PEREIRA, 1989 - Transição Democrática

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Ideologias econômicas

e democracia no Brasil*
Luiz Carlos Bresser Pereira

A transição para a democracia foi um longo processo no Brasil. Teve iní-


cio em meados dos anos 70 e terminou somente no começo de 1985. Três anos
mais tarde, no entanto, a maioria das pessoas acredita que o processo de demo-
cratização não está terminado. Raymundo Faoro disse recentemente que a tran-
sição para a democracia no Brasil está durando tanto que acabará sendo mais
longa que o período do regime autoritário (FAORO, 1988, p.7). Compreendo
este ponto de vista, mas não o aceito. A transição para a democracia terminou
há três anos. Mas a democracia resultante é decepcionante, uma vez que não
conseguiu solucionar os problemas econômicos e sociais que o País enfrenta.
Em outras palavras, o regime político no Brasil é democrático, mas a democra-
cia está muito longe de se consolidar. De fato, como o novo governo democrá-
tico tem se mostrado incapaz de superar os problemas econômicos e sociais
existentes, surgiu uma nova crise política.
Num trabalho recente eu analisei a crise política hoje existente no Brasil —
uma crise de legitimidade e governabilidade — e a relacionei à inabilidade do
governo Sarney em obter credibilidade e ser fiel ao pacto político moderno e
democrático que uniu os trabalhadores, a classe média assalariada e os empre-
sários em torno da luta contra o regime militar autoritário (BRESSER PEREI-
RA, 1986). Este foi um pacto entre as diversas classes do capital industrial mo-
derno — o tipo predominante do capital no Brasil. O governo Sarney, entretan-
to, particularmente a partir de 1987, foi dominado pelos representantes de um
tipo de capital mercantil, arcaico, formado por políticos e empresários depen-
dentes dos favores do Estado. A incompatibilidade entre o governo central e as
forças econômicas e ideológicas hegemônicas no Brasil, bem como a inabilida-
de do governo em enfrentar a aguda crise econômica prevalecente hoje no Bra-
sil produziram uma crise de legitimidade que põe em risco a nova democracia
brasileira.
Neste trabalho farei uma abordagem complementar, na medida em que
vou tentar analisar alguns obstáculos políticos e ideológicos para a consolida-
ção da democracia no Brasil. Proporei que o processo de democratização do
País baseou-se em realidades socioeconómicas sólidas e que foi uma conquista
da sociedade civil e não um presente do regime militar. Tentarei também de-
monstrar que o processo de democratização não levou em conta, muito menos
soube criticar, algumas ideologias e práticas políticas típicas de países subde-
senvolvidos de renda média, como o Brasil: crenças nacionalistas anacrônicas

* Trabalho apresentado no seminário L'internacionalisation de la Democratié Politique,


organizado pela Universidade de Montreal, 28 de setembro a 5 de outubro de 1988.
da esquerda, demandas irrealistas por parte dos trabalhadores apoiadas em um
distributivismo ingênuo, populismo e clientelismo por parte dos políticos opor-
tunistas, conservadorismo, miopia e subordinação aos interesses externos das
elites. Ora, estas ideologias e práticas políticas constituem-se em sérios obstá-
culos às políticas econômicas coerentes e progressistas, necessárias para se
conseguir a retomada do crescimento e a estabilidade de preços.
A crise econômica no Brasil — definida pela estagnação da renda per ca-
pita desde 1980 e por taxas de inflação extraordinariamente altas—foi, no iní-
cio dos anos 80, a causa básica da derrota do regime autoritário, mas, hoje, co-
mo permanece sem solução, esta mesma crise econômica está ameaçando o no-
vo regime democrático. Recessão e altas taxas de inflação serão sempre fatores
de instabilidade para o regime estabelecido no poder, seja ele autoritário ou
democrático. Ao final dos anos 80, é a democracia que está sendo ameaçada
pela crise econômica, uma vez que a maioria dos regimes políticos da América
Latina são democráticos.
Neste trabalho não irei discutir a crise econômica, mas sim os problemas
políticos que dificultam sua solução. É comum ouvir-se que a atual crise eco-
nômica brasileira tem origens políticas e que deveria ser solucionada na arena
política. Não concordo com esta proposição. Acredito que as crises política e
econômica hoje existentes no Brasil são autônomas embora interdependentes,
mutuamente se influenciando. A crise econômica é mais antiga, suas origens
podem ser encontradas no final dos anos 70. A crise política, na sua forma
atual, é um fenômeno da segunda metade dos anos 80; está definida pela inabi-
lidade do governo Sarney e, mais amplamente, da elite brasileira, em enfrentar
o desafio de estabelecer no Brasil instituições e práticas políticas e ideológicas
coerentes com um capitalismo moderno e democrático.
Dizer que os problemas econômicos têm origens políticas ou que sua so-
lução depende somente da vontade política é reduzir a política econômica (a-
través da qual a política se expressaria) a uma engenharia social todo-poderosa.
O nome original e mais correto da ciência econômica—economia política—res-
saltava o caráter social e político do processo econômico. Mas isto não justifica
uma transformação dos problemas econômicos reais em problemas políticos, ou
dizer que a crise econômica que o Brasil enfrenta hoje será superada contanto
que se encontre uma solução adequada para os problemas políticos. Há aqui
uma contradição curiosa, porque os economistas conservadores, que defendem
a neutralidade política e ideológica da economia positiva, são exatamente os
A crise econômica no que dizem que os problemas econômicos podem ser facilmente solucionados
Brasil—definida pela por meios políticos. Os obstáculos políticos às políticas econômicas coerentes
estagnação da renda
per capita desde 1980 e têm uma importância enorme, mas sua solução não garante que os problemas
por taxas de inflação econômicos serão resolvidos com êxito.
extraordinariamente
altas—foi, no início A consolidação da democracia no Brasil depende da superação da atual
dos anos 80, a causa crise, tanto econômica como política. Simon Schwartzman observou que é um
básica da derrota do "mito político" acreditar-se que os regimes democráticos são mais eficientes
regime autoritário,
mas, hoje, como que os regimes autoritários em produzir benefícios sociais e econômicos
permanece sem (SCHWARTZMAN, 1988, p.4). É verdade. A democracia não deve ser consi-
solução, esta mesma derada como um meio, mas como um fim em si mesma. Mas é também verdade
crise econômica está
ameaçando o novo que o processo de redemocratização provocou grandes expectativas em função
regime democrático. desse mito. Agora, a inabilidade do novo regime democrático em gerenciar o
problema econômico e social no Brasil é uma fonte de desapontamento, repre-
sentando uma ameaça maior para a consolidação da democracia. Neste trabalho
tentarei compreender porque isto está ocorrendo, procurando definir os obstá-
culos políticos e ideológicos a uma política econômica reformista e racional, a
qual se constitui em fator essencial para a consolidação da democracia no Brasil.

O Processo de Redemocratização

O processo de redemocratização que ocorreu no País entre meados dos


anos 70 e 1984 foi o resultado de um profundo processo político. A democracia
resultante não é um presente ou uma concessão do regime militar, mas sim uma
conquista da sociedade civil. Baseou-se na consolidação de um tipo moderno
de capitalismo, que dispensa o uso da violência direta para apropriação do ex-
cedente.
Há, de fato, duas interpretações opostas para o processo de redemocrati-
zação no Brasil. Pode-se dizer, primeiro, que a distensão de Geisel, e, segundo,
a abertura de Figueiredo demonstram que o processo de redemocratização foi
uma iniciativa do regime militar; a sociedade civil pode ter tido algum papel ao
protestar ou pressionar pela democracia, mas o processo de redemocratização
foi essencialmente o resultado de uma estratégia política do regime autoritário
(MARTINS, 1983; DINIZ, 1985). Minha interpretação dirige-se no sentido
contrário (BRESSER PEREIRA, 1978; 1985). O que de fato ocorreu no Brasil
foi um processo dialético entre a redemocratização exigida pela sociedade civil
e a lenta estratégia de abertura conduzida pelo regime militar. O processo de
redemocratização, que contou desde o golpe de 1964 com o apoio dos trabalha-
dores e da classe média assalariada e intelectualizada (tecnoburocracia demo-
crática), recebeu a decisiva adesão da burguesia (mais especificamente dos em-
presários líderes) em torno de 1977. Foi este apoio que fortaleceu o processo de
redemocratização, mas foi também o fator que, conduzindo a uma transição
conservadora (WEFFORT, 1984), levou alguns analistas a afirmarem que a
transição não ocorreu efetivamente (FERNANDES, 1986).
Esses analistas não estão certos. Eles são vítimas de seu natural desapon-
tamento com o novo regime democrático. O processo de redemocratização
ocorreu efetivamente. O fato de o novo presidente não ter sido eleito direta-
mente pelo povo é importante mas não essencial. Os fatos são que nós tivemos
eleições livres em 1986, a imprensa e a formação de partidos políticos são li-
vres, o poder judiciário está trabalhando com independência, o Congresso aca-
ba de redigir uma nova Constituição que foi livremente debatida e aprovada;
uma constituição que não é um sonho, que é muito conservadora para a esquer- O processo de
da e muito progressista para a direita, mas que é de fato o melhor compromisso redemocratização que
que a sociedade brasileira poderia produzir nos dias de hoje. Por todas essas ocorreu no País entre
meados dos anos 70 e
razões, nós realmente temos um regime democrático no Brasil e uma nova 1984 foi o resultado de
constituição que, apesar das falhas que a ela atribuímos, é um fator positivo pa- um profundo processo
ra a consolidação da democracia no Brasil. político. A democracia
resultante não é um
Eu sei muito bem que esta nova democracia não trouxe nem desenvolvi- presente ou uma
mento econômico nem justiça social para o País. Mas é importante não ampliar concessão do regime
militar, mas sim uma
o conceito de democracia, incluindo nele todos os nossos objetivos. A demo- conquista da sociedade
cracia é um tipo de regime político, e não uma utopia. A democracia hão é ne- civil.
cessariamente o meio mais eficiente para o desenvolvimento econômico e a
justiça social. Historicamente, "a democracia surgiu como uma adição tardia à
sociedade de mercado competitivo e ao estado liberal(...) foi uma tentativa por
parte da classe mais baixa de conseguir seu lugar justo e totalmente competitivo
dentro daquelas instituições e aquele sistema de sociedade" (MACPHERSON,
1966, p. 10-11).

Podemos ter regimes autoritários que obtêm grande êxito em promover


desenvolvimento econômico—foi o caso do Brasil durante boa parte do período
autoritário — e em produzir uma distribuição mais igualitária da renda (veja, por
exemplo, as formações estatistas contemporâneas que têm como protótipo a
União Soviética). Na verdade a democracia se justifica por ela mesma. A de-
mocracia, o crescimento econômico e a distribuição mais uniforme da renda de-
vem ser os objetivos finais de toda sociedade.
Certamente podemos considerar cada um desses objetivos como relacio-
nado com os demais. É mais fácil, por exemplo, manter a democracia quando o
País está crescendo, e espero que o contrário também seja verdade. O cresci-
mento, a estabilidade dos preços e a distribuição da renda são fatores primor-
diais na consolidação da democracia. Mas não faz sentido confundir democra-
cia com desenvolvimento econômico ou com uma distribuição mais uniforme da
renda.

Ideologias da Esquerda Moderada

A democracia no Brasil é mais sólida e arraigada ao sistema econômico e


social do que normalmente se pensa. As razões por trás desta proposição pode-
riam ser sintetizadas desta forma:
1) o capitalismo industrial moderno consegue apropriar excedentes eco-
nômicos através do mercado, dispensando o uso de força direta neces-
sária nas sociedades pré-capitalistas e mercantilistas;
2) a burguesia não se sente ameaçada pela esquerda;
3) a esquerda revolucionária está em crise no mundo todo e em particular
na América Latina, e, desta forma, não tem um projeto revolucionário
que pudesse ameaçar a hegemonia da burguesia;
4) o mesmo pode-se dizer dos militares, e, de forma mais ampla, dos au-
toritários: eles não têm um projeto alternativo; estão tão perplexos com
a crise econômica e política quanto a burguesia;
5) os Estados Unidos já não incluem mais os golpes de estado em sua es-
tratégia para consolidar o capitalismo na América Latina.
Não se pode dizer, entretanto, que a democracia esteja consolidada.
O'DONNELL (1988, p.85) salientou que dada a improbabilidade de um golpe
militar, a "morte lenta" da democracia — isto é, um processo de contínua perda
de efetividade e credibilidade das instituições políticas devido ao fracasso do
governo em enfrentar os problemas sociais e econômicos — é uma outra possi-
bilidade.
A incapacidade governamental ao enfrentar esses problemas não pode ser
atribuída exclusivamente às limitações pessoais dos governantes, nem à enorme
dimensão dos obstáculos econômicos. Os obstáculos econômicos são sem dúvi-
da imensos. Não é por acaso que a América Latina está estagnada há dez anos,
desde que se desencadeou a crise da dívida externa. Mas esta incapacidade po-
de e deve também ser explicada pelas práticas políticas e ideológicas não pre-
dispostas à adoção das políticas econômicas corajosas, coerentes e firmes que
são necessárias.
Examinemos estas ideologias e práticas políticas. Irei classificá-las segun-
do suas origens:
1) na esquerda moderada;
2) na direita oportunista;
3) na direita ideológica.
Começarei pela esquerda moderada. Embora me sinta pessoalmente identi- Em meados dos anos
ficado com este grupo, estou há muito tempo convencido de que uma tarefa es- 60 o regime
sencial hoje em dia é a de criticar o anacronismo de algumas idéias da esquer- autoritário decidiu por
uma estratégia de
da. Nos anos 50 eu estava engajado na luta pela industrialização via substitui- desenvolvimento
ção de importações e intervenção moderada do Estado, mas já na década de 60 voltada para as
chamava a atenção para os fatos históricos relacionados à modernização do ca- exportações. Foi uma
pitalismo que exigiam uma nova interpretação do Brasil (BRESSER PEREIRA, decisão acertada,
embora tenha tido a
1968, cap. 5, e 1983). Esta esquerda moderada criticava severamente as políti- conseqüência perversa
cas econômicas ortodoxas do regime autoritário. Às vezes fazia-o corretamente, a curto prazo de
mas em outras ocasiões estava apenas repetindo slogans fora de moda, que po- compatibilizar taxas
sustentadas de
deriam fazer sentido nos anos 50, mas não mais nos anos 80. Vamos rever estas demanda interna com
idéias. concentração de renda.

1. Nacionalismo ultrapassado
Nas décadas de 40 e 50 a esquerda desenvolveu a tese de que o imperia-
lismo estava aliado ao capital agromercantil para evitar a industrialização. Os
altos investimentos das multinacionais na indústria manufatureira desde meados
dos anos 50 provaram que, se a tese esteve correta no passado, deixou de ser
legítima desde então (CARDOSO e FALETTO, 1970). Mas ainda hoje temos
nacionalistas pensando em termos de anos 50. Eles não entendem que ser na-
cionalista nos dias de hoje é, antes de mais nada, combater a tentativa irracional
de pagar integralmente a dívida externa, ou empenhar-se pelo desenvolvimento
do progresso tecnológico e científico autônomo dentro do País, é, em outras
palavras, ter uma clara noção do que seja o interesse nacional, ao invés de
opor-se às multinacionais, que contribuem de forma efetiva para o crescimento
econômico do País.
2. Orientação no sentido do mercado interno
Em meados dos anos 60 o regime autoritário decidiu-se por uma estratégia
de desenvolvimento voltada para as exportações. Foi uma decisão acertada,
embora tenha tido a conseqüência perversa a curto prazo de compatibilizar ta-
xas sustentadas de demanda interna com concentração de renda1. A esquerda
moderada se opôs a esse procedimento desde o início, sem saber que o padrão
alternativo de crescimento, baseado em projetos de substituição de exportações
altamente intensivos em capital, além de ter esgotado suas virtualidades como
um modelo de crescimento no início da década de 60, concentra muito mais
renda no longo prazo do que uma estratégia de crescimento baseada em expor-
tações de bens manufaturados intensivos em mão-de-obra.
Nos anos 70 a esquerda costumava criticar Formosa e a Coréia como
sendo meras plataformas de exportação, enquanto que um dos intelectuais da
direita ideológica no Brasil, Roberto Campos, pretendia que esses países fos-
sem exemplos de sociedades liberais. Hoje em dia sabemos que esses países de-
senvolveram uma grande indústria apoiada em um Estado com forte capacidade
de intervenção e um claro sentido do interesse nacional, que tiveram um enor-
me aumento de produtividade ao buscarem aumentar sua competitividade inter-
nacional através de uma estratégia de desenvolvimento voltado para as exporta-
ções, e que apresentam uma distribuição de renda muito mais uniforme do que
o Brasil. A reforma agrária promovida nesses países logo após a Segunda Guer-
ra foi uma causa dessa melhor distribuição de renda; a outra foi a política de
crescimento voltado para as exportações.
3. Não às políticas de ajustamento
Esta é a conseqüência de um desenvolvimentismo arraigado — e não devi-
damente revisto quando isto se tornou necessário — que caracterizou os estrutu-
ralistas latino-americanos, inclusive este autor, nos anos 50. Criticamos dura-
mente o ajustamento da década de 60. O fato desse ajustamento ter-se baseado
quase que exclusivamente na redução dos salários (LARA REZENDE, 1982)
foi uma boa razão para críticas. Mas a esquerda baseou seu desacordo quase
que somente no slogan "não à recessão", e ao fazê-lo incorreu no populismo.
Em 1979, quando o ajustamento se fazia absolutamente necessário, a irrespon-

1
Examinei esta questão pela primeira vez ainda em 1970, quando a esquerda insistia em
falar em estagnação apesar do enorme crescimento econômico que estava ocorrendo, no
artigo: "Dividir ou Multiplicar?" publicado na Visão (novembro, 1970). Depois exami-
nei extensamente o problema em Estado e subdesenvolvimento industrializado (1977).
sável política desenvolvimentista e populista — porque o populismo é tanto de
esquerda quanto de direita — do Ministério do Planejamento do regime autoritá-
rio foi apoiado por economistas da esquerda estruturalista moderada. Quando
em 1981, afinal, o ajustamento teve início, a idéia básica da esquerda era de
que essa medida não era necessária, quando na realidade o era. Naquele mo-
mento era de fato impossível—além de indesejável—tentar manter altos déficits
comerciais. A única crítica séria e inovadora às políticas ortodoxas de ajusta-
mento originou-se na esquerda moderada a partir dos economistas que desen-
volveram a teoria da inflação inercial2.
4. Distributivismo salarial
Um problema gravíssimo no Brasil é a concentração de renda. Temos aqui
uma das mais desequilibradas e injustas distribuições de renda do mundo, mas
este fato não legitima um distributivismo salarial irrealista. Uma política eco-
nômica progressista no Brasil terá, necessariamente, como objetivo principal
conseguir uma distribuição menos desigual da renda, mas ao mesmo tempo terá
de acautelar-se contra a elevação dos salários reais acima dos níveis de produ-
tividade. Sempre que se tentar descumprir essa regra, os lucros estarão ameaça-
dos e a aceleração da taxa de inflação será inevitável. Na verdade, a política
salarial deveria limitar-se a três objetivos: proteger o salário real da inflação,
assegurar a transferência das elevações na produtividade para os trabalhadores
e reduzir as diferenças salariais através do aumento gradual do salário mínimo.
Sem dúvida é possível aumentar os salários mais do que a produtividade sem
afetar os lucros dos setores produtivos, desde que se logre reduzir os rendi-
mentos dos rentistas ou então desde que se reduzam os impostos em função do
aumento da eficiência do Estado. Estas estratégias, entretanto, são de difícil
execução. Formas de distribuir a renda entre salários e lucros mais eficientes do
que o aumento dos salários acima da produtividade incluem uma política de in-
vestimentos voltada para bens trabalho-intensivos, a reforma agrária, uma re-
forma tributária progressiva e a orientação das despesas públicas para os po-
bres.
Estas idéias, no entanto, não são comumente aceitas na esquerda populis-
ta. O slogan "os aumentos salariais não são uma causa da inflação" é usado
com freqüência. Durante um bom tempo, no período do regime autoritário, esta
frase correspondeu à realidade, uma vez que os salários reais dificilmente se
elevavam a níveis superiores ao aumento da produtividade. Em certos momen-
tos foram, inclusive, reduzidos em termos absolutos. Mas, no final dos anos 70 Um Problema
começamos a ver um quadro diferente. E, depois da derrota do regime autoritá- a concentração de
rio em 1984, as demandas irrealistas por parte dos trabalhadores, particular- renda. Temos aqui
mente por parte da classe média assalariada empregada no setor público, au- uma das mais
mentaram acentuadamente. O acirramento do conflito distributivo causou a injustas distribuições
aceleração da inflação, tanto diretamente (inflação de custos) como através da de renda do mundo,
elevação do déficit público. Contudo, dada a aceleração da inflação, os au- mas este fato não
mentos reais de salários tenderam a ter vida curta; em pouco tempo a inflação distributivismo
mais elevada eliminava os aumentos reais de salários conseguidos geralmente salarial irrealista.

2
Uma resenha da teoria da inflação inercial encontra-se em Bresser Pereira, 1986: "In-
flação inercial e Plano Cruzado".
depois de intensa luta sindical. O único resultado duradouro foi uma taxa mais
elevada de inflação.
Concluindo, algumas idéias e práticas políticas da esquerda moderada—o
nacionalismo ultrapassado, a ideologia do mercado interno, a recusa às políticas
de ajustamento e o distributivismo salarial — não são mais compatíveis com po-
líticas econômicas racionais e coerentes. Elas representam um obstáculo para o
crescimento e para a estabilidade de preços, e, portanto, para a consolidação da
Ideologias da Direita Oportunista

Diferentes, mas afinal conduzindo aos mesmos resultados, são as práticas


políticas e ideológicas da direita moderada oportunista e da direita moderada
ideológica. Esta última se autodenomina "centro" no Brasil, mas o conceito de
centro não faz sentido em ciência política. É apenas um disfarce dos represen-
tantes da direita, que no Brasil não gostam de serem chamados de direitistas ou
conservadores. Por outro lado, a direita oportunista faz parte da direita sim-
plesmente porque o Brasil é um país capitalista. Na verdade, um oportunista é,
por definição, um político sem convicções ideológicas. Num país capitalista,
mesmo que finja ou pretenda pertencer à esquerda, ele será em última análise
uma pessoa de direita, pois fará todas as concessões possíveis e imagináveis pa-
ra a classe dominante. Neste sentido, uma parte da autodenominada esquerda na
América Latina é, de fato, de direita na medida em que é oportunista.
Vejamos as principais práticas políticas dos oportunistas. São práticas que
têm uma influência direta sobre a política econômica.

1. Populismo econômico
Esta é uma doença política básica no Brasil. Sei muito bem que a palavra
populismo possui diversos significados. É por isso que qualifico populismo
com o adjetivo econômico, para distingui-lo de outros significados, como, por
exemplo, o pacto populista dos anos 50. Quem falou com grande competência
sobre o populismo econômico em poucas páginas foi Carlos Diaz Alejandro, ao
descrever as causas da crise econômica que costumava preceder as políticas de
estabilização nos países do Cone Sul (ALEJANDRO, 1981)3. Na verdade po-
demos distinguir dois tipos de populismo econômico:
1) o populismo de esquerda, que se confunde com o distributivismo sala-
rial; populismo econômico nesta acepção é distributivismo ingênuo via
salários;
2) populismo de direita, um fenômeno muito próximo do desenvolvimen-
tismo; define-se pela prática política de dizer sim às demandas de to-
dos os setores da sociedade às custas do setor público, invariavelmente
adotada pelos políticos oportunistas e clientelistas.
As políticas econômicas populistas levam, direta ou indiretamente, ao au-
mento do déficit público e ao desequilíbrio da balança de pagamentos. Entre as
práticas populistas mais comuns temos:
a) a elevação dos ordenados e salários dos funcionários e dos trabalhado-
res públicos e privados;
b) o aumento das compras ao setor privado;
c) o estabelecimento de subsídios ao consumo;
d) o estabelecimento de subsídios e incentivos (renúncias fiscais) ao setor
privado;

3
Ver também a contribuição pioneira sobre o ciclo econômico populista de Guillermo
O'Donnell (1977). Este, embora um cientista político, fez uma análise além de política
também econômica do ciclo populista.
e) a valorização artificial da moeda local;
f) o aumento dos créditos subsidiados através dos bancos oficiais estão
entre as práticas populitas mais comuns. Beneficiam aparentemente a
todos—a funcionários, empresários e trabalhadores.
O resultado do populismo é o ciclo populista. No primeiro momento o
governo adota uma combinação das seguintes medidas: eleva os salários dos
funcionários públicos e facilita o aumento dos salários do setor privado, au-
menta as despesas públicas, valoriza a moeda local ao atrasar as desvaloriza-
ções nominais da taxa de câmbio, mantém artificialmente baixa a taxa interna
de juros, e segura artificialmente os preços do setor público. Em conseqüência
temos a elevação do consumo e dos investimentos, a aceleração da taxa de
crescimento e uma inflação declinante em função da valorização cambial e do
atraso dos preços públicos. É o momentâneo paraíso. Mas logo as distorções
provocadas por estas práticas se manifestam. Aparecem os desequilíbrios no
balanço de pagamentos na medida em que os exportadores suspendem suas ex-
portações e os importadores aumentam suas compras. A inflação volta a se
acelerar, muitas vezes de forma dramática. O ciclo termina geralmente com uma
mudança radical na política econômica freqüentemente precedida por uma gra-
ve crise e pela mudança dos ministros responsáveis, senão por um golpe de
Estado. As políticas expansionistas de 1979/80 (provavelmente o pior erro na
história da política econômica no Brasil) e do Plano Cruzado (um plano exce-
lente, uma oportunidade perdida em função de uma administração incompeten-
te) são exemplos típicos do ciclo populista no Brasil, o primeiro, proveniente
da direita sob Delfim Netto, e o segundo, tendo por origem setores progressis-
tas.
2. Clientelismo
Esta é uma prática política no meio do caminho entre populismo e mera
corrupção. As três práticas implicam no uso de fundos públicos. No caso do
populismo, temos uma forma impessoal de se assegurar a boa vontade dos gru-
pos ou comunidades beneficiadas pela despesa pública; no caso da corrupção,
estamos diante de uma forma pessoal e direta de enriquecimento às custas do
erário público; no caso do clientelismo, temos numa forma intermediária entre
os dois casos anteriores, uma forma semipessoal de uso dos fundos públicos
beneficiando diretamente eleitores potenciais e indiretamente o autor da prática
clientelística. No Brasil inventou-se uma palavra nova e muito expressiva para
significar clientelismo: fisiologismo. O político fisiológico é um oportunista por
definição. É uma pessoa que transforma a política em um negócio como qual-
quer outro — em um negócio em que o político usa seu poder político para reali-
zar trocas, para prestar e receber favores. É um fisiológico porque coloca os
interesses pessoais e materiais acima das idéias, acima dos princípios e valores
morais que deveriam presidir a ação política.
Estas duas práticas políticas oportunistas estão profundamente arraigadas
No Brasil inventou-se
uma palavra nova e no sistema político brasileiro. São uma conseqüência do baixo nível de cidada-
muito expressiva para nia do povo. A desinformação, a educação precária, a desconfiança em relação
significar clientelismo: aos candidatos populares são características típicas do eleitor médio brasileiro.
fisiologismo. O político
fisiológico é um Desta forma, nas palavras de WANDERLEY REIS (1988, p. 24), "dificilmente
oportunista por se poderia pretender que, nas condições que caracterizam o eleitorado brasilei-
definição. ro, a estabilização do jogo democrático viesse a ocorrer em torno de partidos
ideológicos(...) o processo de agregação partidária de interesses continuará
provavelmente a dar-se entre nós através de partidos que combinem o cliente-
lismo tradicional com um apelo eleitoral de tonalidades populistas".

Ideologias da Direita Conservadora

A direita ideológica é também uma fonte importante de política econômica


irracional. Nesta categoria estão incluídos os economistas neoclássicos ou mo-
netaristas que adotam uma posição teórica militante contra praticamente qual-
quer tipo de intervenção do Estado na economia. Boa parte da elite empresarial
brasileira deve também ser incluída nesta categoria. Seus líderes não são opor-
tunistas, mas ideologicamente conservadores. E nos países em desenvolvimento
o conservadorismo - além de colocar a ordem acima da justiça social, além de
resistir a mudanças, como ocorre em todos os conservadorismos—significa su-
bordinação ideológica ao sistema de valores e crenças dominantes nos países
centrais.
Os membros desta corrente estão verdadeiramente convencidos de que
suas visões sobre política econômica são intrinsicamente racionais. A lógica do
capitalismo e sua própria lógica seriam, ambas, pura racionalidade — uma racio-
nalidade que confrontam com a irracionalidade da esquerda e dos políticos
oportunistas. Dado seu controle sobre os meios de comunicação, eles conse-
guem habilmente veicular estas idéias para a sociedade, e, assim, reforçar sua
hegemonia ideológica.
Na verdade, suas idéias estão muito longe de serem racionalidade pura, e
representam um obstáculo da maior importância à adoção de uma política eco-
nômica coerente no Brasil, especialmente em um momento em que é necessário
coragem na tomada de decisões econômicas. Vejamos estas ideologias e práti-
cas políticas da direita ideológica:

1. Conservadorismo social

Este é um problema óbvio em um país onde a concentração de renda é


surpreendentemente alta. A carga fiscal é relativamente baixa e o sistema tri-
butário muito regressivo no Brasil. Assim, uma reforma fiscal progressiva é um
instrumento óbvio para reduzir o déficit público e melhorar a distribuição da
renda. A direita ideológica se opõe sistematicamente a reformas fiscais que ele-
vem a carga fiscal ou a tornem mais progressiva. Os argumentos que usa vão A direita ideológica é
desde a negação de que a carga tributária seja baixa no Brasil até preocupações também uma fonte
quanto ao desestímulo à poupança e ao investimento. Em contrapartida, os sub- importante de política
econômica irracional.
sídios e os incentivos fiscais às empresas são uma fonte por excelência de de- Nesta categoria estão
sequilíbrio orçamentário; a maioria deles perdeu sua raison d'être há muito incluídos os
tempo; e todavia a eliminação dos subsídios e das renúncias fiscais encontra economistas
sempre a oposição por parte de seus beneficiários. Sem dúvida a direita ideoló- neoclássicos ou
monetaristas que
gica está formalmente preocupada com a concentração da renda no Brasil, mas adotam uma posição
nada faz para resolver o problema; ela sabe que um pacto social, que seria es- teórica militante
sencial para controlar os salários e cortar a inflação, não pode ser implementa- contra praticamente
qualquer tipo de
do sem concessões aos trabalhadores em termos de reformas sociais, mas, via intervenção do Estado
de regra, tende a se opor a essas reformas. Age assim não apenas em função de na economia.
seus interesses de classes mas a partir de sua profunda convicção que a ordem
tem prioridade sobre a justiça. Que jamais se pode arriscar a ordem em nome de
mais justiça social.
2. Monetarismo
Esta foi uma contra-revolução conservadora contra o keynesianismo, que
aparece em sua forma original na versão de Friedman e desenvolve-se através
da teoria das expectativas racionais dos "novos clássicos" — Sargent, Lucas.
Baseia-se em uma contradição fundamental: é uma teoria macroeconômica ne-
cessariamente voltada para a política econômica (a política econômica tornou-
se-inevitável a partir da revolução keynesiana), que, no entanto, postula a abs-
tinência radical de intervenção estatal. Na verdade essa abstinência não é posta
em prática, primeiro, porque as políticas econômicas recomendadas pelo mo-
netarismo para alcançar a estabilização — a partir da qual se poderia praticar
aquela abstinência — devem ser muito ativas; segundo, porque a estabilização,
quando alcançada, é sempre muito precária, exigindo uma contínua intervenção
do Estado para tentar mantê-la.
Atualmente o monetaristno é uma religião econômica dos países capita-
listas desenvolvidos. Dada a subordinação ideológica ao centro das elites nos
países periféricos, é adotado quase que sem restrições pela direita ideológica
em um país periférico como o Brasil. Dois exemplos: a inflação no Brasil tem
origens estruturais e um caráter inercial, mas acredita-se que ela pode ser con-
trolada através somente da adoção de políticas fiscais e monetárias. Os dese-
quilíbrios econômicos em uma economia subdesenvolvida como a brasileira são
muito profundos, mas, apoiada no monetarismo, a direita ideológica acredita
que as forças de mercado serão capazes de resolver todos os problemas.
Os fracassos sucessivos desta estratégia para enfrentar as crises econômi-
cas na Argentina, no Brasil e no Chile levaram o monetarismo a um certo grau
de descrédito no início dos anos 80, mas depois do fracasso dos heterodoxos
planos, Austral e Cruzado, o monetarismo recuperou parte de seu prestígio.
Repentinamente, como resultado de um manobra ideológica muito interessante
da direita ideológica, as políticas convencionais de estabilização sobre as quais
há um relativo consenso entre os bons economistas, as políticas econômicas
coerentes e racionais, portanto, foram identificadas com o monetarismo ortodo-
xo e contrapostas ao keynesianismo e à heterodoxia estruturalista, quando, de
fato, a adoção de uma grande parte dessas políticas é partilhada por economis-
tas de todas as escolas.
Na verdade, as políticas econômicas especificamente monetaristas são
freqüentemente inadequadas ou francamente irracionais. O caráter ideológico e
dogmático da recusa à intervenção estatal, inclusive à regulação macroeconô-
mica, torna evidentemente uma política econômica monetarista muito limitada.
Por outro lado, há uma tendência fundamental no monetarismo de desconsiderar
as características específicas da economia do País, em nome de uma pretensa
universalidade da teoria econômica. Não há dúvida de que essa universalidade
existe, mas seus limites históricos e geográficos devem estar sempre presentes
aos economistas.

3. Liberalismo grosseiro

É o complemento do monetarismo. A direita ideológica sabe, ou deveria


saber, que o Estado desempenhou um papel da maior importância na industria-
lização do Brasil. Mas nos anos 80 o Estado brasileiro foi reduzido a uma si-
tuação falimentar, vítima de uma gravíssima crise fiscal (WERNECK, 1987;
BRESSER PEREIRA, 1987). Em conseqüência, as possibilidades de colocar
em prática uma política industrial tornaram-se muito limitadas. A indústria tem
hoje muito pouco a obter adicionalmente do Estado. Por outro lado, o credo
conservador, neoliberal, predomina hoje nos países centrais industrializados.
Dessa forma não é difícil entender porque os slogans neoliberais contra a inter-
venção estatal passaram a predominar no Brasil também.
O País enfrenta atualmente a pior crise de sua história econômica. A ren-
da per capita estagnou desde 1980. A causa maior desta situação é a crise fiscal
do Estado. São necessárias medidas muito fortes para resolver este desequilí-
brio financeiro estrutural do setor público, que tornou negativa a poupança do
setor público, reduzindo dramaticamente sua capacidade de investimento. A di-
reita ideológica, no entanto, minimiza o problema ao falar em déficit público
quando temos uma crise fiscal, ao propor a demissão de alguns funcionários
públicos ou então a imaginar que a solução para tudo é a privatização, quando
decisões muito mais drásticas e abrangentes são necessárias (inclusive medidas
de desregulação e privatização). E coloca-se sempre e invariavelmente contra a
intervenção do Estado (contra a estatização), quando o problema real é, através
de políticas fiscais muito fortes e da estratégia de privatização, recuperar e re-
formar o setor público, que foi levado ao inchaço e à falência, entre outras cau-
sas, devido aos grandes subsídios e incentivos que concedeu e ainda concede
ao setor privado.

4. Internacionalismo subordinado

Uma internacionalização maior da economia brasileira é uma aspiração


natural da elite empresarial local. Na verdade, o que ela quer é uma integração
mais profunda da economia e da sociedade brasileiras ao Primeiro Mundo, do
qual quer fazer parte. Entende que esta integração tornará o capitalismo brasi-
leiro econômica e ideologicamente menos vulnerável. Não discutirei esses ob-
jetivos. Acredito que são perfeitamente coerentes. Caso haja, como é minha
convicção, uma clara hegemonia econômica e ideológica da burguesia, caso o
capitalismo esteja bem estabelecido no Brasil, este desejo de uma integração
maior com o mundo desenvolvido é bastante natural.
O problema é saber como alcançar essa integração. Muito freqüentemente
esse internacionalismo toma a forma de uma subordinação pouco crítica aos
interesses dos países desenvolvidos. Esta atitude, que proponho chamar de in-
ternacionalismo subordinado, é um fenômeno da vida cotidiana no Brasil. É
uma conseqüência da dominação econômica e cultural que o mundo desenvol-
vido central exerce sobre sua periferia. Mas, no caso da direita ideológica, esta
subordinação assume um caráter militante, tão incompatível com os interesses
nacionais quanto o velho nacionalismo da esquerda.
O exemplo mais dramático deste internacionalismo subordinado é a visão
adotada pela direita ideológica no tocante à dívida externa. A dívida externa é a
causa isolada mais importante da estagnação e das altas taxas de inflação que
prevalecem no Brasil desde o início da década de 80. A dívida externa reduziu
a capacidade de poupança do País ao obrigá-lo a realizar enormes transferên-
cias de recursos reais; elevou o déficit público, pois mais de 80% da dívida
externa são públicos, devendo seus respectivos juros serem pagos pelo gover-
no; acelerou o processo inflacionário devido à elevação do déficit público e à
Uma desvalorização real da moeda local e reduziu os investimentos em função da re-
internacionalização dução da poupança bem como da elevação da taxa de juros internos que provo-
maior da economia cou.
brasileira é uma
aspiração natural da A dívida externa brasileira é claramente muito alta e não pode ser paga.
elite empresarial local. Uma redução na dívida é condição necessária para a superação da estagnação e
Na verdade, o que ela
quer é uma integração da inflação. A alternativa seria uma enorme redução do consumo interno, que
mais profunda da não é nem viável nem desejável (BRESSER PEREIRA, 1988). A direita ideo-
economia e da lógica, no entanto, não reconhece esses fatos. Dado que seu maior objetivo é
sociedade brasileiras fazer com que o Brasil se integre no Primeiro Mundo, ela rejeita qualquer tipo
ao Primeiro Mundo,
do qual quer fazer de confronto com os banqueiros, porque teme que as medidas unilaterais, que o
parte. País deverá tomar para poder negociar a partir de uma posição forte a redução
de sua dívida externa, comprometam a desejada integração no Primeiro Mundo.
O que a direita ideológica não compreende é que esta integração só será alcan-
çada se o crescimento for retomado e a estabilidade de preços, atingida. Neste
momento há uma incompatibilidade básica entre o pagamento integral dos juros
sobre a dívida e o crescimento com estabilidade de preços. Desta forma, um
certo grau de confronto com os bancos é condição necessária para uma futura
integração da economia brasileira no sistema econômico capitalista internacio-
nal.

Políticas Econômicas para a Consolidação da Democracia

Os autoritários e os conservadores na América Latina apresentam o Chile


hoje como exemplo de política econômica coerente, racional. Têm como argu-
mento os níveis muito baixos de inflação e as taxas positivas de crescimento
desde 1984. Não mencionam que a renda per capita ao final de 1987 estava
2,5% abaixo do nível de 1980, que em 1987 os salários estavam 6% abaixo do
nível de 1980 (PIEDRA, 1988), não mencionam que a concentração de renda e
a pobreza aumentaram, esquecem que a economia chilena está sendo totalmente
desnacionalizada na medida em que os ativos locais estão sendo permutados
pela dívida externa em termos desfavoráveis. Nas palavras de Miguel Urbano
RODRIGUES (1988, p.3), "nos últimos quinze anos não houve progresso eco-
nômico no Chile; ao invés disso, o regime ditatorial promoveu uma redistribui-
ção selvagem do PIB". Desde o início do regime autoritário o consumo per ca-
pita de trigo caiu 8%; do milho, 5%; da carne, 15%; do açúcar, 8,3%; e do ar-
roz, 14%.

De qualquer forma, é preciso saber que os recentes resultados econômicos


favoráveis no Chile, quando comparados com a crise dos seus vizinhos demo-
cráticos, particularmente do Brasil e da Argentina, representam uma ameaça bá-
sica à democracia na América Latina. Na recente campanha política para ple-
biscito no Chile, o regime militar mostrou, em cadeia de televisão, comerciais
retratando os problemas sociais e econômicos no Brasil e na Argentina, per-
guntando se é esse tipo de democracia que o povo chileno deseja.

SHEAHAN (1986, p. 161) diz que as políticas econômicas características


dos regimes autoritários na América Latina são controles de preço limitados,
baixo índice de proteção, sérios esforços no sentido de limitar os déficits orça-
mentários, controles estritos dos salários, e condições altamente favoráveis para
investidores externos. Sheahan está confundindo discurso com ação efetiva. De
fato, os regimes autoritários na América Latina não adotam necessariamente
políticas econômicas ortodoxas ou neoliberais; sua retórica é que é conservado-
ra. Seu discurso é invariavelmente contra a intervenção estatal, contra o prote-
cionismo e a favor da austeridade fiscal, embora nem sempre acreditem ou pra-
tiquem o que afirmam. O excessivo endividamento externo e os déficits públi- Neste momento há
cos correspondentes dos anos 70 foram de responsabilidade dos regimes auto- uma
incompatibilidade
ritários no Brasil, Argentina, Chile e Peru. Sheahan, porém, está certo ao preo- básica entre o
cupar-se com a sobrevivência dos governos não-autoritários na América Latina pagamento integral
devido a políticas populistas que recrudesceram desde a redemocratização: ele- dos juros sobre a
dívida e o crescimento
vações irresponsáveis dos salários reais acima do crescimento da renda per ca- com estabilidade de
pita, aumento das despesas públicas, e excessivo protecionismo. Sheahan fala preços.
também em "restrições indevidas ao investimento externo", mas estas restri-
ções, no caso da nova Constituição Brasileira, por exemplo, são mais fruto da
retórica nacionalista — afinal há retórica em todos os campos—do que de uma
efetiva prática discriminatória.
Espero ter conseguido demonstrar neste artigo, através da crítica das polí-
ticas populistas e ortodoxas — porque afinal todas essas práticas e ideologias
que examinamos podem ser reduzidas a essas duas categorias — o quanto são
necessárias as políticas econômicas coerentes e racionais para a consolidação
do regime democrático no Brasil, ou, mais amplamente, na América Latina.
Sem equilíbrio orçamentário, equilíbrio do balanço de pagamentos e estabilida-
de de preços é hoje praticamente impossível retomar o desenvolvimento eco-
nômico e lograr uma distribuição da renda mais justa.

No Brasil, o que estamos vendo hoje é o domínio de práticas populistas e


ortodoxas, que ora se alternam, ora se somam. Em conseqüência, temos a es-
tagnação econômica e taxas muito altas de inflação, enquanto a renda continua
a se concentrar. Nos primeiros seis meses do governo Sarney, durante o primei-
ro semestre de 1985, tivemos uma política econômica conservadora, que não
funcionou. Em seguida uma política econômica, que se pretendia keynesiana e
progressista, mas que afinal se revelou populista, levou o País, no primeiro se-
mestre de 1987, com o fracasso do Plano Cruzado, a uma profunda crise eco-
nômica e financeira. Em 1988, depois dos sete meses e meio em que estive en-
carregado da política econômica brasileira, temos de volta as políticas econô-
micas conservadoras. A direita volta a orientar a política econômica. O popu-
lismo, entretanto, continua presente, somando-se a uma ortodoxia totamente
impotente para realizar a tarefa necessária para superar a crise econômica do
País. Hoje (outubro de 1988), o fracasso dessa política é evidente: a falta de
credibilidade do governo e de crédito do Estado aprofunda-se, a taxa de infla-
ção continua a acelerar-se, aproximando-se da hiperinflação, a taxa de investi-
mento mantém-se muito baixa, a economia permanece estagnada, os salários
reais estão novamente declinando.
As políticas econômicas exigidas no Brasil não são de esquerda ou de di-
reita. Essas distinções têm importância menor, considerando-se a gravidade da
atual crise econômica. Populismo e ortodoxia neoliberal estão hoje na base da
crise fiscal do Estado, da dívida externa, da inflação, da redução da taxa de in-
vestimentos. Esses problemas possuem tal magnitude hoje no Brasil que não é
suficiente criticar o nacionalismo, o protecionismo, a recusa às políticas de
ajustamento e o distributivismo da esquerda, o populismo e o clientelismo dos
oportunistas, a ortodoxia, o conservadorismo social, o monetarismo, o libera-
lismo grosseiro e o internacionalismo subordinado da direita. Para se adotarem
políticas econômicas pragmáticas, racionais e coerentes — que em certos mo-
mentos parecerão ortodoxas, em outros, heterodoxas —, serão necessárias nos
homens públicos as qualidades de visão e coragem política. Só assim será pos-
sível tomar as medidas—muitas delas impopulares, outras, certamente desagra-
dáveis para as classes dominantes—que poderão sanear as finanças do Estado
brasileiro e permitir a retomada do desenvolvimento. A democracia está bem
estabelecida no País, mas o contínuo fracasso do novo regime democrático em
resolver alguns problemas econômicos e sociais básicos representa um perigo
que não pode ser subestimado.
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Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas, São
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