PEREIRA, 1989 - Transição Democrática
PEREIRA, 1989 - Transição Democrática
PEREIRA, 1989 - Transição Democrática
e democracia no Brasil*
Luiz Carlos Bresser Pereira
O Processo de Redemocratização
1. Nacionalismo ultrapassado
Nas décadas de 40 e 50 a esquerda desenvolveu a tese de que o imperia-
lismo estava aliado ao capital agromercantil para evitar a industrialização. Os
altos investimentos das multinacionais na indústria manufatureira desde meados
dos anos 50 provaram que, se a tese esteve correta no passado, deixou de ser
legítima desde então (CARDOSO e FALETTO, 1970). Mas ainda hoje temos
nacionalistas pensando em termos de anos 50. Eles não entendem que ser na-
cionalista nos dias de hoje é, antes de mais nada, combater a tentativa irracional
de pagar integralmente a dívida externa, ou empenhar-se pelo desenvolvimento
do progresso tecnológico e científico autônomo dentro do País, é, em outras
palavras, ter uma clara noção do que seja o interesse nacional, ao invés de
opor-se às multinacionais, que contribuem de forma efetiva para o crescimento
econômico do País.
2. Orientação no sentido do mercado interno
Em meados dos anos 60 o regime autoritário decidiu-se por uma estratégia
de desenvolvimento voltada para as exportações. Foi uma decisão acertada,
embora tenha tido a conseqüência perversa a curto prazo de compatibilizar ta-
xas sustentadas de demanda interna com concentração de renda1. A esquerda
moderada se opôs a esse procedimento desde o início, sem saber que o padrão
alternativo de crescimento, baseado em projetos de substituição de exportações
altamente intensivos em capital, além de ter esgotado suas virtualidades como
um modelo de crescimento no início da década de 60, concentra muito mais
renda no longo prazo do que uma estratégia de crescimento baseada em expor-
tações de bens manufaturados intensivos em mão-de-obra.
Nos anos 70 a esquerda costumava criticar Formosa e a Coréia como
sendo meras plataformas de exportação, enquanto que um dos intelectuais da
direita ideológica no Brasil, Roberto Campos, pretendia que esses países fos-
sem exemplos de sociedades liberais. Hoje em dia sabemos que esses países de-
senvolveram uma grande indústria apoiada em um Estado com forte capacidade
de intervenção e um claro sentido do interesse nacional, que tiveram um enor-
me aumento de produtividade ao buscarem aumentar sua competitividade inter-
nacional através de uma estratégia de desenvolvimento voltado para as exporta-
ções, e que apresentam uma distribuição de renda muito mais uniforme do que
o Brasil. A reforma agrária promovida nesses países logo após a Segunda Guer-
ra foi uma causa dessa melhor distribuição de renda; a outra foi a política de
crescimento voltado para as exportações.
3. Não às políticas de ajustamento
Esta é a conseqüência de um desenvolvimentismo arraigado — e não devi-
damente revisto quando isto se tornou necessário — que caracterizou os estrutu-
ralistas latino-americanos, inclusive este autor, nos anos 50. Criticamos dura-
mente o ajustamento da década de 60. O fato desse ajustamento ter-se baseado
quase que exclusivamente na redução dos salários (LARA REZENDE, 1982)
foi uma boa razão para críticas. Mas a esquerda baseou seu desacordo quase
que somente no slogan "não à recessão", e ao fazê-lo incorreu no populismo.
Em 1979, quando o ajustamento se fazia absolutamente necessário, a irrespon-
1
Examinei esta questão pela primeira vez ainda em 1970, quando a esquerda insistia em
falar em estagnação apesar do enorme crescimento econômico que estava ocorrendo, no
artigo: "Dividir ou Multiplicar?" publicado na Visão (novembro, 1970). Depois exami-
nei extensamente o problema em Estado e subdesenvolvimento industrializado (1977).
sável política desenvolvimentista e populista — porque o populismo é tanto de
esquerda quanto de direita — do Ministério do Planejamento do regime autoritá-
rio foi apoiado por economistas da esquerda estruturalista moderada. Quando
em 1981, afinal, o ajustamento teve início, a idéia básica da esquerda era de
que essa medida não era necessária, quando na realidade o era. Naquele mo-
mento era de fato impossível—além de indesejável—tentar manter altos déficits
comerciais. A única crítica séria e inovadora às políticas ortodoxas de ajusta-
mento originou-se na esquerda moderada a partir dos economistas que desen-
volveram a teoria da inflação inercial2.
4. Distributivismo salarial
Um problema gravíssimo no Brasil é a concentração de renda. Temos aqui
uma das mais desequilibradas e injustas distribuições de renda do mundo, mas
este fato não legitima um distributivismo salarial irrealista. Uma política eco-
nômica progressista no Brasil terá, necessariamente, como objetivo principal
conseguir uma distribuição menos desigual da renda, mas ao mesmo tempo terá
de acautelar-se contra a elevação dos salários reais acima dos níveis de produ-
tividade. Sempre que se tentar descumprir essa regra, os lucros estarão ameaça-
dos e a aceleração da taxa de inflação será inevitável. Na verdade, a política
salarial deveria limitar-se a três objetivos: proteger o salário real da inflação,
assegurar a transferência das elevações na produtividade para os trabalhadores
e reduzir as diferenças salariais através do aumento gradual do salário mínimo.
Sem dúvida é possível aumentar os salários mais do que a produtividade sem
afetar os lucros dos setores produtivos, desde que se logre reduzir os rendi-
mentos dos rentistas ou então desde que se reduzam os impostos em função do
aumento da eficiência do Estado. Estas estratégias, entretanto, são de difícil
execução. Formas de distribuir a renda entre salários e lucros mais eficientes do
que o aumento dos salários acima da produtividade incluem uma política de in-
vestimentos voltada para bens trabalho-intensivos, a reforma agrária, uma re-
forma tributária progressiva e a orientação das despesas públicas para os po-
bres.
Estas idéias, no entanto, não são comumente aceitas na esquerda populis-
ta. O slogan "os aumentos salariais não são uma causa da inflação" é usado
com freqüência. Durante um bom tempo, no período do regime autoritário, esta
frase correspondeu à realidade, uma vez que os salários reais dificilmente se
elevavam a níveis superiores ao aumento da produtividade. Em certos momen-
tos foram, inclusive, reduzidos em termos absolutos. Mas, no final dos anos 70 Um Problema
começamos a ver um quadro diferente. E, depois da derrota do regime autoritá- a concentração de
rio em 1984, as demandas irrealistas por parte dos trabalhadores, particular- renda. Temos aqui
mente por parte da classe média assalariada empregada no setor público, au- uma das mais
mentaram acentuadamente. O acirramento do conflito distributivo causou a injustas distribuições
aceleração da inflação, tanto diretamente (inflação de custos) como através da de renda do mundo,
elevação do déficit público. Contudo, dada a aceleração da inflação, os au- mas este fato não
mentos reais de salários tenderam a ter vida curta; em pouco tempo a inflação distributivismo
mais elevada eliminava os aumentos reais de salários conseguidos geralmente salarial irrealista.
2
Uma resenha da teoria da inflação inercial encontra-se em Bresser Pereira, 1986: "In-
flação inercial e Plano Cruzado".
depois de intensa luta sindical. O único resultado duradouro foi uma taxa mais
elevada de inflação.
Concluindo, algumas idéias e práticas políticas da esquerda moderada—o
nacionalismo ultrapassado, a ideologia do mercado interno, a recusa às políticas
de ajustamento e o distributivismo salarial — não são mais compatíveis com po-
líticas econômicas racionais e coerentes. Elas representam um obstáculo para o
crescimento e para a estabilidade de preços, e, portanto, para a consolidação da
Ideologias da Direita Oportunista
1. Populismo econômico
Esta é uma doença política básica no Brasil. Sei muito bem que a palavra
populismo possui diversos significados. É por isso que qualifico populismo
com o adjetivo econômico, para distingui-lo de outros significados, como, por
exemplo, o pacto populista dos anos 50. Quem falou com grande competência
sobre o populismo econômico em poucas páginas foi Carlos Diaz Alejandro, ao
descrever as causas da crise econômica que costumava preceder as políticas de
estabilização nos países do Cone Sul (ALEJANDRO, 1981)3. Na verdade po-
demos distinguir dois tipos de populismo econômico:
1) o populismo de esquerda, que se confunde com o distributivismo sala-
rial; populismo econômico nesta acepção é distributivismo ingênuo via
salários;
2) populismo de direita, um fenômeno muito próximo do desenvolvimen-
tismo; define-se pela prática política de dizer sim às demandas de to-
dos os setores da sociedade às custas do setor público, invariavelmente
adotada pelos políticos oportunistas e clientelistas.
As políticas econômicas populistas levam, direta ou indiretamente, ao au-
mento do déficit público e ao desequilíbrio da balança de pagamentos. Entre as
práticas populistas mais comuns temos:
a) a elevação dos ordenados e salários dos funcionários e dos trabalhado-
res públicos e privados;
b) o aumento das compras ao setor privado;
c) o estabelecimento de subsídios ao consumo;
d) o estabelecimento de subsídios e incentivos (renúncias fiscais) ao setor
privado;
3
Ver também a contribuição pioneira sobre o ciclo econômico populista de Guillermo
O'Donnell (1977). Este, embora um cientista político, fez uma análise além de política
também econômica do ciclo populista.
e) a valorização artificial da moeda local;
f) o aumento dos créditos subsidiados através dos bancos oficiais estão
entre as práticas populitas mais comuns. Beneficiam aparentemente a
todos—a funcionários, empresários e trabalhadores.
O resultado do populismo é o ciclo populista. No primeiro momento o
governo adota uma combinação das seguintes medidas: eleva os salários dos
funcionários públicos e facilita o aumento dos salários do setor privado, au-
menta as despesas públicas, valoriza a moeda local ao atrasar as desvaloriza-
ções nominais da taxa de câmbio, mantém artificialmente baixa a taxa interna
de juros, e segura artificialmente os preços do setor público. Em conseqüência
temos a elevação do consumo e dos investimentos, a aceleração da taxa de
crescimento e uma inflação declinante em função da valorização cambial e do
atraso dos preços públicos. É o momentâneo paraíso. Mas logo as distorções
provocadas por estas práticas se manifestam. Aparecem os desequilíbrios no
balanço de pagamentos na medida em que os exportadores suspendem suas ex-
portações e os importadores aumentam suas compras. A inflação volta a se
acelerar, muitas vezes de forma dramática. O ciclo termina geralmente com uma
mudança radical na política econômica freqüentemente precedida por uma gra-
ve crise e pela mudança dos ministros responsáveis, senão por um golpe de
Estado. As políticas expansionistas de 1979/80 (provavelmente o pior erro na
história da política econômica no Brasil) e do Plano Cruzado (um plano exce-
lente, uma oportunidade perdida em função de uma administração incompeten-
te) são exemplos típicos do ciclo populista no Brasil, o primeiro, proveniente
da direita sob Delfim Netto, e o segundo, tendo por origem setores progressis-
tas.
2. Clientelismo
Esta é uma prática política no meio do caminho entre populismo e mera
corrupção. As três práticas implicam no uso de fundos públicos. No caso do
populismo, temos uma forma impessoal de se assegurar a boa vontade dos gru-
pos ou comunidades beneficiadas pela despesa pública; no caso da corrupção,
estamos diante de uma forma pessoal e direta de enriquecimento às custas do
erário público; no caso do clientelismo, temos numa forma intermediária entre
os dois casos anteriores, uma forma semipessoal de uso dos fundos públicos
beneficiando diretamente eleitores potenciais e indiretamente o autor da prática
clientelística. No Brasil inventou-se uma palavra nova e muito expressiva para
significar clientelismo: fisiologismo. O político fisiológico é um oportunista por
definição. É uma pessoa que transforma a política em um negócio como qual-
quer outro — em um negócio em que o político usa seu poder político para reali-
zar trocas, para prestar e receber favores. É um fisiológico porque coloca os
interesses pessoais e materiais acima das idéias, acima dos princípios e valores
morais que deveriam presidir a ação política.
Estas duas práticas políticas oportunistas estão profundamente arraigadas
No Brasil inventou-se
uma palavra nova e no sistema político brasileiro. São uma conseqüência do baixo nível de cidada-
muito expressiva para nia do povo. A desinformação, a educação precária, a desconfiança em relação
significar clientelismo: aos candidatos populares são características típicas do eleitor médio brasileiro.
fisiologismo. O político
fisiológico é um Desta forma, nas palavras de WANDERLEY REIS (1988, p. 24), "dificilmente
oportunista por se poderia pretender que, nas condições que caracterizam o eleitorado brasilei-
definição. ro, a estabilização do jogo democrático viesse a ocorrer em torno de partidos
ideológicos(...) o processo de agregação partidária de interesses continuará
provavelmente a dar-se entre nós através de partidos que combinem o cliente-
lismo tradicional com um apelo eleitoral de tonalidades populistas".
1. Conservadorismo social
3. Liberalismo grosseiro
4. Internacionalismo subordinado
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Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas, São
Paulo, e professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP.