Cartas e Impressões PDF

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LICA HASHIMOTO (org.

)
Universidade de São Paulo

Reitor
Vahan Agopyan

Vice-Reitor
Antonio Carlos Hernandes

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Diretor
Paulo Martins

Vice-Diretora
Ana Paula Torres Megiani

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total


desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença
Creative Commons indicada
LICA HASHIMOTO (organização)
MARCELA SAYURI (diagramação)

CARTAS &
IMPRESSÕES
DE LEITURA
LITERATURA JAPONESA I
2021

São Paulo, 2021


Capa e projeto gráfico
Marcela Sayuri Nakagawa Leite

Imagem da capa
竹取物語 | The Tale of the Bamboo
Cutter

Imagens do miolo
pp. 15: 富本豊ひな | The Lady Tomimoto
Toyohina Reading a Letter
Kitagawa Utamaro, 1790
pp. 189: 『北国五色墨』「おいらん」
| “High-Ranking Courtesan” (Oiran),
from the series Five Shades of Ink
in the Northern Quarter (Hokkoku
goshikizumi),
Kitagawa Utamaro, 1794–95

Revisão
Lica Hashimoto

[2021]
SUMÁRIO
CARTA PARA UM AMIGO
15 MORTE EM PLENO VERÃO Yukio Mishima
Alan C. Abílio

19 DEZ NOITES DE SONHOS Natsume Soseki


Aline Kobori

23 NORWEGIAN WOOD Haruki Murakami


Aline Kubo

27 O LIVRO DO TRAVESSEIRO Sei Shōnagon


Amanda Stephanie Pereira

31 TSUGUMI Banana Yoshimoto


Ana Carolina

37 TOMIE Junji Ito


Brenda Kapp de Paula

42 O CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Brenda Ribeiro Argolo

46 O ELEFANTE DESAPARECE Haruki Murakami


Bruna Florence de Moura

49 O FIO DA ARANHA Ryunosuke Akutagawa


Caio Perin Ribeiro

53 A HISTÓRIA DO CORTADOR DE BAMBU


Caroline M. Gomes

56 MIL TSURUS Yasunari Kawabata


Daniel Akira Hasimoto

62 O PAÍS DAS NEVES Yasunari Kawabata


Débora Mayumi Yamaguti Zimmer
67 CONTOS JAPONESES DE MISTÉRIO E IMAGINAÇÃO Edogawa Ranpo
Éveli Maciel Barbosa

72 A HISTÓRIA DO CORTADOR DE BAMBU


Fernanda Kaory

76 SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL Haruki Murakami


Francisco de Assis Leão Neto

80 AS NARRATIVAS DE ISE
Gabriel Dias Coelho

84 O LIVRO DO TRAVESSEIRO Sei Shōnagon


Gabriela Miranda Macena

88 HAIKU Matsuo Bashō


Gabriela Yuri Kamida

93 KITCHEN Banana Yoshimoto


Heloísa Iaconis da Costa

98 O PAÍS DAS NEVES Yasunari Kawabata


Henrique C. F. Prado

107 FIGURAS SEMELHANTES Takahashi Takako


Isabel Cristina Lima da Cruz

112 TRILHAS LONGÍNQUAS DE OKU Matsuo Bashō


Jéssica M. Noguchi

116 SONO Haruki Murakami


Julia Mazzi dos Santos

121 HAIKU Matsuo Bashō


Kellen Queiroz

124 O CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Liliane K. Ito Ishikawa

128 O CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Lucas W. P. Silva

132 UMA QUESTÃO PESSOAL Kenzaburo Ōe


Marcela Sayuri Nakagawa Leite
137 KAPPA E O LEVANTE IMAGINÁRIO Ryunosuke Akutagawa
Maria Flora Marcantonio I. de Alvarenga

141 TRILHAS LONGÍNQUAS DE OKU Matsuo Bashō


Matheus Nagao

145 SONO Haruki Murakami
Mirian M. Santos

150 KYOTO Yasunari Kawabata


Monique Mosso

155 NIKKI Izumi Shikibu


Natalie Fuzii

159 BECK: MONGOLIAN CHOP SQUAD Harold Sakuishi


Natan M. S. Oliveira

163 CRÔNICAS DO JAPÃO


Rafael S. Ferreira

167 RASHOMON Ryūnosuke Akutagawa


Renan Hamaguchi Mota

171 O CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Renan souza

174 OUÇA A CANÇÃO DO VENTO Haruki Murakami


Sara B. R. Souza

177 DEZ NOITES DE SONHOS Natsume Soseki


Tayná Yoko Hatori

182 O CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Veronica Mei

186 TERRA MORTA Ryūnosuke Akutagawa


William Lorete Silva
IMPRESSÕES DE LEITURA
191 O GRANDE ESPELHO DO AMOR ENTRE HOMENS Ihara Saikaku
Alceu Rocha Perdigão Alves

196 MINHA QUERIDA SPUTNIK Haruki Murakami


Amanda Menezes de Souza

202 KAPPA E O LEVANTE IMAGINÁRIO Ryunosuke Akutagawa


Amanda Tiemi

207 DEZ NOITES DE SONHOS Natsume Soseki


Ana Beatriz Rocha

211 SONO Haruki Murakami


Andressa Moraes

215 SÉTIMA NOITE, DEZ NOITES DE SONHOS Natsume Soseki


Bianca Aya Muto

220 SONO Haruki Murakami


Bruna Dyesyca Cardoso da Silva

225 QUERIDA KONBINI Sayaka Murata


Camila Telles Santana

230 O ELEFANTE DESAPARECE Haruki Murakami


Carole de Andrade Marques

235 CRÔNICAS DO JAPÃO


Daphne Almassi Hamburgo

241 ESSAYS IN IDLENESS AND HŌJŌKI Kenkō & Chōmei


Drix Piccioni Marques Nogueira

245 FRUITS BASKET Natsuki Takaya


Giovanna Marques Balasco

251 RELATOS DE UM GATO VIAJANTE Hiro Arikawa


Iara Pinheiro
255 APÓS O ANOITECER Haruki Murakami
Isabela Kashima

258 DECLÍNIO DE UM HOMEM Osamu Dazai


João Pedro Boechat Pereira

262 DEZ NOITES DE SONHO Natsume Sôseki


Laura Camacho de Azevedo

267 O PAÍS DAS NEVES Yasunari Kawabata


Luiza Anselmi Cantoni

272 O FIO DA ARANHA Ryūnosuke Akutagawa


Mariana Somera

277 DEZ NOITES DE SONHO Natsumi Soseki


Matheus de Sá

281 KAPPA E O LEVANTE IMAGINÁRIO Ryūnosuke Akutagawa


Matheus Gabriel Torres

285 TRILHAS LONGÍNQUAS Matsuo Bashō


Pablo Oliveira Causo

289 CONTO DO CORTADOR DE BAMBU


Rafael Schwarzwalder

295 KAFKA À BEIRA-MAR Haruki Murakami


Raissa Aparecida Silva Costa

299 SOBRE O MARIDO DA PRINCESA DE ROKUNOMIYA QUE SE TORNOU


MONGE E RENUNCIOU AO MUNDO
Renato Santiago

304 RELATOS DE UM GATO VIAJANTE Hiro Arikawa


Tatiana Valéria Silva

308 KAPPA E O LEVANTE IMAGINÁRIO Ryunosuke Akutagawa


Thaisa T. C. Barros

312 RELATOS DA MINHA CABANA Kamo no Chōmei


Vitor Ceschini
Literatura Japonesa I 2021

APRESENTAÇÃO
Lica Hashimoto

– Uma leitura valiosa é aquela que sentimos vontade de compartilhar com


quem amamos –

Em algum momento da vida, esquecemos que uma obra literária é como um


portal que nos convida a viajar pelo tempo e espaço. Esquecemos que a leitura nos
transporta para outros mundos, outros tempos, outros espaços e que, nesse local,
somos convidados a participar da história de um ponto de vista privilegiado. Em
algum momento da vida, esquecemos que somos capazes de viajar na máquina
do tempo chamada literatura. Em algum momento da vida, esquecemos que
somos capazes de ampliar os nossos conhecimentos e percepções sobre a nossa
vida do presente, estimular a nossa imaginação, sentir com intensidade emoções
e sentimentos, conhecer a vida de pessoas de culturas e modos diferentes de
pensar. Esquecemos que a literatura nos revela histórias que desconheceríamos
se dependêssemos apenas das nossas experiências de vida. Em algum momento
da vida, o prazer da leitura foi substituído pela obrigação, e deixou de ser uma fonte
seletiva e reflexiva de autoconhecimento e desenvolvimento da sensibilidade.
Agora, mais do que nunca, precisamos resgatar o prazer de uma boa leitura para
nos ajudar a enfrentar os desafios impostos pela pandemia que, queríamos ou
não, protagoniza uma história que marcará a minha, a sua e a nossa história.

Introdução à literatura japonesa


O objetivo da disciplina FLO1295 Literatura Japonesa I foi apresentar um
conjunto de obras representativas da literatura japonesa moderna com especial

11
Literatura Japonesa I 2021 Literatura Japonesa I 2021

enfoque na prosa.
Estudamos Natsume Sôseki (Dez noites de sonho, 1908), Akutagawa
Ryûnosuke (Fio da aranha, 1918), Kawabata Yasunari (País das neves, 1937) e
obras da literatura japonesa clássica que continuam a dialogar com a literatura
moderna, contemporânea e que estão presentes na cultura japonesa pop.
Conhecemos o Relatos de fatos antigos, 712 ; Crônicas do Japão,720; Registro dos
relatos milagrosos, 787-824; narrativas monogatari (O cortador de bambu, X); o
zuihitsu – escrever ao correr da pena – (O livro do travesseiro, XI; Anotações
numa cabana de nove metros quadrados, 1212; Anotações no ócio, 1330); diários
literários (Diários de Tosa, 935; Diário da efemeridade, 974; Diário de Izumi Shikibu,
1007); narrativas setsuwa (Coletânea de narrativas em que o agora é passado, XII);
poemas waka, haiku, tanka e haicai no Brasil (Antologia poética de ontem e hoje,
905; Trilhas longínquas de Oku, 1702; Haicai do Brasil de Adriana Calcanhoto,
2014); literatura do sobrenatural (hyaku monogatari, XV a XVIII) e a chegada dos
jesuítas portugueses no Japão (crônica da espingarda, 1606; preceitos éticos do
bushidô e carta de amor da esposa de Kimura Shiguenari, 1615).
Apresentar o panorama da literatura japonesa é proporcionar uma viagem
no tempo. Um convite para conhecer obras milenares escritas em outro tempo,
outro espaço, outra cultura.
A avaliação teve como objetivo resgatar a leitura como fonte de prazer
e conhecimento. O importante não é a quantidade de leituras, mas a relação
significativa que o leitor estabelece com a obra. Exige, portanto, que o leitor
reaprenda a ordenar ideias, relacionar conceitos e expor reações e opiniões que
a leitura suscitou. A sugestão de escrever uma carta ou uma impressão de leitura
possui três desafios: o primeiro é o da escolha da obra que a pessoa vai indicar;
o segundo é o exercício da escrita criativa e o terceiro é o poder de síntese. É,
portanto, um exercício que desenvolve a habilidade de contar uma história
de modo criativo, expressivo e capaz de compartilhar significados e sentidos

12
Literatura Japonesa I 2021

captados pela sensibilidade e a experiência de vida de quem escreve. Todas as


indicações de obras – em carta ou impressão de leitura – possuem o tom da
escrita criativa e compartilham uma leitura valiosa.
Gostaria de expressar meu agradecimento especial à Marcela Sayuri pela
iniciativa de editar este e-book e pela extrema dedicação e carinho com que
realizou todas as etapas desta publicação. Gostaria também de agradecer os
alunos que autorizaram a publicação de suas cartas e impressões de leitura que,
neste formato E-book, materializa uma singela lembrança da nossa disciplina
de Literatura Japonesa I do curso de Letras Japonês da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ministrado no primeiro
semestre de 2021.
Desejo a todos, boas leituras!
Cuidem-se com carinho.

Lica Hashimoto é professora, palestrante, tradutora e autora de livros e


artigos relacionados à Língua e Literaturas Japonesa e Brasileira. Atualmente
é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura
Japonesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo.
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura
Japonesa (2005) e Doutora em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura Brasileira (2012), ambos pela FFLCH-USP. Bolsista
do Ministério da Educação do Japão (atual MEXT), estudou Língua e Cultura
Japonesa na Universidade de Waseda (1986-1988-Tóquio) e do Programa de
Treinamento de Professores estrangeiros de Língua Japonesa da Fundação Japão
(Saitama, 2005) organização vinculada ao Ministério das Relações Exteriores.

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Carta para
um amigo 眞
眞 夏 の 死
MORTE EM
PLENO VERÃO

岡 公 威
Yukio Mishima


ALAN C. ABILIO
Literatura Japonesa I 2021

Ferraz de Vasconcelos, 17 de julho de 2021

Caro Bruno,

Como vai? Há alguns dias eu reparei que não lembro como


é sua voz e isso me deixou bem triste. Éramos muito jovens
naquela época e acho que toda lembrança que eu tenho de nós
dois foi criada em cima das histórias que nossos pais me con-
taram ao longo desses anos. A vez que você foi me dar Coca-Co-
la e acabou me dando um banho é a história que eu mais gosto.
Fiquei pensando, irmão, o jeito que me falam de você é como
faziam os antigos, antes de resolverem escrever suas histórias.
Farei questão de continuar essa tradição em nossa família.
Assim como nossos pais fazem questão de contar sua
história pra mim, escrevo essa carta para te contar um pouco
da minha. Cresci bastante desde a última vez que você me viu,
tenho até barba e estou na faculdade de Letras. Escolhi a habil-
itação de japonês, acredita? Tem sido bom, leio bastante coisa
interessante e aprendi muito até aqui. Quando escolhi aprender
essa língua, fui atrás de autores japoneses para conhecer mais
das narrativas de lá (tive a sensação de que Dragon Ball não era
tudo que o Japão tinha pra oferecer) e logo em minha primeira
leitura fui surpreendido.
O primeiro conto que li se chama Morte em pleno verão
do autor Yukio Mishima e, durante toda minha leitura, fiquei
imaginando se talvez o que Tomoko estava passando não era

16
Literatura Japonesa I 2021

parecido com o que nossa mãe passou quando você se foi. O


luto que a personagem enfrenta, a forma com que isso vai indo
embora com o passar do tempo e o filho novo que chega para
mesmo assim, ao final, ela encarar o horizonte à espera de algo
foram coisas que realmente me tocaram durante a leitura. É
muito bonita a maneira com que o autor escreve essa triste
história. A imagem da cena final ficou marcada na minha ca-
beça e relendo esta história, o trecho que copio aqui foi o que
mais me chamou atenção.

“Autumn wore on, and the life of the family became day by day more

tranquil. Not of course that grief was quite discarded. [...] No one went

mad, no one committed suicide. No one was even ill. The terrible event

had passed and left scarcely a shadow.”

Yukio Mishima. Death in midsummer and other stories.

Penguin Books, 1966:28-29.


Pois é, eu peguei esse livro na biblioteca e agora só en-
contro essa versão em inglês para te mostrar. Mas dá pra en-
tender, né? Você se foi e nós continuamos a viver por aqui. Pode
parecer egoísmo, mas saiba que sentimos sua falta. O terrível
acontecimento passou e o que sobrou foram as boas histórias e
memórias compartilhadas em família na hora do almoço.
Querido Bruno, espero que essas palavras te alcancem
onde quer que você esteja e que um dia nós possamos nos en-

17
Literatura Japonesa I 2021

contrar novamente, afinal, preciso saber se você também gos-


tou do conto.

Abração,
Alan

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夢 十 夜
DEZ NOITES DE
SONHOS

目 漱 石
Natsume Soseki


ALINE KOBORI
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 08 de julho de 2021

Querida Batian,

Que susto a senhora nos deu! Sempre que penso em você


partindo, as lágrimas involuntariamente molham o meu rosto.
No entanto, nestes dias de sufoco e desespero, entrei em esta-
do de negação; me senti anestesiada e com os olhos secos, não
tive coragem de contar a ninguém sobre. Pior... não senti esta
vontade.
Neste meio tempo, para minhas aulas de Literatura Japone-
sa da faculdade, li um conto do Natsume Sôseki e, embora à
primeira vista pareça não fazer sentido, não pude deixar de pen-
sar na senhora e em nós. A obra se chama “Dez dias de sonho”
e o narrador conta dez de seus sonhos; enquanto passávamos
pelas diferentes situações, uma me chamou mais a atenção. A
4ª noite - prometo só contar este sonho! - retrata um idoso que
fazia uma refeição com sakê e nishime e, após dizer que trans-
formaria os lenços em cobra, some no rio enquanto dançava e
fazia suas “mágicas”. A primeira lembrança despertada foi a
da comida: o seu nishimê é o mais gostoso! A segunda, agora
divagando um pouco mais, é sobre partir, sobre quebrar expec-
tativas. E quando a senhora partir? Minhas expectativas, ainda
que oníricas, serão totalmente esmigalhadas pela ordem natu-
ral da vida.

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Literatura Japonesa I 2021

(...) E, enquanto isto, ele ia caminhando… caminhando… Até


que já não se podia ver nem sua barba, nem seu rosto, nem sua
cabeça, nem mesmo seu chapéu.
Pensando que o velho mostraria a serpente quando che-
gasse ao outro lado do tio, aguardava-o sozinho em pé onde os
juncos soavam. Porém, o velho nunca mais apareceu. [Soseki,
Natsume. “Dez noites de sonhos”. In Contos da Era Meiji. São
Paulo. Centro de Estudos Japoneses-USP, 1993:98]

Eu sei que você anda apreciando muito mais os “romances


Sabrina”, mas acredito que gostará deste conto. Ele é curtinho
e nos envolve em mundos misteriosos, com um certo suspense
no ar. Também há histórias mais tristes e melancólicas, talvez
você se lembre da sua infância. Aliás, sempre me pego pensan-
do na comparação entre nossas infâncias: você é a mais velha
de nove irmãos e por isso teve sempre que trabalhar e cuidar
deles; já eu sou filha única, sua primeira neta - inclusive, a sen-
hora que escolheu meu nome e é minha madrinha -, e sempre
fui mimada e acolhida por você. Os tempos mudam tanto, eu
tive a oportunidade de ter muito mais conforto. Mas uma coi-
sa ainda permanece a mesma: o seu amor, seu carinho e a sua
abnegação. Muito obrigada por tanto, gostaria muito que sua
vida tivesse sido mais gentil com você, porém espero que agora
sinta este cuidado de nós: eu, minha mãe, titia e titio.
Enfim, Ba, acho que acabei divagando demais… Espero que o

21
Literatura Japonesa I 2021

conto de Sôseki possa ser um companheiro breve, mas prove-


itoso, destes tempos de recuperação da cirurgia. Também


aproveite estes dias para sonhar um pouquinho, rememorar
os momentos bons e imaginar os próximos. A vida acadêmica
e quase adulta, cheia de aulas, leituras, trabalhos e bicos, tem
me impedido de te visitar com mais frequência, mas farei o
possível para passar mais tempo com a sua companhia. Te
amo muito!

Com amor,
Ali

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ノ ル ウ ェ
の 森
NORWEGIAN

WOOD

上 春 樹
Haruki Murakami


ALINE KUBO
Literatura Japonesa I 2021

Lariiiiiiiiissaaaaaaaa, acordou de bom-humor hoje? Sou o


cão quando acordo, mas você é um amorzinho. Sei que a gente
não deixa de se falar um dia e que nossa última mensagem foi
há 20 segundos, mas queria te contar sobre o livro que
terminei de ler. Norwegian Wood, de Haruki Murakami
(que era pra eu ter devolvido há 6 meses, desculpa aí, Japan
House, foi a pandemia e tals). Leia este livro apenas se estiver
bem. É meu preferido, mas me embrulhou o estômago de uma
forma que não consegui fechá-lo por mais de uma semana de-
pois de terminá-lo. Se é que o terminei, mas isso é conversa
pra outra hora.

Várias das personagens femininas me lembram você.


Uma mina é bem loca, sempre no bom sentido, e parece agar-
rar Tóquio pelas bolas, mesmo tomando na cara. A outra toca
violão (imagino tão bem quanto tu) e ama rock igual a gente.
Ao te ver nelas, me senti muito à vontade lendo. Fora isso, o
livro trata de solidão.

Há mesmo um abismo imenso, intransponível, entre duas


pessoas. Um abismo que nem olha de volta, mesmo espre-
mendo os olhos, de tão profundo que é. Mas se fosse confi-
ar em alguém por quem atravessar meu inútil abismo míope,
eu só confiaria em você. Os personagens passeiam muito por

24
Literatura Japonesa I 2021

Tóquio e não pude deixar de lembrar de como foi morar na ci-


dade dos olhares solitários. Me lembro de não conseguir mes-
mo olhar nos olhos das pessoas voltando do trabalho para um
apartamento bege e vazio, com aquela luz branca horrenda de
hospital que os japoneses amam colocar nos apatos pra alugar.
Você ia odiar fogões elétricos.

Não recomendo andar por Tóquio às seis da tarde, a multi-


dão e a solidão vão te engolir antes da prefeitura ter a boa vonta-
de de acender as luzes dos postes. Só conseguia imaginar você
querendo dar abracinho em todos os ditchanzinhos e batchan-
zinhas que encontrasse. Você é assim. Ao andar em modo au-
tomático pelos infinitos túneis do metrô, onde se perdem mil-
hões de pessoas de si próprias, ao me sentir tão pequena e ao
vento, uma mensagem sua me trazia de volta pra mim mesma.

Estranho que o que mais senti falta, fora minhas pessoas,


foram paredes de tijolo e o Oceano Atlântico. É, nem sabia que
existia isso de sentir falta de um oceano inteiro. Não conta pra
ele, mas não fui muito com a cara do Pacífico. Talvez se você
estivesse lá, teria dado uma chance, você aquece e verdeja
qualquer lugar em que entra.

Me pergunto que tipo de livro Murakami teria escrito se


morasse em São Paulo. Seria a solidão e o limite insuportável

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Literatura Japonesa I 2021

de não conseguir resgatar quem se ama (e até quem não se


ama) sua maior inspiração? Tóquio são ilhas, mas ainda quero
voltar. De preferência com você no braço.

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枕 草 子
O LIVRO DO
TRAVESSEIRO

少 納 言
Sei Shōnagon


AMANDA STEPHANIE PEREIRA
Literatura Japonesa I 2021

Santa Bárbara d’ Oeste, 13 de julho de 2021

Caro reflexo do espelho,

Faz bastante tempo que não nos falamos… Depois de ocor-


rido o isolamento, me senti cada vez só e até mesmo ignorei a
sua existência. O tempo havia se passado e uma rotina já não
fazia mais sentido. Os fins de semana se misturam com as se-
gundas feiras e, nesse ínterim, um ano já havia passado. Mas,
apesar disso, não consigo lembrar do que eu fiz nesse período.
Com o que eu gastei meu tempo? Essa fatia de minha vida se
tornou um borrão de caos sem controle.
No entanto, ao encontrar você, senti o presente nas minhas
mãos. Hoje, quando estava no banheiro antes da aula começar,
eu olhei o espelho sem querer, num movimento enrijecido. Fa-
zia tempo que eu não observava meu reflexo.
Assim, limpei ansiosamente o vidro nublado depois de me-
ses e vi você. Seu cabelo, antes tingido, agora tornou-se uma
californiana desbotada e sem resquício algum da cor que tinha.
Em contrapartida, as raízes cresceram fortes e nostálgicas, que
tentam se lembrar das ondulações que faziam antes de serem
subitamente e sucessivamente alisadas. A sua bacia hidrográfi-
ca do olhar conta com novas nascentes e afluentes que enri-
quecem o sorriso dos seus olhos. E a boca, livre de pigmentos
artificiais, reluz um roxo de uma manhã fria. E foi aí que eu

28
Literatura Japonesa I 2021

percebi que eu sentia sua falta. Eu senti muito a sua falta.


Eu e você, lados de uma mesma moeda, sempre nos apoia-
mos e ajudamos durante vários momentos, mas ultimamente
eu havia quebrado esse elo, construído ao longo de anos. Um
turbilhão de emoções apertou meu peito e tive vontade de de-
sabar no chão e chorar, mas você não deixou minhas pernas
fraquejarem. Eu precisava participar da aula. Dessa forma, enx-
uguei meu rosto e fui para meu quarto.
A aula iniciou-se normalmente, e dessa vez era sobre
“Makura no sôshi”, um “livro de cabeceira” feito por uma mul-
her da alta sociedade japonesa do século XI. Ela fazia espécies
de ensaios e diários na qual escrevia “ao correr da pena” e sim-
plesmente enchia páginas e páginas com seus pensamentos,
que perduraram séculos e chegaram até nós. Ao me deparar
com essa obra, lembrei-me de nosso encontro, e decidi fazer
algo sobre.
Assim, terminada a aula, fui à papelaria e comprei este
molho de páginas A3. Dobrei cada uma delas, e agrupei em gru-
pos de quatro. Fui costurando uma a uma, assim como fazia
meus antigos caderninhos de desenho, e, depois, usei um pa-
pelão velho pintado para servir de capa. E surgiu então o meu
“livro de cabeceira”.
Ele é bem simples, mas espero que você goste. Nele, pro-
meto me reconectar com você e, pela escrita, poderemos nos

29
Literatura Japonesa I 2021

apoiar novamente, semelhante ao que fazíamos quando cri-


ança. Sinto que tenho tantas coisas para te contar, mesmo
sabendo que você nunca saiu do meu lado.
Sem mais enrolações, deixo registrado aqui as intenções
que tenho com o caderno aqui presente e espero que você goste
do que escreverei daqui para frente.

Chameguinhos quentinhos,
reflexo do espelho.

30
つ ぐ み
TSUGUMI


Banana Yoshimoto

吉 本 ば な
ANA CAROLINA
Literatura Japonesa I 2021

Querida prima,
Apesar de me lembrar com intensidade das emoções que
senti nos momentos felizes e fugazes que compartilhamos
quando éramos pequenas, sinto que, ao rememorá-los, minha
memória não dispõe de detalhes suficientes para remontar
cada situação com exatidão e vivacidade. Hoje, te escrevo esta
carta porque somos adultas - eu há já um pouco mais de tem-
po que você - e, ainda assim, sinto que não entendo sobre o que
é a vida, afinal - mesmo achando que, nessa altura do campe-
onato, eu deveria ter uma noção mais clara.

festival
Só é possível recordar o ar noturno de um
Basta
quando este de fato estiver acontecendo.
nific ante
faltar um único detalhe - ainda que insig
estar
- para que a imagem, aquela sensação de
atada.
presente num festival, não possa ser resg
a,
Será que no ano que vem, nesta mesma époc
de
estarei aqui? Ou será que estarei sob o céu
lemb ranç as
Tóquio rememorando com saudades as
imperfeitas deste festival?”

Te escrevo porque não somos mais amigas e, para ser sin-


cera, não sei dizer bem o porquê. Todas essas incertezas, sejam
elas grandes ou pequenas, que venho recolhendo com o tem-
po, têm me pesado no peito. Queria poder reuni-las e apoiá-
las por um segundo sobre uma superfície fora de mim, para
poder respirar e seguir em frente mais forte. Mas acho que, na

32
Literatura Japonesa I 2021

vida adulta, é difícil encontrar tempo e um jeito certo de fazê-


lo. Recentemente, no entanto, li um livro que me serviu, por um
breve momento, como este apoio do qual tanto precisava e, sem
querer, me lembrei de você. Tomei a liberdade de colar alguns
post-its com citações que me levaram pela mão até a sua figura
e me fizeram querer te escrever essa carta, mesmo depois de
tantos anos.
Tsugumi é o nome dele - e também é o nome da prima da
protagonista da história, que narra algumas de suas memórias
ao lado da garota insuportável e intensa que tinha sérios prob-
lemas de saúde e comportamento. Você, é claro, não era como
ela. Quando pequena, apesar de tímida, você era doce, entusias-
mada e, acima de tudo, era minha amiga.

“Nós crescemos vendo inúmeras coisas.


E mudamos pouco a pouco. Avançamos
conscientes dessas mudanças que se tornam
reiteradamente perceptíveis de diversas
formas.
Mas, se por acaso eu pudesse impedir tais
mudanças, manteria aquela noite intocada.
Uma noite perfeita, repleta de singela e doce
felicidade.”

Na semana passada, quando visitei sua casa, assistimos


a alguns vídeos caseiros que fizemos durante uma viagem.
Naquela época, eu era sua prima mais velha e eu me lembro
de me deleitar nesse cargo que, para mim, parecia tão grandio-

33
Literatura Japonesa I 2021

so e importante. Lembro de querer, no auge dos meus 11 anos,


descobrir cada vez mais sobre o mundo, apenas para que eu
pudesse te guiar da melhor forma, como uma boa tutora, com-
panheira e líder. Sempre carreguei comigo essa vontade de
desbravamento, mas nunca imaginei que, ao crescer, seria tão
difícil continuar seguindo em frente - floresta à dentro e mun-
do afora - principalmente sem a sua mão para segurar.
Prima, eu sinto muito por termos nos perdido uma da outra
no caminho. Assistir novamente àquelas filmagens, sob a luz
dessa recente leitura que fiz, me fez refletir sobre quão voláteis
são estes mesmos momentos e memórias que, em conjunto,
transformam-se na massa de existência que solidifica quem
somos. Ao fim e ao cabo, não sei mais te dizer se sou firme ou
se sou fraca; se sou pedra ou se sou vento. E me angustia pen-
sar que, como sua prima mais velha, eu deveria saber disso
para poder te contar também.

“- Não sei explicar direito… Digamos que as


pessoas vivem se deparando com coisas novas e
que isso faz com que mudem gradativamente.
Elas acabam se esquecendo de muitas coisas
ou mesmo as abandonam. Acho que é porque há
muitas coisas para fazer”.

Ao mesmo tempo que não me lembro de nada em detal-


hes, me recordo de tudo em grande escala. Das brincadeiras,
das viagens, das conversas, das breves implicâncias. Das tar-

34
Literatura Japonesa I 2021

des de calor em que ficávamos sobre a mesa de pedra escura e


gelada da vovó e de como você me pedia para empurrar a rede
mais forte e de como eu tinha medo que você saísse voando
pelo quintal. Das madrugadas em claro vendo infomercial e de
quando te contei pela primeira vez que eu gostava de um ga-
roto. Eu me lembro dos seus olhos curiosos e atentos que me
faziam acreditar que seríamos confidentes para todo o sempre.
Me agarro a estes pequenos fragmentos de tempo e tento me
convencer de que o resto não é tão importante - mas não posso
deixar de pensar que me esqueci de tanto. E de que me per-
di das costuras e do enredo e do recheio das nossas próprias
memórias. Da base da nossa amizade que, hoje, por não ter onde
se apoiar, ruiu.

“Guardo diversos arquivos das ‘noites de verão’


em muitas lembranças. Assim como aquela
cena da infância, de quando nós três fomos
caminhar, essa noite também será arquivada.
Só de pensar que, enquanto eu for viva, terei
a oportunidade de algum dia sentir mais
uma vez o que senti naquela ocasião, tenho
esperanças no futuro. Esperanças de viver
uma noite linda como essa.”

Prima, eu te escrevo, no fim das contas, porque não me lem-


bro de termos nos despedido. A verdade, por mais dura que pos-
sa parecer para mim agora, é que nos afastamos e, pelo que já
entendi - ainda muito pouco -, a vida adulta tem dessas. Não

35
Literatura Japonesa I 2021

me sinto mais triste por estarmos distantes, mas sim porque


não me lembro do último momento em que fomos próximas.
Por mais que eu tente, minha memória não consegue resgatar
a última vez em que compartilhamos um segredo, a última
noite em que dormimos na casa uma da outra ou o último dia
em que dissemos “até a próxima!” tendo a certeza de que nos
veríamos em breve.
É curioso. Como, quando estamos vivendo estes momen-
tos, não podemos saber que eles são na verdade a borda de


um precipício, a quina de uma virada brusca ou a última nota
de uma longa sinfonia. Que dali pra frente, tudo vai mudar e
que, em retrospecto, ali caberia uma despedida, logo antes dos
caminhos se bifurcarem em outras novas histórias. Neste liv-
ro que li, muitas frases me lembraram você. Mas uma delas
tem me perseguido com insistência e me fez escrever essa
carta justamente para dizer o adeus que nunca dissemos uma
à outra. Como sua prima mais velha, não poderia me esquecer
de voltar e te contar que há vida para além das despedidas.
Então viva bem.

“Assim como o céu do entardecer mudava


rapidamente de cor, havia no mundo inúmeros e
variados tipos de despedida, e eu não queria me
esquecer de nenhum deles.”

Com muito carinho,


Carol

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富 江
TOMIE
Junji Ito

伊 藤 潤 二
BRENDA KAPP DE PAULA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 13 de julho de 2021

Caro amigo,
Nunca escrevi uma carta na vida, mas devido aos últi-
mos acontecimentos, creio que esta seja a única forma de lhe
contatar. Preciso de ajuda, embora tenha medo de tecer meus
desesperos em palavras, ainda mais assim, em caneta e papel,
de modo tão palpável. Gostaria de que isso não tornasse o que
tem se passado comigo mais real. No entanto, nenhuma das
mensagens que lhe escrevo sobre o assunto são enviadas, não
sei o que está acontecendo. Já revirei todos os cantos da inter-
net tentando buscar relatos de outros passando pelo mesmo
que eu, mas não fui capaz de encontrar nada. O que me pertur-
ba não é a possibilidade de ser a única a enfrentar isso, mas
sim de ser a única ainda viva.
Você ainda nutre aquela curiosidade mórbida pelo sobre-
natural como antes? Lembra-se de como costumávamos ficar
acordados até tarde contando histórias horripilantes, transfor-
mando cada mínima sombra na janela em monstros, cada as-
sobio do vento em espíritos uivando e cada estalar dos móveis
em assassinos à nossa espreita? Pois bem, espero que esteja
preparado para o que estou prestes a lhe contar, pois certa-
mente será mais assustador do que as histórias que inventá-
vamos. Não se engane, isto não é um delírio ficcional, é apenas
o mais puro relato dos meus últimos dias.

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Literatura Japonesa I 2021

Como bem sabe, não abdiquei do nosso interesse peculiar


mesmo depois que você mudou de cidade, muito pelo contrário,
me aprofundei ainda mais nisso, tentando encontrar ali o laço
da nossa amizade que a distância jamais seria capaz de des-
fazer. E foi assim que me deparei com os trabalhos de Junji Ito,
um autor japonês de histórias de terror e horror. Tenho certeza
de que você apreciaria o trabalho dele, em especial a coleção
de mangás chamada “Tomie”. No entanto, isso não é uma
recomendação. De forma alguma. Não leia nada relacionado a
esta mulher. Só de escrever o nome dela tenho a sensação de
estar sendo observada, como se alguém estivesse espiando a
escrita dessa carta por cima de meu próprio ombro e guiando a
caneta para que eu conte apenas o suficiente.
O primeiro mangá que li sobre ela contava a história de uma
linda garota que era brutalmente assassinada, mas retornava
à vida como se nada houvesse acontecido, e então passava a
perseguir e enlouquecer aqueles que entravam em contato com
ela, mas principalmente os homens. Me encantei, obviamente,
a história era interessante, os traços dos desenhos simples-
mente horripilantes e a cada reviravolta na narrativa eu me
sentia mais mergulhada naquele mundo. Não sei dizer quando
exatamente as bordas de minha realidade misturaram-se com
as dela. Ou se por encantamento acabei despertando-a neste
mundo. O que sei é que preciso de ajuda.

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Literatura Japonesa I 2021

Por favor, juro que não estou ficando maluca. Tomie ex-
iste. Eu a vi com meus próprios olhos, você sabe que eu sequer
bebo, não poderia estar drogada de alguma forma, não depois
de retornar de uma aula na faculdade. Cruzava a rua deserta
perto do ponto de ônibus mais próximo à minha casa, perto
daquele parquinho em que costumávamos brincar quando a
vi, linda e delicada, sentada calmamente em um dos balanços.
Não tive dúvidas de que era ela. Seu cabelo preto e grosso, o
rosto adornado com uma franjinha e a pinta inconfundível de-
baixo do olho jamais me deixariam enganar. Mas o mais per-
turbador era seu sorriso. Ela me encarava como se fosse uma
velha amiga que me esperava para um abraço apertado e por
alguns momentos me senti compelida a ir até ela, tocá-la, ter
certeza de que não era uma alucinação e então deixar que ela
fizesse o que desejasse comigo.
Foi então que ouvi a sua voz. Sim. A sua. Ressoou em meus
ouvidos como uma sirene, me tirando do transe com uma in-
tensidade avassaladora, dizendo apenas uma palavra: fuja. E
foi o que fiz. Disparei pelas ruas, tendo a plena certeza de que
Tomie me seguia. Podia ouvir sua risada ecoar pelos becos
vazios e sujos do meu bairro. Tinha medo de chegar em casa
para só então descobrir que ela me esperava na sala de estar.
Felizmente, por enquanto, não foi o que aconteceu. Mas ainda
não estou segura. Consigo ver seus olhos brilhando durante a
madrugada por entre as sombras das árvores que cercam meu

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Literatura Japonesa I 2021

quintal.
Sei que essa carta vai chegar até você com a mesma certeza
de que sei que foi a sua voz que me disse para fugir e acredito
que você será o único capaz de me ajudar. Então, por favor, me
encontre. Antes que ela o faça.

Obs: tenha cuidado. Tomie nunca morre.

À sua espera,
Brenda.

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O CONTO DO

竹 取 物
CORTADOR DE
BAMBU
BRENDA RIBEIRO ARGOLO
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 3 de junho de 2021.


Querida Eu-do-Futuro,
Talvez, daqui a alguns anos, essa carta chegue até você para
tranquilizar seu coração. Até que esse dia chegue, estarei por
aqui, tentando construir a linda caminhada que logo será sua.
Como seria animador se pudesse existir uma forma de receber
sua resposta agora, seria consolador saber o que me aguarda lá
na frente... se tudo ocorrer como planejado.
Vim pensando em como escreveria essa carta durante
todo o caminho para casa, pois atualmente estou trabalhando
naquela escola bem longe de onde morávamos, lembra? Tantas
pessoas que víamos naquele trajeto, crianças que nos guardam
com carinho no coração mas que logo nos esquecerão, situ-
ações que presenciamos nos metrôs em tempos de pandemia.
Tudo isso me fez pensar em como nossa vida é passageira, tão
bela e tão cruel.
Em meio à correria do trabalho, consegui fazer cópias de
um texto que há muito queria ler e, ainda por cima, era material
de estudo! Naquele dia, eu voltei para casa lendo o Taketori Mo-
nogatari, que, em português, é o Conto do Cortador de Bambu.
Confesso que fiquei preocupada, os textos de literatura costum-
am ser de difícil leitura, mas com esse foi diferente. Para textos
como aquele, o que você precisa é ler com emoção; e emoção
era tudo o que eu mais tinha guardado dentro de mim.
Sempre me emocionei com o filme da Princesa Kaguya, mas

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Literatura Japonesa I 2021

ler a obra original me fez confirmar que toda aquela história to-
cava minha alma e espero que ainda te toque também. A parte
dos pretendentes torna-se especial devido aos significados que
suas missões tomaram, dando nome e origem às expressões,
sempre relacionando-as às coisas cotidianas. Entretanto, me
comove quando a história absorve-se nos sentimentos da princ-
esa, inclusive, é quando o conto adquire sua essência – e, dessa
forma, compactua com as minhas aflições e estimas.
“Essa é a razão por que o seu coração não parece com os das
pessoas terrenas”
Será que é por isso que me sinto tão deslocada nesse mun-
do? Será que muito alimento meu ego quando me sinto alguém
como Kaguya, que desceu da Lua para viver as dores da Terra?
Ainda no mesmo dia que li esse conto, eu olhei para a Lua
com seu fascinante brilho e senti o seu consolo sobre mim,
senti que poderia olhá-la por horas a fio. Há vezes que ela, in-
clusive, aparece em minha janela enquanto luto para pegar no
sono, trazendo-me um sentimento abrasivo de conforto, mas
também de tristeza. Me sinto triste por ter que sentir tanto e,
contraditoriamente, também me sinto feliz por isso. O sentir é
algo belo e humano, entretanto doloroso e vil como o mundo.
“É que, ao contemplar a lua, o mundo me parece inseguro, e
tenho pena dele.”
Assim como eu, Kaguya sabia que seu tempo era limitado

44
Literatura Japonesa I 2021

e, por isso, me melancolizava ao luar, sabendo que logo haveria


de retornar para casa. No caso, o tempo de nós todos é curto,
mas me anseio por não poder viver todas as belas coisas que
existem nessa vida. Por isso, espero – e torço de dedos cruzados
– que você já tenha grandes histórias para contar de uma vida
vivida.
Somente um olhar aprofundado veria em mim, uma recém
adulta com tantos desejos e preocupações, uma criança, hab-
itando aqui dentro desejando a liberdade e o conhecimento do
mundo. E confio que você terá libertado essa criança, de alguma
forma... Afinal, de nada vale o licor da vida imorredoura quando
o mais belo é a efemeridade desta!
Querida Eu-do-Futuro... Desculpe-me pelas inúmeras ex-
pectativas, mas o que lhe desejo é a felicidade e sei que você a
terá. Vamos construí-la juntas.
Que a Lua te traga conforto,
Brenda, do seu presente e futuro passado.

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の 消 滅
O ELEFANTE

DESAPARECE

春 樹
Haruki Murakami

村 上
BRUNA FLORENCE DE MOURA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 14 de julho de 2021


Caro amigo,
Lembra de mim? Claro que lembra, que besteira, tem como
esquecer uma amizade de mais de 10 anos? Rsrsrs.
Apareci desse jeito pouco convencional por um motivo es-
pecial: quero assaltar uma padaria. Ou um McDonald’s — te ex-
plico no caminho. Sim, é isso mesmo que você leu. E digo isso
por carta porque, você sabe, esses algoritmos de internet tiram
a nossa liberdade e, num pulo, somos pegos — e não queremos
isso, né?
Te surpreendi? Rsrsrs. Claro que não quero assaltar nada!
Mas queria muito fazer essa brincadeira para retomar o nosso
antigo hábito: indicação de livros (e o hábito de fazer pegad-
inhas, rsrsrs). A vida anda tão corrida, Lu, que ultimamente só
tenho lido o que é essencial para a faculdade e pouca coisa por
prazer. E quando achei, finalmente, depois de meses, uma leitu-
ra realmente prazeirosa, não podia deixar de te contar primeiro.
O autor é o Haruki Murakami, ele é bastante conhecido na
literatura japonesa. Eu li uma coletânea de contos (17) dele que
estão no livro “O elefante desaparece”. Estou enviando o livro
junto com essa carta para garantir que você , ao menos um dia,
irá considerar a leitura completa. Mas, como sei que você está
enrolado com as coisas do mestrado e vai ter pouco tempo para
ler tudo de uma vez, quero reforçar a leitura de um pra nós po-
dermos conversar: lê o “O segundo assalto à padaria”. Sério!

47
Literatura Japonesa I 2021

Foi por isso que te propus, no início da carta, o assalto a uma


padaria. O conto é incrível: no meio da noite, um casal acorda
com uma fome descomunal (igual aquelas que tínhamos no
meio da tarde, na infância, rsrs) e, enquanto procuram coisas
para comer e beber, o marido conta sobre um quase assalto à
padaria que fez na
juventude. Depois de contar essa história suspeita, o casal
acaba tomando atitudes que levam a um… segundo assalto?
Bom, você precisa ler para descobrir e, claro, compartilhar
comigo suas impressões.
Eu adorei a escrita do autor: traz suspense, toques de sobre-
natural e nos prende muito. Eu tinha tanta coisa para terminar
do trabalho e da faculdade e só consegui ficar presa no livro
— acho que você vai amar e nem vai parar nesse conto. Perdão,


vou atrapalhar seu mestrado, rsrs.
Aproveita o presente, e já sabe: se sentir fome de madruga-
da, pode contar comigo! Rsrsrs.
Bruna.

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蜘 DA
O 蛛
FIO の 糸
ARANHA
川 龍 之 介
芥Ryunosuke Akutagawa
CAIO PERIN RIBEIRO
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 19 de Julho de 2021

Caro Yuri,

Nesta última semana ocorreu o lançamento da versão de


The Legend of Zelda: Skyward Sword para o Nintendo Switch, e
recordei-me da primeira vez que conversamos, quando desco-
brimos nosso interesse em comum pela franquia. Estávamos
no primeiro ano de faculdade — sempre me surpreendo quan-
do penso que fui do curso de Física para Letras, que diferença,
não é? — e ambos completamente perdidos no campus: como é
difícil estar em uma cidade diferente, com pessoas desconheci-
das e sem saber o que o futuro te reserva! Por isso fico feliz em
ter te conhecido, afinal, “It’s dangerous to go alone.”, certo?
Lembro-me como você contou que Skyward Sword era seu
Zelda favorito, e explicou-me todos os motivos que fizeram
você se apaixonar, e fiz o mesmo falando sobre minha paixão
por Link’s Awakening. Curiosamente, eu ainda não tinha tido
a oportunidade de jogar seu jogo favorito, e nem você o meu e,
obviamente, a Física com todos os seus cálculos e equações não
nos deixou muito tempo para isso, então o assunto ficava para
as refeições no bandejão, ou para as caminhadas no campus
entre o IFSC e o ICMC.
Muitas coisas aconteceram: eu me mudei, troquei de curso,

50
Literatura Japonesa I 2021

o tempo passou, e acabamos perdendo o contato um com o out-


ro. Agora penso nos momentos que perdemos nestes anos, nas
memórias que deixamos de criar e em todas as conversas que
não tivemos.
Finalmente, tive a oportunidade de jogar seu Zelda favorito
— caso sua opinião não tenha mudado desde então — e uma de
suas fases possui diversas semelhanças visuais com o conto O
Fio da Aranha, de Ryunosuke Akutagawa. Em ambos temos o
lago com flores de lótus que separa o “Paraíso” e o “Inferno”, no
jogo, o Buda que, no conto, caminha solitário, é substituído por
uma majestosa estátua no centro do lago e somos nós, contro-
lando o personagem principal, que caminhamos solitários pelo
cenário. Isso me fez pensar em como a solidão e a melancolia
são sentimentos recorrentes em Zelda, mas com coragem so-
mos capazes de “salvar o mundo”, e com sabedoria vemos que
não estamos sozinhos.
Sei que você não tinha o costume de ler mas, se chegou até
aqui, você consegue ler O fio da Aranha também! O conto tem
poucas páginas, é uma leitura extremamente rápida, então vá
ler porque a seguir darei spoilers, lembro como você gosta de
ser surpreendido, então não diga que não avisei!
A principal diferença entre o jogo e o conto está, justamente,
no fio da aranha. Após todas as semelhanças nesta fase, quan-
do comecei a subir o fio para escapar do “Inferno” fiquei muito
apreensivo, pensando que a linha se partiria e precisaria de-

51
Literatura Japonesa I 2021

scobrir outra forma de fugir. Felizmente, o karma não foi nosso


inimigo e, ao contrário de Kandata, Link consegue voltar para o
“Céu” (no fundo, nunca duvidei do nosso herói!).
Fico pensando em quantos arrependimentos nossos fios
conseguem carregar, então decidi escrever esta carta para re-
alizar uma breve reminiscência — lembra que essa é uma de
minhas palavras favoritas? O som evoca a imagem de um
resquício de memória escapando de nossas mãos. Yuri, espe-
ro que tenha gostado do conto, assim como gostei de Skyward
Sword e, acima de tudo, espero que o tempo tenha sido gentil
com você e que tudo esteja bem.

Com amor!
Abraços,
Caio

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取 物 語
A HISTÓRIA DO

CORTADOR DE
BAMBU
CAROLINE M. GOMES
Literatura Japonesa I 2021

Querida Monique,

Quanto tempo, espero que esteja bem. Sinto saudades das


nossas conversas antes da aula, das risadas e dos abraços.
Nesses tempos difíceis que percebemos a real importância de
um amigo, principalmente se esse amigo for tão especial e in-
crível quanto você. Eu sempre me sinto em falta de te comu-
nicar o quanto gosto de você, e espero que esta carta fique de
recordação para que você sempre se lembre da sua amiga com
dificuldade de falar o quanto você é importante para ela.
Decidi que queria te escrever uma carta porque sei que gosta
de coisas românticas e aventuras incríveis e estive lendo Take-
tori Monogatari, sempre me lembro de você quando leio sobre
Kaguya, eu sempre penso que eu sou o velho, que achou uma
princesa entre os bambus. Você é tão doce quanto ela, minha
querida amiga. E eu sempre sinto que a cada vez que falo com
você eu descubro ouro entre os nós do bambu. Embora não me
sinta seu pai, como o ancião é para Kaguya, sinto que tenho o
dever de olhar por você. Desejo a você toda a coragem que teve
Kaguya, e sei que é difícil deixar o lar para ir em rumo a Lua (ou
a Usp) mas se lembre sempre que o seu brilho ilumina toda a
sua casa e amigos e que todos estamos orgulhosos de você.
Espero que lendo A História do cortador de Bambu você se
encontre em Kaguya, como eu me encontrei no velho, para que,

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Literatura Japonesa I 2021

quando o mundo voltar a girar como antes, possamos nos en-


contrar entre os bambus da história e dar boas risadas.

Com carinho, Carol

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羽 鶴
千 TSURUS
MIL

康 成
Yasunari Kawabata

川 端
DANIEL AKIRA HASIMOTO
Literatura Japonesa I 2021

Minha querida amiga,


São Paulo, 29 de julho de 2021

Espero que esteja bem aí no Japão. Já faz 1 ano desde que


você decidiu embarcar para cuidar dos seus pais, né? Já dis-
se outras vezes mas não canso de expressar o quanto te ad-
miro e te apoio... Saiba que durante esse tempo, não teve um
dia sequer que passei sem sentir a falta das nossas conver-
sas e risadas, mas logo estaremos juntos novamente. Enquanto
isso, sabendo que adora cartas, escrevo a ti esta na tentativa de
encurtar a distância que nos separa. Recentemente, na tentati-
va de preencher o silêncio de meu coração que toma conta da
casa quando a noite cai, deparei-me com uma obra já bastante
empoeirada em minha estante. Tratava-se de “Mil Tsurus” de
Yasunari Kawabata. Acredito que já deva ter ouvido falar dele,
afinal foi o primeiro escritor japonês que foi laureado com o No-
bel de Literatura. Lembro que, na época, minha compra havia
sido motivada não apenas pelo prêmio em si, mas também por
aparentemente proporcionar um fluxo de sensações com um
toque de fantasia ao adentrar questões da sexualidade huma-
na. Ou seja, o tipo de leitura que amo!
Em suma, o romance narra a história de Kikuji Mitani, um
jovem que é convidado por Chikako, uma mestre de chá e anti-
ga amante de seu falecido pai, a comparecer a uma cerimônia

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Literatura Japonesa I 2021 Literatura Japonesa I 2021

com o pretexto de apresentá-lo a uma de suas pupilas. No en-


tanto, ao chegar lá se depara com a Sra. Ota, outra amante de
seu pai, acompanhada de sua filha, o que lhe trás velhas lem-
branças e desgosto a princípio. Mas isso vai se alterando con-
forme a conversa flui, até que acaba por ter um caso com ela! E,
mais tarde ela se suicida por não mais aguentar os julgamen-
tos da sociedade e isso acaba por aproximá-lo desta vez da filha
de Ota!!! Colocando desta maneira singela deve parecer que es-
tou a contar asneiras, mas é exatamente esta complexidade da
teia traçada por Kawabata, misturada a um modo simples mas
extremamente sofisticado de narrar que te prende de forma tão
prazerosa. Ao adentrar nos sentimentos e angústias mais pro-
fundas das personagens, em seus comportamentos e até mes-
mo nas palavras não ditas, a narrativa mistura um turbilhão de
sensações com questões sociais ainda bastante atuais, como
a do padrão estético de beleza, a feminilidade – e o que seria
ela, visto que a seus olhos Chikako se torna assexuada –, a fra-
gilidade masculina quando Kikuji se irrita ao ser comparado a
uma flor, o simbolismo do casamento, o significado da morte e
do suicídio e até mesmo o processo de ocidentalização e certa
perda das tradições japonesas em meio ao pós-guerra. Enfim!
Tamanha é a densidade de significados nas linhas do texto das
quais tenho certeza que metade ainda nem fui capaz de com-
preender.
A minha primeira impressão em meio a tudo isso? “Por que

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Literatura Japonesa I 2021

raios Kikuji ficou traumatizado por uma mancha nos seios


de Chikako que viu quando criança???” (cena que figura já na
primeira página). Com tanta atrocidade se fazendo presente no
cotidiano de um país em guerra e isso que marca sua infância...
Virei a noite posterior à leitura refletindo se seria uma simb-
ologia ao adultério cometido por seu pai, e que na verdade isto
que o marcara, mas o mesmo nojo não emanava da sra. Ota.
Talvez fosse uma mancha no coração de Chikako.
Para além disso, a leitura me fez pensar também em como a
cultura do adultério parece ser algo muito presente no Japão...
Talvez tenha mudado um pouco recentemente, mas o fato de
não ser um país cristão somado a tradição dos omiais, casa-
mentos arranjados em que não necessariamente há sentimen-
tos envolvidos, tenha contribuído para que esse ato fosse visto
como “aceitável”, ao menos aos homens, a ponto de ser per-
ceptível à sociedade que o pai de Kikuji tivesse amantes, mas
que isso não parecia constrangê-lo. Lógico que o fato de sua
esposa não exigir o divórcio envolve o forte patriarcalismo e
machismo presentes na sociedade japonesa. No entanto, re-
centemente vi um artigo que mostrava que mesmo em meio ao
prejuízo do setor hoteleiro na pandemia, os “love hotels” japon-
eses seguiram firmes e fortes, e que em vários não há nem re-
cepcionistas, o que mantém o sigilo dos que se hospedam e de
certa forma incentiva essa prática. Morando aí, você tem essa

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Literatura Japonesa I 2021 Literatura Japonesa I 2021

mesma impressão?
Outro ponto que me marcou foi a questão de Kikuji ver em
Fumiko, os trejeitos que amava em Ota ao ponto de enxergar
uma na figura da outra, da mesma forma que Ota o fizera com
ele em relação a seu pai. É muito doido, mas a narrativa mostra
como esse processo ocorre gradualmente, sendo que no in-
ício, Kikuji nota muito mais os traços de Fumiko que não se
assemelham à mãe, mas que conforme a história se prolonga,
sua percepção vai se alterando sem que a pessoa em questão
se alterasse. E, parando pra pensar, quantas vezes isso já não
me ocorreu também com músicas ou até pessoas, conforme as
conhecia melhor? No fim, será que as pessoas nos veem, se rel-
acionam conosco e nutrem sentimentos por nós pelo que real-
mente somos ou pela imagem que representamos pra elas?
Enfim, adoro como a leitura nos proporciona essas possi-
bilidades de nos conhecermos melhor. O final eu não contarei
para não estragar a surpresa, pois desejo muito que você leia
também. Todavia, uma coisa te adianto: se ao longo da leitura
imergi em outro mundo, quase que como passando pelo túnel
que leva ao País das Neves, até me esquecer dos mais mundanos
dos desejos, por algum motivo, ao fim desta me vi sentindo
uma incompletude ainda maior...
Conte-me mais sobre como tem passado também! Não vejo
a hora de te encontrar de novo. Com carinho,
Daniel

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Literatura Japonesa I 2021

Ps.: você deve ter se perguntado o porquê do nome


desse livro, e eu também não faço a mínima ideia. Mas se
pudesse realizar mesmo um desejo ao dobrar mil tsurus...
Você já sabe qual seria.

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雪 国
O PAÍS DAS
NEVES

康 成
Yasunari Kawabata

川 端
DÉBORA MAYUMI YAMAGUTI ZIMMER
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 17 de junho de 2021

Querida Bruna,

Como você está? Espero que esteja se cuidando direitinho e


carregando álcool em gel no seu bolso!
Você deve estar estranhando uma carta, né? Nós nunca
trocamos uma! Escute, sou mais emocionada por escrito, então
não estranhe se isso se tornar um pouco “afetado” demais. (E se
estranhar, não me diga!)
Estou te escrevendo porque, já que sempre estou falando
das minhas leituras, hoje resolvi tagarelar e te indicar mais
uma, mas à moda antiga, sem você ao meu lado ou do outro
lado da tela do celular. Desta vez vou falar de O País das Neves
(Yukiguni), de Kawabata Yasunari. Só pelo nome você já deve
ter entendido que tudo é rodeado pela neve, né? As descrições
dos ambientes, as relações entre os personagens, os silêncios:
tudo me deu a constante sensação de melancolia e frio. Pode
parecer exagero, mas é verdade, eu senti frio com a leitura. E
quando acabou, fiquei olhando para a parede em silêncio, pen-
sando se tinha entendido algo.
Saí dessa leitura sem saber muito bem o que estava sentin-
do. Sem saber nem o que pensar. Já te contando spoilers (porque
sei que você não vai ler com tão pouco tempo disponível para

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Literatura Japonesa I 2021

respirar no seu dia a dia), o final é como um corte no tempo,


quase que bem no clímax da história. Você ficaria frustrada,
não apenas com o final, mas com a maneira como é narrada.
Posso até ver a sua cara, como aquelas que você fazia quando
não gostava ou não entendia o final de um filme. Neste livro,
tudo fica suspenso no último parágrafo, parado eternamente,
congelado num cenário contrastante entre o frio congelante e o
calor do fogo. Fiquei a ver navios, assim como em praticamente
tudo que li do Kawabata até agora, mas mesmo assim adorei.
Não sei dizer o que me deixou melancólica na leitura. Não
foi só o final, foi o conjunto… E tem uma personagem, a Yoko…
não sei por que, mas senti algo meu dentro dela, de um jeito tão
inexplicável que escrever a respeito dela quase me faz querer
chorar (oi, Bruna-psicóloga-de-plantão, será que você vai quer-
er me analisar agora?). A primeira aparição da Yoko, no reflexo
da janela, por onde o Shimamura também vê a paisagem bran-
ca da neve, formou um conjunto que me deixou hipnotizada.
Passei todas as próximas folhas esperando pelo momento em
que ela apareceria de novo e fiquei chateada por não vê-la tan-
to quanto gostaria. Se pudesse ter conhecido o Kawabata, acho
que pediria a ele para defini-la em uma única palavra. Tenho
certeza de que essa única palavra revelaria tudo que eu quero
saber dela (ou não…). Mas não sei nada, e isso me deixa perdida
e frustrada ao mesmo tempo em que sinto algo ainda mais in-
descritível pela Yoko. Tive a impressão de que existem várias

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Literatura Japonesa I 2021

dela mesma, uma para cada pessoa com quem ela se relaciona.
Acho que você também teria essa impressão e ela se tornaria
uma personagem de quem nós duas passaríamos horas intei-
ras falando sobre, tentando analisar, inventando traumas e ex-
plicações para suas ações.
Faríamos o mesmo com a Komako. Inconstante, meio doida,
um enigma também: me surpreendi com ela o tempo todo, não
só porque ela era imprevisível, mas porque ela sempre parecia
dizer o que queria (ou quem sabe o que ela não queria?) e depois
agia de um jeito que a contradizia. Fico dividida: não sei de qual
das duas você gostaria mais. Talvez da Komako, mesmo: ela
faz mais seu tipo. Bebe que é uma beleza! (Não que você beba
muito, mas você tende a gostar mais das personagens menos
certinhas). Você provavelmente diria que as duas meninas são
“disfuncionais”, como gosta de brincar.
Quando terminei de ler, lembrei de você por sentir que pre-
cisava entrar na cabeça das duas moças, descobrir os detalhes
do passado delas, os desejos, as tristezas, as alegrias. Porque
não é isso mesmo que você vai fazer daqui pra frente? Vai se
sentar numa poltrona e desvendar a mente dos seus pacientes,
descobrir suas entrelinhas naquele teste da casa-árvore-pessoa
que você me contou e ajudá-los com seus problemas.
Sinto sua falta e de como éramos antes da pandemia, quan-
do você vinha me visitar e assistíamos a filmes complicados.

65
Literatura Japonesa I 2021

Lembra como debatíamos sobre eles por horas e conversávamos


o dia inteirinho sobre nossos medos, desejos, planos e segredos,
e fofocávamos sobre nossa família até de madrugada?
Em 2018, quando meus dias se acumulavam em melanco-
lia e eu me sentia presa num “país das neves”, sufocada pelo
branco ofuscante e congelada pelo frio, mais perto da Yoko do
final do livro do que de mim mesma, você era meu porto seguro.
Você chegava e trazia sua risada, seu conforto, seu apoio, suas
ideias que me tiravam do frio que me tomava por dentro. Fico
pensando na Yoko sem parar, em como gostaria que ela tivesse
tido alguém na vida como eu tenho você.
Você é uma das pessoas mais importantes pra mim. Sem-
pre vai ser, mesmo que agora você provavelmente prefira seu
namorado (risos). Sempre vai ser a minha 妹ちゃん do coração.
Espero que eu sempre seja sua 姉ちゃん.

Beijos da Dé!

OBS: Se um dia você ler o livro, pode me dizer o que acha que
significam as últimas duas linhas, quando o narrador diz que o
Shimamura “teve a sensação de que a Via Láctea o penetrara
num ruído surdo”? Acha que a Via Láctea adentrando alguém é
uma mudança dentro de si mesmo?

Referências
KAWABATA, Yasunari. O país das neves. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

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CONTOS
JAPONESES DE
MISTÉRIO E


IMAGINAÇÃO

平 井 太
Edogawa Ranpo
ÉVELI MACIEL BARBOSA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 09 de julho de 2021.


Oii, Izabela, como você tá?
Eu estou com tanta saudade... Nossos encontros, que já eram
escassos desde antes da pandemia vir, agora estão ainda mais
difíceis. Prometo que serei eu que vou conhecer sua Belo Hori-
zonte próxima vez, quando as coisas enfim voltarem ao normal.
Mas de forma alguma será a distância que me impedirá de ter
surtos literários contigo! Isso já é parte da nossa rotina, não tem
nenhuma novidade, não é? Então se prepare.
Estou novamente embarcando em narrativas japonesas, e,
pra variar, sou obrigada a te levar nessa jornada junto comigo.
Eu sei, eu sei que já te recomendei Eu sou um gato, do Sōseki, e é
um livro maravilhoso, mas você precisa ler o Edogawa Ranpo!
É a sua cara. Esse é um semestre que eu estou estudando contos
em várias matérias da faculdade, e tava morta de vontade de
ver os contos japoneses – inclusive, eu li alguns do Akutagawa
também, para matéria de Literatura Japonesa I, e são contos
muito bem articulados, mas ele vai ter que ficar para o próximo
encontro, rsrs–, e pensei por que não dar uma chance para o
Ranpo, que eu já estava querendo há um bom tempo?
Menina, acha que me esqueci da sua empolgação falando
sobre seus romances de mistério e depoimentos criminais que
você andou lendo? Logo que comecei a ler “A câmara rubra”,
um dos Contos japoneses de mistério e imaginação (como eu
não consegui encontrar nenhuma tradução em português, eu

68
Literatura Japonesa I 2021

mesma traduzi o título do conto e da coletânea, tomando por


base uma versão em inglês traduzida por James B. Harris, e a
tradução para português dos contos do Poe), você foi a primeira
em quem pensei. A sinopse é de uma sociedade secreta, reuni-
da na tal câmara rubra, para contar histórias de terror e rela-
tos mirabolantes, o narrador desta noite é um novato por ali, e
deseja explicar a razão e o desenrolar de seu hobby: assassina-
to. Tendo cometido 99 assassinatos, sem jamais ser preso, ele
explica com alguns exemplos a sua tática sublime, que é levar
alguém à morte a partir da manipulação da informação. Espe-
cífico? É, eu também achei, e adorei. Mas se você quiser mais
informações, só lendo o conto!
Duas coisas muito incríveis e divertidas me aconteceram
quando resolvi ler essa história. A primeira delas foi ter desc-
oberto um canal no YouTube que cria áudio-dramas de obras
japonesas, ele se chama きくドラ (kikudora) e todos os vídeos
são bem curtinhos e rápidos de ver, e o do 赤い部屋 (akai heya),
que é o nome em japonês do conto, é muito impressionante!
(Eu posso te mandar o link do vídeo depois, por mensagem, se
quiser). Poder ouvir em japonês o conto que eu tinha lido me
ajudou muito com toda a ambientação da história, e também
para entender algumas nuances da tradução, fora o treino da
audição. Enfim, um monte de benefícios, e eu estou muito feliz
de ter encontrado esse canal. A segunda delas foi ter recebi-

69
Literatura Japonesa I 2021

do uma recomendação de um estudo sobre o Edogawa Ranpo


muito completo! Quando comentei com minha professora de
literatura japonesa que queria lê-lo, ela foi logo me indicando
uma pesquisadora brasileira, a Lídia Harumi, com um trabalho
enoooorme e muito rico, e agora eu estou ainda mais fascinada
por esse autor! Sério, essa é a melhor sensei do mundo.
Sobre a estrutura do conto, eu achei a construção um pouco
semelhante com a de O espelho, do Machado de Assis, mas sou
obrigada a admitir que, pessoalmente, preferi muito mais ler as
confissões deste assassino, narrando seus crimes perfeitos, do
que a de um homem incompleto filosofando sobre as almas…
Não que eu tenha alguma autoridade pra dizer se é uma obra
melhor, mais bem “construída” ou não, apenas que foi uma obra
mais satisfatória pra minha personalidade, que adora descobrir
falhas em coisas consideradas corretas. “Existem formas ilim-
itadas de se cometer crimes perfeitos” foi uma frase do conto
que me deixou toda arrepiada e pensando: “a quem é que cabe
a autoridade de julgar uma culpa?”; “quanta influência palavras
ditas inocentes têm na vida, ou mesmo na morte, de pessoas?”;
“o que difere a malícia da inocência no resultado final?”, e mui-
tas outras questões tão complexas quanto… É um conto bastante
denso, e por isso estou te recomendando com tanta veemência.
Ser um relato real ou uma mera fantasia, será que faz alguma
diferença com relação à moral que está passando? Eu não sei.
Só sei que adorei a história de cabo a rabo, e espero que também

70
Literatura Japonesa I 2021

goste. Ainda estou cheia de saudades, e anseio por nosso reen-


contro para falarmos dos livros que você andou lendo também.
Se cuide e mande um abraço meu para a sua família. Diga para
sua avó que estou com saudades dela também.

Com todo o carinho do mundo,


Veve.

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取 物 語
A HISTÓRIA DO

CORTADOR DE
BAMBUS
FERNANDA KAORY
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 01 de julho de 2021.

Querida amiga,

Como você está nesses tempos difíceis? Apesar de termos


nos encontrado há três meses via videochamada, já faz quase
dois anos desde a última vez que nos encontramos presencial-
mente. Sinto falta do calor humano e do carinho que sentimos
quando podemos abraçar nossos amigos queridos. A razão de
eu te escrever esta carta é justamente uma tentativa de pes-
soalizar e conferir um toque mais “humano” às minhas pala-
vras, diante desse contexto de isolamento social, em que as in-
terações são feitas apenas online.
Outro motivo de te enviar esta carta é por ter recordado al-
gumas memórias de quando compartilhávamos leituras que
tínhamos gostado, ao arrumar minha estante de livros uns dias
atrás. Me lembro de termos os mesmos gostos para quase tudo
e até combinávamos a roupa que iríamos usar no próximo en-
contro. Apesar de não conseguirmos nos reunir como antiga-
mente, sendo nossos encontros praticamente anuais por conta
da faculdade e dos compromissos particulares de cada uma,
nunca esqueci dos momentos que passamos juntas.
Quando estava escrevendo esta carta pude dedicar um
tempo para relembrar as diversas loucuras que fizemos juntas

73
Literatura Japonesa I 2021

na nossa infância e de refletir sobre como mudamos ao longo


dos anos. Com a correria do dia a dia esquecemos de coisas
que realmente importam e deixamos sempre para depois de
contatar aquela pessoa distante, mas muito querida. Para não
perder essa nossa forte conexão, gostaria de recomendar um
conto que li este ano e me fez reviver um momento sem pre-
ocupações, em que nossa imaginação não tinha limites.
O nome do conto é “A história do cortador de bambus” ou
“Taketori Monogatari”, o qual apresenta tamanha profundidade
no psicológico e sentimento dos personagens, possibilitando a
reflexão tanto da sociedade japonesa da época, quanto da for-
ma que lidamos com a tristeza e o sofrimento nos dias atuais.
A perda da amada na história e a forma como as pessoas que
sentem afeição por ela lidam com a sua partida, tornou-se uma
maneira de assimilação e consolo para mim com o falecimen-
to da minha avó em maio deste ano. Acredito que a leitura será,
em alguma medida, frutuosa para você que também precisou
lidar com a perda da sua avó neste mesmo ano.
Neste período obscuro de sofrimento e solidão, muitos ti-
veram que se despedir dos entes queridos antes da hora e, de
forma negativa e positiva, passamos a repensar nossos hábitos
e valores. Estamos em necessidade de solidariedade e de com-
promisso por parte de todos e creio ser importante compartil-
harmos nossas experiências, razão também pela qual quero te
indicar esse conto.

74
Literatura Japonesa I 2021

Não obstante, gostaria de exprimir que a leitura, além do


sentimento de luto, provoca o riso e nos leva a cenários fantásti-
cos, fora da nossa realidade. Sem contar a história para manter
sua curiosidade em lê-la, só digo que me trouxe a nostalgia de
nossa infância, quando conseguíamos com a maior facilidade
transitar entre diversos mundos paralelos. Neles podíamos ser
o que quisermos – desde espiãs com nossos próprios codinomes
e comunicação secreta, até colegas de trabalho como médicas
em um consultório fictício! Assim como em “Taketori Monoga-
tari”, nossa imaginação fazia do extraordinário em possível.
Por fim, queria expressar minhas saudades e lembranças
preciosas dos tempos em que passamos juntas. Sinto falta das
nossas maluquices e longas conversas e espero poder te encon-
trar em breve presencialmente para dar aquele grande abraço e
atualizar as fofocas!

Cuide-se com carinho.


Beijos,
Kaory.

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境 の 南 、

SUL DA
FRONTEIRA, 西
陽 の
太 DO SOL
OESTE

上 春 樹
Haruki Murakami


FRANCISCO DE ASSIS LEÃO NETO
Literatura Japonesa I 2021

Santo André, julho de 2021


Querida amiga,
Confesso que me sinto estranho escrevendo uma carta
para você. As pessoas não escrevem mais cartas, escrevem?
Faz também tanto tempo que não nos falamos... “Estranho” se-
ria uma boa forma de começar a descrever isso tudo.
Faz realmente muito tempo, não? Sete, oito anos, quase
uma vida. Não quero soar dramático, mas nunca imaginei que
nos afastaríamos, muito menos por quase uma década. Mas
aqui estamos.
Nas últimas semanas, pensei muito em nossa antiga am-
izade. Fiquei nostálgico, senti saudades, me entristeci e quase
perdi a cabeça tentando relembrar o que poderia ter ocorrido.
No entanto, no fim, me senti apenas feliz pelo fato de termos
sido amigos e por termos seguido em frente.
A verdade é que tudo isso ressurgiu em mim por causa de
um livro – eu sei, eu e meus livros, dez anos depois e algumas
coisas não mudaram hahah. De toda forma, confesso que não
esperava que um livro me fizesse passar por tudo isso, mas aqui
estamos: eu escrevendo uma carta; você lendo-a, imaginando,
eu sei, que eu talvez tenha ficado louco.
O livro se chama Sul da fronteira, oeste do sol, de um óti-
mo escritor que tive a oportunidade de conhecer recentemente,
Haruki Murakami. Já digo que é uma ótima leitura, espero que

77
Literatura Japonesa I 2021

um dia você a possa conhecer.


O livro narra a história de Hajime e Shimamoto. Durante
a infância, eles foram grandes amigos, e foi nesse ponto que
não pude deixar de lembrar de nós. Eles até mesmo moravam
próximos um do outro, como eu e você, que fomos vizinhos por
tanto tempo. Ninguém a entendia como ele; claro, ninguém o
entendia como ela.
Infelizmente, eles acabam se separando. Sem spoilers ha-
hah. Mas a verdade é que a vida se coloca entre eles, e, como
jovens, isso foi o suficiente para afastá-los. Soa um tanto quan-
to familiar, não soa? Até este ponto, eu estava nostálgico: a de-
scrição de Murakami acerca da amizade deles realmente me
pegou desprevenido. Foi aqui também que me entristeci.
A questão, contudo, é que Hajime jamais conseguiu su-
perar isso. Ao longo do livro muitas de suas ações, quiçá re-
prováveis, são justificadas por ele, ainda que indiretamente, pelo
fato de jamais ter conseguido se conectar com alguém da forma
como se conectou com Shimamoto. E o mais interessante é que,
mesmo não tendo o ponto de vista dela, pude perceber que ela
passou pelo mesmo problema.
E foi aqui que percebi que já não valia a pena rememo-
rar nossa amizade, ou nossa separação, buscando respostas, ou
sentindo-me triste. A verdade é que, ao final do livro, não queria
ser como Hajime. Foram necessárias décadas e acontecimen-
tos que posso descrever apenas como traumáticos – hahah –

78
Literatura Japonesa I 2021

para que ele percebesse que não poderia viver em função de


Shimamoto ou o que ela representava. Imagino que ela possa
ter chegado a mesma conclusão que ele. Desculpa, spoiler.
O que queria dizer, de verdade, é que me sinto feliz por ter-
mos sido amigos, mas também me sinto feliz pela vida nos ter
levado a lugares diferentes, a pessoas diferentes. Faz sentido?
Não espero por uma resposta – acho que não espero nem
que você tenha chegado até este ponto neste solilóquio de lou-
co hahah – mas espero, sim, que esta carta lhe encontre bem e
feliz. Espero também que você possa ter a oportunidade de ler
o livro.
Faz anos que não lhe dou uma dica de leitura, não é? Mas
me lembro que sempre costumava acertar e gostaria de tentar
uma última vez.
Me desculpe mesmo pelo spoiler, eu me empolguei com
essa história de escrever cartas.
Cuide-se, querida amiga
Seu antigo amigo
Francisco

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伊 勢 物 語
AS NARRATIVAS
DE ISE
GABRIEL DIAS COELHO
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 22 de Julho de 2021


Querida amiga,
Como vai? Já faz tanto tempo que não escrevo uma carta
que mal sei como ou por onde começar. Não nos vemos há mui-
to tempo e, por meio desta correspondência, espero que eu con-
siga matar essa saudade de você - não vou mentir que esperarei
ansiosamente pela sua resposta!
Em meio à situação atual, passei a me agarrar firmemente
nas coisas pequenas, comemorando e apreciando até mesmo as
pequenas coisas do dia a dia. Às vezes, sinto que pensar demais
pode trazer problemas e, logo, tratei de me focar em algo que me
fizesse bem no meio de tanto caos. Este semestre, na faculdade,
tive a oportunidade de fazer várias matérias da minha habili-
tação (e não, não passarei mais tempo te atormentando sobre
como eu gosto do japonês e sobre como a habilitação tem o mo-
letom mais bonito da USP, apesar de ser verdade) e me deparar
com uma das primeiras matérias de literatura japonesa.
Você iria se surpreender com a riqueza da literatura ori-
ental, até porque não é todo dia que somos apresentados a ela,
não é mesmo? Me recordo sempre do seu interesse pela lín-
gua e cultura do Japão, quando dizia que queria voltar a estudar
mais. Este semestre acabei por ler “As Narrativas de Ise” ou “Ise
Monogatari” (伊勢物語), que possui cento e vinte narrativas de-
screvem o processo de criação dos poemas ali inseridos e é esta

81
Literatura Japonesa I 2021

estrutura que torna a leitura uma experiência única. Todas as


narrativas são introduzidas com a expressão “Mukashi otoko
arikeri” (“Antigamente, havia um homem”) ou expressão equiv-
alente e conta a vida de um homem desde sua maioridade e
termina com o episódio da composição de um poema diante da
morte iminente. Os temas são variados e contemplam desde os
casos amorosos quanto relatos de viagem, relações familiares
ou de amizade. O mais curioso desta narrativa são os estudos
por trás dele: Não sabemos ao certo, ao ler, quem é o homem ou
do qual a história fala ou até mesmo de seu autor. Nesse sen-
tido, trinta dos poemas de “Contos de Ise” estão presentes na
Antologia Poética Kokin Wakashu, descritos como de autoria
Ariwara no Narihira. Curioso, não? A obra também foi um mar-
co na literatura e serviu de influência para grandes obras no
futuro, como Genji Monogatari, considerado um dos primeiros
romances do mundo.
Até mesmo Zeami Motokiyo, grande dramaturgo japonês
de sua época, se inspirou em um dos capítulos para escrever a
peça “Izutsu’’, que conta a história de um casal que, desde pe-
queno, tiveram interesses amorosos e se casaram. Entretanto,
o marido passa a ter uma amante e a esposa, mesmo sabendo,
nada faz. O marido desconfia e tenta descobrir se ela também
possui um amante, mas sua busca tem um fim amargo quando
descobre que ela apenas recitava poemas
que mostravam a preocupação com seu amor saindo na

82
Literatura Japonesa I 2021

noite perigosa. Ele então larga a amante e passa a ficar somente


com a esposa.
A obra teatral é uma continuação do capítulo de Ise Mo-
nogatari, onde a traição não ocorreu. Com ela e várias outras,
comecei a nutrir um apreço pelas obras clássicas da literatura
e acho que hoje, mais do que nunca, o presente e o passado
acabam por se mesclar. Como um dramaturgo que se volta ao
passado para se ter inspiração e escrever sua peça, passo o dia
relembrando das coisas, pensando onde estaria agora em um
passado não tão longínquo, onde estaríamos indo para comer
(Ainda me lembro sobre o seu amor por curry japonês) e relem-
brando dos diversos momentos da nossa amizade. São essas
singelas memórias, aliadas aos pequenos hobbies que desen-
volvi na pandemia, que me permitem buscar inspiração para
continuar andando. Tenho certeza que, logo, tudo vai passar e
poderemos nos reunir novamente, afinal, não é à toa que Chico
Buarque diz: “Amanhã há de ser outro dia”, não é?
De seu querido amigo,
Gabriel.

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枕 草 子
O LIVRO DO
TRAVESSEIRO

少 納 言
Sei Shōnagon


GABRIELA MIRANDA MACENA
Literatura Japonesa I 2021

Dia 01 de outubro de 2021.


Meu precioso amigo e amor,
Escrevo essa carta ansiosa para contar-lhe o que desco-
bri nesses últimos dias, ou melhor, redescobri. Essa descober-
ta se deu por meio de um livro antiguíssimo chamado ‘O livro
do travesseiro’ escrito num país muito distante. Ele pertence a
Sei Shonagon, uma escritora japonesa espetacular que abriu as
portas do meu coração para a beleza cotidiana.
A delicadeza dessa escritora me tocou profundamente. Você
sabe como sempre detestei andar de transporte público e ter
que encarar aquela barulheira do terminal de ônibus às seis da
manhã. Agora, apesar de todas as dificuldades do que estamos
vivendo, me deparei com um cenário mais acolhedor: o silên-
cio da manhã. Posso despertar-me calmamente, vestir-me, ver
como está o céu lá fora – mesmo que através de uma tela de pro-
teção que há na janela, sentir aquele cheiro de dia despontando
e ouvir os pássaros anunciando-o.
Por isso, me identifiquei facilmente com a atenção contem-
plativa de Sei. Ela inspirou o meu coração a perceber detalhes
ainda menores e aqueles com os quais acabei me acostuman-
do, como: a sensação de ter as suas mãos entrelaçadas com as
minhas, o silêncio ao final das nossas conversas, a sua voz me
chamando pelo nome, a saudade que vem quando nos desped-
imos.

85
Literatura Japonesa I 2021

Surpreendi-me com o trecho em que ela lista coisas que


parecem intermináveis. Fui cativada pela seguinte frase: O
tempo do recém-nascido se tornar adulto. E se pudesse, suger-
iria à Sei que acrescentasse à sua lista: o olhar entre aqueles que
se amam.
Acredito que esse olhar pode acontecer em dois cenários
diferentes. O primeiro seria entre dois amantes, duas pessoas.
Esse já é de um valor imenso e uma das maiores alegrias que
pude receber com a sua chegada em minha vida. O outro, e é
exatamente esse que te convido a buscar, é o que mais custa
– especialmente vivendo em São Paulo no século vinte e um,
pois é nesse olhar que se dá o encontro entre nós e a vida. Deix-
ar-se envolver por tal olhar amoroso é assumir uma postura
vulnerável, atenta, silenciosa e disposta a escutar o que cada
coisa quer nos dizer.
Porém, como já disse, esse segundo olhar exige de nós es-
forço porque para alcançá-lo precisamos abandonar todas as
mil vozes que foram injetadas em nossa cabeça: “Faça logo
isso!”, “Como assim você ainda não sabe?”, “Ainda não termi-
nou?”, “Isso é inútil”. Não fomos feitos para isso; assumindo
essa postura perdemos a capacidade de sermos sensíveis àqui-
lo que preenche os nossos dias.
Recomendo que procure por esse livro. Se quiser, pode pe-
gar o meu emprestado. Não precisa ler tudo. Apenas algumas
folheadas já te ajudarão a abrir o seu coração para essa nova

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Literatura Japonesa I 2021

forma de enxergar o mundo.


Assim, finalizo essa carta com uma alegria transbordante
em meu peito, encantada com o coração humano, com esse
desejo que temos de encontrar o Amor em cada detalhe: um
amor com A maiúsculo capaz de redirecionar o nosso olhar
para o alto, para o belo, para o desenrolar rolar lento e encanta-
dor das nossas vidas. E agradeço com todo o meu ser por tê-lo
encontrado estando ao seu lado.
Com o mais simples e genuíno amor, Gabriela.

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俳 句
HAIKU

松 尾 芭 蕉
Matsuo Bashō
GABRIELA YURI KAMIDA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 17 de julho de 2021

Querida irmã,

Imagino sua cara de surpresa ao receber esta carta, você


sempre tão imediatista e que gosta de respostas rápidas deve
ter achado estranho receber uma mensagem escrita tão pre-
viamente. Mas juro que o motivo é nobre! Segui seu conselho e
me inscrevi nas aulas de literatura japonesa. Como já te contei,
sentia muita falta daquele prazer pela leitura, talvez devido ao
meu trabalho escrevendo manuais de instrução ou talvez por
causa das milhares leituras técnicas da faculdade. Cada vez
mais a leitura perdia sua cor e se tornava uma atividade enfa-
donha e obrigatória.
Nas aulas descobri os Haikus, poemas de 17 sílabas, para
nós que escrevemos o tempo todo é um pouco surpreendente
um texto tão curto não é? Os Haikus são escritos como uma
fotografia instantânea, retratam um breve momento apenas
com o essencial. Isso me lembrou quando lemos Pedro Páramo
e você me explicou que a arte do Juan Rulfo era cortar o texto
até ter apenas o essencial, naquele momento senti vontade de
ler de novo e percebi como os mistérios do livro estavam justa-
mente nas perguntas que não são respondidas, nas coisas vis-
tas pelos cantos dos olhos e nas histórias paralelas que nunca

89
Literatura Japonesa I 2021

tinham um final claro.


Que saudade dos nossos tempos de férias, onde combiná-
vamos lista de livros que leríamos juntas enquanto ficávamos
na casa da nossa vó. Na época odiava ficar sem assistir desen-
ho durante a tarde, mas hoje acho que ler e comentar sobre os
livros era muito divertido. Existem alguns como o Assassinato
no Expresso do Oriente que conversamos tanto que, apesar de
nunca ter andado de trem, sinto como se soubesse cada detalhe
dos vagões.
E por falar em conhecer lugares, conheci um autor, o Basho,
que fazia haikus durante suas viagens. Acho que você gostar-
ia de conhecer os textos dele, assim como você, ele gostava de
guardar memórias de viagem. Você ainda pinta aquarelas dos
seus lugares e comidas favoritas?
Outra coisa legal dos haikus é que eles usavam símbolos
para falar de estações no ano, a cigarra por exemplo simboliza
o verão, por que elas sempre cantam no verão. Isso me lembrou
quando você ficava animada para caçar cigarras no Animal
Crossing, aquele jogo de videogame japonês. Aqui não temos
esse hábito, então quando li o haiku achei engraçado porque
pensei nos nossos personagens de chapéus colecionando elas
para completar missões. Vou colocar o haiku aqui para você
sentir um gostinho da coletânea que estou preparando para ler-
mos juntas =]
shizukasa ya iwa ni shimiiru semi no koe

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Literatura Japonesa I 2021

Quietude —

O canto das cigarras

Penetra nas rochas.

Bashô

Outros símbolos são mais difíceis de entender na primeira


leitura, como a lua cheia que significa superação. Isso me fez
pensar em um texto que li para a graduação, onde a Sontang
explicava que a arte segue um caminho diferente da ciência e
da tecnologia e diferente do que muitas pessoas pensam não é
apenas uma questão de gosto ou interpretação pessoal. Na ver-
dade as melhores obras contém diversos códigos e referências
que precisam não apenas de conhecimento sobre o autor, mas
também sobre história, dinâmicas da arte e do estilo e até mes-
mo uma nova sensibilidade. Achei incrível como um texto que
li por obrigação em outro contexto ganhou cor e se tornou algo
palpável dentro de um contexto diferente.
Decidi te escrever uma carta para te agradecer pela sug-
estão. Escrever manuais, requer não deixar pontas soltas e ex-
plicar todas as dúvidas que podem surgir, por isso conhecer um
gênero onde o espaço em branco é uma parte importante do
processo foi incrível! Senti vontade de ler mais depois das aulas
e entender como os textos impactam o momento que foram es-
critos e também o futuro.
Espero que você esteja bem e que possamos nos encontrar

91
Literatura Japonesa I 2021

em breve, quem sabe não marcamos uma viagem para a casa


de nossa avó no interior, podemos aproveitar a falta de internet
para escrever alguns haikus ou desenhar algumas aquarelas.

Com carinho,
Gabriela Yuri Kamida

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キ ッ チ
KITCHEN

ば な な
Banana Yoshimoto



HELOÍSA IACONIS DA COSTA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 4 de julho de 2021

Querida Marina,

Como você está? E a sua família? Todos com saúde? Assim


espero e torço e desejo. Por aqui, estamos bem – na medida ex-
ata do bem possível para os dias de hoje. Para o Brasil de hoje.
Vivos e sãos. No meu caso, um eu que continua a ser eu, tenho
me mantido em mim, sem abraçar o desespero completo, por
conta do afeto e da literatura. Os dois unem-se tantas, tantas
vezes, que viram uma coisa só. Nós, por exemplo. Gosto demais
da expressão que você criou para caracterizar a nossa amizade:
amigas de livro. O amor pela arte da palavra, deste que é todo
encanto, esse amor fez com que nos encontrássemos nas salas
e nos corredores da ECA. Ambas, naquele momento, alunas de
jornalismo. Você dois semestres à frente, veterana minha. Em
2015, você se lembra?, cursamos juntas uma disciplina sobre
políticas públicas de leitura e outra repleta de contos e crônicas.
Depois disso, passamos a trocar recomendações de obras regu-
larmente: você já leu O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar?
Ou: o que você achou de Um Esboço do Passado, de Virginia
Woolf? Maravilhoso, não? E é, precisamente, uma dessas dicas,
a mais recente, que me motiva a redigir esta correspondência.
Amiga, amiga, não existe outro modo de começar a comen-
tar a respeito de Kitchen que não seja este: agradecendo a você.

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Literatura Japonesa I 2021

Há algumas semanas, quando te pedi indicações de autoras


japonesas contemporâneas, a sua resposta surgiu certeira: Ba-
nana Yoshimoto. Pois bem: na mesma hora, entrei no site da
Estante Virtual e comprei essa novela que me ganhou inteira.
São duas as partes dessa travessia e também duas as leituras
que dela realizei. (Por enquanto). A primeira durou o tempo de
uma tarde, de um fôlego transformado em fascínio (e apenas
interrompido pelos espirros – edição velhinha, um pouco am-
arelada, bota a minha rinite como o diabo adora, atacada e afia-
da, atim-atim-atim). A segunda alongou-se da última terça-fei-
ra até agora, tendo eu esmiuçado linha por linha, cada passo de
Mikage Sakurai. Ela, você sabe, é a protagonista desse enredo,
o qual traz um exercício duplo: do luto e da paixão.
Não me recordo se cheguei a te dizer, mas, desde o início da
pandemia, decretados o trabalho em home office e a faculdade
no modelo on-line, vivo na cozinha. O quarto, pequeno e lota-
do de livros e discos, não comporta sequer uma cadeira de es-
critório. Logo, de pronto, o título da história encontrou morada
no meu íntimo. E não apenas ele: a narrativa total, página após
página, fala comigo como uma voz de gente sábia, mensageira
da angústia e do carinho, os polos norte e sul da experiência
humana. Mikage, ainda jovem, conhece a solidão: órfã de todos
e tudo, perdeu os pais, o avô e, assim se abre a narrativa, a avó.
Diante dos meus olhos, tomando forma com letras e vírgulas e
pontos, o meu grande medo: ficar, estar e ser sozinha no mun-

95
Literatura Japonesa I 2021

do. Você sente esse temor, amiga? Na trama, porém, não demo-
ra para que a acolhida chegue, chegue pelas mãos dos Tanabe.
Yuichi e sua mãe, Eriko, abrigam Mikage e, no sofá deles, a
moça acha um espaço quente para habitar a perda. As perdas.
Por proteção científica e divina, não tive que me despedir de
alguém próximo neste caos. Você também não, certo? Entretan-
to, pululam chances para que nos imaginemos nessa situação.
E se fosse a minha mãe? O meu pai? Um dos meus professores
ou amigos? Ficaria apatetada como Mikage? Creio que sim. E a
carga da tristeza coletiva, o nosso país a morrer sempre mais,
esse peso que corta carne e espírito, inscreve-se em mim. Li
Kitchen com essas bolas de chumbo nos pés. Li Kitchen como
uma brasileira em 2021. Como uma brasileira, de coração pisa-
do, chorei ao descobrir o assassinato de Eriko, mulher tran-
sexual, mãe de Yuichi. Banana, ao inventar esse homicídio tão
real, acabou por me dar um escape para minha tensão: chorei
a morte de uma personagem e muitas outras mortes. Com Mi-
kage e Yuichi, permiti-me atingir, em uma brecha na matéria
da rotina, as lágrimas que escondi por puro terror de sofrer. A
literatura nos deixa sofrer: suspende o entorno e ordena: sofra.
E volte.
A literatura nos deixa amar. A novela, percebo dessa ma-
neira, constrói ainda a jornada do amor. No vaivém de comidas
e fins, a artista nos envolve no processo de amadurecimento
da relação de Mikage e Yuichi. Uma afinidade que cresce com

96
Literatura Japonesa I 2021

paciência, cuja face primeira é o ensinamento. De modo semel-


hante ao périplo da dor, a paixão também requer aprendizado.
Banana Yoshimoto, em sequências de frases curtas e sagazes,
revolve o nosso terreno interno: das ervas daninhas às flores,
devemos aprender a ficar, estar e ser gente no mundo. O casal de
Kitchen, aliás, parece com Lóri e Ulisses, de Uma Aprendizagem
ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector. A meu ver, trata-se
de uma das obras de maior beleza delicada já escrita e comun-
ga desse mesmo caldo de sensibilidade fervente de que é fei-
ta a ficção de Banana. Eis, portanto, a minha retribuição: além
desta carta, te indico Clarice, com a certeza de que, desse jeito,
seguimos, você e eu, amigas de livro, seguimos unidas. Aguar-
do notícias suas, fora as opiniões sobre o romance, viu? E não se
esqueça: o afeto e as palavras hão de nos salvar.

Com saudades e beijos mil,


Helô.

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雪 国
O PAÍS DAS
NEVES
川 端 康 成
Yasunari Kawabata
HENRIQUE C. F. PRADO
Literatura Japonesa I 2021

Caro amigo.

Espero que não se importe que te chame de amigo apesar de


não nos conhecermos. Bem, pelo menos você não me conhece.
Por isso peço desculpa pela intromissão e por nossa relação as-
simétrica. Espero que essa carta possa remediar este segundo
descuido meu, porém aviso que prefiro manter o anonimato por
minha parte, como um sinal de confiança que apenas verdadei-
ros amigos possuem. Uma confiança cega. Você estaria dispos-
to a aceitar tal posição de confidente?
Sua mensagem chegou aos meus ouvidos e olhos através
das janelas virtuais que nos cercam hoje. Essa é também a
razão pela qual você não me conhece apesar de eu te conhecer,
pois essas janelas são tal como o shoji, onde aqueles que se en-
contram fora do cômodo, na escuridão, podem ver os vultos da
vida que ocorre dentro. Aqueles que dentro estão, no entanto,
cegos são para as imagens de fora.
Pois é precisamente sobre isso que gostaria de conversar
com você. Janelas.
Este é um tema que tem me cercado há um tempo. Que cer-
ca a todos nós, acredito. Literalmente, virtualmente, metafisica-
mente. Porém, que não tem sido verbalizado, ou mesmo artic-
ulado publicamente, apenas “exposto”. Ou seria o lançamento
do “Windows 11” mera coincidência? E quanto a recém-aberta
exposição “Windowology” na Japan House São Paulo?

99
Literatura Japonesa I 2021

“Expor” vem da palavra “exponere” do latim, que por sua


vez significa colocar para (ponere) fora (ex-). É, portanto, um
ato irônico “expor” janelas sendo elas mesmas instrumentos
que expõem, que torna dois espaços distintos mutuamente ev-
identes. É como um ato metalinguístico, onde buscamos expor
as maneiras como expomos o mundo.
De forma geral, janelas são artifícios arquitetônicos que
ligam o espaço interior ao exterior. De forma mais específica, no
campo da arquitetura janelas são o principal mecanismo de il-
uminação e circulação de ar para o espaço interior. Devo apon-
tar, porém, que nesse sentido estritamente funcional a janela é
concebida como um artifício que “importa”, ou seja, o contrário
de “exponere”; colocar para dentro. Reside aí uma possível
razão para a transição funcional da janela dentro do contexto
de pandemia, e uma razão pela natureza “impositiva” que elas
têm adquirido, porém antes de adentrar nessa questão gostaria
de aprofundarmos sobre janelas tal como artifícios, como aber-
turas, como laços que nos unem.
O ar se renova com o abrir das janelas, enquanto a luz
movente do sol anima a imobilidade dos objetos do espaço inte-
rior. A janela é uma lembrança de que o refúgio que construímos
em nosso quarto, este espaço que acreditamos ser nosso e que
só se move por nossa vontade, é, inevitavelmente, sujeito às in-
tempéries do tempo. De que estamos inseridos no mundo, mes-
mo quando buscamos fugir dele.

100
Literatura Japonesa I 2021

Apesar da aparente oposição, os movimentos sugeridos do


“exportar” e “importar” correspondem à natureza essencial das
próprias janelas, de promover uma troca de via dupla entre o
interior e o exterior. Há um balanço entre essas duas forças que
a meu ver reflete também o equilíbrio entre o sujeito e o mundo.
Janelas funcionam como membranas que regulam o tráfego de
informação de um lado para o outro. Uma economia de trocas.
O regime das janelas, como gosto de chamar. Tal como quando
durante o dia o ar e a luz de fora alimentam o espaço interior,
à noite, essas mesmas janelas se tornam vislumbres de uma
outra vida, íntima, própria, que se projeta sobre a rua através
das luzes alaranjadas de cansaço das lâmpadas de tungstênio e
LED. Tão diferente, ainda assim tão similar. Longe, ainda assim
próximo.
A janela é uma ótima mediadora entre as duas facetas da
vida social humana, e impede a alienação dupla quando o con-
finamento é opressivo. Nesse sentido a janela adentra um cam-
po cultural mais amplo, não limitado ao universo arquitetônico,
mas que abarca toda manifestação daquilo que nos oferece um
olhar diferente para e sobre o mundo. Livros, filmes, pinturas,
poemas, fotografias, qualquer tipo de mídia que criamos para
nos aproximarmos de um ideal distante pode ser incluído na
concepção de janela. Rejeito o conceito de tela pois, a meu ver, é
apenas sinônimo de janelas mudas.
Quando leio um conto, adentro em sua narrativa, porém o

101
Literatura Japonesa I 2021

movimento contrário também ocorre. A história transborda e


invade minha realidade. Senti isso distintamente em minha
primeira leitura do livro “O País das Neves” de Yasunari Ka-
wabata. Estava em Londres, meio ao verão de julho. Não sei se
conhece a obra, mas se a conhece deve saber que o frio descri-
to por Kawabata pode ser sentido na pele. A princípio, a difer-
ença de ambientes, entre o frio da neve e o calor de Londres, os
colocaria em conflito, porém, no entanto e estranhamente, elas
se complementam, precisamente por sua diferença. O frescor
dos longos dias de verão deu vida às longas noites de inverno
do livro, enquanto que a intimidade entre Simamura e Koma-
ko adquiriu força e profundidade graças ao movimento de pes-
soas aproveitando o raro dia de sol inglês. Afinal, o desejo de
se envolver com outros era tangível tanto no livro quanto nas
pessoas que me cercam. O amor e amizade exposta no livro era
tão sutil quanto os vislumbres de intimidade das pessoas que
povoavam o parque.
O livro me foi como uma janela que uniu dois mundos dif-
erentes, fundindo-os em harmonia permeada por uma nova
noção de amor. Algo similar é magistralmente descrito na
própria obra de Kawabata. A janela pela qual a imagem pas-
sageira do cenário japonês, a mesma que reflete a imagem da
jovem Yoko, funde as duas imagens em um efeito que fascina
o protagonista. Que altera a percepção de Shimamura sobre a
jovem com quem compartilhava a viagem, e que lhe expôs um

102
Literatura Japonesa I 2021

outro nível de beleza à essa figura humana que cuidava de um


pobre doente. A dupla face da janela do trem une o movimento
de fora com a sutileza de dentro, humano com a natureza, uni-
dos. Em meu caso, tal como leitor, o livro foi minha janela, o uni-
verso contido no parque era meu cenário movente e a história
que lia, o reflexo de um universo íntimo que se desdobra e se
relaciona com a vida que reside fora das páginas.
Li os primeiros capítulos do livro sob a sombra das árvores
no parque St. James, a menos de uma quadra do Palácio de
Buckingham. Que turista malogrado que sou, hein? Viajo meio
mundo para ler um livro que poderia ler em qualquer lugar.
Porém, essa é uma das leituras mais memoráveis que já tive
em minha vida.
Sinto falta desse tipo de experiência, onde os diferentes
colidem para formar um novo. O calor do atrito entre as pessoas,
do encontrar, passar, ver, sentir. Dos gestos mundanos carrega-
dos de um desejo por viver, que buscam se estender ao próximo.
Do sentimento conflitante de querer companhia, apesar de, por
vezes, rejeitá-las, sempre por questões triviais. Sinto falta até
mesmo do toque humano não requisitado dos trens lotados do
metrô.
Meus gestos não carregam mais valor, pois não importa o
quanto eu busque alterar o mundo que me envolve, não recebo
respostas. As paredes que me cercam não mudam. Esforços em
vão.

103
Literatura Japonesa I 2021

Nos encontramos privados da experiência genuína da vida.


E em troca recorremos às janelas virtuais para nos aproximar-
mos ao contato que estamos a perder. Porém, não nos foi dito
que essas são janelas extremamente desbalanceadas. Não há
mais dentro e fora, só há aqui e ali. E o fluxo entre os dois lados
é tão desigual que um lado sempre predomina sobre o outro.
Consigo ver o mundo, mas o mundo não me vê.
Ao tentar compensarmos pelos meios perdidos, nos cer-
camos com essas janelas, criando casulos multidimensionais.
A morbidade do corpo que reside neles é mascarada pelos in-
úmeros sonhos que nos são oferecidos, e pelos quais recorre-
mos para sedar a dor nas juntas não articuladas. Dos laços que
não se amarram.
Seria um problema de design? Um defeito de fabricação?
Posso entrar em contato com a assistência técnica? Talvez seja
realmente uma questão de design. Em parte. Digo isso pois, a
meu ver, compartilhamos da culpa.
Culpar as janelas seria o caminho fácil. O caminho da ig-
norância. Um caminho provido pelas próprias janelas decepti-
vas. A culpa recai sobre nós também, pois fomos nós que recor-
remos a elas. Somos nós que mergulhamos nelas em busca de
algo, sem saber o que desejamos. E é aí que erramos, pois se a
usamos sem ter um fim em mente, sem uma intenção clara, es-
tamos nos colocamos à mercê de seu programa. Por essa razão
que elas se tornam desbalanceadas, pois ao utilizá-las sem mo-

104
Literatura Japonesa I 2021

tivação, nos alienamos da verdadeira experiência de troca, do


calor do contato, resultando em uma um fluxo desigual entre
partes. Isso é claro, pois tal defeito está também presente em
nosso discurso cotidiano, na forma agressiva com que lidamos
com diferenças.
Toda janela é capaz de manter um fluxo entre dentro e fora,
isso é inerente ao seu projeto. O controle deste, por outro lado, é
gerido por nós. Sou eu que decido se busco o que há fora ou se
volto-me para dentro. Se vivencio o correr da brisa de um lado
ao outro, se ouço os sons da rua que invadem meu ser. Se dou
um passo para fora ou para dentro. O mesmo vale para as jane-
las virtuais. E para todas as janelas discutidas aqui. Quando es-
quecemos do poder interativo delas, de que temos igual poder
de afetar o outro lado, é onde está o problema que desejo expor.
Estava sedento por retomar uma experiência de congre-
gação, por isso retomei a leitura do livro recentemente, porém,
no meio do caminho, encontrei impedimentos. Acredito que
residem duas razões por trás de meu fracasso. Primeiro, não
deveria esperar que a experiência que tive naquele dia viria a se
repetir. Ela nunca poderá ser reproduzida, apenas rememorada.
Segundo, na primeira vez que li o livro ainda era amador nas
questões de amor. Hoje, acredito ser mais experiente. Na real-
idade, temo dizer que tive um romance que se assemelha em
vários pontos com aquele no País das neves, porém que encon-
trou seu fim com a pandemia. Ler o livro hoje me faz lembrar

105
Literatura Japonesa I 2021

de dias felizes que encontram-se fora de meu alcance, em um


tempo perdido, e isso me fere, pois, as janelas fechadas pelos
ventos dos dias se tornam insuportavelmente evidentes.
Envio esta carta a você, mas ela poderia ser endereçada a
quem seja. Pois minha intenção ao escrevê-la não era apenas
reportar minha hipótese sobre janelas. Eu desejo reverter os
fluxos entre aqui e aí com essas palavras. Com meu gesto de
escrita, e com meu ato de leitura, com os dois lados dessa jane-
la. De fazer, com minha própria vontade e liberdade, reverter a
impermeabilidade adquirida pelas janelas, e lembrar que esse é
um ato que deve ser aplicado a qualquer janela.
Agora sei que o som do silêncio não será da solidão, mas
uma presença reconfortante, não importa o quão longe esteja.
Quero fazer da melancolia inscrita no calar das paredes em um
universo de ternura em eterna expansão, todo ele contido do
tênue limiar entre o aqui e o aí.

Quando lhe for possível, abra as janelas e deixe o tempo


fluir. Quem sabe, talvez, do outro lado, lá eu esteja.

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相 似 形
FIGURAS
SEMELHANTES 子
高 橋 た か
Takahashi Takako
ISABEL CRISTINA LIMA DA CRUZ
Literatura Japonesa I 2021

Limeira, 15 de julho de 2021.

Querido Nuts, como você está?


Espero que esta minha carta te encontre bem, e que você e
sua família estejam lidando bem com toda esta situação. Sinto
saudades de você, de quando éramos vizinhos e podíamos nos
ver sempre e conversar por horas... mas, infelizmente, com a
correria do dia a dia e a distância, as coisas ficam um pouco
mais difíceis né.
Eu tenho certeza de que você deve estar bastante ocupado,
mas, eu tenho pensado bastante em você nos últimos dias, en-
tão pensei em escrever esta carta. Agora você deve estar curi-
oso, se perguntando por que eu tenho pensado em você… bem,
além de querer notícias suas, pois não nos falamos há algum
tempo, o que me motivou a escrever foi a leitura de um conto
que eu gostaria de compartilhar, pois eu sempre gosto de ouvir
seus pensamentos a partir das leituras, e eu também acho que
os temas nesse conto vão te interessar.
Eu me deparei com esse conto muito por acaso, nem lem-
bro sobre o que eu estava pesquisando, mas acabei achando um
trabalho acadêmico que contém a tradução de dois contos da
escritora japonesa Takahashi Takako, de quem eu nunca tinha
ouvido falar. O conto que me chamou a atenção é o primeiro,
que se chama “Figuras semelhantes”, e que já me interessou no

108
Literatura Japonesa I 2021

título, me causando uma certa curiosidade.


Não quero te contar muitos detalhes do enredo, porque sei
que você gosta de ir desvendando a história aos poucos, mas
vou te falar sobre como me senti quando li.
Bem, esse conto me causou um certo estranhamento, a pon-
to de não sair da minha mente por vários dias. É uma daquelas
obras que não é necessariamente de terror, mas que me causou
um certo medo, e eu tenho algumas pistas do que causou essa
sensação.
O conto é sobre a relação entre mãe e filha, e a autora mer-
gulha em diversos aspectos do relacionamento das persona-
gens. Mas, antes de falar um pouco mais sobre o conto, eu gos-
taria de destacar uma passagem que representa bem a forma
como a autora vai desenvolver a história, que é quando a mãe
pensa nas máscaras de Nô após receber uma carta: “Me recordo
muito bem da máscara shakumi, que representa a mulher de
meia-idade. Uma máscara branca e macia. Embora a máscara
parecesse estar sorrindo, triste, zangada, assustada ou louca,
ela não sorria, nem estava triste, nem zangada, nem assustada,
nem louca. A máscara em si não tinha qualquer expressão. A
razão pela qual tinha de ser tão inexpressiva é que continha
emoções transbordantes em seu interior.”.
Acredito que essa passagem seja importante por repre-
sentar a forma como a relação das duas personagens vai sendo
revelada, a partir da memória da mãe, que vai reconstruindo

109
Literatura Japonesa I 2021

os detalhes da relação entre as personagens. Esses detalhes,


à primeira vista parecem ser inexpressivos e insignificantes,
como um gesto, um olhar, uma parte do corpo, ou até mesmo
um cheiro ou um comportamento muito específico, mas aca-
bam por ter um peso enorme, e causam um grande impacto na
relação entre as personagens. Assim, de uma certa forma, ess-
es detalhes aparentemente inexpressivos tornam-se cheios de
emoções transbordantes quando são observados atentamente.
A imagem da máscara de Nô, inexpressiva, mas que trans-
mite diversas emoções, também traz um certo estranhamento
que permeia o conto. Para citar um exemplo, logo no início, a
mãe recebe uma carta que ela tem a impressão de que foi es-
crita por ela mesma, pois é a sua caligrafia na carta; e a forma
como essa cena é narrada causa uma sensação de desconfor-
to e uma curiosidade, pois, a semelhança da caligrafia, apesar
de ser um detalhe pequeno e estranho, é muito significativo.
Outras cenas, à semelhança dessa, vão se repetindo no conto, e
ajudam a construir o quadro maior da relação das personagens.
Mas, eu acredito que o que mais me intrigou foi que a auto-
ra descreve um relacionamento entre mãe e filha que foge das
expectativas e possibilita diversos questionamentos. Um deles
diz respeito à tensão entre a figura da mãe e a da mulher, e o
papel social que é esperado que essas figuras femininas desem-
penhem. Até que é adicionada também a figura da velha, e, ao

110
Literatura Japonesa I 2021

final do conto, encontram-se três gerações de mulheres: a mãe,


que agora é velha, a filha, que tornou-se mãe, e a neta.
Há ainda um outro aspecto do conto que me chamou a at-
enção, mas eu não gostaria de revelar muitos detalhes, então
acho que vou parar por aqui. Espero que eu não tenha revelado
demais sobre o conto com tudo o que eu já contei, pois, caso
você queira ler, eu não quero prejudicar a sua experiência. Além
disso, eu gostaria também de saber sobre as suas impressões, e
se esse conto vai provocar em você inquietações tanto quanto
provocou em mim.
Estou com muitas saudades, e espero que você esteja bem.
Continue se cuidando, abraços,
Bel

COUTINHO FILHO, Francisco. Figuras suspensas em Taka-


hashi Takako: tradução e análise crítica de dois contos. 2020.
Dissertação (Mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japone-
sa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Uni-
versity of São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/D.8.2020.tde-
19062020-105118.

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奥 の 細 道
TRILHAS
LONGÍNQUAS DE
OKU
松 尾 芭 蕉
Matsuo Bashō
JÉSSICA M. NOGUCHI
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 16 de julho de 2021


Olá, minha querida amiga,
Como vão as coisas? Espero, de coração, que esteja bem.
Estava esses dias bastante atribulada com o fim do semestre
da faculdade, praticamente sem tempo para respirar, quando
o Google Fotos me manda uma notificação “Há exatamente 2
anos...”. Confesso que cliquei por pura procrastinação, e abriu
uma foto do pôr do Sol que tirei em English Bay, quando estava
com você. Foi em julho de 2019. Essa foto, em particular, é muito
importante para mim, pois foi quando você passou a ocupar um
espaço especial em minha vida.

113
Literatura Japonesa I 2021

Será que você ainda se lembra desse dia? Combinamos de


nos encontrar com o pessoal depois do almoço, mas acabou que
todo mundo furou e ficamos só nós duas, sentadas em cima de
uma enorme rocha. Me lembro do seu olhar contemplativo, até
um pouco distante às vezes. Quando você me contou que havia
largado o emprego, vendido tudo e deixado seu país para “fazer
do mundo a sua casa”, sabia que estava diante de uma pessoa in-
comum. Se eu conhecesse naquela época “Trilhas Longínquas
de Oku” (Oku no Hosomichi), do poeta japonês Matsuo Bashō,
teria conseguido retribuir a sua recomendação de leitura, seu
livro favorito “Fernão Capelo Gaivota” do Richard Bach. Hoje, ele
está na lista dos meus prediletos também.
Acredito que você e Bashō seriam bons amigos! Pena que
ele viveu há mais de 300 anos, mas você pode conhecê-lo
através dos diversos Haikus que deixou. A referida obra é um
diário de viagem, onde ele registra as experiências pessoais
que teve durante a jornada de 156 dias que fez a pé. Ele descreve
as paisagens, as pessoas que encontrou pelo caminho, e usa os
elementos da natureza para expressar os sentimentos. Achei
que essa postura reflexiva dele fosse do seu gosto, pois é muito
semelhante ao modo como você encara as coisas.
「日々旅にして旅を栖とす。」
“...Fazem da vida uma viagem, e da viagem a sua morada.”
É impossível ler esse trecho e não pensar em você. A visão
de mundo do Bashō de que “tudo é transitório”, me fez lembrar
da conversa que tivemos naquela tarde sobre o desapego: soltar

114
Literatura Japonesa I 2021

as pessoas, a culpa, as preocupações, a vontade de controlar


tudo, e firmar os pés no presente. Porque como você disse, a
vida é muito curta para ficarmos carregando tudo isso. Acho
que é uma das lições mais difíceis que existem, e fico imagi-
nando quantas coisas você teve que soltar para estar aqui. E
assim, entre pequenas conversas e longas pausas, acabou que
ficamos até o entardecer, quando a maré já estava cobrindo
praticamente todas as rochas, nos avisando que era o momento
de voltar.
Queria tanto ouvir mais das suas histórias, dos países que
conheceu, das experiências que teve... É muito estranho pensar
que um dos encontros mais significativos que tive foi com uma
pessoa que convivi só por duas semanas! Foi tão breve, mas ao
mesmo tempo muito marcante. Assim como os versos do Hai-
ku. Senti um aperto enorme no coração quando nos despedi-
mos.
Dois anos se passaram. Imagino que seus olhos já devem
ter percorrido dezenas de outros mundos. Me pergunto onde
você estaria neste momento. Mas independentemente de onde
esteja, espero que se encontre feliz. Obrigada por ter me propor-
cionado um momento tão belo. Quem sabe nossas jornadas não
se cruzam novamente? Nem que seja daqui a 300 anos.

Um abraço bem apertado,


Jéssica M. Noguchi

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眠 り
SONO

村 上 春 樹
Haruki Murakami
JULIA MAZZI DOS SANTOS
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 25 de Julho de 2021.

Querido D,

Eu tenho sentido tanto sua falta, como você está? Espero


que essa carta te encontre bem, e vacinado! Eu tenho me diver-
tido muito trocando correspondências com você. Dessa vez eu
venho por meio desta carta te contar um episódio que foi ines-
peradamente impactante para mim.
No início do ano de 2020, ouvi que teria uma exposição do
Takashi Murakami no Instituto Tomie Ohtake. Eu queria mui-
to ir em alguma exposição nova, e o nome Murakami já tinha
cruzado meu caminho algumas vezes, mas era o Haruki Mu-
rakami, escritor. Minha curiosidade cresceu e senti que esse
seria um bom primeiro passo para conhecer o outro Murakami,
artista plástico. Fui no dia do meu aniversário.
Foi como um renascimento particular, meu. O Murakami
tinha nascido em mim e me peguei deslumbrada por suas obras
plásticas. Minha mãe, minha companheira de exposição, ficou
fascinada com uma das esculturas e comentou com todas as
suas amigas e familiares. Eu guardei pra mim. Não sabia direito
como externalizar. Alguma coisa dentro de mim tinha se rev-
irado (não de uma maneira ruim), e bom foi assim que resolvi
me aventurar nas aulas de Literatura Japonesa, desta vez, para
conhecer melhor o escritor Haruki Murakami.
O escritor Murakami escreveu o conto “Sono’’, que conta a

117
Literatura Japonesa I 2021

história de uma beletrista que se encontra insone por um grande


período de tempo. E nessa insônia inexplicável, ela redescobre
a leitura de Anna Karenina.
Me pareceu um sinal tão claro do universo! Eu queria
começar a ler alguma coisa, sou uma beletrista que não con-
seguia mais se concentrar para ler um livro e (infelizmente,
nesse ano pandêmico) vinha sofrendo bastante com minha in-
sônia. Era quase como se o livro falasse sobre mim! Guardada
as proporções, me reconheci na situação do breve resumo da
personagem principal. Resolvi me aventurar!
Comprei o livro e comecei a leitura sem muitas expectati-
vas fixas, mas ainda assim pensando que talvez eu encontrasse
algumas dicas sobre como lidar com minha insônia, ou como
reaprender a ter concentração na leitura. Um final feliz. Já te
adianto: não encontrei nada disso!
Na verdade, o que aconteceu foi que me encontrei refletin-
do sobre diversas questões da vida que de repente brotaram
como ervas daninhas na minha mente quando, depois de um
mês de quarentena, percebi que as coisas não se resolveriam
rápido. Eu me peguei insone, lendo o livro e pensando sobre a
insônia, e como esse é um momento em que ao mesmo tempo
as coisas são e não são.
A personagem fala sobre sua rotina diária, e como tudo é
tão repetitivo e mecânico. Mais do que nunca eu tenho viven-
ciado isso também. A quarentena me colocou (junto com o resto
do mundo) em um looping (in)finito de acordar, comer e passar

118
Literatura Japonesa I 2021

o dia inteiro dentro de casa e no quarto. Variando em pratica-


mente nada, nosso horizonte virou a tela do computador. Meu
passado virou imagens, que agora tão distantes, pareciam uma
outra vida e meu futuro, um vazio.
Assim como a família da personagem, a minha também
não percebeu minha insônia. Eu interagia bem pouco, de for-
ma mecânica. O amanhecer deixou de representar o começo
de algo novo e passou a ser um motivo de frustração: era mais
uma noite em que falhei em dormir.
Assim como ela, em seis meses de quarentena, comecei a
ter problemas de discernir um dia do outro. E meu apetite sum-
iu completamente. Percebi que o vinho me ajudava a dormir e
comecei uma breve relação nada saudável em que meu corpo
via nessa bebida uma solução para a insônia.
E foi durante a leitura que eu realmente consegui perceber
a repetição insana de dias iguais que minha vida tinha virado.
Finalmente entendi que era justamente essa repetição que es-
tava me deixando mal. Eu não conseguia mais “ser” nem me-
canicamente. E foi assim que, surpreendentemente, esse livro
foi meu ponto de virada.
Aceitei que minha falta de concentração não era um defei-
to e que por hora não teria como “curá-la”. Deixei de me cobrar
tanto resultado, focar na minha saúde. Destruí minha rotina
e os planos. Voltei a fazer terapia. Deixei a imprevisibilidade
tomar conta, e meu sono regular voltou. E meu apetite também.
Eu comecei a me sentir humana como nunca na vida. Viva. E

119
Literatura Japonesa I 2021

mesmo quando enfrento dificuldades, tem algo dentro de mim


que me garante que vou conseguir passar por isso. Não é mais
uma questão de vencer. Eu só quero, agora e sempre, SER.
Acho que o que o Murakami queria era “virar meu carro”. E
ele conseguiu.
Espero te encontrar em breve para “SERMOS” juntos.

Abraços de saudade,
Julia.

120
HAIKU

松 尾 芭 蕉
Matsuo Bashō
KELLEN QUEIROZ
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 19 de Julho de 2021.

Papai, Fafaizinho (como geralmente te chamo, rs)

Esses têm sido dias bem difíceis, mas mesmo diante de toda
essa loucura posso dizer que tive grandes conquistas. Estar na
USP novamente foi uma delas. E nessa oportunidade estou po-
dendo entrar em contato com uma cultura que sempre tive in-
teresse.
Interesse esse trazido por você, afinal são 33 anos que o Sr.
mora no Japão e que conta como tudo acontece por aí.
Confesso que por um momento não gostava muito de saber
como era o país, sua cultura, seus costumes, língua, literatura,
pois sentia que de certa forma o Japão o havia roubado de mim,
mas com o tempo pude ver que não aconteceu dessa forma e foi
nesse momento que meu interesse por tudo o que existe por aí
foi despertado.
Nessa segunda vez na USP no início do semestre decidi por
escolher disciplinas ligadas ao Japão e uma delas a Literatura
Japonesa, no decorrer das aulas comecei a identificar aspectos
na literatura com as histórias que o srº me conta de como são
as pessoas ou os costumes nesse país que o srº tanto ama e
pude entender suas atitudes e como pensa hoje em dia.
Fiquei impressionada e encantada com essa nova cultura e
com os textos que conheci. Como são profundos e ricos.
No meio de todo conteúdo, um tipo de texto me chamou

122
Literatura Japonesa I 2021

mais atenção, os haikais. Pouquíssimas palavras e tanto a diz-


er. Poemas super curtos que falam do cotidiano, sua relação
com a natureza, da transitoriedade da vida, tudo com a maior
simplicidade, com a possibilidade de reflexão sobre cada um.
Cito um de Matsuo Basho:
Quero ainda ver

nas flores no amanhecer

a face de um deus.

Tão curtinho e tão profundo.


Sobre literatura o srº nunca tinha me falado, mas também
com a vida corrida e de muito trabalho por aí às vezes fica difícil
ter tempo para se encontrar com a literatura, mas garanto que
vale muito e por isso decidi escrever, para te mostrar um pouco
sobre isso que conheci do lugar que hoje é o seu lar.
Acho que esse interesse e poder te contar essa descoberta
acaba me levando para mais perto de você, e enquanto não con-
sigo te visitar a leitura de textos e o aprendizado dos costumes e
cultura do povo japonês ajudam porque a distância e a saudade
são grandes.
Espero ter despertado em você a vontade de conhecer pelo
menos um pouquinho essa parte da literatura daí, para quando
eu chegar podermos conversar por horas sobre isso.
Da sua filha que te ama!
Kellen

123

O CONTO DO

竹 取 物
CORTADOR DE
BAMBU
LILIANE K. ITO ISHIKAWA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 18 de julho de 2021.

Oi Papai,

Tudo bem com o senhor?


Surpreso com esta carta? Realmente, faz muito tempo que
não te escrevo né?
Acho que a última vez que te escrevi foi quando vim para
São Paulo fazer cursinho e tentar fazer uma faculdade, contrar-
iando sua vontade..., mas eu sabia que no fundo você queria que
eu lutasse para conseguir realizar meus sonhos e estava orgul-
hoso com a minha iniciativa (apesar de nunca ter dito isso).
Quis te escrever hoje porque li a história de O Cortador de
Bambus (Taketori Monogatari) e me lembrei de que, quando
eu era criança, por inúmeras vezes você lia em nihongô várias
histórias e fábulas como o do Omosubi Kororin (O bolinho de
arroz que rola) que eu adorava, o do Momotaro-san (O menino
pêssego), e essa história, que vinha num lindo livro ilustrado.
Eu achava a moça (Kaguyahime) triste, mas muito linda!
Confesso que sempre ficava intrigada com a história,
porque não entendia porque ela tinha partido deixando todos
tristes, inclusive seus pais adotivos. E é por isso que fazia com
que lesse o livro várias e várias vezes.
Acredita que só agora, depois de algumas décadas, na aula
de literatura japonesa, graças à minha sensei Lica, consegui
compreender um pouco da história e resolvi compartilhar com

125
Literatura Japonesa I 2021

você as impressões que esta história me trouxe.


É certo que a fábula que você lia era uma versão infantil,
portanto, mais simplificada, e agora ouso confessar que quase
nada entendia do que você lia, mas gostava de te ouvir e, toda
vez que você contava a história, gostava de imaginar que algo
diferente podia acontecer.
Agora, com a leitura de uma versão mais completa, vejo
que a Princesa Kagura é realmente admirável. Ela nasceu em
um broto de bambu, era tão incrivelmente linda e radiante, que
provocava a cobiça de muitos homens. Ela não sentia a neces-
sidade de um casamento para ser feliz, ao contrário de seus
pais adotivos que se preocupavam pelo fato de ela não querer
se casar e constituir uma família... ou seja, ela era uma mulher
moderna, não achava que precisava ter um marido para ser fe-
liz!
Ela fez pedidos praticamente impossíveis aos seus pre-
tendentes e cada vez que um aparecia dizendo que tinha con-
seguido obter o que havia sido pedido, se entristecia e quando
descobria a falsidade, se iluminava de felicidade!
Somente com o príncipe Mikado ela parece ter aprendido
o significado do amor, e foi quando chegou o tempo de retornar
ao País da Lua, que era a sua terra natal.
Ciente de que os pais adotivos ficariam infelizes com a
sua partida, ela estava muito triste, chegando a chorar copiosa-
mente. Um dia ela contou-lhes que veio do País da Lua, onde
vivia seus verdadeiros pais e que para lá teria que regressar,

126
Literatura Japonesa I 2021

mesmo contra a vontade.


Seus pais adotivos e o Mikado não queriam que ela par-
tisse e, para tanto, montaram guarda no entorno da casa com
vários soldados, trancafiaram-na num quarto, na tentativa de
evitar a sua partida.
Contudo, todas as tentativas foram em vão, pois as portas
e trancas se abriram com a chegada dos homens celestiais e
a princesa partiu para o céu quando estes a cobriram com o
vestido angelical, que fez com que esquecesse do seus pais, de
Mikado, de sua vida terrena, enfim, de tudo que ela tinha vivido
na Terra.
Esse detalhe também me fez pensar em você, papai! Você
também nos deixou subitamente, sem que tivéssemos condições
de evitar a sua partida. Será que na sua partida, também te colo-
caram um traje celestial que o fez esquecer da vida terrena e de
nós?
Será que você está agora vivendo numa morada de luz,
tendo retornado à família celestial e está feliz?
Acredito que sim. Mas por esta missiva, gostaria que
soubesse que guardo muitas lembranças boas e espero real-
mente que esteja bem na sua atual morada, para onde sei que
um dia também devo retornar.
Um saudoso, afetuoso e apertado abraço de sua filha que
te ama demais!
Liliane

127
竹 取 物 語
O CONTO DO
CORTADOR DE
BAMBU
LUCAS W. P. SILVA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 20 de julho de 2021

Caroline,

A distância momentânea que os dias da semana propõem


para nós dois me causa não somente saudade, mas também
uma mistura de sensações que, na verdade, seria difícil explic-
ar como agem. Nos tempos em que vivemos, estarmos reclusos
a ficar em casa sem a possibilidade de explorar não só a juven-
tude, mas todos os lugares que prometemos ir quando tudo isso
tiver fim é angustiante. Uma das sensações, então, certamente
é a angústia. Mas nos mantermos firmes não somente no que
sentimos em relação a tudo isso e à nossa promessa é essen-
cial para passar por esse momento delicado. Uma das coisas
que ocupam minha mente de ficar refém do noticiário e de toda
raiva e revolta que esse país pode proporcionar com o gover-
no é a leitura. Em específico, a leitura de uma obra que a Lica
Sensei nos passou durante as aulas de literatura japonesa neste
primeiro semestre do ano.
Trata-se da história do conto do cortador de bambus, ou 竹
取物語 (Taketori monogatari) em japonês, que conta a história
de um homem idoso, que não possuía filhos e que cortava bam-
bus para sobreviver. Certo dia, ele encontra um talo de bambu
brilhante e decide cortá-lo para saber o que havia dentro. Den-
tro do talo havia um bebê minúsculo, do tamanho de um pole-
gar, e decide levá-lo para casa para cuidar do bebê junto com

129
Literatura Japonesa I 2021

sua esposa. A partir da chegada do bebê, que recebeu o nome de


Kaguya, todos os talos que o senhor idoso cortava resultavam
em montes de pepitas de ouro. Kaguya crescia todos os dias
e, em pouco tempo, virou uma bela mulher, o que fez com que
seus pais decidissem transformá-la em uma princesa, juntan-
do todo o ouro que haviam retirado dos talos de bambu e indo
para a capital para construir um castelo e começar a estabe-
lecer conexões com os nobres do local.
A história é muito bonita e é uma das narrativas mais anti-
gas da língua japonesa, então carrega simbolismos em todos os
momentos, como na velocidade do crescimento de Kaguya (as-
sim como o bambu cresce em ritmo muito acelerado) e, princi-
palmente, sobre a memória. Kaguya, em determinado momen-
to, sentia falta da vida antiga que levavam no campo e de seus
amigos que lá ficaram. É necessário, agora, contar um spoiler
do fim da obra. Kaguya se torna uma princesa, mas conta que
na verdade veio da lua. Então, os moradores da lua descem à
Terra para buscar Kaguya, que chora por não querer perder sua
memória do que viveu na Terra.
A obra me ensinou, entre diversas outras coisas, sobre o
valor das memórias e o valor do tempo. Kaguya tinha um tempo
na Terra e havia juntado inúmeras memórias que se perderam
ao retornar à Lua. E é exatamente isso que eu mais tento culti-
var estando ao seu lado: o tempo e a memória. Tenho certeza
que leremos juntos essa obra tão bonita.
Ainda temos todo o tempo que nos resta para aproveitar a

130
Literatura Japonesa I 2021

presença um do outro, mesmo que restrito ao fim de semana no


momento, e para colecionar memórias estando juntos. Espero
poder voltar logo para a nossa rotina de ir para a faculdade jun-
tos e voltar para casa juntos, comentando sobre todos os nossos
sonhos e desejos de conhecer o mundo, crescer juntos e depois
relembrar do que vivemos nostalgicamente. Você é absoluta-
mente tudo para mim e eu a amo incessantemente.

Com muitíssimo amor,

Lucas.

131
個UMA人 的 な
QUESTÃO
PESSOAL
体 験
Kenzaburo Ōe

江 健 三 郎

MARCELA SAYURI NAKAGAWA LEITE
Literatura Japonesa I 2021

Tatuí, 9 de julho de 2021

João,

Sabe que eu nunca pensei que iria escrever uma carta em


2021. Com a pandemia e o isolamento social, todos os nossos
contatos com as pessoas que queremos bem se limitam ao dig-
ital, né? Aliás, só te conheço pelo digital. E eu já deixei bem
claro para você como sua amizade é uma das amizades mais
incríveis que eu formei desde que iniciei a graduação e é até es-
tranho pensar que provavelmente já cruzamos nos corredores
da Letras alheios da existência um do outro.
Acabei vendo essa atividade da Lica sensei como uma pos-
sibilidade interessante em transformar a nossa amizade com-
pletamente digital em algo palpável pela primeira vez. Uma


carta real, escrita com folhas reais, com caneta real e tinta real.
Tornar empírico meu agradecimento por todas as vezes em
que você me ajudou com 日本語 (nihongo), me deu suporte para
eu não desistir. Você já deve ter visto que na caixa do correio
também veio um livro. Esse, no caso, foi o primeiro livro de lit-
eratura japonesa que eu li.
Tudo começou porque eu havia notado esta falha em mim
em nunca ter procurado ler algum livro de autor japonês. Cla-
ro que conhecia Haruki Murakami, Kazuo Ishiguro e Banana
Yoshimoto, mas o que me chamou atenção para realmente ini-
ciar meu percurso na literatura japonesa foi Kenzaburo Ōe. Me-

133
Literatura Japonesa I 2021

stre Ōe escreveu vários livros - e ainda escreve - e seu amado


filho Yukari é tema de várias de suas obras. Deste livro que es-
tou lhe dando, Uma questão pessoal, mestre Ōe recebeu o No-
bel de Literatura em 1964 por relatar a história de um homem
prestes a se tornar pai, mas descobre que seu bebê nasceu defi-
ciente físico e intelectual. Assim como o protagonista do livro,
o filho de Kenzaburo Ōe também nasceu deficiente intelectu-
al. O protagonista, Bird, não se sente pronto para a paternidade
nem para encarar as responsabilidades de um adulto e, narrado
inteiramente em terceira pessoa, a história percorre os poucos
dias entre o nascimento do bebê e o tempo que o bebê está no
hospital. Fugindo de suas responsabilidades e se referindo ao
bebê como “um monstro”, no decorrer das páginas refletimos
quem é o verdadeiro monstro de toda a história narrada. Aqui,
todos os personagens são complexos, tentando lidar com os
seus próprios medos e demônios. O protagonista possui vários
sonhos que ele vê sendo frustrados pelo fato de que agora em
diante terá que desempenhar o papel social de pai e, dividido
entre o
egoísmo de seus desejos pessoais e o que deve ser feito, Bird
é impiedoso em seus pensamentos diante de toda a tragédia
pessoal que enfrenta.
Mas sabe por que te indico este livro? Você é uma das pes-
soas mais humanas que eu conheço. Sei que no lugar do pro-
tagonista você jamais teria o mesmo impulso de querer fugir
da realidade, por mais dura que fosse. Talvez seja interessante

134
Literatura Japonesa I 2021

você enfrentar essa leitura tão densa com um protagonista tão


diferente de você. Vocês possuem idades diferentes, nasceram
em países diferentes e em épocas diferentes e têm como língua
materna línguas diferentes. Mas acredite: Kenzaburo Ōe não
ganhou o Nobel de Literatura à toa. Sua forma de conduzir a
história é maestral, vulnerável, íntima e honesta. O desconforto
causado ao leitor é como se estivéssemos o vendo desnudo em
nossa frente. A humanidade descoberta de moralidade é sem-
pre assustadora.
E caso você esteja se perguntando se a história é autobi-
ográfica, confesso que também tive a mesma dúvida. Bom, não
é. Ōe aborda a história de um protagonista que age em oposto
ao que ele fez diante da situação tão delicada que aconteceu
em sua vida. Ōe procura entender sua situação indo ao oposto,
abordando as variantes do que teria acontecido se ele tivesse
fugido.
Deixo em anexo uma foto de Kenzaburo Ōe com seu filhin-
ho e esposa. Com uma breve pesquisa descobri que seu filho
está ótimo, hoje um adulto de mais de cinquenta anos e que é
músico, provando que com amor e apoio a gente chega longe. E
é inegável o amor de mestre Ōe, tão belamente transmitido em
sua literatura sensível, existencialista e política.
Espero que esteja bem e com saúde. Quando finalmente nos
conhecermos ao vivo, quero poder te agradecer pessoalmente
por tudo. Será estranho e engraçado te ver de corpo inteiro, não
só uma cabeça que flutua numa webcam. Se tem algo que a

135
Literatura Japonesa I 2021

pandemia me ensinou - e eu nunca havia valorizado antes - é o


valor de um abraço.
Abraços, querido.
Marcela.

136
KAPPA E O
河 童
LEVANTE

龍 之 介
IMAGINÁRIO


Ryunosuke Akutagawa
MARIA FLORA MARCANTONIO I DE ALVARENGA
Literatura Japonesa I 2021

Querida Marie,

Como está você? Espero que bem, apesar de tudo, neste mo-
mento em que lê esta carta. O tempo passa, estamos as duas
um ano mais velhas, e estamos as duas agora quase há mais
um ano em casa 24 horas por dia – algo impensável em 2019.
Mas passar esse tempo trocando mensagens com você – sobre
os momentos bons e os ruins – faz com que ele passe de for-
ma mais prazerosa. Certamente trocamos alguma mensagem
neste dia em que você tem esta carta em mãos – quem sabe
até mesmo poucos momentos antes de recebê-la. Mas estou es-
crevendo em papel e caneta com a intenção de falar sobre algo
bastante específico.
Este ano comprei alguns livros de literatura japonesa, entre
eles um livro de contos de Ryuunosuke Akutagawa. Em todas
as nossas conversas sobre literatura, não creio que cheguei a
falar sobre nenhum desses contos, mas tenho os devorado um
por um. Creio que você gostaria deles, do quase-surrealismo
de alguns mais do que outros – sei que é o tipo de coisa que
você gosta. Quando li Kappa, pensei em todas as nossas con-
versas sobre criação de mundos fantásticos na escrita, sobre
como o que criamos pode revelar nossa própria visão de mundo
– nossas limitações, o que para nós é inimaginável, o quenos é
natural, o que acreditamos que deveria ser natural, nossas idi-
ocrasias. Se tivesse que recomendar um único conto para você,
certamente seria Kappa.

138
Literatura Japonesa I 2021

Mas Kappa não é o conto sobre o qual quero falar. O conto


em que minha mente resolveu se fixar neste momento é muito
mais curto, muito mais simples, certamente menos fantasio-
so – poderia certamente ser uma história real. Chama-se Ra-
shomon, em referência ao grande portal de entrada de Kyoto,
a capital do Japão durante o período Heian, em que se passa a
história. Não se preocupe – não será necessária uma aula de
história antes que eu possa explicar o que me faz continuar a
pensar neste conto dias após tê-lo lido; acredito que se trata de
uma narrativa bastante universal.
O que você precisa saber é apenas isso: no período antes do
início dessa história, Kyoto havia sido assolada por toda ordem
de catástrofes. É o que explica como o protagonista, após ser
demitido de seu emprego como servo de um nobre neste mo-
mento de decadência, se encontra procurando abrigo da chuva
no portal de Rashomon. A região ao redor do portal era perigosa
– salteadores e animais fizeram dele seu antro; corpos passar-
am a ser abandonados comumente por ali.
O servo passa a pensar no que pode fazer agora que está
sem nada, e essa reflexão é interrompida quando ele descobre
uma senhora miserável que vai ao portal arrancar os cabelos de
um dos corpos para fazer uma peruca para si. Primeiro, o servo
se enche de um sentimento de desejo por justiça – o que essa
senhora está fazendo é terrível, e ele diz a si mesmo que nunca
chegaria a este ponto, nem mesmo em sua miséria. Enquanto
a senhora tenta explicar-se – a mulher de quem ela arranca os

139
Literatura Japonesa I 2021

cabelos agora também cometeu atos criminosos em vida, todos


estão apenas tentando sobreviver, afinal, então não há proble-
ma – algo muda para o servo. Ele decide então, saquear a vel-
ha senhora, roubar todas as suas roupas e fugir, a deixando ao
relento – ato que passa longe de suas fantasias originais sobre
justiça.
Acredito que se trata, sobretudo, de um conto sobre o que a
miséria faz com o ser humano. Não gosto de pensar que todos
nós, no fundo, somos maus e procuramos apenas por uma de-
sculpa para agir com nossos piores instintos. Não acho que so-
mos maus, mas acredito que em busca de sobrevivência – um
instinto que por si só não é mau – podemos sim cometer atos
horrendos, que nos seriam impensáveis em nossos melhores
momentos. Assim, não consigo deixar de pensar com compaix-
ão tanto no servo quanto na velha, e em todos os outros que a
velha menciona, todos apenas tentando sobreviver.
Imagino que você, Marie, teria suas próprias opiniões para
compartilhar. Espero que um dia, em breve, possamos nos en-
contrar (sem temer por nossas vidas!) e que eu possa te empre-
star esse livro de contos. Espero que tenhamos longas conver-
sas em pessoa sobre as histórias.
Com carinho,
Flora.
Referências:
AKUTAGAWA, R. Kappa: e o levante imaginário. São Paulo:
Estação Liberdade, 2010.

140
奥 の 細
TRILHAS

LONGÍNQUAS DE
OKU

松 尾 芭 蕉
Matsuo Bashō

MATHEUS NAGAO
Literatura Japonesa I 2021

À minha amiga,

Há muito não nos falamos. Nos vimos pela última vez há


seis, sete meses? Já perdi a noção do tempo. Nossas conversas
estão todas embaralhadas na minha memória; coisas que dis-
cutimos há mais de cinco anos ressurgem mais vivas do que as
das últimas vezes. Por isso, aliás, que escrevo esta carta. Poderia
enviar um e-mail ou uma mensagem, mas escrevo porque
acredito ser a forma mais adequada de transmitir minha ideia.
Sei que compartilhamos esse apreço pelos objetos duráveis (se
é que posso chamar isso de durável!); sei que você, até mais do
que eu, está numa batalha constante contra o efêmero. Efêmero,
por sinal, tem a ver com o assunto desta carta.

Recentemente, em uma aula de literatura japonesa, entrei


em contato com Bashô. Lembro que lemos um ou outro poema
dele nos tempos de escola, mas, à época, não senti nada. Acho
que o ensino escolar, com sua forma inflexível de encaixotar
autores e movimentos literários, esteriliza as oportunidades
que tem de nos tornar mais sensíveis… Ou, talvez, só o que me
faltava mesmo era experiência de vida. Pois lendo esse poeta
agora, aos 25, é que pude perceber a beleza dos seus versos.
Reproduzo a seguir um dos poemas que li.

古池や

蛙飛こむ

142
Literatura Japonesa I 2021

水のをと

Velho lago

Mergulha a rã

Fragor d’água

Quando me deparei com esse poema (ou esse poema se


deparou comigo?) foi como uma peça de quebra-cabeça se en-
caixando na outra; o click do interruptor que acende a lâmpada.

Sei que é arriscado trazer para você um poeta como Bashô.


Sei que as suas preferências literárias talvez sejam o oposto
disso… Lembro de você chegando na escola carregando seu
caderno repleto de teses sobre grandes temas: histórias exten-
sas sobre “amor”, “vida”, “morte” e o “efêmero”. Para mim, es-
sas eram ideias grandes e distantes demais e eu tentava fugir
delas. Acho que somos bastante diferentes nesse sentido. Você
buscando o universal, os grandes conceitos, as longas narrati-
vas, as digressões. Eu preciso do específico, do detalhe, da sín-
tese, e Bashô me mostrou uma nova forma de pensar tudo isso.

Estive lendo os registros de uma longa viagem que ele re-


alizara próximo ao final da vida. Em seu Trilhas longínquas de
Oku, que contém haicais e registros dos lugares e pessoas que
conheceu, percebi em sua prosa como opera sua poesia: ela nos
puxa sempre para o que não está ali. Há, na sua síntese máxi-
ma, uma porta para o infinito (como no conto de Borges em que

143
Literatura Japonesa I 2021

um ponto concentra todo o resto do universo).

Acho que a vida segue mais ou menos a mesma lógica. Há


muito espaço em branco a ser preenchido e não são, necessar-
iamente, os grandes movimentos que provocarão grandes mu-
danças, mas os poucos, porém precisos, gestos.

Espero poder vê-la quando tudo isso passar.


Do seu amigo,
M.

144
眠 り
SONO


Haruki Murakami

村 上 春
MIRIAN M. SANTOS
Literatura Japonesa I 2021

Cotia, 19 de julho de 21

Caro amigo,

Espero que esta te encontre bem. Serei breve nas


cordialidades, para que não se canse do propósito prin-
cipal da carta de hoje: comunicar três notícias ruins e
fazer uma recomendação de leitura. Pegue seus ócu-
los. Bom, contei na carta anterior sobre a oficina de
criação literária que frequento desde abril, voltada
para crônicas. A primeira notícia ruim é que, de fato,
não tenho talento para a escrita; a segunda, é que
talento não existe; e a última, ruim para ti, é que con-
tinuo praticando. Segue minha primeira crônica:

Livros me tornaram narcótica...


Começou com rápidos cochilos na biblioteca, olhos pesa-
dos sobre poemas, bocejos com Homero. Depois, se agravou
tanto, que deixei de comprar livros físicos; não o teria feito só
pelos olhares de reprovação na livraria, mas é que evoluíram
para queixas com o gerente: “tem uma mocinha dormindo ali
no canto”, “juro que ouvi um ronco!”, “eu tomaria cuidado com
alguém deitado perto da prateleira...”. Se nem mesmo eu enten-
dia, como poderia julgá-los? De qualquer forma, era melhor não
acumular mais minhas prateleiras; a poeira de livros não lidos
piora minha ansiedade e rinite. Em certo ponto, resistia apenas

146
Literatura Japonesa I 2021

a dispositivos eletrônicos de leitura, pois folhetins já me deixa-


vam sonolenta, e caia em profundos cochilos com versões im-
pressas de romances; temia enciclopédias.
Porém, num dia nublado e de pouca motivação, essa
sonolência foi perturbada.

Era uma quinta-feira, e eu já não poderia adiar mais nenhu-


ma leitura da faculdade. Encontrei um conto, organizei minha
mesa e enviei o arquivo PDF para o Kindle. Coloquei alguns
sons ambientes para tocar no celular, e “abri o livro”. Não dormi.

O conto Sono de Haruki Murakami, publicado individual-


mente em 2015, traz uma protagonista, não nomeada, em meio
a 17 dias sem dormir, ou sentir sono. Privação essa que começou
após um evento “sobrenatural”. A história remete à rotina diur-
na da mulher, como esposa e mãe, concomitante à nova rotina
noturna que a personagem desenvolve – sem que o marido e o
filho percebam; ainda, remete ao psicológico da protagonista, e
narradora – ou seja, são reveladas suas memórias e sentimen-
tos.
Sem sono e sem qualquer efeito colateral físico, a protago-
nista se lança numa jornada de (re)descobrimento, que envolve
o cultivo de hábitos anteriores ao casamento e à maternidade,
a autorreflexão, e a observação de, dentre outras coisas, como é
percebida pelos que estão ao seu redor.
Durante a leitura do conto, permaneci ansiosa e angustiada.

147
Literatura Japonesa I 2021

Acredito que esses sentimentos derivam do “realismo fantásti-


co” da história. Nas outras obras que li de Haruki Murakami,
os elementos surreais eram passíveis de aceitação. No entanto,
em Sono, a protagonista não dormir, e não sentir falta de tal,
parece ser um fato propositalmente incômodo.
A própria protagonista reconhece a estranheza da situação,
mas decide ignora-la – deixando de contar para alguém e de
procurar ajuda médica. Conforme avançava na narrativa, pen-
sei que faria o mesmo no lugar da protagonista; nem cogitaria
como patológico, algo que me (re)lembrou de existir. Patológico
é ser condicionada à perda de identidade. As possíveis conse-
quências da privação de sono, não eram equiparáveis ao quanto
sua vida se expandiu desde que deixou de dormir.
Ainda, sobre a real patologia no conto, o prognóstico da per-
da de identidade é ainda mais tocante. Senti a melancolia da
personagem em não caber mais na rotina que levava, ou numa
sociedade que, mesmo mudando rapidamente, ainda não seria
receptiva à mulher.
Enquanto os outros personagens dormiam profundamente,
a mulher existia para si –mas eles podiam dormir com a vida
que tinham, ao passo que a mulher precisaria se arriscar, sac-
rificando algo vital para conseguir uma vida semelhante à dos
outros dois.

Não dormi. Li o conto do início ao fim, e até agora não dormi.


Seria definitivo? Não... há coisas nas entrelinhas da ausência,

148
Literatura Japonesa I 2021

ou do excesso, de sono que 17 noites em claro jamais poderiam


resolver, quiçá o tempo de leitura de um conto. Ainda assim,
não dormi.

Amigo, é isso que tinha para hoje. Sei que vai procu-
rar a recomendação de leitura antes de ler minha
crônica, então: Leia Sono, de Haruki Murakami.

Ps.: Indico a edição ilustrada por Kat Menschik,


traduzida por Lica Hashimoto

Um abraço apertado,
Mirian.

149
KYOTO
古 都
YASUNARI KAWABATA

康 成
MONIQUE MOSSO

川 端
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 22 de junho de 2020.

Michele,

Você é minha irmã e nós moramos juntas – moramos jun-


tas até mesmo antes de nascer –, então você deve estar se per-
guntando o motivo de eu estar escrevendo esta carta justamente
para você. Por mais que sejamos gêmeas e você consiga termi-
nar metade das frases que eu digo, sinto que em algumas coisas
nós somos muito diferentes. Por exemplo, na leitura. Não con-
sigo te imaginar lendo um haicai – seja por vontade própria ou
amarrada numa cadeira –; porém, como somos irmãs gêmeas,
e, talvez por estranhar que não compartilhemos algo, eu sinto
essa necessidade compulsória de te contar sobre o que ocupa os
meus pensamentos, então se prepare.
Sempre me frustra que não goste de coisas tão distantes da
nossa realidade, pois elas para mim são as coisas mais fantásti-
cas. Seja de um mundo distante geograficamente ou temporal-
mente, o estranho me é agradável. Nisso, irei te contar breve-
mente sobre um livro que comecei a ler e que você à primeira
vista fugiria. Ele se chama Kyoto, de Yasunari Kawabata, um
escritor japonês célebre – ele foi o primeiro a ganhar o Prêmio
Nobel de Literatura no Japão. Aposto que não sabia disso. Kyo-
to é uma cidade japonesa também famosa e muito bonita, mas
receio que não seja o tipo de beleza que você aprecia; é uma
cidade que já foi capital do Japão há muitos anos, cheia de tem-

151
Literatura Japonesa I 2021

plos budistas, santuários xintoístas e outras construções clás-


sicas como palácios. Como você não é uma entusiasta da cultu-
ra japonesa como eu, deve estar bocejando agora e pensando se
o livro é algum tipo de guia turístico de Kyoto. Você está metade
certa, o livro sempre cita aqui e ali os templos famosos, os di-
versos festivais tradicionais que acontecem ao longo do ano é
mesmo nome de montanhas que rodeiam a cidade. Mas a coin-
cidência dentro do enredo foi interessante, e é sobre isso o que
eu quero te contar. A trama gira em torno de duas irmãs gêmeas
idênticas separadas quando bebês, uma delas, Chieko, foi ado-
tada por uma família de nível social maior, enquanto a outra,
Naeko, ficou com os pais biológicos e cresceu sozinha após am-
bos morrerem cedo, tendo que trabalhar para viver. Elas aca-
bam se encontrando, mas a diferença social entre ambas ainda
é uma barreira, então, de certa forma, elas continuam separa-
das. Triste, não? Você deve pensar: “e o que mais?”, ao que eu
não tenho muito o que dizer, já que a história basicamente é
sobre isso. Mas interrompa seu bocejo, eu espero te persuadir
com os detalhes.
Concordo que esse começo de trama parece triste, e real-
mente é, porém, com o avançar da história, esse começo trágico
é diluído pelo manso presente em que elas reatam seus laços
e um relacionamento muito sutil e doce se forma, mesmo que
suas diferenças as puxem para lados diferentes. Esses peque-
nos gestos entre ambas, como quando Naeko protege Chieko da
chuva na floresta com seu próprio corpo, assumindo que a outra

152
Literatura Japonesa I 2021

seja mais frágil por ser mais delicada, agindo como a irmã mais
velha e protetora mesmo que ambas tenham a mesma idade, me
fez lembrar de nós duas. Chieko também toma sua vez como a
protetora ao mandar vestes para a irmã e se preocupando com
a sua realidade mais dura, mostrando ambas sempre tentando
estar um passo à frente de qualquer dor que possam causar uma
à outra. Nós não somos assim? Mesmo com dezoito minutos de
diferença você assume ser a irmã mais velha, vive se gabando
por isso, mas esse detalhe não me impede de tentar te proteger
também. Lendo esse livro eu pude reviver sentimentos tão sutis
sobre nós duas que estavam naturalizados – amizade, proteção,
irmandade, empatia –, por isso quis te contar e tentar, mesmo
que com fracasso, te fazer saber que esse livro existe.
Ele também me despertou pensamentos sobre outras coi-
sas que eu já assumia como inconscientes e que eu não presta-
va muita atenção além da nossa relação: a natureza. Isso é
outra coisa que você não liga muito, mas durante a pandemia
você deve ter percebido que eu comecei a passar muito tempo
no jardim, não é? Até mesmo aceitou a minha sugestão de se
deitar ao sol e sentir o calor e a brisa te tocarem, de só apreciar
a vista. Os estímulos constantes da natureza aparecem a todo
momento no livro, nos deixando alertas a algo internalizado e
que a vida moderna nos tirou. Nos sentimos bem em contato
com a natureza, mas por quê? Consegue descrever e sentir con-
scientemente? Quando foi a última vez que você saiu de casa só
para ir ver os patos nadarem no lago da praça? Ou então, quan-

153
Literatura Japonesa I 2021

do foi a última vez que você se perguntou se sabia o nome das


flores que habitam o jardim de casa? Já parou para pensar na
sutileza das cores, do que os cheiros te fazem lembrar ou sobre
como cada época do ano te faz sentir? Tudo isso é dito no livro
e me fez abrir os olhos para as sensações esquecidas e tudo que
tomo como garantido. Quem sabe não agora, mas com o passar
do tempo você releia esta carta e ache que faz algum sentido. Se
isso acontecer eu ficarei satisfeita. Talvez esse seja o meu gesto
de proteção como sua irmã, de tentar te avisar que você está
perdendo a vista da viagem.
Da sua irmã que quer que você tenha a melhor viagem de
todas, com amor,

Monique.


154
和 泉
NIKKI 式 部
日 記
Izumi Shikibu


NATALIE FUZII

和 泉 式
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 19 de Julho de 2021

Querido Rouxinol,

Se você soubesse que tanto tempo toma de minha imagi-


nação talvez pensaria em mim com maior frequência - se isso
lá for possível. Você sabe muito bem que sou uma mulher tradi-
cional e romântica, por isso lhe escrevo essa singela carta sobre
algumas impressões que vieram em minha fértil imaginação
após entrar em contato com algumas leituras e aspectos da
Cultura Japonesa.
Estou lendo o diário de Izumi Shikibu, sabia que diário em
japonês leva nome “nikki”, bonitinho, né? Pois bem, neste diário
cartas poéticas de amor são confidenciadas entre Izumi e seu
amor. Mas não é nada delirante ou de caráter emocionado - sei
que você não gosta muito disso (e nem eu). Essas cartas poéti-
cas nos contam sobre um singelo amor, que se constrói a conta
gotas - parece familiar?
Você sabe que nós dois jamais deixamos nos levar pela in-
tensidade da paixão, tudo é regrado, lento e sublime. Singular.
Minha forma de amar é oriental. Eu te amo, te dou espaço, te
observo por que te respeito como uma pessoa que me inspira
a acreditar e valorizar meu ímpeto. Assim como aquele casal
fofo de idosos japoneses, Haruhei e Kinuko, do documentário
da Netflix que falei para você assistir. A gente não fala muito
sobre aquele amor avermelhado e pulsante que existe aqui den-

156
Literatura Japonesa I 2021

tro. Mas fazemos companhia um para o outro quando estamos


e quando não estamos juntos fisicamente.
Tendo isso em mente, vou deixar um poema que o amante
de Izumi escreveu para ela. Este poema me trouxe uma sen-
sação muito doce, mas também me trouxe melancolia. É tão
difícil desfrutar de um amor tão delicioso, porém também é
difícil viver numa aparente escuridão de uma comunicação
que nos torne real.
É tão difícil assim abrir a porteira?

Autumn is here

And though you think It is just your sleeves That grow moldy with

tears Mine too have grown moldy

Do not think yourself The vanishing dew.

Think instead

Of the long-blooming Chrysanthemum flower.

It is not the melancholy cry Of geese above the clouds, But the call of

your heart To which your ears tuned

There is another

With thoughts like mine

Who is gazing toward the sky

Of the morning moon

To you I went

Believing only you

Were gazing at the moon like me, Even though we were apart

Yet here I am this morning

157
Literatura Japonesa I 2021

Having returned home

not knowing

you were awake

Oh, why was that gate so hard to open!

(Lover, The Izumi Shikibu nikki)


Acredito que te deixarei com mais perguntas que respostas.
Se cuide bem,

Cordialmente,
Natalie Fuzii



158
ベ ッ
BECK: ク

MONGOLIAN
ロ ド 作
ハCHOP SQUAD
Harold Sakuishi


NATAN M. S. OLIVEIRA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 25 de Julho de 2021

Olá Allan!!

Tudo bem com você? Espero que sim. Estava aqui pensan-
do e faz tempo que a gente não se vê né? Preciso voltar para
São José logo, mas está difícil arrumar algum tempo livre para
viajar de novo. Enfim, fiquei sabendo pela mamãe que você se
formou no técnico, que legal! Espero que tenha aproveitado
bastante o curso, principalmente ter feito boas amizades. Lem-
brei de quando eu fiz meu curso técnico há 6 anos e foi uma ex-
periência incrível, ainda mais pelas pessoas que conheci nesse
trajeto. E sabe de uma coisa? Nesta mesma época, eu li o meu
mangá favorito. Você sabe que sempre fui muito de assistir de-
senhos, tanto que você pegou o mesmo gosto por desenhos, mas
6 anos atrás, eu parei pra ler pela primeira vez um mangá, foi
meu primeiro contato com algum tipo de literatura japonesa.

Irônico porque ambos sabemos onde isso vai levar né. O


mangá se chama Beck: Mongolian Chop Squad. É um nome
esquisito, eu sei, mas eventualmente pode fazer algum senti-
do (acho). Ele conta a história de um garoto de 15 anos (se bem
que você fez 16 agora né?), chamado Yukio Tanaka, mas todo
mundo o chama de Koyuki. Ele decide um dia aprender a tocar
violão e guitarra e, por conta disso, ele começa a fazer amizades
e juntos formam uma banda. Parece bobo de simples né? Meio

160
Literatura Japonesa I 2021

que toda banda surgiu assim. Mas acho que esse não é o foco,
pelo menos pra mim.

Eu quero muito que leia caso tenha a oportunidade, porque


ele fala muito sobre amizades, amores e principalmente de-
cisões da vida. Você já deve saber o quão cedo temos que fazer
nossas escolhas e o quanto somos pressionados nisso. Eu mes-
mo tive de sair de um curso que não me identifiquei por ter feito
essa escolha muito cedo e sem muita maturidade. É uma situ-
ação bem ruim, mas espero que esse mangá te ajude nisso, as-
sim como me ajudou, principalmente em reconhecer boas am-
izades. E saiba que estarei sempre aqui para o que precisar, seu
irmão aqui já passou por muita coisa também e talvez eu possa
ser a voz da experiência em algumas coisas...mas só talvez =P.

Falando nisso, eu tive uma aula esses dias, na faculdade, so-


bre um autor japonês chamado Natsume Sôseki, e ele escreveu
uma obra chamada Yume Jûya, que pode ser traduzida como
10 Noites de Sonho. E nessa aula eu lembrei de um sonho que
tive, onde estava ouvindo uma música, mas não sabia qual era
ela. Fiquei o dia inteiro com aquela música na cabeça e nada
de lembrar dela. Até que uma hora decidi tentar escrever esse
sonho, era parte da atividade do dia até, da proposta e tudo mais
e aí no meio da escrita...lembrei da música. Cara, que sensação
boa. E o mais legal, é que Beck tem uma questão entre os per-
sonagens e os sonhos que eles acabam tendo um dia antes de

161
Literatura Japonesa I 2021

um show importante e eu fico pensando se isso, de sonhar e a


importância do sonho, não pode ser algo que queremos contar
no futuro, como uma marca que queremos deixar. Espero que
sempre tenhamos bons sonhos né maninho?

Enfim, vou indo aqui porque tenho que resolver mais algu-
mas coisas, afinal desde que virei professor, nunca mais rec-
lamo dos meus da faculdade! Espero que tenha uma boa noite,
um bom fim de ano e manda um beijo pro papai, pra mamãe e
pro Liam, espero que nosso maninho também esteja indo bem
na escola (e deixe ele longe dos meus Pokémons!!)

Um grande abraço do seu irmãozão,


Natan Oliveira.

162
日 本 書 紀
CRÔNICAS DO
JAPÃO
RAFAEL S. FERREIRA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 15 de julho de 2021.

Querido Gabriel,

Como está? e a Nath? Você deve estar se perguntan-


do o porquê de eu estar mandando uma carta e, bom, é simples
na verdade, estava pensando e já nos comunicamos através de
todas as plataformas possíveis, face, whats, twitter, tiktok, den-
tre tantas outras, mas uma coisa que nunca fizemos (e franca-
mente nunca achei que fossemos fazer) foi uma troca de cartas!!
Então, pensei, por que não, né verdade kkkk, mas sem mais de-
longas vamos ao que interessa!!
Você foi a pessoa que me incentivou a começar a ler
mangás, e isso mudou minha vida de diversas formas! Tanto a
encontrar um novo amor pela mídia escrita, como também in-
undar o meu mundo com diversas histórias e personagens que
eu provavelmente nunca teria conhecido, se não fosse por você.
Agora quero retribuir esse grande incentivo que você fez e te in-
centivar a ler, não mangás, mas sim, sobre a mitologia japone-
sa. Sei que você é um grande fã de mitologia em geral e das
histórias, da cultura e do folclore japonês, visto sua tatuagem
de um chōchin-obake (que é irada !! e logo menos vou fazer um
também para acompanhar meu karashishi hehehe). Então por
que não juntar todos esses gostos em uma leitura só?!?! O livro
que quero te recomendar é o Nihonshoki (Crônicas do Japão)!!!

164
Literatura Japonesa I 2021

As crônicas contidas nessa coleção de tomos são a segunda


fonte mais importante sobre a mitologia japonesa!
Nos primeiros dois tomos, é contada a criação do mundo e a
origem dos deuses, os demais contam as histórias do 1º imper-
ador, o lendário Jin’mu, até a 41ª imperatriz Jitô.
O que eu acho mais interessante desse tipo de leitura é que
começamos a ver e entender de onde vieram vários nomes e
referências das mídias que nós consumimos hoje em dia. Não só
mangás, como em Naruto, que quando vi pela primeira vez não
fazia ideias que os ataques principais do clã uchiha eram nomea-
dos depois dos deuses Izanaki-no-Mikoto, Izanami-no-Mikoto
e de três de seus filhos, também deuses, Tsukuyomi-no-Miko-
to, Sussanoo-no-Mikoto e Amaterassu-Oomikami. Os ataques
também têm relação com a sua respectiva divindade, Amat-
erassu, por exemplo, que são chamas tão quentes quanto o sol
e que não podem ser extinguidas, tem tudo a ver com a deusa
que o nome se refere Amaterassu-Oomikami que é a deusa do
sol. Mas também podemos começar a perceber a referência em
mídias ocidentais, como nos quadrinhos do Sandman (que se
você não leu ainda fica aqui também a recomendação) que tem
referência a diversas mitologias incluindo a japonesa.
Então fica aqui minha recomendação dos dois primeiros to-
mos, e o melhor de tudo eles podem ser lidos gratuitamente! O
projeto literatura livre do Sesc disponibiliza o livro com os dois
primeiros tomos traduzidos em seu site, uma curiosidade legal
é que eles foram traduzidos por uma sensei minha do curso de

165
Literatura Japonesa I 2021

japonês. Depois te envio o link!


Espero ouvir de você em breve contando sobre o que achou
do livro. Mas até lá continuaremos nossas discussões e teor-
izações sobre os capítulos dos mangás semanais. Falando nis-
so você leu o último de one piece?? O arco de Onigashima está


ficando insano!! (Inclusive esse arco está lotado de referências
a lenda de Momotarō, mas esse é um assunto para uma próxi-
ma carta hehehehe.)
Enfim, estou morrendo de saudade e espero te ver em breve.

Um forte abraço,
Rafael Ferreira

166
羅 生 門
RASHOMON

之 介
Ryūnosuke Akutagawa

川 龍

RENAN HAMAGUCHI MOTA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 18 de julho de 2021.

Querido leitor,

Neste dia de tempo agradável com um sol e céu límpido, eu


escrevo sobre uma bela história que li, essa história acontece
ao entardecer e sob uma névoa. Depois de ler o dilema do ser-
vo, pensei que os grandes dilemas da vida acontecem quando
grandes mudanças ocorrem ou estão para ocorrer, esse proces-
so de tomada de decisão deveria ser o mais racional possível,
mas a questão é como ser racional no meio de um mar de pen-
samentos, sentimentos e experiências vividas?
Em Rashômon, o texto tem como personagem principal o
servo que tinha uma vida com obrigações e responsabilidades,
mas após a queda de Quioto e sua demissão, a falta perspecti-
va apresentada no cenário onde ele se encontrava o deixou em
situação difícil e sem uma resposta sobre como dar sequência a
sua vida, por isso estava vagando em frente ao um portal onde
os corpos são deixados; assim, quando ele entra no portal com
o pensamento sobre o quê fazer para sobreviver à situação em
que se encontrava e achar uma solução para a sua situação.
Conforme o servo passa pelos corpos, ele encontra uma senho-
ra que está roubando o cabelo de um corpo e, após questioná-la,
ele decide o que fazer para resolver a sua situação.
O pensamento sobre os atos de moralidade, em uma cultu-
ra, é muitas vezes baseado em religião ou no medo de sermos

168
Literatura Japonesa I 2021

julgados pelos outros, mas, no caso do servo, ele já estava entre


mortos assim como sua cidade, por isso o receio de ser julgado
pelos outros não influenciou em sua decisão de ser ladrão. Afi-
nal, sua vida já estava invisível aos olhos de quem passava, de
modo que sua existência não era mais notada. E como a cidade
estava abandonada, ela não trazia mais o elemento de julga-
mento dos outros.
A questão do abandono da cidade como consequência de
epidemia, desastres naturais e, certamente, uma considerável
má gestão, acaba por retirar as pessoas do lugar e, assim, essa
falta de perspectiva sobre o futuro podem causar muitos efei-
tos negativos nos que ficam na cidade por quaisquer motivos
e, também, nos que abandonam a sua terra por necessidade de
sobrevivência.
Se pensarmos na crise imigratória que hoje é um problema
mundial, mas que, muitas vezes, é resolvido como um proble-
ma local, não é um problema recente, pois, infelizmente, ainda
ocorre. Então, na realidade, os países ou as cidades precisam de
soluções para mitigar os fatores que geram a crise imigratória
para que a sua incidência diminua e quem sabe termine um dia.
O servo, ao entrar no local onde as pessoas abandonam os
corpos que não serão reclamados, representa bem o quanto a
sua existência estava invisível sem o seu ofício e sustento, de
modo que ele, ainda vivo, não tinha alguém que fosse reclamar
por ele.
Esse abandono em vida é no mínimo triste e, após a leitura

169
Literatura Japonesa I 2021

do conto, me trouxe a reflexão de se isso seria comum e se o


momento de distanciamento social causou alguma piora nesse
abandono.
A senhora que está roubando os cabelos tenta justificar
o porquê de seu ato contando como era a vida do corpo, mas
isso não seria justificável, porque também não cabia a senhora
o poder de julgamento. Nesse sentido, tanto a senhora como o
servo são produtos do lugar onde estavam e cada um ao seu
modo tentou justificar seus atos com base em seus próprios jul-
gamentos e vivência.


Renan Hamaguchi Mota

170

O CONTO DO

竹 取 物
CORTADOR DE
BAMBU
RENAN SOUZA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 15 de Julho de 2021.

Minha amada,

É fato que possuímos inúmeras formas diferentes e mais


eficazes de comunicação, entretanto, recorro à uma carta, por
ser a melhor forma de expressar a melancolia que sinto quando
penso na saudade que sinto de você. Já faz tanto tempo que não
te vejo por conta da pandemia, e a falta de esperança no futuro,
somada à incerteza de que te verei em breve, me entristecem
demasiadamente.
Bem, como em momentos passados, busquei refúgio para
minha dor na literatura, e esse é o principal motivo de eu estar
te escrevendo. Afinal, sei que você também tem bastante ape-
go às obras literárias, principalmente contos – não é à toa que
decidiu seguir o caminho das letras orientais assim como eu,
não é mesmo? Durante esse período, dei de cara com alguns
bem interessantes, uns tristes, outros felizes, outros intrigantes,
e até mesmo alguns de certa forma engraçados. Dentro de todos
esses, o que mais me chamou atenção foi a História do Corta-
dor de Bambus (no original, Taketori Monogatari), que conta a
história da Princesa Kaguya. Por isso, venho recomendar a lei-
tura deste conto – sobretudo, a tradução de Antônio Nojiri.
Em todos os momentos de minha leitura, você me veio
à mente, e hoje percebo que você é a minha Princesa Kaguya.
Assim como os pais de Kaguya reconheceram ela como um

172
Literatura Japonesa I 2021

presente dos deuses para eles, eu a imagino com um presente


dos deuses para mim, afinal, essa é a única explicação possível
para eu ter uma pessoa tão querida quanto você na minha vida.
Eu buscaria por todos os quatro presentes que Kaguya-hime
requisitou aos príncipes, eu lutaria sozinho contra o exército
da Lua, tudo pra poder te reencontrar novamente. No momento
em quer ler, entenderás o quão grande e belo é o que eu sinto por
você.
E como está indo a faculdade? Conseguiu fazer todos
aqueles trabalhos que tinha me dito outro dia? Espero que tudo
esteja ocorrendo como o planejado e você consiga passar tran-
quilamente por esse fim de semestre.
Também espero que esteja comendo bem, se hidratando
e cuidando de si mesma nesse momento tão difícil. Saiba que
pode contar comigo para literalmente qualquer coisa. Volta-
rei às minhas leituras enquanto aguardo ansiosamente pela
sua resposta. Assim como contarei cada segundo para o nos-
so reencontro, para que possamos discutir sobre outros contos
pessoalmente. Espero que até logo, minha Princesa Kaguya.

Com todo amor do mundo,


Renan.

173
[風 の 歌 を
OUÇA A CANÇÃO
聴 け
DO VENTO

春 樹
Haruki Murakami

村 上
SARA B. R. SOUZA
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 07/07/2020

Querida amiga,

Como você está? Espero que bem, na medida do possível


devido à situação caótica em que nós, e toda a humanidade, es-
tamos. Resolvi lhe escrever essa carta pois alguns dias atrás,
numa manhã relativamente quente para essa época do ano,
enquanto estava imóvel como uma planta no quintal de casa
tentando captar um pouco de vitamina D, fui acometida por um
sentimento nostálgico.
Uma brisa suave bateu no meu rosto enquanto a música alta
do vizinho tocava, advinha qual? “Califórnia Girls” da Katy Per-
ry; a música que ouvimos até enjoar naquelas férias de verão,
quando fomos passar uma semana em Caraguatatuba na casa
dos seus avós, você se lembra?
Tínhamos quatorze anos e sonhávamos em ser escrito-
ras famosas com best sellers dignos de sair no The New York
Times. Você continua escrevendo contos? Nunca mais vi uma
postagem no seu blog literário... Confesso que faz muito tempo
que não escrevo e essa falta de prática me levou ao medo de não
escrever algo bom. Isso, porém, não me aflige mais.
Terminei ontem de noite uma novela do Haruki Murakami,
chamada “Ouça a canção do vento”, primeira história que o
Murakami escreveu e nossa... Foi tão bom ler uma história
boa porém notavelmente de um escritor inexperiente. Eu sei

175
Literatura Japonesa I 2021

que você já leu 1Q84 e amou, assim como eu que até hoje ten-
ho medo do povo pequenino. Acho que você vai gostar de ler
essa história, aproveitando o momento de quarentena e talvez
te inspire a voltar a escrever assim como me inspirou. Não va-
mos escrever um romance tipo “1Q84” na primeira tentativa e
está tudo bem, assim como é mencionado em “ouça a canção do
vento”: nenhum texto é perfeito.
Manda um beijo pra sua mãe e fala que estou com saudades


da bala de coco dela, quem sabe se no próximo verão podere-
mos estar na praia comemorando seu
aniversário de vinte e um anos. Tá ficando velha em? Ha-
haha.
Estou com muitas saudades, um beijo e queijo, com amor,
Sara B.

P.s: achei o cd que peguei emprestado com a música “Cal-


ifórnia Girls”, da próxima vez que nos encontrarmos eu levo,
juro que não vou esquecer de novo.

176
夢 十 夜
DEZ NOITES DE
SONHOS

目 漱 石
Natsume Soseki


TAYNÁ YOKO HATORI
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 04 de julho de 2021


E aí, Hiroki, genki?

Passou a temporada de chuva? Enquanto por aí no Japão


começa a ficar quentinho, por aqui, no Brasil, o tempo começou
a dar uma esfriada. Nesse semestre, você sabe, estou tendo aula
de Literatura Japonesa e, em uma dessas aulas, nós vimos sobre
o autor Natsume Soseki. Automaticamente lembrei de quando
nós conversamos sobre 「こころ」1. Não tem jeito, o cara além
de bonitão era muito incrível mesmo, né? Gosto muito dele.

Aproveitando esse friozinho de São Paulo e o trabalhinho


da disciplina, peguei para ler a obra 「夢十夜」2 dele. São aque-
les contos – ou melhor, sonhos – que a gente lê tudo em uma
sentada só, sabe? Assim, logo que terminei, pensei em te es-
crever e indicar essa leitura, porque, nossa, que viagem! Vale
muito a pena.

「こんな夢を見た。」3 com essa frase, que aparece nos


primeiros contos, o autor nos informa, logo de cara, que o que
será lido trata-se apenas de projeções do inconsciente huma-
no. Mas, será mesmo? Muitos desses sonhos me pareceram
ser passíveis da realidade (e, na verdade, há muito da história
japonesa refletida nas narrativas – mas, isso é spoiler da aula).
Principalmente a história que leva o nome de 「第二夜」4, que
me chamou mais a atenção.

178
Literatura Japonesa I 2021

Esse conto se passa pelo ponto de vista de um samurai que


busca o 悟り5, e você sabe como eu gosto de estudar e aprender
sobre o budismo. Senti que o guerreiro deste conto, de início,
nos aparenta ser um homem um tanto prepotente, mas, no final,
sinto que pude compreendê-lo. Obviamente, não me alongarei
muito sobre a narrativa para não estragar a sua leitura, porém
gostaria de compartilhar com você este trecho, veja:

無だ、無だと舌の根で念じた。

/ Rezava convicto: “O nada... O nada...”

無だというのにやっぱり線香の香(におい)がした。

/ Mas, mesmo repetindo “o nada”, ainda sentia o cheiro do incenso.

何だ線香の癖に。

/ Incenso desgraçado!

〔...〕

けれども〔膝が〕痛い。

/ (As juntas do joelho) continuavam a latejar.

無は中々出て来ない。

/ O nada não saía.

出て来ると思ふとすぐ痛くなる。

/ Assim que pensava que conseguiria, começava a logo latejar.

腹が立つ。

/ Enfureci-me. desapontado.

無念になる。

/ Desapontado.

179
Literatura Japonesa I 2021

非常に口惜しくなる。

/ Fiquei terrivelmente humilhado.

涙がぽろぽろ出る。

/ Lágrimas caíram silenciosas.

Afinal, quem nunca se sentiu dessa forma? Me identifiquei


muito com essa parte! Não sei se por conta da pandemia e dos
quase dois anos de isolamento social/ vivência virtual, ando
me sentindo desse mesmo jeitinho: necessidades e vontades
não tão alcançáveis e muitas responsabilidades para cumprir
em pouco tempo. Isto é, mesmo que a gente estabeleça, às vez-
es, não dá tempo de cumprir todas as metas. No entanto, isso
não acontece porque não somos capazes, mas porque talvez
não seja a hora certa ou porque nos falta ainda um pouco de
experiência. Ora, até mesmo um samurai pode apresentar difi-
culdades e inseguranças. Nós somos humanos. A vida está aí
para ser vivida, não é? Não vamos nos desanimar, bem como o
samurai não desanimou, pensou eu. Tentemos ser positivos e
tentemos também acalmar as nossas mentes.

Tratam-se de sonhos, então é claro que os contos podem


nos apresentar uma ordem bagunçada ou trazer confusão, mas
o universo que o Natsume-sensei nos leva é muito cativante e
faz muito sentido quando paramos para analisar. Então, logo
que terminei, fiquei um tanto reflexiva e com aquele gostinho

180
Literatura Japonesa I 2021

de quero mais. E, lógico, também com muitas, muitas, saudades


do Japão.

Sei que você gostará da leitura.

Espero que goste e me chama para conversar depois que


você lerrrr.

Um abração e se cuida!
Tayná Yoko Hatori Neto

Notas:
1. こころ /kokoro/ – “Coração”, romance escrito pelo autor Natsume
Sōseki.
2. 夢十夜 / yumejūya/ - “Dez noites de sonho”.
3. こんな夢を見た /konna yume o mita/ frase que pode ser traduzida
como “eu tive este sonho”.
4. 第二夜 /dainiya/ - “segunda noite”.
5. 悟り /satori/ - termo budista que designa a iluminação ou expansão
da consciência.
6. /mu da, mu da to shita no ne de nenjita/mu da to iu noni yappari
senkō no nioi ga shita/nan da senkō no kuse ni/keredomo (hiza ga) itai/
mu wa nakanaka detekonai/ detekuru to omou to sugu itakunaru/ hara
ga tatsu/ munen ni naru/hijō ni kuchioshikunaru/ namida ga poroporo

deru/.

181
竹 取 語
O CONTO DO

CORTADOR DE
BAMBU
VERONICA MEI
Literatura Japonesa I 2021

São Paulo, 10 de Julho de 2021

Querida Yumi,

Pensei em inúmeras maneiras de começar esta carta, com


diversas justificativas para qual estou lhe direcionando as pa-
lavras que está prestes a ler, e foi então que percebi que mesmo
nos falando todos os dias através dos nossos rápidos e práticos
aplicativos de troca de mensagens e conheça cada detalhe de
sua rotina, não sei o que você sente, seus sentimentos foram
mascarados pelos caracteres de um mensagem, pelo seu sorri-
so intocável presente na minha tela ou pelo som de sua risada
que ouço nos áudios que me manda. Por isso quis compartilhar
um pouco daquilo guardado em mim e que raramente exponho.
Com o confinamento causado pela pandemia, minha mente
foi infestada de pensamentos que nunca haviam se manifesta-
do. Nesses 16 meses de isolamento aconteceram muitas coisas,
como você deve se recordar, finalmente pus um fim à jornada
de 3 anos que construí com aquela pessoa. Além disso, nunca
estive tão próxima de minha família, sua companhia me acal-
ma e me traz acalento para poder seguir com as tarefas antes
simples e banais, que se metamorfosearam em verdadeiros
monstros.
Foquei nestes dois tópicos, pois queria trazer aqui algo que
venho pensando muito ultimamente depois de ler o conto “Cor-
tador de bambus” e assistir ao filme baseado nesta obra, “O Conto

183
Literatura Japonesa I 2021

da Princesa Kaguya”. Ao entrar em contato com ambos forma-


tos da mesma criação, encontrei-me em um estado de reflexão,
observar como o cortador de bambus e sua esposa acolheram
aquele ser como um milagre para suas vidas e o amor com que
a menina os retribuiu me tocou. Não irei entrar em muitos de-
talhes aqui para não ter o risco de estragar sua experiência de
leitura com um spoiler não requisitado! Mas saiba que, ao meu
ver, este conto está regado de amor parental, incluindo o senti-
mento equivocado de alguns pais, ou daqueles que nos criaram,
em achar que sabem o que é melhor para seus filhos. E estou
ciente que isto que falo é do ponto de vista de alguém com uma
criação muito diferente da sua, por isso estou curiosa e ansiosa
por uma resposta sua após a leitura do conto, ou até mesmo de-
pois de assistir ao filme (que, aliás, está no catálogo da Netflix!).
Além de tudo isso, também refleti muito sobre o amor
romântico. Através de demonstrações rasas de afeto originadas
de um desejo supérfluo de ter a companhia de alguém agradáv-
el aos olhos presentes na história, fora impossível impedir que
um caminho fosse traçado pela minha mente levando meus
devaneios, intensificados pelo isolamento, até o quartinho
que guarda tudo que há de romance em mim. Até o momento,
cheguei a volátil conclusão de que não quero me ver depend-
ente dele, do amor romântico, e de como o amor que sinto pela
minha família sempre ocupará o primeiro lugar em meu pódio
emocional, acompanhando logo após, o amor dedicado aos
meus amigos, sendo a fusão entre os dois últimos a razão pela

184
Literatura Japonesa I 2021

qual me mantive sã nesses tempos difíceis. E ao conversar com


alguns outros amigos meus, sinto que as opiniões diferem mui-
to neste quesito, então gostaria de ter a perspectiva de alguém
como você, que nutre um relacionamento saudável por anos
com sua namorada.
Deixo nesta carta meus pensamentos e com eles minha
eterna saudades. Espero que logo possamos nos encontrar
como fazíamos todo mês! E peço com todo meu coração que
tome cuidado, mesmo com a vacina devemos ser cautelosos.
Beijos e abraços,

Verônica

185
TERRA MORTA

之 介
Ryūnosuke Akutagawa

芥 川 龍
WILLIAM LORETE SILVA
Literatura Japonesa I 2021

Querida irmã,

Espero que esta carta lhe encontre bem e com saúde. Há


quanto tempo não nos falamos, não? Sei bem que nossas vidas
estão tomando rumos diferentes agora e não nos vemos tão
frequentemente quanto antes. A saudade me martela o peito
quando me lembro de quando a rotina conjunta nos era algo
familiar. Eram tão felizes aquelas manhãs em que dividimos
sorrisos entre os intervalos das aulas, em que nos aprazia ap-


enas sentar ao lado um do outro. Me vem à memória tantas
coisas boas quando me lembro de ti, que se as fosse escrever
aqui provavelmente as folhas deste texto não caberiam no en-
velope. Mas gostaria de te lembrar de apenas um desses mo-
mentos, este que pelo simples fato da menção da palavra único
você provavelmente já deve estar adivinhando. É este mesmo:
o dia em que você me deu um dos mais lindos presentes que
ganhei na vida, a pena vermelha. Ela está sempre aqui comigo,
espiando de cima da prateleira cheia de livros. Talvez você não
saiba, mas esse tão singelo ato seu me inspira até hoje. Esta pe-
quena pena de escrever carrega em si um enorme significado,
ela carrega toda a nossa infinita amizade. Desde aquele dia eu
penso que enquanto houver alguém que acredite no poder na
minha escrita, eu continuarei a acreditar também.
Estou lhe escrevendo então, para retribuir um pouco deste
amor em forma de carta. Li recentemente um livro de contos
de um escritor japonês chamado Ryûnosuke Akutagawa e ten-

187
Literatura Japonesa I 2021

ho certeza que você aproveitará muito também essa leitura. In-


felizmente a sua história não é a das mais felizes, já que ele
se suicidou devido a sua vida muito conturbada desde cedo,
quando o pai o enviou para morar com os tios depois da mãe
ter seu estado psicológico fragilizado por uma depressão pós
parto. Akutagawa cresceu e fez seu caminho na cena literária,
se tornando um dos principais escritores da literatura japonesa
moderna.
Tenho certeza que você vai gostar deste conjunto de contos
pois neles Akutagawa através dos seus enredos vai trazer re-
flexões e visões interessantes sobre religião, sociedade e o ser
humano, desenvolvendo essas temáticas num estilo tão único
que é quase como se estivéssemos ali de pé, dentro do conto,
assistindo ao desenrolar dos fatos. A mescla entre a cultura
oriental com a ocidental é visível em seus escritos, talvez dada
a sua própria biografia.
Mas de todas estas narrativas, tenho certeza que a que mais
vai lhe intrigar é o conto Terra Morta. Neste conto vários dis-
cípulos estão reunidos à beira do leito de morte de seu queri-
do mestre, um grande poeta, proeminente na arte haiku. Ali
naquele quarto, o narrador vai percorrer os pensamentos das
personagens, penetrando além das aparências daquela cena
de tristeza e pesar, enquanto todos se despedem do querido me-
stre. Ali o escritor vai trazer à tona várias questões acerca do
subconsciente humano e sobre a morte. Você, como aluna de
psicologia, vai se deliciar com essa história, envolvendo-se na

188
Literatura Japonesa I 2021

engenhosa escrita de Akutagawa.


Sei que é um pouco mórbido falar de morte depois de ex-
pressar as minhas tão sinceras saudades de ti, mas sei também
que essa recomendação lhe mostrará o quanto conheço de ti e
aprecio esta sua incrível personalidade curiosa e artística de
bailarina e pesquisadora. Espero poder ouvir pessoalmente em
breve as suas impressões e pensamentos
após a leitura deste livro enquanto dividimos uma familiar
garrafa de Merlot.

Com muito carinho,


Seu irmãozinho.

189
Impressões
de leitura
男 色 大 鏡
O GRANDE
ESPELHO DO
AMOR ENTRE

原 西
HOMENS
井 鶴
Ihara Saikaku
ALCEU ROCHA PERDIGÃO ALVES
Literatura Japonesa I 2021

Ihara Saikaku (1642-1693). Foi ao pesquisar este nome, apres-


sadamente, para uma disciplina da faculdade, que me deparei
com uma obra inesperada datada de 1687, início do período Edo
conhecida como “O grande espelho do amor entre homens”, títu-
lo original Nanshoku Ôkagami (男色大鏡). Tive que reler o títu-
lo e a descrição da obra algumas vezes para processar a infor-
mação diante de meus olhos. Tratava-se, de fato, de um livro de
contos homoafetivos. Bem, para quem não tem, com frequência,
a chance de se ver refletido nas artes, um grande espelho é uma
oferta difícil de recusar. Tomei nota do título e autor, decidido a
ler assim que pudesse, e, novamente, a faculdade me ofereceu a
desculpa perfeita: estas impressões de leitura.
Foi certamente uma aventura, com seus altos e baixos. A ab-
ertura do livro não é um conto, mas uma defesa, quase filosófi-
ca, da superioridade das relações entre homens àquelas entre
homens e mulheres. Essa perspectiva, que toma a questão como
um debate intelectual, embora muito estranha à moderna, tem
certo charme, mas os argumentos são um tanto chocantes. Sai-
kaku escolhe, inicialmente, argumentar pelo lado do “menos
pior” em vez do “melhor”, e o faz sem nenhuma cerimônia. A
intenção talvez seja cômica, eu certamente ri do trecho “Deit-
ar-se rejeitado por uma cortesã ou passar a noite conversando
com um ator kabuki com hemorroidas?”, a implicação é que em
nenhum dos casos seria possível uma relação amorosa naquela
noite, mas, ao menos com o rapaz, haveria o prazer da conversa.
No entanto, esse exemplo é dos mais leves; sem querer cometer o

192
Literatura Japonesa I 2021

crime do anacronismo, o tom das comparações dificilmente não


soará machista ao leitor moderno. Vale notar, como faz o tradu-
tor Paul Schalow em sua introdução, que essa retórica é parte
da construção da obra e não reflete as reais visões do autor; ele
se coloca quase como um sacerdote em defesa do amor de que
fala sua obra. Não deixou, para mim, de ser um ponto incômodo,
algumas vezes fechei o livro me perguntando “qual foi a neces-
sidade disso?”, mas, felizmente, há contos em que essa retórica
não se faz presente.
Os contos são repletos de cenários naturais lindamente de-
scritos: o som do vento, o correr das águas, o canto dos pássaros e
a tranquilidade dos bosques, distantes das grandes cidades. Suas
personagens integram esse mundo natural em comparações en-
tre a beleza e pureza da juventude e o desabrochar das flores,
mais belos ainda por sua transitória fragilidade. O amor é, mui-
tas vezes, caso de vida ou morte, tratado em sua máxima inten-
sidade.
Meus contos preferidos são os que deixam um pouco de lado
essa grandiosidade, e capturam, também nos pequenos gestos,
a essência das relações humanas. No quarto conto da primeira
seção — o livro é organizado em oito seções compostas de cin-
co contos cada —, o jovem samurai, Jinnosuke, é cortejado pelo,
alguns anos mais velho, Gonkurô, que se encanta pela beleza do
rapaz. Ao receber suas afeições, por meio de uma carta, trazida
por seu escudeiro, Jinnosuke, tocado pelos sentimentos do mais

193
Literatura Japonesa I 2021

velho, envia sua resposta fazendo juras de amor a ele. Dois anos
depois, o jovem começa a receber insistentes cartas de amor de
outro samurai, Ihei, que lhe envia um ultimato; ou responde fa-
voravelmente, ou deve duelar com ele até a morte. Desejoso de
aceitar o duelo, como manda sua honra, ele vai a Gonkurô con-
tar-lhe a situação, mas este sugere que tente apaziguar os âni-
mos de Ihei, dizendo-lhe o que gostaria de ouvir. Irado pela falta
de coragem de seu amante em lutar por seu amor, Jinnosuke
volta para casa para se preparar para o duelo. Aceitando que
poderia morrer naquela noite, ele escreve uma carta ao nam-
orado, despejando todas as mágoas acumuladas nos dois anos
que passaram juntos. O momento é tenso, mas traz uma leveza
cômica, ao retratar nesse cenário, uma típica discussão de rel-
acionamento: Jinnosuke reclama de todas as 327 vezes em que
Gonkurô não o acompanhou a sua casa, após passarem a noite
juntos; de quando, no dia 20 de novembro do ano passado, foi
preocupado à casa dele, apenas para encontrá-lo na companhia
de outra pessoa; do dia 18 de maio, quando o amante desconfiou
dele, enciumado, por encontrá-lo conversando com amigos em
sua casa; e por assim vai. Enviada a carta, ele parte para o du-
elo, mas, antes que seu oponente apareça, Gonkurô vai ao seu
encontro, aos prantos, se desculpar e os dois, é claro, triunfam
sobre o pretendente e seus companheiros, que logo aparecem
para lutar. Após esse episódio, os dois planejam cometer su-
icídio, já que a relação seria exposta e considerada vergonho-

194
Literatura Japonesa I 2021

sa. No entanto, são impedidos pelo senhor local, que concede a


ambos o perdão incondicional. São contos como este, que, para
mim, fazem o livro valer a pena. Pondo em cena momentos
genuínos de relações amorosas e evitando os finais trágicos,
que, em tempos mais recentes, se tornaram comuns nas pou-
cas histórias que apresentam relações homoafetivas.
Pessoalmente, gostaria que os contos fossem um pouco
mais longos, de modo a poder desenvolver com mais detalhes
os relacionamentos. No entanto, mesmo que breves, pude en-
contrar várias histórias interessantes, e até tocantes. Como é
de se esperar, um grande espelho revela muitas coisas que nem
sempre são belas, mas, para quem observar essa imagem com
atenção, há de encontrar algo que vale a pena descobrir.

Referências bibliográficas:
Ihara Saikaku, The Great Mirror Of Male Love (Schalow, P.
G. trad.). Stanford: Stanford University press, 1990.

195
ス プ ー ト
ニ ク の 恋

MINHA QUERIDA
SPUTNIK

上 春 樹
Haruki Murakami


AMANDA MENEZES DE SOUZA
Literatura Japonesa I 2021

Foi no ano de 2013 que, de relance, conheci aquele que viria


a se tornar o meu escritor favorito. Em um passeio ao shop-
ping com a minha mãe, a capa de cores vibrantes de “1Q84”,
do Haruki Murakami, na vitrine de uma livraria, me chamou a
atenção. Guardei o seu nome na memória e, depois de ler algu-
mas de suas várias obras, em 2019 enfim adquiri a minha cópia
de “Minha querida Sputnik”.
A sinopse, que entregava a paixão avassaladora de Sum-
ire por outra mulher, me intrigou desde o início. Isso porque eu
nunca tinha lido um romance do Murakami que falasse de sen-
timentos românticos com maior profundidade, e porque queria
descobrir, também, suas impressões sobre o amor entre duas
mulheres e como o abordaria na obra. Pensei que deveria lê-la
imediatamente, e, de fato, assim o fiz.
A narração de K., pela qual a história é inteiramente conta-
da, me prendeu de tal maneira que devorei o livro em menos de
três dias. Ainda hoje, costumo tirá-lo de minha estante de vez
em quando para folhear novamente algumas de minhas passa-
gens favoritas, ou mesmo lê-lo inteiro, como tantas vezes já fiz.
Com toda a certeza, há muitos elementos nesse livro que
fazem dele (ao menos em minha concepção) excelente. A com-
posição de Sumire, desde seu nome às suas tendências manía-
co-depressivas e à sua relação conturbada com a literatura, é
inteiramente cativante, e considerar que toda a sua descrição
acontece de acordo com os olhos de seu melhor amigo parece

197
Literatura Japonesa I 2021

tornar a experiência de conhecê-la ainda mais sensível e inspi-


radora. Com a belíssima paisagem grega como pano de fundo,
acompanhei de perto o amor não correspondido de K. por Sum-
ire, vesti com ela meias de pares invertidos, ouvi os mesmos
discos e assisti aos mesmos filmes clássicos que eles e li cada
uma das cartas de Sumire como se fossem as minhas próprias.
Mas preciso admitir, apesar de tudo, que não foram as aven-
turas atrapalhadas de Sumire e sua inclinação ao ato literário
nem o gosto musical apuradíssimo de K. e sua fluidez em con-
duzir a narração que mais me marcaram. “Minha querida Sput-
nik” é um livro que fala, essencialmente, sobre perdas abruptas;
não aquelas necessariamente físicas, mas também as emocio-
nais ou mesmo espirituais.
Murakami nos fala sobre o gato de estimação que Sumire
perdeu quando criança, sobre a experiência (e em volta de que
acontece o livro) de K. em perder Sumire e a perda do eu íntimo
de Miu.
“No passado, eu estava viva, e estou viva agora, sentada aqui, con-

versando com você. Mas o que você está vendo não sou eu realmente. É

apenas a sombra do que fui. Você está realmente viva. Mas eu não. Até

mesmo estas palavras que digo agora me soam vazias, como um eco.”

(p. 176)

Acredito que esse sentimento de desconexão com a reali-


dade e com o eu íntimo, além de ser um elemento quase funda-
mental em grande parte da vasta obra literária de Murakami, é

198
Literatura Japonesa I 2021

também algo muito recorrente no mundo real. Não se trata


somente de uma sensação melancólica passageira, mas de um
problema de identificação que muitas vezes leva o indivíduo a
um estado de inércia, em que não consegue desvendar o seu
papel individual no ambiente em que ocupa e tampouco desco-
brir a si mesmo.
De alguma maneira, em algum lugar, o eu deixa de ser eu e
perde-se no meio de tantas experiências e lembranças. Sentin-
do uma espécie de vazio existencial, pessoalmente, às vezes
sinto que não estou realmente aqui, apesar de viva e respirando.
É como se todos os dias fossem vividos de maneira mecânica.
Não sei dizer o que ou quem sou e mesmo as minhas memórias
de ontem parecem dispersas e inconsistentes, como se em um
período de apenas vinte e quatro horas eu tivesse, de novo, mu-
dado, me tornado outra coisa ou outro alguém que não sei dizer
exatamente o que ou quem é. Apesar de toda a inconstância do
que (talvez) sou, nunca chego a lugar algum. Apenas ao nada. E
isso porque deixei que, em algum momento de minha vida, le-
vassem uma parte de mim. Não sei dizer quando nem por quê,
mas aconteceu e não a encontro em lugar algum.
“Cada um de nós tem um quê especial que só podemos usufruir

em um momento especial da nossa vida. Como uma pequena chama.

Alguns poucos afortunados cuidam dessa chama, alimentam-na, segu-

rando-na como uma tocha para iluminar seu caminho. Mas, uma vez

apagada, nunca mais se acende. O que eu tinha perdido não tinha sido

199
Literatura Japonesa I 2021

somente Sumire. Eu tinha perdido essa chama preciosa.” (p. 194)

Quando Miu encontrou outra versão de si mesma em seu


apartamento, através da janela da cabine da roda-gigante, o que
sentiu desprender de seu corpo não foi apenas a capacidade
de usufruir do desejo carnal, mas uma parte tão grande de si
mesma que ela nunca se sentiu completa outra vez. Sensação
parecida acometeu K. ao perder, junto com Sumire, a chama
delicada em seu peito que nunca voltou a acender.
No fim das contas, acho que K. está certo. Cada um de nós
tem algo de especial que não podemos, em circunstância al-
guma, deixar morrer. Algo que é tão especial que às vezes nem
pode ser recuperado, por mais que se tente muito. E uma vez
que se esvai, deixa marcas permanentes — sejam elas internas
ou externas, como o cabelo embranquecido de Miu.
Mas é preciso continuar tentando. Porque a vida acontece,
e ela não para. Nem espera por ninguém.
E o vazio se acumula dentro do peito.
“De modo que é assim que vivemos as nossas vidas. Não importa

quão profunda e fatal seja a perda, o quão importante fosse o que nos

roubaram — que foi arrebatado de nossas mãos —, mesmo que mudemos

completamente, com somente a camada externa de pele igual à de antes,

continuamos a representar as nossas vidas dessa maneira, em silêncio.

Aproximamo-nos cada vez mais do fim da dimensão do tempo que nos

foi estipulado, dando-lhe adeus enquanto vai minguando. Repetindo,

quase sempre habilmente, as proezas sem fim do dia-a-dia. Deixando

200
Literatura Japonesa I 2021

para trás uma sensação de vazio imensurável.” (p. 226)

Referências Bibliográficas
MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. 1. ed. Rio de
Janeiro: Alfaguara, 2008. 229 p.

201

KAPPA E O

LEVANTE
IMAGINÁRIO

川 龍 之
Ryunosuke Akutagawa


AMANDA TIEMI


Literatura Japonesa I 2021

A pandemia, o distanciamento social, o isolamento... já du-


ram pouco mais de um ano. A mente está cansada e o corpo
desanimado. Prevalece essa falta de força de vontade. E cada
dia é mais difícil se levantar e se erguer da cama após abrir os
olhos. Uma nova manhã poderia significar um recomeço, coi-
sas boas viriam... eu pensava. Mas nada parecia mudar, os ca-
sos continuavam aumentando, o número de leitos diminuindo
e mais famílias perdendo seus entes queridos. Meus pensam-
entos orbitavam em torno dessas preocupações, e eu me per-
guntava: “quando isso vai acabar? ”. É ainda mais difícil lidar
com a saudade do toque, do abraço de meus amigos para aliviar
essa agonia em meu peito. Assim, só encontrei conforto no meu
único companheiro restante, na ponta da cabeceira: Kappa e o
Levante Imaginário, de Ryunosuke Akutagawa.
O livro reúne vários contos do autor japonês, publicados en-
tre 1915 e 1927, alguns eram ainda inéditos no Brasil. Chama a
atenção que, apesar de conter muitos elementos da sociedade
e cultura japonesa, essas narrativas breves também abordam
temas humanos e universais. Graças à sensibilidade do autor,
elas conseguem tocar nós leitores. Uma história, em especial,
tornou-se minha preferida: “As Laranjas (1919)”. Ela é um depo-
imento de uma experiência vivida pelo próprio Akutagawa.
A narrativa começa em um dia nebuloso dentro do vagão
de um trem de segunda classe com o percurso de Yokosuka
até a capital. O narrador-protagonista encontrava-se em um

203
Literatura Japonesa I 2021

estado de espírito repleto de fadiga, não tendo ânimo sequer


para ler o jornal vespertino. Ele chega a associar o seu enfa-
do a um céu escuro toldado por nuvens carregadas de neve,
tamanha a sombra projetada em sua mente. Pouco antes de o
trem partir, uma menina com seus treze ou catorze anos entrou
no vagão afobada. Ela parecia ser uma “autêntica provinciana”
pelo seu modo de vestir. Tanto o desleixo com as roupas quan-
to a ignorância da garota em relação às classes do trem (visto
que ela carregava um bilhete de terceira classe, mas entrou no
vagão de segunda classe) deixaram o protagonista irritado. De
modo que ele resolveu acender um cigarro e se distrair com o
jornal para esquecer a presença da pequena. No entanto, isso
não foi possível, pois durante a viagem, ela sentara ao seu lado
para tentar abrir a janela. Com muito custo, a vidraça cedeu aos
seus esforços. Assim que a janela abriu, uma fumaça invadiu o
vagão, já que o trem estava passando pelo túnel. Isso fez com
que o narrador sufocasse, mas a menina não estava nem um
pouco preocupada com ele.
Logo, a janela emitia uma claridade; ar fresco afluía para
dentro; e a paisagem das montanhas podia ser vista do lado
de fora. Nessa passagem, existia uma cidade empobrecida e,
atrás da chancela, havia três meninos alinhados. Quando trem
estava passando, o grupo de garotos ergueu as mãos enquanto
gritavam; neste momento, a menina correspondeu aos acenos
e atirou laranjas aos meninos, ou melhor, elas “caíram do céu

204
Literatura Japonesa I 2021

como chuva sobre os meninos, que tinham vindo dar adeus à


menina no trem”. Essa foi uma cena que gravou na alma do
personagem e que o trouxe uma sensação de alegria: “Nesse
momento eu consegui, pela primeira vez, me esquecer ao
menos um pouco da fadiga e do enfado indescritíveis que sen-
tia, e também desta vida humana, destituída de sentido, vulgar
e tediosa”.
Em um único fôlego, terminei de ler o conto. Apesar da lei-
tura ter sido rápida, ela me impactou de uma forma que con-
versou com meus sentimentos, me fez refletir profundamente.
Em nossa jornada, conforme crescemos, nos deparamos com a
dureza da vida, que muitas vezes deixa um amargor na nossa
alma, obscurece nossa mente. Mas há esses pequenos momen-
tos inesperados que nos trazem um novo olhar, como se clare-
asse os pensamentos e abrisse espaço para sentirmos e desfru-
tarmos o sentimento de felicidade. Comecei a pensar que talvez
o nosso cotidiano é como uma caixinha de surpresas, repleta
de oportunidades para enxergamos a beleza da vida. Se formos
atentos, conseguimos capturar esse momento e gravamos na
alma, assim como Akutagawa. Espero que esse acúmulo de pe-
quenos prazeres dia a dia nos preencha e nos dê forças para
aproveitar a vida, mesmo quando o mundo parece estar contra
nós ou quando temos aqueles dias ruins.

205
Literatura Japonesa I 2021

São Bernardo do Campo, 15 de julho de 2021.

Referência
AKUTAGAWA, Ryunosuke. As Laranjas (1919). In: ______.
Kappa e o Levante Imaginário. São Paulo: Estação Liberdade,
2010. p. 266-272.

206
夢 十 夜
DEZ NOITES DE
SONHOS

目 漱 石
Natsume Soseki


ANA BEATRIZ ROCHA
Literatura Japonesa I 2021

Em uma noite fria de começo de julho, aconchegada de-


baixo de cobertas macias e felpudas, resolvi, com as mãos in-
crivelmente geladas, ler o conto “Dez noites de sonho” (Yume-
jûya, no original) do romancista japonês Natsume Sôseki, por
interesse e deleite próprio.
Minha primeira impressão foi a de que me depararia com
dez narrativas curtas ambientadas em cenários e situações in-
comuns e oníricas, porém, fui surpreendida com tamanha est-
ranheza nas histórias, e confesso que, por conta disto, demorei
algum tempo para compreender o que lia.
Quando pensamos em sonhos, geralmente imaginamos
cenários utópicos com histórias “normais” e que fazem senti-
do, por isso toda aquela estranheza foi um choque para mim,
pois não conseguia sequer compreender determinados trechos
e sequências de acontecimentos, faltava lógica. Todavia, se
pensarmos nos próprios sonhos que temos, é fato que, enquan-
to estamos no sonho, tudo faz completo sentido, mas, quando
acordamos e tentamos nos recordar sobre o que sonhamos,
muitas vezes percebemos que nada, na verdade, faz sentido al-
gum. Sonhos não têm “lógica”, os diálogos não têm sentido e a
sequência de eventos segue de forma aleatória.
Natsume Sôseki conseguiu passar com extrema perfeição
esse aspecto de estranheza do mundo dos sonhos neste conto.
Quando finalmente me dei conta destas características, pude

208
Literatura Japonesa I 2021

realizar a leitura com outros olhos, e o fato de a grande maioria


das situações narradas não fazerem o menor sentido, fez todo o
sentido para mim, pois os sonhos são exatamente assim.
Em vários momentos durante a leitura me peguei refletin-
do sobre alguns sonhos que tive ao longo dos meus anos e que
me marcaram, ou por terem sido muito reais, ou por terem sido
extremamente estranhos. Eu sempre tenho sonhos estranhos.
Tive a impressão de que alguns dos sonhos ali narrados poderi-
am facilmente terem sido sonhados por mim.
Mas não só de narrativas “estranhas” é composto o conto.
Há, também, narrativas que, por mais que eu – o leitor – saiba
que se trata de cenários e acontecimentos oníricos, parecem ex-
tremamente reais e verossimilhantes. Acredito que Sôseki quis
incluir nesta coletânea de sonhos não somente os desprovidos
de lógica, mas também aqueles que parecem tão reais que às
vezes acordamos com o coração acelerado, ou então, ficamos
com aquela sensação de aperto no peito durante um longo tem-
po mesmo depois de acordados, às vezes é tão real que pas-
samos dias pensando nele.
Há também pesadelos, daqueles sinistros e misteriosos que
nos fazem sentir calafrios na espinha e a sensação de querer
acordar o mais rápido possível.
E há os sonhos tristes. Aquele tipo de sonho que você nem
espera que seja triste, é até agradável, e então se desenrola num

209
Literatura Japonesa I 2021

rumo descontrolado e imprevisível e termina numa situ-


ação de partir o coração, ou de pura tristeza. Às vezes é tão
triste que inevitavelmente nos desatamos a chorar no sonho,
e acordamos com lágrimas reais molhando nossos rostos e
travesseiros.
Todos esses tipos de sonhos, eu já experienciei. In-
contáveis vezes. E talvez por me identificar tanto, ou somente
por terem sido descritos com tamanho apego à realidade dos
sonhos humanos, que até os dias de hoje nem mesmo o mais
inteligente dos cientistas consegue explicar como e o porquê
de eles acontecerem, mas o fato é que ao me permitir sonhar
acordada experimentei a sensação singular de mergulhar na
leitura das dez noites de sonho de uma posição privilegiada.

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眠 り
SONO

村 上 春 樹
Haruki Murakami
ANDRESSA MORAES
Literatura Japonesa I 2021

Já havia me questionado anteriormente como seria a minha


vida se nunca mais dormisse. A quantidade de coisas que daria
para fazer em um único dia seria exorbitante. Eu teria a ca-
pacidade de finalmente viver uma vida equilibrada entre lazer
e obrigações. Foi essa premissa que me interessou na leitura de
Sono, de Haruki Murakami. No entanto, o que idealizamos nem
sempre é o que acontece.
O livro inicia com a protagonista anunciando que faz dez-
essete dias que não dorme. Antes disso, levava uma vida nor-
mal, casada com um dentista com o qual tinha um filho. Sua
rotina era definida, e ela se desdobrava para cumprir todos os
afazeres de casa.
Seus dias eram basicamente voltados para o papel de espo-
sa e mãe. No entanto, após ter um pesadelo vívido, ela se torna
incapaz de dormir. Assim, sua vida toma um rumo diferente.
Ela passa a utilizar esse tempo estendido para fazer o que quis-
er, como ler e reler livros de seu interesse, coisa que não fazia
mais após o casamento. Ao contrário do esperado, ela passa
a ter uma vida mais ativa e nunca é tomada pelo cansaço. Os
seus hobbies são mais recorrenterecorrentes, como a prática
de natação, que de 30 minutos diários passa a durar até duas
horas.
Tudo parecia ir muito bem: de dia cumpria seu dever como
esposa e mãe, mas à noite fazia o que bem quisesse. Até que

212
Literatura Japonesa I 2021

essa capacidade extraordinária de nunca mais dormir começou


a afetar seus pensamentos, fazendo-a questionar a sua relação
com o marido e com o filho, chegando a refletir sobre a vida e a
morte. Portanto, com o decorrer da narrativa, algo que a possi-
bilitava ser livre torna-se objeto de perturbação. O livro termina
com um final enigmático, que gera uma angústia em relação ao
destino da protagonista.
Essa história me levou a pensar sobre a mecanicidade da
vida, que decorre de uma rotina fechada e do cumprimento de
deveres. Me fez refletir se eu também não levo a vida no au-
tomático, deixando de lado as experiências que antes me fa-
ziam bem para me focar no quanto estou sendo produtiva. Na
pandemia, a preocupação pela produtividade tornou-se pior,
ocasionando uma rotina completamente voltada para um ren-
dimento excessivo.
No entanto, esse livro me fez recuperar um dos hábitos que
havia deixado de lado, que é justamente o prazer pela leitura.
Após essa experiência, percebi que não adianta levar a vida
buscando uma produtividade inalcançável, mas necessitamos
também de um tempo para nós mesmos, praticando atividades
que nos deixe livre de nossas próprias inquietações.
São Paulo, 29 de junho de 2021

213
Literatura Japonesa I 2021

Referência bibliográfica:
MURAKAMI, Haruki. Sono. Tradução de Lica Hashi-
moto. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.

214
十 夜
SÉTIMA NOITE,

DEZ NOITES DE
SONHOS
夏 目 漱 石
Natsume Soseki
BIANCA AYA MUTO
Literatura Japonesa I 2021

“Dez Noites de Sonho” reúne dez narrativas independentes


entre si, cada uma ambientada em um sonho diferente, porém
ao ler a obra em um fôlego só tive uma experiência intensa,
mas muito interessante. Creio que essa é a magia da atmosfera
onírica, há essa névoa que borra espaço e tempo, assim como
os elementos que existem neles. Uma noite em específico me
chamou a atenção e me deixou, por falta de palavras mais pre-
cisas, muito mexida. É sobre ela que quero falar, a Sétima Noite.
Devo dizer que quando lemos pelo prazer de ler, nossas ex-
periências conversam com as mensagens contidas nas pala-
vras e, vamos combinar, é uma troca linda. Claro que é impos-
sível afirmar se as nossas reflexões, cruas após a leitura, são
as mesmas que o autor desejava provocar, mas ao menos a
viagem pode ser dada como proveitosa. Ao ler a narrativa, com
certeza senti parte de mim em meio às ondas e isso me inco-
modou. O incômodo foi bom, pois estava em um momento em
que parar e me questionar sobre a vida era muito necessário.
O sonho da sétima noite se inicia em um navio desconhe-
cido navegando em ondas também desconhecidas. Apesar de
sentir a agonia gerada pela incerteza e barulhos, enquanto lia
o primeiro parágrafo tive a impressão de que seria um sonho
mais tranquilo, porém vi que estava errada no momento em
que li essa passagem: “O sol indo para o oeste, seu limite é o
oeste? [...] Vidas sobre as ondas... Recostadas no leme... Escor-

216
Literatura Japonesa I 2021

rendo... Escorrendo...” (p. 104). Senti uma espécie de náusea e


por certo não fora provocada pelo balanço representado por pa-
lavras, e sim por perceber que estava lendo sobre a vida. Minhas
suspeitas se confirmaram ao final da narrativa. Entretanto, em
uma narrativa, assim como na vida em si, o que vem antes do
último ponto final é muito importante e talvez tenha sido esse
percurso que me fez ver o quão miserável estava me sentindo.
Se passarmos os olhos sem muito cuidado, os parágrafos
seguintes continuam da mesma forma, o tédio do protagoni-
sta, sem nada nem ninguém que o interessasse, somado a in-
certeza do destino, o leva à uma tristeza passível de conform-
idade, pois o narrador pensa inúmeras vezes em se jogar ao
mar, mas parece que ainda deseja buscar mais motivos, talvez
não uns que valem a pena e sim um grande o suficiente para o
fazer desistir. Pensei muito no tédio desgraçado que é viver e
nessa sensação de ter caído em um barco sem rumo que posso
chamar de minha vida. Não escolhi nascer, mas sinto que
também não escolhi viver ainda. Assim como o narrador,
não consigo ver meu destino, me projetar em um futuro e nem
entendo muito bem o processo e as pessoas que passam. Pensar
sobre a vida se assemelharia ao medo do mar? Eu teria medo de
viver assim como tenho medo do mar?
Creio que a insegurança e a impossibilidade de enxergar a
terra firme seja um dos maiores problemas no conto e na vida,

217
Literatura Japonesa I 2021

porém é também uma das maiores ilusões, afinal, há muito


no navio e há muito no presente. Entretanto, se nos distanciar-
mos do que temos no momento, deixamos de enxergar o que
está em nossas mãos. Senti um pouco disso no narrador. Ele
não conseguia ver beleza em absolutamente mais nada e fler-
ta com a ideia da morte. Não vê que há pessoas no mesmo
barco, tristes, felizes, com interesses, conhecimentos e person-
alidade. Contudo, o entendo. Entendo não conseguir me sentir
feliz por nada nesse mundo. Entendo a constante vontade de ir.
O narrador percebeu tarde demais que há coisas no barco que
valem a pena, ou que ao menos parecem melhores que a escu-
ridão sufocante que talvez seja esse não existir. Ler o conto me
fez querer ficar no navio e descobrir os pequenos tesouros que
fazem do meu navio tão especial, mais especial do que uma
promessa de terra firme em um futuro distante.
Depois de noites em claro chorando na proa do barco, depois
de ver alguém amado ir para o hospital e não voltar, depois de
sentir o calor de abraços, ouvir o som de risadas e também sen-
tir a falta que fazem, bom, talvez esteja entendendo um pouco do
que é viver e, diferentemente do narrador, estou tentando apre-
ciar mais as coisas que me aparecem, pois entendi como lição.
Ainda não sei para onde eu vou, mas sei que quero continuar
indo. Não quero mais afastar pessoas sendo intencionalmente
detestável só porque me sinto vulnerável demais em situações

218
Literatura Japonesa I 2021

sociais. Não quero economizar sorrisos nem “obrigadas” para


ver que foi tarde demais. Eu quero me sentir vulnerável sendo
quem sou, eu quero viver uma vida sem muitos arrependimen-
tos, eu quero apreciar de tudo um pouco e eu quero continuar
nesse navio, porque enquanto estiver sobre as ondas, sei que
irei para algum lugar e que devo fazer por mim.
Precisei de um conto e de um protagonista ao mar para
colocar para fora todas as tempestades dentro de mim. Ler essa
narrativa foi uma verdadeira viagem para o íntimo e foi par-
te de um processo ainda em andamento de me sentir em paz
com a vida. Às vezes precisamos desse tipo de sonho, não um
objetivo ou uma vontade, e sim episódios que desafinam mais
uma música já desafinada para enfim percebermos que só nos
acostumamos com algo ruim. É um navegar turbulento, porque
o mar nunca é o mesmo e eu também não. No final, acho que é
isso que me permite lutar.

SÔSEKI, Natsume. Dez Noites de Sonho. In: WAKISAKA, G.


(org.). Contos da Era Meiji. São Paulo: Centro de Estudos Japon-
eses, 1993. p. 87-113.

219
眠 り
SONO


Haruki Murakami

村 上 春
BRUNA DYESYCA CARDOSO DA SILVA
Literatura Japonesa I 2021

Após alguns anos estudando a língua japonesa, em 2017,


procurava com afinco alguma obra para conhecer a literatura
do país que tanto me fascina. Com 1Q84 do Haruki Murakami
lido, me deparei com um conto do mesmo autor com ilustrações
tanto belas como curiosas. Mesmo após interessantes leituras
do curso de Literatura Japonesa I, decidi voltar ao livro que
tanto me trouxe dúvidas, reflexões e tentativas de desvendar o
mistério: Sono.

“Alguma coisa está errada.”

Neste conto, a protagonista é mãe de família e dona de casa,


tem uma vida aparentemente sem dificuldades, uma vida tran-
quila que todos queremos ter, porém é uma vida mecânica. Em
uma noite, não consegue dormir e assim permanecerá por todas
as noites seguintes. Com esta insônia, ela não só fica acordada à
noite, mas também acorda para a realidade, passa a enxergar o
ela de agora e o de antes. Vê sua vida em uma nova perspectiva,
percebe o que deixou para trás e o que se tornou sem perceber.
Com os antigos hábitos, volta a experimentar um pouco de
quando era mais jovem. Volta a ler seu livro preferido daquela
época, a comer doces, algo que ela tinha banido, mas sem se es-
quecer ou se rebelar de tudo, continua empenhando seu papel
de mãe e esposa como antes, mas para si, parece recuperar um

221
Literatura Japonesa I 2021

pouco da sua identidade.


Ainda com o mistério da insônia, em meio as suas memo-
rias, vemos que não é a primeira vez que isto ocorre, contudo,
anteriormente só havia durado alguns dias e por agora está du-
rando muito mais. E aqui, nossos sentimentos se divergem. A
protagonista não parece se importar muito sobre essa questão.
Não se importou quando ocorreu quando era mais nova e não
se preocupa com esta ocorrência, porém aflita como estava, me
perguntava o que aquilo poderia ser e como após mais de dois
dias ela continuava a não sentir nenhum cansaço.
No entanto, este não é um livro para se procurar respostas
e sim fazer muitas perguntas, que ficarão com você. Por isso,
na reta final, olhando o relógio que estava próximo à uma da
manhã, me vi em uma situação semelhante ao da protagonis-
ta. Vamos ficando cada vez mais ansiosos sobre o desfecho da
narrativa que não se conclui e não parece que irá fazê-lo deix-
ando-nos, talvez, no mesmo desespero que a personagem sente
nas últimas linhas do conto. E por fim, o que nos resta após a
leitura é se perguntar, como em um momento confuso que você
não compreende muito bem sua situação, “o que acabou de ac-
ontecer?”.
Seria interessante dizer que este livro me tirou o sono, porém
seria mentira, dormi muito bem depois. Contudo, acordada, no
dia seguinte e por mais alguns outros, me pegava pensando so-

222
Literatura Japonesa I 2021

bre o que algumas passagens significavam e o que o livro, como


um todo, queria dizer.
Seria tudo aquilo um círculo que ela não conseguiria sair?
Ela voltou aos hábitos de antes, por mais que sua vida tenha
mudado, não mudou totalmente, ela não tentou novos hábitos,
só voltou aos que já tinha antes, quando tiver, se tiver, um novo
toque de realidade vai voltar para a vida que tinha no início do
livro? Ou aquele será o pontapé para ela começar a viver mel-
hor? Será que foi aquela primeira insônia que a fez adormecer
e viver no automático? Os homens que sacodem o carro dela,
seria o sono chegando para puxá-la novamente a vida anterior?
Essas, são somente algumas das perguntas que ficam.
Me pergunto se assim como a protagonista estou dormindo
para algo que já deveria ter acordado. Se assim como ela, estou
vivendo no automático sem perceber. Confesso que agora tenho
interesse em ler Anna Karenina, quem sabe o livro não me des-
pertaria para algo como fez com a protagonista.

“E a hora mais escura da noite e os homens continuam a


sacudir o carro.
O que eles querem é virar o meu carro.”

São Paulo, 02 de julho de 2021.

223
Literatura Japonesa I 2021

Referência bibliográfica
“Sono” escrito por Haruki Murakami e ilustrações por Kat
Menschik. Traduzido por Lica Hashimoto. Revisão por Juliana
Souza, Cristhiane Ruiz e Ana Kronemberger. Rio de Janeiro: Ed-
itora Objetiva, 2015. 118 páginas.


224
コ ン ビ ニ
QUERIDA
人 間
KONBINI
田 沙 耶 香

Sayaka Murata
CAMILA TELLES SANTANA
Literatura Japonesa I 2021

Já a muito tempo, quando ainda pensava em qual habili-


tação escolher para seguir minha carreira acadêmica na Let-
ras, e dentre tantas leituras disponíveis em meio às obrigações
do primeiro ano, me deparei com este livro. Preciso ser sincera:
a princípio, a capa não me chamou a atenção. Quem me con-
hece, sabe que muitas das minhas leituras vêm justamente do
projeto gráfico dos livros. Eu sei... “não devemos julgar um livro
pela capa”, mas o cuidado editorial é um dos fatores que atiçam
minha vontade de ler, assim como ver uma comida linda a
minha frente e a fome vir quase que instantaneamente. Contra
tudo isso, e após muita insistência de colegas que já haviam
lido, resolvi dar uma chance para Querida Kombini. Ainda bem.
A surpresa que esta leitura me proporcionou foi absoluta-
mente inigualável. Uma mistura de angústia, com humor, e um
quê de “uau” que poucas leituras conseguiram me proporcio-
nar. A história segue uma linha simples: a protagonista, de 36
anos chamada Keiko Furukura, trabalha em uma kombini por
18 anos.
Sim, é isso.
E não, ela não vai se apaixonar perdidamente por algum cli-
ente e fugir com ele para outro país, ou empenhar uma odisseia
heroica para sair do emprego e conquistar uma vaga na maior
multinacional do país enquanto estuda e trabalha, tampouco
vai ser testemunha de um crime horrível dentro do estabelec-

226
Literatura Japonesa I 2021

imento, como é comum encontrar em algumas narrativas de


livros ocidentais.
Até porque, Keiko poderia facilmente ser considerada uma
pessoa assexual, já que não nutre nenhum tipo de sentimento
amoroso ou sexual por alguém. E, na verdade, ela ama o que faz.
Também não poderia ser testemunha de algum crime porque,
aparentemente, é ela a responsável pelo pior crime numa so-
ciedade que se pauta por status e aparências: a de não corre-
sponder com as expectativas que lhe impõem e esperam ser
atendidas.
Sayaka Murata, autora deste best seller vencedor do prê-
mio Akutagawa no Japão, descreve o microcosmo da socie-
dade japonesa e como em todos os aspectos do ser humano, se
sobressai a padronização, a performance funcional e a mecan-
ização das relações interpessoais.
Keiko é uma personagem extremamente observadora e
consciente, mas que possui uma desordem psicológica bastante
acentuada, observada sobretudo pela ausência de sensibili-
dade. É constantemente julgada, principalmente quando age
de forma espontânea, e por isso acaba se sentindo acolhida e
pertencente à kombini, que lhe concede tudo aquilo que escapa
de si socialmente: um roteiro padronizado de deveres, um am-
biente seguro e sem surpresas, onde cada um sabe qual é ex-
atamente o seu papel e desempenha-o da melhor maneira que

227
Literatura Japonesa I 2021

consegue: os Funcionários (ao qual se enquadra), os Clientes e


o Gerente. A maneira robótica em que ela descreve os acontec-
imentos em relação a sua vida, sua família e a kombini é o es-
topim pro leitor se questionar por quê a aparente normalidade
ao qual estamos acostumados a seguir é mais válida do que a
normalidade ao qual Keiko se sente feliz, ou seja, fazendo parte
de um emprego que não lhe atribui nenhum status financeiro
e social. Por que ela é considerada inferior às outras pessoas
apenas por gostar de trabalhar na kombini e por se sentir bem
assim? O que faz este tipo de trabalho ser menor ou menos im-
portante que outros? E o que a torna menos normal, se entre nós
também existe uma obediência à regras que seguimos, mui-
tas vezes, cegamente? Durante a leitura, me peguei pensando
várias vezes que Keiko só se reconheceu como parte da kom-
bini porque pôde finalmente, dentro deste ambiente, ser vista
e sentir-se como parte importante da rotina de várias pessoas
que utilizam o estabelecimento pela praticidade e utilidade.
Ela sente-se, graças a seu trabalho, importante e reconhecida
por alguém, mesmo que este seja um completo desconhecido.
O que não torna uma constatação menos triste, pois Keiko vive
e respira em função do trabalho. Mas ao mesmo tempo, o que
fazer quando a sociedade te desumaniza ao ponto de procurar
por refúgios não convencionais? Keiko é devotada à kombini
tal como pessoas “normais” são devotadas à religião. Para ela, a

228
Literatura Japonesa I 2021

kombini é seu templo, e seu trabalho é um ritual. Ironicamente,


ao mesmo tempo que Keiko se aliena do mundo pelo trabalho, é
através dele também que faz sua leitura de mundo e transporta
sua visão para o leitor, que constantemente se pergunta: qual o
limite da normalidade? Qual o limite do apagamento individu-
al em prol do coletivo? E por que insistimos nisso, se para algu-
mas pessoas isso machuca tanto?
Depois da leitura, acompanhei algumas discussões sobre
Querida Kombini. Alguns atribuem a sua estranheza em lidar
com o mundo, principalmente por seu comportamento, com
algum tipo de grau do espectro autista. Porém, não acho pro-
dutivo para a narrativa diagnosticar personagens. O relato em
primeira pessoa de Keiko, o modo como ela apresenta toda sua
vida, da maneira mais objetiva e automatizada possível (in-
tenção da autora? Não sei...) é o que torna a leitura e o livro tão
peculiares. É uma narrativa simples sim, mas crua. É incômo-
da porque pisa no nosso calo. E é fascinante justamente por
isso. Sayaka Murata escreve o meu tipo favorito de narrativa:
aquela que você não sai incólume.

REFERÊNCIAS
MURATA, Sayaka. Querida Kombini. São Paulo: Editora Es-
tação Liberdade; 2018. Tradução: Rita Kohl.

229
“Sobre a garota cem
por cento perfeita que

の 消 滅
encontrei em uma

manhã enrolada de
abril” em O elefante

村 上 春 樹
desaparece
Haruki Murakami
CAROLE DE ANDRADE MARQUES
Literatura Japonesa I 2021

Diante de mais um semestre de estudos a distância em


função da pandemia do coronavírus, encontrei a oportunidade
de cursar uma disciplina de literatura japonesa dentro da uni-
versidade. Tal oportunidade me abriu portas para conhecer um
mundo de obras muito cativante. Posso dizer que a porta de en-
trada para este universo não havia como ser mais certeira, ao
ler o conto “Sobre a garota cem por cento perfeita que encontrei
em uma manhã ensolarada de abril” presente na coletânea de
contos do livro O Elefante Desaparece de Haruki Murakami.
Ao iniciar o conto, vou ao encontro de uma história, que a
princípio, não entendo se é uma história de um encontro de al-
mas gêmeas ou uma reflexão a respeito da imaturidade. O con-
to narra a história de um rapaz que diz ter encontrado a garota
cem por cento perfeita para ele, mas quando questionado da
aparência dela por seu amigo, não sabe bem como responder,
ele só sabia que ele era a garota perfeita. Conforme a leitura
avançava, fui de um sentimento de brilho nos olhos ao ver o
sentimento de paixão de um jovem que acreditava ter encontra-
do o amor da sua vida. Entretanto, há um dilema que permeia
este conto: como ele deveria ter abordado a jovem? “Era uma
vez” ou “Você não acha essa história triste?”. No primeiro mo-
mento eu não entendi muito bem o sentido de ambas as frases,
mas ao fim do conto uma fez mais sentido do que a outra.
O conto passa um sentimento de conversa, como se alguém,

231
Literatura Japonesa I 2021

já com uma certa idade, estivesse conversando comigo sobre


um amor do passado que só não se concretizou pela imaturi-
dade da juventude:

“— Que tal fazermos um teste? Se realmente somos um


casal de namorados 100% perfeito, com certeza um dia va-
mos nos reencontrar em algum lugar e, se issoacontecer e
constatarmos que somos 100% perfeitos um para o outro,
nos casamosimediatamente, combinado?— Combinado —
ela respondeu.[...] Mas, para falar a verdade, esse teste era
totalmente desnecessário. Eles nãodeviam ter feito isso,
porque eram autênticos namorados 100% perfeitos e oen-
contro deles já teria sido fruto de um milagre. No entanto,
os dois eram jovensdemais para estarem cientes disso.
E, desde então, eles foram deixados à mercê dasondas do
destino insensível e cruel.”

Nesses trechos é possível observar o instante de uma de-


cisão irracional que muda a vida do protagonista. O conto causa
um sentimento de arrependimento e maturidade forte nesses
momentos em que é possível perceber o peso da maturidade
sobre os acontecimentos do passado.
Ao fim do conto pude observar uma certa semelhança com
um filme japonês Kimi no na wa, no trecho:
“Em uma manhã ensolarada de abril, o rapaz caminhava
pela rua secundária do
bairro de Harajuku do sentido oeste para o leste para tomar
o café da manhã promocional do morning service e a garota

232
Literatura Japonesa I 2021

caminhava do sentido leste para o oeste para comprar selos


no correio. Os dois se encontraram no meio do caminho. Uma
tênue luz iluminou por alguns segundos os seus corações tra-
zendo de volta as lembranças até então esquecidas. Os corações
palpitaram intensamente e cada um soube de imediato:
Ela era a garota 100% perfeita para mim.
Ele era o garoto 100% perfeito para mim.
Mas a luz que incidia sobre a memória deles era por demais
tênue e as
palavras não eram tão claras como há quatorze anos. Os
dois passaram um pelo outro sem dizer nada e desapareceram
na multidão. Para todo o sempre.”
No filme há o encontro de dois jovens que trocam de almas
e no processo de descobrir esse acontecimento eles se apaixon-
am, mas percebem vivem linhas temporais diferentes. Mesmo
não sendo uma história que os acontecimentos são consequên-
cia da imaturidade, o reencontro deles é baseado no milagre do
destino e seus corações são iluminados pela mesma tênue luz
que no fim não sabemos se será breve como aqui no conto de
Murakami ou irá perpetuar novamente o sentimento do casal.
Por fim, o conto termina com a certeza de que o jovem dever-
ia ter dito a sua garota cem por cento perfeita: “Você não acha
essa história triste?”. E de fato, o desencontro, a imaturidade
e a vida podem se tornar um acontecimento triste. Logo, uma

233
Literatura Japonesa I 2021

história que poderia tanto ter um final feliz, agora não passa de
mera tristeza e arrependimento causados pela imaturidade de
jovens almas que se apaixonaram.

Referência bibliográfica:
“Sobre a garota cem por cento perfeita que encontrei em
uma manhã enrolada de abril” (Haruki Murakami). Tradução
de Lica Hashimoto. In O elefante desaparece. São Paulo: Editora
Alfaguara, 2018. 301 páginas.

234
日 本 書
CRÔNICAS

DO
JAPÃO
DAPHNE ALMASSI HAMBURGO
Literatura Japonesa I 2021

Há uma sensação distinta que é despertada com a leitura de


narrativas que atravessaram séculos e continentes até chegar
em nós. Digo “despertada” porque, de fato, o que ocorre é como
um despertar, um reencontro com algo de imortal e universal
presente nessas narrativas. Ao menos essa foi a sensação que
tive ao ler o Nihonshoki, Crônicas do Japão, composto de narra-
tivas que foram compiladas no ano de 720 pelo Príncipe Toneri
e Ō-no-Yassumaro, e chegaram até mim pela tradução da pro-
fessora Lica Hashimoto. As narrativas “de um Japão milenar”,
como o próprio subtítulo indica, permitiram-me um vislumbre
do passado japonês.
Admirou-me que tal passado não foi retratado com objetiv-
idade factual, mas através das histórias que constituíam a mi-
tologia da época. Não apenas documentos oficiais e registros
históricos foram consultados em sua criação, mas também a
história oral e as crenças populares. Nada mais justo, afinal a
história de um povo não se constitui apenas de suas conquistas
e derrotas, de feitos e fatos, mas também do imaginário coletivo.
O compromisso em registrar esse imaginário japonês em sua
multiplicidade se demonstra na inclusão de diferentes versões
para uma mesma narrativa. Enquanto registros históricos em
sua maioria pretendem registrar uma perspectiva objetiva dos
ocorridos – apesar de que, como escreveu George Orwell, a
história ser escrita pelos vencedores, não permitindo haver um

236
Literatura Japonesa I 2021

registro imparcial –, o Nihonshoki se comprometeu a relatar


não uma verdade única, mas as variadas interpretações para
um mito.
Por vezes, as histórias dos deuses me causaram surpresa
ou estranhamento por seu comportamento, enquanto em out-
ros momentos pareceu-me que os sentimentos e ações dos de-
uses refletiam a própria natureza humana. Houveram também
ocasiões em que, durante a leitura, recordei-me de outras mito-
logias, como, por exemplo, a narrativa em que Izanagi procura
Izanami no Mundo dos Mortos, a qual me pareceu similar ao
mito grego de Orfeu e Eurídice.
Essas semelhanças e associações me fizeram refletir sobre
como existem elementos comuns que integram o imaginário
de diferentes culturas em diferentes tempos. A luz, por exem-
plo, é um elemento de destaque em muitas cosmogonias. No
Nihonshoki, a luz é o princípio da criação do mundo; na Bíblia
cristã, a luz é a primeira criação de Deus. Em
associação à luz, a imagem do sol é um símbolo importante
para o Japão, presente até mesmo em sua bandeira, e sua im-
portância se demonstra no Nihonshoki através da figura da De-
usa-do-Sol, Amaterasu, descrita como a mais maravilhosa das
divindades. Essa descrição de Amaterasu demonstra o motivo
de ela ter sido a divindade considerada como a antecessora da
família imperial; nenhuma outra divindade, senão a do sol, rep-

237
Literatura Japonesa I 2021

resentaria tamanho poder divino passível de justificar o poder


terreno do imperador.
Uma das minhas crônicas preferidas do livro está relaciona-
da à Amaterasu. Ao se aborrecer com as brincadeiras maldosas
de seu irmão, Sussanoo-no-Mikoto, Deus-do-Mar-e-das-Tor-
mentas, Amaterasu se isola em uma gruta, lançando o mundo
em escuridão. Para atraí-la para fora da gruta, Ame-no-Uzume,
Divindade-do-Poder-e-da-Delicadeza realiza uma dança. Re-
centemente, ao realizar uma pesquisa sobre rituais xintoístas,
descobri que esse mito narra a origem da kagura, um tipo de
dança cerimonial. Essas danças eram realizadas originalmente
por mulheres xamãs como parte de uma arte de divinação, uma
vez que durante a dança essas mulheres incorporariam uma
divindade. Mais tarde, a dança foi integrada ao teatro nô como
parte do espetáculo.

Figura 1 - A dança de Ame-no-Uzume, desenho autoral.

238
Literatura Japonesa I 2021

Entretanto, nem todos os deuses citados no Nihonshoki são


tão imponentes quanto Amaterasu. Dos vários deuses e divin-
dades, alguns se destacam ao serem relacionados com elemen-
tos de poder, como a lua ou o oceano, enquanto outros são de
elementos mais banais, como os deuses do barro, da areia ou
dos vales murmurantes. Alguns deuses até mesmo tem origens
pouco “nobres”, como aqueles nascidos do vômito e excremen-
tos de Izanami. Ainda assim, independente de sua origem ou
atribuição, todos são seres divinos.
Durante a leitura, essa diversidade de deuses me fez pen-
sar sobre a própria diversidade da vida. Consideramos determi-
nadas coisas mais belas ou importantes do que as outras; um
pavão pode ser tido como uma ave mais bela do que uma pom-
ba, uma galinha tida como uma ave mais importante do que um
cisne devido à seus ovos, e desse modo atribuímos relevância
aos seres e elementos da natureza de acordo com o quanto eles
correspondem aos nossos valores do que é belo ou útil. No Ni-
honshoki, tudo é divino. Sejam montanhas ou rochas, mares ou
lagos, tudo encontrado na natureza corresponde à uma divin-
dade, e em tudo é possível encontrar beleza.
Além disso, o nascimento dos deuses me levou a perceber
a relação intrínseca entre a vida e a morte. Por exemplo, na
crônica em que Tsukyoshi, o Deus-da-Lua, mata a Deusa-do-Al-
imento, de cada parte de seu corpo nascem outros deuses, cada

239
Literatura Japonesa I 2021

um relacionado a um alimento. Assim, a morte gera a vida. Do


mesmo modo, na natureza a morte representa não só um fim,
mas novos começos. Quando uma fruta cai do pé e apodrece,
sua semente volta à terra e dá origem à outra árvore. A natureza
se regenera constantemente, e as pessoas também, transfor-
mando-se. Cada transformação é a morte de quem fomos e o
nascimento de um novo alguém. Quem sabe essas “mortes” não
sejam necessárias para que possam nascer deuses dentro de
nós?

Referência bibliográfica
Ô-NO-YASSUMARO; TONERI. Crônicas do Japão, Nihon-
shoki (720). Trad.: Lica Hashimoto. SESC, São Paulo.

240
徒 然 草
ESSAYS IN
IDLENESS AND
HŌJŌKI
KENKŌ & CHŌMEI
DRIX PICCIONI MARQUES NOGUEIRA
Literatura Japonesa I 2021

Ler a palavra ócio durante o


isolamento da pandemia foi muito
diferente de lê-la em circunstâncias,
digamos, usuais. Sinto que o ócio ag-
ora é tudo, menos ócio — o tempo se
mistura e se sobrepõe a si mesmo em
suas diferentes funções ao longo dos
meses, que parecem vários ao mesmo
tempo que tão poucos.
A delimitação do que é trabalho
e do que é ócio parece tão enevoada quanto o passar dos dias
entre as quatro paredes do meu quarto, que virou meu mundo
inteiro no último ano. Os espaços de estudo e lazer se misturam,
os afazeres e horários também, até que o ócio vira uma ativ-
idade de 24 horas diárias, assim como some completamente,
sem rastros e espaço dentre o que são os deveres do cotidiano.
Desde a primeira menção aos “Escritos do ócio” nas aulas
de literatura japonesa, fiquei instigado a entender que ensaios
poderiam ser escritos sobre algo que, ao longo do tempo, foi per-
dendo o sentido no meu dia a dia. Antes do isolamento, havia
aquela vontade de chegar em casa após o trabalho e o estudo e
aproveitar meus momentos em frivolidade. Agora, essa sepa-
ração se perdeu, e eu não consigo catalogar nada do que escre-
vo como do ócio.

242
Literatura Japonesa I 2021

Yoshida Kenkô, em suas centenas de passagens registra-


das, levou-me por pensamentos e questionamentos. Alguns
deles eram quase cômicos, porque nada tinham a ver com a
minha situação atual e eram, literalmente falando dado há
quanto tempo os acontecimentos descritos aconteceram, dis-
tantes demais de mim para que pudesse haver
alguma aproximação. Outros, no entanto, seguem até o mo-
mento em que escrevo essas palavras ressoando na minha ca-
beça.
Muito foi falado sobre o isolamento, sobre a relação com
o mundo material e os apegos que temos aos objetos de valor.
Hoje mais do que nunca essas ideias fazem sentido pra mim,
isolado há mais de um ano e com um quarto que já fora mais
de uma vez limpo numa tentativa de passar o tempo (um ócio,
talvez?).
Senti-me, de muitas maneiras, acolhido entre as palavras
de Yoshida Kenkô. Na incerteza das circunstâncias atuais,
talvez ler algumas palavras positivas sobre o isolamento e o
contato com si mesmo era o que me faltava. O anacronismo dos
ensinamentos é evidente, mas o esforço do autoconhecimento
parece uma atividade universal da experiência humana e, se
devidamente praticada, é adaptável a qualquer época.
Nas palavras do próprio monge cortês, na décima tercei-
ra passagem de seus escritos, “é do mais maravilhoso conforto

243
Literatura Japonesa I 2021

sentar-se a sós sob uma lanterna, livro aberto diante de si, e


conversar intimamente com alguém do passado que você nun-
ca conheceu”1(Tsurezuregusa, 1330-1332).
São Paulo, 11 de Julho de 2021.

Referência Bibliográfica:
YOSHIDA, Kenkô. Essays in Idleness. In: KAMO NO, Chômei;
YOSHIDA, Kenkô. Essays in Idleness and Hōjōki. Traduzido por
Meredith McKinney. Londres: Penguin Books, 2013. Acesso em:
11 de Julho de 2021.

244
フ ル ー ツ
バ ス ケ ッ

FRUITS BASKET

奈 月
Natsuki Takaya

高 屋
GIOVANNA MARQUES BALASCO
Literatura Japonesa I 2021

Entediada em mais um dia de pandemia, as festas de ano


novo já tinham ocorrido e janeiro estava chegando na metade.
O clima quente de verão tornava os dias incrivelmente longos e
as noites piores ainda. De férias da faculdade e sem muitas es-
colhas do que fazer para passar o tempo, me dediquei à leitura de
alguns livros da minha mãe que ela tinha guardado no armário,
sendo esquecidos aqui em casa e que eu ainda não tinha dado
chance de talvez me entreterem. Porém, logo descobri o motivo
de terem sido colocados no armário. Entediada mais uma vez,
resolvi voltar para minha rotina de infância e ler algum mangá.
Rolando pela longa lista e um site de mangás qualquer, nada
chamava minha atenção. A maioria dos nomes ali listados ou
não pareciam ser interessantes o suficiente ou não estavam
completos, o que era um item necessário para mim na época.
Após várias e várias páginas, meu olho brilhou e parei de res-
pirar por poucos segundos quando encontrei o título do mangá
que gerou um dos animes favoritos de minha infância, Fruits
Basket. Apesar de ser um favorito, nunca tinha lido a obra orig-
inal até o momento, a sensação foi similar com a de encontrar
um velho amigo depois de anos sem nos vermos, sensação que
foi aumentada pelas minhas memórias de criança de ir visi-
tar minha tia e conversar com minha prima mais velha sobre
vários animes e mangás, Fruits Basket sendo um deles e uma
recomendação dela também.

246
Literatura Japonesa I 2021

Sabia que ele tinha ganhado uma nova adaptação recente-


mente e decidi ler antes de assistir os episódios já lançados até
o momento. Não demorou para que essa minha decisão tenha
se mostrado uma ótima escolha de leitura no meio dos meus
dias longos de pandemia e verão. Apesar de uma história bem
simples em um primeiro momento, a forma como cada person-
agem é desenvolvido me fez ficar apegada a cada um deles pro-
fundamente em um curto espaço de tempo.
Se você pesquisar hoje, muito provavelmente vai encontrar
um pequeno resumo dizendo que Tohru Honda, a personagem
principal, é uma garota no ensino médio que recentemente
perdeu a mãe e está morando em uma pequena tenda no meio
da floresta para não incomodar seus poucos outros familiares,
até que sua situação precária acaba sendo descoberta por Yuki
Sohma, o garoto mais popular da sua escola, e Shigure Sohma,
parente de Yuki responsável por ele, e eles então a chamam
para morar na casa deles. Entretanto tudo muda de rumo quan-
do Kyo Sohma invade a casa querendo brigar com Yuki. Tohru,
tentando impedir a briga, escorrega e cai em cima de Kyo, reve-
lando o grande segredo da família Sohma: que alguns indivídu-
os se transformam no animal do seu zodíaco chinês correspon-
dente quando abraçados por alguém do gênero oposto.
Tendo essa pequena descrição como base, é fácil, e eu di-
ria até lógico, de certa maneira, supor que esse seja um anime

247
Literatura Japonesa I 2021

de comédia ou até “bobinho”. No entanto, a autora desenvolveu


cada personagem ao longo dos capítulos adicionando camadas
de profundidade na história com maestria, sem deixá-la ar-
rastada ou deixando o leitor frustrado. Não somente isso, mas
vários personagens menores e secundários também são desen-
volvidos a ponto de ultrapassar as expectativas iniciais.
Vários pontos da história também vão contra o que é mostra-
do em vários outros animes, como o clichê do triângulo amoro-
so e o modo como o famoso episódio da praia, que grande parte
dos animes tem, é desenvolvido, sendo transformado em um
arco principal para o desenvolvimento da história, tendo vários
capítulos que, com certeza, irão prender a atenção e arrancar
suspiros ou até lágrimas de quem os ler.
Com o custo das versões físicas dos mangás, a mistura de
emoções - por não poder ter comprado os mangás - é difícil
de ser descrita, já que por um lado a oportunidade de me de-
leitar em virar cada página teria sido incrível e tornado a im-
ersão muito maior, mas sei que com certeza teria estragado
pelo menos metade de todos os volumes com minhas lágrimas.
Nem sempre foram lágrimas de tristeza, várias vezes foram
lágrimas de felicidade, ternura e amor, algumas até foram fru-
to de minhas próprias lembranças de capítulos anteriores e o
sentimento de orgulho por ver o quão longe certos personagens
tinham chegado, ver o tanto que eles tinham crescido e mudado

248
Literatura Japonesa I 2021

como “pessoas”.
Fruits Basket não é somente uma mangá, foi uma experiên-
cia maravilhosa que tive o prazer de viver esse ano. Tenho para
mim que isso é mais que uma recomendação, é um presente
que eu estou dando para que uma outra pessoa também pos-
sa sentir a mesma alegria na leitura. A maneira com que a
história avança e é desenvolvida é feita de uma maneira sem
igual, demonstrando em cada página, painel e traço o amor
que a autora e equipe de publicação teve por cada aspecto do
mangá, impossibilitando não derramar ainda mais lágrimas
ao terminar de ler.
Se começar a ler foi como reencontrar um velho amigo, con-
cluir a leitura foi como dizer adeus a esse amigo, não sabendo
quando vocês iriam se ver novamente, com a persistente sen-
sação de tristeza e amargor da despedida manchando a enorme
alegria que o encontro trouxe.
Me aproveitando do clima frio vivido pela maioria dos
alunos, a montanha russa de emoções que esses 106 capítulos
e 12 volumes me fizeram passar não pode ser totalmente de-
scrita sem que eu reforce mais uma vez o quanto eu recomendo
esse mangá, então irei instigar a curiosidade dos leitores desta
minha recomendação por meio de uma simples pergunta, que
é talvez o maior marco da história para qualquer um que já leu
Fruits Basket: quando a neve derrete, no que ela se torna?

249
Literatura Japonesa I 2021

Espero que todos tenham uma leitura tão prazerosa e emo-


cionante como foi para mim.

250
旅 猫 リ ポ
RELATOS DE UM
ー ト
GATO VIAJANTE
Hiro Arikawa

有 川 浩
IARA PINHEIRO
Literatura Japonesa I 2021

Durante a quarentena, devo admitir, me tornei mais sed-


entária do que me encontrava antes dessa situação. E não só
fisicamente, acho que me esforçava apenas para acompanhar
as aulas da faculdade e entregar tarefas nos prazos estabeleci-
dos no meu estágio; não me sobrava ânimo para mais nada.
Nesses momentos em que me encontrava no mais puro ócio,
apenas rolando o feed do Instagram, me deparei com uma post-
agem sobre um livro da literatura japonesa que possuía muitos
comentários positivos em relação à obra; aquilo me despertou o
interesse quase que instantaneamente. Já havia tentado entrar
no mundo da literatura nipônica anteriormente, quando come-
cei a ler Um artista do Mundo Flutuante, do autor nipo britânico
Kazuo Ishiguro, mas acredito que não era o momento certo para
ler um livro com tamanha carga emocional, o que me fez afas-
tar um pouco desse mundo maravilhoso.
Mas, retornando ao livro: Relatos de Um Gato Viajante me
chamou a atenção primeiramente pelo título. Embora nunca
tive gatos devido à rinite da minha irmã, sempre tive muito
apreço e vontade de ter um para chamar de meu. Decidi embar-
car nessa viagem com o tal gato viajante.
Foi uma aventura; ler um livro narrado por um gato era algo
inédito. Nana, que tem esse nome porque seu rabo lembra o
número sete, tem uma personalidade sarcástica, mas, ao mes-
mo tempo, cativante e, Satoru, seu dono, é uma pessoa doce e

252
Literatura Japonesa I 2021

apaixonada por gatos, que faria de tudo pelo seu amigo.


Satoru foi comprar a passagem no terminal da balsa e voltou com o

rosto corado. — Ai, passei vergonha… Disseram que você não conta como

passageiro. Ao preencher o formulário, ele tinha escrito meu nome como

passageiro. Quando o pessoal do guichê descobriu quem era o tal “Nana

Miyawaki (seis anos)”, eles caíram na risada. Às vezes Satoru é comple-

tamente sem noção.

Hiro Arikawa criou uma obra emocionante e de grande


aprendizado. Ao ler, tive a sensação de que fazia a viagem dos
dois companheiros junto com eles pelo Japão: ouvi os rugidos
dos mares que amedrontaram Nana; presenciei a imponência
do Monte Fuji, o triângulo que parece crescer para cima de nós;
o tapete branco que cobria Hokkaido até se perder de vista.
A van que percorreu a terra do sol nascente de ponta a ponta
também foi meu refúgio pelos breves dias em que li e participei
desse universo.
De todos os momentos, o que mais me marcou foi quando
Nana aprende sobre a cor vermelha:
Satoru ia me contando o nome de todas as plantas. Também apren-

di com ele que os frutinhos das sorveiras são de um vermelho intenso.

Certa vez, vi na televisão uma pesquisadora falando que “os gatos têm

dificuldade para distinguir a cor vermelha”, mas, ao ver as sorveiras,

Satoru comentou que os frutos estavam bem vermelhos, e assim eu

aprendi como é essa cor. Quer dizer, talvez a gente enxergue de jeitos

253
Literatura Japonesa I 2021

diferentes, mas eu aprendi como vejo o que Satoru chama de “vermelho”.

— Aqueles ali ainda não estão com as cores tão vivas…

Com certeza, Nana jamais se esqueceria dos tons de ver-


melho que aprendeu com seu fiel companheiro Satoru.

São Paulo, 06 de julho de 2021.

Referência bibliográfica
Arikawa, H. (2017). Relatos de Um Gato Viajante (1 ed.). (R.
Khol, Trad.) Rio de Janeiro: Alfaguara.

254
タ ー ダ
ア フ
ク ア フ
ー ク
APÓS O
ー ダ ー

ANOITECER
Haruki Murakami
ISABELA KASHIMA

村 上 春 樹
Literatura Japonesa I 2021

Foi em meio à pandemia de coronavírus que me vi cercada


pelo mundo virtual, as aulas da faculdade se tornaram remotas,
as relações que antes tinha foram restringidas à mensagens por
aplicativos e discursos sobre produtividade predominavam no
meio. Fomos engolidos pelo imediatismo e preocupações com
prazos, além das notícias nada animadoras sobre a situação at-
ual. Nesse período, resgatei alguns livros das prateleiras em-
poeiradas do meu quarto em São Paulo e os trouxe para a casa
dos meus pais durante o isolamento social, entre estes livros
estava Após o anoitecer de Haruki Murakami, me permiti igno-
rar a cobrança de me limitar a leituras acadêmicas e embarquei
em mais uma releitura da obra.
A trama se passa em apenas uma noite, em que acom-
panhamos os misteriosos acontecimentos na vida das irmãs
Asai, como espectadores de uma câmera, que intercala entre
cenários da ordem da consciência e do onírico. Mari Asai vira
a madrugada acordada, na agitação da vida noturna no centro
da cidade, enquanto sua irmã, Eri Asai, jaz adormecida há dois
meses, sua condição insere o aspecto místico e do desconhe-
cido na narrativa. A noite parece interminável e há nela a sus-
pensão das fronteiras entre o real e o fantástico.
Ao ler as detalhadas descrições do autor, pude ver as cenas
se desenrolarem diante de meus olhos, e a partir delas notei
semelhanças ao meu redor. Antes, por estar muito presa a tudo

256
Literatura Japonesa I 2021

que acontecia on-line, deixei de reparar no que estava à minha


volta e viver o presente. Durante uma noite insone, o livro tor-
nou-se meu refúgio, isolada em minha casa com uma família
grande, o silêncio estrondoso da madrugada me acalmou. Me
vi acompanhando Mari lendo solitária em uma mesa no Den-
ny’s, como uma pintura de Edward Hopper. Quando já aman-
hecia, e o livro acabava, ouvia a cidade acordando junto do que
era descrito, apesar do silêncio da madrugada ainda ser denso,
podia ouvir o eco de carros e caminhões passando pela rodovia
mais próxima, alguns pássaros já cantavam e louças tiniam na
casa ao lado.

O novo sol irradia uma nova luz na cidade. Os vidros dos prédi-
os brilham, ofuscando os olhos. Não se vê nenhuma nuvem no céu.
A única coisa que vemos é uma camada de poluição na linha do
horizonte. A lua crescente se transformou num monólito de branco
silêncio a flutuar no céu do leste, como mensagem distante e esque-
cida. [...] Enquanto isso, as ruas entre os edifícios ainda estão envol-
tas numa sombra fria. Nessas ruas ainda restam, intocadas, muitas
das lembranças da noite que se foi. (MURAKAMI, 2009).

Isabela Kashima
Votuporanga, 29 de julho de 2021

Referência bibliográfica
MURAKAMI, Haruki. Após o anoitecer. São Paulo: Alfaguara,
2009. Tradução de: Lica Hashimoto.

257
間 失 格
DECLÍNIO DE UM

HOMEM


Osamu Dazai

太 宰
JOÃO PEDRO BOECHAT PEREIRA
Literatura Japonesa I 2021

Logo de início, o romance anuncia a tragédia da vida do pro-


tagonista. Desde a infância, Yozo já se percebia como alguém
que era, essencialmente, diferente dos demais colegas. Ele de-
screve o seu sentimento de não-pertencimento e a angústia de
não conseguir se conectar àqueles que o rodeiam, bem como
começa a nutrir uma sombra que repudia a si mesmo.
Imagino que todos aqueles que já se sentiram deslocados
do meio em que se inserem já, em algum momento, experi-
mentaram semelhante angústia. Ainda, se considerarmos a
importância que a cultura japonesa confere às relações inter-
nas entre os membros do grupo – うち –, acredito que a inad-
equação de Yozo tenha mais uma camada de rejeição se com-
parada à de uma criança ocidental.
O fato de não se sentir capaz de criar bons laços com os
colegas da escola, com os membros da própria família e, em
última instância, com a sociedade como um todo acompanha
alguns questionamentos existencialistas que me chamaram
especialmente a atenção, como:

“O receio de que a minha noção de felicidade estivesse total-


mente em desacordo com a noção de felicidade do resto das pes-
soas fazia com que, noite após noite, eu me revirasse de um lado
para o outro na cama, gemendo, quase a ponto de enlouquecer. Será
que eu era feliz? ”

Tenho certeza de que não só eu, mas também muitas out-


ras pessoas já se perguntaram algo parecido. Afinal, o que é a

259
Literatura Japonesa I 2021

felicidade? O que me espanta são aqueles que passam a vida in-


teira sem se questionar se são felizes... Mas, ao mesmo tempo,
indago-me se, talvez, a felicidade não seria um sentimento tão
individual e subjetivo que, para alguns, não pensar sobre isso
seja, em si, a sua própria maneira de ser feliz. De todo modo, a
trajetória do protagonista parece nos presentear com uma dica
para responder essa pergunta tão capciosa: a vida de Yozo, por
se desenrolar no vetor contrário ao do que se espera de uma
vida feliz, ilustra o que seria uma não-felicidade, constituindo
um bom contra-exemplo para nós leitores.
Uma coisa que aprendi com a Lica-sensei, para além do ri-
quíssimo conhecimento acadêmico, foi, em primeiro lugar, ou-
vir o que eu sinto sobre a obra que acabei de ler. Despojado de
qualquer referência teórica, terminei a leitura de “Declínio de
homem” horrorizado com o grotesco que se constrói ao longo da
narrativa, mas foi depois de pesquisar sobre a vida e literatura
de Osamu Dazai que descobri que esse é um romance autobi-
ográfico, isto é, cenas horríveis, como a tentativa de suicídio du-
plo com a namorada, são representações literárias de experiên-
cias vividas pelo autor.
Recordo-me da tristeza, pena e melancolia que preencher-
am meus pensamentos naquela noite. Seria mais fácil ignorar
o que li se eu soubesse que tudo aquilo não passava de ficção,
mas o elemento autobiográfico me colocou num estado de ter-

260
Literatura Japonesa I 2021

ror. Foi difícil dormir.


Ao estudar um pouco mais, admirei a coragem de Dazai ao
saber que ele foi um dos escritores que, em meio a um Japão
extremamente militarizado, em que a censura era a regra e a
violência era institucionalizada, utilizou o gênero do Watakus-
hi Shousetsu para criar, de forma velada, a sua oposição ao sis-
tema autoritário da época. Ao centrar a sua narrativa em fatos
da sua vida pessoal e parodiar os romances europeus introduz-
idos na época, Osamu Dazai conseguiu construir a sua crítica
ao Japão de seu tempo por meio desse dialogismo e intertextu-
alidade.
Neste primeiro semestre de 2021, após cursar as disciplinas
de literatura japonesa I, com a professora Lica, e V, com a pro-
fessora Neide, meu interesse especial pela literatura japonesa
moderna se intensificou. Para mim, é incrível como os autores,
a partir da era Meiji, conseguiram combinar a tradição estéti-
ca milenar da literatura japonesa clássica com as referências
europeias que foram introduzidas no cenário artístico japonês.
A partir de agora, espero continuar estudando e lendo obras
da literatura japonesa que me despertem ricas reflexões, assim
como foi com o romance “Declínio de um homem” de Osamu
Dazai.

João Pedro Boechat Pereira

261
十 夜
DEZ NOITES DE

SONHO


Natsume Sôseki

夏 目 漱
LAURA CAMACHO DE AZEVEDO
Literatura Japonesa I 2021

Confesso que esta obra foi meu primeiro contato com este
escritor, embora já estivesse ciente de sua fama. Ao iniciar a
leitura, seguindo as ordens cronológicas das Noites, senti-me
um tanto atordoada e perturbada pela falta de lógica que as
histórias apresentavam. Isso me ocorreu até chegar a Sétima
Noite, cuja história era de uma lógica tremenda para mim.
Não... pensando melhor, não acho que a palavra correta seja
essa, pois compreende-se a lógica na mente e eu compreendi
essa história em meu espírito.

Logo na primeira frase, fiquei intrigada com a ambien-


tação, um navio no meio do mar. Embora tal cenário já tenha
sido exaustivamente utilizado, o mar sempre guardou e ainda
guarda imensos mistérios para o ser humano, cuja natureza é
investigá-los para ter controle sobre eles. O interessante aqui
é, portanto, o narrador-protagonista não ter controle algum da
situação. Ele não sabe como chegou ao navio, o porquê de estar
nele e, sobretudo, desconhece seu destino, fato que o incomoda
profundamente.

De súbito, senti que este navio era a vida.

E quanto mais o narrador parecia contar-me sobre o navio,


mais me convencia disso. O navio aparentava perseguir o sol

263
Literatura Japonesa I 2021

que ia para o oeste, mas ao perguntar sobre isso, recebeu uma


outra indagação: “O sol indo para o oeste, seu limite é o oeste?
”¹. Isso suscitou outros questionamentos em minha mente. A
luz é perseguida pela vida (e por aqueles dentro dela)? E o que
representa a luz? Seria o que motiva a seguir em frente? E seria
esse o limite?

Tais são apenas reflexões com respostas individuais ou até


sem respostas; o que pode ocasionar em insegurança, exata-
mente o mesmo sentimento do narrador em diversas ocasiões.
“Senti-me extremamente inseguro. ” / “Fiquei extremamente
inseguro”¹. Logo ele percebe outros passageiros, estrangeiros,
com inúmeras feições, o que não ajuda a confortá-lo. Também
na vida há diversas pessoas que interagem entre si, estranhos
que se tornam conhecidos e conhecidos que se tornam estran-
hos.

Numa certa noite, o narrador ouve um homem a falar com


ele sobre astronomia e pensa não haver necessidade de se con-
hecer coisas como essa. Tal me fez refletir sobre como o ser
humano se sobrecarrega com estudos, planos e carreiras, mar-
ginalizando coisas realmente importantes como o presente, o
bem-estar individual e o daqueles com quem ele se importa.

264
Literatura Japonesa I 2021

Conforme a narrativa segue, o narrador fica cada vez mais


entediado e pensa diversas vezes em morrer, até que final-
mente: “(...) decidi-me que morreria”¹. É curioso notar que, em
algumas ocasiões que ele descreve a cor das ondas, elas são
verdes que se tornam um rubro enegrecido, de um azul infinito,
violetas ou brancas. Mas, quando o narrador está para cair na
água elas são negras.

A vida havia se tornado preciosa.

“Enquanto isto, o navio se distanciava soltando como sempre sua

negra fumaça. Mesmo desconhecendo o destino do navio, reconheci

pela primeira vez que certamente teria sido muito melhor se tivesse

continuado nele; no entanto, (...) levando comigo um arrependimento e

temor infinitos, caía silenciosamente em direção às ondas negras. ”¹

O navio segue seu rumo, assim como a vida, não im-


portando quem se vá. Embora não se tenha certeza de seu des-
tino, ainda assim parece-me melhor aproveitar os momentos
que há da forma mais satisfatória possível e partir quando for a
hora certa.

A Sétima Noite é um texto curto, mas que apresenta uma


das principais características da literatura japonesa: a conden-

265
Literatura Japonesa I 2021

sação. Suas poucas palavras foram como um cascalho jogado


no lago de meu espírito, que repercutiu em diversas oscilações
de contemplação.

Isso foi o que senti.

Mas talvez tudo não tenha passado de um sonho sem sen-


tido.

Referência Bibliográfica
¹SÔSEKI, Natsume. Dez Noites de Sonho. In: Geny Wakisaka
(Org.). Contos da Era Meiji. São Paulo: Centro de Estudos Japon-
eses, 1993, p. 103-105.

266
雪 国
O PAÍS DAS
NEVES

康 成
Yasunari Kawabata

川 端
LUIZA ANSELMI CANTONI
Literatura Japonesa I 2021

Em meio à loucura atual devido à pandemia, somada ao fi-


nal de semestre do ensino à distância (EAD) e ao home-office,
encontrei-me sem motivação nenhuma em meu cotidiano. Mal
conseguia ler ou ver animes, que eram meus grandes hobbies,
muito menos estudar. Forçada a focar nos trabalhos da facul-
dade, finalmente me encontrei perdida entre as leituras diver-
sas, deparando-me com as obras de Kawabata, famoso escritor
japonês que fora vencedor, inclusive, do prêmio Nobel de Liter-
atura.
Foi maravilhoso sentir novamente o prazer da leitura em
meu cotidiano um tanto cinzento. Após ler clássicos como a
Dançarina de Izu e a Casa das Belas Adormecidas, a obra que
mais me chamou atenção neste momento foi o País das Neves.
Uma obra um tanto monótona e monocromática – repleta de
branco, como estava minha vida.
Com diversas passagens um tanto inquietantes, o livro me
incomodou bastante, ao ponto de me tirar de minha zona de
conforto. A relação entre as personagens principais me pare-
cera bastante tóxica, me indignando e trazendo tons avermel-
hados para minha vida até em tão cinza. Digo tons avermelha-
dos, pois inicialmente o que mais senti foi irritação por conta
do modo com que Komako se portava – dizendo uma coisa,
sentindo outra e agindo distintamente.
Creio que a obra pode ser interpretada como um triângu-

268
Literatura Japonesa I 2021

lo amoroso duplo, já que envolvia Komako, Yoko e a esposa de


Shimamura. Portanto, a personagem principal possuía o triân-
gulo amoroso “esposa, Komako e ele” e o outro “Komako, Yoko
e ele”. Apesar de Shimamura descrever certo desconforto em
relação à Yoko, é inegável que tinha um grande interesse por
parte dele atrás de sua máscara de incredulidade, por isso con-
sidero que ela tomara parte no romance da personagem, inclu-
sive gerando ciúmes em Komako. A aflição desta situação con-
strangedora de duplo triângulo amoroso termina, obviamente,
em catástrofe com a morte de Yoko em um incêndio. O final
desta situação não traz alívio, mas pelo contrário, aumenta a
angústia e a inquietação, tanto do leitor, quanto de Shimamura.
Um fato engraçado, é que a obra se inicia com a person-
agem fugindo de sua vida e de seu mundo para o País das
Neves. Shimamura o faz por meio de um trem, que após cruzar
um certo túnel, encontra-se em um local totalmente tomado
pela neve e por sua candura. Digo que isto é cômico, pois a obra
serviu como uma passagem mágica para mim também, porém
em vez de me trazer brancura, trouxe-me as cores novamente.
Nunca estive tão alheia às leituras e estudos como estou agora.
Me sentia estagnada em tudo, pequena, miúda, inexistente.
Shimamura trouxe reflexões sobre tais sensações ao de-
screver a vida dos insetos. Neste primeiro momento, ele os com-
para com os humanos. Ao reparar que apenas a mudança de

269
Literatura Japonesa I 2021

estação impacta deveras na vida dos insetos, gerando a morte


de diversos espécimes até seu renascimento no próximo ciclo
anual, a personagem atenta para o fato de que mesmo tendo
vidas “insignificantes”, os insetos tentam se agarrar a ela, com
um último espasmo de esperança antes de ficarem imóveis.
Porém, ao meu ver, no final da obra existe uma conexão
com este trecho, gerando uma contemplação muito maior do
que apenas isso. Shimamura acaba por comparar os insetos e
os humanos com a grandiosa Via Láctea, trazendo um senti-
mento de pequenez e fragilidade imensuráveis, ao ter o seguin-
te pensamento:
“A Via Láctea... e ao contemplá-la também Shimamura
teve a impressão de nadar dentro dela, de tal modo a sua fos-
forescência lhe parecia próxima. Era como se ela o tivesse as-
pirado para junto de si. Teria sido sob a impressão desta im-
ensidade esplendorosa, deslumbrante, que o poeta Bashô a
descrevera como um arco de paz sobre o mar enfurecido?”
Afinal, como comparar o grandioso universo que basica-
mente não considera o tempo para si, com um mero inseto que
vive apenas 24 horas? Creio que com este pensamento, das
duas uma: ou a personagem sentiu-se parte de algo maior que
ela, tendo certo alívio ou sentido em viver, ou reconheceu-se
completamente inexistente e só.
Apesar de a obra focar-se aparentemente nos triângulos

270
Literatura Japonesa I 2021

amorosos, em minha opinião ela revelou-se extremamente pro-


funda, abordando temas como: sentindo da vida, universo e ex-
istência. Tal abordagem conseguiu me trazer sensações inqui-
etantes que, como disse anteriormente, me trouxeram à vida
novamente. A agonia da incerteza e da inconstância, o receio
pelo fim, as motivações para viver... Todas as reflexões que o
livro País das Neves trouxe para mim me salvaram em meio
a uma situação que não conseguia superar sozinha, nem com
ajuda de amigos e familiares. Sim, um mero livro tem muito
poder e consegue trazer sentimentos reais, por meio de pala-
vras simples e singelas.

São Paulo, 11 de julho de 2021

271
蜘 蛛 の 糸
O FIO DA
ARANHA
Ryūnosuke Akutagawa


MARIANA SOMERA

芥 川 龍
Literatura Japonesa I 2021

O conto “O fio da aranha” [Título original: 蜘蛛の糸 (kumo


no ito)] (1918), de Ryūnosuke Akutagawa, foi publicado pela
primeira vez na Revista Pássaro Vermelho (Akai tori) em 1918, e
se encaixa em uma das divisões possíveis da obra de Akutaga-
wa: se trata de uma Rekishimono (coisas da história) ou, mais
precisamente, uma Kurishitanmono (coisas cristãs). Sendo as-
sim, traz um inegável fundo religioso tanto na caracterização
da história (personagens, enredo, cenário em que a história se
passa) quanto na escrita em si, ainda mais por se basear em
uma narrativa setsuwa budista.
Dado que o texto se baseia em outra obra, creio que não há
como não mencionar a antiga narrativa no qual Akutagawa se
debruçou para escrever este conto se o objetivo é realizar uma
boa e profunda leitura. Após ler algumas das narrativas, a que
mais se assemelha é a história do Tomo XVII, intitulada “So-
bre o homem que comprou uma tartaruga, libertou-a e foi salvo
pelo Jizō”, onde um homem de mesmo nome (Kandata) resgata
uma tartaruga que seria morta por um pescador e, após a morte,
por sua compaixão, é recompensado com um retorno ao mundo
dos vivos.
A intertextualidade é uma característica recorrente nas
obras de Akutagawa, e o manejo com que ele trabalha as obras
nas quais se baseia é impressionante. Embora seja, de certo
modo, fácil detectar as semelhanças entre as narrativas, as dif-

273
Literatura Japonesa I 2021

erenças entre as mesmas é o ponto onde o autor brilha.


Para citar algumas, pode-se apontar que, enquanto a tar-
taruga se apresenta como uma criança monge e relata o ato de
bondade para o oficial que leva Kandata, na narrativa aqui ana-
lisada Buda tem acesso a memórias da vida daquele homem
assim que o encara, e a aranha do paraíso não se apresenta
como a mesma salva pelo delinquente. Pode-se concluir, então,
que Buda é uma entidade onisciente de certa forma, além de
piedosa. Além disso, a descrição do submundo onde se encon-
tra o Lago de Sangue é feita de maneira muito mais explícita e
detalhada na escrita de Akutagawa.
Ambas as narrativas parecem carregar a mesma “lição
moral” de que, se uma pessoa cometeu diversas atrocidades e
não tiver a motivação interna de mudar, um único ato de bon-
dade não compensará todo o mal causado. O Kandata que sal-
vou a aranha, no fim, mantinha a mesma mentalidade egoísta
pela qual era castigado, e Buda reconhece isso com tristeza no
fim do conto. Embora seja questionável o porquê do Kandata
que salvou a
tartaruga na setsuwa de base ir parar em um lugar onde
haviam onis e pessoas amarradas1, ele se mostrou tomado por
compaixão em mais de uma situação, o que lhe garantiu o per-
dão. Nota-se, assim, uma possível e sutil crítica à mentalidade
religiosa de que, uma vez que se admite seus pecados e tem

274
Literatura Japonesa I 2021

um ato de bondade, a pessoa já está salva. O cinismo quanto a


essa questão se apresenta bem evidente ao longo do conto “O fio
da Aranha’’, tanto pela narrativa em si (onde no fim o homem
não teve uma real mudança) quanto na escrita detalhista de
Akutagawa. Achei interessante notar, também, a diferença na
passagem do tempo: enquanto na narrativa antiga da tartaruga
os acontecimentos se passam no tempo de três dias humanos,
dando um grande peso (e me recorda da ressurreição de Cristo)
ao retorno de Kandata, no conto de Ryûnosuke não se passam
mais do que algumas horas no tempo do paraíso, sendo que o
homem já havia escalado metade do percurso declaradamente
longo quando o fio se rompeu.
Embora ambas as narrativas carreguem uma mensagem
semelhante, o texto de Akutagawa me parece exprimir não só a
visão do autor e sua interpretação dos acontecimentos, ao invés
de simplesmente repassar a mensagem budista, mas também
carrega um fator muito mais humano no corpo do texto. Uma
das características marcantes da escrita do autor se trata do
questionamento da natureza humana, da feiura do egoísmo hu-
mano, e essa característica me é bem evidente neste conto.
Mesmo a intertextualidade sendo forte e demandando uma
leitura do setsuwa que servira de inspiração para melhor com-
preender o conto, “O fio da Aranha” carrega um caráter muito
singular e intenso e pode muito bem ser aproveitado por si só.

275
Literatura Japonesa I 2021

Baseado em uma história que serve para ensinar a compaix-


ão a quem ler ou ouvir, este conto também carrega uma men-
sagem muito importante de que buscar a vantagem sobre os
outros não levará a lugar nenhum, e de que infelizmente há um
lado muito ruim na natureza humana que, caso seja prevalente
na vida de uma pessoa, um único ato bondoso não compensará
o estrago que ela causou se ela não desejar mudar. É um conto
forte, detalhista e profundo que, por fim, apresenta grandes car-
acterísticas da genialidade de Ryûnosuke Akutagawa.

REFERÊNCIAS
AKUTAGAWA, Ryûnosuke. Contos fantásticos. Tradução
Diogo Kaupatez. Editora Z, 2003 - São Paulo. Konjaku Monoga-
tarishu : narrativas antigas do Japão [recurso eletrônico] / or-
ganizadoras: Neide Hissae Nagae, Olivia Yumi Nakaema. -- São
Paulo : FFLCH/USP, 2018. 3.014Kb ; PDF. ISBN: 978-85-7506-318-
7; DOI: 10.11606/9788575063187

1“[...] Diante dos portões, podia-se ver um jardim onde havia várias

pessoas amarradas. [...] Durante a volta, avistei uma bela jovem de vinte

anos, amarrada e sendo conduzida aos açoites entre dois oni.” - Kon-

jaku Monogatarishu : narrativas antigas do Japão [recurso eletrônico],

pgs.112-113. 2018.

276
十 夜
DEZ NOITES DE

SONHO

漱 石
Natsumi Soseki

夏 目
MATHEUS DE SÁ
Literatura Japonesa I 2021

“Eu tive este sonho:”


O escritor Natsume Sôseki, de 25 de julho a 5 de agosto, em
1908, com o Japão no final do Período Meiji, brindou os leitores
do jornal Asahi Shimbun (朝日新聞) com dez narrativas com-
plexas e intrincadas, que revelam diversas questões do incon-
sciente humano. Afinal, qual é a pessoa que nunca acordou e
conversou com alguém:
“Nossa, eu tive um sonho tão estranho nessa noite… Posso
te contar?” E é curioso como nossas vidas estão repletas de co-
incidências. No dia 29 de abril desse ano, ficamos sem energia
elétrica aqui em casa durante o período da tarde e da noite.
Eu e minha esposa, Sophia, tivemos a ideia de usar o laptop
para passar o tempo, assistindo a um dos filmes que, surpreen-
dentemente, ainda temos uma cópia de DVD. Esse filme era
Dreams2 (夢), uma obra do também japonês Akira Kurosawa.
Foi escolhido completamente ao acaso, mas a temática, e até
mesmo a estrutura do filme, fizeram com que o texto literário,
estudado nas aulas de 10 e 17 de junho, ecoasse muito mais
profundamente em mim.
Acontece que ambas as obras apresentam uma estrutura
episódica: enquanto que “Dez noites de sonho” traz dez pe-
quenas narrativas oníricas, Dreams traz oito pequenas narra-
tivas. E, embora essa diferença de dois sonhos quebre a semel-
hança entre as duas obras, a forma com que ambos os autores

278
Literatura Japonesa I 2021

abordam os sonhos (no filme, dizem que os sonhos são do dire-


tor Akira Kurosawa), mostram um trabalho primoroso de res-
gatar a memória do Japão, ao passo que se valem dos sonhos
para nos apresentarem reflexões sobre temas muito complex-
os.
Nas noites de sonho, temos: saudade, amor e morte (primei-
ra noite de sonho); honra, respeito e seppuku (segunda noite de
sonho); remorso, abandono e trauma (terceira noite de sonho);
desilusão e engano (quarta noite de sonho); amor, infortúnio e
o desconhecido (quinta noite de sonho); arte e dedicação (sexta
noite de sonho); desesperança, tristeza e solidão (sétima noite
de sonho); tempo, alienação e passiv idade (oitava noite de son-
ho); guerra e perda (nona noite de sonho); e propósito e ócio
(décima noite de sonho).
Já nos oito sonhos de Kurosawa, temos: infância, respeito,
responsabilidade e sepukku (primeiro sonho); beleza, saudade
e tristeza (segundo sonho); medo, morte e consciência (terceiro
sonho); guerra, remorso e trauma (quarto sonho); arte e obsessão
(quinto sonho); medo do novo, da radioatividade e traumas pós
bombas atômicas (sexto sonho); pecado e punição (sétimo son-
ho); e esperança e alívio (oitavo sonho).
Há claras intersecções entre as obras, como é possível notar
ao ler as temáticas aqui citadas, as quais cada um dos sonhos
retratados revela. No entanto, ambos os artistas apresentam,

279
Literatura Japonesa I 2021

também, um modo muito sensível de nos contar a realidade de


suas épocas. Enquanto Natsume Sôseki reflete sobre as desil-
usões que a população japonesa do Período Meiji apresenta-
va, Akira Kurosawa nos mostra como, após a Segunda Guerra
Mundial, retomar uma vida sem traumas foi uma tarefa mui-
to árdua. O medo e o remorso são sentimentos muito fortes, o
que fazem com que pesadelos sejam tão marcantes em nos-
sas vidas. Por outro lado, algumas lembranças são muito mais
doces. Isso ocorre quando nos lembramos de histórias da nossa
infância, ou de amores antigos, como é o caso do primeiro son-
ho do conto e do primeiro sonho do filme. Fica nítida, também,
a sensação de que a nostalgia, por mais que possa fazer com
que fiquemos parados no tempo, como é o caso do vendedor de
peixes na nona noite de sonho, e da vila parada no tempo, no
último sonho retratado no filme, mostra também como, para
seguir em frente, precisamos de tempo para refletir. E, afinal,
os sonhos não servem para isso mesmo?

22 de julho de 2021

280
河 童
KAPPA E O
LEVANTE

龍 之 介
IMAGINÁRIO


Ryūnosuke Akutagawa
MATHEUS GABRIEL TORRES
Literatura Japonesa I 2021

O narrador não-confiável em “No Matagal”

Minha relação com Ryūnosuke Akutagawa começou a


muito tempo atrás, quando eu ainda estava no ensino médio.
Após ler uma série de autores japoneses contemporâneos, es-
tava com uma ânsia por ler mais e por isso acabei fazendo uma
lista com vários nomes (muitos dos quais ainda não li, diga-se
de passagem). Akutagawa estava no meio deles e passou-se
muito tempo sem que eu tenha tocado em qualquer um de seus
contos, apesar de conhecer os pormenores de sua vida graças
algumas pesquisas as quais havia feito. No fim, precisou uma
pandemia e um trabalho de faculdade para que eu finalmente
inicia-se a leitura de sua obra.
Um de seus contos o qual mais gostei foi “No Matagal” (Yabu
no Naka,1922). Fiz sua leitura de forma esparsada, pois desde
que tirei a carteira virei motorista oficial da minha família. Toda
parada que fazíamos, eu pegava-o para continuar sua leitura. A
história é narrada simulando depoimentos de várias pessoas
em relação ao assassinato de um samurai encontrado no mat-
agal. Temos desde o depoimento do lenhador que encontrou o
corpo até mesmo o fantasma da vítima. As figuras centrais são
o samurai em si, a mulher do mesmo e Tajômaru (o suposto as-
sassino). Cada um desses depoimentos possui pontos que con-
tradizem o anterior, a cada página eu não conseguia saber qual

282
Literatura Japonesa I 2021

dessas pessoas estavam falando a verdade. Há também nisso


uma questão interessante que cada ponto de vista carrega con-
sigo as visões da pessoa, como quando a esposa do samurai in-
terpreta seus olhares de forma completamente diferente do que
realmente são. Nem mesmo com o último desses depoimentos,
o espírito da vítima, fiquei seguro de ser a verdadeira versão dos
fatos, pois nela há uma grande subjetividade, já que em seus
momentos finais o samurai sente alguém retirar a adaga de seu
peito, ficando dúbio quem seria essa pessoa é o Tajômaru ou a
esposa do homem.
Ainda assim, mesmo com seus depoimentos parcialmente
falsos, cada um deles, simulando ou não as emoções que ex-
primiam me fizeram refletir sobre algo. Tajômaru, por exem-
plo, falou sobre o motivo do destino do samurai, a ganância. O
único motivo para que ele acompanhasse o ladrão para dentro
do matagal era a promessa de encontrar tesouros: “Contei essa
história ao homem, e vi que despertei sua cobiça. Depois-ve-
de o que faz a ganância-, em menos de uma hora o casal já se
achava comigo a caminho da montanha.” (Yabu no Naka,1922).
Fiquei refletindo sobre esse trecho durante um bom tempo e
como esse mesmo desejo levou tantos homens a destino piores
que o do samurai.
Essa é uma história trágica. As três figuras daquela noite
fatídica tiveram finais horríveis: Tajômaru foi sentenciado à

283
Literatura Japonesa I 2021

forca por seus crimes passados; a esposa vive com a dor daque-
la noite e a culpa; e o samurai, no purgatório, revive a dor e a
tristeza que sentiu até o fim de sua vida. No fim, ainda chocado
ao descobrir quem de fato “matou” o samurai, minha mãe me
apressa para ligar o carro...estamos atrasados, logo o mercado
irá fechar.

Referência Bibliográfica
AKUTAGAWA, Ryûnosuke. No Matagal. In: AKUTAGAWA,
Ryûnosuke. Kappa e o Levante imaginário. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010. p. 287-301. Tradução Shintaro Hayashi.

284
の 細 道
TRILHAS

LONGÍNQUAS

芭 蕉
Matsuo Bashō

松 尾
PABLO OLIVEIRA CAUSO
Literatura Japonesa I 2021

Lembro-me claramente do dia em que, nos primeiros me-


ses de minha graduação, fui despreocupadamente até o Ter-
minal Rodoviário do Tietê esperar o ônibus que semanalmente
me levava de volta à minha casa no interior. Naquele dia eu fui
surpreendido por uma pequena feira de livros que acontecia
no segundo andar do terminal. Com um pouco de tempo livre,
explorei pela pequena seleção de volumes oferecidos e saí de
lá com duas obras: Batman - A Piada Mortal, de Alan Moore,
e Trilhas Longínquas de Oku (Título Original: Oku no Hosom-
ichi), de Matsuo Bashō. Naquele momento, mal conhecia a obra,
e quem era Bashō.
Oku no Hosomichi ficou perdido em minha estante até este
segundo ano de isolamento enfrentado por mim. E motivado
pela faculdade, assim como pelo desejo de ler algo diferente do
que habitualmente leio, devorei em uma única tarde o relato
das últimas viagens feitas por Bashō em sua vida, e visitei jun-
to dele e de seu discípulo, Sora, as terras distantes de um tempo
remoto.
Acompanhado de uma playlist de Koto no youtube, fui jun-
to do autor aos locais que ele mesmo havia conhecido apenas
através da literatura. Desde Edo até Matsushima, e de lá para
muitos outros lugares do norte distante de Honshu. Visitei tem-
plos, montanhas sagradas, locais históricos, povoados e cen-
tros comerciais. Através da poesia de Bashō, senti até mesmo

286
Literatura Japonesa I 2021

o frio vento do outono, e escutei claramente toda a natureza de-


scrita na viagem.
Ao terminar a obra, vieram à minha mente uma série de pen-
samentos. Descobri meu amor por relatos de viagem antigos, e
sobre o quanto descrevem um mundo tão diferente, mas ainda
assim tão semelhante ao atual. O próprio autor visitava locais e
histórias que estavam separados por séculos dele próprio. E eu,
séculos depois, presenciei estes mesmos locais, não de maneira
física, mas como Bashō havia presenciado a princípio, ao ler os
antigos poemas que detalhavam essas terras distantes.
Penso o quanto a nossa percepção sobre o mundo mudou
desde os tempos antigos. A globalização fez maravilhas ao
deixar tudo tão próximo e rápido, mas não deixo de pensar se
não perdemos algo com tudo isso também. A viagem de Bashō
de Edo até Matsushima na obra é de quase um mês, durante o
qual ele visita uma série de locais, e conhece diversas pessoas
e paisagens, e tem várias sensações que, caso fosse de trem (um
trajeto de cerca de 3h), seriam quase completamente perdidas.
É esse olhar próximo, essa lentidão dos acontecimentos,
que deixa a obra tão profunda e tocante para mim, que conto
nos dedos das mãos quantas vezes saí de casa nos últimos dois
anos. As paradas e os curtos poemas feitos em homenagens às
pequenas coisas da viagem dão mais profundidade ainda para
mim, quase como pausas para respirar em meio a leitura, em

287
Literatura Japonesa I 2021

meio a todo o caos que cerca o mundo no presente.


Meu desejo é que, uma vez que esteja livre dessas amarras
que nos prendem em casa, eu vá novamente à uma rodoviária
como a que encontrei este livro, e pela primeira vez em um bom
tempo, não pelo destino, mas pela viagem, de uma boa volta.

Referência Bibliográfica
Bashō, Matsuo. Oku no Hosomichi. Tradução de Meiko Shi-
mon. São Paulo: Escrituras Editora

288
取 物 語
CONTO DO

CORTADOR DE
BAMBU
RAFAEL SCHWARZWALDER
Literatura Japonesa I 2021

A princesa Kaguya não se curva ao desejo de seus pretend-


entes ou de seus pais. É fiel apenas a seu próprio. Enquanto nós
humanos tantas vezes recuamos com medo de nossa própria
potência, a princesa é firme e deixa claro o que quer. Chora, de-
safia e declara abertamente sua raiva para uma sociedade de
sistema hierárquico rígido, tantas vezes atropelador da econo-
mia dos afetos.
Isso é o que mais me chamou a atenção ao ler o Taketori
Monogatari, obra literária do período Heian, quando a língua
japonesa já havia se consolidado em uma forma escrita fun-
cional e o uso do chinês não se fazia mais necessário. Acredi-
to que este famoso conto deva ter sido em outros tempos uma
tradição oral. O caráter de assemblage de seu elenco de perso-
nagens e a maneira mais ou menos episódica com que seus
temas são concatenados deixa pistas de sua construção. Ain-
da, podemos desconfiar que o cortador de bambu tenha sido
recolhido de histórias que circulavam entre os camponeses e
trabalhadores. Afinal, de que outra maneira, sua protagonista
poderia se erguer acima da vontade de príncipes, ministros e
até do próprio imperador?
Eles ficam prostrados sem poder senão acatar, os desejos da
princesa que, assim como uma força da natureza, é incapaz de
trair sua essência, para o bem ou para o mal. Kaguya é apenas
o que é e tentar mudar sua natureza implicaria em sua morte.

290
Literatura Japonesa I 2021

Esse respeito e admiração que normalmente seriam dirigidos


a uma divindade, aqui são direcionados para o desejo de uma
mulher. Fato que me parece extremamente ousado para a época
e o contexto em que esse conto foi produzido.
Gostaria de ter um repertório maior de estudos sociológicos
desse período para saber se os valores retratados no cortador
de bambu tinham algum respaldo em processos reais de uma
sociedade em disputa onde as mulheres mesmo que através da
ficção, afirmavam seu desgosto com o casamento. Afinal, sabe-
mos que na tradição clássica japonesa, foram significativas, a
presença e o prestígio de escritoras.
Diversas vezes olhei para o Japão como um lugar particu-
larmente atrasado no debate sobre igualdade de gênero. No
que diz respeito aos direitos das mulheres, a sociedade japone-
sa parece (pelo menos a um observador externo) trazer a dis-
criminação para dentro de sua cultura de maneira sufocante e
naturalizada. Sei através de reportagens e documentários¹ das
dificuldades que as japonesas têm com a cultura do assédio,
stalking e violência contra a mulher, hiper sexualização da in-
fância e adolescência, discriminação no ambiente de trabalho e
a pressão social para tornarem-se donas de casa e abrirem mão
de suas carreiras profissionais. O cineasta Yasujiro Ozu soube
retratar muito bem em alguns de seus filmes², as pressões que
uma mulher sofre dentro do ambiente familiar e a cultura de

291
Literatura Japonesa I 2021

subordinação ao pai e ao marido. Não que esses fenômenos


representem alguma novidade para nossas militantes do mun-
do ocidental, mas muitas vezes me perguntei se havia alguma
condição específica na cultura japonesa que impedia o femi-
nismo de ter uma disseminação mais efetiva.
Nesse sentido, a princesa Kaguya me surpreendeu apre-
sentando uma figura feminina que não apenas resiste ao des-
tino do casamento forçado como também não se deixa aprisio-
nar pela lógica do ressentimento e recalque do desejo. O conto
de Kaguya é bastante celebrado dentro da identidade cultural
japonesa e dependendo da forma como for trabalhado, traz em
si uma oportunidade fecunda de introduzir o tema da igual-
dade de gênero já no ensino infantil de meninos e meninas.
Agora, tendo tocado em destino e ressentimento, sinto que
devo me explicar. Recentemente li um artigo da professora Ma-
ria Rita Kehl na revista virtual Outras Palavras³ onde ela dis-
cute a predominância de heróis e heroínas ressentidas em cer-
ta produção cinematográfica e as estratégias de identificação
com o público que os roteiristas lançam mão ao escreverem
esse tipo de personagem.
O ressentido é aquele que em nome de uma suposta superi-
oridade moral, não ousa assumir a responsabilidade do próprio
desejo e se exime de confrontar sua vontade com o mundo e
os outros seres desejantes. Volta-se para dentro, recalcando o

292
Literatura Japonesa I 2021

impulso vital e tirando gozo de um processo de auto penitência


que aponta o dedo para o outro (aquele capaz de fruir plena-
mente seu desejo), como seu algoz.
Em determinada altura do artigo “O ressentido e sua estéti-
ca”, a autora faz uma comparação entre uma obra exemplar da
estética do ressentimento, o filme O Piano de Jane Campion,
com uma obra diametralmente oposta do ponto de vista dos afe-
tos, o filme Dead Man de Jim Jarmuch. O protagonista de Dead
Man ao contrário da personagem central de O Piano, ao sofrer
uma reviravolta em sua vida, ao invés de se prender em um cic-
lo melancólico, implica-se em sua situação presente e encara
seu destino na posição de agente. Depois de muitas peripécias
envolvendo seu companheiro nativo americano, esse destino
envolve aprender a morrer.
O que me traz à terceira parte do Taketori Monogatari onde
a princesa Kaguya descobre ser uma habitante do povo da lua e
precisa se preparar para retornar a seu país de origem.
Tomada de tristeza, a princesa fica fragilizada e apesar de
alertar os humanos sobre a impossibilidade de lutar contra o
povo da lua, permite-se deixar levar por aqueles que querem
impedi-la de ir ao encontro de seu destino. No entanto, esse
momento de passividade rapidamente se inverte quando ao
compreender a inevitabilidade de seu retorno, Kaguya toma as
rédeas do processo e dá o tom de sua despedida, distribuindo

293
Literatura Japonesa I 2021

recados e presentes e cumprindo seu dever. Sendo o casal de


velhos e o imperador, os únicos a sofrer de ressentimentos.
Não consegui apontar com firmeza em minha leitura, se
essa passagem final do cortador de bambu pode ser lida como
uma alegoria para a morte. Mas no momento, a impressão que
tenho é que a princesa Kaguya é uma verdadeira simbolização
de uma vida que vai na contramão do recalque.

Referências
1 Mini doc da agência de televisão Al Jazeera sobre a crise
de stalking de mulheres no Japão:
https://www.youtube.com/watch?v=ehbNJoxhkG8
2 Assista ao filme Tokyo Boshoku, 1957 de Yasujiro Ozu.
3 O ressentido e sua estética por Maria Rita Kehl, revista
Outras Palavras, agosto de 2021:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/kehl-o-ressenti-
do-e-sua-estetica/

294
海 辺 の カ

MARカ
KAFKA À BEIRA-

春 樹
Haruki Murakami

村 上
RAISSA APARECIDA SILVA COSTA
Literatura Japonesa I 2021

Em uma tarde tranquila de sexta-feira do segundo ano pan-


dêmico, dei início a uma das melhores leituras de minha vida.
Todavia, deixe-me contar brevemente como essa fantástica
obra chegou em minhas mãos.
No primeiro ano de pandemia me vi em completo desâni-
mo e tristeza devido a algumas coisas que ocorreram, e ao bus-
car conforto na literatura deparei-me com ‘’Norwegian wood’’
de Haruki Murakami. Após aquela leitura decidi ler antes de
completar vinte anos (em novembro deste ano), vinte obras do
autor. Tal escolha me ocorreu porque encontrei nas obras do
escritor nipônico uma proximidade nunca sentida. Seus per-
sonagens, muitas vezes, estão em uma faixa de idade próxima
à minha, trazendo a sensação de que estamos amadurecendo
juntos.
Foi com esse intuito que iniciei a leitura de ‘’Kafka a bei-
ra-mar’’. A confusa obra trata do pós-guerra, autoconhecimen-
to e poderes sobrenaturais, tudo o que eu precisava e não sabia.
Seu protagonista é Kafka Tamura, um jovem de quinze anos que
decide fugir da casa do pai para escapar de uma terrível pro-
fecia. Em sua fuga ele conhecerá um homem idoso chamado
Satoru Nakata que tem o incrível dom de conversar com gatos.
O livro me impactou em diferentes aspectos, mas sem
dúvida um de seus pontos fortes é a sua engenhosidade na
construção da história. Vamos do passado para o presente e do

296
Literatura Japonesa I 2021

real para o psicológico em questão de páginas, o que, em um


primeiro momento, pode causar certa confusão, mas que ao fi-
nal da leitura nos confere a realização de ter completado um
complexo quebra-cabeça. Talvez, essa sensação seja influência
da minha graduação e/ou minha terrível obsessão por estudar
estruturas de obras literárias, todavia, ela me fez ficar agarrada
ao livro e ao menino Tamura até o fim.
Também anotei em um pequeno caderno cada pista que me
era dada e cada reviravolta que sucedia, entretanto, nem todas
as minhas perguntas foram respondidas e fiquei mais entusi-
asmada por isso. Murakami nos deixa claro que nem tudo tem
respostas e podemos aprender com isso, assim como Kafka es-
tamos a beira-mar em uma vida repleta de surpresas,
o que pode ser desalentador para alguns, mas para mim,
neste momento, é a esperança que preciso para continuar viv-
endo.
Nem sempre estaremos no controle de tudo e possivelmente
teremos alguns medos e receios, mas, como afirma Murakami
(2012, p. 9): ‘’Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma
pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera’’.
Assim, não pretendo fugir de casa como o protagonista,
nem mesmo tenho uma profecia que me aguarda (eu espero) ou
conheço um senhor que preveja que peixes vão cair do céu, mas
compreendi com a obra e com os últimos acontecimentos que o

297
Literatura Japonesa I 2021

mundo pode nos arrebatar de diversas maneiras, apresentan-


do situações variadas, nem sempre positivas e definitivamente
longe do esperado, mas mesmo que eu não queria me defrontar
com elas, terei que aprender, assim como Kafka a encará-las.

Bibliografia:
MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2012. Tradução de: Leiko Gotoda.

298
SOBRE O MARIDO
DA PRINCESA DE

物 語 集
ROKUNOMIYA


QUE SE
TORNOU MONGE
E RENUNCIOU
AO MUNDO
RENATO SANTIAGO
Literatura Japonesa I 2021

O agora é passado. Ainda no início de um dos contos de


Konjaku Monogatarishū, senti me subitamente tomado de uma
sensação diferente, peculiar e curiosa, quase como que de uma
nostalgia de dias esquecidos, que não retornam.
Um dia frio de inverno, tratei de me reconfortar em minha
cadeira, envolto em cobertor macio e com um aquecedor ao
lado, em minha mesa, na busca de leituras e inspirações. Como
tenho de tradição costumeira, preparei a bebida quente predile-
ta, e dada a iminência de distrações a que sou demasiado pro-
penso, mesmo ao mínimo ruído, utilizando um headset que
abafa em tudo os arredores procurei algum som ambiente cal-
mo e suave que por fim me muniu da preciosa concentração.
O som do Shakuhachi, e o borbulhar das águas correntes me
soavam tranquilizantes, de maneira a esquecer por breve mo-
mento os problemas cotidianos massivos, agora esvaecidos
em respiração profunda e contemplativa.
Dentre as obras da Literatura Clássica Japonesa, me tomei
de maior interesse pelas dos relatos, Nikki 日記 e Setsuwa 説話
, pois parece que possuam algo de muito caro da pessoalidade
na tradição oral. Sobretudo me chamou a atenção a de Konjaku
Monogatarishū (Coletânea de Narrativas em que o agora é pas-
sado) 今昔物語集 , que foge dos padrões da
literatura do período Heian - mais restrita e contida nos

300
Literatura Japonesa I 2021

moldes da nobreza, do refinamento e da sutileza - como hav-


ia se dado até então. Num contexto da iminente decadência
aristocrática, rompe com os limites impostos da aristocracia e
abarca um maior universo do possível, expondo tanto narra-
tivas Seculares, de temas e personagens diversos, quanto nar-
rativas budistas, retratando seus temas mais preciosos através
dos relatos.
Durante a leitura dos contos, já tomado pelo sentimento de
uma viagem cósmica ao passado, uma fuga muito almejada,
chamou-me a atenção o conto “Sobre o marido da princesa de
Rokunomiya que se tornou monge e renunciou ao mundo”. In-
trigado, apressei-me a correr os olhos sobre a obra, enquanto
apreciava em meu tempo, o sorver de pouco a pouco do favori-
to Guen’mai chá.
Ela tinha pouco mais de dez anos, era de uma beleza ímpar e, a

começar pelos seus cabelos, sua aparência e seus modos eram perfeitos.

Possuía natureza refinada e jeito gracioso. Distinguindo-se, portanto,

pela sua beleza, estava à altura de ser cortejada pelos mais renomados

jovens da nobreza.

Ainda jovem, a filha do nobre vice-oficial parecia exalar em


sua beleza um reflexo de seu entorno, fruto sublime da gran-
diosidade de sua família, sua ancestralidade milenar, de sua
história que a precedia e agora a concedia tal qual como uma
cerejeira na primavera, em seu auge.

301
Literatura Japonesa I 2021

Sem me dar conta e já envolto pela narrativa, me vi trans-


portado ao ambiente, dentro do terreno de sua morada, con-
stituída de diversas construções ordenadas, de arquitetura e
configuração singulares, o Shindenzukuri. Vislumbrando des-
de a bela madeira das vigas de encaixes perfeitos intercaladas
com a sutileza do Shōji translúcido, pelo qual se deixava passar
os raios que banhavam os ambientes em riqueza iluminada, o
som da água borbulhava no lago de frente à casa principal, e
o vento soprava suave das frondosas árvores, penetrando por
dentre os corredores e a esvoaçar sutilmente os cabelos da del-
icada princesa, observada pelo pai sentado rijo à varanda, zelo-
so à moda antiga, sem transparecer tamanha comoção, ainda
que a ela desejasse o mundo. Bastava-se sonhando.

Irradiado o calor e tomado de melancolia, tomei a xícara e a


percebi vazia: No fundo, as folhas jaziam secas.

302
Literatura Japonesa I 2021

O agora é passado.

São Paulo, 29 de julho de 2021.

Referências Bibliográficas:
NAGAE, N. H. NAKAEMA Y. Konjaku Monogatarishū: Narrativas An-

tigas do Japão – Tomo XIX/Narrativa 5 - p. 127

YOSHIDA, L. N. Breves considerações sobre o universo das narrativas

Setsuwa. Estudos Japoneses, [S. l.], n. 15, p. 95-105, 1995. DOI: 10.11606/

issn.2447-7125.v0i15p95-105. Disponível em: https://www.revistas.usp.

br/ej/article/view/142716. Acesso em: 30 jul. 2021.

YOSHIDA, L. N. A época clássica japonesa e suas manifestações

literárias. Estudos Japoneses, [S. l.], n. 19, p. 59-75, 1999. DOI: 10.11606/

issn.2447-7125.v0i19p59-75. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/

ej/article/view/143130. Acesso em: 28 jul. 2021

imagem: 黄昏の平城京朱雀門 autor: 名古屋太郎 ; disponível em:

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:070513_Suzakumon_at_

twilight.jpg trilha sonora: https://youtu.be/q6HbU9Mpcmw

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旅 猫 リ ポ

RELATOS DE UM

GATO VIAJANTE


Hiro Arikawa

有 川
TATIANA VALÉRIA SILVA
Literatura Japonesa I 2021

Alguns amigos, muito queridos, leram Relatos de um gato


viajante de Hiro Arikawa e me recomendaram com certa in-
sistência. “É muito meigo e muito triste”, eles disseram, várias
e várias vezes. Faz mais de um ano que não os vejo e, ao ler o
livro que eles tanto recomendaram, senti que a saudade au-
mentou, mas, enquanto ria e, muitas vezes chorava, como eles
devem ter rido, e como devem ter chorado, eu senti a distância
entre nós diminuir, mesmo que por pouco tempo.
Escolhi falar sobre esta história não apenas pela história
em si, que é muito boa, mas pelas pessoas que ela me lembrou
enquanto era lida.
O livro conta a história de Nana, um gato sarcástico e com
muitas opiniões, que estava acostumado a ser um gato de rua
até que um humano, Satoru Miyawaki, decide cuidar dele após
um acidente. Nana tem o rabo parecido com o número 7 e foi
por isso que recebeu este nome. Satoru e ele vivem na com-
panhia um do outro por cinco anos, até que Satoru o informa
que precisarão procurar outra pessoa para cuidar dele.
A procura por um novo dono se dá através das várias via-
gens que Satoru e Nana fazem pelo Japão, visitando antigos
conhecidos de Satoru ao mesmo tempo que revisitam seu pas-
sado. Como diz o título, cada capitulo é um relato diferente so-
bre as pessoas que marcaram a vida de Satoru e como ele as
marcou também. Nana é um gato muito esperto e que com-

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Literatura Japonesa I 2021

preende muito bem o mundo dos humanos. Ele tem muito a


dizer sobre cada nova descoberta sobre seu dono, o que torna a
leitura leve mesmo nos momentos mais sensíveis.
A forma carinhosa com a qual Satoru trata cada um dos
seus conhecidos e a maneira com que cada personagem lida
com os altos e baixos da vida, tornaram a leitura algo muito
próximo de um abraço carinhoso em tempos difíceis.
A obra fala sobre luto e despedidas, o que justifica as lágri-
mas, mas também nos mostra o que pode vir depois da dor.
Nana, Satoru e seus conhecidos passaram por momentos do-
lorosos. Alguns ficaram bem em pouco tempo, como o próprio
Satoru e Yoshimine, alguns ainda estão se curando, como Ko-
suke, porém vemos que o importante da obra é a chance de
observar pessoas normais, lidando com suas vidas cotidianas
apesar
de toda dor e lidando com ela da melhor maneira que po-
dem. E tudo isso com o apoio de outras pessoas, nunca soz-
inhas.
A história que Nana e seu dono nos contam é muito
bem-vinda nesse momento tão difícil que é a pandemia. Pen-
sei em meus amigos, nos momentos difíceis que eles passar-
am nesses quase dois anos de pandemia, e nos momentos que
eu passei também, e como cada um de nós também está espe-
rando o que vem depois da dor. Mas esperamos juntos, assim

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Literatura Japonesa I 2021

como lidamos com essas situações juntos, tal qual Nana, Sato-
ru e os amigos que eles visitaram.
São Paulo, 19 de julho de 2021.

Referência Bibliográfica
ARIKAWA, Hiro. Relatos de um gato viajante. Rio de Janei-
ro: Alfaguara, 2015. Tradução de: Rita Kohl.

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KAPPA E O

LEVANTE

之 介
IMAGINÁRIO
川 龍

Ryunosuke Akutagawa
THAISA T C BARROS
Literatura Japonesa I 2021

Sensibilidade.
Sem dúvida, Ryunosuke a possuía.
Desse modo, damos início ao Prefácio escrito por Shin-
taro Hayashi em Kappa e o Levante imaginário, uma seleção
de 11 contos de Ryunosuke Akutagawa, os últimos do escritor
publicados em vida, e organizados sob um critério cronológi-
co. Vale dizer que, em todas as histórias da coletânea, vemos a
sensibilidade como a base da construção narrativa que elabora,
acima de tudo, uma crítica impiedosa à sociedade japonesa. Ao
misturar elementos como o místico, o horror e o cinismo, Aku-
tagawa nos permite conhecer, em sua linguagem simples, um


pouco de seu modo de ver e sentir o mundo, que é, sobretudo,
amargo e sem salvação.
O auge desse sentimento de condenação pode ser visto no
6° conto - Jigokuhen (traduzido como Inferno) - apresentado
na pequena antologia, que narra o processo de pintura de um
biombo, representando o inferno, por Yoshihide, um velho ar-
tista talentoso e perverso, em troca da dispensa de sua filha do
trabalho de servente do grão-senhor de Horikawa.

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Literatura Japonesa I 2021

Como resultado, a arte é a própria solidificação do horror:


uma carruagem ardendo em chamas, despencando do alto e
carregando adentro a figura de uma bela mulher que grita em
sofrimento e agonia. Descobrimos mais tarde, que tal quadro
retrata uma cena que ocorreria no desfecho da narrativa, onde,
Yoshihide, com um olhar vidrado, seria obrigado a contemplar
o fogo envolver a sua filha amada, incapaz de mover-se, em um
ato de submissão ao sacrifício visto como necessário para, en-
fim, completar a tela que se tornaria a sua obra-mestra.
Não costumo gostar de histórias com linhas narrativas que
beiram o grotesco, mas, se Inferno atraiu a minha atenção e
agradou-me, certamente, foi obra da sensibilidade que carrega.
Akutagawa desconstrói a moral e a humanidade em seu
conto por meio de uma crítica mordaz, pois, como é possível a
sociedade aceitar a existência de um pai que permite a tortura
e a morte de sua própria filha, e ainda, experienciar o êxtase e
o renome que são frutos desses acontecimentos? A arte, que
surge sob tais circunstâncias, deveria ser legitimada e venera-
da como uma “arte”?
Não pude deixar de sentir que Inferno instiga o leitor a
esses grandes questionamentos de forma muito sublime, a rep-
ensar nos sacrifícios que todos nós somos obrigados a fazer ao
longo da vida e suas consequências.
Por fim, o suicídio cometido por Yoshihide ao final da nar-

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Literatura Japonesa I 2021

rativa, na noite seguinte ao término do biombo, parece sugerir


o desgosto de um artista pela sua própria obra, um sentimento
tão universal que, muitas vezes, não sabemos como lidar. Af-
inal, nada resta além de resignar-nos quando acabamos odi-
ando a nossa própria criação, que tanto nos sacrificamos para
finalizar. E mais uma vez, deparo-me com a crueldade sensív-
el de Akutagawa, angustiando-me com o seu humor ácido e
admirando a genialidade de sua construção estética, que de-
screvem a dualidade dos nossos sentimentos e ações que são,
sobretudo, a prova da nossa humanidade.

Referência:
AKUTAGAWA, Ryunosuke. Kappa e o Levante imaginário.
São Paulo: Estação Liberdade, 2010. Tradução e Prefácio de:
Shintaro Hayashi.

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丈 記
RELATOS DA

MINHA CABANA


Kamo no Chōmei

鴨 長
VITOR CESCHINI
Literatura Japonesa I 2021

Minha mãe sempre me dizia na infância que nós não po-


demos controlar o que acontece ao nosso redor, mas podem-
os controlar como reagimos a isso. Essas palavras, para mim,
nunca fizeram tanto sentido como nesse período em que vive-
mos.
Durante a minha vida inteira tentei me distrair com ruídos
e sons que falassem mais alto do que a melancolia inerte do
coração humano. Sempre me cercando de pessoas e lazeres.
Mas, por mais barulho que eu fizesse, aquele sentimento de
vazio sempre prevalecia.
Inicialmente, como todo mundo, recebi o isolamento social
como algo extremamente custoso e revoltante. Sendo priva-
do do contato humano e de poder sair e passear pela cidade,
passava semanas sem sair de casa, estava cada vez mais es-
tressado e irritado até que um dia decidi sair; caminhar para
esfriar a cabeça. Para respeitar o distanciamento social resolvi
seguir uma rota diferente da de costume, para evitar espaços
com aglomerações. Fui caminhando até que me deparei com
uma região completamente abandonada da minha vizinhança,
um longo terreno abandonado, ocupado de árvores e infestado
de grama alta.
Era um lugar extremamente refrescante e pouco demor-
ou para eu perceber um número curioso de animais de rua na
região e percebi que era ali que os animais indesejados eram

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Literatura Japonesa I 2021

abandonados. Logo que me sentei, para aproveitar um minuto


de sol, me vi cercado de cães e gatos magros que estavam per-
ceptivelmente carentes, seres que sentiam a falta do carinho
e afeto (assim como eu). Meu plano era uma caminhada de 30
minutos, mas quando tinha me dado conta já estava com eles
por quase 4 horas!
Desde então, o meu dia não parece completo se eu não sento
uma hora para alimentá-los e desfrutar de suas companhias.
Sempre vou acompanhado de um bom livro para relaxar ali no
silêncio daquele pequeno pedaço de verde. É engraçado como
que algo tão simples e tão mundano conseguiu emancipar de
mim um certo amargor que sempre estava fixo em minhas id-
eias. Acredito que todo aquele barulho apenas prendia dentro
de mim todas as inseguranças, para me machucarem por den-
tro. Foi com o silêncio que essas intempéries fluíram e vazaram
para fora de mim, pouco a pouco.
Em um sábado qualquer sentado ali na grama, eu decidi
revisar a matéria de minha disciplina de literatura japonesa,
passando de histórias fantásticas sobre kamis, homens e mul-
heres, guerreiros e xóguns, imperadores e cortadores de bambu.
Até que cheguei na história de um monge, a sua foto era de um
homem debruçado com a expressão de angústia em tons am-
arelados. Seu nome era Kamo no Chomei e ele viveu de 1155 a
1216.

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Literatura Japonesa I 2021

Sua história está entrelaçada com um dos períodos de maior


caos no Japão. Uma era marcada por fome, guerras, desastres
naturais e miséria. Em meio a tudo isso, ele decide entrar em
reclusão em meio a mata e passa a viver em uma cabana de
onde viria o seu relato de vivência. Sua escrita era feita “ao sa-
bor da pena”, estava sempre ligada com essa dualidade entre
a natureza calma e provedora e o seu lado destrutivo e impie-
doso. Sua vida me fascinava, constantemente eu via pontos da
minha realidade em sua história. Um povo com fome, um país
desestabilizado, um governo que não ajuda, as dores de um in-
contável número de mortos e então, o isolamento.

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Literatura Japonesa I 2021

É claro que nossos contextos têm inúmeras diferenças, eu


tenho noção do enorme anacronismo que pode vir a ser essa
comparação. Mas eu não consigo deixar de sentir essa conexão
de que quando o mundo parece pesado demais de se viver, um
regresso para com o contato com o natural, com o silêncio, mas
acima de tudo o contato com a vida pode ajudar a lidar com
tudo que nos cerca, mesmo não podendo mudar a dura reali-
dade que nos cerca, podemos controlar como reagimos a ela.

Referências bibliográficas:
Kamo no Chomei. The Ten Foot Square Hut and Tales of
Heike. Trans. A.L. Sadler. Charles E. Tuttle Company: Tokyo,
1972.

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