- gum trabalhador reclamasse ou criasse pro-
PA), Boca Quente (Bannach-PA), Forkilha blema “mandaria bala”, pois sempre andava
(Santa Maria das Barreiras-PA), Estrela de armado. Diante das condições impostas, os
Maceió (Santana do Araguaia-PA) foram de depoentes resolveram fugir da fazenda... Em
novo flagradas nos meses seguintes, com Marabá, vieram até a CPT, pois o denunci-
peões em regime de trabalho escravo. A fa- ante Domingos já conhecia a CPT e por duas
zenda Maciel II, flagrada em abril de 99, é vezes foi resgatado pelo grupo móvel”.16
quase vizinha da fazenda Flor da Mata, No mesmo período em que o Grupo
flagrada em 1997 pelo Grupo Móvel. Seu Móvel realizou centenas de operações e li-
caso teve grande divulgação na mídia naci- bertou milhares de trabalhadores, — 1995-
onal e regional. Isso não impediu, porém, 2003 — pouquíssimos empregadores foram
que, cinco meses depois, a fazenda São Sal- responsabilizados judicialmente por tais ati-
vador, no mesmo município, fosse flagrada tudes. Nem mesmo o Governo atual man-
pelo Grupo Móvel também por prática de tém uma base de dados integrada que possi-
trabalho escravo”.14 bilite o rastreamento das ações jurídicas e
Uma das fazendas citadas neste infor- administrativas que por ventura as inspeções
mativo da CPT — a fazenda Flor da Mata do Ministério do Trabalho possam dar iní-
— foi novamente flagrada violando leis tra- cio. Planos para o desenvolvimento de algo
balhistas em outubro de 2003, quando o Gru- similar constam do Plano Nacional.
po Móvel libertou cinqüenta trabalhadores Apesar da estrutura legal brasileira pre-
da propriedade.15 ver punições para aqueles que são conside-
Reincidência não é um problema só para rados culpados pela utilização de trabalho
os empregadores, mas também para os pró- escravo, as leis potencialmente mais dissu-
prios trabalhadores — geralmente tão po- asivas — as que envolvem penalidades cri-
bres que, mesmo sabendo dos riscos de se- minais, incluindo encarceramento — rara-
rem explorados, acabam aceitando novamen- mente são invocadas. O artigo 149 do Códi-
te estes empregos. De fato, reclamações go Penal Brasileiro estipula que é crime con-
listadas pela CPT assinalam que trabalha- tra a liberdade individual “reduzir alguém a
dores individuais são assediados repetida- condição análoga à de escravo”, com pena
mente. Por exemplo, em 23 de junho de de dois a oito anos de reclusão e multa17 e o
2003, a CPT-Marabá registrou a reclamação artigo 207 estabelece o crime de “aliciar tra-
14
Trabalho Escravo no Brasil, até quando? Denúncia publicada pela CPT, disponível em http://www.cptnac.com.br/
?system=news&action=read&id=1108&eid=49 , último acesso em 12 de abril de 2004.
15
Estatísticas do Ministério do Trabalho, Quadro das Operações de Fiscalização Móvel 2003 Geral.
16
Depoimento de Shirlei Sampaio, João Elói dos Santos e Domingos Dionísio Santana à CPT-Marabá em 23 de junho de 2003.
80
Capítulo VI — Trabalho Escravo
17
Código Penal Brasileiro, Cap. VI, § I.
18
Id., Tit. IV.
19
Entrevista com Marcelo Campos, concedida ao Centro de Justiça Global, em 1º de dezembro de 2003. De acordo com campos, a visão
majoritária é que os tribunais federais são o que possuem competência para atender tais pedidos, apesar do Supremo Tribunal Federal (a mais
alta corte do país) ainda não ter emitido um pronunciamento sobre a questão.
20
Passo a passo: Aspectos jurídicos do combate ao trabalho forçado, Consultor Jurídico, 9 de junho de 2003, disponível em http://
conjur.uol.com.br/textos/19396/impressao/, último acesso em 21 de janeiro de 2004.
21
Devido a ação pública ser de uma natureza coletiva, a indenização de R$60,000 foi paga a um fundo coletivo dos trabalhadores, o Fundo de
Amparo ao Trabalhador (FAT), e não às vítimas individuais, conforme a lei 7.347/85. A decisão que requisita os danos coletivos não impossi-
bilita que reivindicações individuais de reparação dos danos que surjam dentro das mesmas circunstâncias.
81
Direitos Humanos no Brasil 2003
julgar ações por danos morais, até o Supre- quado, sem alimentação suficiente e ade-
mo pacificar a questão. Hoje não há mais quada, sem condições de higiene e saúde
dúvidas. Foi possível dar sustentação jurí- no trabalho, sem água potável e material
dica à aplicação de dano punitivo e de primeiros socorros, contrariando, enfim,
24
reparatório (coletivo e individual) contra variado regramento legal.” (grifo no ori-
empregadores que se utilizam da moderna ginal)
escravidão”.22
Embora as condenações nas cortes tra- O relatório da inspeção do Grupo Mó-
balhistas determinando multas por danos vel inclui comentários dos agentes de ins-
morais sejam poucas e eventuais, presenci- peção, extratos de relatos dos trabalhadores,
amos diversos casos notáveis desta natureza e fotografias do local. Nas suas observações,
em 2003. Em 6 de novembro de 2003, o juiz os agentes apontaram que:
do trabalho Manoel Lopes Veloso Sobrinho,
de Barra da Corda, Maranhão, condenou Durante a inspeção constatamos que os
Inocêncio de Oliveira, deputado federal do trabalhadores estavam alojados em barracos,
estado de Pernambuco, a pagar uma multa sendo alguns de madeira, outros de taipa,
civil de R$530,000 por danos morais devi- cobertos de palha, de chão batido, sem prote-
do às condições de trabalho encontradas em ção lateral, sem instalações sanitárias, em
sua propriedade, Fazenda Caraíbas, zona precárias condições de higiene. A água utili-
rural do Maranhão.23 A ação foi conduzida zada pelos trabalhadores, sem qualquer trata-
pelo Ministério Público do Trabalho, e a mento, era retirada de cacimbas e acondicio-
multa — se for mantida — será paga ao FAT. nada em recipientes reaproveitados de pro-
Em sua sentença, o juiz Veloso Sobri- dutos ignorados e impróprios para o uso do-
nho se refere a inspeção do Grupo Móvel na méstico. Em alguns barracos os trabalhado-
propriedade de Inocêncio Oliveira em mar- res se serviam de água retirada de açudes25 .
ço de 2003: Devemos destacar que para chegar a um
dos alojamentos (barraco) onde os trabalha-
“Confirmou a denúncia de exploração de dores se encontravam, inclusive, o adoles-
trabalhadores em condições subumanas, cente J.R.S.S.26 , de 15 anos, foi necessário
análogas à de escravo, sem alojamento ade- que os Auditores-Fiscais e Policiais Fede-
22
Lei na selva Juiz combate escravagismo com rigor no interior do Pará, Consultor Jurídico, 15 de dezembro, disponível em http://
conjur.uol.com.br/textos/15661/, último acesso em 21 de janeiro de 2004 (transcrição da entrevista realizada pelo jornalista Luiz Orlando
Carneiro do Jornal do Brasil).
o
23
Processo N 00611-2002-010-16-00-0, Vara do Trabalho de Barra do Corda/MA. Em uma ação paralela, o Juiz Veloso sentencia Inocêncio
de Oliveira a assegurar o respeito dos direitos trabalhistas básicos ou o risco de multas adicionais de R$1000 por o dia. Processo No. 00611-
2002-010-16-0, Vara do Trabalho de Barra do Corda/MA. Ver Inocêncio é condenado por trabalho escravo, Folha de São Paulo, Nov. 8, 2003
p. A13.
24
Sentença, Processo No. 00611-2002-010-16-00-0, Vara do Trabalho de Barra do Corda/MA, parágrafo 13.
25
Fazenda Caraíbas, Relatório de Fiscalização no Estado do Maranhão, 19 a 27/03/, (daqui em diante usaremos “Relatório de Fiscalização”),
p. 6. As seções subseqüentes do relatório incluem o testemunho dos trabalhadores indicando que o recipiente usado armazenar a água que eles
bebiam estavam impressas as palavras “não reutilizar o recipiente”. Veja os depoimentos do gato Vicente da Silva Sousa e da cozinheira
Francisca da Cruz Pereira Trindade; Relatório de Fiscalização, pp.8-9.
26
O nome do adolescente foi reduzido às iniciais, em conformidade com os regulamentos para a proteção da privacidade dos menores de 18
anos.
82
Capítulo VI — Trabalho Escravo
27
Relatório de Fiscalização, p. 7.
28
Id.
29
Depoimento de Edilson Diniz Ferreira, Relatório de Fiscalização, p. 13.
30
Depoimento de Jeremias Marcos da Silva, Relatório de Fiscalização, p. 10; Ver também, Depoimento de Vicente da Silva Sousa, Relatório de
Fiscalização, p. 10. Uma justificativa comum para que não se penalize fazendeiros pelas práticas de exploração de trabalho escravo em sua
propriedades é que os latifundiários não seriam conscientes de tais condições de trabalho em suas propriedade, pois delegam a responsabilida-
de para a operação do fazenda ao capataz. Neste caso, o juiz Veloso sustenta que “Resta inócua a tese de inexistência de vínculo empregatício
entre os litigantes, diante mesmo de o réu ter reconhecido a relação empregatício com registros e pagamento de verbas de rescisão pertinentes.
Fato ocorrido após notificação realizada pela fiscalização (fls. 169/243). Os chamados ‘gatos’ ou empreiteiros apenas agiram em nome do
proprietário da fazenda, sendo este o empregador de fato e de direito.” Vide Sentença, ACP-00611-2002-010-16-00-0, Vara do Trabalho de
Barra do Corda/MA, no 17. Grifo no original.
31
Sentença, ACP-00611-2002-010-16-00-0, Vara do Trabalho de Barra do Corda/MA, no ¶13. (“A verificação “in loco” realizada pela fisca-
lização confirmou a denúncia de exploração de trabalhadores em condições subumanas, análogas à de escravo, sem alojamento adequada,
sem alimentação suficiente e adequada, sem condições de higiene e saúde no trabalho, sem água potável e material de primeiros socorros...”)
(Grifo no original)
32
Discurso de Inocêncio de Oliveira proferido na Câmara dos Deputados Federais em 11 de novembro de 2003. Disponível em http://
www.serratalhada.net/noticias/mostranoticia2.asp?noticia=noticia7.asp, último acesso em 21 de janeiro de 2004. Deve-se frisar que a decisão
do juiz Veloso sobrescreveu (e rejeitou) especificamente os argumentos utilizados por Inocêncio de Oliveira em sua defesa. Ver Sentença, ACP-
00611-2002-010-16-00-0, Vara do Trabalho de Barra do Corda/MA, em pp. 7-12, 17, 19.
33
Denúncia, PGR N.º 1.00.000.009077/-2002-60, do Ministério Público Federal.
83
Direitos Humanos no Brasil 2003
ques de Andrade, um parente de Inocêncio lhador rural que tinha escapado da fazenda
de Oliveira, por violações dos artigos 207, Espírito Santo em setembro de 1989. Esta
203 e 149 do Código Penal.34 decisão marcou a primeira concessão de in-
Inocêncio de Oliveira não foi a única fi- denização a uma pessoa pelos danos sofri-
gura pública a ser comprometida por explo- dos enquanto vítima de trabalho escravo na
ração de trabalhadores rurais em 2003. Jor- história do Brasil.38
ge Picciani, Presidente da Assembléia Apesar da possibilidade de censura a fi-
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro guras públicas como Inocêncio de Oliveira
(ALERJ), e Leonardo Picciani, filho de Jor- e Jorge Picciani, e a disponibilidade da pro-
ge Picciani e Deputado Federal pelo Estado moção de ações individuais por danos re-
do Rio de Janeiro, são respectivamente o presentar um avanço contra a impunidade,
presidente e o tesoureiro da companhia deve-se enfatizar que a resolução de muitos
Agropecuária Vale do Seriá S.A., que é pro- casos por “acordo” com o Governo e a pos-
prietária da Fazenda Agrovas em São Félix sibilidade de recursos continuam a proteger
do Araguaia, Mato Grosso. Em junho de poderosos empregadores das conseqüências
2003, o Grupo Móvel inspecionou a Fazen- do desrespeito às leis destinadas a proteger
da Agrovas e relatou que a vasta maioria dos trabalhadores.
cinqüenta e seis empregados encontrados O Plano Nacional traça um conjunto
trabalhando na Fazenda estava sujeita a um multifacetado de medidas destinadas a pôr
regime de “servidão por dívida”.35 Durante fim ao ciclo de impunidade. Estas medidas
a inspeção, o Grupo Móvel regularizou os são descritas em seis categorias gerais: Ações
documentos trabalhistas de cinqüenta e cin- Gerais; Melhorias na Estrutura Administra-
co trabalhadores e libertou trinta e nove.36 tiva do Grupo de Fiscalização Móvel;
De acordo com matéria publicada pela im- Melhorias na Estrutura Administrativa da
prensa, em 21 de agosto de 2003, o Minis- Ação Policial; Melhorias na Estrutura Ad-
tério Público Federal promoveu ações con- ministrativa do Ministério Público Federal
tra Jorge Picciani no Tribunal Regional Fe- e do Ministério Público do Trabalho; Ações
deral.37 Específicas para Promoção de Cidadania e
Além das denúncias de figuras públicas, Combate a Impunidade; e Ações Específi-
o ano de 2003 testemunhou um outro passo cas de Conscientização, Capacitação e Sen-
na luta contra o trabalho escravo: em 8 de sibilização.
julho de 2003, a Câmara dos Deputados Entre as Ações Gerais, o Governo tem
votou para conceder R$ 52.000 de indeni- como objetivo aprovar a PEC nº 438/01, uma
zação por danos a José Pereira, um traba- proposta de emenda constitucional que es-
34
Id., p. 10-11.
35
Jorge Picciani é denunciado por exploração de trabalho escravo, Tribuna da imprensa online, 22 de agosto de 2003.
36
Estatísticas do Ministério do Trabalho, Quadro das Operações de Fiscalização Móvel 2003 Geral.
37
Jorge Picciani é denunciado por exploração de trabalho escravo, Tribuna da imprensa online, 22 de agosto de 2003.
38
Em 1992, a CPT e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) registraram uma petição na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) em face do governo brasileiro, por violações de direitos humanos cometidas
contra o trabalhador José Pereira. O Estado e os peticionários concordaram com uma solução amigável da reivindicação, que incluiria o
reconhecimento do Brasil de que existe trabalho escravo no país e um compromisso para combater o problema, assim como um acordo para
compensar a vítima José Pereira. De acordo com a nota divulgada pela CPT a indenização de R$ 52.000 foi aprovada pelo Senado em 15.07.03,
e pela Câmara em 08.07.03.
84
Capítulo VI — Trabalho Escravo
39
O Artigo 243 da Constituição Brasileira já fornece subsídios para a expropriação — sem compensação — e a redistribuição das terras
usadas no cultivo de drogas psicotrópicas. A emenda proposta expandiria o artigo de modo que as terras em que o trabalho escravo fosse
praticado seriam igualmente sujeitas às mesmas conseqüências. De acordo com um artigo publicado no Folha de São Paulo em 8 de novem-
bro de 2003, a emenda proposta já havia passado no Senado, ver Lista oficial vai mostrar empresas acusadas de explorar escravidão, p. A13,
era para ser votada pela Câmara até o final do ano. Ver Trabalho escravo: Cidade de sul do Pará terá primeira vara em 2004, Revista
Consultor Jurídico, disponível em http://conjur.uol.com.br/textos/23142/, último acesso em 21 de janeiro de 2004.
40
Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo, Ações Gerais, disponível em http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/
brasilia/trabalho_forcado/brasil/iniciativas/plano_nacional.pdf, último acesso em 21 de janeiro de 2004.
41
Lista oficial vai mostrar empresas acusadas de explorar escravidão, Folha de S. Paulo, Nov. 8, 2003; Trabalho escravo: Cidade de sul do
Pará terá primeira vara em 2004, Revista Consultor Jurídico, disponível em http://conjur.uol.com.br/textos/23142/, último acesso em 21 de
janeiro de 2004.
42
Em 10 de dezembro de 2003, o Governo brasileiro premiou Francisco Fausto com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria
Erradicação da Escravidão — Individual.
43
Trabalho Escravo: Francisco Fausto defende penas severas para infratores. Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2002, disponível
em http://conjur.uol.com.br/textos/12642/, último acesso em 21 de janeiro de 2004.
44
Ver Nota Prêmios de DH para CPT, documento distribuído pela CPT em 8 de dezembro de 2003.
85
Direitos Humanos no Brasil 2003
86
CAPÍTULO VII — DISCRIMINAÇÃO RACIAL
1
NOGUEIRA, Oracy: “Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem: Sugestão de um quadro de referência para a interpretação
do material sobre relações raciais no Brasil”, in O. Nogueira, Tanto Preto quanto Branco: Estudo de Relações Raciais. São Paulo. P. 79.
87
Direitos Humanos no Brasil 2003
Conferência da ONU sobre o Racismo, Xe- pelas universidades. Além disso, tramita tam-
nofobia e Outras Formas de Intolerância, bém no Congresso Nacional um projeto de
realizado em Durban, na África do Sul.2 lei que prevê reserva de 20% das vagas de
Com o fortalecimento da pressão da so- concursos públicos e das universidades pú-
ciedade civil, foram então instituídas, em blicas e particulares para a população negra.6
setembro de 2001, cotas de 20% para ne- De maneira geral, as políticas de ação
gros na estrutura institucional do Ministério afirmativa no Brasil têm-se concentrado na
do Desenvolvimento Agrário e do Instituto área da educação, através de cotas para ne-
Nacional da Colonização Agrária (Incra), e gros no ensino superior.6 Segundo informa-
em dezembro do mesmo ano determinado a ções da Secretaria Especial de Políticas de
contratação de 20% de negros, 20% de mu- Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e das
lheres e 5% de deficientes físicos para car- universidades, atualmente existem pelo me-
gos do Ministério da Justiça, devendo o nos oito instituições públicas em que as co-
mesmo ocorrer com as empresas terceiriza- tas foram implementadas ou estão em fase
das contratadas por esses órgãos.3 A partir de implementação: a Universidade do Esta-
de 2002, o Ministério das Relações Exterio- do da Bahia, Universidade do Estado do Rio
res decidiu que seriam concedidas vinte bol- de Janeiro, Universidade de Brasília e a
sas de estudo federais a “afro-descendentes” Universidade Federal do Paraná.7 Em São
para o concurso de admissão ao Instituto Rio Paulo, há dois projetos tramitando na As-
Branco.4 E, em 13 de maio de 2002, foi cri- sembléia Legislativa, um contra e outro a
ado também o Programa Federal de Ação favor da implantação do sistema de cotas nas
Afirmativa com fins de desenvolver inicia- universidades paulistas (USP, Unesp e
tivas no plano educacional. Unicamp).8
O ano de 2003 destaca-se por algumas No entanto, essas medidas sempre são
conquistas e eventos importantes para a his- acompanhadas por ações que questionam a
tória do movimento negro no Brasil. Dentre forma de definição9 ou tentam desclassifi-
elas destacamos a adoção de um sistema de car as políticas públicas de ação afirmativa,
cotas federal5 , que estabelece uma cota de normalmente alegando o prejuízo que tais
20% para negros que tiverem as melhores medidas poderiam causar a membros de
notas acima do mínimo exigido por matéria outros grupos. Esse foi o caso da Universi-
2
Ainda que Durban tenha sido eleito como marco institucional para a entrada definitiva do negro na agenda nacional, algumas outras vitórias
relevantes já tinham sido conquistadas anteriormente, como, por exemplo, a criação por decreto presidencial de um Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI) para desenvolver políticas de valorização e promoção da população negra, no ano de 1995.
3
Ministério do Desenvolvimento Agrário: Portarias nº 33 de 08 de março de 2001, n° 202 de 04 de setembro de 2001 e a de n° 222 de 26 de
setembro de 2001. Ministério da Justiça: Portaria n. 1156 do MJ, de 20 de dezembro de 2001.
4
Ver, por exemplo, Edital N. 1, 2003 – IRBr, de 13 de maio de 2003 no qual o Instituto Rio Branco e o Conselho Nacional do Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) estabelecem normas e dão abertura às inscrições para o Programa de Ação Afirmativa – “Bolsa-Prêmio de
Vocação para a Diplomacia”.
5
Programa Diversidade na Universidade, Lei 10.558, de 13 de novembro de 2002.
6
Segundo dados do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes e informações obtidas pela Folha de S.Paulo são
atualmente cerca de 208 iniciativas governamentais e não-governamentais de ação afirmativa para negros, sendo que a área de educação abarca
44,2% destas iniciativas. Folha Online – Educação – 19/01/04.
7
UnB Agência. Ver: http://www.unb.br/acs/acsweb/
8
Idem.
9
No Brasil, as universidades adotam a “autodeclaração” como critério para definir cor ou raça.
88
Capítulo VII — Discriminação Racial
dade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Não cabe aqui uma discussão de mérito
Em maio de 2003, a Uerj adotou um siste- sobre a eficácia e efeitos da política de co-
ma de cotas que garantia 40% das vagas para tas, mas sim atentar para o fato de que, ain-
negros e pardos e 50% para estudantes da da que viável, a concentração de esforços
rede pública de ensino. Esse sistema provo- exclusivamente nesta área, como resposta às
cou uma onda de ações na Justiça alcançan- reivindicações da comunidade negra no Bra-
do inclusive o Supremo Tribunal Federal sil tem sido insuficientes.
(STF) com uma ação movida pela Confede- Uma das deficiências de processos de
ração Nacional dos Estabelecimentos de inclusão concentrados somente na área edu-
Ensino (Confenen).10 Mas, em agosto de cacional de nível superior reside no fato de
2003, a Assembléia Legislativa do Rio de que esta não responde à maioria das deman-
Janeiro alterou as regras do sistema de cotas das da população negra, pois a maior parce-
que diminuiu a cota para negros para 20% e la dela mal chega a completar o segundo
para alunos da escola pública para 20%. Em grau.
decorrência das mudanças instituídas, a ação Além disso, o preconceito racial vigen-
da Confenen perdeu validade e foi arquiva- te abarca muito mais do que a falta de inclu-
da.11 Há, porém, um detalhe interessante: são no sistema de ensino, e se mostra quase
no caso da Universidade do Estado do Rio que diariamente nas notícias das páginas
de Janeiro, de acordo com a nova legisla- policiais de todo o país.13 O negro e o mes-
ção, os pardos não seriam contemplados por tiço sofrem terrivelmente os abusos das au-
tal política. Dessa forma, em um país predo- toridades policiais, ainda mais quando se
minantemente mestiço, bem como em uma agregam à sua condição racial, outros fato-
unidade da federação com alto grau de mis- res de cunho social.
cigenação — cujo percentual se soma ao dos Ainda, a falta de iniciativas frente a tal
negros, para fins de representação, esta ca- concepção ocasiona sérias distorções no co-
mada da população foi deixada de fora, sem tidiano dos negros, pois atos de racismo só
qualquer tipo de solução compensatória. são devidamente registrados como tais pe-
Assim foi também na Universidade Es- las autoridades quando entram em cena os
tadual de Mato Grosso do Sul, que instituiu adendos sociais que tanto confundem e di-
um sistema de cotas para negros e impediu ferenciam a concepção de preconceito no
76 inscrições para seu vestibular, alegando Brasil.14
que, de acordo com as fotografias, os candi- Um exemplo é o caso de preconceito
datos não cumpriam as exigências.12 racial do qual foi vítima o filho da emprega-
10
Kamel, Ali: “Sumiram com os Pardos”. O Globo, 11/02/04. P. 47.
11
Idem. A nova lei de cotas do Rio de Janeiro é a 4.151, de 4 de setembro de 2003. O veto aos pardos encontra-se no artigo 1º da referida lei.
12
Kamel, Ali: “Sumiram com os Pardos”. O Globo, 11/02/04. P. 47.
13
A maioria das vítimas de abusos policiais, bem como de ingresso ao sistema é de negros e pardos. Ver relatório “Execuções Sumárias no
Brasil”, Centro de Justiça Global, set. 2003.
14
Estes “adendos” sociais correspondem aos aspectos diferenciadores que determinam a intensidade do preconceito no Brasil. São, na verdade,
as características de prestígio, status econômico, reconhecimento, profissão, sobrenome, enfim, toda uma gama de atributos subjetivos que
determinam a perspectiva de quem sofre a violação racial no Brasil. Nos casos citados as vítimas deixam de ser negros e passam a operar com
as denominações dentista e filho de “X”, naturalizando, tacitamente, o crime quando cometido com um negro qualquer. Este último mal chega
às páginas dos jornais e, muitas vezes, também não é registrado como crime de racismo nos boletins de ocorrência policiais.
89
Direitos Humanos no Brasil 2003
15
Um bom exemplo disso é o estado do Pará. De acordo com os números do Conselho Municipal do Negro, de 1998 até este ano, 300 casos de
racismo foram enviados a julgamento, mas até agora não ocorreram condenações.
16
Carvalho, Jorge de: “Violência racial no Brasil: até quando?. Correio Braziliense, 01/3/04. Ver: www.correioweb.com.br.
90
Capítulo VII — Discriminação Racial
Esse é o caso dos remanescentes quilom- as vitórias concretas neste campo são im-
bolas, cujas terras têm sido reivindicadas por portantes, mas, na mesma escala, a profun-
longa data por seus descendentes. Nesse sen- didade com que se inserem os temas raci-
tido, em 20 de novembro de 2003, no Dia ais no cotidiano brasileiro, o que estimula
Nacional da Consciência Negra, o Governo novas exigências, melhores respostas e
do Estado do Pará anunciou a titulação de maior consciência frente toda a população
duas novas áreas quilombolas, localizadas brasileira.
nos municípios de Acará e Oriximiná.17
Este tipo de desdobramento representa
uma significativa vitória do passado, presen- RECOMENDAÇÕES
te e futuro da comunidade negra no Brasil,
uma vez que o reconhecimento jurídico des- n
Instituição de cotas para o ensino de
tas áreas como pertencentes aos descenden- segundo grau em colégios federais.
tes dos quilombolas retira a memória negra n Que o Governo Brasileiro edite Medi-
de seu obscuro ostracismo, devolvendo, ao da Provisória instituindo políticas de cotas
menos em parte, sua dignidade e reconheci- nas universidades brasileiras para afro-des-
mento como parte legítima do processo de cendentes, sem prejuízo dos pardos
formação social e nacional do Brasil. n Que seja instituída a obrigatoriedade
Lamentável, entretanto, é a lentidão com de cotas mínimas a serem preenchidas por
que esta regularização vem sendo feita. Isto negros ou pardos em empresas privadas.
porque apenas 36 dos 743 remanescentes de n Criação de um maior número de cur-
quilombos se encontram devidamente regu- sos noturnos nas universidades, haja vista a
larizados, decorridos quase 116 anos da abo- necessidade geralmente precoce de trabalho
lição da escravidão no Brasil. Esta para a população negra.
postergação é reflexo, em grande medida, n Que seja exigida a regulamentação da
do descaso oficial em relação à não-inclu- Lei nº 6.165/98, que dispõe sobre a Legiti-
são histórica do negro brasileiro e influi, mação de Terras dos Remanescentes das
decisivamente, na compreensão de seu pa- Comunidades dos Quilombos, em todo ter-
pel no cenário nacional.18 ritório nacional e o seu conseqüente cum-
Entre muitas polêmicas e alguns avan- primento.
ços, a comunidade negra e mestiça do Bra- n Que haja intensa fiscalização da ativi-
sil ainda tem muito o que reivindicar. A di- dade policial em relação a ocorrências onde
ferença, no entanto, reside nos instrumen- paire suspeita de racismo.
tos para tanto e na maior abertura propicia- n Que seja exigido aos operadores do Po-
da pela força que suas exigências têm der Judiciário uma especial atenção aos pro-
ganhado no plano federal. Assim, não só cessos de vítimas de discriminação racial.
17
“Governo paraense titula mais duas áreas quilombolas”. O Liberal, 21/11/03.
18
“Lula critica a “inércia branca” pela desigualdade racial”. O Liberal, 21/11/03.
91
Direitos Humanos no Brasil 2003
92
CAPÍTULO VIII — ORIENTAÇÃO SEXUAL
1
Comunicação eletrônica de Adamor Guedes, presidente da Associação Amazonense de Gays, Lésbicas e Transexuais para a Justiça Global, 19
de janeiro de 2003.
2
Idem.
3
Idem.
4
Comunicação eletrônica de Adamor Guedes, presidente da Associação Amazonense de Gays, Lésbicas e Transexuais a Anistia Internacional,
29 de janeiro de 2003.
5
Idem; veja também “Morte dentro do quarto,” em 28 de janeiro de 2003 e Comunicação eletrônica de Adamor Guedes, presidente da Associ-
ação Amazonense de Gays, Lésbicas e Transexuais a Anistia Internacional, 29 de janeiro de 2003.
6
Comunicação eletrônica de Adamor Guedes, presidente da Associação Amazonense de Gays, Lésbicas e Transexuais a Anistia Internacional,
29 de janeiro de 2003.
93
Direitos Humanos no Brasil 2003
7
Idem.
8
“Morte dentro do quarto,” A Crítica (Manaus – AM), 28 de janeiro de 2003.
9
“Morte dentro do quatro,” A Crítica (Manaus – AM) “Versão sobre a morte de assessor surpreende”, A Crítica (Manaus – AM), 28 de janeiro
de 2003.
10
Idem.
11
Idem.
12
Idem.
13
Relato extraído do relatório “Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003)”. Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros, Setembro de 2003.
94
Capítulo VIII — Orientação Sexual
14
Silvia Ramos é coordenadora da área de Minorias e Cidadania do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido
Mendes (CESeC/UCAM), no Rio de Janeiro.
15
O serviço Disque Defesa Homossexual/RJ foi um dos resultados da agenda comum de trabalho estabelecida no Centro de Referência contra
a Discriminação das Minorias Sexuais da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro
com as entidades de defesa dos direitos dos homossexuais no Estado do Rio de Janeiro e está em funcionamento desde janeiro de 1999.
16
Ver conceituação e histórico da expressão em Hate Crime Network (www.hate-crime.net). Para uma discussão sobre programas internacio-
nais de violência conjugal homossexual (same-sex patner abuse), ver Anti-Violence Project (www.lambda.org).
17
Ramos, Silvia. “Minorias e Prevenção da Violência”. Rio de Janeiro, 2002, http://www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/textos.asp
18
O golpe que consiste em adicionar tranqüilizantes e soníferos ao copo de bebida da vítima, que passa a colaborar com o criminoso entregando
cartões, chaves e pertences, virtualmente sem resistência e em muitos casos permanecendo desacordada por muitas horas após o golpe.
19
Ver conceituação e histórico da expressão em Hate Crime Network (www.hate-crime.net). Para uma discussão sobre programas internacio-
nais de violência conjugal homossexual (same-sex patner abuse), ver Anti-Violence Project (www.lambda.org).
20
Os casos de assassinatos denunciados demandam discussão mais cuidadosa, pois alguns deles estão associados ao tráfico de drogas. Mas,
mesmo nesses casos, a orientação sexual da vítima (bem como classe social, cor etc.) pode ter sido um fator importante para o crime.
21
Ramos, Silvia. “Minorias e Prevenção da Violência”. Rio de Janeiro, 2002, http://www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/textos.asp
22
A pesquisa se baseou na aplicação de um questionário de 43 perguntas (das quais, apenas 8 eram abertas) e teve como objetivo coletar o
máximo de dados durante um período de 3 horas. Foram preenchidos 468 questionários.
95
Direitos Humanos no Brasil 2003
23
GLBT e a sigla utilizada para Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros.
24
De acordo com o Grupo Arco Íris, a 8ª Parada do Orgulho GLBT do Rio de Janeiro, realizada no dia 29 de junho de 2003, reuniu cerca de 300
mil pessoas.
25
Política, direitos, violência e homossexualidade: 8ª Parada do Orgulho GLBT – Rio – 2003/Coord: Sérgio Carrara, Sílvia Ramos, Márcio
Caetano. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
26
Idem.
27
Idem.
28
Idem.
29
Idem.
96
Capítulo VIII — Orientação Sexual
30
Correspondência eletrônica encaminhada ao Centro de Justiça Global por Beto de Jesus, Coordenador do Instituto Edson Néris em 15 de abril
de 2004.
97
Direitos Humanos no Brasil 2003
98
CAPÍTULO IX — DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS
1
Of. JG/RJ 172/03, de 13 de dezembro de 2003.
2
Antes de Morrer, aluna ficou em cativeiro. Folha de S. Paulo, 12 de novembro de 2003.
99
Direitos Humanos no Brasil 2003
3
Pinheiro, Paulo Sergio e Mesquita Neto, Paulo. Direitos humanos no Brasil: perspectivas no final do século. In: Cinqüenta anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Pesquisas, n. 11. Fundação Konrad-Adenauer, 1998, p.57.
4
Pinheiro, Paulo Sergio e Mesquita Neto, Paulo. Id.
5
Passeata Contra a Violência Reúne 4000. Folha de S. Paulo, 23 de novembro de 2003.
6
Licença para matar. Cavallaro, James & Simões, Renato. Revista Caros Amigos, abril de 2002.
100
Capítulo IX — Defensores de Direitos Humanos
res ameaçados. Esse descaso do Estado re- Sem Terra (MST) e a intensificação do tra-
sultou, entre tantos outros, no assassinato balho da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
do juiz Alexandre Martins Filho, no dia 25 com a mobilização e organização dos traba-
de março de 2003, em Vila Velha, no Espíri- lhadores rurais, gerou uma ofensiva maior e
to Santo.7 mais violenta por parte dos latifundiários.
As ameaças contra o juiz eram de co- Entre 1985 e 1989, quando se encontra-
nhecimento das autoridades Federais e Es- va no auge de suas atividades, a União De-
taduais. Em julho de 2002, o Fórum Reage mocrática Ruralista (UDR), organização de
Espírito Santo e o Centro de Justiça Global latifundiários, tornou-se nacionalmente co-
já haviam denunciado ameaças de morte nhecida e as mortes no campo chegaram a
contra o juiz Alexandre Martins Castro Fi- 640, um recorde.10 Os fazendeiros, unidos
lho e seus companheiros Carlos Eduardo sob o pretexto de defender suas terras dos
Ribeiro Lemos e Rubens José da Cruz, no “invasores”, passaram a contratar pistoleiros
relatório “Crise de Direitos Humanos no para executar trabalhadores rurais. A Comis-
Espírito Santo: ameaça e violência contra são Pastoral da Terra (CPT) revela que, de
defensores de direitos humanos”8 , entregue, 1985 até 2000, 1.280 trabalhadores rurais
em mãos, ao então Presidente da República foram assassinados no Brasil.11
Fernando Henrique Cardoso. A partir da década de 90, o número de
O juiz Alexandre integrava uma Missão trabalhadores rurais assassinados por ano
Especial do Governo Federal que investiga- começa a diminuir. Isso ocorreu em função
va a ação do crime organizado e do grupo de uma mudança na ação dos fazendeiros,
de extermínio Scuderie Detetive Le Cocq no que passaram a ter como alvo principal li-
Espírito Santo. Foi assassinado depois que deranças de movimentos sociais que lutam
a Polícia Federal interrompeu a proteção que pela reforma agrária, como assinala a CPT.
lhe era oferecida.9 A impunidade é praticamente a regra ge-
Uma atenção especial deve ser dada aos ral nesses casos. Desses 1.280 assassinatos,
defensores de direitos humanos que atuam apenas 121 foram levados a julgamento. En-
nas áreas rurais. O conflito pela posse de tre os mandantes dos crimes, somente 14 fo-
terra no Brasil — travado entre latifundiári- ram julgados, sendo sete condenados. Foram
os e agricultores remonta longa data. No en- levados a julgamento quatro intermediários,
tanto, nos últimos vinte anos, o surgimento sendo apenas dois condenados. Entre os 96
do Movimento dos Trabalhadores Rurais executores julgados, 58 foram condenados.12
7
“Execuções Sumárias no Brasil (1997-2003)”. Centro de Justiça Global, Setembro de 2003.
8
Justiça Global et. al, “Crise de Direitos Humanos no Espírito Santo: ameaça e violência contra defensores de direitos humanos,” julho/outubro
2002.
9
No dia 10 de Outubro de 2002, o Presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Desembargador Alemer Ferraz Moulin, recebeu um
ofício do Delegado da Polícia Federal José Paulo Rubim Rodrigues, coordenador da “Missão Especial”, informando que “em razão do encer-
ramento da primeira etapa dos trabalhos desenvolvidos por essa Missão Especial no Espírito Santo, o Diretor Geral do Departamento de Polícia
Federal decidiu reduzir o efetivo da Força Tarefa, impossibilitando-nos de continuarmos oferecendo segurança aos juizes Alexandre Martins,
Carlos Eduardo Lemos e Rubens José da Cruz, após o dia 11 do corrente”. Of.no. 169 de 10 de outubro de 2002.
10
A revista Veja, de 26 de março de 2003., em matéria intitulada “Radiografia do conflito fundiário” narra o recrudescimento dos conflitos
fundiários.
11
Relatório sobre Crimes no Latifúndio. Comissão Pastoral da Terra e Outros. Agosto de 2003.
12
Relatório sobre Crimes no Latifúndio. Comissão Pastoral da Terra e Outros. Agosto de 2003.
101
Direitos Humanos no Brasil 2003
O Estado não reage nem mesmo quan- que debateu por quatro meses os pontos ne-
do a morte é anunciada. Nos casos de assas- cessários para a construção de uma política
sinatos de defensores de direitos humanos pública permanente para a defesa e prote-
que atuam nas áreas rurais, 90% das vítimas ção dos defensores de direitos humanos. O
haviam sido ameaçadas e reportaram suas Grupo contou com a participação de organi-
ameaças às autoridades competentes. Como zações de defesa dos direitos humanos, en-
não receberam proteção, acabaram sendo tre elas, a Justiça Global.
executadas. O resultado desse padrão de res- Dos trabalhos do Grupo, resultou uma
postas ineficientes do governo é o medo e a Coordenação Nacional sobre os Defensores
intimidação daqueles que levantam suas de Direitos Humanos15 , integrada pelo Cen-
vozes contra os abusos cometidos por inte- tro de Justiça Global, Terra de Direitos e
resses poderosos. Movimento Nacional de Direitos Humanos,
Na verdade, assédios e ataques aos de- como representantes da sociedade civil, e que
fensores de direitos humanos, bem como, a tem como incumbência implementar coor-
ausência de investigação de tais crimes de- denações Estaduais em seis Estados piloto
veriam ser submetidos a uma apuração ex- da federação. Os trabalhos resultaram ainda
tremamente rigorosa. Tais ataques, geral- na minuta de um Projeto de Lei16 que insti-
mente visam desviar a culpa e a atenção das tui a Proteção Especial para os Defensores
denúncias originais de violações dos direi- de Direitos Humanos e em um Protocolo de
tos humanos, prejudicar as investigações e Medidas para a Proteção dos Defensores de
silenciar os denunciantes. Direitos Humanos.
Em virtude de uma recente cobrança por Apesar de avanços no papel, essa Coor-
parte de algumas organizações de defesa dos denação Nacional ainda apresenta um fun-
direitos humanos, em torno da temática dos cionamento muito frágil, não tendo avança-
defensores de direitos humanos13 , o gover- do nem no que diz respeito à implementa-
no Brasileiro começa a tomar algumas ini- ção das Coordenações Estaduais17 , nem na
ciativas nessa área. proteção efetiva dos defensores de direitos
Em continuidade a uma discussão inici- humanos ameaçados. Não há dotação orça-
ada no final do governo anterior, em maio mentária específica para a Coordenação
de 2003, o atual Secretário de Estado dos Nacional e Estaduais, o que tem inviabiliza-
Direitos Humanos, Ministro Nilmário do em grande medida a sua implementação,
Miranda, instituiu um Grupo de Trabalho14 que previa em um primeiro momento via-
13
Em 2002, o Centro de Justiça Global lançou o Relatório Na Linha de Frente: defensores de direitos humanos no Brasil, 1997-2001. O Centro
de Justiça Global participou da Segunda Consulta Latino-Americana de Direitos Humanos, em 2002, na Guatemala, juntamente com a Comis-
são Pastoral da Terra, o Grupo Tortura Nunca Mais e o Cejil.
14
Portaria 66, 12/05/2003, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Presidência da República.
15
Resolução Nº 30 de 25 de junho de 2003, publicada no DOU em 24 de julho de 2003, pág.3.
16
O Projeto de Lei deverá ser apresentado pela Deputada Federal Iriny Lopes, integrante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados.
17
Um problema observado também em outra iniciativa do governo, desta vez em relação à tortura. A Campanha Permanente Contra a Tortura,
parceria entre o governo e o Movimento Nacional de Direitos Humanos, tem sido alvo de constantes críticas, justamente por sua atuação quase
que exclusivamente de “repasse” das denúncias, tornando-se ineficaz. Uma das questões apontadas no Relatório da Campanha refere-se justa-
mente à falta de dotação às Centrais Estaduais, inviabilizando boa parte do trabalho.
102
Capítulo IX — Defensores de Direitos Humanos
gens aos estados selecionados e a realização liciais Militares, as ameaças contra Ana se
de seminários de capacitação para policiais. intensificaram e ela teve de deixar a cidade
Outro ponto de fragilidade do programa do e o seu trabalho. O Centro de Justiça Global
governo é que a Secretaria de Estado de Di- solicitou proteção18 para a defensora de di-
reitos Humanos não tem atribuição sobre a reitos humanos, no entanto, até o momento
Polícia Federal (subordinada ao Ministério essa proteção ainda não lhe foi garantida.
da Justiça) e, muitas vezes, não tem conta- A vulnerabilidade em que se encontram
do com a sua colaboração para proteger de- Valdênia e Ana indica o quanto o governo
fensores ameaçados ou realizar investigações brasileiro ainda precisa avançar para a con-
isentas. solidação de um sistema eficaz de proteção
Cabe ressaltar que a primeira defensora e promoção dos defensores de direitos hu-
de direitos humanos a ser atendida pela Co- manos.19
ordenação Nacional, a advogada Valdênia
Paulino, teve de deixar o Brasil em novem-
bro de 2003 em decorrência da fragilidade RECOMENDAÇÕES:
da proteção que lhe foi oferecida. Valdênia
trabalha no Centro de Direitos Humanos de n Implementação efetiva da Coordena-
Sapopemba, na periferia de São Paulo. Em ção Nacional de Proteção e Promoção dos
mais de dez anos de trabalho tem enfrenta- Defensores de Direitos Humanos
do a corrupção e a violência policial na re- n Implantação das Coordenadorias Es-
gião. Essa não é a primeira vez que ela é taduais de Proteção e Promoção dos Defen-
obrigada a deixar o Brasil em decorrência sores de Direitos Humanos.
das ameaças. n Apresentação do Projeto de Lei que
Ameaçada de morte e sem proteção tam- institui proteção especial para os defensores
bém se encontra Ana Maria Santos, Presi- de direitos humanos
dente do Fórum de Direitos Humanos de n Dotação orçamentária específica para
Santo Antônio de Jesus, na Bahia, que teve as ações contempladas no “Protocolo de
a coragem de denunciar um grupo de exter- Medidas para a Proteção dos Defensores de
mínio formado por policiais militares que Direitos Humanos”.
age na região. Ana organizou a visita da n Garantir investigações isentas em to-
Relatora da ONU sobre Execuções Sumári- dos os casos de ameaças, intimidações ou
as, Asma Jahangir, em setembro de 2003, a assassinatos de defensores de direitos huma-
Santo Antônio de Jesus. Nesta reunião, a nos.
representante da ONU conversou com fami- n Cumprimento das medidas cautelares
liares de vítimas e sobreviventes desse gru- da Comissão Interamericana de Direitos
po de extermínio. Após a passagem da Humanos a respeito de defensores de direi-
Relatora, que resultou na prisão de dois Po- tos humanos ameaçados de morte.
18
Ofício JG/SP nº 46/03, encaminhado ao Secretário Nacional de Direitos Humanos.
19
Veja outros casos de defensores ameaçados de morte no capítulo Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos.
103
Direitos Humanos no Brasil 2003
104
CAPÍTULO X — PODER JUDICIÁRIO E IMPUNIDADE
1
“As críticas da Relatora da ONU”.Folha de S. Paulo, 10 de outubro de 2003 e “Relatora da ONU critica lentidão da justiça”.Folha de S. Paulo,
3 de outubro de 2003.
2
A recomendação da Relatora consta de seu Relatório sobre a visita ao Brasil, apresentado em março de 2004, durante as sessões da Comissão
de Direitos Humanos da ONU. Relatório disponível através do sítio http://193.194.138.190/pdf/chr60/7add3AV_F.pdf
105
Direitos Humanos no Brasil 2003
vem ter sua atuação pautada pelos princípi- dois fazendeiros acusados de serem os man-
os da transparência e publicidade, e ainda dantes do homicídio de João Canuto de Oli-
devem estar sujeitos a mecanismos sociais veira, presidente do sindicato dos trabalha-
de fiscalização. dores rurais de Rio Maria, estado do Pará,
Vale ressaltar que, não obstante outros em 1985. O “caso Canuto”, como ficou co-
fatores que contribuem para a impunidade nhecido, é emblemático da situação dos tra-
no país, o Poder Judiciário possui responsa- balhadores rurais nesta região do Brasil.3
bilidade direta e determinante sobre a im- A morte de João Canuto de Oliveira em
punidade, por não agir com a presteza, isen- 18 de dezembro de 1985 foi tão trágica quan-
ção e eficiência que lhe caberia nos casos in to previsível. Desde os anos 70, João Canuto
concreto que lhe são propostos. de Oliveira vivia com a sua esposa e seus
Vale enfatizar que quando se trata de seis filhos na região de Rio Maria, onde tra-
crimes relacionados a direitos humanos a balhava na fazenda de um grande latifundi-
impunidade que gozam os responsáveis é ário. Canuto era uma figura importante nas
potencializada, pois no pólo passivo das vi- reivindicações dos agricultores e contra as
olações estão, na grande maioria das vezes, ameaças e agressões dos fazendeiros da re-
pessoas que pertencem às camadas excluí- gião em um período de forte tensão entre
das da sociedade. fazendeiros e trabalhadores rurais.
O Poder Judiciário deve ser imparcial e João Canuto havia registrado queixa re-
célere, e deve visar efetivamente a punição lativa a ameaças de morte sofridas por ele
dos culpados de acordo com a lei, sobrepon- nos dias 12 e 13 de dezembro de 1985. Ne-
do o interesse coletivo ao individual. Afi- nhuma medida foi tomada para assegurar sua
nal, a justiça não escolhe apenas um lado, vida e sua integridade pessoal e ele foi as-
defender os direitos fundamentais dos cida- sassinado cinco dias depois com 18 tiros por
dãos é querer que todos, indistintamente, dois pistoleiros contratados por um grupo
sejam tratados da mesma forma e possam de fazendeiros locais.4
fruir da vida e da dignidade humana sem Mais de 500 trabalhadores rurais viaja-
exceção. ram de Rio Maria até a capital Belém (mais
Os casos relatados a seguir demonstram de 800 km) e acamparam em frente ao tri-
a necessidade de se ampliar o debate sobre bunal para acompanhar os dois dias de jul-
o desempenho do Poder Judiciário e gamento.
aprofundar a análise sobre a democratiza- Os réus Vantuir Gonçalves de Paula e
ção do sistema. Adilson Laranjeira, prefeito de Rio Maria à
época do crime, foram declarados culpados,
com as circunstâncias agravantes, por una-
JOÃO CANUTO DE OLIVEIRA, PARÁ nimidade; apenas dois votaram pelas
circunstancias atenuantes. O juiz os conde-
Nos dias 22 e 23 de maio de 2003 ocor- nou a 19 anos e 10 meses de prisão sob regi-
reu o julgamento, em Belém do Pará, dos me fechado.5
3
A equipe do Centro de Justiça Global acompanhou pessoalmente o julgamento em Belém do Pará nos dias 22 e 23 de maio de 2003.
4
Relatório da FIDH sobre missão ao Pará para acompanhar o julgamento do “Caso Canuto”, 2004, mimeo.
5
A sentença foi prolatada ao final do julgamento no qual estava presente a equipe do Centro de Justiça Global.
106
Capítulo X — Poder Judiciário e Impunidade
No entanto, o juiz decidiu deixar os con- assim como as ações deste governo contra o
denados em liberdade aguardando o resul- trabalho escravo através do Grupo Móvel,
tado da apelação por serem réus primários e que tem sido muito atuante no estado do
não possuírem antecedentes criminais, quan- Pará, a situação dos trabalhadores rurais sem
do poderia ter decretado a prisão logo após terra continua a se deteriorar: percebe-se cla-
a prolação da sentença, tendo em vista que ramente uma disposição do poder judiciário
os réus foram condenados por unanimida- em criminalizar o movimento dos trabalha-
de, com circunstâncias agravantes e com tes- dores sem terra, ao tempo em que os fazen-
temunhas do julgamento sendo ameaçadas deiros continuam a utilizar milícias priva-
de morte.6 das e atos de violência para conter as ocupa-
Além disso, tendo em vista que muitos ções de terras impunemente.
acusados pelo assassinato de Canuto se en- Os pistoleiros que assassinaram João
contram foragidos desde o início do proces- Canuto e os demais envolvidos no crime
so penal, existe ainda o risco de fuga dos permanecem impunes.
condenados.
Vale ressaltar que o mesmo juiz que pre-
sidiu este julgamento, Dr. Roberto Moura, VIGÁRIO GERAL, RIO DE JANEIRO
havia deixado em liberdade o Coronel Má-
rio Colares Pantoja e o major José Maria No ano em que completou dez anos da
Pereira de Oliveira, oficiais do exército con- chacina de 21 moradores da favela de Vigá-
denados pelo Massacre de Eldorado dos rio Geral, no final da tarde de 29 de agosto
Carajás a 255 e 144 anos de prisão, respec- de 1993, em que dezenas de homens
tivamente.7 encapuzados invadiram a favela para vingar
O benefício concedido aos acusados ge- a morte, na véspera, de quatro policiais mi-
rou um forte sentimento de impunidade, pela litares, resta evidenciada a absurda impuni-
ausência de punição efetiva mesmo 18 anos dade dos policiais militares responsáveis
depois do crime. A liberdade dos condena- pelo massacre.
dos deixa uma grande dúvida acerca da in- A morte dos PMs foi creditada a trafi-
dependência do sistema judiciário em rela- cantes de drogas de Vigário Geral, porém
ção aos fortes interesses locais. nenhum dos moradores mortos tinha víncu-
Não obstante quaisquer pontos positivos los com o tráfico. Entre as vítimas, estavam
do julgamento, notadamente a presença do sete membros de uma mesma família, tra-
Secretario Nacional de Direitos Humanos, balhadores e adolescentes.
Nilmário Miranda, que manifestou a dispo- Nove policiais militares acusados de te-
sição do governo federal em velar pelo bom rem participado da chacina de Vigário Geral
funcionamento das instituições judiciárias, foram absolvidos em julgamento realizado
6
A decisão foi determinada no mesmo momento da prolação da sentença, presenciada pela equipe do centro de Justiça Global.
7
Em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais foram executados pela polícia do estado do Pará. Esta chacina ficou conhecida como “Mas-
sacre de Eldorado dos Carajás”. Os 19 mortos eram integrantes da “Caminhada pela Reforma Agrária”, iniciada no dia 10 de abril daquele ano
por 1.500 famílias de trabalhadores rurais sem-terra.
107
Direitos Humanos no Brasil 2003
no dia 23 de julho de 2003, no 2º Tribunal foi quem levou o gravador aos acusados e
do Júri do Rio de Janeiro. A absolvição foi eles próprios gravaram a conversa em que
pedida pelo próprio Ministério Público, por- acusavam outros 19 policiais militares pela
que havia a suspeita de que a gravação, na chacina.11 Laranjeiras, na época eleito de-
qual os réus eram indicados como respon- putado estadual pelo PSB, entregou a fita
sáveis pelo crime, usada como prova para a ao então promotor do caso, o ex- Procura-
denúncia dos nove réus teria sido uma ar- dor Geral de Justiça do estado, José Muiños
mação para incriminá-los, inocentando ou- Piñeiro, que a considerou suficiente para
tros réus do processo.8 inocentar os acusados na primeira fase.
Para facilitar o julgamento do caso, o Com a decisão do juiz Noronha Dantas
processo foi dividido em duas fases. Na pri- em 23 de julho de 2003, a segunda parte do
meira, que ficou conhecida como “Vigário processo — Vigário Geral II — foi encerra-
Geral I”, são acusadas 33 pessoas. Na se- da. Após a absolvição dos 10 policiais, em
gunda fase, “Vigário Geral II”, há 19 réus. novembro de 1998, no Vigário Geral I, o Mi-
Os nove réus julgados em 23 de julho fazem nistério Público entrou com um recurso no
parte da segunda parte do processo.Eles fo- Tribunal de Justiça contra a sentença
ram acusados em decorrência de uma fita absolutória. Em 02 de setembro de 2003, a
gravada em 1995 na prisão, por dez polici- 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
ais acusados pelo crime na primeira fase do do Estado do Rio de Janeiro negou o recur-
processo.9 so, mantendo a sentença que absolveu os
Segundo o promotor Paulo Rangel, apoi- prováveis responsáveis pela chacina.
ado pela assistência de acusação (familiares O policial militar Sirlei Alves Teixeira,
das vítimas) a gravação foi uma armação dos preso por participar de um assalto a uma
acusados no sentido de forjar uma prova que agência bancária, e que estava foragido na
os inocentava e responsabilizava outros po- época do julgamento de Vigário Geral I, foi
liciais militares pelo crime. Em seu discur- julgado e condenado a 59 anos e seis meses
so, o promotor disse que a fita que incrimi- de prisão, em julgamento realizado em 13
nava 19 pessoas, entre elas os nove réus, era de setembro de 2003, no 2º Tribunal do Júri.
uma ‘’armação’’.10 O júri considerou o policial culpado pelas
De acordo com Rangel, a gravação da 21 mortes e quatro tentativas de homicídio.
fita foi feita pelo tenente-coronel Emir La- Ele ainda seria julgado pela acusação de um
ranjeiras, então comandante do 9º BPM, e outro homicídio e de um assalto a banco.12
suspeito de comandar o grupo de extermí- Além de Sirlei Teixeira, alguns outros ex-
nio “Cavalos Corredores”. A maioria dos 33 policiais foram julgados pela participação do
acusados na primeira fase pertencia ao bata- massacre separadamente, considerando cada
lhão que Laranjeiras comandava. O coronel assassinato como um crime separado.
8
A equipe do Centro de Justiça Global acompanhou pessoalmente o julgamento em 23 de julho de 2003, no Rio de Janeiro.
9
Declaração do Promotor de Justiça, Dr. Paulo Rangel, ao Centro de Justiça Global, em reunião no seu gabinete às vésperas do julgamento.
10
Segundo o Promotor de Justiça Dr. Paulo Rangel, durante sustentação oral da acusação no Tribunal do Júri em 23 de julho de 2003, acompa-
nhado pela equipe do Centro de Justiça Global.
11
Declaração do Promotor de Justiça, Dr. Paulo Rangel, ao Centro de Justiça Global, em reunião no seu gabinete às vésperas do julgamento.
12
“Ex-PM é condenado a 59 anos de prisão”, in Jornal do Brasil, 14 de setembro de 2003.
108
Capítulo X — Poder Judiciário e Impunidade
13
Rio de Janeiro 2003: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois. Anistia Internacional, 2003.
14
Código de Processo Penal brasileiro, “Art 607. O protesto por novo júri é privativo da defesa, e somente se admitirá quando a sentença
condenatória for de reclusão por tempo igual ou superior a vinte anos,não podendo em caso algum ser feito mais de uma vez.”
15
“Ex-PM manobra para adiar júri e é preso”, in Jornal do Brasil, 25 de outubro de 2003 e “PM é absolvido em novo julgamento”, in Jornal do
Brasil, 16 de novembro de 2003.
16
“Júri condena ex-PM a 59 anos de prisão”, in Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2003.
17
“Acusada de liderar seita que castrava meninos é absolvida”. Folha de S. Paulo, 6 de dezembro de 2003.
109
Direitos Humanos no Brasil 2003
ante Amailton Madeira Gomes, a 57 anos; sete jurados e dos oficiais de Justiça que os
os médicos Anísio Souza, a 77 anos; e Césio acompanharam neste período. Durante as
Brandão, a 56 anos. Eles se declaram ino- investigações foi comprovado que, de fato,
centes e recorreram da sentença.18 houve a quebra da incomunicabilidade dos
Os crimes ocorreram entre 1989 e 1993 jurados e o inquérito policial foi encaminha-
e incluem a castração de nove meninos e o do para o Ministério Público do estado do
assassinato de seis deles. As vítimas tinham Pará.22
entre oito e 14 anos. Apenas cinco desses
casos — três assassinatos e duas tentativas
de assassinato — foram a julgamento. RECOMENDAÇÕES
O Ministério Público do Estado do Pará
recorreu da decisão. Para a acusação, nImplementar investigação séria e ri-
Valentina é ligada à suposta seita LUS (Li- gorosa nos casos de corrupção e abuso de
neamento Universal Superior), com sede na poder envolvendo membros do Poder Judi-
Argentina, e teria sido vista em rituais de ciário, com o efetivo afastamento destes do
magia negra. O temor agora é que ela fuja exercício de suas funções.
antes de o recurso ser analisado. Em setem- n Observação às recomendações presen-
bro de 2003, Valentina teve sua prisão pre- tes no relatório apresentado na 60ª Sessão
ventiva pedida pelo juiz Ronaldo Valle, que da Comissão de Direitos Humanos, pela
presidiu o julgamento, porque teria tentado Relatora Especial das Nações Unidas sobre
fugir para a Argentina.19 A decisão causou Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extra-
uma perplexidade muito grande e os outros Judiciais, Asma Jahangir, no qual é ressal-
casos de emasculação ainda não foram apu- tada a importância da realização de uma
rados. missão ao Brasil para investigar a indepen-
No dia 11 de dezembro, o Ministério dência de juízes e advogados.
Público do estado do Pará pediu a anulação n Aprovar e promulgar a federalização
do julgamento que absolveu Valentina de do julgamento dos crimes contra direitos
Andrade. O pedido de anulação, que está humanos.
sendo examinado pelo Tribunal de Justiça e n Institutos médicos legais e demais ór-
pode levar a um novo julgamento, é basea- gãos técnico-periciais devem ser indepen-
do no argumento de que a decisão dos jura- dentes e autônomos e seu corpo técnico deve
dos foi contrária às provas apresentadas.20 ser aumentado e melhor remunerado.
Foi instaurado inquérito na Polícia Ci- n As Ouvidorias devem ser fortalecidas
vil para apurar se houve quebra da incomu- e estruturadas financeiramente. Sua atuação
nicabilidade dos jurados durante os 17 dias deve ser regida pelos princípios da indepen-
de duração do julgamento.21 Foi pedida a dência e autonomia, e seu acesso pela a so-
quebra dos sigilos bancário e telefônico dos ciedade civil, ampliado.
18
Idem.
19
Informações fornecidas pelo Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, Dr. Marco Aurélio, em contato telefônico, ao
Centro de Justiça Global, em 15 de fevereiro de 2004.
20
Idem.
21
Idem.
22
Idem.
110
CAPÍTULO XI — INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS
1
O amicus curiae pode ser definido como uma petição de apoio encaminhado ao órgão examinador de uma causa por pessoa ou entidade
(terceiro) que não é parte da demanda.
2
Declaração da Dra. Lídia Dias Costa ao Centro de Justiça Global em 31 de julho de 2003, § 9 e incluída no amicus Curie do Caso Ximenes.
111
Direitos Humanos no Brasil 2003
3
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Petição 12.237, Damião Ximenes Lopes, Brasil, Observações Adicionais da Peticionaria
enviadas em 13/12/03.
4
Silva, Marcus Vinícius de Oliveira. A Instituição Sinistra. Conselho Federal de Psicologia. Brasília, 2001.
5
Amarante, Paulo D. Carvalho. Loucos pela vida — A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ,
1998.
6
“Avaliação das iniciativas de regulamentação da lei n.º. 10.216/01 a partir do Ministério da Saúde”. O texto integral pode ser encontrado no
endereço http://www.unb.br/fd/saude_augusto.html
112
Capítulo XI — Instituições Psiquiátricas
7
Avaliação das iniciativas de regulamentação da lei n.º 10.216/01 a partir do Ministério da Saúde, Workshop Inclusão e Luta Antimanicomial,
Augusto César de Farias Costa, Coordenador do Programa de Saúde Mental — NESP/CEAM/UnB. 19/04/02, em http://www.unb.br/fd/
saude_augusto.html.
8
Santos, Nelson Garcia: Do hospício à comunidade — Políticas públicas de saúde mental. Santa Catarina: Ed. Letras Contemporâneas, 1994.
9
Dos 3830 hospitais existentes no Brasil em 1969, 3240 eram particulares. Ver Bandeira, Luiz Alberto Moniz, Cartéis e Desnacionalização (A
Experiência Brasileira — 1964-1974). 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979.
10
Nas palavras do cientista político Moniz Bandeira, “cerca de 90% da população brasileira não tinha condições de custear sua própria saúde
e 50% não contavam com nenhuma cobertura oficial”. Apesar disso, o número de clínicas psiquiátricas representava “mais de 1/3 da rede
hospitalar” nacional, muito embora somente “0,4% de brasileiros que apresentavam problemas de saúde mental recebiam assistência médi-
ca”. Ver: Cartéis e Desnacionalização: A experiência brasileira 1964-1974, op. cit., p. 42.
11
Estatísticas de Salud de las Americas: Pan American Health Organization, 2003.
113
Direitos Humanos no Brasil 2003
12
As denúncias de maus tratos em instituições psiquiátricas no Brasil não são uma novidade e remontam ao século 19, conforme o estudo “A
prática psiquiátrica no Brasil (1847-1947)”, Tese de doutoramento de Ronaldo Jacobina, FIOCRUZ/ENSP, 2001. Amplamente documentados
também são os casos de mortes em instituições psiquiátricas durante a década de 90 no livro “A Instituição Sinistra: Mortes violentas em
hospitais psiquiátricos no Brasil”, Conselho Federal de Psicologia, 2001. Vide também as denúncias contidas no relatório da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados de Brasília intitulado “I Caravana Nacional de Direitos Humanos: Uma amostra da realidade
manicomial brasileira”, do ano de 2000. É importante ressaltar que, além de antiga, as irregularidades nas práticas de clínicas psiquiátricas
estão disseminadas em todos os estados do Brasil. Em seu relatório, a Comissão de Direitos Humanos fez uma avaliação negativa de 19 entre 20
clínicas visitadas, localizadas nos estados de Amazonas, Goiás, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.
13
Declaração da Dra. Lídia Dias Costa ao Centro de Justiça Global em 31 de julho de 2003, § 9 e incluída no amicus curie do Caso Ximenes.
14
Dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2000. http://www.ibge.gov.br
15
As internações por problemas mentais posicionam-se, em termos de gastos, somente atrás das doenças cardiovasculares; gravidez, parto e
puerpério e, por fim, doenças do sistema respiratório. Dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, referentes ao ano de 2000.
16
Datasus/IBGE — Estimativas populacionais do ano 2001/ Área Técnica de Saúde Mental/MS. http://www.ibge.gov.br
17
Costa, Augusto César de Farias. Avaliação das iniciativas de regulamentação da Lei 10.216/01 a partir do Ministério da Saúde.
Workshop promovido pela Faculdade de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Brasília, em 19 de abril de 2002.
18
Idem. Atualmente, de acordo com a Coordenação Geral de Saúde Mental, o número de leitos diminuiu para 53.180 — dados referentes ao mês
de setembro.
19
Ainda que privadas, tais instituições dispõem, em sua maioria, cerca de 70 a 90% de seus leitos para o SUS. Seu atendimento, ao contrário, é
bastante diferenciado das clínicas exclusivamente privadas, uma vez que, neste último grupo, a malha de clientes é geralmente abastada,
socialmente relevante e, por isso mesmo, fora dos tórridos padrões apresentados nos convênios com o SUS.
20
Ver o Relatório da Comissão de Direitos Humanos de Brasília: Uma amostra da realidade manicomial brasileira, Brasília, 2000, http://
www.camara.gov.br/cdh/ultimos_informes/29062000%20-%20Primeira%20Caravana%20Nacional%20de%20Direitos%20Humanos%20-
%20Uma%20amostra%20da%20realidade%20manicomial%20brasileira.htm.
114
Capítulo XI — Instituições Psiquiátricas
Temos então, um contexto que alia a falta de resposta adequada por parte das au-
opção do Estado em repassar sua obrigação toridades, vêm se tornando uma das situa-
constitucional21 em prover a saúde para o ções de maior preocupação dos militantes
setor privado, concomitante ao pouco ou do movimento para a reforma psiquiátrica.
nenhum interesse desse mesmo Estado em Desde a morte de Sandro Costa Fragoso,
fiscalizar o cumprimento de suas próprias ocorrida no dia 17 de julho de 2002, exem-
determinações. Dessa forma, observamos plos dessa violência vêm ganhando visibili-
um vertiginoso crescimento da “indústria da dade, sem, contudo, provocar uma interven-
loucura”22 nos últimos 30 anos, marcado por ção do poder público no sentido de realizar
uma ótica carcerária, atentatória dos direi- melhorias significativas. Pelo contrário, a
tos fundamentais de seus usuários e dotado clara tendência da imprensa local é de cen-
de uma falta de transparência, que recordam surar os denunciantes e elogiar os gerentes
os anos vividos sob a restrição dos direitos da instituição pelas supostas melhorias que
civis impostos pelos ditadores militares du- estes vêm promovendo.24
rante seu período de governo no Brasil. Sandro Costa Fragoso, 22, foi encontra-
Muito embora as violações aos direitos do morto, carbonizado, com marcas das ata-
humanos, ocorridas dentro de instituições duras que o amarravam à cama dentro de
psiquiátricas representem uma constante, os um quarto do Hospital Psiquiátrico Milton
casos destacados aqui referem-se apenas Marinho. Conforme publicado pela revista
àqueles acompanhados pelo Centro de Jus- Isto É25 , a morte de Sandro foi diagnosticada
tiça Global em 2003, mas relativos a anos em declaração do médico Salomão Gurgel,
anteriores, de modo a ilustrar um pouco o ex-deputado federal e responsável técnico do
cotidiano de tais instituições. Milton Marinho, como decorrente de suicí-
dio. Contudo, essa hipótese não explicou
como Sandro, inteiramente contido nas
HOSPITAL PSIQUIÁTRICO MILTON MARINHO, mãos, pés e tórax com tiras de pano, teria
CAICÓ-RN ateado fogo em seu próprio quarto. De fato,
o Instituto Técnico-Científico de Polícia do
Nos últimos anos, as denúncias de abu- Rio Grande do Norte desmentiu essa teoria
sos e violência contra pacientes do Hospital absurda, concluindo que Sandro foi vítima
Milton Marinho, instituição controlada por de um incêndio criminoso.26 Porém, até a
políticos de grande influência local23 , e a finalização deste relatório, ninguém havia
21
Artigo 6º, Constituição Federal.
22
A Instituição Sinistra, op.cit., p. 6.
23
O Hospital Milton Marinho é mantido pela Fundação Hospitalar Dr. Carlindo Dantas, controlada por políticos influentes, como Rivaldo
Costa, diretor da instituição, pré-candidato a prefeito de Caicó e irmão de Vivaldo Costa, deputado estadual aliado da governadora Vilma de
Faria, segundo informações publicadas no Jornal de Natal, edição 761, 7 de julho de 2003.
24
Vide, e.g., “Casa de Saúde investe na qualidade da assistência em Caicó”, Notícias do Seridó, edição de 20/08/2003, que começa, “A Funda-
ção Hospitalar Dr. Carlindo Dantas vem fazendo um grande investimento no sentido de realizar as reformas e as mudanças necessárias a fim de
que o Hospital Psiquiátrico preste uma assistência de qualidade cada vez melhor para os seus usuários.” A revista IstoÉ, de abrangência
nacional, publicou duas matérias nas quais não constava essa tendência, e foi logo acusada de ter recebido propinas que teriam sido pagas por
militantes do movimento antimanicomial. Segunda declaração de Dra. Lídia Dias Costa, Coordenadora do Fórum Cearense da Luta
Antimanicomial, em entrevista telefônica concedida ao Centro de Justiça Global em 4 de novembro de 2003.
25
“Crime em Caicó”, IstoÉ edição 1744 de 5/3/2003, p. 40.
26
Laudo de Exame de Crime Contra a Pessoa No. 01.0599/02, Instituto Técnico-Científico de Polícia/RN.
115
Direitos Humanos no Brasil 2003
o
27
Inquérito Policial n 87/02.
28
“A Cidade de Caicó Merece Respeito! O Brasil Precisa dar um Basta à Farsa e à Violência Manicomial!” Manifesto divulgado pelo Instituto
Damião Ximenes e a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia em setembro de 2003 (em adiante, “Manifesto”);
Entrevista telefônica com Dra. Lídia Dias Costa, Coordenadora do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, concedida ao Centro de Justiça
Global em 4 de novembro de 2003.
29
“Ministério da Saúde veta atendimento”, Jornal Diário de Natal, edição de 08/10/2003. As violações de direitos humanos em instituições
psiquiátricas no Brasil
30
“Ministério da Saúde veta atendimento”, Jornal Diário de Natal, edição de 08/10/2003; Entrevista telefônica com Dra. Lídia Dias Costa,
Coordenadora do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, concedida ao Centro de Justiça Global em 21 de novembro de 2003
31
Segundo depoimento da Auxiliar de Enfermagem Sra. Neusanete Costa, ora demitida do emprego. Vide Relatório do Departamento Nacional
de Auditoria do SUS — Ministério da Saúde, relativo à Auditoria do SUS realizada no Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, em Caicó/Rn
no período de 2 a 6 de dezembro de 2002, Auditoria No. 689, p. 7 . Veja também “Crime em Caicó”, Istoé edição 1744 de 5/3/2003, p. 40.
32
“Ministério da Saúde veta atendimento”, Jornal Diário de Natal, edição de 08/10/2003.
33
Vide Relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS — Ministério da Saúde, relativo à Auditoria do SUS realizada no Hospital
Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, em Caicó/Rn no período de 02 a 06 de dezembro de 2002, Auditoria No. 689, p. 43.
34
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção a Saúde Portaria no. 150 de 18 de junho de 2003
35
Inquérito Policial no. 139/00-DP Caicó-RN.
36
Diário da Justiça no. 178 — 16/9/2002 — Ata No. 133.
116
Capítulo XI — Instituições Psiquiátricas
ral à época) e devolvido à Comarca de Caicó uma comissão para avaliar as irregularidades
para que procedesse em relação aos demais apontadas pelo Ministério da Saúde, confor-
réus.37 me noticiado pela imprensa local.41
Em junho de 2003, o Ministério da Saú- As pessoas vinculadas ao Hospital Mil-
de publicou a Portaria 150 determinando o ton Marinho que denunciaram suas péssi-
descredenciamento do SUS do Hospital mas condições de funcionamento vêm so-
Milton Marinho por não ter sido considera- frendo sérias represálias. A auxiliar de ser-
do adequado para atendimento à população, viços gerais, Neuzanete Costa, que trabalha-
delegando aos gestores locais o seu fecha- va havia anos nesta instituição foi demitida
mento.38 Não obstante, a unidade hospitalar após denunciar a morte do Sr. José Martins.42
Milton Marinho continuava com seu funcio- O psiquiatra Epitácio Andrade, que denun-
namento habitual até outubro de 2003, quan- ciou a violência ocorrida no Milton Mari-
do diante da morosidade do gestor local em nho e pediu a intervenção das autoridades,
cumprir com a determinação da Portaria 150, responde um processo cível por calunia e
o Ministério da Saúde encaminhou recomen- outro, junto ao Conselho Regional de Me-
dação à Secretaria de Saúde de Caicó para dicina do Rio Grande do Norte, ambas mo-
que fossem suspensas novas internações no vidas pelo médico Salomão Gurgel.43 No dia
Milton Marinho, e que fosse providenciada a 19 de novembro de 2003, o psiquiatra
transferência dos pacientes ali internados para Epitácio Andrade foi demitido do seu car-
outras clínicas da região.39 go. Nesse dia, o prefeito de Caicó, Roberto
Apesar das determinações do Ministério Germano, ligou para Epitácio e lhe disse que
da Saúde, o governo estadual do Rio Grande o mesmo estava demitido por ter dado no-
do Norte sinaliza que pretende manter o Mil- vas declarações à revista Isto É, embora tais
ton Marinho em funcionamento, e apresen- declarações não houvessem sido publica-
tou proposta de repasse de noventa mil reais das.44
à instituição para que esta invista esse mon- Conforme divulgado pela imprensa re-
tante em melhorias.40 Esse repasse foi apro- gional, Salomão Gurgel será novamente can-
vado no Conselho Municipal de Saúde de didato à Prefeitura de Janduís em 2004, ci-
Caicó, em reunião realizada em 06 de outu- dade vizinha a Caicó, onde já foi Prefeito
bro de 2003, onde também foi constituída entre 1983 e 1988.45
37
Idem.
38
Idem.
39
“Ministério da Saúde veta atendimento”, Jornal Diário de Natal, caderno Cidades, edição de 08/10/03.
40
“Conselho de Saúde rejeita fechamento do Hospital Psiquiátrico de Caicó”, Seridó online, http://www.seol.com.br, em 06/10/03.
41
Idem.
42
Vide Relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS — Ministério da Saúde, relativo à Auditoria do SUS realizada no Hospital
Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, em Caicó/Rn no período de 2 a 6 de dezembro de 2002.
43
Entrevista telefônica com Dr. Epitácio Andrade, concedida ao Centro de Justiça Global em 12 de janeiro de 2004.
44
Segundo informação prestada por correio eletrônico por Dra. Lídia Dias Costa, Coordenadora do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial,
ao Centro de Justiça Global, em 19 de novembro de 2003.
45
“João Maia: “PL terá candidato em Caicó”, Diário de Natal, 29/09/03, disponível em http://www.dnonline.com.br/materia.php?idmat=93257
117
Direitos Humanos no Brasil 2003
46
Ofício No. 02/2003 do Movimento Antimanicomial/RN à Presidência da República, protocolado pela Assessoria da Presidência, Geraldo
Magela. Informação prestada mediante entrevista telefônica com Dr. Epitácio Andrade, concedida ao Centro de Justiça Global em 12 de
janeiro de 2004.
47
Ofício No. JG/RJ 172/03.
48
Inquérito Civil nº 004/03.
49
Portaria n.º 004/03 de 26 de fevereiro de 2003.
50
Segundo artigo 5º da Lei 6.699/94, a CEPDH é habilitado a ter acesso às instalações públicas estaduais “para o acompanhamento de
diligências ou realização de vistorias, exames e inspeções relacionados a assuntos de sua competência”.
118
Capítulo XI — Instituições Psiquiátricas
51
Carta de Ernesto Marques, Representante da Associação Baiana da Imprensa e Membro do Conselho Estadual de Proteção aos Direitos
Humanos (CEPDH), ao conjunto do CEPDH em 9 de janeiro de 2003.
52
Vide relatório “Situação do Hospital de Custódia e Tratamento”, elaborado por Ernesto Marques, Representante da Associação Baiana de
Imprensa, a partir do acompanhamento a uma visita realizada pelo Ministério Público do Estado da Bahia, juntamente com representantes do
Ministério da Justiça, do Ministério da Saúde e diversas representações da sociedade civil.
53
“Manicômio ameaçado de intervenção”, jornal A Tarde, 27/6/2003.
54
Idem.
119
Direitos Humanos no Brasil 2003
120
CAPÍTULO XII — SISTEMAS INTERNACIONAIS DE
PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
1
Segundo declarações do vereador de Itambé, estado de Pernambuco, Manoel Matos, em contato telefônico mantido com a equipe do Centro
de Justiça Global, em 13 de abril de 2004.
121
Direitos Humanos no Brasil 2003
Estes graves fatos demonstram, não só das execuções no Brasil acerca das execu-
a ausência de políticas públicas sérias perti- ções. Seu relatório sobre a missão ao Brasil
nentes à proteção de testemunhas ameaçadas foi apresentado à Comissão de Direitos Hu-
de morte, como também revelam a omissão manos da ONU em março de 2004.
das autoridades competentes na investiga- A visita de Jahangir foi de fundamental
ção efetiva das ameaças consumadas. importância no amplo debate sobre os direi-
Estes são apenas dois exemplos que al- tos humanos que se estabeleceu no país, al-
cançaram forte repercussão nacional e inter- cançando grande repercussão nacional. Ela
nacional pelo fato de as vítimas haverem esteve no Brasil a convite do Governo Fede-
prestado depoimento a um representante das ral, consolidando o avanço na discussão de
Nações Unidas. Entretanto, estes casos re- temas como a tortura, violência policial e
presentam centenas de outras vítimas que ações de grupos de extermínio.
têm sua morte anunciada e não encontram A visita da Relatora Especial da ONU
proteção ou assistência por parte do Estado, provocou um forte impacto, causando gran-
que quando não ignora o risco de vida e a de repercussão na mídia, tanto por suas de-
integridade pessoal das vítimas, lhes ofere- clarações quanto pelas reações de algumas
ce um programa de proteção precário e ei- autoridades, que não mais puderam se es-
vado de falhas. quivar da violenta realidade do país.
Se a visita de Asma Jahangir sinalizou
O BRASIL E A ORGANIZAÇÃO uma disposição do Governo Federal em en-
DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) carar questões tão importantes e delicadas,
reveladoras das mazelas do país, tal dispo-
Em setembro de 2003 o Centro de Justi- sição pareceu mais reduzida em esferas es-
ça Global publicou o relatório Execuções Su- taduais.
márias no Brasil (1997-2003)2 , durante a Durante sua visita, a Relatora Especial
visita ao Brasil da Relatora Especial da ONU da ONU encontrou dificuldades para reali-
sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou zar a sua missão. Em São Paulo tentou, mas
Extrajudiciais, Asma Jahangir. não foi recebida pelo governador do Esta-
Entre os dias 16 de setembro e 8 de ou- do, Geraldo Alckmin. Ela ainda teve seu
tubro, a Relatora Especial da ONU visitou pedido para visitar a UAI (Unidade de Aten-
os Estados da Bahia, Pernambuco, Pará, Rio dimento Inicial) do complexo da Febem
de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo e Dis- (Fundação Estadual do Bem Estar do Me-
trito Federal. Além dos encontros com au- nos) no Brás inicialmente negado. Após vi-
toridades estatais, a agenda da Relatora en- sitar esta unidade, que se encontrava
globou diversos encontros com a sociedade superlotada, e a unidade de Pirituba, consi-
civil, acompanhados pela equipe do Centro derada uma unidade “modelo” pelo estado,
de Justiça Global, nos quais recolheu infor- a Relatora Especial classificou como “hor-
mações para caracterizar o panorama atual rível” a situação em ambas as unidades.3
2
O relatório foi elaborado em parceria com o Núcleo de Estudos Negros (NEN).
oo
3
“HORRÍVEL”. Folha de S. Paulo, 1 de outubro de 2003.
122
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
Asma Jahangir desafiou o então presi- Justiça mais célere, transparente e efetiva.
dente da Febem, Paulo Sérgio de Oliveira e Em maio de 2003, o Expert Independen-
Costa, a “ter coragem” e abrir a instituição te das Nações Unidas sobre o Direito ao
para permitir que os internos falassem so- Desenvolvimento, Arjun Sengupta, veio ao
bre os casos de maus-tratos e torturas.4 A Brasil e se reuniu no Rio de Janeiro com
Relatora Especial da ONU fez o desafio ao várias entidades da sociedade civil para de-
saber de declarações do presidente da Febem bater os principais problemas do país em re-
discordando das críticas feitas por ela após lação à efetivação do direito ao desenvolvi-
a visita às duas unidades, afirmando que a mento. No dia 14 de maio, Sengupta parti-
Relatora Especial da ONU partia de uma cipou de um encontro promovido pelo Cen-
idéia preconcebida. tro de Justiça Global e o Núcleo de Direitos
No Rio de Janeiro, a Relatora Especial Humanos do Departamento de Direito da
criticou a ausência de dados oficiais sobre Pontifícia Universidade Católica do Rio de
as mortes por policiais no estado e a falta de Janeiro (PUC-Rio), em que participaram
informação de autoridades estatais que não ainda representantes da Fundação Ford e o
conseguiram responder aos seus questiona- grupo de mães do estado do Espírito Santo.
mentos. O Expert Independente retornou ao Bra-
A Relatora Especial da ONU encerrou sil, em viagem oficial, em agosto de 2003.
sua visita provocando uma nova discussão Arjun Sengupta esteve presente a uma reu-
entre os Poderes Judiciário e Executivo. nião organizada pelo Centro de Justiça Glo-
Asma Jahangir sugeriu a visita do Relator bal, pelo Núcleo de Direitos Humanos do
Especial da ONU sobre a Independência de Departamento de Direito da PUC-Rio e pela
Juízes e Magistrados ao Brasil, idéia que foi Federação de Órgãos para a Assistência So-
corroborada pelo Governo Federal e gerou cial e Educacional (FASE), em que se dis-
forte crítica dos representantes das cortes cutiu, em conjunto com outras organizações
brasileiras. não-governamentais, a situação atual do
A idéia de que um outro observador da Brasil em relação à realização do direito ao
ONU fosse enviado para avaliar o Judiciá- desenvolvimento.
rio, para garantir a transparência e indepen- Esteve também no Brasil o Relator Es-
dência do mesmo, suscitou um amplo deba- pecial da ONU para o Tráfico de Crianças,
te nacional acerca da questão, com forte re- Prostituição e Pornografia Infantis, Juan
sistência da esfera judiciária à sugestão apoi- Miguel Petit. Ele percorreu as cidades de
ada pelo Governo. Tal reação desmedida e Belém, Salvador, São Paulo e Rio de Janei-
ignorante da inserção do Brasil no sistema ro, entre os dias 4 e 15 de novembro. Seu
das Nações Unidas demonstra um corpora- relatório foi apresentado à Comissão de Di-
tivismo exacerbado por parte dos magistra- reitos da ONU em abril de 2004, enfatizan-
dos, ao se negarem a expor as falhas e do que o Brasil precisa de uma reforma po-
distorções do sistema judiciário, conhecidas licial e uma mudança de mentalidade em seu
por toda a sociedade. Este posicionamento sistema judiciário para avançar na luta con-
configura um retrocesso na luta por uma tra a exploração infantil e outras violações
o
4
“Relatora da ONU faz desafio à Febem”. Folha de S. Paulo, 1 de outubro de 2003.
123
Direitos Humanos no Brasil 2003
dos direitos das crianças. O relatório tam- Outro fato que merece destaque foi a
bém pede ao governo brasileiro que fiscali- visita da Secretária Geral da Anistia Inter-
ze e desarticule as rotas do tráfico nacional nacional, Irene Khan, ao Brasil no mês de
e internacional de crianças e adolescentes novembro. A Justiça Global auxiliou na vi-
destinados à exploração sexual, sobretudo sita da Secretária Geral em São Paulo e no
na Europa. Rio de Janeiro. Neste estado ela participou
Estas visitas, a exemplo das visitas de de uma reunião com especialistas em direi-
Nigel Rodley, então Relator Especial da tos humanos, organizada pelo Centro de Jus-
ONU sobre a Tortura, em setembro de 2000, tiça Global e pelo Núcleo de Direitos Hu-
cujo relatório apresentado em abril de 2001 manos do Departamento de Direito da PUC-
causou grande reação no país e na comuni- Rio, na qual foram debatidas questões rela-
dade internacional, e de Jean Ziegler, Relator cionadas à segurança pública no estado. Uma
Especial da ONU sobre o Direito à Alimen- equipe do Centro de Justiça Global acom-
tação, que visitou o Brasil em março de panhou a Secretária Geral em uma visita à
2002, solidificam a colaboração do Brasil favela do Borel, na zona norte da cidade,
com os mecanismos especiais da ONU e, onde ela manteve contato com a comunida-
sem dúvida, significam um valioso avanço de e entrevistou familiares de vítimas da vi-
da sociedade brasileira na promoção e pro- olência.
teção dos direitos humanos. Com apoio do Centro de Justiça Global
Não obstante avanços nesta seara e ain- Irene Khan visitou as instalações da Polinter,
da o reconhecimento pelo Brasil da compe- na Praça Mauá, no Centro do Rio de Janei-
tência do Comitê contra a Discriminação ro. Em São Paulo a Secretária participou de
Racial e do Comitê para a Eliminação de encontros com diversas Ongs de direitos
Todas as Formas de Discriminação contra a humanos, vítimas e familiares de vítimas e
Mulher, em 2002, o estado brasileiro, que autoridades públicas.
havia se comprometido a reconhecer os qua- Ao final de sua visita, Irene Khan enca-
tro comitês da ONU, ainda não reconheceu minhou um memorando ao Presidente Luis
a competência do Comitê contra a Tortura e Inácio Lula da Silva, destacando que “no
do Comitê de Direitos Humanos. Brasil a luta pelos direitos humanos conti-
Tais reconhecimentos representariam um nua se deparando com os obstáculos dos in-
marco na luta pela promoção e proteção de teresses políticos de curto prazo e de uma
direitos humanos no plano internacional. Com longa tradição de impunidade. O governo
a aceitação da competência dos quatro comi- brasileiro tem um papel crucial a desempe-
tês para receber e julgar petições individuais, nhar para a com as normas internacionais
o Brasil estaria demonstrando sua determi- de direitos humanos, garantindo que todos
nação em permitir o amplo acesso de seus os brasileiros tenham seus direitos humanos
cidadãos a instâncias internacionais para ga- respeitados e que aqueles que sofrem viola-
rantir a efetividade de seus direitos e contri- ções recebam acesso igual e imediato à jus-
buir para a defesa dos direitos humanos. tiça e a reparações”.5 O documento também
5
Memorando ao presidente brasileiro por ocasião da visita de Irene Kahn, Secretária Geral da Anistia Internacional ao Brasil. Novembro de
2003.
124
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
contém uma série de recomendações ao go- Sebastião Rodrigues de Moura, “Curió”, foi
verno brasileiro. o responsável pelo seu assassinato. A data de
Um grave e triste fato ocorrido em 19 sua morte antecedeu em dois dias a realiza-
de agosto de 2003 foi a morte do brasileiro ção da eleição para a direção da Cooperativa
Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário de dos Garimpeiros de Serra Pelada
Direitos Humanos da ONU, vítima de um (Coomigasp) e uma reunião na Comissão de
atentado a bomba na sede das Nações Uni- Direitos Humanos da Câmara dos Deputa-
das no Iraque. Tendo iniciado seu trabalho dos7 , ambos eventos geradores de grande
como Alto Comissário em setembro de 2002, conflito na região. A eleição para a Coopera-
Sérgio Vieira de Mello havia tirado uma li- tiva estava sob intensa disputa dentre dois
cença de quatro meses do Alto Comissariado grupos rivais: um liderado por Antônio Clênio
para servir como Representante Especial do e outro pelo Prefeito do município, Sebasti-
Secretário Geral no Iraque, onde foi tragi- ão Curió. Dias antes do fatídico assassinato,
camente morto. um grupo de homens armados comandados
por Curió foi acusado de estar impedindo a
CASOS ENVIADOS AOS entrada de outros garimpeiros na região, ar-
MECANISMOS ESPECIAIS DA ONU mando trincheiras nas margens da estrada e
queimado uma ponte para impedir a passa-
Casos de Execuções Sumárias gem de veículos. Já a reunião na Câmara dos
Deputados tinha exatamente o intuito de ex-
l Antônio Clênio da Silva Lemos, por aos deputados a grave situação na qual
Curionópolis, Pará estavam imersos os garimpeiros.
Em 28 de novembro de 2002 foi envia-
do ofício à Relatora Especial da ONU sobre l Manoel Corrêa da Silva, penitenciá-
6
Ofício nº JG/RJ 235/02.
7
Nesta ocasião, Antônio Clênio pretendia apresentar uma lista com 41,2 mil garimpeiros que queriam ser reintegrados à Cooperativa.7 Esta lista
também seria objeto de duas ações a serem protocoladas na Justiça pedindo a reintegração deles à mesma, além da anulação do seu estatuto.
8
Ofício JG/RJ n.º 234/02.
9
Os depoimentos de Manoel Correa da Silva à Missão Especial do Governo Federal levaram a localização de cemitérios clandestinos, ao
esclarecimento de dois homicídios e a outras prisões, entre elas a do Coronel Gomes Ferreira, integrante do grupo de extermínio Scuderie
Detetive Le Cocq . No dia 20 de novembro, entre outras denúncias, em depoimento à Justiça, Manoel disse que, juntamente com o referido Cel.
Ferreira, teria retirado um presidiário da Cadeia de Viana, no Espírito Santo, e o executado a tiros em uma fazenda, em Flexal, Cariacica/ES.
Manoel prestaria novo depoimento, no dia 25 de novembro, ao Promotor de Justiça Fábio Vello, representante do Ministério Público Estadual
do grupo de repressão ao crime organizado.
125
Direitos Humanos no Brasil 2003
Scuderie Detetive Le Cocq (ES) e estava dois dias depois, em 7 de março de 2003,
preso na carceragem da Policia Federal em Fladimir da Mota Oliveira, 10 anos, foi ba-
São Torquato, Vila Velha/ES. Manoel foi leado intencionalmente por um policial mi-
transferido sem autorização judicial para a litar quando estava a caminho da padaria.13
Penitenciária Monte Líbano, no município As crianças faziam parte do Projeto Uerê,
de Cachoeiro do Itapemirim, Espírito San- um projeto sócio-educativo coordenado pela
to, no dia 22 de novembro de 2002. Ele foi artista plástica Ivone Lima, desenvolvido no
morto uma hora e meia após a transferência Complexo da Maré, o maior complexo de
irregular. favelas do Rio de Janeiro14 e um dos espaços
Apesar de ter conhecimento do iminen- populares mais conhecidos do país por seus
te risco à vida do detento por suas sucessi- precários indicadores sociais, bem como pelo
vas denúncias contra o Coronel Ferreira, a aumento contínuo da violência.
Polícia Federal não solicitou nenhuma pro-
teção especial para ele que acabou por ser lAntônio José Machado Dias, Presi-
assassinado dentro do Pavilhão 2 da Peni- dente Prudente, São Paulo
tenciária após sofrer severa sessão de espan- Em 19 de março de 2003, foi enviado
camento.10 Depois de morto, o corpo de informe à Relatora Especial da ONU sobre
Manoel foi lançado no portão que dá acesso Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extraju-
ao pátio da Penitenciária. diciais, e à Representante Especial da ONU
para os Defensores de Direitos Humanos,
Aline Ferreira Misael e Fladimir da
l narrando o assassinato do juiz Antônio Ma-
Mota Oliveira, favela Complexo da Maré, chado José Dias, ocorrido em 14 de março
Rio de Janeiro de 200315 . O magistrado foi assassinado com
Em 24 de março de 2003, foi enviado quatro tiros, um dos quais atingiu sua cabe-
informe à Relatora Especial da ONU sobre ça, após ter seu veiculo interceptado próxi-
Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extraju- mo ao Fórum de Presidente Pudente, no inte-
diciais narrando os acontecimentos dos dias rior do estado de São Paulo.
5 e 7 de março durante operações policiais Antônio Machado José Dias era juiz-
realizadas no Complexo da Maré, Rio de corregedor de sete presídios na região de
Janeiro.11 Presidente Prudente, no interior do Estado
Em 5 de março de 2003, Aline Ferreira de São Paulo. Cabia a ele decidir sobre be-
Misael, 3 anos, foi atingida na cabeça por nefícios, sindicâncias e pedidos de advoga-
estilhaços de bala durante um tiroteio entre dos dos presos. Sua fama era de ser bastan-
policiais militares e traficantes na Favela do te severo na análise dos pedidos de benefí-
Sapateiro, no Complexo da Maré.12 Apenas cios, que chegavam à cerca de 5000 por ano.
10
De acordo com informações do chefe do serviço de inteligência do 9º Batalhão da Polícia Militar, Capitão Alessandro Marin.
11
Ofício JG/RJ nº 042/03.
12
“Um morto e oito feridos durante tiroteio na Maré”. O Dia online (Rio de Janeiro-Brasil), http://odia.ig.com.br/odia/policia/pl060311, em 06
de março de 2003.
13
Depoimento de Fladimir da Mota Oliveira concedido à Justiça Global, em 15 de março de 2003, na casa de Yvonne Bezerra de Mello,
presidente do Projeto Uerê.
14
Introdução da página eletrônica do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré — CEASM (Rio de Janeiro-Brasil), http://www.ceasm.org.br/
abertura/03onde/ondeatua.htm
15
Ofício JG/JG n.º 041/03.
126
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
Esse foi o motivo apresentado pelo primei- to.18 Sua morte foi tão chocante quanto pre-
ro suspeito de executar o crime preso, para visível. Seu nome figurava na lista de de-
que os lideres da facção criminosa Primeiro fensores de direitos humanos ameaçados de
Comando da Capital (PCC) ordenassem a morte no estado do Espírito Santo apresen-
execução do magistrado.16 tada pelo Centro de Justiça Global no rela-
A policia considerou o caso elucidado tório “Crise dos direitos humanos no estado
em 8 de agosto de 2003 quando prendeu um do Espírito Santo: ameaças e violência con-
dos suspeitos de participação no assassina- tra os defensores de direitos humanos”, que
to: Ronaldo Dias, vulgo Chocolate. Este ra- foi entregue ao então Presidente da Repú-
paz confirmou ter praticado o crime por or- blica, Fernando Henrique Cardoso.
dem dos líderes da facção criminosa PCC Por volta das 8h, dois sujeitos aborda-
juntamente com Adilson Daghia, conheci- ram o Juiz Alexandre numa motocicleta e
do como Ferrugem, segundo ele, o autor dos efetuaram sete tiros de arma de fogo sendo
disparos, e Reinaldo Teixeira dos Santos, que três atingiram o juiz, na cabeça, no tó-
vulgo Funchal. Chocolate disse ainda que a rax e no braço esquerdo. 19 Castro Filho
ordem para a execução do magistrado teria morreu às 8h30 ao chegar ao Hospital Santa
partido diretamente de José Eduardo Moura Mônica em Vila Velha.20
da Silva, vulgo Bandejão, assassinado em Em função de sua atuação e das amea-
maio na penitenciária Orlando Brando ças que sofria o juiz contava com proteção
Felinto, interior de São Paulo.17 Em 18 de pessoal prestada pela policia militar. Res-
setembro de 2003, a polícia anunciou a pri- salta-se que o juiz era integrante da “Missão
são do provável executor dos disparos con- Especial” do governo federal para apurar o
tra o magistrado, Reinaldo Teixeira dos San- crime organizado no Espírito Santo.21
tos, vulgo Funchal, detido em um Flat em Castro Filho foi responsável pela trans-
Angra dos Reis/RJ. ferência do Coronel Walter Ferreira, líder do
braço armado do crime organizado no esta-
Alexandre Martins de Castro Filho,
l do, de Vitória para o Acre. Ferreira foi iden-
Vila Velha, Espírito Santo tificado como o mandante do assassinato do
Em 24 de março de 2003, o juiz Alexan- detento Manoel Corrêa Silva, no final de
dre Martins de Castro Filho foi assassinado 2002, quando este iria prestar depoimentos
em Vila Velha, no estado do Espírito San- que envolviam o Coronel.22
16
“Suspeito admite que morte de juiz foi encomendada pelo PCC, diz polícia in iG — Último Segundo (ultimosegundo.ig.com.Br/useg/Brasil/
ARTIGO/0,,1296972,00.html), 8 de agosto de 2003.
17
Idem. Veja ainda “Acusado de matar juiz tinha ‘dívida’ com PCC, diz polícia in Folha Online (http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/
ult95u79939.shtml), 9 de agosto de 2003.
18
Ofício JG/RJ nº 043/03, enviado para a Relatora Especial sobre Execuções Sumárias, Sra. Hina Jilani, em 27/03/03.
19
“Juiz é assassinado a tiros no Espírito Santo: é o segundo magistrado morto no país em dez dias; a vítima investigava o crime organizado no
Estado,” Folha de S.Paulo, (São Paulo – SP), 25 de março de 2003.
20
“Juiz é assassinado a tiros em Vila Velha,” Folha Online, (São Paulo – SP), http://tools.folha.com.br/
print.html?skin=emcimadahora&url=http%3A//www.1.folha.uol.com.br/folha..
21
“Execuções Sumárias no Brasil: 1997-2003”, Centro de Justiça Global, setembro de 2003.
22
Idem.
127
Direitos Humanos no Brasil 2003
23
Ofício JG/RJ n.º 079/03.
24
Ofício JG/RJ n.º 095/03.
128
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
em cárcere privado seu filho, sua nora e seu TESTEMUNHAS AMEAÇADAS EM CASOS
neto, sob a mira de armas, por duas horas, e APRESENTADOS PARA A RELATORA
depois os obrigando a retirar-se da fazenda. DA ONU SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS,
Apenas após sua morte, as autoridades pas- ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS
saram a investigar quem eram os pistoleiros
que ameaçaram e mataram Iraildes. Foram Em 29 de outubro de 2003 foi enviada
indiciados noves suspeitos, todos presos pre- para Asma Jahangir, uma lista de pessoas
ventivamente.25 que deveriam, com a máxima urgência, ser
encaminhadas ao Programa de Proteção a
Reginaldo Firmino dos Santos, João
l Testemunhas do Governo Federal (Pro-Vita)
Pessoa, Paraíba ou que precisavam de proteção policial, em
No dia 27 de novembro de 2003 foi en- decorrência de ameaças à vida sofridas por
viada comunicação à Representante Especi- estas em virtude dos depoimentos prestados
al da ONU sobre a Situação dos Defensores na ocasião de sua visita ao Brasil, entre se-
de Direitos Humanos relatando o assassina- tembro e outubro de 200328 .
to de Reginaldo Firmino dos Santos, em João
Pessoa, estado da Paraíba26 . l Sandro Fragoso, Caicó, Rio Grande
25
Inquérito Policial nº 2003.0127777, Delegacia de Polícia Civil de Redenção, no qual figuram como indiciados Antônio Pereira Milhomem,
Cleberson Pereira Milhomem, Itamar de Souza Rodrigues, José Ribamar de Oliveira Lima, Josué Silva Jr., Olímpio Luiz de Farias, Osniel
Coelho de Souza, Ronaldo Pereira de Souza, Francisco Abreu do Nascimento.
26
Ofício JG/RJ n.º173/03.
27
O deputado Rodrigo Soares enviou o Ofício Gab Dh nº 19, em 14 de outubro de 2003, para o diretor da rádio Sanhauá requerendo o conteúdo
da entrevista prestada por Reginaldo com o intuito de investigar contra quem exatamente seria o depoimento judicial que a vítima prestaria, mas
a rádio alegou a impossibilidade de fornecer a informação por problemas técnicos.
28
Ofício JG/RJ n.º 134/03.
29
Ofício JG/RJ n.º169/03.
129
Direitos Humanos no Brasil 2003
incêndio foi culposo. Porém, até a presente ros desacelerou em frente ao orelhão e os
data o inquérito policial não foi concluído. seguiu até que os mesmos entraram corren-
do no edifício em que estavam hospedados.
30
Ofício JG/RJ n.º 011/03.
31
Ofício JG/RJ n.º 064/03.
32
Depoimento de José Manoel de Jesus do Engenho Vazante (Aliança, PE), enviado via e-mail pela CPT/PE ao Centro de Justiça Global, em 02
de maio de 2003.
33
Ibid.
130
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
anterior (17 de abril), ao sair da cidade de aças de morte nos dias subseqüentes à visi-
Aliança ele viu, no primeiro trevo de entra- ta. Ela chegou a permanecer durante dois
da para a cidade de Aliança (mesmo local dias, 24 e 25 de setembro, trancada na sede
em que o carro da CPT cruzou com uma do Ministério Público da comarca de Santo
viatura) uma viatura da PM modelo “S-10” Antônio de Jesus devido ao risco iminente
parar perto de dois carros modelo Gol. Um contra sua vida.
soldado saiu da viatura e entregou quatro O representante do Ministério Público
fuzis a um dos integrantes do Gol, que já havia solicitado proteção policial para Ana
estava do lado de fora do carro à espera. Maria em 22 de setembro de 2003, no en-
tanto os policiais designados para protege-
l Ana Maria dos Santos, Santo Antô- la pertenciam ao mesmo batalhão daqueles
nio de Jesus, Bahia que são apontados como membros do grupo
No dia 25 de novembro de 2003 foi en- de extermínio. Ana Maria permaneceu em
viada comunicação à Representante Especi- Santo Antônio de Jesus até o dia 09 de outu-
al da ONU sobre a Situação dos Defensores bro de 2003 e desde o dia 11 de outubro está
de Direitos Humanos relatando a situação vivendo em outra cidade devido ao sério ris-
de Ana Maria dos santos, em Santo Antônio co de vida.
de Jesus, Bahia34 .
Ana Maria dos Santos é coordenadora
do Fórum de Direitos Humanos de Santo TRABALHO ESCRAVO
Antônio de Jesus (FDH), Bahia. Desde 2001
o FDH tem denunciado a existência de um Em 20 de agosto de 2003 foi enviada de-
grupo de extermínio na região. Em maio de núncia para a Representante Especial da ONU
2002, o FDH reuniu depoimentos de famili- sobre a Situação dos Defensores de Direitos
ares de vítimas, testemunhas e sobreviven- Humanos, relatando as ameaças de morte
tes e os encaminhou a Promotora de Justiça sofridas por Frei Xavier Plassat, Silvano
de Santo Antônio de Jesus, Ana Rita Cer- Rezende, Márcio Lúcio Avelar e Jorge Vieira
queira. nos estados do Pará e Tocantins35 .
Em 20 de setembro de 2003, durante sua No último ano, trabalhadores rurais têm
visita ao Brasil, a Relatora Especial da ONU recebido ameaças de morte em resposta a
sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e denúncias de trabalho escravo em fazendas
Extrajudiciais, Asma Jahangir, entrevistou no sul do estado do Pará. Tais ameaças têm
Ana Maria e outras testemunhas. Uma de- forçado os trabalhadores a viverem na clan-
las, Gérson Bispo dos Santos, foi executada destinidade, a qual os impossibilita traba-
em 9 de outubro, poucos dias após a partida lhar, viver junto às suas famílias e até a fre-
da Relatora. Ana Maria recebeu várias ame- qüentar lugares públicos.
34
Ofício JG/RJ n.º 156/03.
35
Ofício JG/RJ n.º 118/03.
131
Direitos Humanos no Brasil 2003
núncias feitas, Frei Xavier Plassat, coorde- detentos no Centro de Detenção de Pedri-
nador da CPT na Campanha Nacional con- nhas, São Luís, Maranhão
tra a Escravidão e seu colega, Silvano Em 18 de dezembro de 2002, foi envia-
Rezende, receberam ameaças diárias, como do ofício ao Relator Especial da ONU sobre
forma de pressiona-los a desistir de sua luta. Tortura, informando o espancamento e tor-
O Procurador da República de Palmas, tura de aproximadamente 62 detentos da
Tocantins, Mário Lúcio de Avelar e o Juiz Casa de Detenção do Complexo Penitenciá-
do Trabalho de Parauapebas, Pará, Jorge rio de Pedrinhas, em São Luís, estado do
Vieira, igualmente receberam ameaças de Maranhão37 .
morte devido aos seus trabalhos contra o tra- O diretor da Casa de Detenção do Com-
balho escravo na região. plexo Penitenciário de Pedrinhas, Carlos
James Moreira, ordenou a entrada de um
l Pastoral Carcerária da Arquidiocese pelotão do Batalhão de Choque no Pavilhão
de São Paulo, São Paulo B, no dia 24 de novembro por volta das 18
Em 11 de dezembro de 2003 foi enviada horas, depois de receber notícias de que ha-
denúncia para a Representante Especial da veria uma fuga. Ao entrar no Pavilhão, o
ONU sobre a Situação dos Defensores de pelotão ordenou que os presos ficassem nus
Direitos Humanos, relatando as ameaças e e em seguida fizeram um “corredor polo-
intimidações sofridas por agentes da Pasto- nês” no qual aproximadamente sessenta pre-
ral Carcerária através de correio eletrônico sos foram espancados a socos, pontapés,
enviado no dia 15 de novembro de 200336 . golpes de cacetetes, e armas de fogo de cano
Em 15 de setembro do corrente ano, a longo.38 Destaca-se que depois dos espan-
Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São camentos, os presos foram obrigados a dei-
Paulo recebeu em seu endereço eletrônico tar no chão enquanto membros do pelotão
uma comunicação extremamente grave e pulavam em cima das suas costas, e enfia-
preocupante. O texto do e-mail, além de con- vam cassetetes em seus ânus.
ter xingamentos, ofensas e acusações abso- Em virtude do acontecido, os presos do
lutamente infundadas, continha também gra- Pavilhão C começaram a gritar e xingar os
ves ameaças aos agentes pastorais visando integrantes do Batalhão. Como represália,
36
Ofício. JG/RJ 172/03, de 13 de Dezembro de 2003.
37
Ofício JG/RJ n.º 257/02.
38
Portaria n.º 001/2002-PFEP, de 26 de novembro de 2002. Parecer técnico encaminhado pela médica Ieda Maria Silva Araújo (CRM/MA
2139) ao Promotor de Justiça da Promotoria de Execuções Penais de São Luís, em 3 de dezembro de 2002, p. 1. Edvânia Kátia, “Querem a
cabeça do diretor”, O Imparcial, São Luís, 2 de dezembro de 2002.
132
Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
39
Ofício JG/RJ n.º 129/03.
40
Idem. O comerciante estava com lesões nos antebraços, na área em torno dos olhos, nos pulsos e nas pernas — o que fornece ao menos
indícios de que se feriu tentando se defender.
41
Ofício JG/RJ n.º 158/03.
133
Direitos Humanos no Brasil 2003
leira realizou uma apresentação perante este A Corte convocou para 4 de junho de
órgão máximo de direitos humanos da OEA. 2003 uma audiência pública sobre a solici-
A audiência tratou da incompatibilidade tação de Opinião Consultiva OC-18, com o
entre determinadas políticas de controle propósito de que pessoas e organizações que
migratório e a proteção dos direitos traba- haviam remetido informes na qualidade de
lhistas de migrantes sem documentação. Este amicus curiae, apresentassem seus argumen-
problema existe em vários países do conti- tos orais a respeito.
nente, mas principalmente nos Estados Uni- Como suporte ao debate jurídico, o do-
dos, país que conta com a maior população cumento (amicus curiae) e a sustentação
de migrantes do mundo e onde ocorrem as oral, realizada no dia 4 de junho pelo Cen-
mais graves violações e abusos contra os tra- tro de Justiça Global, contextualizaram a
balhadores estrangeiros irregulares, muito situação dos migrantes irregulares, enfatizan-
embora este grupo represente parcela signifi- do o desnível existente entre a proteção ju-
cativa da força de trabalho norte-americana. rídica existente e a realidade discriminató-
Em maio de 2002, o governo mexicano ria contra migrantes não documentados, ob-
solicitou um parecer (opinião consultiva) à servada em seis Estados das Américas, en-
Corte Interamericana de Direitos Humanos tre eles, o Brasil.
para que este órgão estabeleça padrões mí- A apresentação foi produzida conjunta-
nimos de proteção aos trabalhadores estran- mente com a Harvard Law Student
geiros irregulares, que sejam respeitados por Advocates for Human Rights e o Harvard
todos os países da região.42 Immigration and Refugee Clinic da Facul-
Em suma, o governo mexicano argumen- dade de Direito de Harvard. A sessão foi
tou que estava preocupado com interpretações presidida pelo juiz brasileiro Antonio
práticas ou leis de alguns Estados da região, Cançado Trindade, juiz-presidente da Corte
que implicam em negar, entre outros, direi- Interamericana.
tos laborais sobre a base de critérios Em 17 de setembro de 2003, a Corte
discriminatórios fundados na condição mi- Interamericana emitiu a opinião consultiva
gratória dos trabalhadores indocumentados.43 OC-18/03, decidindo por unanimidade, em
Em 13 de janeiro de 2003, o Centro de linhas gerais44:
Justiça Global enviou um informe à Corte,
na qualidade de amicus curiae, argumentan- a) que os Estados têm a obrigação geral
do que os princípios da igualdade e da não- de respeitar e garantir os direitos fundamen-
discriminação não podem ser limitados por tais;
políticas públicas migratórias e por legisla- b) que o descumprimento, mediante
ções e interpretações de leis trabalhistas. qualquer tratamento discriminatório, desta
42
Solicitação de Opinião Consultiva OC-18, requerida pelos Estados Unidos Mexicanos. Ver http://www.corteidh.or.cr/serie_a/Serie_a_18_esp.doc
43
As discussões e escritos sobre a questão referiam-se principalmente à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, de 27 de março de 2003,
no caso Hoffman Plastic Compounds Inc. v. National Labor Relations Board. Trata-se do caso de um trabalhador migrante não-documentado
nos Estados Unidos, que foi despedido por tentar formar um sindicato. A Suprema Corte Americana decidiu que o empregado havia incorrido
em falta grave, por não ter documentação, negou-lhe direito aos salários atrasados (back-pay), hora extra e indenização, e ainda não aplicou
qualquer multa ao empregador.
44
Corte Interamericana de Direitos Humanos, “Condição jurídica e direitos dos migrantes não documentados”, OC-18/03 Ver: http://
www.corteidh.or.cr/serie_a/Serie_a_18_esp.doc
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Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
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Direitos Humanos no Brasil 2003
pela falta de controle sobre a criação de mi- l Petições enviadas para a Comissão
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Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
137
Direitos Humanos no Brasil 2003
2001 (P-825/2001) a respeito da explosão sou a sofrer ameaças de morte e foi vítima
de fábrica clandestina de fogos de artifício, de uma série de atentados à sua vida. O
ocorrida em 11 de dezembro de 1998, em mesmo ocorreu com a promotora de justiça
Santo Antônio de Jesus, Bahia. A explosão Rosemary Souto Maior de Almeida, cuja
resultou na morte de 64 empregados da fá- colaboração foi de fundamental importân-
brica, além de lesões graves em outras 5 cia na referida CPI, tendo desarquivado di-
pessoas, que até hoje estão incapacitadas versos inquéritos policiais e realizado inves-
para o trabalho. Em 06 de outubro de 2003, tigações que culminaram na comprovação
a Comissão Interamericana decidiu instau- da existência dos referidos grupos de exter-
rar o Caso sob o nº 12.428 e diferir sua mínio nas regiões de Itambé-PE e Pedras de
admissibilidade até o debate e decisão de Fogo-PB, nos quais era notório o
fundo. Em 17 de janeiro de 2003, o Centro envolvimento de policiais civis e militares.
de Justiça Global, o Fórum de Direitos Hu- Desde então a promotora tem sido vítima
manos de Santo Antônio de Jesus e a Rede de constantes ameaças de morte e persegui-
Social de Justiça de Direitos Humanos, apre- da dentro de sua própria instituição.
sentaram observações adicionais de fundo
sobre o mérito do caso.
RECOMENDAÇÕES
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Capítulo XII — Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos
45
O Brasil apenas assinou este Protocolo Opcional em 6 de Setembro de 2000. A ratificação continua pendente.
46
Idem.
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