Aula 5 FINLEY, M. - Mito, Memoria e Historia

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Copyright © 1965 by Wesleyan University; reproduzido com autorização da Wesleyan

University Press.

l
Mito, memória e história*

Os pais da história foram os gregos. Os historiadores da Antiguidade têm muito


orgulho disso, tanto que preferem não se lembrar que algumas das maiores
inteligências em história antiga não se impressionaram muito com esse feito. Os
cunhadores de bons mots sempre tiveram grande predileção pela história enquanto
disciplina: é falsa, é perigosa, é bobagem. Os historiadores podem ignorar
tranqüilamente as zombarias e dúvidas de Walpole ou Henry Ford, ou mesmo de
Goethe, mas Aristóteles é outro caso, pois, afinal, criou várias ciências e dominou
outras também, de um modo ou de outro — exceto história e economia. Ele não
escarneceu da história, ele a rejeitou, nas famosas palavras do nono capítulo de sua
Poética: “A poesia é mais filosófica e séria do que a história, pois aquela fala
principalmente do universal e a história do particular. Por ‘universal’ entendo que
determinado indivíduo dirá ou fará determinadas coisas segundo a verossimilhança ou
a necessidade; esse é o propósito da poesia, acrescentar os devidos nomes às suas
personagens. Por ‘particular’ refiro-me ao que Alcibíades fez e pelo que passou.”
Não é de admirar que, dentre todos os capítulos, o nono talvez seja a maior vítima da
conhecida “reclamação contra as supostas omissões de Aristóteles” na Poética1.

* Uma versão mais curta deste ensaio, publicada em History and Theory 4 (1965) 281-302, foi
apresentada na forma de conferência no Warburg Institute, em 28 de outubro de 1964. Agradeço
a G. S. Kirk e E. R. Leach pelas críticas e sugestões.
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Esta foi tachada de “insuficiente” e invalidada por engenhosas exegeses, como se retórica, é um trabalho inferior, superficial e essencialmente sem valor3. Seu único
Aristóteles fosse um dos filósofos pré-socráticos cujas poucas frases enigmáticas que ponto e interesse para nós é que, quinhentos anos depois de Aristóteles, Luciano ainda
chegaram até nós podem ser ajustadas a mil teorias diferentes; ou então, como se não estava contrapondo a história à poesia. Nessa época, os próprios historiadores já
tratasse da história, a Poética foi polidamente desprezada. Este último argumento, tinham aceitado havia muito tempo a necessidade de competir com a poesia –
porém, encerra um perigoso elemento de verdade; Aristóteles nunca se ocupou da capitulando e escrevendo trabalhos que Políbio rejeitou com o irônico rótulo de
história, nem no capítulo nove nem em qualquer outro. “história trágica”4. Muitos historiadores, e, o que é crucial, até mesmo os que
Afora duas referências casuais na Poética e uma recomendação, na Retórica resistiram mais bravamente, não lograram vencer nem a indiferença dos filósofos nem
(1360a 33-37), de que os líderes políticos deviam ampliar sua experiência através da o gosto dos leitores comuns.
leitura de livros sobre viagens e história, ele não torna a mencionar esse assunto em Por que poesia? A resposta, naturalmente, é que com “poesia” Aristóteles e os
nenhum ponto da vasta obra a nós transmitida. Nada poderia ser mais significativo do outros referiam-se tanto à poesia épica, à recente poesia lírica, como a de Píndaro,
que esse profundo silêncio. Indicações do passado, o passado enquanto fonte de quanto à tragédia, que retratavam as grandes figuras e os grandes acontecimentos do
paradigmas é uma coisa; história enquanto estudo sistemático, enquanto disciplina, é passado. Não se tratava de saber se essa poesia era ou não historicamente confiável, ou
outra2. Ela não é séria o bastante, não é suficientemente filosófica, nem mesmo quando até que ponto o era, no sentido em que hoje em dia fazemos o mesmo tipo de pergunta
comparada à poesia. Não pode ser analisada, reduzida a princípios, sistematizada. Ela em relação aos épicos antigos; tratava-se, isso sim, da questão mais profunda da
simplesmente nos diz o que Alcibíades fez ou sofreu. Ela não estabelece verdades. Não universalidade, da verdade sobre a vida em geral. A questão, em resumo, era distinguir
tem uma função séria. mito de história. Por “mito” refiro-me ao que, na acepção comum, geralmente significa
Pode-se ir muito mais longe. Todos os filósofos gregos, até o último dos “mito” e “lenda”, e não aos sentidos mais metafóricos, como na expressão “o mito
neoplatônicos, estavam evidentemente de acordo quanto a sua indiferença para com a racista”, ou às muito conhecidas extensões do termo usadas por pensadores modernos
história (como disciplina). Pelo menos é o que o silêncio deles sugere, um silêncio como Sorel ou Cassirer5. Refiro-me a mitos como os de Prometeu, Héracles e a Guerra
rompido apenas por murmúrios fugazes. Consta que Teofrasto, o discípulo de de Tróia.
Aristóteles, escreveu uma obra chamada Da História, assim corno seu amigo mais A atmosfera na qual os pais da história começaram a trabalhar estava impregnada
jovem Praxífanes, outro peripatético. Ninguém sabe mais nada além dos títulos dessas de mitos. Sem o mito, na verdade, eles nunca teriam conseguido iniciar seu trabalho. O
duas obras. Especular sobre seu conteúdo é perda de tempo. Devemos simplesmente passado é uma massa desconexa e incompreensível de dados incontados e incontáveis.
registrar o total desaparecimento dos dois livros e o fato de que eles não foram Ele só pode tornar-se inteligível se for feita uma seleção em torno de um ou mais
mencionados nem por Diógenes Laércio em seu livro A Vida dos Filósofos, por focos. Em todos os infindáveis debates gerados pelo wie es eigentlich gewesen (como
exemplo, nem pelos estudiosos de Aristóteles*. as coisas foram realmente), de Ranke, uma primeira pergunta é frequentemente
O que faltou de filosofia sobrou de retórico. É razoável supor que a única obra esquecida: que “coisas” merecem ou exigem consideração para se definir como elas
antiga a nós legada que pretende ser um ensaio sistemático sobre historiografia é Como “foram realmente”? Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu
Escrever História, de Luciano, escrita pouco depois de 165 d.C. Essa obra, uma uma resposta. Essa era sua função, ou melhor, uma de suas funções: tornar o passado
mistura de regras e máximas que se tornaram lugares-comuns na instrução inteligível e compreensível selecionando e focalizando algumas partes dele, que, desse
modo, adquiriram permanência, relevância e significado universal6.
Quando Heródoto atingiu a juventude, o passado distante estava bastante vivo na
* Não me esqueci de Posidônio. Mas nem mesmo esse autor de uma obra (perdida) em larga consciência dos homens, mais vivo do que os séculos ou as gerações recentes: Édipo,
escala histórica, dentro da tradição retórica, deu a menor contribuição ao método histórico, e Agamenon e Teseu eram mais reais para os atenienses do século V que qualquer figura
muito menos à filosofia da história. A considerável importância da obra de Posidônio, história anterior a esse século salvo Sólon, e este foi elevado à categoria daqueles, ao
aumentando o conhecimento greco-romano de outros povos e nações, particularmente aqueles ser transformado em figura mítica.
que os romanos estavam conquistando no Oeste, não altera minha proposta geral sobre a história
e os filósofos antigos. Veja a respeito A. Momigliano, Alien Wisdom (Cambridge, 1975), cap. 2.
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As tragédias e odes corais apresentadas anualmente nas grandes festividades Tucídides sustenta seu ponto de vista demoradamente, e entre as personagens
religiosas faziam ressurgir os heróis míticos, e estes, recuando pelas gerações de “históricas” que ele apresenta em sua introdução aparecem Heleno, filho de Deucalião
homens até chegarem aos deuses, recriavam a trama contínua da vida para o público, (o ancestral de cujo nome se originou o dos helenos), Minos, rei de Creta, e Agamenon
pois os heróis do passado, e mesmo muitos heróis do presente, tinham ascendência e Pélops. Os detalhes são vagos, afirma ele, tanto sobre o passado remoto quanto sobre
divina. Tudo isso era sério e verdadeiro, literalmente verdadeiro. Era a base da religião o período que antecedeu a Guerra do Peloponeso — um ponto em comum bastante
deles, por exemplo. Há uma bela passagem de Robertson Smith que resume o quadro: significativo —, mas os esboços gerais são claros e confiáveis8. Homero exagerou,
“Na Grécia antiga... certas coisas eram feitas num templo, e o povo concordava que pois, sendo poeta, empregou adequadamente a licença poética, e Tucídides, ao
deixar de fazê-las seria uma heresia. Mas se você tivesse perguntado por que elas eram contrário da maioria vulgar, reconheceu isso em sua introdução. O próprio Tucídides
feitas, provavelmente teria recebido várias explicações mutuamente contraditórias de alerta que em seu trabalho não atenderá aos anseios por exageros e adornos poéticos da
pessoas diferentes, e ninguém teria dado a menor importância religiosa a qual delas parte dos leitores; seu relato dos fatos será objetivo. Mas nem Tucídides, Platão,
você resolvesse adotar. Na verdade, as explicações apresentadas não teriam sido do Aristóteles ou qualquer outro chegaram a mostrar-se totalmente céticos quanto ao que
tipo a suscitar sentimentos fortes, pois, na maioria dos casos, não passariam de um escritor moderno poderia chamar de “semente histórica do épico”, e certamente
histórias diferentes a respeito das circunstâncias em que o rito foi estabelecido pela não o rejeitaram por completo.
primeira vez, por determinação ou exemplo direto do deus. O rito, em suma, não Contudo, o que quer que tenha sido, o épico não era história, e sim uma narrativa,
estava ligado a um dogma e sim a um mito.”7 detalhada e precisa, com descrições minuciosas de guerras, viagens marítimas,
Os gregos, todavia, amavam os épicos e as tragédias não só porque precisavam banquetes, funerais e sacrifícios, todos muito reais e vívidos; ele podia conter inclusive
ser lembrados das origens de seus ritos, embora essa função fosse muito importante algumas sementes encobertas do fato histórico — mas não era história. Como todo
para o indivíduo — e ainda mais para a comunidade, que era arraigada a seus mito, era atemporal. As datas e um escalonamento coerente de datas são tão essenciais
padroeiros e ancestrais divinos. O mito era o grande mestre dos gregos em todas as para a história quanto a medição exata o é para a física9. O mito também sugeria fatos
questões do espírito. Com ele, aprendiam moralidade e conduta; as virtudes da nobreza concretos, mas estes eram completamente isolados: não tinham ligação nem com os
e o inestimável significado ou a ameaça da hybris; e ainda sobre raça, cultura e até acontecimentos anteriores nem com os posteriores. A Ilíada começa com a cólera de
mesmo política. Pois não foram Sólon e Pisístrato acusados de falsificar o texto da Aquiles por causa de uma afronta à sua honra e termina com a morte de Heitor. A
Ilíada, introduzindo dois versos com a finalidade de obterem autorização da obra de Odisséia, como cenário para as viagens de Ulisses, menciona o término da Guerra de
Homero para o confisco de Salamina aos megáricos?* Tróia e o retorno de alguns dos heróis. Mas tudo isso acontecia no estilo “era uma
Nesse contexto, não é de surpreender que na Antiguidade a história tenha sido vez”, surgindo do nada (o rapto de Helena é meramente outro fato isolado, totalmente
discutida, julgada e avaliada com base na poesia. Fundamentalmente, tratava-se de a-histórico sem qualquer sentido significativo) e levando a nada. Mesmo dentro da
uma comparação entre duas formas de narração do passado. Porém, há uma verdade narrativa, o relato é fundamentalmente atemporal, apesar de muitos números (de dias
irrefutável: todos reconheciam que a tradição épica era baseada em fatos concretos. Até ou anos) serem determinados. “Esses números, em sua maioria, referem-se tipicamente
mesmo Tucídides, que nos diz isso tão logo acaba de se apresentar. A Guerra do a todas quantidades possíveis, e em geral não estão ligados entre si; não servem de
Peloponeso, afirma ele, dentre todas as que a precederam, é a que mais merece ser base para cálculos ou sincronizações. Simplesmente indicam, de modo amplo, uma
narrada, “pois foi o maior movimento, até hoje, entre os helenos e entre uma parte do magnitude ou escala, e em sua pseudoprecisão estilizada simbolizam uma longa
mundo bárbaro”, maior, especificamente, até mesmo que a Guerra de Tróia. duração. Na realidade, não há interesse na cronologia, quer relativa quer absoluta.”10
Muitos anos depois, os autores de tragédias mantiveram a mesma indiferença: Édipo,
Ifigênia, Orestes, todos fizeram ou passaram por coisas que se acreditava serem fatos
* Os versos são 2.557-58: “Ájax trouxe doze navios de Salamina e, ao trazê-los, estacionou-os
ao lado das fileiras atenienses.”
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históricos, mas os eventos flutuavam vagamente no passado distante, desvinculados, ela é destruída e substituída por uma nova criação. Nenhuma das raças existe nem no
em termos de tempo ou padrão, de outros acontecimentos. tempo nem no espaço. As raças humanas são atemporais como a Guerra de Tróia: tanto
A atemporalidade reflete-se também nas características individuais. A morte é um em relação ao futuro quanto ao passado. E assim Hesíodo pode lamentar: “eu não
dos principais tópicos de suas vidas (bem como a honra, da qual é inseparável), e o queria estar entre os homens da quinta geração, e sim ter morrido antes ou nascido
destino é freqüentemente o mais importante poder propulsor. Nesse sentido eles vivem depois” (versos 174-75)12.
no tempo, e tão-somente nesse sentido. A nenhum leitor da Odisséia deve ter escapado É possível que o mito das quatro idades ou raças do metal tenha se originado no
que quando o herói volta, depois de vinte anos, ele e Penélope são exatamente o que Oriente, sendo helenizado por Hesíodo. Mas houve também uma quinta idade ou raça,
haviam sido meia geração antes. Mas Samuel Butler certamente não se deu conta certamente grega do começo ao fim: a idade dos heróis inseridos entre o bronze e o
disso, quando escreveu: “Não há nenhum caso de amor na Odisséia, exceto a volta de ferro. “Mas quando a terra cobriu também essa geração [bronze], Zeus, o filho de
um homem casado, calvo e idoso, para a esposa idosa e o filho adulto, depois de uma Cronos, criou mais outra, a quarta, sobre a terra fecunda, que era mais nobre e justa,
ausência de vinte anos, e furioso por terem-lhe roubado tanto dinheiro nesse uma raça semelhante a deus, de homens-heróis que são chamados de semideuses, a
meio-tempo. Dificilmente, porém, poderíamos chamar isso de caso de amor; quando raça que antecedeu a nossa, por todo o vasto mundo.” Essa colcha de retalhos era
muito, não passa de domesticidade.”11 inevitável, pois os mitos dos heróis estavam tão arraigados na mente e eram tão
O poeta não diz que Ulisses estava calvo e velho; Butler é quem o diz, e, indispensáveis que não podiam ser deixados de lado. A colcha de retalhos é a regra no
provavelmente, foi isso que ele chamou de ler os versos homéricos “com inteligência”: mito, e não causa problemas. Só os que têm uma mente voltada para a história é que
lendo-lhes as “entrelinhas”. Um Ulisses que não estivesse calvo e velho depois de vêem os pontos rústicos e as costuras defeituosas, e sentem-se incomodados com isso,
vinte anos seria contrário ao senso comum e à “inteligência”. O erro – e Samuel Butler como é evidente em Heródoto. Mas Hesíodo não tinha uma mente voltada para a
é apenas um bode expiatório para uma prática freqüente – está em aplicar o história. De um lado estavam as quatro raças e, de outro, a raça dos heróis. Estes eram
pensamento histórico moderno, à guisa de senso comum, a um relato mítico, os dados e a tarefa do poeta consistia em coligi-los. Ele o fez do modo mais fácil
a-histórico. Esposas e maridos históricos envelhecem, mas a verdade é que nem possível, graças à total ausência do elemento tempo. Não havia problemas
Ulisses nem Penélope mudaram em nada; não evoluíram nem degeneraram, assim cronológicos, nem datas para ser sincronizadas, nem evolução para ser acompanhada
como nenhuma outra personagem do poema épico. Tais homens e mulheres não podem ou explicada. A raça de heróis não tinha começo na história: ela simplesmente foi feita
ser personagens da história; são excessivamente simples, fechados em si mesmos, por Zeus. E também não tinha fim, não sofrera transição para o estágio seguinte, o
rígidos e estáveis, excessivamente desvinculados de seus contextos. São atemporais contemporâneo. Alguns dos heróis foram destruídos diante dos portões de Tebas e na
como o próprio poema. Guerra de Tróia. “Mas, para os outros, o pai Zeus, filho de Cronos, deu vida e um lar
Talvez o exemplo mais decisivo não venha de Homero, mas de Hesíodo, que separados dos homens, obrigando-os a morar nos confins do mundo. E, imunes à
viveu aproximadamente na mesma época*. A introdução de Os Trabalhos e os Dias tristeza, vivem eles nas ilhas dos bem-aventurados ao longo da costa do profundo e
contém um dos mais famosos relatos primitivistas, a narrativa do declínio do homem revolto oceano.”13
da idade de ouro do passado em vários estágios, cada um simbolizado por outro metal: Existe, naturalmente, um sentido no qual o mito das idades não é propriamente um
ao ouro sucede-se a prata, em seguida o bronze ou o cobre, e finalmente o ferro (a era mito. Ele é abstraio demais. O poema de Hesíodo, em sua primeira parte, trata do
presente). Mas a visão de Hesíodo não é de degeneração progressiva, de evolução ao problema do mal. Jamais se escreveu uma denúncia tão desesperadora contra a
contrário. Cada raça humana (Hesíodo fala de raças, genê, não de idades) não evolui injustiça do mundo. Por que, ele pergunta, por que o mundo está tão cheio de maldade?
até a seguinte; Sua primeira resposta é mítica no sentido mais tradicional do termo; ele conta a
história de Prometeu e Pandora: uma resposta tipicamente mítica, o tipo da resposta
que os gregos continuavam a dar para explicar crenças e ritos durante toda sua história.
* É conveniente (e, neste contexto, inócuo) falar de Homero e de Hesíodo individualmente,
deixando-se de lado o complexo problema da autoria de “seus” poemas.
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Mas agora, prossegue ele sem interrupção, vou contar-lhes uma outra história. dos tempos históricos, em contraposição a tempos míticos16. O que Heródoto
Hesíodo faz, então, o relato das raças humanas, que é a alternativa para o mito de conseguiu fazer foi estabelecer uma espécie de seqüência cronológica para dois séculos
Pandora. Há claramente um novo tipo de pensamento aqui, incipiente, poético e não do passado, aproximadamente da metade do século VII a.C. em diante. Tudo que
sistemático, sem seqüência e sequer apropriadamente ligado ao resto do extenso aconteceu antes continuou como estava quando ele começou seu trabalho, contos
poema, mas que, em contrapartida, está voltado para um modo de comportamento épicos e míticos supostamente verdadeiros, pelo menos em essência, mas
intelectual inteiramente novo, deixando de centrar-se no mito e no épico. “O que era incorrigivelmente atemporais.
no começo?”, um historiador de filosofia grega escreveu sobre Hesíodo, “é a pergunta O fato puro e simples é que os gregos clássicos sabiam muito pouco sobre sua
da história precisamente no ponto em que ela se transforma em filosofia... A pergunta história anterior a 650 a.C. (ou mesmo 550 a.C.), e o que eles pensavam que sabiam era
que Hesíodo faz já não se refere mais ao passado histórico, e sim ao começo do que uma confusão de fatos e ficção, alguns fatos misturados e muita ficção sobre o
existe, uma pergunta de origens filosóficas...”14 Mas “história” está completamente fora essencial e sobre a maioria dos detalhes. Basta atentarmos para a introdução de
de lugar aqui. Hesíodo está prenunciando a passagem do mythos para o logos, Tucídides, que já mencionei, na qual ele justifica seu próprio esforço apresentando em
passagem que, sem ser mediada pela história deu-se totalmente à margem desta. Foi a vinte e um capítulos (doze páginas) uma notável interpretação dos primórdios da
transição da atemporalidade do mito para a atemporalidade da metafísica. história da Grécia. A partir do capítulo catorze ele trilha sobre bases firmes,
Mais de dois séculos se passaram antes que o passado (mais recente) fosse estabelecidas por Heródoto (cujo livro ele estudara cuidadosamente) com a
submetido a algum tipo de cronologia. Esse foi o trabalho de Heródoto. Escrevendo no indispensável ajuda de registros egípcios, persas, e outros do Oriente Próximo. Mas na
terceiro quartel do século V, Heródoto presumiu que Homero vivera quatrocentos anos primeira parte ele não tinha em que se basear a não ser em Homero e outros “poetas
antes (por volta de 850 a.C.) e que a Guerra de Tróia tinha acontecido outros antigos”, na tradição, nas evidências contemporâneas, e em uma mente poderosa e
quatrocentos anos antes disso (1250 a.C., aproximadamente). Sabia-se que muitos disciplinada. O resultado é uma teoria abrangente, qual seja, a de que a grandeza e o
eventos tinham ocorrido durante esse longo intervalo, como a volta de Heráclides para poder helênicos só emergiram em conseqüência do desenvolvimento sistemático da
Esparta, os vários (e cronologicamente incompatíveis) feitos de Teseu, ou a legislação navegação e do comércio, que precedem uma acumulação de riquezas, uma
de Licurgo. Esses, Heródoto foi totalmente incapaz de ajustar dentro de seu esquema organização estável da comunidade, o imperialismo (para usar uma palavra anacrônica)
cronológico. A culpa não foi dele, e sim uma conseqüência do fato de que os dados e, finalmente, a maior de todas as lutas gregas pelo poder, a Guerra do Peloponeso.
eram atemporais e, portanto, a-históricos. A dimensão de seu gênio deve-se meramente Essa teoria pode estar correta, em sua totalidade ou em parte, ou pode estar errada —
a ele ter levado tais limitações em consideração (ainda que não chegasse ao ponto de não estou tratando desse aspecto neste momento. O crucial é que essa teoria deriva de
duvidar do “fato”, como Orestes, Teseu e os demais), não se empenhando, assim, em uma prolongada meditação sobre o mundo no qual Tucídides viveu, e não de um
atribuir datas aos mitos indatáveis. A cronologia histórica de Heródoto, se é que há estudo da história. Existe, naturalmente, algo aqui que é história num sentido
uma, é mais precisa do que tem-se admitido, assim como a recusa dele em arruiná-la conceitual: Tucídides sugeriu corajosamente que havia uma continuidade e um
com a inclusão dos eventos míticos15. Estes últimos aparecem com freqüência em seu desenvolvimento na Grécia desde os tempos mais antigos (míticos) até o seu. Eu não
trabalho, mas como algo isolado, como algo que aconteceu no estilo “era uma vez”, ao subestimo essa nova concepção, mas a efetiva utilização que Tucídides faz dela na
contrário, por exemplo, do que ocorre com a carreira de Sólon ou o reinado de introdução de sua obra não é história em nenhum sentido dessa palavra. Em vez disso,
Polícrates em Samos. Polícrates, segundo Heródoto (3.122), aparentemente foi o ele nos apresenta o que na realidade é uma teoria sociológica geral, uma teoria sobre
primeiro grego a pensar num império marítimo, “deixando de lado Minos” e outros poder e progresso, aplicada retroativamente ao passado e aplicada, devemos
iguais a ele; o primeiro, em outras palavras, “no que se chama de ‘tempo dos homens’” acrescentar, com cautela e hesitação, pois, como Tucídides explica de início, não se
— o qual podemos definir como o primeiro pode ter certeza sobre os tempos antigos; pode-se apenas dizer que todos os “indícios”
sugerem o que foi o passado.
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Surpreendentemente, há poucos eventos concretos entre os indícios: a primeira Micena do século V podiam ser consideradas uma só cidade, restaurada e
talassocracia “conhecida pela tradição” (a do rei Minos), a Guerra de Tróia, algumas eventualmente reconstruída, mas essencialmente a mesma”17.
migrações, mudanças nos hábitos de vestir e na prática de carregar armas, a extensão Esses erros, juntamente com a ausência de todas as datas e de virtualmente todos
de Esparta para os jogos olímpicos, do hábito de os atletas competirem inteiramente os eventos fixados entre 1170 e 700, destroem qualquer possibilidade de uma história
nus nas provas, e outras poucas coisas sem importância — até a época dos tiranos e dos adequada da Grécia primitiva. Eu não estou querendo dizer que Tucídides tentou
anais persas. Só há quatro datas: a da migração dos beócios para a Beócia sessenta escrevê-la, mesmo em forma embrionária, e fracassou; pelo contrário, ele não tentou
anos depois da Guerra de Tróia e a dos dórios para o Peloponeso vinte anos depois porque não acreditava nem na possibilidade nem na necessidade de escrevê-la. O que
disso; a da construção de quatro trirremes (uma nova invenção muito importante) pelo quero dizer é que, dadas tais condições, grego algum podia escrever uma história, e a
coríntio Amínocles para os sâmios trezentos anos antes do fim da Guerra do prova está no patético fracasso daqueles homens dos últimos séculos, que tentaram
Peloponeso (ou seja, por volta de 700 a.C.); e, quarenta anos depois, a do primeiro escrever anais e histórias universais desde a Guerra de Tróia (ou a criação do mundo)
registro de uma batalha naval, entre Corinto e Corcira. Tucídides não fixa a data da até seus próprios dias. Eles não dispunham de informações, nem tinham como obtê-las.
Guerra de Tróia, mas mesmo tendo aceito a cronologia de Heródoto, ele não datou Disso podemos ter certeza, assim como podemos corrigir seguramente os erros de
nenhum evento entre 1170 e 700 a.C., período igual ao decorrido entre a ascensão de Tucídides sobre a queda de Micena ou sobre a origem e a data dos vasos geométricos.
Henrique VII e nossos dias. Tudo que aconteceu nesse intervalo só podia ser fixado E, além disso, sabemos muito mais (e com muito mais precisão) a respeito das
como “depois” ou “bem depois”. Além do mais, não temos nenhuma fonte tendências políticas e do crescimento das cidades e desenvolvimento do comércio e do
independente para confirmar suas duas últimas datas, e podemos rejeitar suas duas dinheiro, bem como de toda a lista de fenômenos institucionais e sociais. E, ainda
primeiras por se acharem elas ainda no terreno do mito, qualquer que seja a verdade assim, somos também totalmente incapazes de escrever a história desse período. Essa é
sobre os movimentos dos beócios e dos dórios. Dispomos, porém, de um meio de a inevitável herança que os gregos nos deixaram. Podemos, por exemplo, discorrer
verificar o quadro geral do progresso material e da migração, onde constatamos que o com considerável sutileza e sofisticação — e com uma verossimilhança inerente —
resultado é negativo (deixando-se de lado a possível validade da própria teoria do sobre o declínio da monarquia e o surgimento da polis aristocrática, mas não podemos
poder marítimo). Nesse parágrafo, Tucídides baseia explicitamente seus argumentos no narrar a história, nem mesmo em forma fragmentária, de sequer uma única
que devemos chamar de “provas arqueológicas”, que são duas: as ruínas de Micenas e comunidade; estamos coligindo gradualmente muitas informações sobre o aspecto
os ossos e artefatos descobertos quando Delos foi purificada em 425-5 a.C. (durante a físico das primeiras cidades jônicas, e podemos datar seu desenvolvimento com pouca
vida do próprio Tucídides), abrindo-se todos os túmulos e transferindo-se seus margem de erro, mas não temos conhecimento significativo sobre a vida política dentro
conteúdos para a ilha de Renéa. Os argumentos, embora inteligentes e convincentes, delas; podemos classificar cuidadosamente os vasos, mas não sabemos nada sobre os
serão válidos? Pelo contrário, eles revelam total ignorância e confusão sobre o passado ceramistas ou sua atividade. E nunca o saberemos. Em suma, como Tucídides,
em vários pontos de grande importância. Nota-se claramente que Tucídides (assim podemos formular teorias sociológicas e, ao contrário dele, escrever a história da arte
como todos os outros escritores gregos, tanto quanto sabemos) não tinha conhecimento (muito restrita às simples aparências). Mas nós, também, não podemos escrever uma
algum da catastrófica destruição da civilização micênia durante os últimos anos do história da Grécia primitiva.
segundo milênio a.C., nem a profunda descontinuidade entre a civilização micênia e a A razão é muito simples: não há documentos, nada que registre eventos ou relate
civilização grega propriamente dita; ele “não reconhecia a cerâmica... geométrica como quem fez as coisas, quais coisas e por quê. Antes do ano 700 a.C. (um número redondo
particularmente grega e datou-a de, pelo menos, trezentos anos antes”; ele “ou não que uso como parâmetro, não como data precisa), esses documentos nunca existiram,
tinha conhecimento do que chamamos de Idade do Bronze ou então fixou o término nem mesmo na forma mais precária como papiro ou cera. A partir desse ano um
desta em muito antes”. Em resumo, na opinião dele, “a Micena de Agamenon e a conjunto de escritos gregos começou a surgir, aumentando de forma constante, em
volume e variedade, à medida que se aproximavam os séculos V e IV.
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Pouca coisa sobreviveu: algumas citações nas obras dos últimos escritores e coleções ser convertidos, mesmo que existissem às dezenas de milhares, numa história coerente
fragmentárias, recuperadas em nosso século, de papiros egípcios dos tempos e contínua de como as cidades gregas surgiram, cresceram, tomaram forma, lutaram e
helenísticos e romanos. Temos ainda a esperança de encontrar, no futuro, material que viveram. Tampouco os escritores filosóficos acrescentam outra dimensão. E isso foi
venha a aumentar nosso estoque de informações, assim como os novos fragmentos do tudo o que existiu.
poeta Alceu nos ensinaram coisas sobre as lutas políticas internas da aristocracia de Antes do século V ninguém tentou organizar o material essencial da história, nem
Lesbos por volta do ano 600, e sobre a tirania de Pítaco, tão misteriosa em detalhes de seu próprio tempo nem das gerações anteriores. Havia listas — dos reis de Esparta,
quanto famosa em lenda. Se cada linha perdida escrita entre 700 e 500 fosse dos arcontes de Atenas e dos vencedores dos vários jogos. Tais listas poderiam
recuperada, incluindo-se os textos de leis e decretos, bem como os poemas e escritos fornecer uma cronologia se soubéssemos o que aconteceu no arcontado de X ou no
filosóficos, uma geração inteira de historiadores teria de se ocupar da seleção, reinado de Y; mas não sabemos, salvo nuns poucos casos isolados sobre alguns eventos
organização e interpretação do novo material — e ainda assim seríamos incapazes de isolados. Os códigos legais e os regulamentos individuais eram registrados de alguma
escrever a história desses dois séculos, e muito menos dos anteriores. forma, mas não havia arquivos adequados, e estes em sua maior parte se perderam.
Essa sombria predição provém, inevitavelmente, da natureza do material. Por Essa combinação de fatores negativos — a ausência de anais (como os dos reis da
complicadas razões — que, a meu ver, não estamos em posição de formular totalmente Assíria), a indiferença de poetas e filósofos e a perda de documentos públicos — é
-, a composição da poesia épica terminou de um modo um tanto abrupto. Os poetas irrevogável. A menos que uma geração seja documentada e a estrutura de sua história
deram as costas para o passado - tanto para as formas literárias do passado quanto para estabelecida, ou contemporaneamente ou logo depois, o historiador do futuro estará
este como tema - e começaram a escrever sobre si mesmos e seus amigos, seus amores bloqueado para sempre. Ele pode reinterpretar, dar novas ênfases, acrescentar ou
e ódios, sentimentos, alegrias e prazeres. Durante dois séculos toda poesia foi pessoal; subtrair dados, mas não pode criar a estrutura ex nihilo. Eis por que, graças a Heródoto,
ela podia ser frívola ou festiva, erotica (safica ou de outro tipo), ou podia ser séria, podemos escrever a história das guerras persas e, graças a Tucídides, a história da
moralista e filosófica – mas sempre tratava de problemas pessoais e generalidades, e Guerra do Peloponeso, mas não a história dos cinqüenta anos entre elas, não fossem
não de narração nem de política ou sociedade em suas expressões institucionais todos os escritores de tragédias e comédias e todas as inscrições e objetos descobertos
concretas*. por arqueólogos modernos19.
A arqueologia contemporânea é um processo altamente refinado, profissional e
Detesto o magro policial, de pernas afastadas e rígida posição, Célebre, se técnico. O sistema de determinação de datas por meio do Carbono-14 e técnicas
tanto, pela barba e o corte de cabelo; similares algum dia produzirão provas concretas jamais sonhadas no mundo de
A ele prefiro o sujeitinho com sua grandeza de coração Tucídides. Contudo, seria um grande erro creditar nosso conhecimento superior de
E pernas tortas, mas que sempre irão protegê-lo. Micenas unicamente aos avanços científicos. Tecnicamente, Schliemann e Sir Arthur
Evans dispunham de pouca coisa a mais do que os atenienses do século V. Os gregos
Esses versos de Arquíloco18 revelam uma nova escala de valores, a-heróica, antigos já possuíam a habilidade e a mão-de-obra para descobrirem os túmulos em
a-homérica. Outros sugerem trechos biográficos — “Nós, os depauperados da forma de poço de Micenas e o palácio de Cnossos, além de inteligência para vincular
Hélade, fomos em tropa para Tasos” — muitas vezes com importantes implicações as pedras enterradas — caso as tivessem desenterrado — aos mitos de Agamenon e
sociais (neste exemplo, o surgimento do soldado mercenário). São trechos preciosos, Minos, respectivamente. O que lhes faltou foi interesse: é aí que está a grande distância
dada a escassez de nosso conhecimento desses séculos, mas não podem entre a civilização deles e a nossa, entre sua visão do passado e a nossa. Um exemplo
inverso vem de seu uso da evidência literária. Tucídides e seus contemporâneos
* Pode-se considerar alguns dos poemas de Sólon como exceções, mas eles são tão pouco conheciam as principais obras de poesia lírica e elegíaca, mas o uso que delas fizeram
concretos, mesmo a respeito de suas próprias reformas, que depõem a favor de minha para uma análise histórica foi menor e me nos hábil do que o
generalização, não contra.
16 17
nosso em relação aos poucos fragmentos que chegaram até nós. Torno a salientar que em nossa memória, quer nos lembremos espontaneamente dele — abrindo nosso
nem técnica nem inteligência são critérios úteis; só o interesse explica a diferença. caminho do presente até o passado. A memória salta instantaneamente para o ponto
Um certo interesse pelo passado é universal, naturalmente. Essa afirmação, desejado e então estabelece a data por associação. Certamente existe uma certa
todavia, ajuda muito pouco, embora seja repetida várias vezes em livros e textos de consciência de duração, mas ela é satisfeita por “há muito tempo”, “outro dia”, ou por
história, como se fosse muito importante ressaltá-la20. Como não se trata apenas de uma associação que sugere “há muito tempo”, por exemplo, “quando eu ainda era
tautologia — visto que tem memória por natureza, inclusive memória das coisas que estudante”.
lhe são contadas pelas gerações mais velhas, o homem nutre “interesse” pelo passado Isso é bem conhecido e óbvio, e se aplica tanto à experiência grupal quanto à
— essa afirmação é, em todos os sentidos, errada ou desconcertante. O interesse no pessoal. Claud Cockburn registra um encontro revelador com três judeus que falavam
sentido de curiosidade ou desejo de conhecimento é, no uso comum, um termo de um idioma latino, em Sofia, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Ele
psicologia individual que descreve um estado da mente ou dos sentimentos, que não aproximou-se dos três homens na estação de trem sem saber quem eram ou o que
basta para explicar o comportamento individual e é totalmente inútil quando estendido eram. Após tentar inutilmente comunicar-se em vários idiomas, ele experimentou o
a uma sociedade. O próprio interesse deve ser definido e explicado: que parte do espanhol.
passado e em que proporção? Interesse com que propósito, para desempenhar que “Eles entenderam e responderam num espanhol inteligível — apesar de
atividade? O passado tem sido estudado didática e moralmente, como padrão da esquisito... Observei que era curioso encontrar espanhol ali [em Sofia]. Eles
pecaminosidade essencial do homem, por exemplo, ou como guia para a ação política explicaram. Não eram espanhóis mas, disse um deles, ‘nossa família vivia na Espanha
futura; ele tem desempenhado a função sócio-psicológica de dar uma coesão e um antes de mudar para a Turquia. Agora estamos indo para a Bulgária’. Pensando que
propósito à sociedade, de reforçar a moral e de encorajar o patriotismo; ele pode ser, e eles talvez tivessem sido ‘desalojados’ da Espanha pelo levante da guerra civil,
tem sido, usado para fins românticos. E assim por diante. Cada um desses interesses perguntei quanto tempo fazia que sua família morava naquele país. Ele disse que fora
requer um tipo diferente de abordagem e de estudo (dentro de certos limites) — em há aproximadamente quinhentos anos... Falava como se tais acontecimentos tivessem
resumo, um tipo diferente de conhecimento. ocorrido poucos anos antes.”22
Nenhum dos interesses que acabo de enumerar requer um relato sistemático do Em essência, as referências “históricas” desses judeus de língua latina eram iguais
passado. A pergunta que está implícita em tantos escritos modernos sobre a história da às referências “míticas” da maioria dos gregos, com uma diferença cujo significado é
história — como puderam os gregos (ou qualquer outro povo) contentar-se com um mais potencial do que real. Quando pressionados, os primeiros traduziram “nossa
passado tão cheio de espaços em branco e que era essencialmente acrônico? — família viveu na Espanha” por “foi há aproximadamente quinhentos anos”. Eles
baseia-se numa falsa concepção do tempo na psicologia humana. Somos escravos da puderam fazer isso graças ao calendário moderno, com seu sistema de fixação de datas
concepção altamente sofisticada, abstrata e científica do tempo como uma série por anos a partir de um ponto inicial fixado. Os gregos também chegaram a adquirir
contínua mensurável, concepção que não tem sentido para as finalidades humanas essa técnica quando introduziram a determinação de data pelas Olimpíadas, mas para
habituais. O tempo passado consiste de uma quantidade de eventos individuais eles isso não passou de uma convenção artificial, inventada e usada por um pequeno
(inclusive transformações biológicas e satisfações sensuais); o tempo futuro consiste de número de intelectuais interessados pelo passado, jamais introduzida na vida cotidiana.
eventos ou satisfações previstos. A duração do tempo, se é que se pode considerá-la — E isso nos leva de volta à questão do interesse. O único povo da Antiguidade que até
o que nem sempre é o caso —, não é experimentada como uma quantidade mensurável, certo ponto mostrou-se “moderno” nesse aspecto foi o hebreu, cujo interesse — que
mas sim como uma qualidade associativa ou emocional: saltos no tempo, por provocou suas narrativas detalhadas do passado como uma série contínua — era, em
exemplo21. A memória individual ilustra isso perfeitamente. Não nos lembramos de um última análise, religioso, ou seja, a história do desenvolvimento da vontade de Deus
acontecimento passado — quer o procuremos conscientemente desde a criação até o triunfo final no futuro. Os gregos não tinham esse interesse, nem
religioso nem de outro tipo; fosse qual fosse a função desempenhada na época por
Agamenon,
18 19
ela não exigia que ele fosse situado numa série contínua do tempo; tanto fazia se ele Todavia, essa fase, apesar de importante, não foi necessariamente decisiva em si
vivera duzentos, quatrocentos ou mil anos antes. mesma. O processo de criação mítica não terminou no século VIII; ele nunca parou
O pensamento grego, na verdade, dividia o passado em duas partes, dois totalmente. Além da mitificação de homens como Sólon, a criação de mitos prosseguiu
compartimentos: era heróica e era pós-heróica (ou tempo dos deuses e tempo dos porque a religião grega continuou a criar novos ritos, introduzir novos deuses, e
homens). A primeira foi a parte determinada, definida e descrita pelos criadores de combinar elementos antigos em novas formas, cada etapa exigindo um ajustamento
mitos, que trabalharam nos séculos que para nós são estritamente pré-históricos. Eles apropriado da mitologia herdada. Da mesma forma, a grande dispersão dos gregos,
criavam e transmitiam mitos oralmente, reunindo material puramente religioso (sobre ocorrida aproximadamente entre 750 e 600 a.C., que os levou para o sul da Itália,
cujas origens pode-se especular, mas não estão documentadas), eventos históricos Sicília e muitos outros lugares ao longo da costa do Mediterrâneo e do mar Negro,
genuínos (inclusive detalhes pessoais sobre as famílias nobres) e muito material exigiu outras mudanças para que os imigrantes se ajustassem aos novos alinhamentos
puramente imaginário. Eles estavam voltados para o passado; a princípio, políticos entre cidades e regiões e absorvessem as tradições dos povos (não-gregos)
presumivelmente, para o passado mais recente; com o passar do tempo, porém, entre os quais eles se estabeleceram. Todavia, toda essa atividade posterior de criação
foram-se atendo progressivamente a épocas mais remotas — em grande parte de modo mítica foi secundária: o “mapa mítico” da autoconsciência helênica estava agora
deliberado. Todavia, o interesse não era histórico no sentido de uma investigação totalmente delineado25. Os interesses moviam-se em novas direções.
objetiva dos fatos da Guerra de Tróia (ou de qualquer outro período da história). Isso é Na segunda fase, portanto, o interesse pelo passado importante e remoto, embora
óbvio, mas precisa ser dito23. Mesmo quando pomos de lado as considerações estéticas, totalmente vivo, expressou-se pela conservação e repetição do mapa mítico.
os prazeres evocados pela beleza dos versos e cantos, ou a grande satisfação provocada Juntamente com o relato dos épicos deu-se o desaparecimento dos bardos enquanto
por uma narrativa simplesmente por ser uma boa narrativa, os interesses restantes classe. Estes foram substituídos pelos rapsodos, homens como Íon, de Platão, que eram
ficam muito longe do campo da investigação e da ciência. A consciência e orgulho profissionais também, mas recitadores — atores —, e não criadores. Os intelectos
pan-helênicos ou regionais, o governo aristocrático e especialmente seu direito de criativos, como já disse, voltaram-se para campos inteiramente novos, para a poesia
governar, suas notáveis qualificações e virtudes, uma compreensão dos deuses, o contemporânea e pessoal, e para a filosofia. O passado heróico precisava tão-somente
sentido das práticas religiosas — estes e outros propósitos semelhantes eram atendidos de uma atenção passiva que assegurasse que todos se lembrassem dele, na versão
pela contínua repetição dos relatos antigos e pela constante reconstrução destes, pois aceita, em todas as ocasiões adequadas, e que cada geração futura mantivesse esse
sempre havia a ocorrência de novas condições. conhecimento e o usasse dos mesmos modos.
Essa primeira fase, portanto, quando a tradição oral foi criada e mantida viva, teve Assim, devemos perguntar: como e através de quem as tradições sobre os séculos
por resultado um passado mítico baseado em elementos díspares que diferiam em pós-heróicos eram preservadas e transmitidas? Por exemplo, como sobreviveu a
caráter e precisão (factual), e cuja origem (factual) remontava a períodos de tempo memória da batalha marítima entre Corinto e Corcira, ou a da construção de quatro
bastante esparsos. A “tradição” não transmitia meramente o passado, ela o criava. De navios de guerra para os sâmios por um coríntio, que Tucídides relata e à qual ele até
uma forma que às vezes assemelha-se à história - e que foi largamente aceita como tal atribui datas precisas? Tucídides pode ter lido a respeito em Heródoto ou em algum
pelos gregos e (com restrições) por muitos estudiosos modernos —, os bardos criaram outro escritor. Mas alguém o registrou em papel pela primeira vez duzentos ou mais
uma mitologia atemporal24. Sobreveio em seguida uma nova fase, simbolizada por anos depois do evento (e havia muitos outros fatos tradicionais ocorridos antes ainda,
ocasionais relatos dos épicos e outros documentos mitológicos. Num mundo que exigiram a transmissão oral por mais outros séculos). O primeiro homem a
desprovido de qualquer tipo de autoridade central, política ou eclesiástica, e repleto de registrá-los (e, em alguns casos, pode muito bem ter sido contemporâneo de
interesses políticos e regionais separados, muitas vezes conflitantes, essa etapa ajudou Tucídides) não dispunha de documentos nem arquivos de onde tirá-los — nunca é
a determinar os textos dos relatos, criando uma versão autorizada. demais ressaltar. Ele teve de apreender algo que fora transmitido oralmente.
20 21
A tradição oral sempre foi bastante privilegiada por livros que tratam de eras (com excecão das coisas aprendidas ativa e deliberadamente, como uma lição de
remotas, ou mesmo de épocas bem recentes, sobre as quais há poucos registros (ou escola) deve-se a uma falha de nosso conhecimento, e não a uma manifestação de
nenhum). E poucas são as idéias que os historiadores da Idade das Trevas da Grécia comportamento casual, sem propósito. Mas, ao mesmo tempo, a analogia deixa de ser
não estejam preparados para examinar com espírito suficientemente crítico, válida, pois a “memória de grupo” nunca é motivada subconscientemente no sentido de
deixando-se envolver pelo cálido brilho irradiado pela palavra “tradição”. Agora, há a ser, ou parecer ser, tão automática e desprovida de controle, tão espontânea quanto a
tradição que estrutura grande parte de nossas vidas, perpetuando costumes, hábitos de memória pessoal. A memória de grupo, afinal, nada mais é do que a transmissão para
comportamento, ritos, crenças e normas éticas. Nesse sentido, a tradição não guarda muitas pessoas das lembranças de um homem, ou de alguns homens, repetida muitas e
mistério algum; ela é transmitida de uma geração a outra, em parte através do processo muitas vezes; e o ato da transmissão da comunicação e, portanto, da preservação da
comum da vida em sociedade, sem nenhum esforço consciente de ninguém e, em parte lembrança, não é espontâneo e inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir
por homens cujas funções consistem exatamente em transmiti-la: padres, professores, a um fim conhecido pelo homem que o executa. Ele pode julgar erroneamente seus
parentes, juizes, líderes de partidos, censores, vizinhos. Da mesma forma, nada há de motivos, pode formulá-los de modo obscuro, pode não se dedicar a um processo prévio
confiável acerca desse tipo de tradição, isto é, suas explanações e narrações, conforme e longo de reflexão, mas invariavelmente ele está atuando, fazendo alguma coisa,
qualquer um pode julgar com um mínimo de observação, raramente são muito precisas provocando um resultado que deseja ou quer. A menos que tal atividade consciente e
e, às vezes, completamente falsas. A confiabilidade, naturalmente, é irrelevante, pois, deliberada ocorra, a lembrança de qualquer evento acabará extinguindo-se, ao passo
desde que seja aceita, a tradição funciona e precisa funcionar; caso contrário a que as lembranças individuais podem permanecer adormecidas durante décadas para
sociedade deixaria de existir. depois voltarem à vida inesperadamente ou sem uma ação consciente.
Mas a “tradição” desvinculada de práticas e instituições vivas — uma tradição A tradição oral, portanto, não é um instrumento com que o historiador possa
sobre uma guerra ocorrida há duzentos anos, por exemplo — não é absolutamente a contar “na natureza das coisas”. Ele sempre deve perguntar Cui bono? Em minha
mesma coisa; só uma confusão semântica parece colocá-la na mesma categoria. Onde opinião, com respeito ao período pós-heróico próprio do século V, a sobrevivência do
quer que a tradição possa ser estudada entre pessoas vivas, a evidência é que, além de tipo de tradição que venho discutindo deve ser amplamente creditada às famílias
ela não existir sem estar ligada a uma prática ou crença, também outros tipos de nobres das várias comunidades, inclusive às famílias reais, onde elas existiam, e, o que
lembranças, lembranças irrelevantes, por assim dizer, têm vida curta, remontando à equivale à mesma coisa numa variação especial, aos sacerdotes de santuários como
terceira geração, à geração dos avós e, com raras exceções, detendo-se aí. Isso se Delfos, Elêusis e Delos. Somente eles, pelo menos na maioria das circunstâncias,
aplica até mesmo às genealogias, a menos que elas sejam registradas por escrito; tinham tanto o interesse de “lembrar” os eventos e incidentes que lhes convinham (por
pode-se tomar como regra que as genealogias transmitidas oralmente, a não ser que alguma razão) quanto a posição social para sugerir essa lembrança, quer verdadeira
intervenha algum interesse muito forte (como uma monarquia carismática), são quer falsa, de modo a convertê-la numa tradição pública. É desnecessário dizer que
freqüentemente distorcidas, discutidas ou totalmente fictícias depois da quarta geração, nem o interesse nem o processo eram históricos — talvez eu devesse dizer
e muitas vezes a partir da terceira. Há um exemplo grego muito interessante: os heróis “historiográfico” — em qualquer sentido significativo. O objetivo era imediato e
homéricos recitam freqüentemente suas genealogias em detalhes e, sem exceção, em prático, fosse ele completamente consciente ou não, e visava ao aumento de prestígio,
poucas etapas seus ancestrais humanos convertem-se em deuses ou deusas. à garantia do poder, ou à justificação de uma instituição.
A analogia com a memória individual faz-se novamente útil. Ela, também, As conclusões são diversas. Em primeiro lugar, as perdas, os inúmeros fatos que
normalmente pára na terceira geração, com fatos contados por avós, por pais sobre seus eram completa e irreversivelmente esquecidos por todos, eram enormes, num processo
pais, por velhas amas. Ela, também, é controlada pela relevância. Toda lembrança é infindável. Muitos desses fatos dependiam da fortuna de famílias individuais na
seletiva, e o fato de freqüentemente não sabermos por que retemos algo medida em que suas memórias particulares podiam tornar-se públicas e conforme a
duração e pureza da tradição nas gerações futuras.
22 23
Segundo, o material que chegou até nós tem a aparência de dispersão casual. Por capazes de pôr em ordem os quadros que foram desenhados. E, quando a tradição é
exemplo, Tucídides escreve (1.13.2) que os “coríntios, segundo dizem, foram os inteiramente oral, torna-se bem mais simples confundir e falsificar. Na realidade, isso é
primeiros a se dedicarem à arte naval de uma forma moderna, e Corinto foi o primeiro inevitável26.
lugar da Grécia onde foram construídas trirremes”. Não são mencionados nomes, mas Todavia, a verdade, como já mencionei, verdade no sentido rankeano de “como as
na frase seguinte Tucídides acrescenta o fato irrelevante de que um corindo chamado coisas foram realmente”, não era nem uma consideração importante nem uma alegação
Amínocles construiu quatro trirremes para Samos, provavelmente os primeiros dessa que se pudesse comprovar. Aceitação e crença era o que contava, e os gregos
ilha. Por que essa curiosa escolha? De acordo com as provas de que dispomos, nenhum dispunham de todo o conhecimento do passado de que precisavam sem a ajuda de
nome de inventor de trirremes é transmitido na tradição, embora o de Amínocles seja historiadores. Os poetas encarregavam-se do passado heróico; o restante — as
citado (sem dúvida entre os sâmios). Não temos como explicar esse padrão particular tradições específicas, amplamente orais — era suficiente. Em Atenas, a codificação de
de transmissão histórica, e tampouco podemos explicá-lo na maioria dos outros casos, Sólon, os tiranicidas, a Maratona faziam parte do cabedal de alusões dos oradores
pois a explicação repousa em circunstâncias contemporâneas sobre as quais não políticos e dos panfletistas, e todos sabiam tudo que qualquer pessoa precisava saber
sabemos absolutamente nada. É por isso que falo da aparência de uma dispersão sobre esses assuntos. Esforços ocasionais de historiadores para corrigir erros factuais
casual, de um grande número de fatos individuais, cuja maioria não apresenta uma na tradição foram infrutíferos, como o demonstram as iradas observações de Tucídides
ligação visível entre si, como se a pura sorte, um lance de dados, tivesse determinado sobre os tiranicidas27. Harmódio e Aristogiton eram essenciais para o mapa mítico
se eles deviam ser lembrados ou não. Esses fatos só passaram a ter uma conexão ateniense, que a verdade teria danificado e enfraquecido. Mesmo no século IV, depois
cronológica precisa quando esta lhes foi imposta. As datas que Tucídides estabeleceu de Heródoto e Tucídides, os oradores atenienses ainda se aferravam a seus mitos
para Amínocles e para a batalha entre Corinto e Corcira são fruto de seus próprios tradicionais e histórias populares, completamente indiferentes ao novo conhecimento
cálculos, não da tradição como ele a recebeu. E, embora não possamos conferir e novas concepções. Demóstenes pode ter sido tão preciso quanto qualquer outro a
nenhuma dessas datas, há fortes razões para acreditarmos que elas são excessivamente respeito de assuntos contemporâneos ao citar registros alfandegários, tratados e
antecipadas, presumindo-se que os dois eventos sejam fatos e não ficção. Devido à processos dos tribunais para corroborar seus fatos e números, mas a respeito do
escassez e dispersão da tradição, seria pura sorte se Tucídides ou qualquer outra pessoa passado ele era tão ignorante, talvez deliberadamente, quanto seus ouvintes,
fosse capaz de estabelecer uma relação cronológica precisa. limitando-se a citar os mesmos lugares-comuns — e inexatidões — de seus oponentes
Terceiro, os elementos individuais da tradição eram confundidos, modificados e, e seu público28.
às vezes, inventados. Rivalidades entre famílias, conflitos entre comunidades e regiões, Trata-se de uma falácia modernista e intelectualista pensar que isso é o que requer
mudanças na relação de poder, novos valores e crenças — todos esses explicação. Pelo contrário, a pergunta difícil é por que alguém — especificamente por
desenvolvimentos históricos moldaram a tradição. Eles tinham um relativo domínio em que Heródoto e Tucídides — afastou-se tão radicalmente das atitudes habituais e
relação ao que acontecia habitualmente, mas muitas vezes não podiam deixar de tomar “inventou” a idéia de história29. A resposta convencional começa com os filósofos
conhecimento de tradições que haviam herdado. Onde um interesse vital era afetado, jônicos e seu ceticismo, o que contém uma meia-verdade. Os jônios e seus sucessores
tornava-se imperativo que se fizessem correções. Mesmo num mundo que faz forneceram duas condições necessárias: seu ceticismo sobre os mitos e sua noção de
considerável uso da escrita, esse processo não é muito difícil; por exemplo, a “investigação”. Todavia, como já afirmei ao discutir Hesíodo, essas razões não eram
falsificação das antigas evoluções políticas atenienses foi característica da panfletagem suficientes. O ceticismo quanto aos mitos levou os jônios a investigarem o cosmos, ou
política e do conflito de partidos em Atenas, nos últimos anos da Guerra do Peloponeso seja, levou-os à metafísica, não à historiografia. Devemos perguntar ainda por que
e nas duas ou três décadas seguintes. Essa falsificação foi tão eficiente que nem os Heródoto usou a palavra história, que simplesmente significa “investigação”, para uma
atenienses do século IV nem os historiadores modernos foram investigação do passado. Sua própria resposta é dada bem no começo de sua obra: para
preservar a fama dos grandes e maravilhosos feitos dos gregos e bárbaros e para
investigar as razões por que eles guerrearam entre si.
24 25
As razões por que eles guerrearam entre si: essa não é uma pergunta nova. Afinal, e depois perguntar sobre o que vai escrever... Não é o historiador que escolhe o
os mitos davam as razões pelas quais gregos e troianos lutaram entre si, e as razões assunto, é o assunto que escolhe o historiador; isto é, a história só é escrita porque
pelas quais ocorreram muitos outros eventos. A novidade introduzida por Heródoto é aconteceram coisas memoráveis que pedem um cronista entre os contemporâneos do
tanto a investigação sistemática que ele segue ao buscar respostas, que resultou numa povo que as viu. Poderíamos quase dizer que na Grécia antiga não havia historiadores
narrativa histórica, quanto até que ponto suas explicações são humanas e seculares e, no sentido em que havia artistas e filósofos; não havia ninguém que devotasse a vida
em particular, políticas. Na geração seguinte, Tucídides levou essas novidades muito ao estudo da história; o historiador era apenas o autobiógrafo de sua geração, e
mais longe, insistindo numa narrativa contínua com uma cronologia rigorosa, numa autobiografia não é uma profissão”31.
análise estritamente secular e numa ênfase igualmente rigorosa com relação ao Isso pode ser simples e unilateral demais; não é simplesmente falso. Tucídides
comportamento político. O novo impulso veio da polis clássica, e em particular da viu-se em meio a inclinações contraditórias que nunca foi capaz de resolver.
polis ateniense, que, pela primeira vez — ao menos na história ocidental —, Reconhecia a necessidade de narrar eventos em seqüência, mas, por outro lado, queria
apresentou a política como uma atividade humana, elevando-a em seguida à mais extrair dos eventos a essência da política e do comportamento político, a natureza e as
fundamental das atividades sociais. Um novo enfoque do passado era imprescindível. conseqüências do poder. Esse seu intento, caso o lograsse, seria uma “posse perpétua”,
Ou seja, um outro ímpeto talvez pudesse ter produzido a idéia de história30, mas entre até porque a natureza humana é uma constante e, portanto, a reincidência é o padrão.
os gregos essa foi a condição decisiva (combinada ao ceticismo e ao hábito de Mas, nesse caso, de que serviria uma narrativa linear sobre longos períodos de tempo?
investigar já mencionados). Só podemos conhecer realmente nosso próprio tempo, e isso é suficiente, afinal de
O novo enfoque tinha de ser secular, não-mítico e político — mas teria ele de ser contas. O passado só pode oferecer corroborações paradigmáticas para as conclusões
histórico no sentido de uma pesquisa sobre um longo período de tempo contínuo? Mais que tiramos do presente; o passado, em outras palavras, ainda pode ser tratado da
precisamente, de quanto tempo seria esse período? Se considerarmos as histórias de mesma forma atemporal com que tratamos os mitos. Há uma importante passagem em
Heródoto e de Tucídides sem preconceito, a resposta óbvia — embora não a mais The Hedgehog and the Fox, de Sir Isaiah Berlin, que é sobre Tolstoi, mas o nome do
conhecida — é que a maior parte do passado não foi realmente relevante. Heródoto escritor russo pode ser substituído pelo de Tucídides durante uma boa parte do livro
percorreu uma grande parte do passado, tanto o mítico quanto o histórico, tanto o (embora não na totalidade) sem sacrificar-se a exatidão.
egípcio quanto o grego, mas por razões freqüentemente irrelevantes para essa parte de “O interesse de Tolstoi pela história despontou muito cedo em sua vida. Esse
sua investigação que era propriamente histórica. Tucídides rejeitou tão completamente interesse aparentemente não foi despertado pelo passado em si, mas sim pelo desejo de
esse tipo de digressão, esse “romanceamento”, que sua obra não contém nenhuma chegar às causas primeiras, de entender como e por que as coisas acontecem de
história contínua do passado. Quando Tucídides concluiu em 431 a.C. que o mundo determinada forma e não de outra... pela tendência a duvidar e suspeitar, e, se
grego estava entrando na maior das guerras e que ele devotaria sua vida a registrá-la, necessário, rejeitar tudo que não responda completamente a questão, de ir à raiz de
essa guerra ainda achava-se no futuro. Basicamente, ele escreveu uma introdução todas as questões, a qualquer custo... E a isso juntava-se um amor incurável pelo
esboçando algumas generalizações sobre a Guerra de Tróia e o surgimento do mundo concreto, o empírico, o verificável e uma desconfiança instintiva do abstrato, do
clássico, e preenchendo um pouco da lacuna existente entre a narrativa de Heródoto e o impalpável, do sobrenatural—em suma, uma tendência precoce para uma abordagem
começo da Guerra do Peloponeso. Essa introdução, porém, apesar de conceitualmente científica e positivista, uma hostilidade ao romantismo, às formulações abstraias, à
histórica, não era história. Todo o resto era contemporâneo. metafísica. Sempre e em qualquer situação ele buscava fatos ‘concretos’...
Daí em diante, todos os escritos históricos gregos sérios trataram de história Atormentava-se com os problemas fundamentais com que se deparam os jovens de
contemporânea. Num parágrafo brilhante, Collingwood disse que o historiador grego todas as gerações... mas as respostas oferecidas pelos teólogos e pelos metafísicos
“não pode, como Gibbon, começar pela vontade de escrever uma grande obra histórica eram-lhe absurdas...
26 27
A história, apenas ela, somente a soma dos eventos concretos no tempo e no espaço... Afinal de contas, por que o fariam? Como disse Hans Meyerhoff em outro contexto,
só isso continha a verdade, o material do qual as respostas genuínas... podiam ser mas relacionado a este de certa forma: “As gerações anteriores sabiam muito menos
construídas.”32 acerca do passado do que nós, mas talvez sentissem em relação a ele uma noção de
Assim, um escreveu Guerra e Paz e outro, A Guerra do Peloponeso. Não estou identidade e continuidade muito maior...”33 O mito exerceu a contento essa função, e
sendo frívolo quando coloco as coisas desse modo. A história “continha a verdade” e nada havia na sociedade que exigisse seu abandono ou substituição. Talvez isso tenha
para Tucídides isso significava que era desnecessário inventar como os poetas o sido uma falha na polis — mas essa é outra questão.
faziam. Mas também era impossível apenas registrar o que já acontecera. Fazia-se
necessário compor os discursos que exporiam os argumentos apropriados (apropriados Notas
na opinião de Tucídides) dos dois lados de uma questão. Era necessário inclusive
escrever um tratado sofista sobre força e direito, o Melian Dialogue. Apenas a
1. Humphry House, Aristotle’s Poetics (Londres, 1956) p. 11.
narrativa revelou-se um fracasso no fim: ela diz apenas o que Alcibíades fez e sofreu.
275397684. Veja, de modo geral, sobre esta distinção, G. H. Nadel, “Philosophy
Esses foram fatos, não verdades.
of History before Historicism”, History and Theory 3 (1964) 291-315,
Depois de Tucídides, todo historiador sério lutou com as mesmas dificuldades e,
especialmente pp. 292-304. Naturalmente esse não é o sentido de “paradigma”
na maioria das vezes, preferiu lutar com elas no campo da história contemporânea. A
desenvolvido no influente The Structure of Scientific Revolutions de T. S. Kuhn (2a
idéia de uma narrativa histórica, de uma série contínua de eventos no tempo, chegara
ed., Chicago, 1970), sobre o qual veja, por exemplo, “T. S. Kuhn’s Theory of
para ficar. Mas de que serviria isso? Essa pergunta nunca foi respondida
Science and its Implications for History”, de D. A. Hollinger, American Historical
satisfatoriamente. Nascera e fora nutrida a idéia de que a sociedade estava ligada a seu
Review 78 (1973) 370-93.
passado e, até certo ponto, podia ser entendida a partir de seu passado, de modos
275397685. Veja Gert Avenarius, Lukians Schrift zur Geschichtsschreibung,
diferentes daqueles dos velhos mitos. Todavia, essa idéia gorou devido à ausência de
Meisenheim/Glan (1956).
uma idéia de progresso, pela idealização do eterno e imutável em contraposição ao
275397686. Veja F. W. Walbank, Polybius (Berkeley, Los Angeles, Londres,
mutável e transitório (“uma metafísica rigorosamente a-histórica”, segundo as palavras
1972) 34-40, com bibliografia.
de Collingwood), pelas visões cíclicas da história, pelas doutrinas primitivistas. Ao
275397687. Sobre as modernas extensões do mito veja, por exemplo, “‘Myth’
nível intelectual, tudo estava contra a idéia da história. Só os tipos tolstoianos
and ‘Ideology’ in Modern Usage”, de B. Halpern, History and Theory l (1961)
continuavam a lutar, estimulados por cada situação ou progresso extraordinários a
129-49.
tentar outra vez: Timeu e as ferozes lutas na Sicília contra a tirania, Políbio e o
275397688. A questão é bem apresentada nas páginas iniciais de “History and
estabelecimento do império mundial de Roma; ou, entre os romanos, Salústio e a
Myth”, de P. Munz, Philosophical Quarterly 6 (1956) 1-16.
desintegração da república romana, Tácito e o surgimento do absolutismo despótico.
275397689. Lectures on the Religion of the Semites (nova ed., Londres, 1907)
Como Tucídides, cada um desses homens, em última análise, estava procurando
pp. 16-17.
entender e explicar seu próprio mundo contemporâneo.
275397690. Muito mais surpreendente é o modo como Tucídides (3.104.5) aceita
Sua atração e influência são difíceis de medir. Todavia, são significativos a
os versos 165-178 do Hino “Homérico” a Apolo como trecho autobiográfico de
rapidez com que os historiadores trocaram a austeridade de Tucídides pelos apelos
Homero. Veja “Die Ilias ist kein Geschichtsbush”, de F. Hampl, em seu Geschichte
emotivos dos poetas e o fato de a história ter-se tornado “história trágica”, mesmo em
als kritische Wissenschaft, vol. 2 (Darmstadt, 1975), pp. 51-99.
Políbio, que o negou tão veementemente. Também é significativo que os filósofos
275397691. Veja I. Meyerson, “Le temps, la Mémoire, l’Histoire”, Journal de
tenham rejeitado todo o empreendimento. Quanto às pessoas em geral, não há razão
Psychologie 53 (1956) 333-54.
para pensar que alguma vez elas foram além dos antigos mitos e trechos ocasionais da
10. H. Fränkel, Wege und Formen frühgriechischen Denkens (2a ed., Munique, 1960),
história mitificada.
p. 2.
11. The Humour of Homer and Other Essays, ed. R. A. Streatfeild (Londres, 1913), p. 25. “O mito, na forma como perdura e é guardado como um tesouro pelo povo dos
77. Talvez eu deva dizer que não tenho a menor dúvida de que nessa conferência, nupe, é... o ‘mapa mítico” [termo de Malinowski] típico do reinado, e seu
pronunciada em 1892, Butler falava a sério. conhecimento comum constitui a primeira e a mais importante dessas crenças e
12. Veja J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs (Paris, 1965), pp. 19-47; “Le formas comuns de ‘comunidade’ cultural que servem de base para a unidade
Mythe Hésiodique des Races”, Revue de Philologie, 3a sér., 40 (1966) 247-76. política.” Ibid., pp. 75-76.
13. Os Trabalhos e os Dias. Uso a tradução de H. G. Evelyn-White na Loeb Classical 26. Sobre as páginas precedentes veja, por exemplo, Jack Goody, “The Consequences
Library. Vernant, op. cit., argumentou engenhosamente que toda a estrutura de of Literacy”, e lan Watt, Comparative Studies in Society and History 5 (1963)
Hesíodo é coerente. Mesmo que ele pudesse estar certo, meu argumento central 304-45, reeditado em Literacy in Traditional Societies, ed. Goody (Cambridge,
continuaria sendo válido, pois a estrutura do mito a que ele se refere é 1968), pp. 27-68; “A Note on Oral Tradition and Historical Evidence”, de Ruth
arquitetônica, não cronológica. Finnegan, History and Theory 9 (1970) 195-201; “The Heritage of Oduduwa:
14. O. Gigon, Der Ursprung der griechischen Philosophie... (Basileia, 1945), pp. Traditional History and Political Propaganda among the Yoruba”, de R. C. C. Law,
22-23. Gigon refere-se à Teogonia, mas a observação parece importante também Journal of African History 14 (1973) 207-22; cf. capítulo 2.
para a introdução de Os Trabalhos e os Dias. 27. Veja Jacoby, Atthis, pp. 152-168.
15. Veja W. den Boer, “Herodot und die Systeme der Chronologie”, Mnemosyne, 4a 28. Veja L. Pearson, “Political Allusions in the Attic Orators”, Classical Philology 36
ser., 20 (1967) 30-60. (1941) 209-29; “The Historical Example, Its Use and Importance as Political
16. Veja P. Vidal-Naquet, “Temps des Dieux et Temps des Hommes”, em seu Le Propaganda in the Attic Orators”, de S. Perlman, Scripta Hierosolymitana 7 (1961)
Chasseur Noir (2a ed., Paris, 1983), pp. 69-94. 150-66.
17. R. M. Cook, “Thucydides as Archaeologist”, Annual of the British School at 29. “A conversão da escrita de lendas em ciência da história não era inata à mente
Athens 50 (1955) 266-70. Note-se que Heródoto (2.125) pensava que ferramentas grega, ela foi uma invenção do século V, e foi Heródoto quem a inventou.” R. G.
de ferro foram usadas na construção das pirâmides. Collingwood em The Idea of History (Oxford, 1946), p. 19.
18. Frag. 93, ed. Lasserre, traduzido por Denys Page em The Listener, 15 de janeiro de 30. Veja J. G. A. Pocock, “The origins of Study of the Past: A Comparative
1959, pp. 109-110. Approach”, Comparative Studies in Society and History 4 (1962) 209-46.
19. Deve ficar claro que não existiu nenhum escrito histórico grego anterior ao século 31. Op. cit., pp. 26-27; cf. A. Momigliano, Studies in Historiography (Londres, 1966),
V (conseqüentemente, os cronógrafos “analisaram” mitos, o que é um outro capítulos 8 e 11. Londres, 1953, pp. 10-11.
assunto). Todos os argumentos em contrário foram totalmente refutados pela obra 31. Time in Literature, p. 109.
de Felix Jacoby; veja particularmente Atthis (Oxford, 1949).
20. A variação mais comum talvez seja a seguinte: “O homem ocidental sempre se
orientou pela história” — palavras iniciais da introdução de J. R. Strayer para a
tradução inglesa de Marc Bloch, The Historian’s Craft (Nova York, 1953).
21. Sobre tudo isso veja Hans Meyerhoff, Time in Literature (Berkeley, 1955); cf., por
exemplo, P. Bohannan em “Concepts of Time among the Tiv of Nigeria”,
Southwestern Journal of Anthropology 9 (1953) 251-62.
22. Crossing the Line (Londres, 1958), p. 155.
23. Veja Hampl (citado na nota 8) e meu artigo iniciando uma discussão da
historicidade da Guerra de Tróia, no Journal of Hellenic Studies 84 (1964) 1-9.
24. “Vestida em termos de uma ‘história’ sóbria, pseudo-científica” é a frase usada por
S. F. Nadel para relatos análogos do passado remoto entre os Nupe da Nigéria: A
Black Byzantium (Londres, 1942), p. 72.
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Referência do texto:
FINLEY, M. ‘Mito, Memória e História.’ In _____. Uso e Abuso da
História. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 3-29.

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