Robert Kurz - A Honra Perdida Do Trabalho
Robert Kurz - A Honra Perdida Do Trabalho
Robert Kurz - A Honra Perdida Do Trabalho
Kurz A HONRA PERDIDA DO TRABALHO
Robert Kurz
A HONRA PERDIDA DO TRABALHO
O socialismo dos produtores como impossibilidade lógica.
Nota prévia
… … …
A ontologia do trabalho
Não é possível socialismo algum nos horizontes da ontologia do trabalho, ou seja, a forma de mercadoria da
reprodução social só pode ser superada juntamente com o "trabalho". Porém, isso é impensável tanto para a
concepção do socialismo típica do velho movimento operário como para o seu antagonista burguês. Mesmo em
Marx essa questão não é ainda completamente resolvida, fica na ambiguidade. Por um lado, ele avança
(sobretudo nos escritos de juventude) a necessidade duma superação do "trabalho", mas por outro explicita em
muitos trechos uma ontologia deste mesmo "trabalho". Poderia tratarse, portanto, apenas da superação das
formas históricosociais sempre diversas que assumiu o "trabalho", e não da sua existência pressuposta como
eterna.
Esta contradição explicase com as condições ainda insuficientes de desenvolvimento do processo capitalista
de socialização e cientificização. O conteúdo do socialismo não pode ser "libertar o trabalho", mas única e
exclusivamente "libertar do trabalho". Convém esclarecer desde logo que não se trata da forma da actividade
humana tout court, ou do "processo de metabolismo com a Natureza", mas sempre e apenas do "trabalho
abstracto" encarnado na forma do valor ou da mercadoria, do "dispêndio de força de trabalho humana" como fim
em sim mesmo sob as condições materiais estabelecidas pela concorrência dos sujeitos no mercado. Importa
explicar melhor tal identidade entre o conceito de trabalho em geral e o trabalho abstracto na forma de
mercadoria, identidade esta que torna impossível uma superação da mercadoria e do dinheiro no interior da
ontologia do trabalho
a) O "trabalho" como categoria real já inclui o "nãotrabalho", ou seja, "esferas" para além do "trabalho" e
"âmbitos" sociais separados do processo do trabalho. O "trabalho" que se manifesta separado do "tempo livre",
da "política", da "arte", da "cultura" etc., já é sempre trabalho abstracto. Só a relação capitalista como forma
desenvolvida do valor produziu na sua pureza esta separação real entre o "trabalho" e os outros momentos do
processo de reprodução social. No passado, esta separação existia apenas de maneira embrionária no divórcio
entre os "produtores imediatos" e as classes isentas do processo do trabalho que se apropriavam do mais
produto material. Nas sociedades primitivas préclassistas, pelo contrário, encontrase ainda a totalidade
imediata do processo reprodutivo (1) em que não há nem "trabalho", nem "tempo livre", nem "cultura" etc. como
esferas particulares. E esta identidade imediata do processo da vida em todos os seus momentos perpetuase
no interior do processo de reprodução dos produtores imediatos nas formações précapitalistas, até ao limiar da
industrialização e da divisão capitalista do trabalho.
É claro que a separação do "trabalho" do resto do processo da vida não pode ser suprimida voltandose para
trás, como queria em última instância a crítica moderna das forças produtivas, inspirada na filosofia da vida. A
unidade entre trabalho produtivo, práxis da vida e cultura, da maneira como se expressava por exemplo nos
cantos de trabalho dos navegadores do Volga, dificilmente poderia ser recomendada para solucionar as
contradições da socialização abstracta no seu nível actual. Qualquer "reconstrução" pseudoconcreta e pseudo
imediata dessa unidade tem de acabar na idealização reaccionária duma pobreza de necessidades e dum estado
de sofrimento que o nível de civilização hoje alcançado torna efectivamente inimaginável.
Na unidade total da práxis da vida que "ainda" existia nas sociedades précapitalistas, o "trabalho" não é ainda
abstracto como esfera separada pelo simples facto de ocupar, como processo de metabolismo em boa parte
imediato com a natureza, quase todo o espaço activo da vida. Os momentos culturais ou "políticos" são meros
apêndices dum processo de reprodução imediato que tudo abrange, não no sentido "funcionalista", mas como
parte duma unidade tosca, indiferenciada e não mediada, que se pode dizer "orgânica" apenas se quisermos
ressaltar o quanto ainda se apega à natureza. O carácter concreto do trabalho précapitalista consiste
precisamente no trabalho como totalidade que abarca a práxis unitária da vida. Onde o trabalho é ainda total
nesse sentido, seu conceito ainda não pode ser formulado por falta de diferenciação, e só como trabalho total
que abarca e preenche toda práxis da vida ele pode ainda ser não abstracto, no sentido de não ser uma esfera
separada do dispêndio da força de trabalho.
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O desprezo do trabalho por parte das "classes dominantes" précapitalistas representou por isso também um
enorme progresso, pois só a isenção de uma minoria em relação ao trabalho total no processo de vida que tudo
abrange pode criar uma distância para com a natureza e preparar um grau superior no metabolismo (uma
correlação que escapa naturalmente à consciência dos implicados). O ócio dos antigos "dominantes" (ainda
submetidos na práxis da vida a fetiches naturais como por exemplo o parentesco de sangue) era afinal de contas
muito mais "produtivo" que todo o "honesto trabalho produtivo" da história universal. A ciência nasceu na
antiguidade, e não do "trabalho", mas do "ócio", do distânciamento da crua unidade do processo da vida.
Podese compreender assim que a emancipação da humanidade teria de passar pelo trabalho abstracto e que a
separação do trabalho da totalidade do processo da vida foi necessária para poder reconstruir a sua unidade num
plano superior de riqueza de necessidades. De facto, por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, só
a separação entre o "trabalho" e a unidade originária do processo da vida como um todo, considerada "boa" e
"desejável", criou um "ócio" limitado também para a massa dos "produtores imediatos". Só o trabalho abstracto
produziu um tempo efectivamente livre, ou seja, um tempo disponível para as massas.
A referência, muitas vezes repetida pelos críticos do desenvolvimento, ao suposto "tempo livre" dos produtores
imediatos précapitalistas acaba por confundir a simples suspensão da praxis da vida ou o "tempo vazio" dentro
de um processo reprodutivo elementar e pobre de necessidades com o tempo "livre" activo da própria praxis da
vida, que só pode surgir a partir da distância em relação ao processo de metabolismo imediato com a natureza.
Só o trabalho abstracto, que fez da reprodução imediata uma esfera separada, pôde generalizar gradualmente
esta distância. O navegador do Volga, no seu tempo livre ou vazio, podia na melhor das hipóteses repisar sua
obtusa cantilena do trabalho, ao passo que à "mascara de carácter" do trabalho abstracto se abre cada vez mais
todo um universo de possibilidades no tempo livre à sua disposição, embora naturalmente o acesso a este
universo permaneça deformado pela indiferença abstracta própria do mundo das mercadorias.
Não se trata portanto de "reconstruir" para trás a unidade do processo da vida, por meio da dissolução do
trabalho abstracto, mas, pelo contrário, de conceber o trabalho abstracto como uma escada para um estágio
superior da práxis da vida, escada esta hoje dispensável porque inútil. Não se trata portanto de anular a
capacidade conquistada de distanciamento da natureza, mas antes de libertála das miseráveis muletas do
trabalho abstracto. A superação do trabalho abstracto não é possível, portanto, com base no trabalho produtivo,
mas com base no "ócio produtivo". Só deste ponto de vista se torna claro o discurso de Marx sobre o
"desenvolvimento das forças produtivas" como pressuposto para uma revolução socialista que o capitalismo cria
inconscientemente.
Esta lógica de superação do trabalho abstracto é incompatível com o conceito de socialismo do velho
movimento operário. Este último só podia imaginar a extensão do "tempo livre" com base no "trabalho". O
"trabalho" aparecia como aquilo que é autêntico, o tempo livre como o que é derivado, inautêntico. Na luta para
reduzir a "jornada normal de trabalho", conquistouse e estendeuse de facto o tempo livre disponível para as
massas, mas com ênfase na abstracta "jornada de trabalho normal" como centro indiscutível da praxis da vida e
como sentido da vida.
Da mesma maneira que o socialismo "político" devia ser o "poder dos operários" e fundarse "economicamente"
no "trabalho", assim também cabia a ele, culturalmente, generalizar uma "cultura operária", cujas
monstruosidades "realistas" e monumentais glorificações kitsch do "dispêndio de força de trabalho" figuram de
modo quase idêntico no fascismo alemão e no socialismo "em construção" da União Soviética. "O trabalho
liberta" (2) era também a palavra de ordem, de forma alguma secreta, do movimento operário socialista. A
unidade cultural da práxis da vida não podia ser restaurada sobre esta base, a não ser como propaganda
enganosa. Mesmo quando tal unidade foi de facto formulada como objectivo, ela implicava antes um recuo
reaccionário da capacidade social de distanciarse do processo produtivo imediato. Devia tratarse sempre,
portanto, de uma unidade sob o primado do "trabalho".
"Afastai os ociosos": nesta estrofe da "Internacional" não se exprime só um equívoco elementar sobre o carácter
da relação social abstracta do "valor", que aparece aqui reduzida a um acto subjectivo dos "exploradores", mas
também um gesto de ameaça do "trabalho normal" contra a perspectiva do "ócio produtivo". Sem consciência
disso, o movimento operário declarase aqui a favor do princípio capitalista abstracto do "trabalho" e contra a
libertação do tempo social disponível da tirania do trabalho, que se encontrava ainda historicamente em
ascensão.
Tudo isto se torna ainda mais tangível na desconfiança e nas campanhas francamente demagógicas contra os
"intelectuais", às quais, apesar de alguns protestos ocasionais em contrário, não ficaram imunes sequer as
melhores cabeças do velho movimento operário. Nesta animosidade latente ou manifesta contra os intelectuais,
que aliás mais uma vez é idêntica, até nas formulações, às posições do fascismo, não se reflectiam só as
experiências imediatas com "intelectuais burgueses" no contexto de suas funções capitalistas, mas também o
repúdio duma existência social quase "indefinível" fora da atmosfera ideologicamente familiar do trabalho
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produtivo imediato.
Toda a história do velho movimento operário dos primórdios da socialdemocracia passando pela estrema de
esquerda do primeiro pósguerra até à "revolução cultural" chinesa é atravessada como por um fio condutor que
reclama dos intelectuais, artistas etc., a renúncia às suas pretensões no tocante ao conteúdo e aos modos de
vida, a fim de se submeterem antes ao trabalho abstracto, à glorificação do processo produtivo repetitivo e ao
horizonte espiritual das "máscaras de carácter" do capital variável. Este socialismo não apadrinhava a
superação da existência operária, mas a sua coerciva generalização: ou se conservava inconsciente a
separação entre o "trabalho" e o processo da vida como um todo, a título de princípio capitalista do trabalho
abstracto, ou a superação desta separação só podia ser concebida como rígida ditadura do "trabalho" e de seus
funcionários sobre toda pretensão cultural dissidente e sobre cada concepção da vida, das necessidades ou do
conhecimento que "ultrapassasse" as suas fronteiras. O velho movimento operário mostrouse não como
adversário do trabalho abstracto, mas como força histórica capaz de impôlo, apresentandose ainda por cima
com o nome de "socialismo".
Por um lado, a cultura burguesa das "esferas separadas" podia assim ser realizada: o "trabalhador normal", que
em seu "tempo livre" era empurrado para os museus e arrastado perante obras de arte por funcionários bem
intencionados, era a vergonhosa caricatura do "homem total", fruto das cabeças quadradas do marxismo oficial
de partido. Por outro lado, a oposição a tais horrores ideológicos da sociedade de trabalho socialista degenerava
num hedonismo boémio e vazio, que tendia a imaginarse a manifestação duma vontade "socialista"
abstractamente livre (que naturalmente pode também ser decifrada como emanação do fetiche abstracto do
"valor") como uma espécie de existência de vagabundo, empunhando uma garrafa de bebida à beira mar. A
superação socialista da produção de mercadorias não pode realizarse, nem como encarnação e realização do
trabalho abstracto "no interesse dos operários", nem como imagem invertida vazia dum hedonismo abstracto,
também ele ainda totalmente impregnado pelo trabalho abstracto.
A perspectiva do "ócio produtivo" como referência positiva da riqueza de necessidades hoje alcançada, a ruptura
do invólucro do "trabalho" abstracto e portanto a reunificação das "esferas" ou "âmbitos" do processo da vida
social separados pela ordem burguesa são impossíveis dentro do "trabalho", e só possíveis para além dele. Este
"para além", posto na ordem do dia pelo desenvolvimento actual das forças produtivas, sobretudo pelos novos
potenciais de automatização, não é contudo um "reino da liberdade" no sentido de um "para além" meramente
lúdico e infantil do processo de metabolismo com o conjunto da natureza; este processo de metabolismo pode
repousar hoje sobre cada vez menos trabalho produtivo humano, que, como tal, e portanto como trabalho
abstracto, como esfera separada do mero dispêndio da força de trabalho, se vai revelando completamente
obsoleto. O "reino da liberdade" já se inicia no interior do processo de metabolismo com a natureza, na medida
em que este não pode mais ser definido como "trabalho". Este reino começa por isso imediatamente no contexto
de uma revolução socialista contra o trabalho abstracto, como resultado do desenvolvimento capitalista das
forças produtivas, e não como resultado, diferido para um futuro distante e indeterminado, de um socialismo que
é ainda parte da sociedade do trabalho.
Juntamente com o "trabalho" será superado necessária e lógicamente também o "tempo livre"; não mais no
sentido dum "regresso" reaccionário e repressivo da cultura ao continuum da ontologia do trabalho, mas, pelo
contrário, como fim da préhistória, no sentido de uma ruptura definitiva do até agora continuum do processo
histórico.
b) O "trabalho" como categoria real inclui não apenas a separação do "não trabalho" e a decomposição do
processo social de reprodução em "esferas" ou "âmbitos" separados, mas através desta mesma separação o
trabalho é essencialmente determinado como fim em si mesmo. É justamente esse carácter do trabalho
abstracto como fim em si mesmo que foi definido até agora de forma insuficiente na teoria, pois o próprio
marxismo do movimento operário é parte da ascensão histórica desse fim em si mesmo e permanece como seu
reflexo teórico. Só quando se compreende que o trabalho abstracto é dispêndio de força de trabalho como fim
em si mesmo se pode decifrar a tautologia social nele implicada.
Trabalho abstracto ou dispêndio de força de trabalho como fim em si mesmo é um processo tautológico fechado
em si: o que este trabalho "produz" é novamente "trabalho". O facto de o trabalho produzir novo trabalho só não
aparece como o absurdo que é porque a diferença de forma do trabalho em seus diversos estágios de agregação
social turva essa realidade para a consciência acrítica e diariamente enredada no trabalho abstracto. O trabalho
abstracto é o fetichismo do trabalho como tautológico fim em si mesmo; no entanto, o trabalho produzse a si
próprio em forma diversa: o trabalho vivo produz trabalho morto ou "valor". Este "valor" nada mais é do que a
inconsciente "forma de representação" social do trabalho morto ou passado "nos" produtos, que portanto não
"são" socialmente bens de uso sensíveis e materiais, mas "concreções espectrais de trabalho" sem vida (Marx).
O trabalho abstracto reproduzse tautologicamente, mas na forma social fictícia de "trabalho cristalizado" como
"valor" que, na sua forma consumada, aparece como dinheiro, isto é, como "encarnação de trabalho abstracto"
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(Marx). A consciência enleada no fetiche do trabalho ou do valor já não vê uma tautologia no facto de o
"trabalho" "gerar" uma coisa chamada "dinheiro", pois ela só pode perceber o dinheiro como o "outro" do trabalho
em sua crua coisificação objectivada, como o "produto do trabalho" social em que só encontram expressão os
valores de uso concretos.
Para o velho movimento operário, completamente prisioneiro desta forma social, o conjunto dessas correlações
e portanto a determinação da essência do trabalho abstracto tinham de permanecer um enigma; preso ao
trabalho abstracto como fim em si mesmo, o pensamento do movimento operário não podia ir além do dinheiro
como superfície desta correlação de forma. Restava todo um conjunto de equívocos elementares sobre a crítica
da economia política que pode ser assim resumido: a relação produtiva do trabalho abstracto ou do capital lida
pelas lentes das relações de classe e de apropriação précapitalistas .
Estes equívocos têm a sua raiz lógica na separação da categoria da "maisvalia" da categoria incompreendida
do trabalho abstracto. O processo tautológico do trabalho abstracto tem "sentido" só na medida em que o
dispêndio da força de trabalho como fim em si mesmo não se reproduz num nível sempre igual (pois então tratar
seia realmente apenas dum absurdo insustentável), mas, ao contrário, perpetuase como "reprodução ampliada"
em escala cada vez maior. O mecanismo interno desta reprodução constantemente ampliada é justamente a
"maisvalia", isto é, o facto de a força de trabalho viva, tautologicamente utilizada como fim em si mesma, poder
levar a "representar" "mais trabalho" em forma morta e "cristalizada" do que ela própria "custou" nessa forma. No
plano qualitativo, a tautologia do processo do trabalho abstracto exprimese como o absurdo de que o "trabalho"
não produz nada mais que "trabalho" em forma diversa e fetichizada; no plano quantitativo, porém, ocorre uma
alteração na medida em que o trabalho vivo produz uma massa de "trabalho" morto e representado em objectos,
massa esta sempre crescente relativamente à simples reprodução própria.
O "sentido" histórico (considerado a posteriori) não vem desta acumulação puramente quantitativa e
continuamente ampliada de trabalho morto e fetichizado na forma abstracta do "valor"; antes, tal sentido se
encontra, indirectamente, no que esta acumulação "comporta", de forma cega e inconsciente, em termos de
desenvolvimento material das forças produtivas e de cientificização do processo social reprodutivo. É
justamente este processo cego de ampliação gradual e dinâmica de todas as possibilidades humanas que mais
corresponde à expressão hegeliana "astúcia da razão". Pois nos rígidos e tradicionais modos produção pré
capitalistas, baseados na pobreza de necessidades da massa dos "produtores imediatos", não podia haver
nenhum motivo consciente do desenvolvimento das forças produtivas como tais. A motivação fetichista da
"maisvalia" e a transformação do "trabalho" num fim em si mesmo eram necessários para pôr em movimento
aquele processo transitório, a partir do qual todas as relações restritas, pobres, tradicionais e naturais se
volatizam "involuntariamente" e são ultrapassadas. O primeiro grande momento de emancipação da préhistória
humana, que coincide com a época burguesa, só pôde vir à luz como um leque de efeitos colaterais "não
intencionais" através da autonomização da motivação do dinheiro, em si um tanto quanto sórdida. Eis por que a
"maisvalia" constitui um princípio progressivo e propulsor, no invólucro fetichista do tautológico trabalho
abstracto.
A referência do velho movimento operário a esta circunstância é estranhamente ambígua. Na medida em que ele
próprio fazia parte do processo de trabalho abstracto, ele tinha também de tornarse seu precursor e representar
um suposto conceito alternativo de "trabalho" no interior do seu fim em si mesmo. Porém, na medida em que o
movimento operário tentou dar a essa pseudoalternativa cujo verdadeiro objectivo "secreto" era desenvolver o
trabalho abstracto uma coloração socialista ou comunista transcendente no interior da ontologia do "trabalho",
ele sempre converteuse num aberto reaccionarismo. O cerne desta ambiguidade é conferido pelo conceito de
"maisvalia", do modo como foi entendido pelo movimento operário: não como princípio fetichista e tautológico
do "trabalho", mas como subjectividade "exploradora" do "capitalista", ou seja, inteiramente no horizonte do
fetichismo jurídico burguês. O capitalista não era concebido como um funcionário ou títere da cega relação
social, mas como um sujeito negativo dessa relação, a que se opõe o sujeito antitético do "trabalho", como
representante da eterna ontologia do trabalho (3).
Desse modo, entretanto, perdese também o conceito de propriedade privada. Se as formas de propriedade pré
capitalistas estão ligadas a fetiches naturais (propriedade fundiária e parentesco de sangue), a propriedade
privada é o fetiche social do "valor", desligado dos fetiches naturais. Na forma desenvolvida, ou seja, como
"maisvalia", a propriedade privada é somente o conceito jurídicofetichista da relação tautológica e auto
referencial do "trabalho". Não faz a menor diferença se o portador institucional desta relação se chama João da
Silva, Sociedade por Quotas, Sociedade Anónima, Comissão de Saúde Pública, Estado Socialista dos
Trabalhadores ou Comité Central. Enquanto a relação social continuar determinada pelo tautológico fim em si
mesmo do trabalho abstracto, permanecerá também uma relação de propriedade privada, e todos os seus
portadores se encontram num estado de particularidade abstracta, que tem de gerar como seu pólo funcional
oposto a universalidade do Estado (como um aparelho "alheio" à sociedade). Ou, dito em termos "práticos": os
membros da sociedade, como entes abstractamente privados, travam relações entre si primeiro através do
dinheiro (a encarnação do trabalho abstracto) e depois através de um sistema jurídico que assume as feições da
burocracia estatal. Tais relações são apenas a forma fenoménica do facto de que tais sujeitos não são capazes
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de regular concretamente o próprio processo de socialização, nem de dominálo conscientemente.
Este conceito de propriedade privada, o único adequado, parece hoje estranho à primeira vista porque excede o
conceito habitual e costumeiro desta relação, da maneira como o formulou a consciência burguesa, incluindo o
movimento operário. Nesta concepção redutora, a propriedade privada é concebida como uma ilusão jurídica
destacada do conteúdo real da relação social, ou seja, como mera relação volitiva de um sujeito livre de
pressupostos com as coisas (meios de produção e "frutos do trabalho"). A propriedade privada é reduzida neste
contexto a determinadas formas fenoménicas em que se manifestou historicamente e que hoje se tornaram em
boa medida obsoletas, formas estas em que ela ainda parecia corresponder à ilusão jurídica burguesa (seja
como "posse pessoal" ou como subjectividade pessoal exploradora).
A pretensa luta do movimento operário contra a propriedade privada agiu portanto sempre e exclusivamente
dentro dos limites da própria propriedade privada (4), isto é, remeteuse a formas alternativas e "superiores" da
propriedade privada, que não podiam mais ser identificadas como tais. E o movimento operário foi "progressista"
dentro das fronteiras do trabalho abstracto e só na medida em que impeliu o processo de socialização do capital
rumo a estas formas superiores, isto é, rumo à "maisvalia" e à propriedade privada, embora sem delas formar
um conceito. Isto vale, até ao fim da Segunda Guerra Mundial, tanto para a tendência para o "Estado social" no
Ocidente como para a criação, no Leste, de uma "forma burguesa de modernização tardia".
Porém, quanto mais a dinâmica do trabalho abstracto se acelerava e excedia a si mesma, ou seja, começava a
ingressar em seu estágio terminal, tanto mais nitidamente ressaltavam os traços reaccionários do movimento
operário e do "seu" marxismo, tanto no Ocidente como no Leste. O objectivo de um plano alternativo à
"sociedade do trabalho" tornase um factor de estagnação que trava o desenvolvimento, tão logo o "trabalho"
como tal alcance seus limites históricos. Enquanto a classe conservadora dos assalariados ocidentais com suas
instituições há muito petrificadas se aferrava ao puro dispêndio da força de trabalho abstracto sempre mais
obsoleta e demonstrava desconfiança e repúdio pelas novas tecnologias de socialização e automatização, a
administração estatal igualmente petrificada do "mercado planificado" da "sociedade de trabalho" do Leste
constrangia as forças produtivas sociais a uma forma cada vez mais antiquada.
Os sindicatos ocidentais ocultavam por trás da exigida "compatibilidade social" do ulterior processo
cientificização a pretensão reaccionária de estancar os novos potenciais da automatização dentro dos limites do
trabalho abstracto: restringir o progresso, na melhor das hipóteses, à tradicional "redução da jornada de trabalho"
significa ampliar um pouco o "tempo livre" sem tocar no primado do "trabalho" como centro da vida social. Ora
tal pretensão reaccionária está fadada a permanecer uma pura ilusão. O trabalho abstracto esgotase
historicamente, porque o processo autoreferencial tautológico do trabalho abstracto é irremediavelmente
paralisado pelos potenciais técnicocientíficos por ele libertados. O antigo modelo de reforma sindical social
democrata que versava sobre um "progresso moderado nos limites das leis" tornase absurdo, pois seu próprio
objecto se esfarela como pó.
Do outro lado deste "mundo do trabalho", também a administração do Leste, incrivelmente antiquada e
retrógrada, empenhada na criação de "formas burguesas de modernização tardia", se exauriu em definitivo.
Também aqui o carácter "progressista" se restringiu à criação duma sociedade burguesa moderna, sob as
condições de uma aceleração consciente do processo. Esta "consciência", todavia, não pôde ir além de tal
aceleração e de seu isolamento administrativo (temporário) em relação ao Ocidente mais desenvolvido. As
"formas superiores" da propriedade privada, tomadas de empréstimo ao Ocidente, cobriam contudo como
delgada camada de "modernização" uma reprodução ainda arcaica, em muitos sectores na União Soviética,
China e parte da Europa de Leste, e puderam servir apenas superficialmente para criar as formas mais básicas
da sociedade burguesa: o trabalho abstracto, o dinheiro e o direito, como reguladores das relações sociais gerais
e, no plano material, as indústrias de base e os elementos fundamentais de uma infraestrutura moderna.
Com isso se esgotou a administração exterior do trabalho abstracto. O próprio carácter específico das formas
superiores da propriedade privada, que no Leste passavam por "socialismo", revelaramse, após a Segunda
Guerra Mundial, cada vez mais como travão ao posterior desenvolvimento das forças produtivas. Tal carácter
específico consistia e consiste na travagem e obstrução administrativa da motivação monetária com base na
ainda existente economia monetária, isto é, na paralisia burocrática da dinâmica do trabalho abstracto com base
no trabalho abstracto. Tratase de uma tentativa de realizar a quadratura do círculo, de agir conscientemente
(planificação) com base na inconsciência (trabalho abstracto, "valor", forma da mercadoria, dinheiro). O orgulho
de ter eliminado uma certa forma da propriedade privada, tomada erroneamente pela sua forma tout court, e com
ela presumivelmente a produção baseada na "maisvalia", revelouse um fragoroso autogolo.
De facto, não foi eliminada a "maisvalia" como tal, mas apenas o seu potencial dinâmico, que impele para além
de si mesma, e portanto o seu potencial "progressista". Este é o preço para a "forma burguesa de modernização
tardia" a passo temporariamente acelerado, que se converteu então em retardamento. Aquela administração
exterior da maisvalia era boa o bastante para "fazer surgir do nada" as categorias burguesas de base, sem
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consideração pela "liberdade" da motivação monetária e sem se coadunar com a lógica então asfixiante do
mercado mundial. Como sociedade "que se fez" burguesa a níveis baixos e precários, o "socialismo real" teria
de falir devido às mesma formas de administração que retardavam e travavam irremediavelmente o posterior
desenvolvimento "intensivo" das forças produtivas no interior das categorias burguesas de base criadas
artificialmente. Perante a dinâmica do trabalho abstracto em crise, enquanto o resto do movimento operário
ocidental actuava como travão reaccionário da inovação, o movimento operário do Leste, cristalizado numa
administração estatal da "maisvalia", tinha de facto o "poder" estrutural de estagnarse no trabalho, o que
conduz a outra forma de crise. O Ocidente teve a crise da dinâmica do trabalho abstracto, o Leste a crise da
estagnação deste trabalho.
O mesmo carácter tendencialmente reaccionário do movimento operário e do "seu" marxismo se revela também
no interior do próprio "trabalho", no seu lado aparentemente "concreto", ou seja, na relação com seu carácter
material e técnicocientífico na automatização. Ainda que o marxismo possuísse uma concepção explicita do
trabalho abstracto, nele este elemento reaccionário sempre esteve contido em germe. Mesmo quando o conceito
de trabalho não era compreendido simplesmente de modo definidor, acrítico e afirmativo nos quadros da
ontologia do trabalho, mas sim "criticamente", isto se dava num plano directamente empírico, no nível da divisão
capitalista do trabalho. O "trabalho abstracto", mais não seria que o "esvaziamento" do trabalho do "produtor
imediato", ou seja, a retirada dos "potenciais intelectuais" do seio do próprio processo produtivo até a reduzilo a
um trabalho obtuso, vazio de conteúdo e divorciado da ciência no processo de metabolismo com a natureza, um
trabalho "abstracto" que implica indiferença e frustração.
Esta análise aparentemente "crítica" do trabalho abstracto assenta na verdade numa grande confusão de
conceitos: ele se mantém por assim dizer inconscientemente no plano do "trabalho concreto" que, como tal,
implica o "trabalho abstracto" num nível inteiramente diverso. Este outro nível, porém, é o da determinação da
forma social, que de modo algum é idêntica à forma técnicomaterial da divisão do trabalho. Pelo contrário, o
trabalho abstracto como determinação da forma social não é senão o "trabalho" na forma de fim em si mesmo ou
"trabalho" na forma de "valor" como autoreferência tautológica, em princípio totalmente independente da
respectiva forma técnicomaterial, ou seja, como princípio da forma social. Este já é posto in nuce com a forma
do valor como tal e, assim, com a existência préhistórica do dinheiro, embora só se desenvolva plenamente a si
mesmo e alcance o seu completo desdobramento na figura da "maisvalia".
A divisão capitalista do trabalho e seu sucessivo desenvolvimento no nível técnicomaterial não são a causa e a
essência, mas antes o resultado e a forma fenoménica desse tautológico princípio da forma do "trabalho" social.
A esta forma fenoménica no plano técnicomaterial darei o nome de empírico devirabstracto do trabalho
concreto, à diferença do princípio da forma do próprio trabalho abstracto. Este empírico devirabstrato do trabalho
concreto é tal apenas para o produtor imediato, ou seja, para a maneira invertida como ele experimenta o
processo cego da cientificização do capital no plano de "seu trabalho concreto" imediato. O processo de
metabolismo com a natureza em seu conjunto, como totalidade social, permanece obviamente concreto, só que
esta totalidade concreta agora se decompõe "para" os diversos agentes da reprodução em momentos isolados e
separados entre si. O conhecimento da natureza e a ciência da natureza, a direcção técnica da organização do
trabalho e o trabalho produtivo com a máquina tornamse, em escala cada vez maior, momentos isolados entre
si neste conjunto concreto, sendo que logicamente o último elo dessa corrente de cientificização, o "produtor
imediato", será mais duramente afectado pelo empírico devirabstrato do trabalho concreto.
Ora, é fácil compreender as consequências reaccionárias que serão forçosamente acarretadas se a superação
deste nexo não for promovida da perspectiva da própria cientificização, mas antes do ponto de vista de uma
"reconciliação" entre cientificização e trabalho produtivo imediato. A concepção aparentemente "crítica", mas
na verdade redutora e vazia de conceito do trabalho abstracto como devirabstrato meramente empírico do
trabalho do produtor imediato abre caminho a tais consequências reaccionárias. Pois na medida em que a forma
da mercadoria da reprodução, isto é, o princípio da forma autoreferencial fetichista e tautológica do "trabalho"
como " valor", não é tomada em consideração ou permanece longe da mira da crítica, a crítica se vê presa
nesse casulo do fetiche e se restringe "sociologisticamente" às meras formas fenoménicas deste princípio da
forma dentro do próprio trabalho produtivo concreto (toda a sociologia industrial "de esquerda" vive desta
redução).
Este "conceito aconceitual" do trabalho abstracto continua compatível, em seu empirismo, com o próprio
princípio da forma cegamente pressuposto, e portanto também com o "trabalho" como esfera separada e com a
intenção do movimento operário potencialmente sempre reaccionária de superar a separação entre "trabalho"
e o processo da vida no seu todo a partir do próprio "trabalho". No interior do "trabalho concreto", isto não
significa outra coisa senão querer de alguma maneira "recuperar" os potenciais intelectuais e científicos,
engendrados no processo de metabolismo com a natureza, para o trabalho produtivo imediato ou para o
dispêndio de força de trabalho. Uma empreitada obviamente fadada ao fracasso, tanto mais quanto, neste meio
tempo, o processo do "empírico devirabstrato do trabalho concreto" alcançou também as "esferas" ou "âmbitos"
da reprodução no exterior do processo produtivo imediato. Desse modo, tornase obsoleta e ridícula também a
ultima "utopia" do movimento operário marxista, a saber, a ideia de uma "superação da divisão do trabalho" na
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base do trabalho abstracto.
Em termos mais exactos, essa utopia é de certo modo realizada negativamente pelo próprio capitalismo, na
medida em que todos os agentes da reprodução são tendencial e gradualmente reduzidos a um puro e
indiferenciado dispêndio de força de trabalho. O "todo concreto" da reprodução acaba confinado a uma existência
idealtípica, em tudo exterior aos sujeitos humanos, sob o ditame do tautológico princípio de forma. Quando
muito, o movimento operário imaginou a superação da divisão capitalista do trabalho como uma espécie de
unificação de todas as parcialidades dessa divisão numa única pessoa: o "homem do futuro", operário
especializado ou artesão com diploma e láurea, uma espécie de monstro criado pela fusão de singularidades e
"utópico" no pior sentido da palavra (5). Estas desoladas utopias, no actual estágio de cientificização,
simplesmente perdem seu objecto e tornamse portanto tão absurdas quanto ridículas. O "empírico devir
abstrato do trabalho concreto" não pode ser superado no interior do próprio trabalho abstracto, ou seja, com base
no tautológico princípio da forma que, como tal, deve ser superado. A "superação da divisão do trabalho" só é
possível para além do trabalho, uma circunstância que só hoje se pode reconhecer plenamente. Tanto os planos
reformistas ocidentais de uma "humanização do mundo do trabalho", acompanhada de "medidas de criação de
postos de trabalho", quanto a utopia miserável do Leste, perpassada pelo fetichismo do trabalho e pelo
"autogovemo da classe operária" no interior da "sociedade do trabalho", revelamse ante este pano de fundo tão
perversas quanto inconsistentes e ilusórias. O desenvolvimento das forças produtivas ultrapassou hoje ambas
as variantes em todos os seus matizes históricos.
A direcção consciente do processo de metabolismo com a natureza implica a transformação do "dispêndio da
força de trabalho" em "actividade" consciente no plano concreto e material, que se refere imediata e
individualmente ao todo concreto da reprodução cientificizada. Esta actividade não visa uma "recuperação" dos
potenciais científicos para o processo produtivo imediato, mas justamente a superação deste por meio desses
potenciais. Esta lógica oculta e até agora cega da cientificização só hoje alcançou seu estágio de maturidade,
que a torna plenamente visível. Ela requer imperiosamente a superação do trabalho abstracto como superação
do tautológico princípio da forma em todas as suas mudanças de aparência, isto é, a superação do "valor", da
mercadoria e do dinheiro, o que do lado concreto e material nada mais significa que a superação da divisão
capitalista do trabalho através da superação da própria ontologia do trabalho, ou seja, através da superação do
produtor imediato, que por sua vez é idêntica à superação de todas as funções científicas e administrativas
particulares e separadas que se acham além deste produtor imediato (inclusive as "funções estatais").
c) A categoria real do "trabalho" háde ser concebida como trabalho abstracto também no sentido de uma
indiferença destrutiva no tocante ao conteúdo material dos agentes postos em movimento. Esta indiferença
manifestase não apenas no plano subjectivo e psicológico da "insatisfação com o trabalho", mas antes e
sobretudo como crescente "factor objectivo de catástrofe", ou seja, como processo objectivo de destruição do
mundo. Enquanto o trabalho foi idêntico à totalidade do processo da vida, ele não pôde deixar de ser concreto
como parte de uma reprodução pobre em necessidades e ligada à natureza. (6) Apenas o trabalho social como
"âmbito" destacado da totalidade do processo da vida, da forma como veio à luz no trabalho assalariado
industrial foi capaz de pôr em marcha aquela peculiaridade (sempre latente na forma da mercadoria) do trabalho
como trabalho abstracto e como fim em si mesmo: "trabalho "sans phrase" (Marx), trabalho sem determinação
de conteúdo social.
Surgiu assim uma cega máquina social para a utilização abstracta da força de trabalho, cuja tendência é
absorver em seu movimento vazio de conteúdo o homem, a natureza e tudo a que pode deitar mão, digerindoos
e evacuandoos depois na outra forma do trabalho, a forma morta, isto é, como dinheiro, sem que, à parte esta
mudança de forma, se acrescente qualquer outra finalidade qualitativa. Esta máquina social tem de movimentar
a qualidade material: matériasprimas, forças naturais e trabalho humano vivo; porém tais qualidades não
constituem um fim nem produzem por si finalidade alguma, mas são apenas meios no processo tautológico e
autoreferencial do trabalho abstracto. Há portanto uma inversão entre meios e fins: o trabalho não é mais um
meio para o fim qualitativo de apropriação da natureza, mas, pelo contrário, a apropriação qualitativa e material
da natureza é só um meio indiferente para o processo de mudança de forma do trabalho abstracto como fim em
si mesmo. Para o movimento da máquina social do "valor" que é "representado" no dinheiro é objectivamente
indiferente o que ocorre aos componentes materiais e qualitativos de seu gigantesco processo mundial de
digestão ou que consequências este processo acarreta no plano material e qualitativo. O mundo é transformado
e revolvido sem "sentido", pois o "sentido" está no processo de transformar e revolver como tal, que tem de
representarse em escala sempre ampliada na forma morta do dinheiro e de multiplicarse ("acumularse") em
ciclos sem fim.
Durante a formação e ascensão desta máquina social, e com ela do velho movimento operário (como momento
parcial e factor propulsor desta máquina, não como potencial maquinista), prevaleciam os efeitos emancipatórios
e "civilizatórios" deste processo, apesar de todos os momentos críticos, negativos e, desde o início, destrutivos
e ameaçadores. O processo de trabalho abstracto, ao incluir em escala crescente a cientificização da
reprodução como "meio" cego de seu abstracto fim em si mesmo, não só criou progressivamente um consumo
de massas de bens antes de luxo, mas também criou um leque novo e jamais visto de necessidades e
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possibilidades. Neste quadro, enquanto o trabalho ainda permanecia o momento nuclear da reprodução, o
enorme potencial destrutivo que espreitava neste fim em si mesmo "sem peias" ainda não podia ser reconhecido
e compreendido em todo o seu alcance.
Nas condições de vida précapitalistas, a antiga totalidade do trabalho ainda se achava muito próxima, e o velho
aguilhão da penúria e da pobreza estava ainda muito presente para que fosse possível ultrapassar ou mesmo
imaginar algo além do fim em si mesmo do "trabalho". O trabalho como tal, ainda que em sua nova forma,
parecia em essência produzir, com poucas excepções, somente coisas úteis e necessárias; parecia importar
apenas o facto de que os portadores de trabalho vivo recebessem uma parte suficientemente grande de seus
"frutos" ou, no melhor dos casos, que reconquistassem ao "capital" (concebido "sociologicamente" ou como
pessoa) o controle sobre o próprio trabalho. A peculiaridade da determinação social deste trabalho "por trás" dos
sujeitos sociais visíveis, o seu específico carácter tautológico e vazio de conteúdo do ponto de vista social,
efectivamente não entrava no campo de visão do movimento operário e do seu marxismo.
Quanto a esta incompreensão nada mudou essencialmente até hoje. Também os fenómenos manifestos de uma
nova crise "económica" são ainda interpretados dentro do antigo horizonte conceptual redutor. E um novo
elemento de confusão surge do facto de esta crise nascente do trabalho abstracto e da forma da mercadoria
como tal atingir primeiro os membros mais fracos do contraditório sistema mundial produtor de mercadorias, ou
seja, além do Terceiro Mundo, precisamente os sistemas "socialistas" na tradição da Revolução de Outubro. A
desorientação é grande, pois o modelo interpretativo desta nova situação ainda não foi elaborado; a forma da
mercadoria como tal ainda não é alvo de uma crítica que aja como "discurso social", mesmo que apenas na
esfera pública devotada à teoria.
Porém, não se pode ignorar a nova dimensão que hoje se apresenta como "crise ecológica" e que parece levar
uma existência absolutamente autónoma ao lado das antigas constelações de crise e de conflito. Esta dimensão
é de facto tratada como se fosse absolutamente alheia à "crítica da economia política". Isso é inevitável, pois
esta "crítica" não é concebida coerentemente como uma crítica do próprio trabalho abstracto, nem desenvolvida
para além de Marx, com base nos novos fenómenos. Enquanto a pretensa "luta anticapitalista" gravitar em torno
de questões de distribuição e de "poder" no interior da forma do "valor" e enquanto mesmo os seus objectivos
mais extremos ainda partilharem a ilusão jurídica burguesa do conceito de "propriedade", não se alcançará o
verdadeiro fundamento desta relação social. E os novos fenómenos (novos ao menos quanto à sua dimensão e
gravidade) do potencial de destruição "ecológico" do trabalho abstracto surgirão apenas como uma problemática
absolutamente "diversa" situada noutro plano.
Os requisitos dum "pensamento crítico" que verse sobre o complexo de problemas da sociedade burguesa, sem
recurso à "crítica da economia política" (e em frontal oposição a ela), há muito foram desenvolvidos e
preparados pela vertente "romântica" e "irracionalista" e também pelo "pessimismo da cultura" da ideologia
burguesa (7). Desde os primórdios da industrialização, esse pensamento reconduziu todos os fenómenos
negativos da economia baseada na mercadoria e de seu processo de totalização não à forma social nuclear do
trabalho abstracto, mas directamente ao lado material do processo de trabalho industrial, ou seja, à
cientificização do processo de metabolismo com a natureza. As ciências naturais e a sua aplicação industrial
como tecnologia moderna foram objecto dum processo ideológico. Surgiu assim no pensamento burguês um
campo de "pessimismo da cultura" constituído por um sem número de momentos isolados e correntes históricas
(em parte contraditórias entre si): da crítica da produção industrial como "faina do diabo" até à denúncia da
ciência natural tout court como "hostil à vida", da refutação do pensamento científico em geral como "exangue"
até à negação da civilização urbana como "deserto asfáltico decadente", da transfiguração e idealização
romântica ou tardoromântica da Idade Média até a neoreligiosidade, do biologismo e darwinismo social até as
correntes antisemitas, de Nietzsche até à filosofia da vida e ao existencialismo.
Este campo ideológico também desenvolveu uma específica crítica do dinheiro, deduzida não da crítica da
economia política, nem da forma da mercadoria ou do trabalho abstracto, mas de uma crítica incoerente e
irracionalista do intelecto urbano "interesseiro", "calculista", "nãoheróico", "judeu", "hostil à vida" ou "abstracto",
a que se imputava a culpa pela autonomização e pelo potencial dessubjectivante do dinheiro. A "crítica do
dinheiro" pôde assim aparecer como parte de uma crítica da ciência e da civilização modernas enquanto tais e
ficar ao mesmo tempo inconsequente, resvalando para o pessimismo da cultura e para o desespero, na medida
em que o dinheiro como determinação da forma social jamais era atacado em seu princípio, mas somente pela
sua relevância "desmedida" e hipertrofiada na "modernidade", que "dá ao dinheiro mais do que cabe ao dinheiro".
Esta crítica do dinheiro, reaccionária em seu núcleo, como crítica da "cultura moderna" a partir de um ponto de
vista da natureza puramente ideológico, não podia avançar uma "superação" efectiva do dinheiro, pensável
somente como momento da superação do trabalho abstracto e portanto da forma da mercadoria como tal. Esta
crítica continuava compatível com a determinação da forma da sociedade no seu cerne e, logo, com a forma
fenoménica do dinheiro, movendose no terreno inócuo e sem consequências duma crítica ontológica da cultura
(8).
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Este filão do pensamento burguês apresentouse desde o início, no mesmo invólucro de forma da mercadoria,
como gémeo inimigo da "fé burguesa no progresso", do "racionalismo" e do "positivismo", mas desde cedo se
mostrou capaz de pelo menos registar e lamentar os fenómenos destrutivos da "modernização" no sentido da
incipiente destruição da natureza e da ameaça às bases materiais da vida. Tanto o positivismo burguês "de
orientação progressista" quanto o movimento operário e o marxismo estavam inclinados a fechar os olhos ante
tais fenómenos, a aceitálos com indiferença como "preço do progresso" e a atribuir a crítica a que eram
submetidos ao carácter reaccionário e irracional das correntes do pessimismo da cultura.
Desenvolveuse assim na ideologia e na teoria social uma particular constelação em que o "positivismo"
procedente das ciências naturais, ligado a correntes liberais e conservadoras na política, podia tornarse a
ideologia de base da burguesia, enquanto o pessimismo da cultura e o marxismo concorriam entre si como
ideologias de oposição no campo da crítica social. Por muito tempo a esquerda se deleitou em distinguir o
marxismo e o movimento operário, como "verdadeira" oposição ao sistema, da "pseudooposição" do
pessimismo da cultura "burguês", fazendo notar que este último desembocava no fascismo. Mas com esta
distinção ocultavase o facto de que o marxismo e o movimento operário também faziam parte do continuum
burguês e se moviam dentro da mesma incompreendida determinação da forma do trabalho abstracto.
A "crítica do dinheiro" marxista não era menos incoerente que a desenvolvida pelo pessimismo da cultura. Tal
como desta, ela só podia chegar à crítica do "modo de utilização" e ao postulado de que "o dinheiro não deve ser
tudo", sem tocar na determinação da forma de base como tal. Como o próprio marxismo nunca tomou realmente
a sério a crítica da economia política e jamais a levou às ultimas consequências, ele permaneceu uma
ramificação do pensamento burguês, circunscrito ao horizonte duma época em que a "missão civilizatória" do
trabalho abstracto ainda não se havia esgotado. Positivismo, pessimismo da cultura e marxismo revelamse ex
post irmãos inimigos de uma única e mesma estirpe, a do iluminismo burguês, e o seu pensamento, como
pensamento duma única e mesma forma, a forma da mercadoria. Como ideologias, eles são tanto
complementares quanto compatíveis, ainda que a princípio assim não parecesse, quando as ondas da "luta pelo
progresso" ainda vogavam alto no interior da forma da mercadoria
Na medida em que hoje amadurece a crise ainda incompreendida do trabalho abstracto e da forma da
mercadoria, começam a esfumarse e a dissolverse os antigos antagonismos só aparentemente inconciliáveis:
a complementaridade das ideologias burguesas conduz à sua convergência ecléctica. O pessimismo da cultura
não caiu por terra junto com o fascismo; antes, é somente hoje que, como fundamentalismo ontológico e como
crítica da ciência e da civilização, ele ganha sua máxima plausibilidade diante da inegável relevância de sua
velha crítica à destruição dos fundamentos naturais da vida, crítica sempre fundada ontolologicamente, no
sentido da preservação de uma "ordem natural do mundo", com todos os traços reaccionários de tal
pensamento. O marxismo encolhese perante os novos fenómenos de crise, que não podem mais ser decifrados
com a sua grelha sociologicamente redutora, e o positivismo procura disfarçar através de compromissos. O
Partido verde e em especial a sua ala de esquerda constituem nesse contexto, por assim dizer, um caso
exemplar de eclectismo banal, em que as ideologias de base burguesa fazem casamentos horrorosos.
O marxismo do movimento operário não é superado "para diante", no sentido duma crítica mais consequente da
economia política, mas continua a vegetar em sua forma mais reduzida possível, como "componente social" e
"cobertura sindical"; o positivismo, despido de toda a fundamentação teórica e cientifica, é integrado como "novo
realismo" pragmático e como reconhecimento do "mercado" ou da "motivação do lucro", tido como
imprescindível e insuperável; o pessimismo da cultura, por fim, encontra guarida e aceitação como "consciência
ecológica", evocação da natureza e sob a forma de lugarescomuns que se infiltram inconscientemente no
palavreado dos políticos. Esta papa indigesta e cada vez mais diluída tornouse entretanto o alimento "espiritual"
de todo o espectro académico, ideológico e político duma sociedade que se acha em agonia intelectual, em
vésperas do colapso económico e ecológico. "Anything goes": verde e vermelho dão as mãos, mas também
vermelho e preto e preto e verde, para não falar do castanho; "conservadores do valor" aparecem como
"esquerda" e a esquerda como direita, o operário, de modo algum sem razão, aparece como burguês e o antigo
burguês, com igual acerto, como operário do management. No entanto, o mero reconhecimento do facto de que
os fenómenos mudaram radicalmente não implica em absoluto que eles estejam compreendidos e muito menos
solucionados. Não basta querer adaptarse de qualquer modo mimeticamente às circunstâncias modificadas e na
ocasião lançar por terra também a crítica radical. A esquerda académica está em estado tão terminal quanto os
marxistas do movimento que brincam à política. A falta de qualquer compreensão dos factos é vendida como
"fantasia libertadora" e a perplexidade como modéstia antidogmática. A promiscuidade ecléctica da teoria social
equivale à sua total desmoralização.
Perante este colapso das ideias que precede o colapso das categorias reais burguesas, uma redefinição positiva
do socialismo, que tenha a imodesta pretensão de uma nova competência revolucionária ante a crise da
sociedade burguesa e da máquina da "modernização" cega e prenhe de catástrofes, só pode partir de uma nova
coerência na crítica da economia política. A nova base desta crítica tem de ser a crítica do trabalho abstracto
em todos os seus aspectos e o postulado da sua efectiva superação. O ponto central é a superação do
processo autoreferencial e tautológico do trabalho social, isto é, a superação do processo de mudança de forma
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do trabalho abstracto, como superação do "valor", da mercadoria e do dinheiro. Portanto, não a absurda
"planificação do mercado", como no "socialismo real", mas a superação do mercado enquanto existência
duplicada do trabalho abstracto no dinheiro. Esta superação da tautologia fetichista da reprodução social implica
ao mesmo tempo a superação das "esferas separadas" ou sectores funcionais da sociedade burguesa,
sobretudo o "trabalho" como uma esfera abstracta separada do "tempo livre", do "tempo disponível" e da
"cultura", o que por sua vez implica a constituição de uma unidade real do processo social da vida na sua
totalidade livre daquele funcionalismo.
Isto implica também a superação da cega separação entre as "unidades de dispêndio do tempo social de
trabalho" e a qualidade sensível e material das matériasprimas e forças naturais empregadas. Cada decisão
quantitativa sobre o emprego de forças produtivas tem de ser ao mesmo tempo uma decisão qualitativa sobre
seu valor de uso, ou seja, o cálculo "económicoempresarial" abstracto tem de ser posto de lado. Essa total
superação do trabalho abstracto só é possível, em primeiro lugar, como superação do "trabalho" tout court, o
qual não deve ser confundido com a actividade reprodutiva humana ou com o processo de metabolismo com a
natureza; em segundo lugar, ela só é viável como superação directa do "produtor imediato" e de toda a história
que o teve como protagonista. O socialismo assim compreendido é uma impossibilidade lógica no interior da
ontologia do trabalho ou como consequência dum "ponto de vista dos operários e camponeses". Se esta
redefinição radical do socialismo significa tomar a sério e levar coerentemente ao fim a crítica da economia
política, ela não é um utopia em sentido negativo, mas uma necessidade imperiosa perante a maturidade do
potencial de crise do sistema mundial produtor de mercadorias. A "crise do trabalho" e a "crise ecológica" não
são fenómenos desconexos, mas momentos parciais do mesmo e único processo de crise da forma do "valor"
ou da mercadoria. Já de nada serve um "novo conceito de trabalho" sobre o terreno intocado e incompreendido
desta determinação da forma social, nem a mobilização impotente duma "nova ética" como última infusão de
Kant, mas apenas a superação do trabalho abstracto a todos os níveis, sob pena de ruína. A partir desta base
cabe esclarecer melhor e elaborar com mais precisão as determinações gerais desta superação.
A categoria da "troca"
Talvez em nenhum outro ponto se torna tão nítido o carácter burguês do marxismo do movimento operário,
mesmo do aparentemente mais radical, como na questão da "troca", na ambicionada sociedade socialista
supostamente nãoburguesa. Este é um dos poucos pontos em que as declarações explícitas da teoria de Marx
se revelam de todo inequivocamente incompatíveis com o conjunto do marxismo. Se a respeito duma "ontologia
do trabalho", as posições assumidas por Marx em muitos de seus escritos e esboços se revelam francamente
ambíguas, equívocas e contraditórias em si, (9) isto não vale para sua definição de "troca" numa sociedade
socialista, sobretudo na Crítica ao Programa de Gotha. Esta definição diz simplesmente que numa sociedade
socialista não pode existir nenhuma "troca".
Aqui cai fragorosamente por terra até o subterfúgio habitual dos marxistas, que costumam varrer rapidamente
para debaixo do tapete todas as incómodas declarações de Marx, dizendo que só são válidas para a fase
"posterior" e "superior" de um "comunismo" adiado para um futuro imaginário, e portanto absolutamente
irrelevantes para qualquer discussão teórica sensata. De facto, Marx fala explicitamente da "primeira" fase do
"socialismo", imediatamente pósrevolucionária, na qual toda a "troca" tem de perder o seu objecto e portanto ser
abolida. Não vale a pena catar um "revisionismo" patente mesmo no plano filológico, até nos marxistas
aparentemente mais ortodoxos, pois felizmente a exigência meramente filológica da letra dos textos sacros
tornouse tão despropositada que já ninguém com pretensões de ser levado a sério pode argumentar neste
plano.
Esta afirmação da teoria de Marx deve portanto ser tomada única e exclusivamente no seu conteúdo objectivo,
no qual seu peso já é suficientemente grande. Pois Marx tem de avançar forçosamente este argumento
apodíctico contra a "troca" para ser coerente com a própria "crítica da economia política". Em sentido contrário,
o apego do marxismo à categoria da "troca" ou a total falta de clareza sobre semelhante tema demonstram uma
absoluta incompreensão da tão evocada "crítica da economia política". É possível verificar, pelas
consequências extraídas para o conceito de socialismo, se a crítica teórica da sociedade burguesa foi ou não
compreendida.
Por que a apodíctica negação marxiana da "troca" numa reprodução socialista é tão forçosa como resultado da
crítica do modo de produção capitalista? O centro desta crítica está na crítica do trabalho abstracto como
processo tautológico e autoreferencial do trabalho social, como produção de "trabalho morto" ou "valor" através
do trabalho vivo. Mas esta autoreferencialidade tautológica só é contudo possível através da mudança de forma
do trabalho, que "se representa" como seu próprio "outro" no dinheiro. Por outras palavras: a reprodução da
sociedade assim constituída não é possível como identidade imediata de produção e consumo, mas tem de se
duplicar como "produção" por um lado e "troca" ou "mercado" por outro.
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A mudança de forma do trabalho vivo em trabalho morto não pode esgotarse na "representação" do trabalho
passado "no" valor de uso dos bens de uso produzidos, pois nesta figura a mudança de forma permanece ainda
"impura". A existência transformada do trabalho passado como "valor" tem de ser separada da forma material do
valor de uso, e a abstracção social do "trabalho morto" tem de tornarse "tangivelmente real", "abstracção real"
também num sentido imediatamente de coisa. Isto ocorre no dinheiro, isto é, no valor de uso da "mercadoria
particular" que um processo histórico inconsciente converteu em "mercadoria geral" e, portanto, em forma
imediata de representar a abstracção do trabalho social.
A mudança de forma da tautologia social do "trabalho" realizase de tal modo que, no processo produtivo, o
trabalho vivo metamorfoseiase na forma do valor de uso dos bens produzidos, que "são" ao mesmo tempo bens
úteis concretos e trabalho abstracto morto. A mudança de forma só se completa quando, na "troca" do mercado,
a abstracção social da forma do trabalho morto se cinde como dinheiro dos bens úteis e o trabalho morto "é
representado" numa forma pura. A "troca" nada mais é, portanto, que o processo de realização do trabalho
abstracto. E o mercado, em que tem lugar essa "troca", nada mais é que a "esfera de realização" da tautologia
social sem sujeito, ou seja, do fim em si mesmo da transformação de trabalho vivo em trabalho morto, ou ainda
da transformação do trabalho social noutra forma de si mesmo. Esta cisão da reprodução social em "produção
verdadeira" e "troca" é aliás ao mesmo tempo o núcleo da cisão em geral desta sociedade em "âmbitos" ou
"esferas" separadas.
Agora se compreende facilmente por que não restava a Marx senão negar apoditicamente desde o princípio a
esfera da "troca" numa reprodução socialista, já que sua liquidação era apenas a consequência lógica da
liquidação do trabalho abstracto, sem a qual por sua vez não é pensável nenhuma superação da "economia
política" ou do "capital". Se ele tivesse tratado como uma categoria funcional do socialismo o próprio "processo
de realização" do fetiche social do "trabalho", teria de fazer passar , conscientemente, uma determinação básica
do capital por uma categoria "socialista". O marxismo fez exactamente isso, ao formular a questão de como
seriam as feições da "troca" no socialismo. Desse modo, ele absorveu inconscientemente no seu conceito de
socialismo uma premissa legada pela lógica da mercadoria, que por si só bastava para fazer falir
miseravelmente toda a determinação teórica e prática duma planificação social ex ante. O postulado da "troca"
no socialismo não é senão a consequência lógica do trabalho abstracto, também ele pressuposto cegamente.
A desculpa que pode ser alegada é obviamente o "muito fraco desenvolvimento das forças produtivas". Se essa
formuleta tão inflacionada não háde servir apenas para uma superficial apologia, cabe perguntar o que afinal ela
quer dizer. Antes de tudo, devese traçar uma nítida linha divisória com relação à apologética até agora
predominante do "socialismo real" que desmorona perante os nossos olhos. Esta apologética usava a citada
formuleta para justificar até à mais completa confusão um "socialismo difícil", como se o conceito de
socialismo fosse possível sem as suas condições, como se a "existência real" do trabalho abstracto e da
"troca" fosse a "dificuldade" do socialismo e não a sua impossibilidade lógica.
Em que medida o desenvolvimento das forças produtivas é "muito fraco"? Na medida em que é o dispêndio da
força de trabalho humana em geral que determina essencialmente a produção, isto é, na medida em que a
própria força de trabalho humana como tal permanece a força produtiva essencial. Nessa medida, o trabalho
abstracto não pode ser ultrapassado e não pode haver socialismo. Só quando a ciência como força produtiva, a
título de forma diversa e superior de actividade reprodutiva humana, começa a exceder o dispêndio da força de
trabalho humana na própria produção, o trabalho abstracto entra em crise, tornase obsoleto e tem de ser
substituído pelo "ócio produtivo", um fenómeno hoje em ascensão nos países ocidentais mais desenvolvidos.
Também a ciência como força produtiva é força produtiva humana, mas num plano diverso e num nível mais
elevado.
O "ócio produtivo" implica entre outras coisas que as ciências naturais e as aplicações tecnológicas, indo além
do dispêndio repetitivo da força de trabalho, tornam esta última supérflua num espaço de tempo cada vez menor.
Ou seja, a supervisão dos componentes da produção postos em marcha e a sua direcção e posterior
desenvolvimento sobrepujam o dispêndio de força de trabalho e substituemna. Deste modo, o próprio processo
tautológico e fetichista de mudança de forma do "trabalho" em algo morto e outro que não ele mesmo, ou seja,
em "valor" e "dinheiro", se esgota e perde o sentido. Só o dispêndio repetitivo de força de trabalho, como
"representação" regularmente renovada de grandes volumes de trabalho, pode funcionar como "trabalho", mas
não o "ócio produtivo" da ciência, que se apaga antes mesmo da produção verdadeira e própria e não se repete
biliões de vezes nem se "representa" nos produtos mortos.
No que se refere à troca, o mesmo processo se revela no plano fenoménico como a "separação" real e como a
real e material ligação em rede da reprodução social. A "fraqueza" das forças produtivas manifestase no quadro
da produção no facto de esta última ser determinada principalmente pelo dispêndio de força de trabalho humana.
No que respeita à reprodução total e às relações sociais, esta fraqueza háde aparecer como relativa separação
dos produtores, e portanto como necessidade de uma "troca". É importante porém compreender que esta
"separação" é apenas um fenómeno, e não a própria essência e pressuposto. Essência e pressuposto são a
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produção como dispêndio de força de trabalho e, assim, como tautológico fim em si mesmo, que aparece na
separação dos produtores e se põe como "mercado" ou como esfera de "troca", para "realizar" a tautologia social
do "trabalho". A separação dos produtores e, como consequência, a "troca" são as formas fenoménicas do
trabalho abstracto ou da tautologia em que se resolve o puro dispêndio de força de trabalho.
Aqui convém todavia proceder a uma pequena correcção da terminologia marxiana. Marx repete frequentemente
que se trata de "trabalhos privados independentes entre si". Ora, as coisas não são exactamente assim. Os
"trabalhos" só são realmente "independentes entre si" quando ainda não se trata de "trabalhos privados", quando
as formas de reprodução são ainda baseadas na consanguinidade, essencialmente ligadas à natureza (dos
povos primitivos até à "casa completa"), e quando vigora uma economia quase autárquica, onde a "troca" ocorre
apenas casualmente, ocasional ou marginalmente como "troca de excedentes" (10)
Em graus mais elevados do desenvolvimento da produção de mercadorias, nos quais já se formaram elementos
do trabalho abstracto e onde consequentemente a "troca" atinge uma certa regularidade e constância, os
produtores permanecem realmente separados como dantes, e todavia são cada vez menos "independentes"
entre si. Poderseia até mesmo dizer que quanto mais os trabalhos se tornam "privados", menos
"independentes" eles são entre si no sentido concreto e material. A razão para tanto está no desenvolvimento
das forças produtivas que supera a imediata relação com a natureza e faz surgir uma divisão de trabalho de
ordem superior à tosca divisão de trabalho que vigorava na relação imediata com a natureza. Desse modo, entre
os produtores separados criase uma interdependência material que os converte tendencialmente em produtores
de trabalho abstracto e que impõe a duplicação fetichista do trabalho como "valor" ou dinheiro na esfera cindida
da "troca".
O nexo que liga materialmente os trabalhadores separados como totalidade da reprodução social existe portanto
"em si", mas não "para" os produtores, ou seja, existe "externamente" a eles, como objectividade que se lhes
contrapõe e como quase natureza do próprio processo social em que agem ("segunda natureza"). Quanto mais a
divisão do trabalho progride nesta forma, mais o trabalho se torna a esfera cindida do trabalho abstracto e
aparece como extensão manifesta da esfera de realização da "troca", e tanto mais se eleva o grau de
desenvolvimento da cultura social, porém sempre como "esfera" cindida, já que a "sociabilidade" em geral não
pode mais manifestarse numa unidade orgânica com o processo da vida e o do trabalho. Os trabalhos tornam
se cada vez mais trabalhos privados e separados, mas justamente por isso cada vez mais interdependentes.
O processo em que se forma e se estende a produção de mercadorias, isto é, o trabalho abstracto, poderia ser
caracterizado ao mesmo tempo como processo social de ligação em rede da produção e da reprodução, sem o
qual nem sequer existiria algo como "sociabilidade". Observase assim uma lógica peculiarmente contraditória
deste processo de ligação em rede baseado na forma da mercadoria. Enquanto a forma da mercadoria
representa uma forma superior de sociabilidade e de cultura social sobretudo nos nichos da reprodução pré
capitalista (com sua floração culminante na cultura urbana, relativamente breve, da antiguidade), ela não se
encontra ainda desdobrada e não pode corresponder plenamente ao conceito de trabalho abstracto. Mas à
medida que a própria forma da mercadoria se torna a forma social da reprodução e desdobra completamente a
lógica tautológica do trabalho abstracto e isso só pode ocorrer quando a própria força de trabalho assume a
forma da mercadoria, ou seja, com o princípio da "maisvalia" ela ao mesmo tempo tornase a si própria
gradualmente obsoleta, isto é, tornase claro que ela não é em si mesma uma forma superior de sociabilidade,
mas um simples "momento de mediação" para a preparação e efectiva formação desta forma superior. Por
outras palavras, a forma da mercadoria é somente um cego estágio transitório no processo de socialização da
reprodução humana.
Esta circunstância é obscurecida justamente pela existência milenária da "troca", da mercadoria e do dinheiro:
um estágio larvar "travado" e nãodesenvolvido que durou milénios e que só foi rompido com a relação capitalista
da "modernidade", no desdobramento sem precedentes da dinâmica do trabalho abstracto. Só agora a forma da
mercadoria se torna transitória na figura da "maisvalia". Só neste movimento transitório a forma da mercadoria
se torna pela primeira vez a forma social total da reprodução. Ela revelase como pura contradição em si
mesma, como forma de crise na transição para a verdadeira sociabilidade. O capitalismo como um todo pode
então ser entendido como processo histórico de crise, não como o fim da história, mas como as dores de parto
da verdadeira sociedade humana; o inicio da genuína história humana encontrase ainda no futuro.
Este conceito de capital como crise em si pode ser compreendido de um modo duplo que é expresso no ciclo de
crise da história interna do capital. Na fase ascendente do capital ou na primeira fase de transição social, a crise
apresentase ainda predominantemente como crise de afirmação da relação capitalista, isto é, aparece como
crise das decadentes formas précapitalistas de reprodução, como volatização de todas relações corporativas,
estáveis e fundadas no parentesco de sangue, (11) cuja crise ainda encobre e domina a contradição do próprio
capital. Esse domínio da crise de afirmação inclui também as duas guerras mundiais, e nesta fase a crise não
pode ainda manifestarse em seu núcleo "económico" como crise da própria forma, nem pode produzir ainda um
conceito puro de crise. A crise do capital em si mesmo, na qual o carácter transitório da forma da mercadoria se
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torna plenamente manifesto, anunciouse pela primeira vez no período da fundação do império alemão e, depois,
em escala cada vez mais maior, na crise económica mundial. Só hoje, porém, essa crise começa a vir à tona
com toda força em sua forma pura, o que torna a abolição da forma da mercadoria uma questão directa de
sobrevivência.
É também neste contexto que deve ser considerado o apego do marxismo à categoria da "troca". Vários
momentos da crise de afirmação do trabalho abstracto foram confundidos com a crise do próprio capital; esta é
apenas uma outra maneira de dizer que o marxismo do movimento operário se move, sem o saber, ainda no
interior do trabalho abstracto, e portanto da propriedade privada. Nestas crises de afirmação ou da fase de
ascensão do princípio da "maisvalia" e do trabalho abstracto, a ligação em rede da reprodução social concreta e
material ainda não tinha chegado ao ponto de poder despojarse do invólucro do trabalho abstracto. No nível
fenoménico, isto exprimese no facto de que a relativa separação das diversas unidades sociais de reprodução
ainda não foi superada no plano concreto e material, de sorte que a necessidade da "troca" conserva uma
plausibilidade quase ontológica.
A relativa separação dos produtores, as necessidades materiais e técnicas e a determinação da forma do
trabalho abstracto não podem ainda ser distinguidas analiticamente, embora Marx já tenha aqui dado o passo
teórico decisivo; contudo, para um programa social concreto da superação das condições dadas esse passo
ainda não é suficiente, e o marxismo do movimento operário permanece incapaz, mesmo no plano teórico, de
efectuar a concretização. A lacuna da "separação" mostrase provavelmente com a máxima evidência na
relação entre "cidade e campo", pois aqui não se pode pensar uma relação que não a da "troca". Até agora não
se produziu nenhuma "rede" directa e abrangente, nem mesmo no interior das indústrias, como por exemplo
entre a produção têxtil e a indústria mineira.
Isto significa apenas que o trabalho abstracto ainda não cumpriu inteiramente a sua "tarefa" (uma tal formulação
obviamente só é possível a posteriori, já que não há ninguém que "impõe a tarefa") de desenvolver as forças
produtivas, e portanto a cada vez mais vasta ligação em rede concreta e material. A "ligação em rede" da
reprodução concreta e material só se torna incompatível com o invólucro do trabalho abstracto e portanto com a
"troca" como sua forma fenoménica a partir do grau de desenvolvimento das forças produtivas em que hoje
começamos a ingressar. Só agora se dissociam irrefutavelmente, por um lado, a ligação em rede da reprodução
material concreta, urdida "por trás das costas" dos produtores, e, por outro, a determinação da forma dessa
reprodução encarnada na tautologia fetichista do "trabalho" que se manifesta como "troca". A "separação" dos
produtores perdeu definitivamente qualquer fundamento material e técnico e restringese agora à determinação
da forma puramente abstracta, que se torna com isso obsoleta e insustentável.
A "superação do divórcio entre cidade e campo", que o movimento operário entendia ainda como utopia
transcendente de uma futura sociedade socialista, foi realizada pelo próprio capitalismo através da
industrialização e cientificização da agricultura, assim como o foi a fusão das indústrias cada vez mais
interligadas num único e gigantesco conglomerado de reprodução, consumada pela microeletrónica, pela
automatização flexível e pela ligação em rede informatizada. Na determinação da forma do trabalho abstracto ou
da "troca", isto significa que as coisas mortas estão socializadas, ao passo que os produtores vivos, cujas
actividades produtiva e reprodutiva se interligam porém de modo geral e abrangente, transformaramse, na
condição de seres sociais, em mónadas do dinheiro, totalmente separados entre si. Esta situação, no entanto, é
insustentável e precária: a separação total, que agora reside apenas na pura forma social sem qualquer
conteúdo, apesar da total ligação em rede do conteúdo concreto, exige urgentemente uma "reviravolta", isto é, a
socialização das próprias pessoas em vez das coisas. Em seu ápice histórico, o trabalho abstracto entra em
colapso; sua vitória definitiva sobre os restos précapitalistas coincide com sua derrota definitiva, e portanto com
a crise da "troca" tornada absurda. (12)
Mas seria um equívoco dar como esgotada a lógica da "troca" entre unidades separadas da reprodução social só
porque a concreta ligação em rede do conteúdo efectivo implica a dissolução do fundamento material e, por
assim dizer, "técnico" desta forma de relação social. Embora o nexo da forma agora puro e sem conteúdo do
trabalho abstracto e da "troca" se torne inteiramente obsoleto e se manifeste em todos os planos como um
processo de crise cada vez mais insuportável, a superação consciente destas determinações formais encontra
inicialmente no próprio sujeito obstáculos quase intransponíveis. É certo que os obstáculos, ao menos em parte,
advêm do desenvolvimento desigual à escala mundial. O trabalho abstracto atingiu o seu horizonte de crise
absoluto, o que é demonstrado pelo facto de os retardatários históricos do Sul e do Leste estarem
definitivamente configurados segundo esta forma de reprodução e segundo as determinações do sujeito que lhe
são próprias (Estado de direito, democratização), restringindo assim para sempre qualquer espaço ulterior de
desenvolvimento.
O que agora aparece como a vitória definitiva da liberdade ocidental, da democracia e da "economia de
mercado", como o "fim da história", já é na verdade parte da sua crise definitiva, em que começam a vacilar
justamente aquelas determinações básicas que ligam entre si todas as partes da sociedade mundial como
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sistema planetário produtor de mercadorias, apesar dos diversos graus de desenvolvimento. Mas não é só a
diversidade dos estágios de desenvolvimento que confunde a vista e cria a impressão de que o colapso do
"socialismo real" não é o início do fim do trabalho abstracto e portanto da forma da mercadoria em geral, mas
simplesmente a vitória da verdade sobre o erro ou o "regresso" dum transviado à eternidade ontológica da
sociedade burguesa. Antes, é o lado mais profundo da subjectividade burguesa, mesmo nos países mais
desenvolvidos do próprio capital, que foge espavorido ante a perspectiva duma superação de seus limites.
Para a consciência burguesa (incluindo o movimento operário), a subjectividade constituída pela forma da
mercadoria é idêntica à subjectividade tout court. Isso é absolutamente correcto na medida em que o sujeito
social constituído pela forma da mercadoria foi o primeiro e até agora o único da história universal; não há
nenhum termo de comparação. Os "primeiros filósofos" e o pensamento científico em geral surgiram juntos com
a forma da mercadoria (Thomson, SohnRethel, entre outros) e com as primeiras formas embrionárias do trabalho
abstracto, bem como o "dizer Eu" no sentido de uma subjectividade não apenas pessoal, mas também social,
que faz valer seu "interesse". Todas as condições de vida e relações sociais que estão para lá desta forma e a
tornam distinta e logo reconhecível encontramse na velha dependência da natureza, na crua relação com a
natureza e com os fetiches naturais, a partir da qual a humanidade se lançou, por meio da forma da mercadoria,
no mar "aberto" da subjectividade social. Todos os conflitos históricos e sociais propulsores da modernidade se
desenrolaram no interior desta forma. O objectivo oculto do velho movimento operário era, e só podia ser, o de
alçarse, através da acção colectiva e da organização das massas de produtores imediatos, da condição não
social e nãoindividual de mero instrumento da unidade de reprodução feudal e préburguesa à individualidade de
ser social autónomo, isto é, à libertação do carácter de mercadoria da força de trabalho.
A definição de sujeito aqui contida não se esgota, porém, no que toca ao conceito de individualidade, na
necessidade técnicomaterial da "troca" entre sectores realmente separados como "cidade e campo". Antes, o
indivíduo assim constituído se concebe necessariamente pela sua "natureza" (ou seja, pela sua segunda
natureza social) como um ser que defronta o todo da sociedade e que só pode travar contacto com este todo
única e exclusivamente através da "troca", sob pena de perda do Eu. As modalidades desta relação podem ser
muito diversas ou ser pensadas nas roupagens mais fantásticas; elas permanecem contudo secundárias e
dependem da determinação da forma vazia e árida: "Troco, logo existo". O operário isolado concebese como
portador da força de trabalho, sem jamais pensar no facto de assim se encontrar já sempre determinado pela
forma do trabalho abstracto. Com necessidade lógica ele concebe sua quota individual do trabalho social global
como a sua própria "troca" individual com "a sociedade", à qual cumpre legislar com "justiça" e segundo os
"interesses" dele (como trabalhador abstracto).
Contudo, este modo de pensar ou esta ideologia correspondem a um estágio relativamente avançado no
desenvolvimento do trabalho abstracto e portanto do processo social de ligação em rede. Isto é evidente no
confronto com a originária ideologia burguesa de base que se tornou a ideologia dos primórdios do movimento
operário e, ainda no século XX, das suas correntes anarquistas (Proudhon), cooperativistas etc. A mais
elementar definição burguesa do sujeito (ou do conceito correspondente de individualidade) ainda não se referia à
"troca" do indivíduo com "a sociedade", mas à "troca" do produtor ou "trabalhador" (ou de sua família) com
outros produtores semelhantes. Aqui, o facto de cada qual ser um indivíduo social porque "representa" uma
determinada quantidade de trabalho social abstracto ainda não se separava das formas da divisão do trabalho: a
"troca" podia assim ser pensada ideológica e directamente como a relação entre "trabalhadores honestos",
quase como a "troca" entre padeiro, ferreiro, sapateiro e camponês (13). Na primeira fase da divisão capitalista
do trabalho, o movimento operário limitouse a "colectivizar" mecanicamente esta determinação burguesa básica
da individualidade e da subjectividade, tornandoa uma ideologia da "troca entre trabalhadores honestos" entre
colectivos (cooperativas) de padeiros, ferreiros, sapateiros ou camponeses. A crítica do capital restringese aqui,
muitas vezes de forma explícita, à negação das formas secundárias e das metamorfoses incompreendidas do
dinheiro, sobretudo do capital monetário que rende juros ("sem trabalho"), como de forma exemplar em
Proudhon.
O conceito de "troca" entre a "sociedade" e o indivíduo "trabalhador" não importa se homem ou mulher,
qualificado ou desqualificado, cristão ou muçulmano, nacional ou estrangeiro indica pelo contrário, pelo seu
grau superior de abstracção, um estágio superior de desenvolvimento do trabalho abstracto. Uma vez elaborado,
na ideologia e nos factos, o conceito puro do par antitético de "indivíduo" e "sociedade", o movimento operário
moderno (para nós já "velho") revelouse como o seu protagonista mais zeloso e obstinado. É nos estágios mais
avançados do desenvolvimento do trabalho abstracto, e portanto do processo social de ligação em rede, que a
categoria da "troca" perde progressivamente, inclusive no terreno do movimento operário, os últimos farrapos
concretos e materiais para apresentarse em sua pura e árida nudez como abstracta e burguesa determinação do
sujeito.
O "socialismo" como utopia de uma "sociedade do trabalho", como pura totalidade do dispêndio da força de
trabalho, realizada aproximadamente talvez na Coreia do Norte ou, em nível técnico mais elevado, na Alemanha
Oriental, implica também a forma mais pura e mais abstracta de "troca" como pura categoria funcional burguesa,
como forma de relação por assim dizer típica e ideal das abstracções reais de "indivíduo" (força de trabalho) e
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"sociedade" (Estado). Fazer descer sobre a Terra os ideais celestes do iluminismo burguês revelouse porém um
verdadeiro inferno, e a pura definição burguesa do sujeito revelouse uma dessubjectivação dos indivíduos
fantasmagoricamente burocrática e quase idiota, tão logo estes se formassem, ainda que apenas
aproximadamente. É uma das ironias mais mordazes da história mundial o facto de não ter sido o
desenvolvimento orgânico da sociedade burguesa ocidental que produziu uma caricatura tão tétrica. Nesta, de
facto, o "desencanto" do sujeito burguês da "troca" começou muito antes e teve muito mais tempo para recobrar
sua sobriedade, coincindindo este processo com o desenvolvimento das forças produtivas destinadas a romper
com o trabalho abstracto.
Apenas a parte mais atrasada da sociedade burguesa, em que era objectivamente inevitável uma "forma
burguesa de modernização tardia" pôde nutrir a ilusão duma "troca planificada", isto é, a tentativa
necessariamente superficial e condenada ao fracasso de realizar imediatamente as categorias ideais e típicas da
sociedade burguesa na sua forma mais pura e abstracta e até conceber esta empreitada monstruosa como
"socialismo". Confrontadas com o nível material e real obtido com a ligação em rede da reprodução as pseudo
realizações externas de uma sociedade de trabalho total, ou seja, dum Estado e duma "troca planificada"
impregnados pelas categorias burguesas em estado puro e ideal, revelamse miragens ou cenários
hollywoodescos de papelão, e de dimensões fabulosas. A sociedade do trabalho supostamente totalizada produz
apenas sucata e mais nada; o Estado supostamente totalizado possui muito menos capacidade de intervenção
que qualquer conselho de província ocidental e não consegue sequer recolher os impostos; a suposta "troca
planificada", enfim, revelase como uma simples cortina de fumo para encobrir o maior mercado negro da história
mundial, ou como uma espécie de sistema de prebendas, comparável talvez à posição social do aparelho
eclesiástico na Idade Média. Manter os povos submetidos pelas armas durante um certo período, isso já Gengis
Khan sabia fazer.
O que o "socialismo real" produziu é a caricatura duma sociedade burguesa "pura", como nenhuma cabeça
humana teria podido imaginar de forma mais maligna. Uma caricatura, pois as variantes da determinação da
forma relativamente ao Ocidente são até certo ponto a tentativa de "realização de ideais", isto é, tratase da
ideologia burguesa "realizada", de "falsa consciência" tornada realidade institucional como paradoxo duma
artificiosa recuperação da forma burguesa, na qual a inconsciência devia consumarse conscientemente. A
sociedade burguesa "pura", crescida organicamente, como a encontramos hoje em seu nível de
desenvolvimento mais elevado no Ocidente, deixa a sua ideologia da "troca de trabalho honesto", fundada na
"sociedade do trabalho", lá onde deve estar: no céu das ideias. Ela está realmente fixada no cego auto
movimento do trabalho abstracto, cuja dinâmica, juntamente com o desenvolvimento das forças produtivas,
libertou a individualidade abstracta e a subjectividade burguesas com muito mais força e pureza do que a
"realização" apenas exteriormente aplicada a sociedades atrasadas dos ideais burgueses da "troca de
trabalho honesto" entre o indivíduo e a "sociedade".
Esta libertação chegou ao ponto de fazer com que a "dessubjetivação do sujeito" no Ocidente não tenha mais
de se expressar numa burocracia de guarda republicana ou na transformação da sociedade num grande
acampamento de escuteiros, como foi o caso da Alemanha Oriental. Existe sem dúvida uma gigantesca
burocracia também no Ocidente, mas ela revelouse uma mera instância executiva do movimento cego e
reificado do "sujeito automático" do trabalho abstracto. No "socialismo real", pelo contrário, a "pureza" da
abstracção real tem de apresentarse como a encarnação caricatural, antiquada e lastimável dos ideais
burgueses, justamente porque naquelas sociedades ainda não se consumou o sujeito individual burguês da
abstracção real, o que corresponde a um desenvolvimento técnicomaterial atrasado das forças produtivas
dentro do invólucro da forma burguesa. Nestes países ainda existem de facto "operários e camponeses" a
trabalhar com "foice e martelo". O peculiar desenvolvimento das contradições de uma "forma burguesa de
modernização tardia" produz assim uma caricatura histórica, que é uma formação social obtida da tensão entre
atraso material e individualidade insuficientemente desenvolvida, por um lado, e o voluntarismo burocrático que
"realiza" institucionalmente os ideais burgueses de "troca" e "trabalho", por outro.
A ideologia encarnada pela sociedade burguesa mais moderna acaba pois necessariamente por oporse como
aparelho externo aos sujeitos do "trabalho" e da "troca" da sociedade burguesa ainda (relativamente) toscos e
parcamente desenvolvidos. A "luta de classes", a figura arquetípica pela qual se impôs a "sociedade do
trabalho" burguesa, conservouse petrificada tanto nos aparelhos estatais e partidários do "socialismo real" como
nos sindicatos e na socialdemocracia ocidentais. Se o "cerne racional" deste desenvolvimento consiste
naturalmente em fustigar o trabalho abstracto ainda insuficientemente desenvolvido e em impor a sociedade
burguesa "pura", no Leste isto assumiu os traços de uma "modernização tardia" e de formas particularmente
paradoxais de antinomia social. O que resta desta construção social são as indústrias de base e os
fundamentos duma infraestrutura moderna. Mas o horizonte temporal deste "núcleo racional" há muito foi
superado As massas do Leste, com todo o direito, reivindicavam a transição para uma sociedade burguesa
"normal", que sustentasse os seus ideais no céu das ideias em vez de deixálos despencar na terra, em trajes
dos anos cinquenta, dandose ares de importância e regulando tudo até às raias da imbecilidade; queriam uma
sociedade que afinal enviasse para o museu a antiquada "luta de classes" e que "libertasse" os elementos da
individualidade e subjectividade burguesas abstractas penosamente formados uma sociedade que, numa
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palavra, tornasse finalmente operacional a "troca", dando assim livre curso à perfeição do trabalho abstracto em
sua "esfera de realização", em vez de fundar esta "troca" na insensatez lógica e prática duma "planificação",
com consequências cada vez mais absurdas.
O azar das correntes e partidos de oposição, dos movimentos de massa "progressistas" e "democráticos" no
Leste e no Sul está em subirem ao poder justamente na época da crise global do trabalho abstracto. O que eles
desejam e que para eles constituiria efectivamente um "progresso" já é obsoleto nas sociedades ocidentais
burguesas, cujo avanço é constante. Da crise do trabalho abstracto por estagnação no Leste eles lançamse na
dinâmica ocidental dessa mesma crise; a bagagem ideológica da antevéspera só foi abandonada para pôr às
costas a da véspera, ou seja, a crise de estagnação do trabalho abstracto no Leste é tanto indício quanto um
momento da crise do trabalho abstracto em geral, isto é, da crise do sistema mundial de produção de
mercadorias, de que o "socialismo real" sempre foi, desde o princípio, o elemento retardatário (a despeito de
seus esforços passageiros de independência).
Na ordem do dia não está o mero retorno da "troca planificada" à "troca" burguesa operacionalizada e
normalizada como esfera de realização "libertada" do trabalho abstracto, mas sim a crise da "troca" em geral,
como forma fenoménica do esgotamento do trabalho abstracto nos centros do mercado mundial. No quadro da
sociedade mundial, os reformadores dos países do Leste assemelhamse àqueles camponeses insurrectos que
ainda não tinham tomado conhecimento de que a almejada troca de poder já ocorrera um século antes na capital
e que seus líderes e heróis do momento há muito haviam sido sepultados e mumificados. Eles querem começar
a nadar como sujeitos burgueses exactamente no momento em que o sujeito burguês está definitivamente
condenado a afogarse.
Sem dúvida, os critérios do que virá "depois" não podem ser tomados do passado duma "luta de classes"
coberta de pátina ou duma época heróica já ultrapassada da sociedade burguesa. Um socialismo pósburguês
(pósmoderno, pósfordista, pósindustrial, pós marxista etc.) não pode mais basearse no "trabalho" e muito
menos na "troca". Para o sujeito pósburguês que não pode mais conceberse como "indivíduo que troca", os
critérios para "pensar o impensável" só podem ser derivados da existência das forças produtivas e dos
potenciais de automatização mais modernos, tal como estes se formaram "por trás das costas" dos obstinados
sujeitos da "troca" e do "trabalho", na forma duma nova potencialidade social que até agora só existe no plano
material. Essas novas forças produtivas tornam cada vez mais impossível ao indivíduo conceber a própria "força
de trabalho" como seu potencial individual de "dispêndio" ou considerar o seu "trabalho" como a respectiva
prestação individual deste "dispêndio", que, uma vez "objectivado", aparece de certa maneira como fruto das
suas trocas com os outros produtores ou com "a sociedade". Um tal indivíduo está cada vez menos "por trás" e
cada vez mais "à frente" ou até "por cima" do processo produtivo real, que já está "ligado em rede" e
socializado, antes mesmo de ele mover um só dedo.
Cada vez mais este processo produtivo representa não o puro "dispêndio de força de trabalho", mas o emprego
racional de "meios", no sentido do processo de metabolismo com a natureza. E cada vez mais este processo
produtivo não exige em primeiro plano a produção e o desenvolvimento das forças produtivas como tais e por si
próprias, mas um cálculo racional das consequências materiais e dos nexos funcionais. O indivíduo não
representa mais um quantidade social de "trabalho" abstracto, cuja sociabilidade "se realiza" como tal somente a
posteriori; antes, ele já se encontra a priori numa correlação social de reprodução material que também ex ante
tem de ser "planeada" como correlação material, isto é, como processo racional de meios e de consequências.
Importante não é mais o dispêndio individual de trabalho e o seu volume total, mas o planeamento e a direcção
do nexo funcional material da reprodução, agora imediatamente social. Não tem relevância alguma se o indivíduo
"trabalha" duas ou cinco ou oito horas, o importante é apenas que os elementos postos em movimento tenham
um "sentido" em relação ao conteúdo e às consequências materiais. Ninguém mais é portador de "força de
trabalho", a qual, ou cuja "prestação" (objectivada de modo a ser medida individualmente), possa entrar numa
"troca", mas todos são parte dum conglomerado de reprodução no plano da totalidade social, cujo movimento
material tem de ser dirigido e controlado colectivamente. Sobre uma tal base, "planeamento" significa algo
completamente diverso da "troca planificada" do "trabalho honesto", que somente neste nível de
desenvolvimento das forças produtivas pode ser reconhecida como um absurdo lógico.
NOTAS
(1) Este facto poderia induzir um observador anacrónico a conceber momentos como "cultura", "política" etc.,
(isolados desta unidade imediata do processo da vida na sua totalidade) como "funções" do processo do trabalho
destas sociedades primitivas ( por exemplo, as pinturas das cavernas como "funcionais" em relação à caça).
Ora, assim projectase de modo inadmissível sobre tais relações, que não conheciam nenhum "funcionalismo", o
"ponto de vista" embebido no pensamento e na vida próprios da lógica da mercadoria. Aqui já se vê a dificuldade
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de romper com o próprio pensamento dominado por esta lógica.
(2) Arbeit macht frei: inscrição à entrada do campo de concentração de Auschwitz (N.T.).
(3) Aqui reside também o mais profundo equívoco dos marxistas sobre o carácter do capital como "relação
social". Todo o marxista um pouco esclarecido concordará de pleno juízo ao ouvir dizer que o capital não é uma
"coisa" (máquinas etc., ), mas uma "relação social". Porém ele concebe tal "relação" como uma relação de
sujeitos já pressupostos e, por sua vez, aparentemente sem pressupostos, chamados "capital" e "trabalho".
Com isso se inverte todavia o conceito de relação capitalista. A "relação social" é na verdade a relação fetichista
e tautológica do trabalho abstracto feito fim em si mesmo, e só esta relação cega, como "sujeito automático"
(Marx), gera como "máscaras de carácter" aqueles agentes e depositários de papéis sociais, que agem como
antípodas o interior desse quadro.
(4) A ausência de conceitos tornase evidente quando também a Teoria Crítica e os marxistas ocidentais se
debruçam com afinco sobre a questão de saber se afinal de contas há no "socialismo real" a propriedade privada
e o carácter de mercadoria da força de trabalho, sendo que a resposta é quase sempre negativa, sem que no
entanto seja minimamente sentida como um defeito a existência real da forma da mercadoria e do dinheiro, do
salário em dinheiro da força de trabalho, do aparelho estatal e do sistema jurídico, incluído aí o direito do
trabalho. Nada poderia comprovar de forma mais drástica que também o marxismo "crítico" argumenta com
plena inconsciência no interior das categorias básicas do fetichismo burguês para já não falar dos marxistas
"oficiais" de partido.
(5) Cf. por exemplo a respectiva fantasia nos Problemas Económicos do Socialismo, de Estaline, ou na
revolução cultural chinesa, que também encontraram eco nas mais diversas facções da Nova Esquerda
ocidental e com uma tónica particular nos elementos popularuchos: o "intelectual" ou o "especialista académico"
visto como "amigo do povo" ou como seu "servidor", que além dos vícios próprios da obtusidade académica
devia ainda, como se não bastasse, adorar e macaquear os dos "operários e camponeses".
(6) A crítica das forças produtivas, desde a filosofia da vida até às correntes "fundamentalistas" (tanto dentro
como fora do Partido Verde), reflecte esta correlação ao propagar mais ou menos abertamente um retorno à
pobreza das necessidades como preço para uma reprodução sem os potenciais destrutivos do trabalho
abstracto: ela não imagina, nem sequer longinquamente, uma saída em direcção oposta, para além do trabalho
abstracto.
(7) Não se quer absolutamente desqualificar em bloco como simplesmente "irracionalistas" os resultados
intelectuais e artísticos excelentes e em muitos aspectos pioneiros e precursores do "romantismo" de fins do
século XVIII e início do século XIX, nem identificálo directamente com aquele pessimismo da cultura do início
do século XX que, não por acaso, desemboca no fascismo. O pensamento da era burguesa como um todo
(inclusive o marxismo) oscila entre os pólos incompreendidos do "racionalismo" e "irracionalismo", em cuja
reciprocidade encontra expressão a forma da mercadoria como forma de pensamento e filtro social do
"conhecimento". O pensamento no interior da forma da mercadoria tem forçosamente de lançar uma sombra
irracional e pode ao menos tendencialmente perceber o potencial destrutivo do trabalho abstracto na linha do
"pessimismo da cultura".
(8) Da perspectiva crítica aqui assumida, valeria a pena seguir em pormenor, nas suas diversas correntes e nos
seus efeitos ramificados, estas ideologias surgidas no século XIX e que alcançaram a plena floração no século
XX. Mas como o objectivo é uma reconsideração do problema do socialismo e a elaboração duma nova
concepção positiva do socialismo para além da economia política, basta a comprovação da total ineficácia da
"crítica do dinheiro" avançada pelo pessimismo da cultura e pela filosofia da vida, além da demonstração do seu
carácter reaccionário e incoerente, que a bem da verdade não ultrapassa a determinação abstracta da forma da
reprodução social que se manifesta no dinheiro e, a despeito da afectada condenação do "deus dinheiro",
continua totalmente imanente.
(9) Tal facto indica simplesmente o carácter duplo da teoria de Marx no seu conjunto o de ser por um lado
crítica da economia política e, por outro, teoria legitimadora do "movimento operário". Este "duplo Marx" pode e
deve hoje ser reduzido ao seu núcleo válido, ponto de partida para novos desenvolvimentos. De facto, a tarefa
do "movimento operário" está esgotada e perdeu seu objecto como exigência de "levar a cabo" a sociedade
burguesa até aos confins do trabalho abstracto. A crítica da economia política, pelo contrário, deve ainda ser
realizada como tarefa transcendente ao "movimento operário", e esta transcendência só pode ser reconhecida a
partir do nível actual do processo de socialização.
(10) Aqui ainda não existe nenhum trabalho abstracto: o processo total de reprodução, inclusive os momentos
culturais, é ainda em seu todo um processo de trabalho e, consequentemente, concreto como totalidade. Na
troca, na medida em que ela ocorre eventualmente nas "margens" dessa reprodução concreta, a abstracção do
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31/01/2016 Robert Kurz A HONRA PERDIDA DO TRABALHO
"trabalho" tem de ser operada por assim dizer a posteriori, o que se exprime na existência do dinheiro (a
começar por sua função sagrada, ou seja, ainda como "abstracção real" vinculada ao processo total da vida). O
próprio trabalho ainda não pode ser abstracto, e portanto a "troca" não é necessária, mas ocasional, marginal e
literalmente a posteriori. O produtor não produz "em vista da troca" como "realização" do trabalho abstracto. Esta
circunstância empírica, histórica e préhistórica, poderia induzirnos a considerar a "troca", já que empiricamente
primária, como categoria essencial da forma da mercadoria. Mas tratase aqui meramente do estágio embrionário
não desenvolvido, a partir do qual a determinação essencial não pode ainda ser consumada. Com base no
próprio conceito, a "troca" é a forma fenoménica ulterior do trabalho abstracto, o que só pode ser reconhecido
num certo grau de amadurecimento de tal relação. O facto de que num estágio quase prénatal desta relação isto
possa, no plano empírico, parecer o contrário em nada afecta esta lógica.
(11) Este facto constitui até hoje uma forma particularmente reaccionária de crítica da sociedade e do
capitalismo, que fixa os seus critérios positivos na "concretude" passada ou em vias de passar da vida em
confronto com a abstracção social do trabalho, isto é, do "valor" e de suas diversas emanações. Tal crítica
reaccionária não se restringe de modo algum a correntes de "direita", conservadoras e embebidas no
pessimismo da cultura; pelo contrário, ela é constitutiva da consciência do movimento operário e de suas
ideologias, inclusive o marxismo em suas muitas variantes e a Teoria Crítica. "Progresso" e "crise" são de facto
idênticos enquanto a forma do progresso não é plenamente decifrada e reconhecida como transitória.
(12) Não sei com o que se pode comparar metaforicamente este absurdo: talvez com a situação das pessoas
que vivem na mesma casa, mas se comunicam entre si somente por satélite. Mas mesmo esta comparação
falha, já que toma como parâmetro um absurdo no plano concreto e material. A forma da mercadoria, nas
condições da socialização "pósindustrial", é na verdade ainda mais absurda.
(13) É lógico que neste estágio da "troca de trabalho honesto", ainda essencialmente impregnada pela divisão de
trabalho artesanal, somente o operário "qualificado" que procede à troca, o chefe de família do sexo masculino,
apareça como sujeito e indivíduo, ao passo que os seus familiares, sua clientela etc., inclusive a sua mulher,
continuam um "instrumento", isto é, um nãoindivíduo e um nãosujeito.
Original alemão: Die verlorene Ehre der Arbeit, in Revista Krisis nº 10, Erlangen, 1991. Deutsch Español
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