O Homem - Corpo Alma e Espírito

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O homem:

dimensão bíblico-antropológica
Prof. Gilcemar Hohemberger

Introdução

Você tem corpo, alma e espírito. Esses três familiares conceitos são apenas aparentemente simples, pois
guardam uma ampla e rica terminologia de origem bíblica e filosófica, hebraica e greco-latina, e, sobretudo,
porque escondem verdadeiras armadilhas semânticas. Nossos propósitos são aqui demasiado humildes
para tentar sequer listar os principais termos, situando-os historicamente e definindo os seus vários sentidos.

1 DUALISMO, MONISMO, DUALIDADE

Dualismo, monismo, dualidade. Mais do que três conceitos, três visões de mundo, três abordagens
lógicas, três atitudes perante a vida. São como três posições de um caleidoscópio a nos oferecer imagens muito
distantes do que é o homem. Impossível avançar com passo seguro se não ficar claro desde já qual desses três
sistemas de pensamento estamos especulando sobre a realidade humana.
O que há de comum entre os três é o fato de terem refletido sobre essa universal autocompreensão de
que em nossa existência exibimos três formas de estar no mundo, de que nosso agir reflete três aspectos
do nosso ser.
Assim, dualismo, monismo e dualidade constituem três interpretações sobre os fenômenos do
humano, sobre o aparente de sua manifestação no mundo: o físico ou corporal, o anímico ou psíquico e o
sagrado ou espiritual. Veja essas três dimensões.
1) A corporal: somos, evidentemente, matéria. Desde Empédocles (séc V a.C.) até Lavoisier (pai da
Química moderna, no séc. XIX), passando pelo humanista e patrono da Internet, São Isidoro de
Sevilha (séc. VI), prevaleceu a visão de que o corpo humano se compõe dos mesmos quatro
elementos que as pedras, as plantas e os animais: terra, ar, fogo e água.
2) A anímica: somos mais do que matéria. Em comum com plantas e animais, somos matéria
animada. Ou seja, somos seres vivos, manifestamos a existência em nós de um princípio vital.
Simultaneamente, torna-se evidente, pelo modo de atividade e o nível de perfeição, que o princípio
vital propriamente humano difere do de plantas (dotadas de alma vegetativa) e animais (animados
de alma sensitiva). Nossa alma possui uma natureza especial: a intelectiva – estamos dotados de
razão e de vontade.
3) A espiritual: somos mais do que pura racionalidade prática, instrumental, limitada à função de
conhecer e dominar o mundo ao nosso redor. Somos racionalidade polarizada pela utopia. Nada
sacia nossa sede de infinito. O olhar da nossa inteligência exclama naturalmente “não é isto” e busca
incansável o além – os confins para dentro e para fora de si. Para dentro de si pela introspecção;
para fora de si pela transcendência: em todos os tempos e em todas as culturas o homem se apresenta
como aquele que fala – de tu a tu! – com sua consciência, e de tu a Tu com o que totalmente o
supera – chame-o de Força, Poder ou Luz; de Deus, Espírito ou Senhor. Esses e outros nomes
expressam o sagrado, vivenciado como realidade íntima e última no interior de si, ou experimentada
como adventícia Presença que opera uma diferença salutar em seu viver. O cristianismo denomina
“Graça” esse imanente-transcendente, esse Espírito infinito que pede passo à nossa liberdade para
fazer morada em nossa pequenez.

[PARADA OBRIGATÓRIA]
A diferença entre dualismo, monismo e dualidade não reside no reconhecimento do número dessas
manifestações do humano, mas sim na consistência (existe a alma ou é mera fantasia?) e na relação (pode o
Espírito se impor à razão humana?) e primazia entre elas (é aceitável a afirmação de Pascal de que “o coração
tem razões que a razão desconhece”?) .

Uma vez que já examinamos o homem “a olho nu”, o homem como fenômeno, podemos a seguir
verificar como este se revela quando olhado através de um prisma mais doutrinário, isto é, desde aquele
mencionado caleidoscópio que, focando uma mesma realidade, possui a virtualidade de apresentar três
distintas visões de mundo: dualista, monista ou, simplesmente, dual.

2 O HOMEM DESDE O DUALISMO

Para o dualismo, o homem se compõe de alma e de corpo, sendo que essas duas realidades são
percebidas como antagônicas, como estando em conflito e oposição.
A alma é fonte das funções mais nobres: a inteligência e a vontade.
O corpo é causa e origem de toda cobiça e corrupção.
O que há de nobre e digno em nós (no homem), devemos à nossa alma, chamada a exercer seu domínio
sobre os baixos impulsos do corpo.

[PARADA OBRIGATÓRIA]
O corpo material e corruptível não é o homem. O verdadeiro homem é exclusivamente a sua alma, imaterial
e imperecível. O corpo é estranho ao homem; é cárcere da alma que se opõe aos seus impulsos de
transcendência.

A união entre corpo e alma não é substancial, mas extrínseca e puramente acidental, isto é, o corpo
(material) e a alma (espiritual) tem uma unidade aparente, tal como um cavaleiro sobre o cavalo. Em outra
imagem: o corpo seria, nesta vida, uma prisão para a alma. A origem de tão antinatural estado em que a alma
se encontra nesta vida remete a uma culpa anterior e à sua correspondente pena (o descaimento no mundo
material).É dever do homem nesta vida se purificar, expiar aquela falta pregressa pelo subjugamento das
paixões corporais mediante práticas ascéticas de privação e renúncia a todo prazer. A morte é a separação de
corpo e alma – ou, mais precisamente, a libertação da alma, que longe das amarras da carne, poderá fugir do
obscuro mundo terreno e, se tiver completado sua purificação, ascender à esfera do espiritual, sua autêntica
morada.

[SAIBA MAIS]
O dualismo entra na história do pensamento ocidental da mão dos pitagóricos, mistura de escola filosófica e
seita religiosa, influenciada por sua vez pela mística esotérica do orfismo, culto mistérico fundado pelo poeta
e músico trácio Orfeu. O orfismo influenciou Platão, o que equivale a dizer que sua influência perdura até
hoje, porquanto o pensamento desse grande filósofo foi matriz de figuras tão determinantes como Plotino
(séc. III), Santo Agostinho (séc. IV-V) ou Descartes (séc. XVII).

2.1 A REENCARNAÇÃO

A ideia da reencarnação decorre naturalmente da aceitação das noções, próprias do dualismo, descritas
a seguir.
Noções da reencarnação
1) A alma imortal é o homem todo.
2) Uma culpa precipitou a alma na existência no mundo.
3) É preciso expiar essa culpa purificando a alma por meio do submetimento das paixões corporais.
4) Uma só vida – ainda que exemplar – não basta para a alma entrar vitoriosa na morte, tocada de
espiritual pureza.

Ciclos de reencarnações são imprescindíveis até que a evolução da alma, mediante o correlativo
domínio do componente corporal, a eleve enfim à merecida esfera do divino.

2.2 DUALISMO E CRISTIANISMO

O catolicismo nunca foi dualista, apesar de que o dualismo acompanhou o catolicismo ao longo de
seus dois mil anos de história. O Magistério da Igreja condenou repetidamente como heréticas as
interpretações dualistas das Escrituras. Contudo, reconhecemos que o dualismo na Igreja católica esteve – e
está – presente na vida cristã, aventado desde o púlpito, proposto desde a Teologia e, sobretudo, vivido
intensamente na religiosidade popular.
Para conciliar tão flagrantes contradições, é preciso entender que:
1) O dualismo admite graduações e variações. Não existe o credo dualista, existem sim religiões,
seitas, mentalidades e modelos de interpretação que assumem, em maior ou menor grau,
pressupostos dualistas, tal como a inferioridade do corpo ou sua intrumentalização em relação a
alma.
2) O Cristianismo rejeitou o dualismo, no entanto, alguns filósofos e teólogos elaboraram uma
interpretação da antropologia bíblica à luz da doutrina dualista. Assim fez, já desde o início, a
Patrística, ao mobilizar os poderosos e reconhecidos esquemas interpretativos do neoplatonismo -
marcadamente dualista - para melhor expor e transmitir o conteúdo da fé. Em particular, Santo
Agostinho, admirador da Filosofia platônica e um dos pilares do pensamento cristão, elaborou
uma concepção do homem de salientes afinidades dualistas, afirmando a superioridade da alma
sobre o corpo.
[LEITURA COMPLEMENTAR]
Você pode ler a catequese do papa Bento XVI sobre Santo Agostinho de Hipona, o maior Padre da Igreja
latina: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e
doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem
familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o
mundo.

Dessa maneira, há dualismo platônico-agostiniano em afirmações como podemos ver a seguir, ao


mesmo tempo pouco capazes de escandalizar alguém e, mesmo assim, em nada defensáveis sob uma
perspectiva teológica mais atual.

Noções sobre o dualismo platônico-agostiniano

O homem é composto de corpo e alma

•A alma, vivificada pelo Espírito, é capaz de se aproximar a Deus; o corpo, causa de nossos
pecados, estorva a alma e nos distancia de Deus.

Corpo e alma atuam no homem de maneira coordenada e conjunta

•O pensamento de abrir a mão e o ato de fazê-lo ocorrem de maneira admiravelmente harmônica.


Contudo, trata-se de entidades separadas: não estão substancialmente unidas, senão acidental e
funcionalmente.

O corpo deve ser mero instrumento ao serviço da alma

•Para que a imaginação e os afetos (as “razões do coração”, lembra?) não façam o escravo
governar o senhor, a alma tem a missão de calar os apelos dos sentidos e deixar ouvir apenas a
voz da razão, iluminada pela fé.

Sentenças como estas delineiam inequivocamente uma Antropologia imperfeita. Melhor que explicar
o porquê será prosseguirmos com a apresentação dos dois restantes paradigmas de interpretação do homem.
3 VISÃO MONISTA DO HOMEM

Diz-se monista (de mónos, único) toda concepção do universo que sustenta estar constituído por um
único princípio ou substância. Em relação ao homem, que é aqui nosso interesse, o monismo possui duas
linhas:
Linhas do monismo

Monismo

Monismo materialista Monismo espiritualista

O homem é apenas matéria O homem é pura substância


(você é o seu corpo) espiritual (você é a sua alma).

A prevalência de um sobre o outro desses sistemas varia conforme a sociedade e a época. Atualmente,
no Ocidente em geral e no Brasil em particular, do maior impacto sobre a mentalidade e a cultura responde
claramente o monismo materialista.

3.1 MONISMO MATERIALISTA

“Vivemos em um mundo materialista!” Quantas vezes você já não ouviu ou talvez disse isso, com ares
de lamento? Se pronunciamos essa reclamação no plano do simples desabafo, queremos apenas mostrar a
desgostosa saturação com a prevalência do “ter sobre o ser”, como reza o dito.
Para o indivíduo de convicções materialistas, essa máxima – e não menos aquele desabafo – são uma
contradição. Afinal, o “ser” é só o que você pode “ter”, o que você pode medir, quantificar, empilhar e
contabilizar. O resto da realidade – a alma, a espiritualidade, Deus… – seria só uma ficção cômoda, uma
fábula para entretenimento de gente imatura, uma artificiosa dissimulação para esconder dos espíritos fracos
a irrelevância radical da vida e o inelutável aniquilamento da morte.
De fato, o monismo materialista tem respostas simples e categóricas para todas e cada uma das grandes
questões:
 O que é o homem? Seu corpo.
 O que é o corpo humano? Matéria organizada.
 Como surgiu a matéria? Emergiu do nada, no Big Bang; o universo deu origem a si mesmo.
 Como surgiu a vida? Por casualidade; em um universo material tão vasto, as ínfimas possibilidades
de que a recombinação aleatória dos átomos gere vida faz do aparecimento desta um evento comum.
 Mas, como se passou do primeiro ser unicelular simples à rica abundância e diversificação da vida?
Por leis internas à matéria; principalmente, a homeostase e a evolução.
 Como passaram a vigorar essas leis? Era necessário, e a matéria as deu a si mesmas.
 E a inteligência? É um epifenômeno da matéria, um fenômeno acidental raro, mas que sem dúvida
se manifesta em milhões de outros mundos.
 A mente, a alma humana? Só existe o cérebro; tudo se reduz a química; a alma é simples
hipostatização do desejo de sobrevivência.
 Minhas emoções, meus afetos? O circuito da dopamina e outros neurotransmissores dão conta de
explicá-los.
 Meus valores, meus ideais? Pura eletricidade bioquímica ativando redes neuronais, efeito de um
comportamento geneticamente herdado que visa à sobrevivência da espécie.
 Viver consiste só em sobreviver? A maioria não é consciente disso, mas as ações são comandadas
pelos genes; estes, subordinam toda a existência a um único fim: que você sobreviva para espalhá-
los; é o tal de o gene egoísta.
 Então, a cultura é química… é genética...? É química em resposta a mecanismos genéticos; assim
como as abelhas segregam cera e constroem panais, nosso cérebro segrega artefatos culturais; não
há diferença qualitativa.
 E o fenômeno da fé? Freud explica: é a sublimação de um sentimento infantil de desamparo; a
necessidade de um pai.
 Deus, então…? Deus, um delírio. O materialismo é coerente; embora triste. Aporta respostas;
porém, traz amargura e desespero. Preenche a necessidade de saber; mas frustra a necessidade de
sentido. Elogia a beleza da natureza e chama a admirar a engenhosidade e perfeição de suas leis,
mas afirma ser tudo determinado pelo acaso, por um destino cego ou uma fatalidade anônima. Não
consegue vislumbrar o Criador, aquele Ser inteligente e bom, chamado Deus, por isso rejeita
qualquer origem transcendente do mundo e vê nele o puro jogo duma matéria que teria existido
sempre.

O monismo materialista pode:


1. derivar de convicção filosófica ou,
2. bem mais comumente e com efeitos mais letais sobre a personalidade, ocorrer por indiferença,
por apatia, por efeito desse indolente “não tô nem aí” que sumariza a atitude geral de muitos perante a vida,
para os que, se colocados diante de qualquer aspiração elevada ou de refinado produto do espírito, já têm a
resposta pronta – “chato, né?” – que deixa o passo desimpedido a uma vida deveras chata, achatada mesmo,
pois voltada para a satisfação dos desejos mais básicos.

3.2 MONISMO ESPIRITUALISTA

Diferentemente, o monismo espiritualista se ergue sempre sobre um substrato filosófico ou religioso


bem elaborado. Afinal, afirmar a inexistência da matéria, estabelecendo que toda a realidade é espiritual, passa
por negar a principal e mais eloquente e imediata fonte humana de conhecimento: os sentidos.
No âmbito religioso, o monismo espiritualista se afigura como panteísmo, em que Deus e a realidade
aparecem unificados. Tudo é Deus, o mundo é Deus, a evolução do mundo é a evolução de Deus, inclusive o
homem, que em sua morte será dissolvido como gota d'água no oceano do ser divino.A personalidade e a
individualidade são como o resto das coisas tangíveis que se apresentam aos sentidos: pura ilusão. Essa
concepção, em suas múltiplas concreções religiosas, é fonte de uma rica espiritualidade muito em consonância
com a cosmovisão oriental, aviva a percepção da pertença de todo e de todos a uma instância englobante
comum e suscita grande respeito pela natureza, tida como genuína manifestação de Deus. Contudo, como você
pode facilmente deduzir da centralidade que a concepção de pessoa tem no cristianismo - que prega a
permanência da pessoa na eternidade como ser único e irrepetível - o espiritualismo monista de cunho religioso
discrepa de forma irreconciliável com a mensagem cristã.

[SAIBA MAIS]
No campo da Filosofia, o monismo espiritualista encontra seus adeptos mais influentes em dois vultos do
pensamento moderno: Spinoza e Hegel, formuladores seja de um panteísmo lógico-dedutivo, o primeiro,
seja de um panteísmo histórico-metafísico, o segundo. Com mais importância acadêmica que propriamente
incidência social, nos dias de hoje, iremo-nos abster de comentá-los, mas você pode consultar dicionários
ou obras de história da Filosofia para aprofundar-se na vida e pensamento desses filósofos monistas.

4 A VISÃO CRISTÃ: O HOMEM COMO DUALIDADE

Distinguir sem separar; muito menos, opor. Nisso consiste a visão dual do homem.
Distinguir corrigindo dois milênios de perigosa e perniciosa proximidade da tradição ao dualismo:
mais do que ter corpo e ter alma, o homem é corpo e é alma.
Distinguir aproximando-se da Antropologia e da escatologia contemporâneas: mais do que ser corpo
e ser alma, ambos vistos como princípios autônomos, o homem é corpo-alma, é realidade psicossomática,
é corpo intelectualizado ou, o que é o mesmo, alma corporalizada. É inteligência emocional e, indistintamente,
emocionalidade inteligente. É a unidade indissolúvel desses dois princípios. Fosse só alma, o homem seria
anjo; fosse só corpo, seria cadáver.
Distinguir retornando às fontes bíblicas, a Gen, 2,7, onde o homem Adão surge das mãos do Criador
como mistura de terra (adamah) e sopro divino, constituindo-o como nefesh.

[PARADA OBRIGATÓRIA]
Nefesh não é um ser binário; não é agregado de corpo e alma – é o homem todo, o vivente, que se relaciona
com Deus. Apesar da palavra nefesh apresentar vários significados possíveis, dependendo do contexto e uso
no Antigo Testamento, tais como alma, garganta, vida, pessoa etc., percebemos um desenvolvimento nos usos
dessa palavra, um processo de transformação de significados, sendo que possivelmente seu significado
original estaria ligado à respiração especificamente, portanto, ao homem vivente.

Ao distinguir corpo e alma sem os separar, e sem os contrapor, conseguimos fundar uma Antropologia
integradora, uma compreensão global da pessoa, que a contempla em sua condição corpóreo-anímica. Desde
essa segurança poderemos, e assim o faremos a seguir, aludir por separado às diferentes dimensões do ser
humano sem que isso signifique cair em dicotomias deformadoras. Há uma só unidade de força vital, um único
princípio de realidade, no qual é lícito e profícuo distinguir os elementos que nele se intercompenetram: o
corpo e a alma.

4.1 O CORPO

Examinaremos o corpo em suas diversas perspectivas; primeiramente, a teológica, pois é a que funda
e justifica as restantes. Façamos esse exame em atitude de necessário resgate e de urgente revalorização:

4.1.1 Perspectiva teológica

Deus Pai, Criador, nos moldou como dualidade una, como pó e sopro divino, como corpo e alma. E
porque ambas – corpo e alma – são igualmente imagens de Deus, assim também ambas – corpo e alma – são
por Ele amadas.
Deus Encarnado, Cristo, resgatou o homem todo. Porque assumiu a carne, tornou-a sagrada,
redimindo-a para toda a eternidade. Porque Jesus é carne de Maria Virgem, dignificou ao infinito a condição
encarnada do homem. Porque curando o corpo, queria salvar os que iam a Ele. Porque seu corpo ressuscitou,
e é primícia de quem nele crê, assegurou a transformação de nosso corpo mortal em corpo glorificado. Porque
instituiu a Eucaristia, nosso corpo se alimenta do Seu corpo, e seu corpo permanece entre nós. Porque
ascendeu aos céus com seu corpo glorificado, eternamente haverá corpo no Deus Trindade. Por isso, rejeitar
o corpo é rejeitar o homem todo e rejeitar a Deus.
Deus Espírito Santo, Santificador, faz do corpo do homem seu santuário. Porque habita nossa
carne, corromper e destruir o corpo, próprio ou alheio, é afrentar Àquele que o santifica com sua presença.

4.1.2 Perspectiva antropológica, intrapessoal

Foram e são comuns as antropologias, mesmo as de matriz cristã, que, aplicando-se na sondagem da
natureza humana, distinguem as respectivas funções do corpo e da alma. Desse modo, razão e vontade
seriam funções privilegiadas da alma, enquanto que imaginação (e seu estoque, a memória) e afetividade (e
seus polos de intensidade, sentimentos e emoções) seriam exclusiva prerrogativa do corpo.
Como assim? “Privilégio”!? “Prerrogativa”!? Pois é, aceitar sem maiores cautelas essa rígida partilha
de funções é “cutucar com vara curta” o dualismo. Logo iríamos nos encontrar exigindo à vontade pôr ordem
em casa refreando a imaginação (não por outro motivo, Santo Agostinho a chamava de “a louca da casa”);
também sem demora nos veríamos convocando a razão para pôr rédeas nas emoções, de modo a recuperar,
sem o embargo destas, a serenidade de nosso juízo. Um pouco mais, e estaríamos falando em termos de uma
nobre e serena alma fatalmente exposta aos tormentosos afetos do corpo. Mais um pouco ainda, e
integraríamos o coro da piedade arcaica a sancionar o corpo como “sepulcro da alma”. Aqui, já estaríamos
com os dois pés atolados no mais genuíno dualismo.
Em prevenção disso, distinguiremos sem dividir. Diferenciaremos diversas funções, mas
reivindicando a pluralidade una do nosso ser. E, em consequência, estaremos prontos para reconhecer que,
como unidade corpóreo-anímica que somos, sentimos com a razão e discernimos com as emoções, fazemos
voar nossa vontade nas asas dos sonhos e pensamos e decidimos com nossa carne, nossos tendões e nossos
ossos.
Pois somos radicalmente um, não há “trabalho braçal”, todo trabalho é intelectual: toda ação
movimenta na sua execução a totalidade do nosso ser. Pois somos substancialmente um, não há, a rigor,
mesmo que seja legítimo continuar usando essas expressões, “pecados do corpo”, “paixões da carne”,
“emoções corporais” ou “sentimentos de excitação e de fraqueza”. Obviamente, existem a tristeza e o pecado,
a alegria e as emoções e sentimentos. O errado é tratá-los como sendo “coisa do corpo”.
Na verdade, cada pensamento e cada ação, o que dizemos e imaginamos, no que amamos e odiamos,
as visões da nossa imaginação e as lembranças do nosso passado, arrolam por igual a razão e as paixões,
comprometendo-as; implicam por igual os sentimentos e a vontade, envolvendo-os. Um pontapé como
um insulto faz doer por igual na alma e no corpo. Dói no homem todo.

4.1.3 Perspectiva antropológica, intrapessoal

Corpo e alma: duas identidades em uma só natureza - a natureza humana. Corpo humano: corpo
penetrado, embebido de alma. E, em consequência: corpo espelho da alma. A alma - pois fundida ao corpo -
brinda o sorriso gentil, faz a escuta paciente, doa o abraço acolhedor, faz o gesto cortês, cura as feridas no
corpo do outro. A alma se faz presença no mundo pela mediação do corpo. Por isso, diz o Catecismo (364):
“não é lícito ao homem menosprezar a vida do corpo. Pelo contrário, deve estimar e respeitar o seu corpo
[...]”.
A vitória do corpo não consiste, porém, na quimera da juventude eterna. O desafio do corpo não reside
em evadir-se do espaço e do tempo, evitando cicatrizes e rugas, mãos calejadas e cabelos brancos. Ao
contrário: o trunfo do corpo é gastar-se. Consumir-se em realizar o homem, em expandir a sua alma, em
alçá-la ao ilimitado ao qual aspira. Consiste, pois, a vitória do corpo no amor a Deus e aos irmãos, isto é, na
fé que se expressa – exaurindo o corpo – no amor-serviço.
Nos desfiles militares, as maiores ovações se reservam para os aleijados em ação: coxos e mancos
exibem em seus corpos feridos a medida da sua entrega à pátria. Filhos e netos se reúnem celebrando a
vida em homenagem ao belo corpo – seco, enrijecido e curvado – de quem, comprometido com os frutos
do amor conjugal, é como pavio que queimou para dar luz à sua descendência. A Igreja promove a devoção
aos mártires, aos imolados por sua fé, aos sacrificados combatendo o bom combate; suas relíquias – isto é,
seus corpos – são sacramento da confiança nas promessas de Cristo. A festa de colação é a celebração de
uma vitória conseguida através de uma enorme disciplina do corpo a serviço de um ideal: na assistência às
aulas; nas horas de forçada imobilidade para o estudo.
Uma cruz requer dois madeiros. O corpo é o madeiro horizontal que, fixado naquele outro que se eleva
ao céu, é sinal da vocação de abraçar toda a Criação.

4.2 A ALMA

O outro madeiro, o madeiro vertical, é no homem a sua alma, que, quando de fato se projeta unindo
a terra ao céu, trazendo ao pó o Espírito, dilata em alma espiritual.
Quando o corpo morre, o eu permanece vivo; a identidade e a história de quem morre pervive na
alma imortal. Essa é a fé católica. Essa é a própria Boa Nova: Jesus ressuscitou – em corpo e alma – e sua
Páscoa é primícia da de cada homem. A morte foi abolida. À vida segue a Vida. À separação do corpo na
morte deste segue a entrada na eternidade e a união a um novo corpo.
O essencial é isso. Mas os cristãos – os teólogos e os “de a pé” – sempre foram movidos pela
curiosidade sobre os detalhes deste trânsito, dando lugar a dois milênios de estudo bíblico, reflexão teológica,
reuniões conciliares e definições doutrinárias sobre a alma. Para nossa sorte, eliminando os desvios e omitindo
por necessidade as mais novas propostas de revisão, podemos nos amparar em quatro afirmações nucleares,
que veremos comentando sucintamente alguns breves, mas precisos parágrafos a esse respeito do Catecismo
da Igreja Católica:

a) Catecismo, 365
“A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a forma do
corpo”. Como você deve lembrar, o dualismo que aqui tanto nos ocupou, por sua marcante e problemática
influência na Antropologia Cristã, teve origem em um pensador grego: Platão. Coube ao discípulo deste,
Aristóteles, talvez o maior filósofo que haja existido, a proeza de forjar uma visão coerente do cosmo – e do
homem como parte dele – que, superando o dualismo de seu mestre, unificava o real, o mundo da nossa
experiência.
Trata-se da teoria hilemórfica, que concebe “a alma como a forma do corpo”. Desde esta visão, o
corpo deixa de ser um elemento estranho e pode se passar a falar em união substancial de alma e corpo. Salta-
se do dualismo a dualidade.
No século XIII, Tomás de Aquino e o Concílio de Viena adotam o hilemorfismo como modo de
preservar a fundamental noção de íntima união de corpo e alma em uma só natureza. O texto citado do
Catecismo nos confirma que o hilemorfismo continua em pleno vigor.

b) Catecismo, 366 (a):


“A Igreja ensina que cada alma espiritual é criada por Deus de modo imediato e não produzida
pelos pais; e que é imortal”. Nós – seres humanos – viemos ao mundo como consequência de uma estreita
parceria do homem com Deus: os pais geram o corpo; Deus, no preciso instante da concepção, cria a alma,
alma imortal, e a infunde nesse corpo, tornando-o corpo humano.
A intervenção dos pais na relação conjugal deveria ser sempre uma relação amorosa. A intervenção de
Deus é sempre amorosa. O novo ser, ser imortal, qualquer que seja o curso de sua existência, terá sempre um
Pai que o deu à vida por amor.

c) Catecismo, 366 (b):


“[a alma] na morte, se separa do corpo; e [...] se unirá de novo ao corpo na ressurreição final.”
Muito aqui já dissemos em favor da honorabilidade do corpo, de ser um com a alma, de ser imagem de Deus.
Mas um fato dramático se impõe à nossa experiência: esse corpo humano, corpo informado, esse corpo amado
e que amou, é apenas corpo mortal em alma imortal, é corpo com término em alma intérmina. Carece da
mesma altura ontológica da alma: adoece, envelhece, morre.
No entanto, quando você vê e toca um cadáver, talvez o de um ser querido, e movido pela fé, juntando
aflição e esperança, diz “não está mais aqui”, exprime uma grande verdade. Não no espaço e no tempo; aqui
ficou a semente que um dia fora plantada; aqui resta a noz seca que já – já agora – floresce onde olhos mortais
não veem - “hoje estarás comigo no Paraíso”. Hoje, a “Irmã Morte” que dizia são Francisco, levou da mão a
alma pelo caminho da ressurreição. Introduziu a pessoa na eternidade, onde seguirá sendo união de alma
imortal e corpo - agora corpo imortal.

d) Catecismo, 367:
“Encontra-se às vezes uma distinção entre alma e espírito. [...] A Igreja ensina que [...] «Espírito»
significa que [...] a alma é capaz de ser gratuitamente sobreelevada até à comunhão com Deus.” Era mais
do que oportuno concluirmos com esse esclarecimento; afinal, o próprio título da Lição já podia suscitar a
ideia de estarmos preconizando uma antropologia triádica! Seria um equívoco nem inédito nem novo. Ciente
disso, devemos afirmar que esta distinção (alma-espírito) não introduz uma dualidade na alma, tal como São
Paulo o faz ao dizer que ora para que “todo o nosso ser, o espírito, a alma e o corpo”, seja guardado sem
mancha até à vinda do Senhor (1 Ts 5, 23).
Para não enredarmo-nos num dualismo de alma e espírito, precisamos definir bem os conceitos.
Espírito incriado é Deus. Espíritos criados são os anjos. O homem nem tem nem é espírito. O homem é sim
interlocutor de Deus; é ser conhecido, amado e chamado por seu Criador; capaz orientar verticalmente sua
existência para um fim sobrenatural. Não há no homem alma e espírito; há sim o homem espiritual: aquele
que, ordenando sua vida a Deus, vive-a na Graça e pela Graça.

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