Trauma e Representaçao

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Yeda Alcide Saigh

Yeda Alcide Saigh*

Neste artigo, apresento e comento, à luz das idéias freudianas, os con-


ceitos de trauma, representação e repetição. Podemos considerar que a
primeira mudança traumática, que passa a ser o protótipo de toda mu-
dança posterior, é o trauma do nascimento; é seguida pela terrível catás-
trofe, que é a descoberta do terceiro e é tomada como modelo em rela-
ção a todas quantas se seguem, no desenvolvimento da vida dos indiví-
duos. Grande parte do desenvolvimento emocional, ao longo da vida,
dependerá da maneira como o indivíduo vai lidar e elaborar essas vi-
vências traumáticas. Os conceitos são ilustrados com comentários sobre
um caso clínico.

Acting out. Repetição. Representação. Psicanálise.


ESTA VELHA angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos, em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este pode ser que...
Isto.
Um internado num manicômio, ao menos é alguém.
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o seu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), 16/6/1934

Tomo emprestada a idéia de Alberto Eiguer (1989), formulada em seu


livro Um Divã para a Família, de que toda a família sofre dois tipos de
traumas: os cíclicos e os não-cíclicos. Os primeiros são aqueles com os
quais toda e qualquer família se depara; os segundos, aqueles característi-
Yeda Alcide Saigh
cos da história de uma família em particular. Transpondo essa idéia para o
desenvolvimento do indivíduo, pretendo iniciar o presente trabalho, fazen-
do uma série de considerações sobre o conceito de trauma e seu impacto
sobre o desenvolvimento psíquico do ser humano. Em seguida, dedico-me
à apreciação de um caso clínico em que o paciente foi submetido a um
trauma cumulativo.
* * *
Do ponto de vista da psicanálise, um dos primeiros grandes aconteci-
mentos traumáticos na vida de um ser humano é o próprio nascimento.
Podemos considerar que é a primeira mudança catastrófica que passa a ser
o protótipo de toda mudança posterior. Trata-se, portanto, do trauma do
nascimento (RANK, 1924). A criança, que até então vivera com a mãe em
situação de completude, reluta em aceitar que não mais vive em continui-
dade com esta. Vários autores abordam essa questão, entre eles Margaret
Mahler (1975), quando fala da simbiose normal da criança em relação à
mãe, e Winnicott (1971), quando aborda as questões da vivência fusional e
da necessidade de um espaço transicional para que o indivíduo gradual-
mente venha a se subjetivar, constituindo-se um verdadeiro self. Se partir-
mos do referencial kleiniano e nos reportarmos à teoria das relações
objetais, consideraremos que o evento traumático crucial no desenvolvi-
mento do ser humano se dá em torno dos seis meses de idade, quando o
bebê percebe que ele e a mãe não são uma só pessoa.
Talvez em algumas pessoas, dependendo de determinadas circunstân-
cias (estou pensando em particular numa precária capacidade de rêverie
por parte da mãe), essa vivência seja vivida de uma forma tão disruptiva e
violenta, que possamos falar de uma experiência catastrófica, no sentido
que Bion dá a este termo. Podemos até dizer que grande parte do desenvol-
vimento emocional, ao longo da vida, dependerá da maneira como o indi-
víduo vai lidar e elaborar essa vivência catastrófica, cujo modelo pode ser
buscado na experiência fundante do nascimento.
Embora Freud (1914) considere que o nascimento possa ser uma vi-
vência traumática no desenvolvimento psicossexual e afetivo do ser huma-
no, identifica a elaboração infantil do Édipo como o momento crucial da
evolução do indivíduo. Tal elaboração, quando satisfatoriamente realizada,
prepara o indivíduo na medida necessária para a aceitação da exclusão e
das diferenças: penso que a elaboração do Édipo envolve, antes de mais
nada, a discriminação de um eu e de um não-eu, a aceitação de que o outro
não vive em continuidade comigo nem é uma extensão de mim, mas sim é
uma outra pessoa inteira e separada, que tem uma existência independente
da minha – implica, portanto, aceitar a radical alteridade do outro ser hu-
mano com quem me acho em relação. Não podemos pensar numa relação a
três e na vivência da exclusão frente à dupla parental sem pensarmos antes
na relação dual mãe-bebê, eu e o outro. Além dessa diferenciação, o indiví-
duo tem de fazer a renúncia da fantasia da bissexualidade e perceber-se
alguém incompleto que precisa do indivíduo do sexo oposto para formar
um casal fértil e gerador de vida. A percepção das diferenças sexuais infan-
tis provoca um abalo narcísico, e as teorias sexuais infantis, como as des-
creve Freud (1914), tentam quanto podem negar tais diferenças. Da idéia
inicial da premissa universal do falo decorre uma primeira oposição entre o
gênero masculino e o feminino, que não é exatamente entre masculino e
feminino, e sim entre fálico e castrado. Como se à diferença sexual anatô-
mica se agregasse uma idéia de superioridade e de inferioridade. A mascu-
linidade e feminilidade adultas da ordem da genitalidade são alcançadas
muito mais tardiamente. Como dizia Simone de Beauvoir, uma mulher não
nasce mulher, torna-se uma mulher. Acredito que o mesmo seja válido para
o homem. O fato de se ter estabelecido uma identidade de gênero, e estan-
do a mulher em paz com o fato de ser mulher e o homem com o fato de ser
homem, mesmo assim a elaboração do Édipo não se acha esgotada; é uma
tarefa para a vida inteira. Passa pela vivência da conjugalidade, da parenta-
lidade, do desempenho dos papéis de avô, avó, sogro, sogra, e pela aceita-
ção da realidade do envelhecimento, da finitude da vida e da diferença
entre as gerações.
Determinadas situações que o indivíduo vivencia e que exigem a ela-
boração de um luto por uma perda, por uma separação, podem catalisar a
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revivescência de antigos traumas aparentemente adormecidos que voltam
à cena. A idéia de Freud de après-coup implica que “os traços mnêmicos
sofrem de tempos a tempos, em função de novas condições, uma reorgani-
zação, uma reinscrição”. Isso escreve Freud já em 1897, numa carta ende-
reçada a Fliess em dezembro. Assim, uma vivência da infância de cunho
notadamente sexual só se torna realmente traumática après-coup, isto é,
quando é ressignificada pelo indivíduo adulto. No momento da experiência
da infância não havia condições para que tal vivência fosse integrada pelo
indivíduo, que nem dispunha de recursos egóicos nem de uma sexualidade
adulta plenamente desenvolvida para conferir-lhe significado. Novos
“acontecimentos e situações”, como dizem Laplanche e Pontalis (1983),
“ou a maturação orgânica é que irão permitir ao indivíduo o acesso a um
novo tipo de significações e à reelaboração das suas experiências anterio-
res”.
Os indivíduos representam, através de algumas versões peculiares de
cada um, as situações dolorosas, penosas, catastróficas, de suas vidas. Uma
das mais significativas situações é fruto do crescimento e ocorre em torno
do sexto mês, quando se deflagra o processo de apreensão do mundo, da
mãe, do outro, do objeto total (KLEIN, 1934), culminando, de certo modo,
entre o terceiro e o quinto ano, com a situação edípica, tal como descrita na
teoria freudiana. Nesse período, ocorrem as catástrofes sucessivas de per-
cepção do mundo, que ‘desarrumam’ aquilo que foi arrumado, porque en-
volvem mudanças muito drásticas. Aos cinco, seis anos de idade, podemos
imaginar cada indivíduo como um conjunto de escombros. Cada situação
de mudança traumática vai sendo ressignificada. O modelo de todo trauma,
para Freud, é a cena primária; esta é a grande catástrofe para ele.

* * *
É raro o paciente que procure um analista e que não apresente como
queixa algo que não possamos aproximar da idéia freudiana de compulsão
à repetição. Acredito que o setting analítico oferecerá ao paciente um espa-
ço permissivo e protegido onde ele possa elaborar esses conflitos. O pro-
blema que tenho observado em minha prática clínica é que, na maior parte
das vezes, tais conflitos não chegaram a ser representados. Há também
quem diga, como Fábio Herrmann (informação verbal)1, que o trauma é
também aquilo que não aconteceu. Uma das funções do analista, na minha
maneira de ver, seria a de ajudar o paciente a representar o trauma que
motiva tais repetições. Podemos até afirmar que o paciente só chega a pro-
curar a análise quando se sente incapaz de continuar a conviver com o
desconforto emocional causado por essas repetições de algo não-represen-
tado.
A ressignificação tem de passar pela linguagem, porque os significa-
dos já são compartilhados; a criança vai narrando a sua biografia e receben-
do a narrativa dos demais interlocutores (mãe, pai, etc.) sobre sua história,
que ela internaliza e da qual vai se apropriando paulatinamente. Para que
isso aconteça, é necessária, acredito, a presença de um ouvinte, de um
interlocutor, de um outro, o outro analítico. Aquele diante de quem os dra-
mas e acontecimentos do passado se atualizam e podem ser ressignificados.
Podemos lembrar a esse respeito o que nos diz Maurice Blanchot sobre a
importância da palavra analítica, em seu livro L’Entretien Infini:

O médico desempenha um papel não mais encantado, porém mais


oculto: nenhum talvez e, por causa disso, muito positivo, o de uma
presença-ausência, sobre a qual vem retomar forma e expressão, ver-
dade e atualidade; algum antigo drama, algum acontecimento real ou
imaginário, profundamente esquecido. O médico não estaria então aí
por ele próprio, mas no lugar de um outro; ele desempenha unicamente
por sua presença o papel de um outro, ele é outro e o outro antes de
tornar-se outrem.(BLANCHOT, 1992)

É na cena transferencial e somente nela que se reinscrevem os aconte-


cimentos e reescreve a biografia afetiva de um indivíduo.
As pessoas que se desenvolvem na vida vão ressignificando e passam

1
Aula dada por Fábio Herrmann na PUCRS, em Porto Alegre, em 12 de outubro de 2003.
Yeda Alcide Saigh
a ter delas próprias uma história. Penso que a análise consiste exatamente
nisso: na possibilidade de o indivíduo se tornar o narrador da sua própria
história e em adotar, ao contá-la, uma ótica diferente da que até então ado-
tara e que o motivara inconscientemente a desempenhar repetidamente um
único e mesmo personagem incômodo, que já não estava mais em sintonia
consigo próprio. A esse propósito, lembro-me de Fábio Herrmann (infor-
mação verbal)2, que chama a esse momento de ‘expectativa de trânsito’,
quando uma representação já tornada obsoleta ainda não cedeu lugar à nova
representação que a análise pode ajudar a consolidar.
O processo analítico implica mobilidade e transformação de represen-
tações antigas. Cada um de nós, ao longo da vida, vai exteriorizando e
vivendo, de forma mais ou menos bem-sucedida (ou mais ou menos mal-
sucedida), determinadas configurações de representações internas e trau-
máticas. Para que a pessoa represente, é preciso que tenha liberdade para,
de alguma forma, usar a disponibilidade energética do ego. A energia pode
estar presa, projetada, esvaziada ou evacuada pelos mecanismos de defesa,
pelas identificações projetivas. Nesse caso, a pessoa sente-se esvaída, por-
que nada consegue conter. Esses mecanismos são presididos pela
compulsão à repetição. Espero mostrar, mais especificamente, a não-repre-
sentação como geradora de profundo sofrimento e dor.

* * *
Ao iniciar a análise, os pacientes contam fatos de sua vida, queixam-
se de situações que os incomodam e, na maior parte das vezes, atribuem a
culpa a alguém de suas relações mais íntimas. Não percebem o porquê de
seus desencontros, pois sempre se atêm a fatos recentes. Não têm a percep-
ção mais ou menos nítida de que podem estar repetindo ‘cenas’ antigas, já
vividas, às quais continuam presos, quase sempre desde a mais tenra infân-
cia, e que nada têm a ver com as situações atuais, contemporâneas, que
tanto os afligem.
* * *

2
Aula dada por Fábio Herrmann na PUCRS, em Porto Alegre, em 12 de outubro de 2003.
Nas palavras de Freud, em Recordar, repetir, elaborar:

[...] podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que
esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it
out). Ele o reproduz, não como lembrança, mas como ação; repete-o,
sem, naturalmente, saber que o está repetindo. [...] aprendemos que o
paciente repete em vez de recordar, e repete sob as condições da resis-
tência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua
(acts out). [...] Repete também todos os seus sintomas, no decurso do
tratamento. E podemos agora ver que, ao chamar atenção para a
compulsão à repetição, não obtivemos um fato novo, mas apenas uma
visão mais ampla (FREUD, 1914, p.165).

Gostaria de acrescentar a essas visões sobre o trauma uma distinção


feita por Gilberto Safra3 (informação verbal) entre significado e sentido. A
idéia de significado é associada pelo autor a esta história ou estória contada
pelo paciente nos primeiros tempos da análise a respeito de seu passado, e
a idéia de sentido é por ele relacionada à projeção futura de sua vida, que
está contida no bojo das suas possibilidades enquanto ser humano, a partir
da reescritura da sua própria história. Fazendo analogia com uma idéia de
Bion (1970), Safra refere-se a esse sentido como “memória do Futuro”.

* * *
Antes de passar à apresentação do caso gostaria de lembrar a definição
que Laplanche e Pontalis (1983) dão para o verbete trauma, no Vocabulá-
rio da Psicanálise:

Acontecimento da vida do indivíduo que se define pela sua intensida-


de, pela incapacidade em que se acha o indivíduo de lhe responder, de
forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradou-
ros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o
traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessi-

3
Aula dada por Gilberto Safra na USP, em São Paulo, em 17 de novembro de 2004.
Yeda Alcide Saigh
vo, relativamente à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de do-
minar e de elaborar psiquicamente estas excitações.

Apresento neste trabalho alguns fragmentos de um caso clínico, para


melhor ilustrar minhas idéias.

Homem, 51 anos. Profissional liberal. Casado duas vezes, dois filhos


do primeiro casamento e um do segundo. Tem uma filha fora do casamen-
to, sobre a qual só falou no quarto ano de análise. A menina é filha de
funcionária de sua empresa, que só se afastou da mesma no nono mês de
gravidez. Ninguém desconfiou que ele fosse o pai da criança.
A primeira analista interrompeu o tratamento e sugeriu meu nome. Ele
me procurou imediatamente, e tive a impressão de que ele apenas ‘mudou
de consultório’. Deitou-se já na entrevista e como que continuou a análise
que estava fazendo com a primeira analista. Perguntado sobre por que que-
ria fazer análise, respondeu que, havia alguns anos, um psicólogo lhe dis-
sera que ele tinha tendências homossexuais; que isto o assustou tanto que
ele procurou sua primeira analista; mas que, na análise, viu que este não era
o seu único ‘problema’.
Ao longo de várias sessões de análise, contou que passou por um gran-
de trauma aos 12 anos; que a família era muito pobre, o pai bebia, a mãe o
mandou para a casa de uma tia em outra cidade, para estudar; que o tio era
muito violento; que se sentia muito sozinho; que eram muito pobres; que
dormia num quarto com os primos; e que um dos primos, seu grande ami-
go, abusara sexualmente dele, de forma regular, durante muito tempo. No
segundo ano de análise, numa determinada sessão, ao falar sobre este as-
sunto, que era muito recorrente, disse-me: O que eu nunca pensei, não
conseguia nem falar para mim mesmo, é que eu acho que foi um prazer
muito grande que eu tive com esse meu primo. Eu gostava muito dele. Eu
me sentia muito bem com ele. Acredito que esse insight tenha sido de extre-
ma importância na sua análise ou, melhor dizendo, que foi o ‘ponto de
viragem’. Esse foi um momento crucial daquilo a que me referi anterior-
mente como o apropriar-se da própria história.
A experiência foi usada a posteriori. Como um après-coup. Na verda-
de, o trauma é bem anterior e está relacionado à separação da mãe. A emer-
gência dessa recordação e a representação desse trauma tiveram um efeito
cascata; trouxeram à tona a separação que o levou a morar com os primos,
que, por sua vez, remontava à separação primordial da figura materna.
Quando falo de ponto de viragem, penso que também estou falando de
minha possibilidade, enquanto analista, de significar minha observação
inicial do comportamento do paciente que me chamara a atenção: o de
continuar a análise comigo como se não tivesse mudado de analista.
O trauma primeiro foi revivido, mais tarde, na experiência com o pri-
mo, a qual, afinal, foi uma experiência positiva. Acredito que foi o que lhe
permitiu sobreviver naquela situação tão traumática; sobreviver no sentido
de lhe garantir o atendimento de uma necessidade afetiva de contato huma-
no, não de caráter especificamente sexual, no sentido da genitalidade adul-
ta. O que se tornou trauma foi a dúvida que, já adulto, o dilacerava em
relação à sua identidade sexual. Como, se sentindo agora homem adulto,
podia conviver com a lembrança de uma experiência que, enquanto vivida,
havia sido prazerosa? Estaria com razão o primeiro psicólogo que consul-
tou e fez alusão à sua possível homossexualidade?
De fato, o próprio evento que é vivido como ‘trauma’ já era uma tenta-
tiva de representar episódios relacionados com a catástrofe da descoberta
das relações sexuais do pai e da mãe, da cena primária. Todas as outras
coisas servem para representar a cena primária, narrada na sua singularida-
de. Nesse caso, a catástrofe externa é vivida de modo especialmente dolo-
roso, porque a catástrofe essencial não pôde ser elaborada. O sofrimento do
paciente era muito intenso e foi o que mais me chamou a atenção em toda a
sua história. Às vezes, passava sessões inteiras chorando. Tinha também
um intenso movimento de cabeça – mexia a cabeça de um lado para o
outro, como um metrônomo, quando ficava muito aflito.
Yeda Alcide Saigh
Como diz Bion (1970, p.11):

Há pessoas que não toleram a dor e a frustração (ou nas quais a dor e a
frustração são intoleráveis); elas sentem a dor mas não a sofrem e nem
podem ser levadas a descobri-la. (O que) elas não sofrerão nem desco-
brirão, teremos de conjeturar daquilo que aprendemos de pacientes
que se permitem sofrer. O paciente que não sofre dor, falha ao ‘sofrer’
prazer, e isso nega-lhe o encorajamento que ele, de outra maneira, po-
deria receber de uma ajuda acidental ou intrínseca.

Para Freud (1914, p.195):

Nesses processos, acontece com extraordinária freqüência ser ‘recor-


dado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’, porque nunca foi,
em ocasião alguma, notado – nunca foi consciente. Com referência ao
curso tomado pelos eventos psíquicos, parece não fazer nenhuma dife-
rença se determinada ‘vinculação de pensamento’ foi consciente e de-
pois esquecida ou se nunca, de modo algum, conseguiu tornar-se cons-
ciente. A convicção que o paciente alcança no decurso de sua análise é
inteiramente independente desse tipo de lembrança.

No caso de alguém que tenha elaborado a catástrofe essencial e primá-


ria, que a assimilou e sente que os objetos internos são estáveis, segundo
nos diz Melanie Klein (1936), é possível sobreviver aos traumas e às catás-
trofes posteriores: essa pessoa vive a situação traumática, mas não confun-
de. Bom exemplo desse movimento pode ser encontrado em Isto é um Ho-
mem, de Primo Levi (2000), no qual o autor consegue fazer uma descrição
isenta, neutra, do horror absoluto do Holocausto. Levi, judeu italiano, este-
ve preso em Auschwitz. Como era jovem e robusto, e era químico, foi de-
signado para trabalhar na Fábrica Bayer. Esteve várias vezes na lista para
ser morto, mas foi poupado. De onde esteve, pôde observar e descrever as
lógicas de sobrevivência – suas e de outros presos; pôde entender, até, que
havia uma lógica naquele pesadelo, da entrada no campo até o forno cre-
matório. Porque pôde fazê-lo sem qualquer autopiedade, sem exageros,
sem reduções, nos oferece um retrato do horror que é, provavelmente, o
mais adequado de quantos foram feitos.

Espero que o exemplo clínico tenha sido útil para ajudar a expor algu-
mas das idéias que tenho sobre este assunto, que é muito vasto e pode ser
considerado sob vários outros ângulos.
Depois desta reflexão, ficou para mim, de mais importante, a idéia de
que a catástrofe primeira é prototípica em relação a todas quantas se segui-
rem, vida afora, para cada um de nós; que temos, cada um, as nossas catás-
trofes, os nossos eventos traumáticos; e que, cada um, os enfrentamos
como podemos, conforme nossa evolução pessoal, conforme tenhamos vi-
vido as catástrofes de nossa mais remota infância e conforme tenhamos
conseguido viver as separações e seguido caminhos pessoais.
A experiência que tenho, como psicanalista, me faz crer que se possa
considerar que haja desenvolvimento psicanalítico nos casos em que o ana-
lista perceba, no trabalho cotidiano, que o analisando começa a conquistar
capacidades para pensar, sentir e transformar suas ‘velhas teorias’; que pas-
sa a tolerar melhor as próprias angústias; que percebe que o sistema rígido
que utilizou até então não funciona mais; que se dá conta de que suas ‘repe-
tições’ não têm mais sentido no presente, pois dependem de um ‘código’
que está ligado a um passado remoto.
Penso também que há tragédias históricas cuja violência horrenda
agrida os limites da organização psíquica de todo homem ou mulher nor-
mal que tenha contato com elas, mas nem todos ‘enlouquecem’ do mesmo
modo. O Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, talvez seja uma dessas
megatragédias históricas. O martírio do Frei Tito de Alencar, no Brasil,
talvez seja outra dessas tragédias, sobre a qual escreveu Fernando Gabeira
(1999, p.9):

Sinto-me ligado ao martírio de Frei Tito [...] porque sempre tentei ex-
plicar a mim mesmo seu suicídio, e jamais consegui. Como se os fan-
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tasmas da tortura e do suicídio tivessem a capacidade de permanecer
em nossas cabeças sem que jamais os expliquemos satisfatoriamente.
Frei Tito talvez se perguntasse se a própria vida ainda era possível.
Seus versos indicavam que essa hipótese dependeria do extermínio das
“lembranças de um passado sombrio.

E eu acrescentaria, como alternativa ao “extermínio das lembranças


de um passado sombrio”, a ressignificação de tais lembranças. Ou ainda
uma transformação criativa de um sofrimento experimentado. Estou me
lembrando a esse respeito de uma entrevista realizada com Charles
Chaplin, já idoso, por Anthony Hopkins. À pergunta do entrevistador –
“Por que é que você se tornou cômico?” –, Chaplin respondeu: “Tornei-me
cômico para não enlouquecer”. E relatou um triste episódio de sua infân-
cia: sua mãe trabalhava no teatro e, não tendo com quem deixar o filho
(nessa época com oito anos), levava-o a acompanhá-la durante as represen-
tações. Num determinado dia, o menino Chaplin, postado na coxia, perce-
beu que sua mãe havia enlouquecido, tendo começado a falar coisas desco-
nexas diante da platéia. Para salvá-la, precipitou-se para a boca da cena e
improvisou um número cômico, que fez com que a platéia se pusesse a rir
sem se dar conta do que estava ocorrendo. Somente o diretor percebeu a
iniciativa do talentoso Chaplin.

Trauma and Representation


In this work, I present and I comment, under the light of the Freudian ideas, the concepts
of trauma, representation and repetition. We can consider that the first traumatic change,
that becomes the archetype of all posterior change, is the trauma of the birth; it is followed
by the terrible catastrophe that is the discovery of the third and is taken as model in relation
to all many traumas which follows, in the development of the life of the individuals. Great
part of the emotional development, along a lifetime, will depend on the way the individual
deals with and elaborate these traumatic experiences. Concepts are illustrated with
commentaries on a clinical case.

Acting-out. Repetition. Representation. Psychoanalysis.


Trauma y Representación
En este trabajo, presento y comento, bajo la luz de las ideas freudianas, los conceptos de
trauma, de representación y de repetición. Podemos considerar que el primer cambio
traumatico, que se convierte en arquetipo de todo el cambio posterior, es el trauma del
nacimiento; es seguido por la catástrofe terrible que es el descubrimiento del tercero y se
toma como modelo a las muchas traumas que siguen, en el desarrollo de la vida de los
individuos. La mayor parte del desarrollo emocional, a lo largo del curso de la vida,
dependerá de la manera que el individuo trate y elabore estas experiencias traumaticas.
Los conceptos se ilustran con comentarios de un caso clínico.

Actuación (acting-out). Repetición. Representación. Psicoanálisis.

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