Trauma e Representaçao
Trauma e Representaçao
Trauma e Representaçao
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É raro o paciente que procure um analista e que não apresente como
queixa algo que não possamos aproximar da idéia freudiana de compulsão
à repetição. Acredito que o setting analítico oferecerá ao paciente um espa-
ço permissivo e protegido onde ele possa elaborar esses conflitos. O pro-
blema que tenho observado em minha prática clínica é que, na maior parte
das vezes, tais conflitos não chegaram a ser representados. Há também
quem diga, como Fábio Herrmann (informação verbal)1, que o trauma é
também aquilo que não aconteceu. Uma das funções do analista, na minha
maneira de ver, seria a de ajudar o paciente a representar o trauma que
motiva tais repetições. Podemos até afirmar que o paciente só chega a pro-
curar a análise quando se sente incapaz de continuar a conviver com o
desconforto emocional causado por essas repetições de algo não-represen-
tado.
A ressignificação tem de passar pela linguagem, porque os significa-
dos já são compartilhados; a criança vai narrando a sua biografia e receben-
do a narrativa dos demais interlocutores (mãe, pai, etc.) sobre sua história,
que ela internaliza e da qual vai se apropriando paulatinamente. Para que
isso aconteça, é necessária, acredito, a presença de um ouvinte, de um
interlocutor, de um outro, o outro analítico. Aquele diante de quem os dra-
mas e acontecimentos do passado se atualizam e podem ser ressignificados.
Podemos lembrar a esse respeito o que nos diz Maurice Blanchot sobre a
importância da palavra analítica, em seu livro L’Entretien Infini:
1
Aula dada por Fábio Herrmann na PUCRS, em Porto Alegre, em 12 de outubro de 2003.
Yeda Alcide Saigh
a ter delas próprias uma história. Penso que a análise consiste exatamente
nisso: na possibilidade de o indivíduo se tornar o narrador da sua própria
história e em adotar, ao contá-la, uma ótica diferente da que até então ado-
tara e que o motivara inconscientemente a desempenhar repetidamente um
único e mesmo personagem incômodo, que já não estava mais em sintonia
consigo próprio. A esse propósito, lembro-me de Fábio Herrmann (infor-
mação verbal)2, que chama a esse momento de ‘expectativa de trânsito’,
quando uma representação já tornada obsoleta ainda não cedeu lugar à nova
representação que a análise pode ajudar a consolidar.
O processo analítico implica mobilidade e transformação de represen-
tações antigas. Cada um de nós, ao longo da vida, vai exteriorizando e
vivendo, de forma mais ou menos bem-sucedida (ou mais ou menos mal-
sucedida), determinadas configurações de representações internas e trau-
máticas. Para que a pessoa represente, é preciso que tenha liberdade para,
de alguma forma, usar a disponibilidade energética do ego. A energia pode
estar presa, projetada, esvaziada ou evacuada pelos mecanismos de defesa,
pelas identificações projetivas. Nesse caso, a pessoa sente-se esvaída, por-
que nada consegue conter. Esses mecanismos são presididos pela
compulsão à repetição. Espero mostrar, mais especificamente, a não-repre-
sentação como geradora de profundo sofrimento e dor.
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Ao iniciar a análise, os pacientes contam fatos de sua vida, queixam-
se de situações que os incomodam e, na maior parte das vezes, atribuem a
culpa a alguém de suas relações mais íntimas. Não percebem o porquê de
seus desencontros, pois sempre se atêm a fatos recentes. Não têm a percep-
ção mais ou menos nítida de que podem estar repetindo ‘cenas’ antigas, já
vividas, às quais continuam presos, quase sempre desde a mais tenra infân-
cia, e que nada têm a ver com as situações atuais, contemporâneas, que
tanto os afligem.
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Aula dada por Fábio Herrmann na PUCRS, em Porto Alegre, em 12 de outubro de 2003.
Nas palavras de Freud, em Recordar, repetir, elaborar:
[...] podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que
esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it
out). Ele o reproduz, não como lembrança, mas como ação; repete-o,
sem, naturalmente, saber que o está repetindo. [...] aprendemos que o
paciente repete em vez de recordar, e repete sob as condições da resis-
tência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua
(acts out). [...] Repete também todos os seus sintomas, no decurso do
tratamento. E podemos agora ver que, ao chamar atenção para a
compulsão à repetição, não obtivemos um fato novo, mas apenas uma
visão mais ampla (FREUD, 1914, p.165).
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Antes de passar à apresentação do caso gostaria de lembrar a definição
que Laplanche e Pontalis (1983) dão para o verbete trauma, no Vocabulá-
rio da Psicanálise:
3
Aula dada por Gilberto Safra na USP, em São Paulo, em 17 de novembro de 2004.
Yeda Alcide Saigh
vo, relativamente à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de do-
minar e de elaborar psiquicamente estas excitações.
Há pessoas que não toleram a dor e a frustração (ou nas quais a dor e a
frustração são intoleráveis); elas sentem a dor mas não a sofrem e nem
podem ser levadas a descobri-la. (O que) elas não sofrerão nem desco-
brirão, teremos de conjeturar daquilo que aprendemos de pacientes
que se permitem sofrer. O paciente que não sofre dor, falha ao ‘sofrer’
prazer, e isso nega-lhe o encorajamento que ele, de outra maneira, po-
deria receber de uma ajuda acidental ou intrínseca.
Espero que o exemplo clínico tenha sido útil para ajudar a expor algu-
mas das idéias que tenho sobre este assunto, que é muito vasto e pode ser
considerado sob vários outros ângulos.
Depois desta reflexão, ficou para mim, de mais importante, a idéia de
que a catástrofe primeira é prototípica em relação a todas quantas se segui-
rem, vida afora, para cada um de nós; que temos, cada um, as nossas catás-
trofes, os nossos eventos traumáticos; e que, cada um, os enfrentamos
como podemos, conforme nossa evolução pessoal, conforme tenhamos vi-
vido as catástrofes de nossa mais remota infância e conforme tenhamos
conseguido viver as separações e seguido caminhos pessoais.
A experiência que tenho, como psicanalista, me faz crer que se possa
considerar que haja desenvolvimento psicanalítico nos casos em que o ana-
lista perceba, no trabalho cotidiano, que o analisando começa a conquistar
capacidades para pensar, sentir e transformar suas ‘velhas teorias’; que pas-
sa a tolerar melhor as próprias angústias; que percebe que o sistema rígido
que utilizou até então não funciona mais; que se dá conta de que suas ‘repe-
tições’ não têm mais sentido no presente, pois dependem de um ‘código’
que está ligado a um passado remoto.
Penso também que há tragédias históricas cuja violência horrenda
agrida os limites da organização psíquica de todo homem ou mulher nor-
mal que tenha contato com elas, mas nem todos ‘enlouquecem’ do mesmo
modo. O Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, talvez seja uma dessas
megatragédias históricas. O martírio do Frei Tito de Alencar, no Brasil,
talvez seja outra dessas tragédias, sobre a qual escreveu Fernando Gabeira
(1999, p.9):
Sinto-me ligado ao martírio de Frei Tito [...] porque sempre tentei ex-
plicar a mim mesmo seu suicídio, e jamais consegui. Como se os fan-
Yeda Alcide Saigh
tasmas da tortura e do suicídio tivessem a capacidade de permanecer
em nossas cabeças sem que jamais os expliquemos satisfatoriamente.
Frei Tito talvez se perguntasse se a própria vida ainda era possível.
Seus versos indicavam que essa hipótese dependeria do extermínio das
“lembranças de um passado sombrio.