John Stott - Homens Com Uma Mensagem
John Stott - Homens Com Uma Mensagem
John Stott - Homens Com Uma Mensagem
MENSAGEM
UMA INTRODUÇÃO AO
NOVO TESTAMENTO E SEUS ESCRITORES
JOHN STOTT
Revisado por Stephen Motyer
•ap»
iggSáâ
Impresso em Cingapura
A Mensagem de Apocalipse
/
índice
Prefácio de John Stott
Foi logo depois de minha posse como reitor de Ali Souls Langham Place,
em 1950, que, para minha total surpresa, o bispo William Wand (que havia
me ordenado e empossado) convidou-me a escrever para 1954 o que era
conhecido como "Livro da Quaresma do Bispo de Londres". Como resultado
surgiu Homens com uma Mensagem. Foi na verdade meu primeiro livro,
dois anos antes de Fundamentalismo e Evangelismo, e quatro anos antes de
Cristianismo Básico e O Que Cristo Pensa da Igreja.
No início dos anos 50 eu estava lendo e refletindo bastante sobre a inspiração
da Escritura e sobre as relações entre seus autores divino e humanos. Eu
estava impressionado mormente pela necessidade de enfatizar que a
particularidade de cada autor do Novo Testamento não é de modo algum
restrita a um único processo de inspiração. Antes, pelo contrário, conforme
escrevi na introdução do livro de 1954, "o Espírito Santo primeiro preparou,
e em seguida usou sua individualidade de formação, experiência,
temperamento e personalidade, a fim de transmitir por meio de cada um
alguma verdade distintiva e apropriada". Desta forma, isto se tornou, e
permanece, o tema essencial de Homens com uma Mensagem.
Agora, passados quarenta anos, sinto-me gratificado pelo fato de o livro
experimentar uma espécie de "ressurreição", através da contribuição de
Steve Motyer, que aceitou nobremente meu convite para revisá-lo. Somos
agora considerados co-autores, embora, na realidade, o livro seja mais dele
do que meu. Sensibiliza-me sua disposição de preservar tanto o título do
livro original como alguma de sua essência. Ao mesmo tempo, teve ele
total liberdade de reescrever, amenizar, expandir e atualizar o texto. Ele
executou sua tarefa com atenção conscienciosa e notável habilidade.
Creio firmemente que o conteúdo e a nova apresentação do livro revisado o
tornarão bem mais agradável de ser lido do que a pesada e condensada
primeira edição!
e m seu p r i n c i p a l p e r s o n a g e m , m a s n o s d i s c í p u l o s q u e s e r e u n i a m à v o l t a d e l e ?
Todas estas características f a z e m do registro de Marcos sobre Jesus u m a obra
singular entre as b i o g r a f i a s d e seu t e m p o . O s o u t r o s e v a n g e l i s t a s s u p r e m a l g u m a s
destas o m i s s õ e s . T a n t o M a t e u s c o m o L u c a s d e f a t o r e p r o d u z e m e m seus p r ó p r i o s
trabalhos a maior parte do conteúdo do Evangelho de Marcos, combinando-o
c o m e l e m e n t o s adicionais, p r i n c i p a l m e n t e histórias d o n a s c i m e n t o e i n f o r m a ç õ e s
mais extensas sobre o ensino de Jesus. Por esta razão ambos são
consideravelmente mais longos—no caso de Lucas, quase duas vezes mais.
Contudo, eles não nos a j u d a m a entender por q u e M a r c o s abriu c a m i n h o c o m
tal e x t r a o r d i n á r i o t r a b a l h o .
A resposta a algumas destas perguntas p o d e m estar na experiência do próprio
Marcos. Q u e m era ele?
A pessoa de Marcos
A semelhança dos outros evangelistas, Marcos não estava interessado e m
d i v u l g a r s u a p r ó p r i a i d e n t i d a d e e m seu E v a n g e l h o . E l e n ã o m e n c i o n a a si m e s m o
0 rio Jordão junto pelo n o m e . P o r é m outros f o r a m zelosos ao inserir o n o m e de seu autor, e
ao sul do mar da " S e g u n d o M a r c o s " f o i a s s o c i a d o a ele d e s d e o s p r i m e i r o s a n o s . S e h o u v e d ú v i d a
Galiléia. 0 d i f u n d i d a s o b r e tal a t r i b u i ç ã o , a t r a d i ç ã o e n c a r r e g o u - s e d e d e s f a z ê - l a e se f i x o u
Evangelho de n u m a figura da maior proeminência da igreja apostólica. Assim, pois, p o d e m o s
Marcos inicia com estar confiantes d e q u e este livro foi escrito por u m " M a r c o s " . F e l i z m e n t e
João Batista
podemos identificá-lo c o m facilidade, e o testemunho do N o v o Testamento nos
pregando no
deserto e batizando p o s s i b i l i t a p i n t a r u m f a s c i n a n t e r e t r a t o dele.
no rio Jordão.
1. Marcos pertencia a uma família fundadora da igreja cristã.
14 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Uma das características peculiares do Evangelho de • Quadrante (12.42)—a moeda que Marcos
Marcos é o uso, sem explanação, de vários termos menciona aqui circulava somente na metade
latinos: ocidental do Império Romano, área de língua
latina.
• Legião (5.9)
Marcos escreveu em grego, porém trai seu
• Centurião (15.39) conhecimento do latim. E, assim fazendo,
• Pretório (15.16)—aqui Marcos acrescenta a palavra denuncia uma clara evidência de que estava
latina para explicar a palavra grega "palácio". escrevendo para um público da região
ocidental, talvez a própria Roma.
• Executor (6.27)—a palavra usada por Marcos aqui é
o termo técnico para policial militar.
-, Palestina no PROVÍNCIA
"empo do DA SÍRIA
Novo Testamento
Lago
5-70 d.C. •sr Semeconita
TETRARQUIA
Î5 r~vi- i-ii i n r
10 20 Quilômetros DE FILIPE
\
Ptolemaida - r ^
_L
Çorazim
C a f a r n a u m . «Betsaida
Genezaré ' d
Galiléia0 ?Gergesa
Divisas políticas M o n t e p Sepora fy Tiberíades" .Hipo
6-34 d.C. Carmelo Nazaré % Jarmuque
% yP
Grande
Planície Nairn \
V
Gadara
Abila
•ye>°e
' °o/ DECAPOLIS
Monte Gilboa Sifópolis
Pela.
Salim Ribeiro Quente
Mar
Mediterrâneo • : • f ~ ...
Sebaste 5
SAMARIA o
Monte Ebal
Neápolis *A • Sicar
6 Gerasa
Monte Gerízim o
Alexândrio Rio Jaboque
Siló
Jope Tiná
Lida Efraim Filadélfia
Baixo A l t o o Retel
B e t e - h o r o m• •B e t e - h o r o m PEREIA
-V
Emaús Anatote Jericó
Jerusalem A »
tcrom Betfagé • . M o n t e Esco
P°
Betânia
Azoto Qu m rã
A PROVÍNCIA •
• squelom ROMANA DA
n,nÉ|A
B ié
u
Herodio
I Medeba
JUDEIA Manre
Mar
Morto Maqueronte
è
P
Hebrom
Gaza En-gedi
or^
RiO
Masada
Berseba
L
O REINO DE
NABATÉIA
IDUME1A
18 HOMENS COM UMA MENSAGEM
e muito humanamente torna claro que não são somente as ondas que aterrorizam
os discípulos: mais do que isto, é a demonstração da absoluta grandeza e poder
de Jesus.
• De modo similar, em 10.32 ele registra que os discípulos estão "admirados" e
"apreensivos", quando acompanham Jesus até Jerusalém, mesmo antes de Je-
sus ter-lhes enfatizado mais de uma vez seu próximo sofrimento e morte
(10.33,34).
• E, o mais extraordinário de tudo, ele termina seu Evangelho com uma nota de
espanto e medo, quando conta a reação das mulheres diante do anúncio da
ressurreição. Elas foram instruídas a transmitir a mensagem de que o Jesus
ressurreto encontraria seus discípulos na Galiléia. Porém, em vez disto, "saindo
elas, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro;
e de medo nada disseram a ninguém" (16.8).
Desde os primeiros anos, os copistas acharam que este era um final bastante
inadequado para o Evangelho e apresentaram alternativas. E certamente possível
que o final original de Marcos tenha sido perdido na transmissão. Entretanto,
fica claro pelos antigos manuscritos gregos de Marcos que nenhuma das
alternativas apresentadas é original. E, na realidade, o final grego harmoniza
com todo o retrato da fraqueza humana dos seguidores de Jesus, com a qual ele
deveria terminar seu Evangelho de forma singular.
Parte do Fórum, nesse tempo conhecido das igrejas na Galácia e na Ásia Menor, a mesma área
Roma, com o da qual ele havia fugido quando sua fé arrefecera. Portanto, o cuidado de Barnabé
Coliseu para com seu primo tinha sido amplamente justificado. Marcos havia enfrentado
destacando-se no e dominado seus medos, tornando-se totalmente "útil" no serviço cristão.
horizonte. Marcos
E não somente Marcos. Pedro também tinha saído do malogro para ser a
devotou tempo
ministrando em "Rocha" sobre a qual a igreja estava sendo construída. Marcos destaca o fracasso
Roma, e seu de Pedro mais do que dos outros discípulos. "Ainda que todos se escandalizem,
Evangelho foi eu jamais!... Ainda que me seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te
escrito para um negarei" (14.29,31). Então, com chocante compaixão e ironia, Marcos narra a
público ocidental, história de cada uma das negações preditas por Jesus (14.66-72). As negações
possivelmente tornam-se mais enfáticas até que ele "começou a praguejar e a jurar: 'Não
romano.
conheço esse homem de quem falais!' " (14.71).
Talvez a amizade entre Pedro e Marcos foi alicerçada em sua mútua
experiência de queda e restauração. E bem possível que o próprio Evangelho
de Marcos tenha nascido dessa experiência comum. Em data remota acreditou-
se que Marcos baseou seu Evangelho na pregação de Pedro. A posição mais
antiga desta versão veio de Papias, bispo de Hierápolis por volta de 130 d.C.
Ele foi apoiado no fim do segundo século por Irineu (bispo de Lyon, c. 178-195
d.C.), que acrescentou a idéia de que Marcos teria registrado toda a pregação
de Pedro em Roma, após a morte deste último. Depois, Clemente de Alexan-
dria (c. 200 d.C.) contribuiu com a sugestão de que Marcos foi pressionado a
fazer isso pelo povo que ouviu a pregação de Pedro.
Não sabemos a exata seqüência dos acontecimentos, porém podemos afirmar
com certeza que:
• Marcos dedicou tempo ministrando com Pedro em Roma;
• Pedro é destacado mais do que qualquer outro discípulo no Evangelho de
Marcos;
• Seu Evangelho foi escrito para um público ocidental, talvez romano (ver o
20 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Pedro em Marcos
Pedro é citado pelo nome não menos do que vinte e Assim, de f o r m a comovente, Marcos nos dá
três vezes no Evangelho de Marcos. Os personagens algum discernimento sobre o testemunho de Pedro
mais próximos, por freqüência de menção, são a Jesus. Seu Evangelho mostra realmente um estreito
Tiago e João (nove vezes); portanto, Pedro é de paralelo com o resumo do ministério de Jesus que o
l o n g e o m a i s p r o e m i n e n t e dos d i s c í p u l o s e m próprio Pedro apresentou a Cornélio em seu sermão
Marcos. Isto pode bem refletir a própria pregação de Atos 10.34-43:
de Pedro, que forneceu a base do Evangelho de * A história t e m início na Galiléia "depois do
M a r c o s . E esta h i p ó t e s e é f o r t a l e c i d a q u a n d o batismo que João pregou", e em seguida afirma
e x a m i n a m o s essas vinte e três referências, "como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito
porquanto não menos do que treze se relacionam Santo e poder, o qual andou por toda parte, fazendo
com quatro incidentes que escassamente mostram o bem e curando a todos os oprimidos do diabo,
Pedro sob um foco predominante! porque Deus era com ele" (Atos 10.37,38).
1. Pedro procura repreender Jesus por predizer sua * A história atinge seu clímax "na terra dos judeus e
morte e recebe u m a resposta cáustica: "Arreda! em Jerusalém" com a morte e ressurreição de Jesus
Satanás, porque não cogitas das coisas de Deus, e (Atos 10.39,40).
sim das dos homens" (8.33). * P e d r o p õ e ê n f a s e s o b r e seu p a p e l c o m o
2. Pedro diz sem pensar um contra-senso a respeito "testemunha" (Atos 10.39,41), do mesmo modo
de construir tendas, porque estava aterrorizado ante como, no Evangelho de Marcos, o encontramos no
a v i s ã o de J e s u s c o m M o i s é s e E l i a s na centro de toda a ação.
transfiguração (9.5,6). * Pedro também ressalta o cumprimento anunciado
3. Pedro, com Tiago e João, dorme três vezes no pelos profetas sobre Jesus (Atos 10.43), u m a ênfase
jardim do Getsêmani, em vez de orar com Jesus. que encontramos também em Marcos (1.2,2; 1.11;
S o m e n t e M a r c o s r e g i s t r a sua r e a ç ã o q u a n d o 11.9,10; 12.10,11; 12.36; 14.27).
acordados pela segunda vez: "E não sabiam o que Mas no Evangelho há esta nota adicional, não
lhe responder" (14.40). No entanto, eles novamente refletida no breve sermão a Cornélio. Q u a n d o
se entregam ao sono! pregou, Pedro deve ter usado seu próprio exemplo
4. E acima de tudo Pedro nega Jesus, a última vez para advertir seus ouvintes: Não façam o que eu
com imprecações (14.71), muito embora tenha fiz!
anteriormente, na m e s m a noite, protestado sua
eterna lealdade a Ele.
o Filho de Deus", muito embora tenha sofrido uma morte criminal. Sua morte
cumpriu a Escritura!
Marcos, o escritor
Podemos falar mais sobre Marcos simplesmente com base em seu trabalho
escrito. Aqui também ele expõe as qualidades e dons pessoais que o qualificam
para a tarefa de ser o primeiro escritor do evangelho. Três coisas em particular
se sobressaem.
A mensagem de Marcos
MARCOS E SUA MENSAGEM 25
Costa do mar da Há muitos aspectos na mensagem de um livro tão brilhante. Contudo, podemos
Galiléia. Depois da resumir seus principais elementos como segue:
prisão de João
Batista, Jesus foi 1. O Reino de Deus
para a Galiléia, e Marcos resume a pregação de Deus como uma mensagem sobre o Reino de
boa parte de seu Deus: "Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o
ministério
evangelho de Deus, dizendo: 'O tempo está cumprido e o reino de Deus está
concentrou-se no
lago e na cidade próximo; arrependei-vos e crede no evangelho.'" (Marcos 1.14,15). Aqui
de Cafarnaum. "evangelho" corresponde a "boa nova". Assim, Marcos liga o "evangelho" com
a mensagem sobre a proximidade do Reino de Deus, anunciado por Jesus.
Vamos considerar o significado de "Reino de Deus" no capítulo sobre Mateus,
porque Mateus faz dele uma característica mais proeminente do ensino de Je-
sus do que Marcos. Enquanto Mateus se refere ao "Reino do céu" cinqüenta
vezes, Marcos o menciona somente quinze vezes.
"O Reino de Deus" projetava-se como um futuro brilhante para os judeus
(compare com Marcos 15.43). Quando o Reino viesse, ele significaria o
esmagamento dos inimigos de Deus e a confirmação de Israel como povo de
Deus. Contra este pano de fundo, podemos resumir a mensagem de Marcos
como segue:
• O Reino está perto, prestes a chegar (1.15)!
• Ele está perto porque Jesus veio (11.10; compare com 2.18-22).
• O processo que ensejará seu pleno aparecimento já foi iniciado (4.26,30).
• Contra toda a expectativa presente, é difícil entrar no Reino (10.24). Esta
entrada não é certamente automática. Uma ação drástica pode ser necessária
(9.47). Na realidade, a entrada está aberta somente àqueles que deixaram tudo
e seguiram Jesus (10.15,21).
2. A morte de Jesus
Como observamos acima, a ênfase de Marcos sobre a morte de Jesus é uma das
28 HOMENS COM UMA MENSAGEM
3. O custo do discipulado
Já tivemos a oportunidade de considerar o interesse de Marcos nas dificuldades
e desafios do discipulado, bem como sua simpatia ante as fraquezas dos
primeiros apóstolos. Esta simpatia, porém, não o leva a diminuir a exigência
imposta aos discípulos de Jesus. Isto pode ter sido uma tentação para ele,
naqueles dias iniciais quando ele fugiu da Panfília e voltou a Jerusalém. A fé
cristã exige realmente tal sacrifício?
Mas, ao tempo em que escreveu seu Evangelho, Marcos teve de enfrentar e
superar seu medo; e, talvez como resultado de sua batalha, ele apresenta mais
agudamente do que outros evangelistas o alto custo requerido dos seguidores
de Jesus:
"Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes:
'Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.
Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por
causa de mim e do evangelho, salvá-la-á'" (8.34,35).
Jesus faz esta convocação logo depois de anunciar sua própria morte pela
primeira vez. Seus discípulos devem seguir o mesmo caminho, levando sua
cruz, prontos para perder suas vidas por Ele e pelo evangelho. O título da
autobiografia de Frank Chikane, o Secretário Geral da Concílio Africano de
Igrejas, será também o lema de suas vidas: Minha Vida Não Me Pertence!
O significado desta auto-renúncia é explanado mais claramente em Marcos
30 HOMENS COM UMA MENSAGEM
10.17ss. O jovem rico é desafiado: "Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres,
e terás um tesouro no céu; então vem, e segue-me" (10.21). Ele, porém, relutou.
Pedro afirma: "Eis que nós tudo deixamos e te seguimos" (10.28), e então ouve
a promessa de Jesus de que "ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou
irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do
evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs,
mães, filhos e campos, [e] com [eles] perseguições; e no mundo por vir a vida
eterna" (10.29,30).
Os discípulos viviam numa cultura em que as raízes do lar e da família eram
muito importantes. Na verdade, os judeus acreditavam que a terra de sua família
fora dada a eles por Deus, e assim, basicamente, não deveria ser doada ou
vendida. Apesar disso, Jesus os convida a dar as costas a tudo por sua causa. É
verdade que Ele promete que eles receberão outro tanto de volta. Porém o que
eles receberão não é o mesmo que eles abandonam. Eles abandonam suas famílias
humanas, e recebem a família de Deus (3.34,35). E também sofrerão "persegui-
ções", porque estarão desafiando uma "geração adúltera e pecadora", e isto
lhes acrescenta mais do que as coisas a que renunciam.
Nem todo cristão é instado a deixar lar e família por causa de Jesus. Porém
Marcos foi. Ele teve de deixar a segurança e riqueza do lar de sua família em
Jerusalém e viajar, primeiro com Barnabé a Chipre, e depois disso não sabemos
aonde, exceto que incluía a Ásia Menor, e terminou em Roma com Pedro e
Paulo. Ele se tornou um "pescador de homens" ao lado eles, estendendo as
mãos, como seu Senhor, aos necessitados e perdidos, esquecido de si mesmo,
renunciando a todas as coisas para que possa receber muito mais. E ele também
atrai pessoas a Cristo, através de seu soberbo Evangelho, que fala tão vividamente
hoje como falou a Mateus e Lucas quando eles estavam buscando inspiração
para seu próprio trabalho.
Leitura adicional
Menos exigente:
Donald English, The Message of Mark. The Mystery of Faith (série The Bible Speaks
Today) (Leicester: IVP, 1992)
R. T. France, Divine Government. God's Kingship in the Gospel of Mark (Londres: SPCK,
1990)
P o d e m o s s u s p e i t a r q u e M a t e u s i n c l u i u e s t a h i s t ó r i a p o r q u e ela s i g n i f i c a v a
m u i t o p a r a ele. E l e f o i l i b e r t a d o d a i m p o s i ç ã o d e t o d o a q u e l e s i s t e m a — n a
realidade, libertado de servir a M a m o m , o deus do dinheiro (6.24).
Vamos considerar a seguir c o m o a conversão de M a t e u s p o d e tê-lo afetado,
b e m c o m o a o E v a n g e l h o q u e ele e s c r e v e u . M a s v a l e a p e n a p e r g u n t a r t a m b é m
a r e s p e i t o d e s s a c o n v e r s ã o e m si: P o r q u e ele e s t a v a t ã o d i s p o s t o a a b a n d o n a r
s e u n e g ó c i o n a q u e l e dia, q u a n d o o u v i u a p e n a s d u a s p a l a v r a s d e J e s u s : " S e g u e -
me"?
A r e s p o s t a p o d e estar e m outra f i g u r a q u e d e s e m p e n h a u m p a p e l p r e p o n d e r a n t e
e m seu E v a n g e l h o :
para entrar na vinha, arrependido de sua desobediência. Ele teria ainda ouvido
o testemunho de João sobre Jesus: "Aquele que vem depois de mim é mais
poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar" (Mateus 3.11), e
teria sido encaminhado por ele. Mateus ouviu Jesus pregar quando Ele "percorria
toda a Galiléia" (4.23) repetindo a mensagem de João: "Arrependei-vos, porque
está próximo o reino dos céus" (4.17; compare com 3.2). Gradualmente ele foi
sendo preparado para alcançar um degrau posterior, de João Batista a Jesus.
Assim, parece provável que a conversão de Mateus passou por dois estágios,
primeiro o da Lei, induzido por João Batista, e depois o de Cristo, movido pela
convocação de duas palavras. De repente Mateus se decidiu a abandonar tudo e
seguir Jesus. Em poucas semanas ele se viu incluído numa missão com seus
companheiros discípulos, avisado de que não fizesse nenhuma provisão para a
viagem, nenhuma proteção contra o perigo, nem prévio arranjo para hospedagem
(Mateus 10.9-11). Mateus enfatiza muito mais do que Marcos e Lucas o auto-
sacrifício e desamparo que Jesus exigiu de seus discípulos naquela missão. Isto
deve ter sido extremamente difícil para Mateus e deve ter evidenciado para ele
a enorme mudança que teve lugar em sua vida. Da riqueza para a pobreza
deliberada, da autodeterminação para o discipulado, da segurança para a vida
perigosa da fé, e, acima de tudo, do eu para Cristo—esta foi a conversão de
Mateus.
Podemos nós perceber outros aspectos sob os quais esta conversão influenciou
tanto Mateus como seu Evangelho?
O novo Mateus
Três características importantes do Evangelho de Mateus podem ser delineadas
a partir da sua experiência de conversão.
"Filho de Davi"
E n t r e os p r o f e t a s do Velho T e s t a m e n t o a 12.23; 15.22; 20.30,31; 21.9,15; 22.42). E m nove
expectativa se desenvolveu gradualmente no delas, o nome é associado ao ministério de Jesus na
sentido de que Deus traria um poderoso "Davi", cura e na atenção aos rejeitados, geralmente usadas
cujo governo seria muito maior do que o de num apelo a Ele:
q u a l q u e r " f i l h o de D a v i " p r e c e d e n t e . E s t a * 9.27, os dois homens cegos: "Tem compaixão de
profecia é encontrada m e s m o quando ainda nós, Filho de Davi!"
h a v i a d e s c e n d e n t e s de D a v i r e i n a n d o e m * 15.22, a mulher cananéia: "Senhor, Filho de Davi,
Jerusalém (Isaías 11.1-5; 16.5; Oséias 3.5), t e m c o m p a i x ã o de m i m ! M i n h a f i l h a e s t á
porém desenvolvida naturalmente c o m mais horrivelmente endemoninhada."
vigor quando a linhagem davídica foi encerrada * 20.30, dois outros homens cegos: "Senhor, Filho
em 587 a.C. pelos babilônios: veja Jeremias de Davi, tem compaixão de nós!"—um apelo que
23.5; 30.9; 33.15-22; Ezequiel 34.23,24; repetiram quando "a multidão" tentava silenciá-los
37.24,25; Zacarias 12.7-13.1. (20.31).
O Salmo 2 expressa a visão que sustenta estas O cenário disto é o entendimento que havia da realeza
profecias. Ali o Rei é chamado "o ungido" de no Velho Testamento, a qual fez do socorro aos fracos
D e u s — i s t o é, seu " C r i s t o " . E o Rei f a l a : um dos papéis principais do Rei. Por exemplo:
"Proclamarei o decreto do Senhor: Ele m e disse: * Concede ao Rei, ó Deus, os teus juízos, e a tua
'Tu és meu Filho, eu hoje te gerei.' Pede-me, e justiça ao Filho do Rei. Julgue ele com justiça o teu
eu te d a r e i as n a ç õ e s p o r h e r a n ç a , e as povo, e os teus aflitos com eqüidade.... Julgue ele os
extremidades da terra por tua possessão. C o m aflitos do povo, salve os fdhos dos necessitados, e
vara de ferro as regerás, e as despedaçarás como esmague o opressor" (Salmo 72.1-4).
um vaso de oleiro" (Salmo 2.7-9). Este salmo é
citado com freqüência para referir-se a Jesus no
Novo Testamento, e Mateus o reflete na
chamada Grande Comissão, c o m a qual seu
Evangelho termina: "Jesus, aproximando-se,
falou-lhes, dizendo: 'Toda a autoridade me foi
dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei
discípulos de todas as nações...'" (28.18,19).
Jesus é chamado "Filho de D a v i " em dez
ocasiões no Evangelho de Mateus (1.1,20; 9.27;
d. Seu estilo narrativo. Embora o Evangelho de Mateus seja muito mais longo
que o de Marcos, ele geralmente conta as mesmas histórias com muito maior
brevidade. Enquanto Marcos inclui muitos detalhes pessoais, Mateus limita a
narrativa apenas aos pontos essenciais, porém em seguida freqüentemente
expande o "ensino" extraído da história.
Por exemplo, Marcos conta a história do menino possuído do demônio em
286 palavras, até o ponto em que os discípulos perguntam a Jesus: "Por que não
pudemos nós expulsá-lo?" (Marcos 9.14-28). Aresposta de Jesus a esta pergunta
em Marcos é simplesmente: "Esta casta não pode sair senão por meio de oração"
(9.29). Mateus, ao contrário, usa somente 117 palavras para contar a história
até o mesmo ponto (17.14-20), porém então registra a resposta de Jesus com
bem mais amplitude: "Por causa da pequenez da vossa fé. Pois em verdade vos
digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa
daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível" (17.20).
Em todos estes aspectos Mateus expressa sua paixão pelo ensino e discipulado.
Ele estava trabalhando para obedecer ao mandamento de Jesus, que ele mesmo
registra, de "fazer discípulos de todas as nações" (28.19). Talvez ele pensasse
de si mesmo como sendo o "escriba [professor da lei] versado no reino dos
M A T E U S E SUA MENSAGEM 39
A mensagem de Mateus
Qual era, pois, a mensagem que ardia no coração de Mateus quando ele escreveu
seu Evangelho?—a mensagem que sua experiência com Jesus o havia preparado
para proclamar? Podemos resumi-la em cinco tópicos:
A quem Mateus destina esta apresentação? Muitos estudiosos crêem que ele
tinha em mente os cristãos, talvez especialmente os judeus-cristãos que
precisavam ser convencidos de que sua fé cristã não estava em conflito com sua
herança judaica. Porém parece provável que Mateus também queria convencer
os judeus descrentes, e que isso era parte de sua estratégia para mostrar que
Jesus cumpre perfeitamente as expectativas do Velho Testamento. Que Mateus
tinha em mente os judeus é sugerido pelas passagens 27.62-66 e 28.11-15, nas
quais Mateus se empenha em explicar a origem e falsidade da explanação judaica
corrente sobre a ressurreição. Descobrimos do cristão apologista Justino Mártir,
do segundo século, que escreveu por volta do ano 135 d.C., que os judeus ainda
estavam dizendo que os discípulos tinham roubado o corpo de Jesus do túmulo.
Se Mateus queria retrucar esta falsa acusação, então parece provável que outras
características do seu Evangelho, e em particular seu tratamento do Velho Tes-
tamento, teriam também o objetivo de convencer os judeus cépticos.
Descobriremos mais sobre o tratamento da Lei por Mateus à medida que
delinearmos outros de seus temas centrais:
2. Jesus é o Rei!
"Daí por diante passou Jesus a pregar e a dizer: ' Arrependei-vos, porque está
próximo o reino dos céus'" (4.17). De longa data se reconhece que "o reino dos
céus" é um tema crucial em Mateus. Ele é importante para todos os evangelistas,
mas acima de tudo para Mateus. Ele usa a expressão cinqüenta vezes, em
comparação com quinze de Marcos e trinta e oito de Lucas.
Quando colocamos ao lado desta estatística a proeminência do título real
"Filho de Davi" (veja acima), vemos claramente quão importante para Mateus
é a apresentação de Jesus como Rei.
Uma breve consideração sobre o cenário do Velho Testamento é aqui
necessária. Deus é freqüentemente retratado como "Rei" no Velho Testamento,
e seu "Reino" é um tema poderoso na teologia do Velho Testamento. As palavras
grega e hebraica geralmente traduzidas por "reino" têm ambas um interessante
significado duplo, que é muito importante para a compreensão tanto do Velho
Testamento como da proclamação de Jesus. Elas significam tanto "domínio"
(região ou território dominado por um soberano) como "governo" (guia,
controlador, legislador), senhorio e atividade própria do rei. No Velho Testa-
mento isto significa que
a. Deus é descrito reinando sobre o mundo inteiro (p.ex. Salmos 47; 98-4-6;
99.1);
b. Israel é imaginado como o domínio especial de Deus, o lugar onde seu reinado
se expressa mais claramente (p.ex. 1 Samuel 8.7; 12.12; Salmo 48.1,2);
c. espera-se o dia em que todas as nações se submeterão ao governo de Deus,
isto é, quando seu domínio se estenderá para cobrir toda a terra, do mesmo
modo que agora Ele reina especialmente sobre Israel. Este Reino vindouro
também marcará a libertação final do próprio Israel (p.ex. Salmo 47.7-9; Isaías
52.7-10; Zacarias 9.9-12).
Este Reino de Deus esperado é marcado por quatro características no Velho
Testamento: justiça (p.ex. Jeremias 23.5,6), paz (p.ex. Ezequiel 34.23-31),
estabilidade (p.ex. Isaías 9.7), e universalidade (p.ex. Zacarias 9.10).
No tempo de Jesus a expectativa desse futuro "Reino de Deus" era forte, mas
as opiniões variavam a respeito de como ele viria. Alguns o entenderam
politicamente, e visualizaram o dia em que Israel ficaria livre de todos os seus
M A T E U S E SUA MENSAGEM 41
inimigos e seria vingado aos olhos do mundo. Alguns pensavam mesmo que
poderiam apressar a vinda do Rei pegando em armas contra os romanos. Outros,
porém, o entenderam espiritualmente, e anteviram um tempo em que Deus
finalmente salvaria Israel do pecado e traria as nações gentias a conhecê-lo
também.
Por isso, quando Jesus anunciou que "está próximo o reino dos céus" (4.17),
as pessoas reagiram com ansiedade. Mas precisavam aprender o que Jesus
entendia por Reino: político ou espiritual? Mateus, de igual modo, precisava
revelar a natureza desse Reino claramente aos seus leitores. Ele diz quatro coisas
sobre ele:
"Desde os dias de João Batista até agora o reino dos céus é tomado por esforço,
e os que se esforçam se apoderam dele" (11.12). Por "esforço" aqui Jesus
provavelmente expressa a entusiástica acolhida de muitos ao seu ministério.
Seguindo-o, as pessoas estão "se agarrando" ao Reino dos céus—literalmente
"tomando-o de assalto", como os fregueses que descobrem a maior liquidação
do ano. Uma vez dentro, mesmo o menor do Reino dos céus é maior do que
João Batista (11.11).
O jovem rico já não está tão certo. Ele deseja a "vida eterna" (esta é uma
expressão equivalente a "Reino de Deus"), mas não pode satisfazer à condição:
"Vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem,
e segue-me" (19.21). Seguir a Jesus é conseguir o que ele perdeu: entrar "no
reino dos céus" (19.23).
Um novo estilo de vida é exigido desses seguidores de Jesus—a saber, aquele
que aponta para a realidade do Reino dentro deles. É por isso que os Doze,
quando enviados a proclamar o Reino, ouvem: "De graça recebestes, de graça
dai. Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos;
nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de
bordão: porque digno é o trabalhador do seu alimento" (10.8-10). Deus supre
tudo quanto eles necessitam para seu sustento e proteção, bem como tudo o que
eles devem oferecer. Eles são em si mesmos sermões vivos, evidência da
realidade do Reino que proclamam. Mateus esforça-se por esclarecer este novo
estilo de vida para seus leitores, registrando extensamente o ensino de Jesus.
d. Ele ainda está por "vir". Lucas, na realidade, enfatiza mais do que Mateus a
presença do Reino. A ênfase distintiva de Mateus incide sobre o Reino que
ainda virá. Jesus, como "o Filho do homem", virá novamente com grande poder
e em juízo, e isto acontecerá logo. "Em verdade vos digo que alguns aqui se
encontram que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o
Filho do homem no seu reino" (16.28).
Esta "vinda do Filho do homem" compõe o assunto dos capítulos 24 e 25. A
interpretação destes capítulos é muito discutida, especialmente a do capítulo
24, mas quase todos concordam que dois tipos de "vinda" estão associados e
tratados juntos nestes capítulos:
• Por um lado, há uma vinda em juízo, que significará o cumprimento da predição
de Jesus de que o templo será destruído: "Não ficará aqui pedra sobre pedra,
que não seja derrubada" (24.2). Esta é provavelmente a "vinda do Filho do
homem" que deve ter lugar dentro de uma geração (24.34).
• Por outro lado, há posteriormente uma vinda em glória (25.31), que anunciará
o juízo final do mundo e a salvação do povo de Deus. "O Rei" (25.34)—isto é,
Jesus—julgará as nações reunidas diante dele, introduzindo "os justos" na vida
eterna, e os "malditos" no castigo eterno (25.46).
• P e l o s i n i m i g o s d e J e s u s , e m a c u s a ç ã o ou z o m b a r i a : 2 6 . 6 3 ; 2 7 . 4 0 , 4 3
• P o r M a t e u s , o s d i s c í p u l o s o u o u t r o s e m c o n f i s s ã o d e f é : 2 . 1 5 ; 14.33; 16.16;
27.54
• P e l o p r ó p r i o D e u s : 3 . 1 7 ; 17.5; 2 1 . 3 7
E m a p e n a s d u a s o c a s i õ e s J e s u s r e f e r e - s e a si m e s m o c o m o " F i l h o " : 2 4 . 3 6 ;
28.19.
C o m o título ele t e m três c o r r e l a ç õ e s :
Leitura adicional
Menos exigente:
Richard A. Edwards, Matthew's Story of Jesus (Filadélfia: Fortress Press, 1985)
J. R. W. Stott, The Message of the Sermon on the Mount. Christian Counter-Culture
(Leicester: IVP, 1978)
Lucas, o homem
Lucas era pessoalmente bem equipado para contar esta história. Podemos resumir
o que sabemos sobre ele como segue:
a. Quando Paulo envia saudações aos cristãos de Colossos, ele menciona três
dos seus companheiros pelo nome como "os únicos judeus [da circuncisão]
entre meus companheiros para o reino de Deus". Depois ele envia saudações de
três outros, que eram presumivelmente não-judeus. Entre eles, "saúda-vos Lucas,
o médico amado" (Colossenses 4.10-14).
MATEUS E SUA MENSAGEM 47
b. Sempre que cita o Velho Testamento, Lucas usa a versão grega e não traduz
diretamente do hebraico. Ele se refere quatro vezes à língua hebraica em passos
que deixam a impressão de que ele não a falava (Atos 1.19; 21.40; 22.2; 26.14).
Tal é o homem que o Espírito Santo estava preparando para contribuir com
mais da quarta parte de todo o Novo Testamento. Ele era um homem do mundo—
do extenso mundo greco-romano de sua época. Sua formação gentílica, sua
experiência profissional, seus dotes literários e historiográficos, suas viagens e
sua ligação com Paulo, tudo cooperou para fazer dele o homem para a tarefa.
Seu amor natural pelos aflitos levou-o a dedicar-se à medicina. Sua vasta
experiência capacitou-o a ver o evangelho em seu ambiente secular. A influência
de Paulo deve ter ocupado sua mente com a mensagem da gratuidade da salvação
oferecida a todos, sem restrição de raça ou privilégio. Lucas foi o homem
escolhido e preparado pelo Espírito Santo para salientar a universalidade do
evangelho.
1. O Espírito Santo
Em anos recentes os estudiosos têm sublinhado a importância deste tema para
Lucas. Os outros Evangelhos não deixam de tratá-lo, mas desde o início Lucas
assinala seu interesse especial em dar ênfase à ação do Espírito no evento da
concepção de Jesus (1.35), e sua inspiração a Isabel (1.41), Zacarias (1.67), e
Simeão (2.25-27) para proferirem palavras proféticas sobre o nascimento de
Jesus. Todos os Evangelhos relatam a descida do Espírito sobre Jesus no seu
batismo, mas Lucas acrescenta duas referências posteriores ao Espírito dando
poder a Jesus no início de seu ministério (4.1,14), coroando a seguir estes fatos
ao registrar a dramática alegação de Jesus de que Isaías 61.1 estava sendo
cumprido nele: "O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu..."
(Lucas 4.18).
Um de seus destaques distintivos ao retratar nosso Senhor é, pois, que seu
52 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Somente Lucas menciona que esse homem estava "coberto de lepra" (5.12).
Além disso, somente ele registra a cura dos dez homens com lepra (17.11-19),
um dos quais é um samaritano e, portanto, duplamente impuro.
Na realidade, os samaritanos constituem outro caso de preocupação de Lucas
nesta categoria. Ele registra com exclusividade a parábola do Bom Samaritano
(10.25-37). O ponto central desta parábola não é tão-somente a lição funda-
mental de que devemos socorrer os necessitados: muito mais que isto, ela ensina
uma dramática lição sobre a pureza e a impureza. O sacerdote e o levita não
tocam a vítima do assalto, por receio de contaminar-se com a impureza de um
cadáver. Porque não se preocupa com tais questões rituais, somente o samaritano
é capaz de cumprir a lei do amor que promete vida eterna.
Somente Lucas registra a reação benevolente do perdão de Jesus ante a ha-
bitual hostilidade dos samaritanos (Lucas 9.52-56), e em Atos Lucas ressalta o
avanço do evangelho em Samaria, onde os apóstolos impõem as mãos sobre os
"impuros" porém crentes samaritanos, e o Espírito Santo é derramado sobre
eles (Atos 8.14-17).
"Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E
murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: 'Este recebe pecadores e come
com eles'" (Lucas 15.1,2). Assim começa o famoso capítulo que inclui as três
parábolas dos "perdidos", dois dos quais (a dracma [moeda] e o filho) são
relatados unicamente por Lucas. Por meio destas três histórias Jesus declara
que o próprio Deus busca o perdido, representado pela multidão de destituídos
que o cercam.
A comparação que Lucas faz entre Deus e um pastor, na parábola da ovelha
perdida, é sem dúvida dramática, pois os pastores eram vistos com muita
desconfiança pelos severos fariseus e professores da lei, que murmuravam a
respeito da atitude de Jesus aqui. Em razão de seu modo de vida nômade e pela
inevitabilidade de trabalhar aos sábados para cuidar dos rebanhos, os pastores
eram classificados como "pecadores" sem esperança. Lucas, porém, já fizera o
coro celestial cantar a primeira notícia do nascimento do Salvador a um grupo
de pastores rejeitados (Lucas 2.10-14): "Hoje vos nasceu na cidade de Davi o
Salvador, que é Cristo, o Senhor..." Assim, Jesus agora revela que o ponto cen-
tral de seu ministério é atrair tais pessoas de volta a Deus com arrependimento
e fé.
Embora muitos de tais "pecadores" sejam pobres, estão ombro a ombra
naquela multidão com os abastados "cobradores de impostos". Apesar de toda
sua riqueza, tais pessoas são também rejeitadas. São funcionários da alfândega,
direta ou indiretamente empregados pelos odiados romanos, vistos também
por muitos como "impuros", por causa de seu contato com os gentios, e temidos
por todos porque tiram proveito de qualquer dinheiro extra que possam extorquir
de suas infelizes vítimas.
Porém Deus os ama—esta é a mensagem de Lucas. João Batista prega a eles
(3.12,13). Jesus chama um deles para juntar-se a seus discípulos (5.27,28). E
quando criticado por comer com esses novos discípulos, Levi e uma multidão
de seus companheiros de profissão, Jesus responde com sua famosa sentença:
"Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e
sim pecadores ao arrependimento" (5.31,32).
E Lucas escreve com exclusividade a história de outro cobrador de impostos,
o pequeno Zaqueu, que recebe Jesus em seu lar e em seu coração, e dá ensejo à
afirmação de Jesus: "Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é
56 HOMENS COM UMA MENSAGEM
3. Oração
O interesse incomum de Lucas pela oração é uma característica fascinante de
ambos os seus volumes. Indubitavelmente ele mesmo era um homem de pro-
funda oração, e isto é refletido em suas repetidas referências a ela—ora como
uma característica da vida de Jesus, ora como um fator vital para a missão e o
crescimento da igreja nascente.
LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 55
No Evangelho há nada menos do que onze pontos aos quais Lucas acrescenta
uma referência à oração nas histórias que ele apresenta em paralelo com Mateus
e Marcos:
• 3.21: Jesus está orando quando o Espírito desce sobre Ele em seu batismo.
•5.16: Jesus retira-se ao deserto para orar.
• 6.12: Jesus ora durante toda a noite antes de escolher os doze apóstolos.
• 9.18: Jesus ora a sós antes de fazer a primeira predição de sua morte e
ressurreição próximas.
• 9.28,29: Jesus sobe ao monte da Transfiguração a fim de orar, e está realmente
orando quando se transfigura.
• 11.1: é a visão de Jesus orando que leva os discípulos a pedir-lhe: "Senhor,
ensina-nos a orar", o que deu como resultado a Oração do Senhor.
• 22.32: ao predizer que Pedro o trairia, Jesus, apesar disso, assegura a Pedro:
"Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça."
• 22.40: no jardim do Getsêmani Jesus insta com seus discípulos a orar "para
que não entreis em tentação".
• 22.44,45: Lucas acrescenta o detalhe de que Jesus, "estando em agonia, orava
mais intensamente", e em seguida, "levantando-se da oração", foi ter com seus
0 monte Hermom,
no extremo norte discípulos.
de Israel, é um dos • 23.34: Apenas Lucas faz constar a oração de Jesus na cruz: "Pai, perdoa-lhes,
lugares sugeridos porque não sabem o que fazem."
em que se deu a • 23.46: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" está somente em Lucas.
Transfiguração de Somos capazes de perscrutar a mente de Lucas quando nos detemos a observar
Jesus.
esta notável seqüência de referências. Ele apresenta Jesus como alguém
L U C A S E SUA MEÍNSAGEM 57
s
Exemplos de "E necessário..." em Lucas e Atos
Lucas 4.43: Jesus disse: "É necessário que eu Atos 3.21: "Ao qual [Jesus] é necessário que o céu
anuncie o evangelho do reino de Deus receba até aos tempos da restauração de todas as
também às outras cidades, pois para isso é que coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos
fui enviado." profetas desde a antiguidade."
Lucas 9.22: Jesus disse: "E necessário que o Atos 9.6,16: "Mas levanta-te, e entra na cidade,
Filho do homem sofra muitas coisas, seja onde te dirão o que te é necessário [adaptado]
rejeitado pelos anciãos, pelos principais fazer. ... pois eu lhe mostrarei quanto lhe é
sacerdotes e pelos escribas; seja morto e no necessário [adaptado] sofrer pelo meu nome."
terceiro dia ressuscite." Compare com 17.25; Atos 14.22: "Mostrando que, através de muitas
24.7; Atos 17.3 V tribulações, nos é necessário [adaptado] entrar no
Lucas 13.33: "E necessário [adaptado], reino de Deus."
contudo, caminhar hoje, amanhã e depois, Atos 19.21: Paulo decidiu ir a Jerusalém, passando
porque não se espera que um profeta morra por Macedónia e Acaia. "Depois de haver estado
fora de Jerusalém." ali", disse ele, "é necessário [adaptado] ver
Lucas 22.37: Pois vos digo que é necessário também Roma."
[adaptado] que se cumpra em mim o que está
escrito: 'Ele foi contado com os malfeitores.' Nestes exemplos da versão Almeida (ERA), a tradução foi
Porque o que a mim se refere está sendo ligeiramente alterada para tornar a presença da expressão
cumprido." mais clara, (n.t.)
a. Deus está no comando da história. Desde a criação (Lucas 3.38) até ao juízo
final (Atos 17.31), Ele está no comando. Esta constatação é feita sutilmente em
Lucas 2.1, em que a mente do imperador romano é induzida a promulgar um
58 HOMENS COM UMA MENSAGEM
0 Evangelho de decreto que traz uma jovem camponesa de Nazaré a Belém, de sorte que seu
Lucas inicia com bebê, o filho de Davi, nasça na cidade de Davi.
o nascimento e a
preparação, b. Deus está no cornando da igreja. Ele dirige tanto o Senhor Jesus como a
situando o
igreja, na direção que seu ministério deve tomar. Lucas de modo natural insinua
nascimento de
Jesus em Belém, isto por seu repetido uso de uma pequena palavra grega freqüentemente traduzida
a cidade de Davi. "é necessário..." Ele usa esta expressão em nada menos do que quarenta e duas
Nesta vista ocasiões em seus dois volumes. Se perguntarmos: "Por que é "necessário"?, a
tomada da velha resposta geralmente é: porque foi isto que Deus planejou.
estrada para
Belém que
c. Deus intervém diretamente para dirigir acontecimentos. Isto ocorre em várias
atravessa um
pomar de ocasiões, especialmente em Atos: por exemplo, em três ocasiões um anjo aparece
oliveiras, pode-se a Paulo, cada vez dando-lhe orientação a respeito do próximo estágio de sua
ver ao fundo a missão (Atos 16.9,10; 23.11; 27.23,24). As curas são também a direta ação de
fortaleza de Deus, possibilitando a difusão do evangelho.
Herodes o
Grande, em d. A Escritura foi cumprida, supremamente em Jesus, mas também na vida da
Heródio.
igreja. Lucas constantemente traz o cumprimento de profecias à nossa atenção,
e isto salienta a realização do plano de Deus. Ele faz isto de modo convincente
no episódio da manifestação de Jesus no caminho de Emaús (Lucas 24.13-35).
Uma revelação pessoal de si mesmo teria eliminado a agonia dos dois discípulos,
mas Jesus deliberadamente adia sua identificação até que tenha mostrado a
ambos que tanto a morte como a ressurreição de Cristo foram preditas pela
Escritura (24.25-27,46,47).
d a o p o s i ç ã o . P e d r o , e m seu s e r m ã o d o P e n l e c o s t e , a c u s a seus o u v i n t e s d e t e r e m
m a t a d o J e s u s b r u t a l m e n t e , m a s a c r e s c e n t a o c o m e n t á r i o : " . . . s e n d o este [Jesus]
entregue pelo determinado desígnio e presciência de D e u s " (Atos 2.23).
S e m e l h a n t e m e n t e , e m sua o r a ç ã o q u a n d o e n f r e n t a v a m a p r i m e i r a p e r s e g u i ç ã o ,
o s c r e n t e s de J e r u s a l é m v ê e m o p l a n o d e D e u s p o r trás d a c r u c i f i c a ç ã o : " . . . p a r a
f a z e r e m t u d o o q u e a t u a m ã o e o teu p r o p ó s i t o p r e d e t e r m i n a r a m " ( A t o s 4 . 2 8 ) .
E difícil definir o relacionamento entre esta soberania de Deus e a
r e s p o n s a b i l i d a d e d o s a g e n t e s h u m a n o s e n v o l v i d o s — t a n t o o s q u e se o p õ e m a o
p l a n o c o m o o s q u e o b e d e c e m a ele. T u d o o q u e p o d e m o s d i z e r é q u e L u c a s n ã o
vê q u a l q u e r c o n f l i t o entre as d u a s idéias. O r e s u l t a d o é u m a p o d e r o s a c o n f i a n ç a :
sejam quais f o r e m os problemas que p o s s a m atormentar a igreja, por mais
t r a i ç o e i r o s q u e os a c o n t e c i m e n t o s p o s s a m p a r e c e r , p o r m a i s p o d e r o s o s q u e o s
i n i m i g o s d o e v a n g e l h o p o s s a m ser. D e u s l e v a r á a d i a n t e o c u m p r i m e n t o d e seu
plano. Assim, através de muitos percalços, o evangelho alcança R o m a . o centro
d o i m p é r i o , e a h i s t ó r i a t e r m i n a ali c o m u m a p ú b l i c a p r o c l a m a ç ã o ( A t o s
28.30,31).
O s e s t u d i o s o s f i c a m d e s c o n c e r t a d o s s o b r e o final d e A t o s . P a r e c e q u e ele
termina abruptamente, e nunca f i c a m o s sabendo o resultado da apelação ao
i m p e r a d o r q u e levou P a u l o a R o m a . P o d e ser q u e o j u l g a m e n t o a i n d a n ã o tivesse
sido realizado q u a n d o Lucas acabara de escrever. Mas, de qualquer m o d o . o
a b r u p t o final d á a i m p r e s s ã o de u m a história a i n d a i n a c a b a d a , o q u e n o s p e r m i t e
ligar n o s s a e x p e r i ê n c i a à q u e l a d o s a p ó s t o l o s , e a s s i m ter a m e s m a c o n f i a n ç a d e
q u e , s e j a m q u a i s f o r e m os o b s t á c u l o s e c o n t r a r i e d a d e s q u e p o s s a m o s e n f r e n t a r ,
o e v a n g e l h o t r i u n f a r á t a m b é m p a r a nós.
O Evangelho
1.1-4.13 Nascimento e preparação. Após o prefácio, o Evangelho de Lucas
começa numa atmosfera totalmente judaica. A cena é colocada no templo em
Jerusalém, e a primeira figura a quem somos apresentados é um sacerdote casado
c o m u m a d a s f i l h a s d e A r ã o . O f i l h o p r o m e t i d o a este p i e d o s o casal d e v e m a n t e r
o a n t i g o v o t o d e n a z i r e u d e s d e seu n a s c i m e n t o ( 1 . 1 5 ) . Ele será u m p r o f e t a ,
falando " n o espírito e poder de Elias" (1.17).
A a t m o s f e r a j u d a i c a e d o Velho T e s t a m e n t o c o n t i n u a a t r a v é s d a p r o m e s s a d o
M e s s i a s a M a r i a , a história d e seu n a s c i m e n t o , e o s c â n t i c o s q u e ela. Z a c a r i a s e
Simeão entoam (1.46-55. 67-79; 2.29-32). Esta atmosfera não é acidental.
E m b o r a escrevendo aos leitores gentios, Lucas não pretende sugerir que o
C r i s t i a n i s m o é u m a r e l i g i ã o n o v a , s e m n e n h u m a raiz h i s t ó r i c a n o p a s s a d o . O
que aconteceu é um c u m p r i m e n t o do acordo de Deus com A b r a ã o e de suas
promessas por meio dos profetas (1.54,55,70,72,73). Mas o cumprimento é
m a i s rico d o q u e a e x p e c t a t i v a , e d o t r o n o d e Davi Ele d e v e r á r e i n a r s o b r e t o d o
o m u n d o , n ã o a p e n a s s o b r e Israel.
Esta p e r s p e c t i v a m a i s a m p l a s u r g e e m 2.1 c o m a r e f e r ê n c i a a o e n t ã o o c u p a n t e
d o t r o n o m u n d i a l . C é s a r A u g u s t o . Ele n ã o t e m n e n h u m a idéia d o q u e D e u s e s t á
p l a n e j a n d o e r e a l i z a n d o n u m l o n g í n q u o c a n t o d e seu i m p é r i o — p o r i n t e r m é d i o
d e u m a f a m í l i a de c a m p o n e s e s p o b r e s , a p o i a d a p o r u m g r u p o d e p a s t o r e s . E s t e
62 HOMENS COM UMA MENSAGEM
contexto terrestre é um pouco adiante enfatizado pelo cântico dos anjos (2.14)
e pela forma como Lucas apresenta o ministério de João Batista (3.1,2). Estes
capítulos se referem aos preparativos para o ministério do novo Rei: seu próprio
crescimento (2.41-52); a pregação de João Batista (3.1-22); sua genealogia
oculta, que fez dele um marco divisório na história universal (3.23-38); e sua
vitória sobre o Diabo no poder do Espírito (4.1-13).
9.51-19.40 Jesus viaja a Jerusalém. Muitos estudiosos vêem 9.51 como o ponto
crítico do Evangelho. Agora Jesus deixa a Galiléia e inicia sua jornada em direção
de Jerusalém. Um escritor moderno, David Gooding, considera 1.1 -9.50 como
a "Vinda" de Jesus do céu para a terra, culminando na revelação da glória na
transfiguração. A segunda metade do Evangelho, de 9.51 para frente, é correspon-
dentemente a "Ida" de Jesus da terra para o céu, culminando igualmente em
glória, a glória da ascensão.
Esta parte longa do Evangelho é composta quase exclusivamente de material
não encontrado em Marcos, muito dele peculiar a Lucas, e tem sido chamado
de "Narrativa de Viagem" de Lucas. Jesus movimenta-se gradativamente em
direção à rejeição final em Jerusalém, em direção ao sofrimento que entendemos
é o centro de sua missão, e, de incidente em incidente, descobrimos mais sobre
o que significa segui-lo. O discipulado significa estarem movimento, com Ele,
deixando para trás a segurança e o lar (9.57-62) em troca de uma vida de fé,
MATEUS E SUA MENSAGEM 61
O livro de Atos
O segundo volume começa exatamente onde termina o primeiro. Os discípulos
e s t ã o e m J e r u s a l é m , e s p e r a n d o q u e o E s p í r i t o S a n t o lhes s e j a d a d o (1.5). U m a
breve introdução resume o período antes da ascensão e fixa a agenda para o
próximo estágio: "Recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e
sereis m i n h a s t e s t e m u n h a s tanto e m J e r u s a l é m , c o m o e m toda a J u d é i a e S a m a r i a ,
e até o s c o n f i n s d a t e r r a " (1.8).
Este q u a d r o d e c í r c u l o s g e o g r á f i c o s c o n c ê n t r i c o s f o r m a a e s t r u t u r a d e A t o s .
A t é o final d o c a p í t u l o 7. a a ç ã o se d e s e n r o l a e m J e r u s a l é m . M a s , c o m a m o r t e
de Estêvão, "...levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém; e
todos, exceto os apóstolos, f o r a m dispersos pelas regiões da Judéia e S a m a r i a "
(8.1). O c í r c u l o se a m p l i a .
J u d é i a e S a m a r i a p e r m a n e c e m c o m o c e n á r i o s d e o p e r a ç õ e s até 9 . 3 1 . q u e é
u m d o s b r e v e s r e s u m o s d a " h i s t ó r i a até a q u i " : " A igreja, na v e r d a d e , tinha p a z
por toda a Judéia. Galiléia e Samaria, edificando-se e c a m i n h a n d o no temor do
S e n h o r e, n o c o n f o r t o d o E s p í r i t o S a n t o , c r e s c i a e m n ú m e r o . "
M a s as s e m e n t e s d o d e s e n v o l v i m e n t o p o s t e r i o r j á e s t ã o p l a n t a d a s . V i a j a m o s
à Síria para t e s t e m u n h a r a c o n v e r s ã o d e S a u l o e m D a m a s c o (9.1 - 1 9 ) . e o u v i m o s
a p a l a v r a d o S e n h o r a ele p o r m e i o d e A n a n i a s : " E s t e é p a r a m i m u m i n s t r u m e n t o
e s c o l h i d o p a r a l e v a r o m e u n o m e p e r a n t e o s g e n t i o s e reis, b e m c o m o p e r a n t e
o s f i l h o s d e I s r a e l " (9.15).
Agora essas sementes c o m e ç a m a germinar. Muito embora, geograficamente,
a a ç ã o se c i r c u n s c r e v a b a s i c a m e n t e à J u d é i a e a S a m a r i a n o s três c a p í t u l o s
s e g u i n t e s , a h i s t ó r i a d a c o n v e r s ã o d e C o r n é l i o n o c a p í t u l o 10 p r e p a r a - n o s p a r a
a e x p l o s ã o q u e t e m l u g a r n o início d o c a p í t u l o 13. A q u i P a u l o e B a r n a b é s ã o
e n v i a d o s p e l o E s p í r i t o S a n t o ao m u n d o gentílico, e e m três v i a g e n s m i s s i o n á r i a s
consecutivas v e m o s o evangelho crescendo gradualmente mais longe de
J e r u s a l é m e m a i s p e r t o d o s " c o n f i n s d a t e r r a " (1.8).
N o s c a p í t u l o s 3 - 7 a igreja e m J e r u s a l é m é c o n s t i t u í d a . N a d a p o d e i n t e r r o m p e r
a m e n s a g e m de Deus. Há problemas: perseguição (4.1-31; 5.17-42, hipocrisia
( 5 . 1 - 1 1 ) , e d e s u n i ã o ( 6 . 1 - 7 ) . M a s . n o m e i o de t o d a s e s t a s c o i s a s , " c r e s c i a a
p a l a v r a de D e u s " (6.7). E m 2 . 4 1 , há 3 . 0 0 0 c r e n t e s ; e m 4 . 4 . 5 . 0 0 0 ; e m 5 . 1 4 . h á
" m a i s e mais... c r e n t e s , t a n t o h o m e n s c o m o m u l h e r e s " , e e m 6.7 " e m J e r u s a l é m
se m u l t i p l i c a v a o n ú m e r o d o s d i s c í p u l o s " .
Esta p a r t e a t i n g e seu c l í m a x c o m a d e f e s a e m a r t í r i o d e E s t ê v ã o ( 6 . 8 - 8 . 1 ) .
Ele é a c u s a d o d e falar contra M o i s é s (6.11). d i z e n d o q u e J e s u s destruirá o t e m p l o
e m u d a r á a lei ( 6 . 1 3 , 1 4 ) . A a c u s a ç ã o é séria. A d e f e s a e l o q ü e n t e e hábil d e
E s t ê v ã o t o r n a c l a r o o q u e J e s u s e s t a v a e f e t i v a m e n t e e n s i n a n d o ; e L u c a s u s a seu
l o n g o r e g i s t r o d o d i s c u r s o de E s t ê v ã o ( 7 . 2 - 5 3 ) c o m o p r e p a r a ç ã o d e seus leitores
p a r a as p r ó x i m a s m u d a n ç a s q u e h a v e r á na história.
N u m a p a l a v r a , E s t ê v ã o diz q u e o v e l h o p a r t i c u l a r i s m o d á l u g a r a u m n o v o
u n i v e r s a l i s m o . D e u s n ã o está a t a d o a u m e d i f í c i o ou a u m país. Ele e s t a v a c o m
A b r a ã o na M e s o p o t â m i a , e m H a r ã e n a P a l e s t i n a ; c o m J o s é n o E g i t o ; c o m
M o i s é s n a terra d e M i d i ã ; c o m o s israelitas n o d e s e r t o ; c o m J o s u é q u a n d o ele
e s t a b e l e c e u a n a ç ã o na terra p r o m e t i d a . E v e r d a d e q u e S a l o m ã o c o n s t r u i u o
t e m p l o , m a s o p r o f e t a Isaías diz q u e o t r o n o d e D e u s e s t á n o c é u e q u e a t e r r a é
o e s c a b e l o d e seus p é s . A c o n s t a t a ç ã o d o V e l h o T e s t a m e n t o é clara: " n ã o h a b i t a
o Altíssimo e m casas feitas por m ã o s h u m a n a s " (7.48).
A i m p o r t â n c i a d o d i s c u r s o e m o r t e de E s t ê v ã o é tripla. T e o l o g i c a m e n t e , ela
pavimenta o c a m i n h o para a próxima missão aos gentios. Pessoalmente, esses
eventos levam à conversão de Saulo, que participa do apedrejamento de Estêvão
e, s e m d ú v i d a , o u v e o seu d i s c u r s o . E l e se t o r n a o m a i o r e x p o e n t e d o e v a n g e l h o
d e E s t ê v ã o ! E g e o g r a f i c a m e n t e , c o m o v e m o s , a m o r t e de E s t ê v ã o e n s e j a a
e x p a n s ã o d o e v a n g e l h o d e J e r u s a l é m até à J u d é i a e S a m a r i a (8.1).
lACEDONIA
Tessalônica
Berél&C"C:
CHIPRE;,
Mar Pafos Salaminè
Mediterrâneo
Jerusalém
Primeira Viagem
Puzuòit
Siracusa
i almoriâ
CIRENAICA Mar
Mediterrâneo
'Jerusalém
EGITO
\y—
A Viagem a Roma
LUCAS E SUA MEÍNSAGEM 65
Mas o modo como Lucas narra a história dá uma impressão totalmente distinta.
Paulo não está s u b j u g a d o e desamparado. O plano de Deus está se
desenvolvendo. Paulo tem muitas oportunidades para testemunhar a uma enorme
multidão em Jerusalém, ao sinédrio judaico, a dois governadores romanos, ao
Rei Herodes e sua esposa, a uma tripulação e passageiros de aproximadamente
trezentas pessoas num navio, ao governador de Malta e, através dele, a muitos
outros habitantes da ilha, aos líderes de uma grande comunidade judaica em
Roma, e, finalmente, a todos os que o procuram e ouvem na capital imperial.
Paulo pode ter sido um prisioneiro, mas, como ele mais adiante expressa a
Timóteo, "a palavra de Deus não está algemada" (2 Timóteo 2.9).
Portanto a mensagem de Lucas é, afinal de contas, um grande estímulo a uma
igreja sofredora e fraca. Sob quaisquer dificuldades em que ela opere, e por
mais impotente que ela possa parecer, a igreja é sempre conduzida "em triunfo"
(2. Co 2.14), se tão-somente seguirmos o exemplo de Paulo: confiar no Senhor
da igreja e agarrar-se às oportunidades que Ele nos depara.
Leitura adicional
Menos exigente:
David Gooding, According to Luke. A new exposition of the Third Gospel ( Leicester:
IVP, 1987)
David Gooding, True to the Faith. Afresh approach to the Acts of the Apostles (Londres:
Hodder & Stoughton, 1990)
J. R. W. Stott, The Message of Acts: To the ends of the earth (Leicester: IVP, 1990)
Michael Wilcock, The Message of Luke: The Saviour of the World (Leicester: IVP, 1979)
João, o homem
Mas, quem era o autor? Esta é uma pergunta complicada e controvertida. O
ponto de vista tradicional é que o Evangelho e as cartas foram escritas já em sua
idade avançada, em Éfeso, pelo apóstolo João, filho de Zebedeu. Esta
interpretação remonta a Irineu, bispo de Lyons de 178 até sua morte em 195
d.C., aproximadamente. Irineu alegava ter uma ligação direta comJoão através
de Policarpo, o bispo de Esmirna martirizado em 156 d.C. aos oitenta e seis
anos de idade. Numa famosa carta conservada por Eusébio, o historiador da
igreja, Irineu conta a um amigo como, quando jovem, sentava-se aos pés de
Policarpo e o ouvia discorrer sobre suas conversações com João e o ensino que
recebera diretamente do apóstolo. Podemos bem imaginar Policarpo, com seus
vinte anos, ouvindo o apóstolo João, que, por sua vez, devia estar então nos seus
oitenta anos, parecendo haver pouca razão para duvidar da alegação de Irineu.
Quando, portanto, Irineu afirma que João, o filho de Zebedeu, escreveu o
quarto Evangelho, e que ele era o "discípulo a quem Jesus amava", o qual se
reclinava perto de Jesus na última ceia (13.23), devemos considerar seriamente
seu testemunho.
Deve ser dito, entretanto, que somente uns poucos dentre os principais
PAULO E SUA MENSAGEM 69
1. João e os sinópticos
As incontestáveis diferenças entre o Evangelho de João e os sinópticos não
significam necessariamente que João é historicamente falível. Estas diferenças
foram notadas na igreja dos primeiros séculos e constituem a razão do comentário
de Clemente de Alexandria (200 d.C., aproximadamente) de que "por fim,
sabendo que os fatos 'materiais' estavam esclarecidos nos outros Evangelhos,
compôs um Evangelho 'espiritual', incentivado por outros discípulos e inspirado
pelo Espírito".
A referência de Clemente sobre o Evangelho de João como sendo "espiritual"
tem sido mencionada freqüentemente em apoio ao fato de que João não teve
interesse na história. Nada, porém, está tão distante da verdade. De acordo com
Clemente, João estava preocupado em transmitir a essência interior de Jesus, o
"espírito" dentro do "corpo", e, desta forma, prover um relato que pudesse
pretender ser tão historicamente confiável como os sinópticos.
Além disso, são dignos de observação os muitos pontos em que a narrativa
de João suplementa a dos sinópticos. Estes pontos foram expostos e discutidos
num famoso ensaio do Dr. Leon Morris (ver no fim deste capítulo Leitura
Adicional). E bem possível que João estivesse deliberadamente utilizando
tradições e lembranças que não tinham sido utilizadas na tradição dos sinópticos.
72 HOMENS COM UMA MENSAGEM
E m vários aspectos João elabora o retrato que eles pintam. Por exemplo,
enfatizando a discrição de Jesus e m proclamar-se publicamente c o m o "o Cristo",
os sinópticos p o d i a m l e v a n t a r a a c u s a ç ã o d e q u e as p e s s o a s d i f i c i l m e n t e p o d e r i a m
ser censuradas por não crerem nele. P o r é m João torna evidente que o
i m p e d i m e n t o para a fé não estava no lado de Jesus. Vista de u m ângulo diferente,
s u a a u t o p r o c l a m a ç ã o e r a c l a r a c o m o cristal, e, p o r t a n t o , a r e s p o n s a b i l i d a d e c a b e
t o t a l m e n t e a n ó s , se n o s r e c u s a r m o s a crer.
2. A linguagem de João
É n o t ó r i o q u e n ã o h á d i f e r e n ç a estilística e n t r e o s d i s c u r s o s q u e J e s u s p r o f e r e e
as p a r t e s n a r r a d a s d o E v a n g e l h o , p e l a s q u a i s o e v a n g e l i s t a é r e s p o n s á v e l .
Entretanto, devemos lembrar que Jesus não ensinou em grego. Ele usou o
a r a m a i c o , e p o r t a n t o t o d o s os n o s s o s registros d e seu e n s i n o r e s u l t a m de t r a d u ç ã o .
E b e m conhecido o fato de duas traduções do m e s m o original diferirem
g r a n d e m e n t e u m a da outra p o r q u e o estilo e o vocabulário da tradução são da
escolha do tradutor.
V e m de longa data a constatação de q u e o grego de J o ã o t e m muitas
características h e b r a i c a s e a r a m a i c a s , d e m o d o q u e o a u t o r é c l a r a m e n t e b i l í n g ü e .
A l é m d i s s o , se é v e r d a d e q u e J o ã o q u e r i a t r a n s m i t i r a e s s ê n c i a interior d o e n s i n o
e da pessoa de Jesus, não é de surpreender que a l i n g u a g e m dos discursos reflita
o próprio estilo de João.
3. A estrutura de João
O p r ó p r i o a u t o r r e v e l a o c u i d a d o c o m q u e c o m p ô s seu E v a n g e l h o . E l e o d e s c r e v e
e m termos de seletividade: " N a verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos
o u t r o s s i n a i s q u e n ã o e s t ã o e s c r i t o s n e s t e livro. E s t e s , p o r é m , f o r a m r e g i s t r a d o s
para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
t e n h a i s v i d a e m s e u n o m e " ( 2 0 . 3 0 , 3 1 ) . C o m o p o d e m o s ver, a e s t r u t u r a e
m e n s a g e m d o livro f o c a l i z a m os "sinais", os atos miraculosos de Jesus que
i n d i c a m a l é m d e l e s as v e r d a d e s s o b r e s u a p e s s o a . E s t e s " s i n a i s " p a r t i c u l a r e s —
todos exceto u m exclusivos e m J o ã o — f o r a m escolhidos c o m u m propósito pe-
c u l i a r — o d e c o n v e n c e r seus leitores a c r e r e m e m J e s u s c o m o " o C r i s t o " .
Isto q u e r d i z e r q u e os sinais f o r a m e s c o l h i d o s p a r a i n c l u s ã o , t e n d o e m m e n t e
as n e c e s s i d a d e s d o s leitores. O e v a n g e l i s t a e s t a v a i n t e r e s s a d o e m m o s t r a r a
relevância do ministério de Jesus para suas necessidades. Porém, por outro lado,
isto n ã o s i g n i f i c a q u e o e v a n g e l i s t a n ã o t e n h a n e n h u m a p r e o c u p a ç ã o h i s t ó r i c a .
Pelo contrário, ele não tinha n e n h u m evangelho por meio do qual convencer
s e u s leitores, se J e s u s r e a l m e n t e n ã o r e a l i z a s s e e s s e s " s i n a i s " q u e m o s t r a m seu
messiado.
S ã o p o u c o s u b s t a n c i a i s , p o r t a n t o , as r a z õ e s f r e q ü e n t e m e n t e a p r e s e n t a d a s p a r a
r e j e i t a r o p o d e r o s o t e s t e m u n h o d e I r i n e u . M a s , se a d m i t i m o s q u e o a u t o r de
a m b o s o s t e x t o s , o E v a n g e l h o e as cartas, é o a p ó s t o l o J o ã o , o q u e p o d e m o s
d i z e r a seu r e s p e i t o ?
n o e n t a n t o , q u e as v á r i a s a f i r m a ç õ e s d e J o ã o s o b r e a f é e v i d a j u d a i c a s " f i g u r a m
o r g u l h o s a m e n t e e n t r e as m a i s c o r r e t a s a f i r m a ç õ e s s o b r e o p e n s a m e n t o j u d a i c o
em todo o N o v o Testamento".
A exatidão de João nestes aspectos deve certamente sugerir u m a preocupação
pela precisão em seu registro dos acontecimentos do ministério de J e s u s — a
m a i o r i a d o s q u a i s ele d e v e ter t e s t e m u n h a d o d i r e t a m e n t e , c o m o u m d o s D o z e .
S u a s n a r r a t i v a s s ã o t e m p e r a d a s c o m a l u s õ e s a o t e m p o e lugar, b e m c o m o c o m
o u t r o s d e t a l h e s c a s u a i s , t o d o s o s q u a i s n a d a a c r e s c e n t a m à h i s t ó r i a a n ã o ser
para sublinhar a implícita reivindicação de que o autor conhece intimamente
seu m a t e r i a l (p.ex., 1.39; 2 . 1 ; 3 . 2 3 ; 4 . 6 , 4 0 ; 11.54; 18.10; 2 1 . 1 1 ) .
Um antigo poço céu para consumi-la (Lucas 9.51-56). E são os mesmos irmãos que vêm com
numa aldeia da sua mãe pedir que os melhores assentos no Reino pudessem ser reservados para
Judéia. Teria eles (Marcos 10.35-45; Mateus 20.20-28).
sido ao lado de
Quão pequenos pareciam eles então para compreender o espírito de Jesus!
um poço como
este que Jesus Ele tem de repreendê-los: "Vós não sabeis de que espírito sois" (Lucas 9.55), e
se encontrou novamente: "Não sabeis o que pedis" (Mateus 20.22; Marcos 10.38). Entretanto,
com a mulher este filho do trovão tornou-se conhecido por nós como "o apóstolo do amor". E
samaritana. claro que o calor do sol do amor de seu Mestre fez com que se evaporassem as
(João 4). nuvens do trovão.
Agora ele está mais do que aberto ao ministério de outros fora dos Doze: a
mais eficiente evangelista em seu Evangelho é a mulher samaritana (4.39). E
agora ele mostra os samaritanos sob a luz mais calorosa possível: eles excedem
os judeus em sua resposta de crença em Jesus (4.42), e "instam" com Jesus para
ficar com eles (4.40). E agora, longe de procurar reconhecimento e posição ao
lado do Senhor, ele apaga completamente seu nome da história e dá a si mesmo
um novo nome, o que registra o único epitáfio que ele deseja: esqueça todo o
eu, fui amado por Jesus!
João foi assim eminentemente apropriado a comunicar o coração de seu
Senhor. Ele desejou apresentar seus leitores à Pessoa que ele veio a conhecer e
amar. Ele queria que também tivessem comunhão com Ele (1 João 1.3), e
esperava que eles tivessem seu caráter transformado como ele teve.
Na realidade, ele explica claramente os propósitos para os quais escreveu.
Ele escreveu seu Evangelho para que seus leitores cressem em Jesus e
experimentassem a vida por meio da fé nele (20.31), e escreveu sua primeira
carta àqueles que já acreditavam, para que pudessem saber que tinham vida (1
João 5.13). Sua teologia é profunda e desafiadora, mas seu propósito supremo é
prático. Ele quis que seus leitores recebessem a vida eterna e ao mesmo tempo
soubessem que já a receberam.
Para que seus leitores recebam a vida eterna devem pôr sua confiança em
Jesus Cristo, uma vez que nele está a vida (1.4). Portanto, em seu Evangelho
João anuncia Jesus Cristo em toda sua glória divino-humana, que podemos ver
e em quem podemos crer. Em particular, ele parece ter dirigido sua obra aos
judeus, por enfatizar o meio pelo qual Jesus cumpre e substitui todas as grandes
instituições do Judaísmo—o templo, a lei, as festas anuais. O templo e sua
adoração se perderam, destruídos pelos romanos no ano 70 d.C.: depois dessa
data o Evangelho de João poderia ter tido um apelo signitivamente poderoso
para os judeus, cuja tristeza se converteu em alegria pela descoberta de que
Deus já havia reparado aquela perda através de Jesus.
Para seus leitores saberem que receberam a vida eterna, era necessário que
compreendessem claramente as indispensáveis marcas do Cristianismo autêntico.
Em suas cartas, especialmente em sua primeira, ele continua a anunciar estas
coisas, como veremos.
i s o l a d a . E l a é s e m p r e u m a r e s p o s t a a u m a i n i c i a t i v a d e D e u s . E m p a r t i c u l a r , ela
é d e s p e r t a d a p o r s u a p a l a v r a , ou, c o m o J o ã o diria, p o r seu " t e s t e m u n h o " . C r e r
no t e s t e m u n h o de Deus, dado através de Cristo, é tomar os primeiros passos
vitais para a fé que leva à vida eterna: acima de tudo, esta é a m e n s a g e m do
Evangelho de João.
Atualmente é tendência dos estudiosos sustentar que João não argumenta e m
favor da fé, mas assume-a. Muitos estudiosos pretendem, assim, que o Evangelho
d e J o ã o n ã o é e v a n g e l í s t i c o , isto é, n ã o se d e s t i n a a c o n v e n c e r o s d e s c r e n t e s
s o b r e a r e t i d ã o d a f é e m C r i s t o . M a s este p o n t o d e v i s t a m a l se a p l i c a à e v i d ê n c i a
do próprio Evangelho. A declaração de João sobre seu propósito e m 20.31
expressa u m intento evangelístico (veja o quadro a seguir). E no Evangelho
e s t e t e m a d o t e s t e m u n h o p a r e c e ser d e s e n v o l v i d o p a r t i c u l a r m e n t e c o m o s
descrentes judeus e m mente. Que testemunho João apresenta?
p o d i a ser a c e i t o a m e n o s q u e f o s s e c o r r o b o r a d o . O s f a r i s e u s l a n ç a r a m isto a
J e s u s e m 8.13: " T u d á s t e s t e m u n h o d e ti m e s m o , l o g o o teu t e s t e m u n h o n ã o é
v e r d a d e i r o . " P o r é m J e s u s a c e i t a e s t e r e p t o e r e p l i c a : " T a m b é m n a v o s s a lei e s t á
escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro. Eu testifico de m i m
m e s m o , e o Pai, q u e m e e n v i o u , t a m b é m t e s t i f i c a d e m i m " ( 8 . 1 7 , 1 8 ) . E a s s i m
uma segunda testemunha é convocada:
i. O Pai profere seu testemunho por meio dos lábios de Jesus. Repetidas vezes
Jesus nega que exponha suas palavras por sua própria autoridade. Sua autoridade
é d e r i v a d a d o P a i q u e é seu autor. N ã o é E l e p r ó p r i o a P a l a v r a d o D e u s e n c a r n a d o
( 1 . 1 , 1 4 ) ? E n t ã o s u a s p a l a v r a s s ã o as p a l a v r a s d e D e u s ( 3 . 3 4 ) :
• " O m e u e n s i n o n ã o é m e u , e s i m d a q u e l e q u e m e e n v i o u " (7.16).
• " N a d a f a ç o por m i m m e s m o ; m a s falo c o m o o Pai m e e n s i n o u " (8.28).
• " E u não tenho falado por m i m mesmo, mas o Pai que m e enviou, esse m e tem
p r e s c r i t o o q u e d i z e r e o q u e a n u n c i a r . ... A s c o i s a s , p o i s , q u e e u f a l o , c o m o o
P a i m e t e m dito, a s s i m f a l o " ( 1 2 . 4 9 , 5 0 ) .
• " P o r q u e eu lhes t e n h o t r a n s m i t i d o as p a l a v r a s q u e m e d e s t e e eles as r e c e b e r a m .
... E u l h e s t e n h o d a d o a t u a p a l a v r a " ( 1 7 . 8 , 1 4 ) .
Jesus espera que todos os que o o u v e m creiam e m suas palavras, p o r q u e elas
são as p a l a v r a s d e D e u s . A o f a z e r e s t a s o l e n e a f i r m a ç ã o , E l e está d e l i b e r a d a m e n t e
a l u d i n d o à f a m o s a p r o m e s s a d a d a a M o i s é s e m D e u t e r o n ô m i o 18.18: " S u s c i t a r -
l h e s - e i u m p r o f e t a d o m e i o d e s e u s i r m ã o s , s e m e l h a n t e a ti, e m c u j a b o c a p o r e i
as m i n h a s p a l a v r a s , e ele l h e s f a l a r á t u d o o q u e e u l h e o r d e n a r . "
J o ã o , n a t u r a l m e n t e , a c r e d i t a q u e J e s u s f a l e as p a l a v r a s d e D e u s n ã o a p e n a s
p o r q u e E l e é u m " p r o f e t a c o m o M o i s é s " , q u e as p e s s o a s e s t a v a m e s p e r a n d o
( c o m p a r e c o m 1.21), m a s p o r q u e E l e é m u i t o m a i s q u e u m p r o f e t a : E l e é a
p r ó p r i a " P a l a v r a d e D e u s " e m p e s s o a . M a s c o m o tal e l e c u m p r e a p r o f e c i a d e
D e u t e r o n ô m i o 18, e s e u s l e i t o r e s p r e c i s a m ser p o s t o s e m s e u s l u g a r e s : e l e s o
escutarão?
E m relação a isto é digna de ser considerada a admirável nova designação de
Deus no Evangelho de João como "aquele que m e enviou". Estas paráfrases
dos nomes "Pai" e "Filho" quase sempre ocorrem e m contextos e m que a
autoridade do Filho é desafiada ou a do Pai é reivindicada. "Aquele que envia"
sustenta a autoridade de " q u e m Ele enviou":
• " O e n v i a d o d e D e u s f a l a as p a l a v r a s d e l e " ( 3 . 3 4 ) .
• " A q u e l e q u e m e e n v i o u é v e r d a d e i r o , d e m o d o q u e as c o i s a s q u e d e l e t e n h o
ouvido, essas digo ao m u n d o " (8.26).
• Jesus, pois, enquanto ensinava n o templo, clamou: ..."não v i m p o r q u e eu de
m i m m e s m o o quisesse, mas aquele que m e enviou é verdadeiro, aquele a q u e m
vós não conheceis. Eu o conheço, porque venho da parte dele e fui por ele
enviado" (7.28,29).
A validade do testemunho de Jesus é devido à sua vinda do céu (3.11-13).
ii. O Pai dramatiza seu testemunho nas obras de Jesus. As "obras" de Jesus,
assim c o m o suas "palavras", foram-lhe dadas por Deus, de m o d o que são
realmente obras de Deus, u m dramático testemunho para a condição única de
Jesus c o m o filho. D o m e s m o m o d o que Ele p o d e dizer: " O m e u ensino não é
m e u , e sim daquele que m e e n v i o u " (7.16), assim p o d e Ele falar das "obras q u e
o P a i m e c o n f i o u p a r a q u e as r e a l i z a s s e " ( 5 . 3 6 ) ; c o m p a r e c o m 5 . 1 9 - 3 0 e 10.31-
39). A s s i m , o Filho age " d a parte do P a i " (10.32), e o Pai age n o Filho (10.38;
PAULO E SUA MENSAGEM 77
14.10). A s o b r a s s ã o d o Pai, e m b o r a r e a l i z a d a s p o r m e i o d o F i l h o . E s t e d u p l o
t e s t e m u n h o d e p a l a v r a s e o b r a s d e v e r i a ter s i d o a d e q u a d o p a r a suscitai- a f é
(14.11), e n a r e a l i d a d e m u i t a s p e s s o a s s i m p l e s v ê e m as o b r a s ( 6 . 1 4 ) , o u v e m as
p a l a v r a s ( 7 . 4 0 , 4 1 ) e c r ê e m (11.45).
M a s c o m o realmente suas obras transmitem u m a m e n s a g e m sobre Ele? A
palavra característica de João para os milagres de Jesus é "sinais", porque eles
c o n t ê m a m e n s a g e m q u e a f é p o d e discernir.
N i c o d e m o s e s t á m u i t o c e r t o a o d e c l a r a r q u e J e s u s p o d e r e a l i z a r tais " s i n a i s "
s o m e n t e p o r q u e D e u s e s t á c o m E l e : "...és M e s t r e v i n d o d a p a r t e d e D e u s " (3.2).
M a s , indicam eles a l g u m a coisa mais sobre Jesus, além desta m e r a p e r c e p ç ã o ?
N i c o d e m o s está c o n f u s o . A l g u n s da m u l t i d ã o e m Jerusalém p e n s a m que os
sinais p r o v a m q u e E l e é o C r i s t o ( 7 . 3 1 ) . O u t r o s , p o r é m , d i s c o r d a m : o s i r m ã o s
d e J e s u s , p o r e x e m p l o , v ê e m o s sinais e n ã o l h e s a t r i b u e m v a l o r (7.3-5). M e s m o
q u a n d o as p e s s o a s c r ê e m p o r c a u s a d o s sinais, J e s u s é, a p e s a r d i s s o , m u i t o
cauteloso a respeito da qualidade de sua fé (2.23-25).
O f a t o é q u e o s s i n a i s p o d e m s o m e n t e f a l a r se f o r e m i n t e r p r e t a d o s , e é o q u e
J o ã o se p r o p õ e f a z e r . A s s i m , p o r e x e m p l o , a c u r a d e u m h o m e m a l e i j a d o e m
Esta sala numa
casa de um 5.1-9 n ã o mostra somente o extraordinário poder ou misericórdia de Jesus:
residente rico na antes mostra sua autoridade para dizer ao p o v o de D e u s o que ele p o d e fazer n o
Jerusalém do sábado, e posteriormente revela seu relacionamento peculiar c o m o Pai, porque
primeiro século E l e e x i b e as " o b r a s " d o p r ó p r i o D e u s p o r m e i o d e s u a a ç ã o ( 5 . 9 - 2 0 ) . D e m o d o
d.C. foi semelhante, a alimentação de cinco mil pessoas (6.1-14) é depois interpretada
reconstruída de
p e l o d e m o r a d o d i á l o g o q u e se s e g u e , n o q u a l J e s u s se p r o c l a m a " o p ã o d a v i d a "
acordo com a
evidência revelada (6.25-59). A e s c o l h a d e J o ã o d o s sinais p a r a i n c l u i r e m seu E v a n g e l h o ( 2 0 . 3 0 , 3 1 )
durante as é f e i t a c l a r a m e n t e p o r c a u s a d a c r e s c e n t e m e n s a g e m q u e ele q u e r tirar d e c a d a
investigações u m . Voltaremos a falar disto mais adiante.
arqueológicas. Mas, c o m o p o d e João convencer seus leitores de que tinha interpretado
80 HOMENS COM UMA MENSAGEM
c o r r e t a m e n t e o s s i n a i s d e J e s u s ? C o m o p a s s a r d o t e m p o , c e r t a m e n t e , tal
convicção seria a obra do Espírito Santo (16.8-11). P o r é m , u m fator importante
a q u i , e s p e c i a l m e n t e p a r a o s leitores j u d e u s , e r a o V e l h o T e s t a m e n t o :
2. Inspecionando o Evangelho
A e s t r u t u r a d o E v a n g e l h o d e J o ã o é c o m p l e x a ; p o r isso, q u a l q u e r a n á l i s e r á p i d a
e s t á s u j e i t a a se t o r n a r s u p e r f i c i a l . E n t r e t a n t o , v a m o s s e g u i r a d i r e ç ã o d o p r ó p r i o
João e focalizar nosso resumo nos "sinais".
lei f o i d a d a p o r i n t e r m é d i o d e M o i s é s ; a g r a ç a e a v e r d a d e v i e r a m p o r m e i o d e
Jesus Cristo" (1.17).
E s t a " n o v a o r d e m " é s i m b o l i z a d a p e l o p r i m e i r o sinal, a t r a n s f o r m a ç ã o d a
á g u a e m v i n h o (2.1-11). J e s u s t o m a o q u e o J u d a í s m o o f e r e c e c o m o u m m e i o
d e p u r i f i c a ç ã o (2.6) e o t r a n s f o r m a e m a l g o q u e r e a l m e n t e s a t i s f a z à n e c e s s i d a d e .
Esta m e n s a g e m é então transportada: primeiro Jesus purifica o templo, o f o c o
d a r e l i g i ã o d a " v e l h a o r d e m " , e f a l a d e u m n o v o t e m p l o , seu c o r p o ( 2 . 2 1 ) . E m
seguida Ele diz a N i c o d e m o s , "mestre e m Israel" (3.10), repositório do
aprendizado mais p r o f u n d o disponível no Judaísmo, que ele precisa ser
completamente refeito pelo Espírito. E logo a seguir a m e s m a m e n s a g e m é
c o m u n i c a d a aos samaritanos, q u a n d o Jesus lhes oferece, através da mulher,
" u m a f o n t e a j o r r a r p a r a a v i d a e t e r n a " (4.14), á g u a m a i s i m p o r t a n t e q u e a d o
p o ç o de Jacó.
b. Duas curas—nova vida, novo julgamento. O s d o i s sinais e m 4 . 4 6 - 5 4 e 5.1 - 9
f o r m a m u m par q u e é então interpretado através do grande discurso e m 5.19-
47. Neste discurso Jesus faz a mais ousada reivindicação possível: que, c o m o
Filho, Ele exerce os privilégios do próprio Deus, particularmente para con-
c e d e r v i d a ( 5 . 2 1 ) e p r o f e r i r j u l g a m e n t o (5.22). " J u l g a m e n t o " n e s t e c o n t e x t o
n ã o q u e r dizer a p e n a s c o n d e n a ç ã o , m a s e x p r e s s a a idéia d e d e c i s ã o real e d e c r e t o .
C o m o juiz, Jesus, o Filho, t e m a autoridade de decidir sobre a vida e a morte
para todos (5.25-30).
Estes dois privilégios são "anunciados" nas duas ações que p r e c e d e m a
r e i v i n d i c a ç ã o . J e s u s p r o f e r e u m a f r a s e q u e v i v i f i c a : "Vai, d i s s e - l h e J e s u s ; t e u
filho vive" (4.50)—e o filho vive. E m seguida Ele pronuncia o j u l g a m e n t o ao
h o m e m a l e i j a d o , n ã o s o m e n t e p a r a o r d e n a r - l h e q u e se l e v a n t e , m a s t a m b é m
para dizer-lhe que carregue sua c a m a n o sábado (5.8-10), e adverti-lo: " N ã o
peques mais, para que n ã o te suceda coisa pior" (5.14).
c. Alimentando os 5.000—Jesus, o pão da vida. E x p l a n a n d o s u a r e i t e r a ç ã o d o
ê x o d o , J e s u s a l e g a três v e z e s ser " o p ã o d a v i d a " ( 6 . 3 5 , 4 8 , 5 1 ) . Q u a n d o E l e
parte os pães e alimenta os 5.000 ( 6 . 1 - 1 5 — o único milagre registrado pelos
quatro evangelistas), Ele está simbolizando a dádiva de sua própria carne " q u e
d a r e i p e l a v i d a d o m u n d o " (6.51).
E l e e s t á a q u i se r e f e r i n d o c l a r a m e n t e à s u a c r u z . E s u a c a r n e d i l a c e r a d a q u e
constitui o "o alimento real", e é seu sangue d e r r a m a d o a "bebida real" (6.55).
S o m e n t e p o r m e i o d e s u a m o r t e é q u e a v i d a se t o r n a d i s p o n í v e l p a r a n ó s .
C o m e r e b e b e r são a s u r p r e e n d e n t e i l u s t r a ç ã o d a f é , i s t o é, a a c e i t a ç ã o p e s s o a l
d e Cristo, a a b s o r ç ã o e s p i r i t u a l d e s u a v i d a p o r n ó s m e s m o s ( 6 . 5 7 ) . C o m p a r a n d o
6.47 c o m 6.54, vemos claramente que "crer" é equivalente a "comer e beber".
Se este discurso é histórico, dificilmente ele será u m a referência direta à Ceia
do Senhor, que não tinha sido ainda instituída. Entretanto, muitos estudiosos
a c r e d i t a m q u e J o ã o e s c r e v e u seu E v a n g e l h o t e n d o c o m o p a n o d e f u n d o o c e n á r i o
d o s s e r v i ç o s d e c u l t o d a i g r e j a , e q u e ele p r ó p r i o t e r i a i n t e r p r e t a d o e s t e d i s c u r s o
c o m o referindo-se à Santa C o m u n h ã o . E certamente apropriado sentir que,
quando reunidos para celebrar a Ceia do Senhor, estamos particularmente aptos
a exercer a f é da qual esta p a s s a g e m fala.
1. Erro cristológico
J o ã o a c u s a o s h e r e g e s d e " t e r o Pai, m a s n e g a r o F i l h o " ( 2 . 2 2 , 2 3 ; c o m p a r e c o m
2 J o ã o 9). I r i n e u a j u d a - n o s a c o m p r e e n d e r e s t a a c u s a ç ã o . E l e s p r o v a v e l m e n t e
82 HOMENS COM UMA MENSAGEM
2. Auto-engano moral
Os hereges estavam equivocados tanto em ética c o m o em doutrina, e
provavelmente pela m e s m a razão básica. Se o assunto é essencialmente nocivo,
não somente a encarnação é impossível, mas o corpo humano é meramente u m
invólucro para o espírito, e a m o r a l i d a d e torna-se u m a questão de indiferença.
N a d a d o q u e o c o r p o f a z p o d e p r e j u d i c a r o e s p í r i t o interior. É p o s s í v e l , e l e s
talvez a r g u m e n t a v a m , " s e r j u s t o " s e m " f a z e r j u s t i ç a " — e s t a r n u m r e l a c i o n a m e n t o
correto c o m Deus sem a correpondente correção na vida.
J o ã o c o m b a t e a r d o r o s a m e n t e e s t e s e g u n d o erro.
• " A q u e l e q u e diz: ' E u o c o n h e ç o ' , e n ã o g u a r d a o s s e u s m a n d a m e n t o s , é
m e n t i r o s o " (2.4).
• "Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que pratica a justiça
é j u s t o , a s s i m c o m o e l e é j u s t o " (3.7).
• " N ã o imites o que é mau, senão o que é bom. Aquele que pratica o b e m procede
d e D e u s , a q u e l e q u e p r a t i c a o m a l j a m a i s v i u a D e u s " (3 J o ã o 11).
• "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos,
e a v e r d a d e n ã o e s t á e m n ó s " (1 J o ã o 1.8).
João e Cerinto
Vimos acima o notável rasto de memória que liga o i n i m i g o da v e r d a d e ! " Os d e t a l h e s p a r e c e m
João. por intermédio de Policarpo, a Irineu. Isto inverossímeis, mas este episódio ao menos atesta a
não pode ser infalível, naturalmente, mas um ardente preocupação com a verdade que caracteriza
elemento nele é a tradição de que nos últimos anos as três cartas de João.
de sua vida João se opôs a Cerinto em Éfeso. Irineu apresenta um resumo detalhado do ensino
Irineu refere-se a um incidente particular, que diz de Cerinto, que podemos relacionar à evidência das
ter ouvido de Policarpo. João fugiu de um balneário cartas de João para formar uma imagem da heresia
público em Éfeso, exclamando: "Salvemo-nos! O a que o apóstolo se opunha.
balneário vai desabar, porque dentro está Cerinto,
PAULO E SUA MENSAGEM 83
João preocupava-
se de que os
crentes tivessem
vidas
irrepreensíveis e
puras; havia muitas
tentações a evitar,
Este sinal gravado
numa pedra entre
as ruínas da antiga
Éfeso marcava o
local de um bordel.
P o r t a n t o , o f i l h o d e D e u s d e v e " p u r i f i c a r - s e a si m e s m o , a s s i m c o m o ele é
p u r o " (3.3). J o ã o é i n f l e x í v e l n e s t e p o n t o :
• "Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando
d e s d e o p r i n c í p i o . P a r a isto se m a n i f e s t o u o F i l h o d e D e u s , p a r a d e s t r u i r as
obras d o diabo. T o d o aquele que é nascido de D e u s não vive na prática de
p e c a d o ; p o i s o q u e p e r m a n e c e n e l e é a d i v i n a s e m e n t e ; ora, e s s e n ã o p o d e v i v e r
p e c a n d o , p o r q u e é n a s c i d o d e D e u s " (3.8,9).
J o ã o n ã o e s t á e n s i n a n d o a t o t a l i m p o s s i b i l i d a d e d e p e c a r , p o r q u e ele d e c l a r o u
e m 2.1 q u e h á p e r d ã o g r a t u i t o " s e a l g u é m p e c a r " . E l e e s t á a n t e s e n s i n a n d o a
total i m p r o p r i e d a d e d o p e c a d o p a r a a l g u é m q u e f o i t r a z i d o a o n o v o n a s c i m e n t o
p o r D e u s . N e s t a ê n f a s e J o ã o se j u n t a a s e u M e s t r e : o J e s u s q u e e x p ô s a v i d a
imoral da mulher samaritana (João 4.16-18), disse ao justo N i c o d e m o s que ele
precisava nascer de n o v o (3.1-15), advertiu o aleijado que não mais pecasse
(5.14), disse aos fariseus q u e eles e r a m meros escravos d o p e c a d o (8.34),
incentivou seus discípulos a guardarem seus m a n d a m e n t o s (14.15,21-24), e
orou para q u e o Pai guardasse e santificasse os q u e e r a m seus (17.17); este
J e s u s era o S a n t o q u e e x i g i a a v e r d a d e n a s c o i s a s espirituais. " F i l h i n h o s , g u a r d a i -
v o s d o s í d o l o s " (1 J o ã o 5 . 2 1 ) f o r a m as ú l t i m a s p a l a v r a s d e J o ã o a eles.
3. Auto-exaltação espiritual
O terceiro aspecto do sistema dos hereges que merece a condenação do apóstolo
era sua atitude de superioridade e m relação a outrem. E r a m religiosos esnobes
q u e a l e g a v a m ter u m a r e v e l a ç ã o e s p e c i a l p r ó p r i a ( 4 . 1 - 3 ) . E r a m o s " e s p i r i t u a i s " ,
84 HOMENS COM UMA MENSAGEM
a a r i s t o c r a c i a i l u s t r a d a , a elite r e l i g i o s a . E l e s m e n o s p r e z a v a m o s d e m a i s .
João contradiz categoricamente sua pretensão. Escrevendo a toda a igreja
ele diz: " V ó s p o s s u í s a u n ç ã o q u e v e m d o S a n t o , e t o d o s t e n d e s c o n h e c i m e n t o . . .
a unção que dele recebestes p e r m a n e c e e m vós, e não tendes necessidade de
q u e a l g u é m v o s e n s i n e " (1 J o ã o 2 . 2 0 , 2 7 ) . N ã o h á r e v e l a ç ã o s e c r e t a . O e n s i n o
a p o s t ó l i c o — e a c o n v i c ç ã o p r o f u n d a e í n t i m a d e sua v e r d a d e d a d a p e l o E s p í r i t o —
é a possessão de toda a igreja.
A l é m disso, os m e m b r o s d a i g r e j a d e v e m a m a r - s e r e c i p r o c a m e n t e . S ã o i r m ã o s
e i r m ã s . E m s u a ú l t i m a o r a ç ã o o S e n h o r p e d i u a o P a i q u e seus d i s c í p u l o s f o s s e m
u n i d o s ( J o ã o 1 7 . 2 0 - 2 3 ) . P o r t a n t o , n i n g u é m p o d e e s t a r " n a l u z " se o d e i a seu
i r m ã o (1 J o ã o 2.9-11). N a v e r d a d e , d e v e m o s e s t a r p r o n t o s a s e g u i r o e x e m p l o
d e J e s u s e " d a r n o s s a v i d a p e l o s i r m ã o s " (1 J o ã o 3.16). E s t e a m o r é a b s o l u t a m e n t e
fundamental: "Aquele que não a m a não conhece a Deus, pois Deus é a m o r "
(4.8).
M a s esse a m o r tem sido n e g a d o f u n d a m e n t a l m e n t e pelos hereges. Pelo
r o m p i m e n t o da c o m u n h ã o c o m o restante da igreja, eles r e v e l a r a m suas
verdadeiras tendências: "Eles saíram de nosso meio, entretanto não eram dos
n o s s o s ; p o r q u e , se t i v e s s e m s i d o d o s n o s s o s , t e r i a m p e r m a n e c i d o c o n o s c o ;
t o d a v i a , eles se f o r a m p a r a q u e f i c a s s e m a n i f e s t o q u e n e n h u m deles é dos n o s s o s "
(2.19). Eles não p o d e m dizer que a m a m a Deus, pois ao m e s m o t e m p o o d e i a m
os filhos de D e u s (4.20,21).
J o ã o t r a n s f o r m a o t r i p l o e r r o d o s h e r e g e s n u m t r i p l o teste d e C r i s t i a n i s m o
a u t ê n t i c o . A o m e s m o t e m p o q u e d e b i l i t a a c o n f i a n ç a d o s f a l s o s c r i s t ã o s , ele
f o r t i f i c a a c o n v i c ç ã o d o s r e a i s c r i s t ã o s . C o m o T i a g o , ele d e s e n h a u m c o n t r a s t e
e n t r e o q u e as p e s s o a s a l e g a m ser e o q u e elas r e a l m e n t e são. C o m f r e q ü ê n c i a
e l e u s a u m a e x p r e s s ã o c o m o " n i s t o s a b e m o s [ou s a b e i s ] ...", p a r a i n t r o d u z i r o s
t e s t e s d e c o n f i a n ç a , e estes testes c o i n c i d e m c o m os e r r o s d o s h e r e g e s :
• "Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus
C r i s t o v e i o e m c a r n e é d e D e u s " (4.2). E s t e é o teste cristológico.
• " N i s t o s ã o m a n i f e s t o s o s f i l h o s d e D e u s e os f i l h o s d o d i a b o : t o d o a q u e l e q u e
n ã o p r a t i c a j u s t i ç a n ã o p r o c e d e d e D e u s " (3.10). E s t e é o teste moral.
• " N ó s s a b e m o s que j á p a s s a m o s da mortre para a vida, porque a m a m o s os
i r m ã o s " ( 3 . 1 4 ) ; " E n i s t o c o n h e c e m o s q u e ele p e r m a n e c e e m n ó s , p e l o E s p í r i t o
q u e n o s d e u " (3.24). E s t e é o teste espiritual.
J o ã o f a z as m e s m a s a f i r m a ç õ e s n e g a t i v a m e n t e :
• " Q u e m é o mentiroso senão aquele que nega que Jesus é Cristo?" (2.22).
• " S e d i s s e r m o s q u e m a n t e m o s c o m u n h ã o c o m ele, e a n d a r m o s n a s t r e v a s ,
m e n t i m o s " (1.6).
• " S e a l g u é m d i s s e r : ' A m o a D e u s ' , e o d i a r a seu i r m ã o , é m e n t i r o s o " ( 4 . 2 0 ) .
E s t a s são as três p r o v a s d e C r i s t i a n i s m o g e n u í n o . J o ã o r e ú n e todas elas n o c o m e ç o
d e seu c a p í t u l o c i n c o :
• "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de D e u s ; e todo aquele
q u e a m a a o q u e o g e r o u , t a m b é m a m a ao q u e d e l e é n a s c i d o . N i s t o c o n h e c e m o s
q u e a m a m o s os f i l h o s de D e u s , q u a n d o a m a m o s a D e u s e p r a t i c a m o s o s s e u s
m a n d a m e n t o s " (5.1,2). A m e n o s q u e os c r i s t ã o s s e j a m i d e n t i f i c a d o s p e l a c r e n ç a
g e n u í n a , o b e d i ê n c i a p i e d o s a e a m o r f r a t e r n a l , eles s ã o f a l s o s . E l e s n ã o p o d e m
ter n a s c i d o d e n o v o , p o r q u e a q u e l e s q u e s ã o " n a s c i d o s d e D e u s " s ã o os q u e
c r ê e m (5.1) e o b e d e c e m (3.9) e a m a m (4.7).
PAULO E SUA MENSAGEM 85
Leitura adicional
Menos exigente:
A. E. Harvey, Jesus on Trial. A Study in the Fourth Gospel (Londres: SPCK, 1976 )
David Jackman, The Message of John's Letters: Living in the Love of God (Leicester:
IVP, 1988)
Bruce Milne, The Message of John: Here is your King! (Leicester: IVP, 1993)
Leon Morris, Jesus is the Christ. Studies in the Theology of John (Grand Rapids:
Eerdmans/Leicester: IVP, 1989)
Paulo, o homem
P a u l o n a s c e u e m Tarso, a principal c i d a d e da Cilicia, n a costa sul da Turquia
m o d e r n a (Atos 9.11; 21.39; 22.3). E l e p r ó p r i o c h a m a Tarso de " c i d a d e n ã o
i n s i g n i f i c a n t e " e m A t o s 21.39. Tarso é u m a c i d a d e de i m p o r t â n c i a comercial
c o n s i d e r á v e l e p o s s u i u m a u n i v e r s i d a d e q u e rivaliza e m f a m a c o m as de A t e n a s
e Alexandria. Paulo provavelmente nunca estudou na universidade porque
r e c e b e u s u a p r i n c i p a l e d u c a ç ã o e m J e r u s a l é m ( A t o s 2 2 . 3 ) . E n t r e t a n t o ele
n i t i d a m e n t e a b s o r v e u a a t m o s f e r a e cultura gregas de Tarso e f a l o u e escreveu
e m grego c o m grande fluência. Ele f a z citações de pelo m e n o s três poetas gregos:
A r a t o (Atos 17.28), M e n a n d e r (1 Coríntios 15.33) e E p i m ê n i d e s (Tito 1.12). A
c u l t u r a g r e g a r e s e r v a p o u c a s s u r p r e s a s p a r a ele, e a s s i m s u a f o r m a ç ã o
p r o p o r c i o n a - l h e u m b o m p r e p a r o p a r a a carreira missionária.
P a u l o p o s s u í a a c i d a d a n i a r o m a n a p o r n a s c i m e n t o (Atos 22.28), o q u e era
e n t ã o u m a distinção i n c o m u m . Isto sugere q u e sua f a m í l i a era i m p o r t a n t e e m
Tarso, p o r q u e c o m toda probabilidade seu pai ou avô teria recebido esta cidadania
PAULO E SUA MENSAGEM 87
o f i c i a l c o m o r e c o m p e n s a p o r s e r v i ç o s p r e s t a d o s à c i d a d e . Isto j u s t i f i c a o f a t o
d e ele ter o n o m e r o m a n o " P a u l o " , a o l a d o d o h e b r a i c o " S a u l o " ( A t o s 13.9).
M a s " S a u l o " e r a o n o m e q u e ele u s a v a q u a n d o j o v e m . S u a f a m í l i a p o d e ter
sido totalmente enraizada na cultura grega, p o r é m para o j o v e m Saulo foi a
r e l i g i ã o d e s e u s p a i s q u e o c u p o u t o d o o seu c o r a ç ã o e d e v o ç ã o . C o n t u d o , f o i
u m a versão particular daquela religião que o cativou: " E u sou fariseu", foi sua
a p a i x o n a d a a l e g a ç ã o ( A t o s 2 3 . 6 ; c o m p a r e c o m F i l i p e n s e s 3.5).
O Farisaísmo era então u m movimento separado dentro do Judaísmo,
m o v i m e n t o q u e e n f a t i z a v a a o b e d i ê n c i a estrita d a lei, i n c l u i n d o e s c r u p u l o s a
observância das festas e outros rituais associados ao templo e m Jerusalém. Por
esta razão o Farisaísmo floresceu na Judéia, havendo poucos fariseus em outros
lugares. M a s de alguma f o r m a Paulo recebe a influência desse m o v i m e n t o e
transfere-se para Jerusalém ainda j o v e m para estudar aos pés de u m dos mestres
d o F a r i s a í s m o , G a m a l i e l o P r i m e i r o ( A t o s 2 2 . 3 ) , n e t o d o f a m o s o r a b i n o Hillel,
a q u e m t o d o o m o v i m e n t o c o n s i d e r a v a seu f u n d a d o r .
O j o v e m Saulo de Tarso lança-se avidamente à tarefa de memorizar e observar
os estatutos e tradições do Farisaísmo. E l e fora, e m suas próprias palavras,
i n s t r u í d o " s e g u n d o a e x a t i d ã o d a lei d e n o s s o s a n t e p a s s a d o s " ( A t o s 2 2 . 3 ) . e
"quanto ao Judaísmo, a v a n t a j a v a - m e a muitos da m i n h a idade, sendo
e x t r e m a m e n t e z e l o s o d a s t r a d i ç õ e s d e m e u s p a i s " ( G á l a t a s 1.14). E l e c h e g a a o
p o n t o d e a f i r m a r q u e f o r a " i r r e p r e e n s í v e l " n a s u a o b s e r v â n c i a d a lei ( F i l i p e n s e s
3.6). A p r o v a final de sua p a i x ã o para c o m a f é de seus pais é sua cruel
p e r s e g u i ç ã o à i g r e j a c r i s t ã ( A t o s 9 . 1 , 2 ; 2 2 . 4 , 5 ; G á l a t a s 1.13; F i l i p e n s e s 3.6; 1
T i m ó t e o 1.13).
A conversão de Paulo no c a m i n h o para D a m a s c o é repentina e dramática.
Há três relatos da conversão de Paulo em Atos: esmagador e à glória do Senhor que agora lhe aparece:
O registro de Lucas sobre ela (9.1-19), e a seguir ele deve obedecer!
dois relatos do próprio Paulo (22.4-16; 26.12- 2. Pode referir-se à sua perseguição à igreja. Por este
18). N a terceira destas, as palavras de Jesus a procedimento, ele tinha sido como um boi tentando
P a u l o são p r o f e r i d a s de f o r m a c o m p l e t a : lutar contra seu verdadeiro Mestre, Jesus Cristo.
"Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura 3. Ou pode referir-se a dúvidas e agulhadas da
coisa é recalcitrares contra os aguilhões" (Atos consciência que Paulo vem tentando suprimir ao
26.14). continuar perseguindo a igreja, a despeito da sensação
"Recalcitrar [escoicear] contra os aguilhões" de que esses cristãos podem, afinal de contas, estar
é um provérbio, conhecido por nós tanto por certos. Talvez essas dúvidas tenham sido instigadas
meio dos escritos gregos como judaicos. Ele pela visão da coragem e amor de Estêvão, quando
lembra um cavalo tentando em vão recusar-se orou por aqueles que o estavam apedrejando até à
a obedecer ao controle de seu cavaleiro, ou um morte (Atos 7.60). Embora Paulo jamais tenha se
boi no arado resistindo às cutucadas da vara do referido a essas dúvidas, o Senhor pode ter posto seu
agricultor. O que ele significa quando aplicado dedo sobre alguma coisa que agia dentro de seu
a Paulo? Três interpretações são possíveis: coração e consciência.
1. Pode referir-se ao "aguilhão" do próprio
entendimento. Paulo não podia resistir ao poder
q u e A n a n i a s v i e s s e e lhe i m p u s e s s e as m ã o s ? A s d i f e r e n t e s ê n f a s e s d e s u a s
c a r t a s a j u d a m - n o s a i m a g i n a r seu e s t a d o m e n t a l :
1. Sua mente mudou a respeito de Jesus. A p e s a r d e c r u c i f i c a d o , J e s u s e r a a f i n a l
o Messias. Os homens o penduraram n u m madeiro, m a s Deus o ressuscitou
d e n t r e o s m o r t o s . P a u l o n ã o t i n h a t i d o n e n h u m a h e s i t a ç ã o a o dirigir-se a E l e
c o m o " S e n h o r " . P a u l o s e n t i a q u e h a v i a t i d o u m a v i s ã o celestial, e q u e J e s u s
e s t a v a se d i r i g i n d o a ele r e s s u r g i d o e m glória.
2. Sua mente mudou a respeito da Lei. A L e i o l e v o u a p e r s e g u i r o M e s s i a s !
C o m o p o d i a ser i s t o ? E s p e c i a l m e n t e e m s u a s c a r t a s a o s g á l a t a s e a o s r o m a n o s ,
t e m o s P a u l o r e s p o n d e n d o a p e r g u n t a s c o m as q u a i s ele d e v e t e r d e i m e d i a t o
c o m e ç a d o a lutar. E l e q u e s t i o n o u t o d o o seu m o d o d e v i d a c o m o f a r i s e u , e
p a r a l e l a m e n t e sua c o m p r e e n s ã o d o Velho T e s t a m e n t o — a t é ser c a p a z de constatar
q u e as E s c r i t u r a s t e s t e m u n h a v a m e m f a v o r d e J e s u s , n ã o c o n t r a E l e .
3. Sua mente mudou a respeito da salvação. E s t e p o n t o s e g u e - s e a o anterior.
Anteriormente Paulo havia crido que a salvação dependia de sua obediência
c o m o fariseu. Ele p o d i a estar seguro de um lugar n o R e i n o de D e u s por causa
d e seu z e l o p e l a " t r a d i ç ã o d e m e u s a n t e p a s s a d o s " . E n t r e t a n t o , n ã o p o d e r i a h a -
ver lugar no Reino para a l g u é m que perseguiu o Messias! Este era o maior
pecado imaginável.
P o r é m , e m vez de julgá-lo e rejeitá-lo, D e u s lhe havia revelado seu Filho, e o
h a v i a c h a m a d o p a r a u m i m p o r t a n t e m i n i s t é r i o . C o m o isto f o i p o s s í v e l ? P a u l o
t i n h a experimentado sua d o u t r i n a d e j u s t i f i c a ç ã o , a m e n s a g e m q u e ele a n u n c i o u
c o r a j o s a m e n t e através d a Á s i a M e n o r , p o r t o d a a G r é c i a e, f i n a l m e n t e , e m R o m a :
D e u s simplesmente o tinha aceitado e p e r d o a d o seu pecado, não porque Paulo
tivesse o f e r e c i d o m e t i c u l o s a m e n t e o s d e v i d o s s a c r i f í c i o s n o t e m p l o , m a s p o r q u e
Jesus tinha sido sacrificado e m seu favor.
4. Sua mente mudou a respeito da igreja. " P o r q u e me p e r s e g u e s ? " , p e r g u n t o u -
lhe o Cristo ressurreto. N ã o é c e r t a m e n t e f a n t a s i o s o ver n e s t a p e r g u n t a o
nascimento e m Paulo da c o m p r e e n s ã o sobre a igreja. H a v i a tão íntima união
entre o Senhor e sua igreja que atacá-la era o m e s m o que atacá-lo. E m
90 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Paulo pede a
Timóteo que traga
à prisão seus
livros [rolos] e o s
p e r g a m i n h o s (2
T m 4.13). Ele
t a m b é m teria
u s a d o u m tinteiro
c o m o este, q u e
data do período
r o m a n o e foi
descoberto em
Qumrã.
PAULO E SUA MENSAGEM 91
e s c r e v e s o b r e o m o m e n t o " q u a n d o . . . a o q u e m e s e p a r o u a n t e s d e eu n a s c e r e
m e c h a m o u p e l a s u a g r a ç a , a p r o u v e r e v e l a r seu F i l h o e m m i m , p a r a q u e e u o
p r e g a s s e e n t r e os g e n t i o s " . O c h a m a d o e r a p a r t e d a c o n v e r s ã o , p o r q u a n t o se
Deus aceitou e "justificou" pessoas gratuitamente, do m e s m o m o d o c o m o Ele
tinha aceitado Paulo, então esse era u m evangelho para toda a raça h u m a n a .
Jesus era u m Messias para o m u n d o , não somente para os j u d e u s .
A n t e r i o r m e n t e S a u l o , o fariseu, t i n h a c o n s t r u í d o sua v i d a s o b r e a d i f e r e n c i a ç ã o
m a i s a c e n t u a d a possível entre Israel e os gentios. Estes p o d i a m encontrar
salvação, p o r é m s o m e n t e c o m d i f i c u l d a d e , e s o m e n t e se a c e i t a s s e m a c i r c u n c i s ã o
e t o m a s s e m s o b r e si o " j u g o d a lei". E s s e n c i a l m e n t e , e l e s d e v e r i a m t o r n a r - s e
j u d e u s p a r a ser s a l v o s . A g o r a , p o r é m , S a u l o t i n h a a p r e n d i d o d u a s c o i s a s .
H o r r o r i z a d o , a p r e n d e u q u e a L e i ( c o m o ele a e n t e n d i a ) t i n h a - o l e v a d o a d e s v i a r -
se d o c a m i n h o . E c o m a s s o m b r o a p r e n d e u q u e D e u s t i n h a - o a g o r a a c e i t a d o
l i v r e m e n t e p e l a " g r a ç a " , a p e s a r d e seu u s o e r r a d o d a L e i . C o l o c a r e s t a s d u a s
coisas juntas significava abolir a diferença entre Israel e os gentios, p o r q u e
" D e u s é u m só, o q u a l j u s t i f i c a r á , p o r f é , o c i r c u n c i s o e, m e d i a n t e a f é , o
i n c i r c u n c i s o " ( R o m a n o s 3.30).
T u d o o q u e se n e c e s s i t a v a e r a a f é q u e j o r r a v a e m seu p r ó p r i o c o r a ç ã o e m
r e s p o s t a à s u a v i s ã o d e J e s u s . C o m o p o d i a ele r e c u s á - l a ? N a v e r d a d e , e l e n ã o
queria recalcitrar contra o aguilhão!
A mensagem de Paulo
N u m a palavra, a m e n s a g e m de Paulo é a salvação pela graça de D e u s e m Cristo.
" G r a ç a " é u m a c h a v e e m seu p e n s a m e n t o . E l a o c o r r e o i t e n t a e seis v e z e s e m
seus e s c r i t o s . P a r a e l e a " g r a ç a " t e m d e ser c o n t r a s t a d a c o m a " l e i " ( v e j a , p . e x . ,
R o m a n o s 6 . 1 5 e 5 . 2 0 ; G á l a t a s 2 . 2 1 ) . Isto e r a o q u e ele h a v i a e x p e r i m e n t a d o ;
ele tinha seguido o m o d e l o da "lei", crendo que D e u s requeria perfeita
o b s e r v â n c i a d a s r e g r a s q u e a b r a n g i a m c a d a d e t a l h e d a v i d a . M a s e n t ã o ele
94 HOMENS COM UMA MENSAGEM
d e s c o b r i u q u e isto o l e v a r a a a f a s t a r - s e d e D e u s , e q u e D e u s c r u z o u seu c a m i n h o
e s i m p l e s m e n t e o a c e i t o u e m J e s u s . Isto f o i p u r a " g r a ç a " , a m o r i m e r e c i d o e
p e r d ã o mostrados a u m b l a s f e m o e perseguidor de Cristo.
Para Paulo a graça de Deus não é simplesmente u m a atitude de D e u s (olhar
p a r a ele c o m a m o r ) , m a s t a m b é m u m a a ç ã o d e D e u s ( a g a r r á - l o e l i v r á - l o p o r
m e i o de Cristo). Esta ação é vista e m dois eventos: n a dádiva de Cristo, e m
q u e m " a g r a ç a d e D e u s se m a n i f e s t o u s a l v a d o r a a t o d o s o s h o m e n s " (Tito 2 . 1 1 ) ,
e n a d á d i v a d o E s p í r i t o S a n t o , p o r m e i o d e q u e m a g r a ç a d e D e u s é t o r n a d a real
e eficaz para cada pessoa. C o m o P a u l o escreve e m Tito 3.5-7, "ele nos salvou
m e d i a n t e o l a v a r r e g e n e r a d o r e r e n o v a d o r d o E s p í r i t o S a n t o , q u e ele d e r r a m o u
sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a f i m de que,
justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da
vida eterna".
P o d e m o s recorrer a quatro grandes expressões teológicas, usadas por Paulo,
para resumir esta m e n s a g e m da graça de D e u s :
61 Livramento do cativeiro
(Filipenses 1.25; Filemom 22)
pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele f ô s s e m o s feitos justiça de D e u s "
(2 C o r í n t i o s 5.21).
E aí que entra a cruz. Foi sobre a cruz que Jesus "tornou-se p e c a d o " por nós.
E s t a e x p r e s s ã o p o d e r i a ser t r a d u z i d a " f e i t o p a r a ser u m a o f e r e n d a p e l o p e c a d o " ,
e talvez isto esteja na m e n t e de Paulo. Ele t a m b é m o expressa e m Gálatas 3.13:
"Cristo nos resgatou da maldição e m nosso lugar, p o r q u e está escrito: 'Maldito
t o d o a q u e l e q u e f o r p e n d u r a d o e m m a d e i r o ' . " E l e se f e z p e c a d o p o r n ó s , e
tornou-se m a l d i ç ã o por nós, para que p u d é s s e m o s ficar livres de ambos.
P e r g u n t a m o s a P a u l o : C o m o a m o r t e de C r i s t o o c a p a c i t a a s u p o r t a r a m a l d i ç ã o
por nós e fazer-se pecado por nós por este m e i o ? Ele responde: Porque a morte
é a " m a l d i ç ã o d a l e i " e " o s a l á r i o d o p e c a d o " ( R o m a n o s 6.23). B a s i c a m e n t e , a
morte é a separação de Deus causada pelo pecado. Esta morte Cristo a morreu
p o r n ó s . E l e m o r r e u n o s s a m o r t e . Se, pois, e s t a m o s u n i d o s a C r i s t o , isto é t ã o
verdadeiro c o m o dizer: " E u morri e m Cristo", que é o m e s m o que dizer: " E l e
morreu por m i m . " S e Cristo morreu a m i n h a morte e eu estou nele, Deus m e vê
c o m o se e u m e s m o t i v e s s e m o r r i d o . T e n d o m o r r i d o e r e s s u s c i t a d o c o m C r i s t o ,
as e x i g ê n c i a s d a L e i s ã o s a t i s f e i t a s , e e u e s t o u l i b e r t a d o . O s v e r s í c u l o s s e g u i n t e s
d i z e m isto c o m as p r ó p r i a s p a l a v r a s d e P a u l o :
• "Estou crucificado c o m Cristo; logo, j á não sou eu q u e m vive, m a s Cristo vive
e m m i m ; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé n o Filho de D e u s ,
q u e m e a m o u e a si m e s m o se e n t r e g o u p o r m i m " ( G á l a t a s 2 . 1 9 , 2 0 ) .
• "[Jesus] foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por
causa da nossa justificação" ( R o m a n o s 4.25).
• " O a m o r d e C r i s t o n o s c o n s t r a n g e , j u l g a n d o n ó s isto: u m m o r r e u p o r t o d o s ,
l o g o t o d o s m o r r e r a m . E ele m o r r e u p o r t o d o s , p a r a q u e o s q u e v i v e m n ã o v i v a m
m a i s p a r a si m e s m o s , m a s p a r a a q u e l e q u e p o r e l e s m o r r e u e r e s s u s c i t o u " ( 2
Coríntios 5.14,15).
• " Q u a n t o a ter m o r r i d o , d e u m a v e z p a r a s e m p r e m o r r e u p a r a o p e c a d o ; m a s ,
q u a n t o a viver, v i v e p a r a D e u s . A s s i m t a m b é m v ó s c o n s i d e r a i - v o s m o r t o s p a r a
o pecado, m a s vivos para Deus e m Cristo Jesus" ( R o m a n o s 6.10,11).
A doutrina da justificação apresentada por Paulo foi atacada por alguns outros
j u d e u s c r i s t i a n i z a d o s . N a v e r d a d e , e l e t e v e d e r e s p o n d e r a três críticas, t o d a s
elas baseadas no argumento de R o m a n o s :
a. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé em Cristo, então
qual é o propósito da Lei? Muitos dos compatriotas judeus reagiram contra
Paulo, c o m o ele teria feito antes de sua conversão. Q u a n d o ele c h e g o u a
Jerusalém, voltando de sua terceira viagem missionária, enfrentou "milhares"
de j u d e u s cristianizados q u e estavam p r o f u n d a m e n t e desconfiados dele. C o m o
Tiago comentou, "[Eles] f o r a m i n f o r m a d o s a teu respeito q u e ensinas todos os
j u d e u s entre os gentios a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não d e v e m
c i r c u n c i d a r o s f i l h o s n e m a n d a r s e g u n d o o s c o s t u m e s d a lei" ( A t o s 2 1 . 2 1 ) . H a v i a
mais e x a g e r o do que verdade nesta notícia. Paulo estava contente de q u e os
j u d e u s c o n t i n u a s s e m a o b s e r v a r a L e i ( R o m a n o s 14.3,4). M a s e l e c e r t a m e n t e
acreditava que guardar a Lei não era necessário para a s a l v a ç ã o — o q u e era
bastante radical!
P a u l o trata e s p e c i f i c a m e n t e d e s t a q u e s t ã o e m R o m a n o s 7 . 7 - 1 4 e G á l a t a s 3 . 1 9 -
2 9 . E l e j á h a v i a p e r g u n t a d o c o r a j o s a m e n t e : " A n u l a m o s , p o i s , a lei p e l a f é ? " , e
f i r m e m e n t e respondeu: "Não, de maneira n e n h u m a , antes c o n f i r m a m o s a lei"
( R o m a n o s 3.31). Ele tinha diferentes meios de justificar esta asserção, m a s e m
G á l a t a s e l e u s a d u a s i m a g e n s q u e r e s u m e m t o d o s eles: " A n t e s q u e v i e s s e a f é ,
PAULO E SUA MENSAGEM 95
e s t á v a m o s s o b a t u t e l a d a lei, e n e l a e n c e r r a d o s , p a r a e s s a f é q u e d e f u t u r o
h a v e r i a d e r e v e l a r - s e . D e m a n e i r a q u e a lei n o s s e r v i u d e aio p a r a n o s c o n d u z i r
a Cristo, a f i m de que f ô s s e m o s justificados por f é " (Gálatas 3.23,24).
A q u i ele r e t r a t a a L e i p r i m e i r o c o m o u m a s e n t i n e l a , e d e p o i s c o m o u m g u i a .
A L e i n ã o p o d i a p r o v e r a s a l v a ç ã o , m a s p o d i a m a n t e r as p e s s o a s s o b c u s t ó d i a
p r o t e t o r a até q u e e l a s p u d e s s e m o u v i r e a c e i t a r o e v a n g e l h o . E ela p o d i a o r i e n t a r
as p e s s o a s , c o n d u z i n d o - a s a C r i s t o p o r m o s t r a r c o m o E l e c u m p r e as e x p e c t a t i v a s
do Velho Testamento e p r o v ê exatamente o que a própria Lei não podia prover.
C o m o P a u l o d i z n u m d e seus s e r m õ e s e m A t o s , " p o r m e i o d e l e t o d o o q u e c r ê
é j u s t i f i c a d o d e t o d a s as c o i s a s d a s q u a i s v ó s n ã o p u d e s t e s ser j u s t i f i c a d o s p e l a
lei d e M o i s é s " ( A t o s 13.39).
b. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé, "qual é, pois, a
vantagem do judeu?" ( R o m a n o s 3.1). P a u l o p a r e c i a s o l a p a r o status e s p e c i a l
d e Israel c o m o p o v o e s c o l h i d o d e D e u s , q u e c e l e b r o u c o m e l e s a a l i a n ç a , o
c o m p r o m i s s o d e ser s e u D e u s p a r a s e m p r e (p.ex., G ê n e s i s 17.7).
Paulo certamente acreditava que havia agora u m meio de salvação, tanto
p a r a os j u d e u s c o m o p a r a o s g e n t i o s , a q u e l e d a f é e m C r i s t o . C o m o ele a f i r m a
e m Efésios, Jesus "tendo derrubado a parede da separação que estava n o meio,
a i n i m i z a d e , aboliu n a s u a c a r n e a lei d o s m a n d a m e n t o s n a f o r m a d e o r d e n a n ç a s "
( E f é s i o s 2 . 1 4 , 1 5 ) . M a s , q u e r isto d i z e r q u e D e u s r e v o g o u as p r o m e s s a s q u e f e z
a Israel, seu p o v o e s c o l h i d o ? R e s p o n d e r a e s t a p e r g u n t a é u m a d a s p r i n c i p a i s
preocupações de Paulo e m sua carta aos R o m a n o s , porque ele t a m b é m sente
c l a r a m e n t e q u e se t r a t a d e u m p r o b l e m a .
E m R o m a n o s 3 . 2 , 3 P a u l o i n s i s t e q u e h á g r a n d e v a n t a g e m e m ser j u d e u , e q u e
a descrença de Israel n ã o vai fazer que D e u s abandone seu c o m p r o m i s s o c o m
ele. D e p o i s e l e v o l t a a o a s s u n t o e m R o m a n o s 9 - 1 1 e d e d i c a três c a p í t u l o s b e m
f u n d a m e n t a d o s sobre o assunto. Sua poderosa argumentação está resumida n o
próximo quadro.
c. Se a salvação é simplesmente pela graça por meio da fé, então podemos
pecar como nos apraz? P a u l o cita e s t a o b j e ç ã o e m R o m a n o s 6.1. A p a r e n t e m e n t e
96 HOMENS COM UMA MENSAGEM
ele e s t a v a s e n d o a c u s a d o d e e n s i n a r : " P r a t i q u e m o s m a l e s p a r a q u e v e n h a m
b e n s " ( R o m a n o s 3.8). O s j u d e u s c r i s t i a n i z a d o s p e n s a v a m q u e e s t a r e j e i ç ã o d a
L e i s i g n i f i c a v a i n e v i t a v e l m e n t e a r u í n a d e t o d a a m o r a l i d a d e . E, c o m e f e i t o ,
alguns dos gentios convertidos de Paulo f o r a m notoriamente negligentes e m
s e u s c o s t u m e s (p.ex., 1 C o r í n t i o s 5 . 1 ; 6 . 1 5 ) . Q u a l f o i a r e s p o s t a d e P a u l o ? E s t a
terceira o b j e ç ã o à sua d o u t r i n a d a j u s t i f i c a ç ã o p e l a f é l e v a - n o s a o p r ó x i m o g r a n d e
t e m a e m sua teologia:
Paulo escreveu com alguma extensão à igreja de Corinto sobre viver a vida cristã. Estas impres-
sionantes colunas dóricas fazem parte do antigo templo de Apolo, ao lado da Ágora, em Corinto.
100 HOMENS COM UMA MENSAGEM
s a b e i s q u e sois s a n t u á r i o d e D e u s , e q u e o E s p í r i t o d e D e u s h a b i t a e m v ó s ? " (1
C o r í n t i o s 3.16). O s coríntios n ã o s ã o a p e n a s u m a a s s o c i a ç ã o v o l u n t á r i a d e crentes
individuais, m a s juntos são u m templo habitado pelo Espírito d o próprio Deus.
P o d e m o s e x a m i n a r isto u m p o u c o m a i s . P a u l o d e n o m i n a a i g r e j a " o c o r p o d e
C r i s t o " (1 C o r í n t i o s 12.27; E f é s i o s 4 . 1 2 ) o u " u m c o r p o " e m C r i s t o ( R o m a n o s
12.5). A e n t r a d a n e s t e c o r p o é p o r m e i o d o E s p í r i t o : " P o i s , e m u m s ó E s p í r i t o ,
todos nós f o m o s batizados e m u m corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos,
q u e r livres. E a t o d o s n ó s f o i d a d o b e b e r d e u m só E s p í r i t o " (1 C o r í n t i o s 12.13).
Q u a n d o P a u l o c h a m a a o E s p í r i t o " E s p í r i t o de C r i s t o " ( R o m a n o s 8.9), o c í r c u l o
l ó g i c o s e c o m p l e t a . O E s p í r i t o S a n t o é o Espírito de Cristo, habitando no Corpo
de Cristo, e trazendo todos naquele que m o r a e m u n i ã o espiritual c o m cada u m ,
e c o m o Senhor Jesus ressurreto e ascenso ao céu.
P a r a P a u l o e s s e c o r p o n ã o é e s t á t i c o : c o m o o c o r p o h u m a n o , ele c r e s c e .
Q u a n d o ele e s c r e v e s o b r e o c r e s c i m e n t o d a i g r e j a , e l e g e r a l m e n t e n ã o t e m e m
mente aumentar números, mas desenvolver a comunhão: "Mas, seguindo a
verdade e m amor, cresçamos e m tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de q u e m
todo o corpo, b e m ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo
a j u s t a cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação
d e si m e s m o e m a m o r " ( E f é s i o s 4 . 1 5 , 1 6 ) . E s t e c r e s c i m e n t o é o q u e P a u l o c h a m a
" e d i f i c a ç ã o " e m 1 C o r í n t i o s 14, o n d e e l e d i s c u t e a q u e s t ã o d e f a l a r l í n g u a s n a
i g r e j a d e C o r i n t o . C o m o d e v e r i a e s t a p r á t i c a ser d i s c i p l i n a d a ? O p r i n c í p i o s o b r e
o qual Paulo baseia sua resposta é o da edificação: qualquer coisa que edifique
a i g r e j a — a u m e n t e sua compreensão, a p r o f u n d e sua adoração, fortaleça seu
a m o r — d e v e ser e n c o r a j a d o . Q u a l q u e r c o i s a q u e n ã o o f a ç a d e v e s e r a f a s t a d a .
Quais são os m e i o s práticos d e edificação? Para P a u l o h á dois:
prontos para usufruir a perfeita intimidade do amor familiar dos filhos unidos
por f i m c o m seu Pai.
O E s p í r i t o S a n t o é t a m b é m d e c i s i v o n e s t e p o n t o . E l e n ã o a p e n a s p r o d u z seu
fruto e m nós (santificação), e n ã o apenas cria a c o m u n h ã o q u e cresce e se
f o r t a l e c e ( e d i f i c a ç ã o ) , m a s t a m b é m a s s e g u r a - n o s este e s t á g i o f i n a l n o p r o c e s s o —
nossa glorificação:
• " T a m b é m n ó s q u e t e m o s as p r i m í c i a s d o E s p í r i t o , i g u a l m e n t e g e m e m o s e m
nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção de nosso corpo"
( R o m a n o s 8.23): aqui o Espírito é "as primícias" d a colheita, a parte que nos
permite ver o que é essa colheita e assegura-nos que o descanso está chegando.
• " N ã o p o r q u e r e r m o s ser d e s p i d o s , m a s r e v e s t i d o s , p a r a q u e o m o r t a l s e j a
a b s o r v i d o p e l a v i d a . O r a , f o i o p r ó p r i o D e u s q u e m n o s p r e p a r o u p a r a isto,
o u t o r g a n d o - n o s o p e n h o r d o E s p í r i t o " (2 C o r í n t i o s 5 . 4 , 5 ) : a q u i o E s p í r i t o é u m
"depósito" ou primeira parcela de p a g a m e n t o da vida celestial que nos aguarda.
• " T e n d o nele t a m b é m crido, fostes selados c o m o Santo Espírito da promessa;
o qual é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua propriedade" (Efésios
1.13,14): a q u i o E s p í r i t o é u m " s e l o " , a m a r c a d e p r o p r i e d a d e d e D e u s , s e p a r a n d o -
nos para o m o m e n t o da "redenção".
a. A volta de Cristo
• " A i n d a vos declaramos, por palavra do Senhor... Porquanto o Senhor m e s m o ,
dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de
D e u s " (1 T e s s a l o n i c e n s e s 4 . 1 5 , 1 6 ) .
Nesta fase de sua vida Paulo esperava que pudesse ainda estar vivo quando o
Senhor retornasse: " N ó s , os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados... para
o e n c o n t r o d o S e n h o r n o s a r e s " (1 T e s s a l o n i c e n s e s 4 . 1 7 ) . E c e r c a d e d e z a n o s
m a i s t a r d e e s t a a i n d a p a r e c i a ter s i d o s u a e s p e r a n ç a :
• " A nossa pátria está nos céus, d e o n d e t a m b é m a g u a r d a m o s o Salvador, o
S e n h o r J e s u s C r i s t o , o q u a l t r a n s f o r m a r á o n o s s o c o r p o d e h u m i l h a ç ã o p a r a ser
igual ao corpo da sua glória" (Filipenses 3.20,21).
Porém, m e s m o ao tempo das cartas aos tessalonicenses, ele esperava certos
eventos que precederiam a vinda do Senhor:
• "Isto não acontecerá s e m que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o
h o m e m d a i n i q ü i d a d e , o f i l h o d a p e r d i ç ã o " ( 2 T e s s a l o n i c e n s e s 2.3).
E q u a n d o escreveu 2 Timóteo, u m p o u c o antes do final de sua vida, P a u l o
tornou-se convencido de que morreria antes d o retorno d o Senhor:
" O tempo de minha partida é chegado. Combati o b o m combate, completei a
carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça m e está guardada, a qual o
Senhor, reto juiz, m e dará naquele dia; e não somente a m i m , mas t a m b é m a
todos quantos a m a m a sua vinda" (2 T i m ó t e o 4.6-8).
Alguns sugerem que, c o m o passar do tempo, Paulo m u d o u suas idéias a
r e s p e i t o d a d a t a d a s e g u n d a v i n d a d e C r i s t o . M a s isto é i m p r o v á v e l . N a r e a l i d a d e ,
ele p r o v a v e l m e n t e m o s t r a - n o s c o m o o s cristãos d e t o d a s as é p o c a s d e v e m e s p e r a r
o r e t o r n o d e C r i s t o . D e v e m o s " a n e l a r p o r s u a a p a r i ç ã o " . D e v e m o s v i v e r solícitos
e a l e r t a s à l u z d e s t e e v e n t o . E f i c a r e m o s s a b e n d o e m n o s s o leito d e m o r t e q u e
ele n ã o vai o c o r r e r e m n o s s a p r e s e n t e v i d a !
PAULO E SUA MENSAGEM 105
Leitura adicional
Menos exigente:
Steve Motyer. Israel in the Plan of God. Light on today's debate (Leicester: IVP, 1989)
Robert Stein, Difficult Passages in the Epistles (Grand Rapids: Baker, 1988; Leicester:
IVP, 1989)
f o r o c a s o . o r e m é d i o é s i m p l e s : se p u d e r e m ter u m a v i s ã o c l a r a d e J e s u s e d a
s u p r e m a c i a d e seu s a c e r d ó c i o , s a c r i f í c i o e aliança, e n t ã o sua f é e seu z e l o d e
n o v o se i n f l a m a r ã o .
Q u e m era o a u t o r ? O r í g e n e s , u m dos pais da igreja inicial, c o m e n t o u
e v a s i v a m e n t e : " S o m e n t e D e u s s a b e . " M u i t o s , t a n t o na i g r e j a inicial c o m o m a i s
tarde, atribuíram a carta a Paulo. O teólogo Puritano inglês John O w e n , que
e s c r e v e u u m c o m e n t á r i o e m sete v o l u m e s s o b r e H e b r e u s , d e d i c o u u m v o l u m e
inteiro p a r a p r o v a r a a u t o r i a d e P a u l o , a c e r c a d a qual ele " n ã o t i n h a n e n h u m a
d ú v i d a , c o m o se ela t i v e s s e s i d o e s c r i t a c o m a p r ó p r i a letra d o a p ó s t o l o " . S e u
e n t u s i a s m o e m p r o v á - l o foi s e m d ú v i d a a l i m e n t a d o p e l o f a t o d e o R e f o r m a d o r
J o ã o C a l v i n o ter p e n s a d o d e m o d o d i f e r e n t e ( " E u r e a l m e n t e n ã o p o s s o a p r e s e n t a r
n e n h u m a r a z ã o p a r a m o s t r a r q u e P a u l o foi seu a u t o r " ) , e c h e g o u a p r o p o r o
n o m e d e L u c a s ou C l e m e n t e ( b i s p o d e R o m a n o final d o p r i m e i r o s é c u l o ) .
C e r t a m e n t e H e b r e u s 2 . 3 , 4 p a r e c e e x c l u i r P a u l o , p o r q u e o a u t o r ali se i d e n t i f i c a
c o m o um cristãos da segunda geração.
Lutero talvez tenha feito a melhor suposição ao sugerir Apolo. O retrato de
A p o l o e m A t o s 18.24 c o m o " h o m e m e l o q ü e n t e e p o d e r o s o nas E s c r i t u r a s " a t e n d e
à q u a l i f i c a ç ã o r e q u e r i d a ; e sua o r i g e m a l e x a n d r i n a p o d e e x p l i c a r as c o n e x õ e s
q u e o s e s t u d i o s o s e n c o n t r a r a m e n t r e H e b r e u s e a l g u m a s d a s idéias d o J u d a í s m o
grego especialmente associado com Alexandria.
T u d o o que s a b e m o s c o m o certo sobre o autor é o que p o d e m o s inferir de sua
c a r t a . M e s m o u m a leitura c a s u a l t o r n a c l a r o q u e ele p o s s u í a u m a c o m p r e e n s ã o
completa tanto do Velho Testamento c o m o de Jesus Cristo, e que estava
p r o f u n d a m e n t e preocupado em associar um ao outro, mostrando que u m não
p o d i a ser c o m p r e e n d i d o s e m o o u t r o . O q u a d r o l o g o a d i a n t e m o s t r a a n o t á v e l
e x t e n s ã o d e seu u s o d o Velho T e s t a m e n t o n e s t a " b r e v e c a r t a " ( 1 3 . 2 2 ) . M a s seu
t r a t a m e n t o d o Velho T e s t a m e n t o n ã o t e m p a r a l e l o , p o r q u e ele o l h a para ele
através de Jesus, permitindo sua c o m p r e e n s ã o da pessoa e ministério de Cristo
p a r a r e v o l u c i o n a r a i n t e r p r e t a ç ã o d a s E s c r i t u r a s q u e o J u d a í s m o lhe h a v i a
ensinado.
De igual m o d o , ele mostra u m a p r o f u n d a c o n s c i ê n c i a de Jesus: uma
c o n s c i ê n c i a espiritual, q u e ele vê e m s u a e n c a r n a ç ã o (2.14), na o b e d i ê n c i a ( 1 0 . 5 -
7). s o f r i m e n t o ( 5 . 7 , 8 ) , m o r t e ( 2 . 9 ) . r e s s u r r e i ç ã o ( 1 3 . 2 0 ) , a s c e n s ã o ( 4 . 1 4 ) ,
g l o r i f i c a ç ã o (1.3), e na s e g u n d a v i n d a ( 9 . 2 8 ) o s m e i o s p e l o s q u a i s D e u s trata o
p e c a d o e a m o r t e q u e a t o r m e n t a m a h u m a n i d a d e . M a s ele n ã o a p e n a s i m p õ e sua
c o m p r e e n s ã o de Jesus com base no Velho Testamento. Ele permite que o Velho
T e s t a m e n t o lhe e n s i n e c o m o c o m p r e e n d e r a s a l v a ç ã o q u e D e u s p r o v ê p o r m e i o
d e seu F i l h o .
O autor, portanto, está a l t a m e n t e b e m p r e p a r a d o para a j u d a r - n o s a c o m p r e e n d e r
o Velho Testamento: para mostrar-nos, realmente, o que o vinho novo tem feito
nas g a r r a f a s v e l h a s .
P o d e m o s r e s u m i r a m e n s a g e m d e H e b r e u s s o b q u a t r o títulos:
1. A supremacia de Jesus
A grande preocupação do autor é mostrar que Jesus é maior do que todos os
o u t r o s a o s o l h o s d e D e u s . Ele d e s t a c a e s t e f a t o n o s u g e s t i v o p r e f á c i o a o i n i c i a r
sua c a r t a ( 1 . 1 - 4 ) , n o q u a l ele p r o c l a m a J e s u s c o m o u m r e v e l a d o r m u i t o a c i m a
d e t o d o s o s o u t r o s . A p e s a r d e t o d o o seu a m o r p e l o V e l h o T e s t a m e n t o , ele
A CARTA AOS HEBREUS 109
• Íf'-,;.. -
MIM:
a q u e l e a q u e m as h o n r a s d i v i n a s s ã o d e v i d a s ( 7 . 4 - 1 0 ) .
4. M e l q u i s e d e q u e n ã o p e r t e n c i a , pois, à c a s a s a c e r d o t a l d e L e v i . e p o r isso
p r e f i g u r o u J e s u s , q u e e r a u m s a c e r d o t e ( c o m o D a v i ) d e s c e n d e n t e da t r i b o de
Judá (7.13-14).
5. D i f e r e n t e m e n t e d o s s a c e r d o t e s levíticos. M e l q u i s e d e q u e foi d e s i g n a d o s o b
j u r a m e n t o d i v i n o , d e a c o r d o c o m o S a l m o 110: " O S e n h o r jurou e n ã o se
a r r e p e n d e r á : "tu és s a c e r d o t e p a r a s e m p r e ' " (7.21). Este j u r a m e n t o n ã o se a p l i c a
ao sacerdócio levítico. p o r q u e eles não c o n t i n u a r a m "para s e m p r e " : " s ã o
i m p e d i d o s p e l a m o r t e d e c o n t i n u a r " (7.23). P o r é m , c o m o M e l q u i s e d e q u e . J e -
sus m a n t é m seu s a c e r d ó c i o p e r m a n e n t e m e n t e p o r q u e E l e vive p a r a s e m p r e .
C o n s e q ü e n t e m e n t e , Ele " p o d e s a l v a r t o t a l m e n t e os q u e p o r ele se c h e g a m a
D e u s . v i v e n d o s e m p r e p a r a i n t e r c e d e r p o r e l e s " (7.25).
O autor argumenta encontrando alguma coisa no Velho Testamento que não
p o d e ser e x p l a n a d a e m t e r m o s d e Velho T e s t a m e n t o — e m e s s ê n c i a , a p r ó p r i a
e x i s t ê n c i a d e M e l q u i s e d e q u e e seu s a c e r d ó c i o : ele e x p l a n a e n t ã o e m t e r m o s d o
Novo Testamento quando aponta à frente para Jesus.
E m 8.1 n o s s o a u t o r p a s s a a u m a n o v a f a s e d e seu a r g u m e n t o : " T o d o s u m o
s a c e r d o t e é c o n s t i t u í d o p a r a o f e r e c e r a s s i m d o n s c o m o s a c r i f í c i o s ; p o r isso era
n e c e s s á r i o q u e t a m b é m esse s u m o s a c e r d o t e tivesse o q u e o f e r e c e r " (8.3). Ele
p a s s a d a p e s s o a d o s a c e r d o t e p a r a a n a t u r e z a d e seu s a c r i f í c i o — o qual veio a
t o r n a r - s e l e g i t i m a m e n t e s e m igual.
2. O sacrifício de Jesus
Este n o v o trecho da carta t e m u m a estrutura ' c o n c ê n t r i c a ' , c o m o se a c h a e s b o ç a d a
n o q u a d r o q u e se s e g u e .
E s t a e s t r u t u r a r e v e l a o c u i d a d o d o autor na c o m p o s i ç ã o — e t a m b é m nas l i n h a s
p r i n c i p a i s d e seu p e n s a m e n t o . E l e a p r e s e n t a a q u i t r ê s c o n t r a s t e s : e n t r e o
" t a b e r n á c u l o " ou " s a n t u á r i o " terrestre e celestial (o lugar d o m i n i s t é r i o ) , e n t r e
a v e l h a e a n o v a a l i a n ç a (a base d o ministério), e entre o v e l h o e o n o v o s a c r i f í c i o
(a função do ministério). Enquanto o antigo s u m o sacerdote entrava no
Santíssimo L u g a r do Tabernáculo uma vez por ano, no Dia do Perdão, levando
o s a n g u e d o s a c r i f í c i o , J e s u s a g o r a e n t r a n o s a n t u á r i o celestial, o n d e D e u s está.
l e v a n d o seu p r ó p r i o s a n g u e , a e v i d ê n c i a de u m s a c r i f í c i o q u e n ã o p r e c i s a ser
r e p e t i d o , e o qual a n i q u i l a o p e c a d o u m a v e z p o r t o d a s (9.26). O r e s u l t a d o é
t o d a u m a " n o v a a l i a n ç a " : isto é, o r e l a c i o n a m e n t o entre D e u s e seu p o v o foi
1. A esfera do sacrifício
N ã o é c e r i m o n i a l , m a s m o r a l . O a u t o r p õ e nisto u m a certa ê n f a s e . O s a n t i g o s
sacrifícios realizados para a santificação dos que estavam "cerimonialmente
i m p u r o s " — l i t e r a l m e n t e , e l e s se s a n t i f i c a v a m p a r a a " p u r i f i c a ç ã o d a c a r n e "
( 9 . 1 3 ) . s i m p l e s m e n t e " i m p o s t a s até ao t e m p o o p o r t u n o d e r e f o r m a " (9.10). M a s
o q u e se n e c e s s i t a é d e u m s a c r i f í c i o c a p a z de " a p e r f e i ç o a r a q u e l e q u e p r e s t a
c u l t o " ( 9 . 9 ) — i s t o é. p a r a a l c a n ç a r a t r a n s f o r m a ç ã o real. p e s s o a l e interior. O s
a n t i g o s s a c r i f í c i o s t i n h a m d e ser r e p e t i d o s c o n s t a n t e m e n t e , p o r q u e n u n c a
a s s e g u r a v a m a o s a d o r a d o r e s a l i b e r t a ç ã o d o s e n t i m e n t o dc q u e e r a m c u l p a d o s
p o r seus p e c a d o s (10.2).
A g o r a , entretanto, o " s a n g u e de C r i s t o " f o r m a u m sacrifício q u e p o d e p u r i f i c a r
"a nossa consciência de obras mortas para servirmos ao Deus vivo!" (9.14). E
p o r isso q u e o a u t o r e s t á t ã o p r e o c u p a d o c o m a i n c a p a c i d a d e de os leitores
c r e s c e r e m c o m o c r i s t ã o s : eles p a r e c e m n ã o ter e n t r a d o c o m o d e v i a m na p l e n a
e x p e r i ê n c i a d o p e r d ã o da n o v a a l i a n ç a .
2. A natureza do sacrifício
Ela n ã o é t e r r e n a , m a s celestial. J e s u s m o r r e u n a terra, p o r é m n a r e a l i d a d e Ele
" p e l o E s p í r i t o e t e r n o , a si m e s m o se o f e r e c e u s e m m á c u l a a D e u s " (9.14). S o b r e
este s a c r i f í c i o H e b r e u s a f i r m a v á r i a s c o i s a s f u n d a m e n t a i s :
Ele foi espiritual. "Pelo Espírito eterno" (9.14) significa provavelmente que
J e s u s o f e r e c e u - s e e m p e r f e i t a h a r m o n i a espiritual c o m D e u s . u n g i d o pelo Espírito
p a r a seu p e n o s o t r a b a l h o c o n t r a o p e c a d o e a m o r t e . Isto q u e r d i z e r q u e . p o r seu
s a c r i f í c i o . E l e se c a p a c i t o u a " p u r i f i c a r " o s a n t u á r i o celestial ( 9 . 2 3 ) . ou s e j a .
E l e t o r n o u p o s s í v e l q u e nós. p e c a d o r e s , n o s a p r o x i m á s s e m o s d e D e u s s e m
m a c u l a r o s a n t u á r i o e m q u e Ele h a b i t a .
as i n i q u i d a d e s d e l e s " ( L e v í t i c o 16.22).
3. A singularidade do sacrifício
Ele é s i n g u l a r , n ã o r e p e t i d o . A e x p r e s s ã o " u m a v e z " ou " u m a v e z p o r t o d a s " é
u m a d a s f a v o r i t a s d o autor, o c o r r e n d o n ã o m e n o s d e q u a t r o v e z e s e n t r e 9.11 e
10.14, c o m r e f e r ê n c i a à m o r t e de C r i s t o e s u a s c o n s e q ü ê n c i a s ( v e j a o p r ó x i m o
quadro). O contraste, naturalmente, é entre o único e não repetido sacrifício de
C r i s t o e o s r e p e t i d o s s a c r i f í c i o s t a n t o da c e r i m ô n i a anual d o D i a d a E x p i a ç ã o
c o m o d o s rituais d i á r i o s n o t e m p l o . P o r sua m e r a r e p e t i ç ã o , s u s t e n t a n o s s o autor,
e l e s p r o c l a m a m sua p r ó p r i a i n e f i c á c i a .
4. O cumprimento do sacrifício
E l e é p e r m a n e n t e , n ã o transitório. A o p a s s o q u e os a n t i g o s s a c r i f í c i o s p r o v i a m
u m ritual d e p u r i f i c a ç ã o p a s s a g e i r o e e x t e r n o , o s a c r i f í c i o de J e s u s p r e p a r a - n o s
p a r a s e g u i - l o até ao p r ó p r i o s a n t u á r i o . Ele n ã o é a p e n a s n o s s o r e p r e s e n t a n t e ,
m a s t a m b é m n o s s o p r e c u r s o r (6.20). A g o r a , t a m b é m n ó s p o d e m o s a p r o x i m a r -
nos de Deus, "tendo os corações purificados de m á consciência, e lavado o
c o r p o c o m á g u a p u r a " ( 1 0 . 2 2 ) : a q u i , d r a m a t i c a m e n t e , o a u t o r usa p a r a " n ó s " a
linguaguem que é reservada para a ordenação do sumo sacerdote em Êxodo
2 9 . 2 1 e L e v í t i c o 16.4. E x a t a m e n t e c o m o A r ã o foi p r e p a r a d o p a r a sua e n t r a d a
a n u a l no S a n t í s s i m o L u g a r , a s s i m t a m b é m n ó s s o m o s p r e p a r a d o s p a r a a e n t r a d a ,
e. de pé na soleira da porta, e s p e r a n d o pelo alvorecer do " D i a " , q u a n d o
poderemos seguir "nosso grande S u m o Sacerdote" através do véu (10.19-25).
A idéia d o c u m p r i m e n t o d e C r i s t o p o r m e i o d e seu s a c r i f í c i o a b r e - n o s a p o r t a
a o t e r c e i r o t ó p i c o q u e d e s e m p e n h a u m papel crucial n o p e n s a m e n t o d e H e b r e u s :
4. A disciplina de Jesus
E m 1 0 . 1 9 o a u t o r c o m e ç a a d e l i n e a r as c o n c l u s õ e s p r á t i c a s d e s u a a p r e s e n t a ç ã o
de Cristo. O trecho 10.19-39 retrocede e a m e n i z a a exortação de 5.11-6.12.
E s t a m o s agora diante de u m forte e n c o r a j a m e n t o e sóbria admoestação: u m
encorajamento para agarrar-se à fé (10.22), esperança (10.23) e a m o r (10.24),
A CARTA AOS HEBREUS 117
q u e d e v e r i a m ser as m a r c a s d o s s e g u i d o r e s d e J e s u s , o " g r a n d e s a c e r d o t e s o b r e
a c a s a d e D e u s " ( 1 0 . 2 1 ) , e u m a a d v e r t ê n c i a s o b r e as terríveis c o n s e q ü ê n c i a s
p a r a nós se t r a t a r m o s J e s u s l e v i a n a m e n t e e " v i v e r m o s d e l i b e r a d a m e n t e e m
pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade" (10.26).
H á s o m e n t e u m s a c r i f í c i o p e l o p e c a d o : p o r i s s o , se d e s p r e z a r m o s aquele
s a c r i f í c i o , " j á n ã o r e s t a s a c r i f í c i o p e l o s p e c a d o s ; p e l o c o n t r á r i o , [há] c e r t a
expectação horrível de j u í z o " (10.26,27). C e r t a m e n e o autor supunha que seus
leitores p u d e s s e m p e r d e r sua s a l v a ç ã o e cair s o b o j u í z o d e D e u s .
S u a e x o r t a ç ã o c o n t i n u a n o s três s o b e r b o s c a p í t u l o s c o n c l u s i v o s d e s u a c a r t a .
E s t e s c a p í t u l o s p a r e c e m d e s e n v o l v e r o t e m a tríplice a p r e s e n t a d o e m 10.22-24,
u m a v e z q u e o c a p í t u l o 11 e n f a t i z a a fé; o c a p í t u l o 12, a e s p e r a n ç a ; e o c a p í t u l o
13, o a m o r .
A fé " é a c e r t e z a d e c o i s a s q u e se e s p e r a m , a c o n v i c ç ã o d e f a t o s q u e se n ã o
v ê e m " (11.1): viver p e l o q u e n ã o se vê é inevitável para a q u e l e s q u e p e r m a n e c e m
na soleira d a porta d o s a n t u á r i o e s p e r a n d o q u e o S u m o S a c e r d o t e a p a r e ç a (9.28).
P o r t a n t o , n ã o d e v e m o s " r e t r o c e d e r " , m a s s i m " c r e r e ser s a l v o s " ( 1 0 . 3 9 ) , c o m o
os h e r ó i s d o V e l h o T e s t a m e n t o , q u e t a m b é m t i v e r a m d e v i v e r p e l a fé p o r q u e
p e r m a n e c e r a m f i r m e s " c o m o q u e m vê a q u e l e q u e é i n v i s í v e l " (11.27). A q u e l e s
heróis dos velhos t e m p o s f o r a m h o m e n s de esperança e t a m b é m de fé. Pela fé
eles herdaram algumas promessas de Deus e m sua existência, mas, n u m outro
s e n t i d o , " n ã o o b t i v e r a m . . . a c o n c r e t i z a ç ã o d a p r o m e s s a " (11.39). A s b ê n ç ã o s
t e r r e n a s q u e r e c e b e r a m s i m p l e s m e n t e s i m b o l i z a v a m as b ê n ç ã o s e s p i r i t u a i s q u e
n ã o r e c e b e r a m . E l e s a g u a r d a r a m e s s a s b ê n ç ã o s c o m e s p e r a n ç a , isto é, c o m
a l e g r e e c o n f i a n t e e x p e c t a t i v a . Pela f é , p o r t a n t o , e l e s se f i r m a r a m e m D e u s
diante do p r o f u n d o sofrimento.
118 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Leitura adicional
Menos exigente:
Raymond Brown, The Message of Hebreus. Christ Aboré Ali (Leicester: IVP. 1982)
David Gooding. An Unshakeable Kingdom. The Leiter lo lhe Hebreu sfor Today (Leices-
ter: IVP, 1989)
William L. L a n e , Hebreus. A Cali to Commitmenl (Peabody. Massachusetts:
(Hendricksen, 1985)
Tiago, o homem
P e l o m e n o s três h o m e n s c o m o n o m e " T i a g o " a p a r e c e m nas p á g i n a s d o N o v o
T e s t a m e n t o . P r i m e i r a m e n t e , h á Tiago, o f i l h o de Z e b e d e u e i r m ã o de João, u m
dos D o z e . E l e foi d e c a p i t a d o p o r o r d e m de H e r o d e s A g r i p a I (Atos 12.1,2), e,
p o r isso, n ã o p o d e ter sido o autor desta carta. E m s e g u n d o lugar, h a v i a outro
m e m b r o dos D o z e c h a m a d o Tiago. E l e era o f i l h o de A l f e u (p.ex., M a r c o s
3.18), e é provavelmente Tiago, "o M e n o r " ou "o Mais J o v e m " , que é
m e n c i o n a d o , p o r e x e m p l o , e m M a r c o s 15.40. N o s s o c o n h e c i m e n t o sobre ele é
m u i t o escasso, s e n d o i m p r o v á v e l q u e u m a p e s s o a t ã o o b s c u r a tivesse escrito
u m a carta p a r a circulação geral e se a p r e s e n t a d o s i m p l e s m e n t e c o m o "Tiago,
servo de D e u s e d o S e n h o r Jesus C r i s t o " (1.1), s e m ulterior q u a l i f i c a ç ã o ou
descrição.
P o r f i m , e m terceiro lugar, s o m o s d e i x a d o s c o m Tiago, u m dos i r m ã o s d o
S e n h o r Jesus ( M a t e u s 13.55,56; M a r c o s 6.3). É p o s s í v e l q u e ele f o s s e o i r m ã o
m a i s v e l h o , u m a v e z q u e e n c a b e ç a a l i s t a — " T i a g o , José, S i m ã o e J u d a s " . E l e
se tornou c e r t a m e n t e o m e m b r o s m a i s e m i n e n t e da f a m í l i a , depois d o p r ó p r i o
Senhor. P e l o m e n o s d e s d e o f i m d o s e g u n d o século p a r a f r e n t e , esta carta foi
atribuída a ele e citada c o m o Escritura, s e n d o ele, pois, de l o n g e o m e l h o r
c a n d i d a t o c o m o autor. Q u a n t o s a b e m o s a seu respeito?
Q u a n d o se iniciou o ministério p ú b l i c o de Jesus, T i a g o e seus outros i r m ã o s
120 HOMENS COM UMA MENSAGEM
A carta de Tiago
Assim era o caráter do h o m e m que contribuiu c o m o que é provavelmente o
mais antigo dos documentos do N o v o Testamento. Muitos comentadores dão à
e p í s t o l a u m a d a t a n ã o p o s t e r i o r a 5 0 d.C., e a l g u n s c r ê e m q u e ela f o i e s c r i t a p o r
volta d e 45 d.C. N a decisão quanto à data da carta a evidência de 2.14-26
d e s e m p e n h a u m p a p e l i m p o r t a n t e . S e T i a g o f o i o u n ã o intencional, e s t a p a s s a g e m
p o d e f a c i l m e n t e ser e n t e n d i d a c o m o u m a t a q u e à d o u t r i n a d e P a u l o s o b r e a
justificação pela fé. Isto foi certamente c o m o Lutero a entendeu. Entretanto,
v i m o s acima que Tiago ficou feliz e m dar a Paulo "a destra de c o m u n h ã o "
( G á l a t a s 2.9), m e s m o t e n d o seu p r ó p r i o m i n i s t é r i o u m a ê n f a s e d i f e r e n t e . A s s i m
sendo, é mais fácil supor que Tiago escreveu 2.14-26 anos mais cedo, antes q u e
o ministério de Paulo entre os gentios tivesse realmente iniciado, e não n u m a
d a t a p o s t e r i o r , q u a n d o suas p a l a v r a s p u d e s s e m c e r t a m e n t e ser t o m a d a s c o m o
crítica a Paulo.
N e s t a fase anterior, muitos j u d e u s cristianizados e r a m ainda m e m b r o s
adoradores das sinagogas l o c a i s — c o m o naturalmente Tiago o era e m Jerusalém.
E b e m p o s s í v e l , p o r t a n t o , q u e a " s i n a g o g a " ( " r e u n i ã o " , NIV, B L H ) à q u a l T i a g o
se r e f e r e e m 2 . 2 era, l i t e r a l m e n t e , a s i n a g o g a e m q u e o s j u d e u s c r i s t i a n i z a d o s
a i n d a a d o r a v a m a o l a d o d o s j u d e u s até e n t ã o n ã o c o n v e n c i d o s d o m e s s i a d o d e
J e s u s . E a s s i m , m u i t o e m b o r a T i a g o se d i r i g i s s e a o s c r i s t ã o s , é t a m b é m p o s s í v e l
q u e ele e s p e r a s s e q u e s u a c a r t a f o s s e lida p o r o u t r o s j u d e u s , e q u e ele a t i v e s s e
c o m p o s t o c o m eles e m mente. Esta possibilidade é apoiada pelo conteúdo da
c a r t a , q u e é p r o f u n d a m e n t e j u d a i c a c o m o t a m b é m c o m p l e t a m e n t e cristã.
(Tiago 2.24).
E tanto P a u l o c o m o Tiago u s a r a m o e x e m p l o de A b r a ã o para ilustrar estes
pontos aparentemente opostos (Romanos 4.1-5; Tiago 2.21-23).
P o r é m esta é u m a diferença e m ênfase, não e m m e n s a g e m . E a razão não está
l o n g e d e ser e n c o n t r a d a . C a d a u m d e l e s t i n h a e m m e n t e u m c o n j u n t o d i f e r e n t e
de falsos mestres. Os opositores d e Paulo e r a m os legalistas judeus, e n q u a n t o
os de Tiago e r a m os aristocratas j u d e u s ( c o m o Ananos). O m e i o de salvação
d o s l e g a l i s t a s e r a m as " o b r a s " — a t o s m o r a i s e c e r e m o n i a i s r e a l i z a d o s e m
o b e d i ê n c i a à lei. O m e i o d e s a l v a ç ã o d o s a r i s t o c r a t a s e r a a " f é " , isto é, m e r a
ortodoxia de crença, adesão superficial ao Judaísmo, sem qualquer clara
obediência prática.
A o s legalistas P a u l o a r g u m e n t a q u e s o m o s j u s t i f i c a d o s n ã o p o r n o s s a s p r ó p r i a s
b o a s o b r a s , m a s p o r m e i o d a fé e m C r i s t o . A o s a r i s t o c r a t a s T i a g o a r g u m e n t a
q u e s o m o s j u s t i f i c a d o s n ã o p o r u m a o r t o d o x i a estéril ( q u e o s p r ó p r i o s d e m ô n i o s
p o s s u e m — " e e s t r e m e c e m " , 2 . 1 9 ) , m a s p o r obras, especialmente assistência
aos n e c e s s i t a d o s . P a u l o , e n t r e t a n t o , a p r e s s a - s e e m a c r e s c e n t a r q u e a f é q u e s a l v a
g e r a i n e v i t a v e l m e n t e b o a s o b r a s ( E f é s i o s 2 . 8 - 1 0 ) ; G á l a t a s 5.6), e n q u a n t o T i a g o
a f i r m a q u e as o b r a s q u e s a l v a m b r o t a m n a t u r a l m e n t e d e u m a f é v e r d a d e i r a
(2.14), e a ausência de boas obras revela a ausência da verdadeira fé (2.17).
N a realidade, não somos salvos n e m pela f é morta (Tiago 2.17), n e m pelas
obras mortas (Hebreus 6.1; 9.14), m a s p o r u m a fé viva que resulta e m " a m o r e
b o a s o b r a s " ( H e b r e u s 10.24). N ã o p o d e m o s ser s a l v o s p e l a s o b r a s , e t a m p o u c o
p o d e m o s s a l v a r - n o s s e m elas. O p a p e l d a s o b r a s n ã o é g a n h a r a s a l v a ç ã o , m a s
evidenciá-la, não é conseguir a salvação, m a s prová-la. A realidade de nossa fé
é revelada na qualidade de nossa vida: e nisto Paulo e Tiago c o n c o r d a m
ardentemente, apontando diretamente para Abraão, que confiou nas promessas
de Deus, e c o n s e q ü e n t e m e n t e obedeceu à o r d e m d e Deus.
Tiago baseou-se, acima de tudo, n o ensino ético de Jesus. Por estar escrevendo
antes que qualquer dos nossos Evangelhos tivesse sido publicado, sua carta dá
a m p l o t e s t e m u n h o d o m o d o p e l o q u a l o e n s i n o d e J e s u s t i n h a se t o r n a d o p a r t e
d a m e d u l a d a i g r e j a inicial. E m n e n h u m m o m e n t o T i a g o c i t o u f o r m a l m e n t e
Jesus: ele ficou tão i m p r e g n a d o d o ensino do Senhor que passou a refleti-lo
automaticamente e m suas expressões e e m sua vida.
A mensagem de Tiago
1. Domínio próprio
T e n d o e s t i m u l a d o s e u l e i t o r e m s e u p r i m e i r o c a p í t u l o a ser " p r o n t o p a r a o u v i r " ,
m a s "tardio para falar" (1.19), Tiago amplia a perigosa influência d a língua na
celebrada p a s s a g e m d o capítulo 3 (1-12). Ele acrescenta i m a g e m sobre i m a g e m
e m vívidos traços descritivos, sublinhando a perniciosa influência da língua,
a c i m a d e t o d a e q u a l q u e r p r o p o r ç ã o a o seu t a m a n h o .
A s s i m , T i a g o c o n s i d e r a a expressão verbal tão vitalmente importante quanto
a vida cristã—um gabarito para medir a realidade do nosso discipulado. Porém,
e m si, a l í n g u a n ã o é a f o n t e d e t e n t a ç ã o . A t e n t a ç ã o e m a n a d e n o s s o s d e s e j o s
í n t i m o s , q u e p o d e m d a r n a s c i m e n t o a o p e c a d o e, d e p o i s , g e r a r a m o r t e ( 1 . 1 5 ) .
Tiago nos diz que qualquer desejo que não tenha raiz n o a m o r de D e u s p o d e
p o t e n c i a l m e n t e l e v a r - n o s a u m d e s v i o , d e v e n d o n ó s r e s i s t i r a ele.
T i a g o está p r i m o r d i a l m e n t e p r e o c u p a d o a c e r c a d o c o n t r o l e d a ira ( v e j a 1.19,20;
3.9; 3.14; 4 . 1 - 3 ) , e a c e r c a d e seu o p o s t o , a saber, a e x p r e s s ã o v e r b a l q u e p r o m o v e
a p a z ( 3 . 1 7 , 1 8 ) . Tal e x p r e s s ã o r e s u l t a d a sabedoria divinamente outorgada.
2. A verdadeira lei
O segundo elemento na religião "pura e sem m á c u l a " é o amor. A exposição
deste tema por Tiago tem duas características:
P r i m e i r a m e n t e , o amor leva à ação. A b e n e v o l ê n c i a p i e d o s a n ã o s u b s t i t u i a
benignidade prática. N ã o h á n e n h u m benefício e m simpatizar c o m órfãos e
v i ú v a s ; d e v e m o s c u i d a r d e l e s ( 1 . 2 7 ) . É i n ú t i l d i z e r a u m p e d i n t e : " T r a t e d e se
aquecer e se alimentar": d e v e m o s dar-lhe alimento e roupa (2.15,16). O amor
cristão não é sentimento, m a s serviço; não é afeição, m a s ação.
E m s e g u n d o l u g a r , o amor é imparcial. O amor não admite distinções e
a b o m i n a o " f a v o r i t i s m o " . T i a g o retrata p a r a seus leitores u m a c e n a q u e se p a s s a v a
e m sua é p o c a nas sinagogas de todos os lugares: o h o m e m rico chega e o c u p a
u m a s s e n t o p r i v i l e g i a d o , c o m o se t i v e s s e d i r e i t o a ele, e n q u a n t o o s a d o r a d o r e s
p o b r e m e n t e v e s t i d o s d e v e m s e n t a r - s e n o c h ã o . Tais d i s t i n ç õ e s d e c l a s s e s ã o
t o t a l m e n t e i n c o n s i s t e n t e s c o m a v e r d a d e i r a lei. J. B . P h i l l i p s p a r a f r a s e i a 2 . 1
nestas palavras: "Meus irmãos, jamais tentem combinar o esnobismo c o m a fé
em nosso Senhor Jesus Cristo!"
Leitura adicional
Menos exigente:
James T. Draper, Faith That Works: Studies in James (Wheaton: Tyndale House, 1988)
J. A. Motyer, The Message of James: The tests offaith (Leicester: IVP, 1985)
Pedro, o autor
A p r i m e i r a carta de P e d r o t e m sido aceita c o m o autêntica d e s d e os p r i m e i r o s
dias. Ela é citada por C l e m e n t e de R o m a e m sua carta aos Coríntios,
c o s t u m e i r a m e n t e d a t a d a de 96 d.C., e m b o r a C l e m e n t e não m e n c i o n e
e s p e c i f i c a m e n t e P e d r o c o m o o autor. Entretanto, d e s d e os t e m p o s de Irineu
p a r a f r e n t e a carta t e m sido r e g u l a r m e n t e citada c o m o s e n d o de Pedro, e, a l é m
disso, ela f i g u r a na lista c o m p i l a d a por E u s é b i o ao l a d o das o b r a s do N o v o
T e s t a m e n t o q u e estão a c i m a de discussão.
A autoria da carta tem, c o n t u d o , sido discutida e m anos recentes, e m g r a n d e
parte d e v i d o ao seu e x c e l e n t e estilo grego, que, objeta-se, d i f i c i l m e n t e p o d e r i a
s u p o r - s e ter v i n d o d e u m inculto p e s c a d o r galileu. Entretanto, as r e f i n a d a s
q u a l i d a d e s literárias da carta p o d e m ser m e l h o r e x p l a n a d a s s u p o n d o - s e q u e
Silas, q u e é m e n c i o n a d o e m 5.12, era p a r a ele m a i s d o q u e u m m e r o secretário.
Ali P e d r o a f i r m a que e s c r e v e u " p o r m e i o de Silas [Silvano]", ou através dele, e
p o d e m u i t o b e m ser que Silas tivesse u m a participação na c o m p o s i ç ã o da c a r t a —
talvez d a n d o - l h e f o r m a a partir de notas ditadas.
TIAGO E SUA MENSAGEM 129
Silas
Silas (ou Silvano) era evidentemente uma figura É improvável que Pedro tivesse usado uma
proeminente nos anos iniciais da igreja. Ele pessoa tão proeminente e dotada simplesmente
acompanhou Paulo numa parte de sua segunda como um secretário ou copista. Contudo, Pedro
viagem missionária (Atos 15.40; 16.19,25; não inclui o nome de Silas em sua saudação (1
17.4,10,14; 18.5), e era um profeta (Atos 15.32). Pedro 1.1). Portanto, mesmo que Silas tivesse
Ele estava também associado a Paulo e Timóteo participado da composição da carta, Pedro a
na redação das cartas aos Tessalonicenses (1 considerou como sua, assumindo sua própria
Tessalonicenses 1.1; 2 Tessalonicenses 1.1). autoridade (veja, p.ex., 5.1).
Pedro tinha por ele, nitidamente, uma elevada
consideração, chamando-o "fiel irmão" (1 Pedro
5.12).
A a u t o r i a d e P e d r o é m a i s a d i a n t e s u s t e n t a d a p o r u m a série d e c a r a c t e r í s t i c a s
n a carta q u e s u g e r e m suas r e m i n i s c ê n c i a s p e s s o a i s . E l e h a v i a t i d o u m a e x p r e s s i v a
experiência da "viva esperança", que veio gloriosamente "mediante a
r e s s u r r e i ç ã o d e J e s u s C r i s t o d e n t r e o s m o r t o s " (1 P e d r o 1.3); ele h a v i a s i d o
t a m b é m " t e s t e m u n h a dos s o f r i m e n t o s de C r i s t o " (5.1), l e m b r a n d o - s e das
bofetadas recebidas por Ele (2.20,21) e seu silêncio diante de seus agressores
(2.22,23); e ele não podia j a m a i s esquecer-se da tríplice o r d e m do B o m Pastor
p a r a q u e a p a s c e n t a s s e as s u a s o v e l h a s ( J o ã o 2 1 . 1 5 - 1 7 ; c o m p a r e c o m 1 P e d r o
5.2).
D e s d e o s p r i m e i r o s t e m p o s d ú v i d a s m a i s sérias c e r c a r a m a a u t o r i a d a s e g u n d a
c a r t a . E l a e v i d e n t e m e n t e i n d i c a t e r p r o v i n d o d a s m ã o s d e P e d r o (1.1), e p a r e c e
r e f e r i r - s e à p r i m e i r a c a r t a (3.1), m a s o e s t i l o é c o n f u s o e c o m p l i c a d o , e o s
e s t u d i o s o s se i n t e r r o g a m se d u r a n t e a v i d a d e P e d r o as c a r t a s d e P a u l o p o d i a m
ter sido consideradas c o m o "Escrituras", lado a lado c o m o Velho Testamento
(3.16).
Estes e outros argumentos são sérios, mas não conclusivos. Se Silas foi
responsável pelo estilo polido da primeira carta, segue-se q u e o grego r u d e d a
s e g u n d a p o d e r i a ser d o p r ó p r i o P e d r o . A l é m d i s s o , p l e n a r e l e v â n c i a d e v e ser
atribuída à a f i r m a ç ã o do autor de ter estado presente na transfiguração (1.16-
18), d e ter r e c e b i d o d o s l á b i o s d e J e s u s u m a p r o f e c i a a r e s p e i t o d e s u a p r ó p r i a
morte (1.13,14; c o m p a r e c o m João 21.18,19), e de ter conhecido "nosso a m a d o
i r m ã o P a u l o " (3.15).
Se a carta não foi escrita por Pedro, então essas referências foram
d e l i b e r a d a m e n t e f i c t í c i a s , i n s e r i d a s p e l o a u t o r a f i m d e criar u m a a p a r ê n c i a d e
autenticidade.
E m b o r a o m u n d o a n t i g o e s t i v e s s e a b e r t o a tais " p s e u d o - e p i g r a f i a s " , c o m o é
c h a m a d a , h á e v i d ê n c i a d e q u e a p r á t i c a n ã o e r a aceitável n a i g r e j a inicial. M i c h a e l
Green refere-se à história, registrada por Tertuliano, do que aconteceu ao autor
d a o b r a d o s e g u n d o s é c u l o , Os Atos de Paulo e Tecla. N ã o se t r a t a d e u m a o b r a
herética, m a s o autor foi deposto d o ofício c o m o presbítero p o r ter colocado
seu escrito sob o n o m e de Paulo. D e qualquer forma, a "pseudo-epigrafia"
p a r e c e r i a i n c o m p a t í v e l c o m a ê n f a s e n a c a r t a s o b r e p i e d a d e e v e r d a d e (p.ex.,
1.5-7; 2 . 2 , 3 ) . U m a e x t e n s a r e v i s ã o d a e v i d ê n c i a l e v a M i c h a e l G r e e n à c o n c l u s ã o
de que " a conjetura contra a Epístola de fato não parece, d e qualquer m o d o ,
c o n s t r a n g e d o r a . N ã o se p o d e d e m o n s t r a r c o n c l u s i v a m e n t e q u e P e d r o f o i o a u t o r ;
130 HOMENS COM UMA MENSAGEM
m a s d e v e ser d e m o n s t r a d o c o n v i n c e n t e m e n t e q u e e l e n ã o f o i " .
Pedro, a pessoa
S i m ã o P e d r o é, t a l v e z , o m a i s c a t i v a n t e d e t o d o s os e s c r i t o r e s d o N o v o T e s t a -
m e n t o . E l e f i g u r a d e s t a c a d a m e n t e n a s n a r r a t i v a s d o E v a n g e l h o e n a p a r t e inicial
de Atos, e suas notórias fraquezas, b e m c o m o sua prodigiosa energia, valorizam-
n o d i a n t e d o leitor cristão.
C o m o seu irmão André, S i m ã o era pescador. Eles eram sócios, j u n t a m e n t e
c o m outra dupla de irmãos, João e Tiago, os filhos de Z e b e d e u (Lucas 5.10).
E l e s v i e r a m d e B e t s a i d a , n a m a r g e m n o r t e d o m a r d a G a l i l é i a ( J o ã o 1.44), p o r é m
m a i s tarde S i m ã o estabeleceu seu lar e m C a f a r n a u m ( M a r c o s 1.21,29), na
m a r g e m noroeste do lago, onde vivia c o m sua esposa, sua sogra e A n d r é (Marcos
1.29,30; c o m p a r e c o m 1 C o r í n t i o s 9 . 5 ) .
N ã o é d i f í c i l i m a g i n a r o t e m p e r a m e n t o d e S i m ã o n a q u e l e s p r i m e i r o s dias.
C o m o discípulo, ele era ousado e m exteriorizar c o m f r a n q u e z a e a l g u m
e s t a r d a l h a ç o seus s e n t i m e n t o s (p.ex., J o ã o 13.6-9; M a t e u s 2 6 . 3 3 ) , e n a t u r a l m e n t e
t o r n o u - s e o l í d e r d e t o d o o g r u p o . E l e é c i t a d o e m p r i m e i r o l u g a r e m t o d a s as
listas d o s a p ó s t o l o s , t e n d o a g i d o c o m o s e u p o r t a - v o z (p.ex., M a t e u s 1 6 . 1 5 , 1 6 ) .
Podemos imaginá-lo um j o v e m nortista intrépido c o m u m a disposição
desordenada. E bastante significativo, pois, que Jesus o tenha apelidado de "a
R o c h a " (ou P e d r a ) . E s t e j o v e m i m p u l s i v o se t o r n a r i a a s ó l i d a e e s t á v e l f u n d a ç ã o
s o b r e a q u a l a i g r e j a s e r i a c o n s t r u í d a ( M a t e u s 16.18).
P o r é m h á m a i s a ser dito. S i m ã o e r a u m g a l i l e u , e a G a l i l é i a e r a u m n o t ó r i o
c a m p o fértil d e e s p e r a n ç a s m e s s i â n i c a s r e v o l u c i o n á r i a s . N a G a l i l é i a , m a i s d o
q u e e m J e r u s a l é m , as p e s s o a s a g a r r a m - s e às p r o f e c i a s q u e p r o m e t i a m a r e v e r s ã o
dos destinos de Israel e o estabelecimento do Reino de Deus. Eles ansiavam
pelo dia e m que o Messias acabasse c o m a ocupação r o m a n a do país. O intrépido
Simão provavelmente participava desses anseios revolucionários. O
temperamento e o ambiente c o m b i n a v a m para fazer dele u m daqueles judeus
que esperavam ardentemente "a redenção de J e r u s a l é m " (Lucas 2.38), "a
c o n s o l a ç ã o d e I s r a e l " ( L u c a s 2 . 2 5 ) , e o " r e i n o d e D e u s " ( M a r c o s 15.43).
N ã o é surpresa, p o r t a n t o , q u e q u a n d o a n o t í c i a c h e g o u a e l e s d e q u e u m p r o f e t a
t i n h a a p a r e c i d o n o d e s e r t o d a J u d é i a , S i m ã o e seus a m i g o s d e i x a r a m s u a p e s c a r i a
e viajaram ao sul para ouvi-lo. S e m dúvida, João Batista atraiu muitos q u e
esperavam que ele fosse u m libertador profético, liderando u m levante contra
R o m a . Inflamado de zelo revolucionário, S i m ã o foi batizado por João e tornou-
se seu d i s c í p u l o . E n t r e t a n t o , J o ã o a p o n t a v a p a r a o u t r o , a q u e m S i m ã o d e s c o b r i u
a o ser p r o c u r a d o p o r seu i r m ã o A n d r é e o u v i r d e l e as v i b r a n t e s p a l a v r a s :
" A c h a m o s o Messias!" (João 1.41)—querendo dizer não João, mas Jesus.
Esta foi a primeira apresentação de S i m ã o àquele que deveria tornar-se o
o b j e t o d e t o d a s as s u a s e s p e r a n ç a s . E l e o a c o m p a n h o u , o u v i u - o , o l h o u - o e
a d m i r o u - o . G r a d u a l m e n t e , a c e n t e l h a d a c o n v i c ç ã o c r e s c e u d e n t r o dele, até q u e ,
e m C e s a r é i a d e F i l i p e , e n t r e as c o l i n a s e a o p é d o m o n t e H e r m o m , ela e x p l o d i u
e m c h a m a s c o m s u a g r a n d e c o n f i s s ã o d e f é : " T u és o C r i s t o , o F i l h o d o D e u s
v i v o ! " ( M a t e u s 16.16). S u a e s p e r a n ç a e s t a v a r e a l i z a d a . E s t e é o m o m e n t o su-
p r e m o d e s u a e x i s t ê n c i a . O M e s s i a s t i n h a c h e g a d o . J e s u s a c e i t o u o título, d i s s e
a S i m ã o que fora o Pai que lhe havia revelado esta verdade, proibiu os discípulos
d e c o n t a r a o u t r o s q u e E l e e r a o C r i s t o ( M a t e u s 16.20), e c o m e ç o u i m e d i a t a m e n t e
a mostrar-lhes "que lhe era necessário seguir para J e r u s a l é m e sofrer muitas
PEDRO E SUA MENSAGEM 131
O nome Pedro
O nome original de Pedro era o grego Simão. Não papel fundamental de Pedro na igreja. Nos
era incomum aos judeus o uso de nomes gregos, primeiros capítulos de Atos, Pedro foi
especialmente na Galiléia, e o irmão de Simão, efetivamente o líder da igreja de Jerusalém (Atos
André, também tinha nome grego. De acordo 1.15; 2.14; 5.3; compare com Gálatas 1.18; 2.9).
com João 1.42, Jesus deu a Simão o apelido Paulo habituou-se a usar a forma aramaica do
"Pedro", quando o encontrou pela primeira vez. nome de Pedro (p.ex., 1 Coríntios 1.12; 3.22;
Este nome tinha as versões tanto grega ("Pedro") 9.5), expressando assim talvez sua apreciação
como aramaica ("Cefas"): em ambas as línguas pelo íntimo relacionamento de Pedro com Jesus,
ele significava "a Rocha" (ou Pedra). o que os fazia voltar ao tempo em que o
Foi, porém, somente mais tarde em seu aramaico, não o grego, era a língua falada por
ministério que Jesus revestiu este apelido de Jesus e seus discípulos.
significação mais profunda, apontando para o
A Igreja do Santo pela noite chorando amargamente, lágrimas não apenas de remorso m a s de cruel
Sepulcro, d e s i l u s ã o . N ã o h á d ú v i d a d e q u e ele s e g u i u a m u l t i d ã o até a o G ó l g o t a . E l e v i u o
Jerusalém, fica no f i m . A e s p e r a n ç a q u e ele t i n h a a l i m e n t a d o se e x t i n g u i r a . O M e s s i a s e s t a v a m o r t o .
provável local É difícil imaginar os dois dias de agonia pelos quais S i m ã o Pedro passou
onde Jesus então. M a s n ã o é difícil sentir c o m ele a f o r m i d á v e l excitação do D i a da Páscoa.
morreu e foi
Ele correu ao túmulo j u n t a m e n t e c o m João (João 20.1-10). O t ú m u l o estava
sepultado.
v a z i o . O c o r p o t i n h a - s e i d o . E m s e g u i d a e l e se e n c o n t r a c o m o S e n h o r (1
C o r í n t i o s 15.5). N ã o s a b e m o s o q u e f o i d i t o n e s t a e n t r e v i s t a p r i v a d a . P o r é m
sabemos que Simão Pedro recebeu a regeneração "para u m a viva esperança
m e d i a n t e a r e s s u r r e i ç ã o d e J e s u s C r i s t o d e n t r e o s m o r t o s " (1 P e d r o 1.3). E l e se
sentiu literalmente u m h o m e m renascido.
Sabemos também que na noite daquele primeiro Dia da Páscoa o Senhor
apareceu aos apóstolos e m Jerusalém e repetiu o que tinha dito anteriormente
n o c a m i n h o para E m a ú s . " Ó néscios", dissera Ele aos dois discípulos, "e tardos
d e c o r a ç ã o p a r a crer t u d o o q u e o s p r o f e t a s d i s s e r a m ! P o r v e n t u r a n ã o c o n v i n h a
q u e o C r i s t o p a d e c e s s e e e n t r a s s e n a s u a g l ó r i a ? " A seguir l e m o s q u e " c o m e ç a n d o
por Moisés, discorrendo p o r todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito
c o n s t a v a e m t o d a s as E s c r i t u r a s " ( L u c a s 2 4 . 2 5 - 2 7 ) . P o r isso, a g o r a n o c e n á c u l o
E l e d o m e s m o m o d o e n f a t i z a o cumprimento da Escritura a respeito de sua
morte e ressurreição.
Q u e Pedro tenha aprendido esta lição deduz-se claramente de seus sermões
nos primeiros capítulos de Atos. " V ó s o matastes... p o r é m D e u s o ressuscitou...do
q u e t o d o s n ó s s o m o s t e s t e m u n h a s " : isto r e s u m e s u a m e n s a g e m . E l e n ã o m a i s se
e n v e r g o n h a v a dos sofrimentos do Cristo, porque, e m b o r a eles tivessem sido
causados "por m ã o s de iníquos", f o r a m t a m b é m parte do "determinado desígnio
e p r e s c i ê n c i a d e D e u s " ( A t o s 2 . 2 3 ) . D i s s e ele n o t e m p l o : " D e u s a s s i m c u m p r i u
o q u e d a n t e s a n u n c i a r a p o r b o c a d e t o d o s os p r o f e t a s q u e o seu C r i s t o h a v i a d e
p a d e c e r " ( 3 . 1 8 ) . M a s a g o r a E l e f o i l e v a n t a d o e e x a l t a d o p a r a ser " P r í n c i p e e
S a l v a d o r " , a f o n t e d e p e r d ã o p a r a t o d o s o s q u e se a r r e p e n d e m e c r ê e m ( A t o s
5 . 3 1 ; c o m p a r e c o m 2 . 3 8 ; 3 . 1 9 ; 4 . 1 2 ; 10.43). S i m , u m d i a e s t e P r í n c i p e a g i r á
p a r a s a l v a r s e u p o v o e j u l g a r o m u n d o ( A t o s 3 . 1 9 - 2 1 ; 10.42), m a s n ã o s e r á
n e c e s s á r i o q u e s e u s s e g u i d o r e s p u x e m as e s p a d a s . T u d o o q u e e l e s p r e c i s a m
fazer é esperar—e dar testemunho.
A s s i m , o a p ó s t o l o i m p u l s i v o q u e p r i m e i r o d e f e n d e u e d e p o i s n e g o u seu S e n h o r ,
permaneceu impávido perante o sinédrio, tendo sido submetido h u m i l d e m e n t e
a u m interrogatório. Foi açoitado e aprisionado. Dormiu u m a noite c o m a
p e r s p e c t i v a d e u m a e x e c u ç ã o ( A t o s 12.6). E , se a t r a d i ç ã o p o d e ser a c e i t a , ele
f i n a l m e n t e m o r r e u a m o r t e d e seu M e s t r e , s e n d o c r u c i f i c a d o e m R o m a d u r a n t e
a perseguição desencadeada pelo imperador Nero (compare c o m João 21.18,19).
O antigo espírito inflamado e belicoso de S i m ã o foi substituído pela nova e
v i v a e s p e r a n ç a d e P e d r o . C o m o seu M e s t r e , e l e c h e g a r i a à g l ó r i a p o r m e i o d a
cruz.
F o i — e ainda é — u m a dura lição a aprender. A tentação de negar a necessidade
de sofrimento é sedutora para a igreja. É muito mais atraente crer n u m Cristo
q u e n o s l i v r a do s o f r i m e n t o d o q u e através dele. M a s Pedro nos aponta
f i r m e m e n t e este s e g u n d o Cristo. O primeiro era seu sonho inicial, abalado
naquela m a n h ã da ressurreição, quando a morte foi destruída por alguém que a
sofreu, e não apenas vencida à distância.
O s p r i m e i r o s leitores d e P e d r o p r e c i s a r a m o u v i r e s t a m e n s a g e m t a n t o q u a n t o
nós precisamos.
A mensagem de Pedro
O s c r i s t ã o s a o s q u a i s P e d r o e s c r e v e u , " e s p a l h a d o s p o r t o d a s " as c i n c o p r o v í n c i a s
d a Á s i a M e n o r (1 P e d r o 1.1), f o r a m e v i d e n t e m e n t e a m e a ç a d o s p e l a p e r s e g u i ç ã o .
Esta não era p r o v a v e l m e n t e u m a perseguição oficial, m a s bastante severa para
ser c h a m a d a " p r o v a d e a f l i ç ã o " ( 4 . 1 2 , l i t e r a l m e n t e " p r o v a p e l o f o g o " ) , q u e se
d i s s e m i n o u p e l o m u n d o (5.9). P e d r o l h e s e s c r e v e u d e " B a b i l ô n i a " ( 5 . 1 3 ) , q u e é
provavelmente u m c o d i n o m e para R o m a : c o m o a antiga Babilônia, R o m a e seu
império são agora o centro da oposição mundial a Deus.
O s l e i t o r e s d e P e d r o t e r i a m s a b i d o o q u e e l e q u e r i a dizer. V i v e n d o n a Á s i a
M e n o r , m u i t o s d e l e s t i n h a m e x p e r i m e n t a d o as p r e s s õ e s d o c u l t o i m p e r i a l , q u e
era particularmente forte naquela área. Os estudiosos c o s t u m a v a m crer q u e o
c u l t o i m p e r i a l e r a a l g o i m p o s t o p o r R o m a : isto é, p a r a r e f o r ç a r a l e a l d a d e , as
a u t o r i d a d e s r o m a n a s e s t a b e l e c e r a m t e m p l o s à d e u s a " R o m a " e e x i g i r a m q u e as
pessoas de todo o império o f e r e c e s s e m incenso ao imperador.
M a s r e c e n t e m e n t e t o r n o u - s e claro q u e se tratava, n a realidade, de u m
m o v i m e n t o popular, embora t a m b é m incentivado pelas autoridades. E m gratidão
p e l o s b e n e f í c i o s r e c e b i d o s d o g o v e r n o r o m a n o , as p o p u l a ç õ e s locais f i n a n c i a r a m
a construção desses templos, e instituíram festas nas quais o imperador era
a d o r a d o c o m o u m d e u s . N a t u r a l m e n t e e l e s o l h a v a m c o m m u i t a d e s c o n f i a n ç a as
p e s s o a s q u e se r e c u s a v a m a aderir. M a s o s c r i s t ã o s n ã o p o d i a m f a z ê - l o . A n t e o
risco de p a r e c e r e m subversivos, eles se retraíam. Pedro os anima: "Porque basta
o t e m p o decorrido para terdes executado a vontade dos gentios, tendo andado
e m dissoluções, cuncupiscências, borracheiras, orgias, bebedices, e e m
d e t e s t á v e i s i d o l a t r i a s . P o r isso, d i f a m a n d o - v o s , e s t r a n h a m q u e n ã o c o n c o r r a i s
c o m eles ao m e s m o excesso de devassidão, os quais hão de prestar contas àquele
q u e é c o m p e t e n t e p a r a j u l g a r v i v o s e m o r t o s " (1 P e d r o 4 . 3 - 5 ) .
C o m o d e v e r i a m o s c r i s t ã o s c o m p o r t a r - s e e m tais c i r c u n s t â n c i a s ? Q u a l é a
PEDRO E SUA MENSAGEM 135
1. O exemplo de Jesus
P e d r o d e s v i a a a t e n ç ã o d e s e u s l e i t o r e s d e si m e s m o s p a r a C r i s t o . S e t e v e z e s
e m s u a p r i m e i r a c a r t a ele u s a as p a l a v r a s " s o f r e r " e " s o f r i m e n t o " c o m r e f e r ê n c i a
a C r i s t o (1.11; 2 . 2 1 , 2 3 ; 3 . 1 8 ; 4 . 1 , 1 3 ; 5.1). E l e p a r e c e g l o r i a r - s e n a q u i l o q u e
u m a vez rejeitou. Seguindo o e x e m p l o de Jesus, os cristãos d e v e m sofrer. Ele
u s a as m e s m a s p a l a v r a s " s o f r e r " e " s o f r i m e n t o " n o v e v e z e s e m r e f e r ê n c i a a o s
cristãos (2.19,20; 3.14,17; 4.1,15,16,19; 5.9,10). "Para isto m e s m o fostes
c h a m a d o s , p o i s q u e t a m b é m C r i s t o s o f r e u e m v o s s o lugar, d e i x a n d o - v o s e x e m p l o
p a r a s e g u i r d e s os s e u s p a s s o s " , e s c r e v e e l e (1 P e d r o 2 . 2 1 ) .
A palavra traduzida "exemplo" é única no N o v o Testamento grego. Ela
significa o c a d e r n o d e a l f a b e t o d o p r o f e s s o r , q u e c o n t i n h a as letras q u e as c r i a n ç a s
tinham de decalcar para a p r e n d e r e m suas f o r m a s . D e igual m o d o , d e v e m o s
aprender o a-b-c do discipulado cristão seguindo o m o d e l o da vida de Jesus.
E s t a s p a l a v r a s s ã o e l o q ü e n t e s v i n d a s d a p e n a d e P e d r o , q u e t i n h a dito: " S e n h o r ,
e s t o u p r o n t o a ir c o n t i g o , t a n t o p a r a a p r i s ã o , c o m o p a r a a m o r t e " ( L u c a s 2 2 . 3 3 ) ,
e que n o evento tinha-o seguido "de longe" (Lucas 22.54). M a i s tarde, na praia
da Galiléia, ele tinha ouvido de n o v o o c h a m a d o do Mestre, " s e g u e - m e " (João
2 1 . 1 9 ) , e e s t e c h a m a d o e l e r e p a s s a a o s s e u s leitores. " E l e , q u a n d o u l t r a j a d o ,
n ã o revidava c o m ultraje, q u a n d o maltratado não fazia ameaças, m a s entregava-
se à q u e l e q u e j u l g a r e t a m e n t e " (1 P e d r o 2 . 2 3 ) . E l e s d e v e m f a z e r o m e s m o .
v o s s o fútil p r o c e d i m e n t o q u e v o s s o s p a i s v o s l e g a r a m , m a s p e l o p r e c i o s o s a n g u e ,
c o m o d e cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo" (1.18,19). Por
m e i o d o s a n g u e d e u m c o r d e i r o d a P á s c o a f i s i c a m e n t e p e r f e i t o , o s israelitas
f o r a m resgatados da escravidão no Egito. Agora, por meio do precioso sangue
do Cristo s e m p e c a d o aspergido sobre nós (1.2), f o m o s r e d i m i d o da pior
escravidão: nosso "fútil procedimento".
O p r o p ó s i t o d o s s o f r i m e n t o s d e C r i s t o é, p o i s , e s c l a r e c i d o . S o m e n t e p o r m e i o
daqueles sofrimentos poderia Ele entrar e m sua glória, quando Deus "o
ressuscitou dentre os m o r t o s e lhe deu glória" (1.21). Jesus estabelece u m
p r i n c í p i o " d a m o r t e à v i d a " q u e P e d r o e n c o n t r a s i m b o l i z a d o n a história d o d i l ú v i o
(3.20,21). A água que destruiu o restante do m u n d o foi o m e i o de salvação para
N o é e sua família, flutuando na arca. A s s i m t a m b é m o batismo simboliza agora
a morte c o m Cristo, a única morte q u e conduz à vida. Ligados a Cristo, p o d e m o s
pensar e m nossos sofrimentos c o m o sendo t a m b é m dele; e por isso Pedro nos
diz p a r a n ã o n o s s u r p r e e n d e r m o s se D e u s n o s c h a m a r p a r a q u e s u p o r t e m o s a
" p r o v a de aflição" (4.12). "Alegrai-vos na m e d i d a e m que sois co-participantes
dos sofrimentos de Cristo, para q u e t a m b é m na revelação de sua glória vos
alegreis e x u l t a n d o " (4.13). A morte simbolizada e m nosso b a t i s m o torna-se u m
princípio diário de vida, à medida que transferimos para Cristo nossos
sofrimentos e nos alegramos de que "aquele que sofreu na carne deixou o pecado"
(4.1). A s a l v a ç ã o e s t á a c a m i n h o .
Esta é uma m e n s a g e m de grande conforto e grande desafio: conforto para
aqueles que j á sofrem, desafio para aqueles que evitam ou negam o sofrimento.
4. Vivendo em esperança
A quarta resposta de Pedro para competir c o m o sofrimento é a esperança—a
real q u a l i d a d e q u e p a r e c e ser a m a i s difícil d e m a n t e r q u a n d o c h e g a o s o f r i m e n t o .
M a s a esperança de Pedro não é u m sentimento vago e irracional, ou a
determinação de u m obstinado simplesmente para "manter a cabeça levantada".
Esta esperança é centralizada e m Cristo e ancorada na história. E " u m a viva
e s p e r a n ç a " , c r i a d a p e l a r e s s u r r e i ç ã o d e C r i s t o (1.3), e q u e s e r á r e a l i z a d a n a s u a
v o l t a (1.7). Q u a n d o E l e se r e v e l a r (1.7), n o s s a s a l v a ç ã o f i n a l t a m b é m s e r á
r e v e l a d a (1.5). E n q u a n t o isso, s o m o s " g u a r d a d o s p e l o p o d e r d e D e u s , m e d i a n t e
a f é " (1.5), e até q u e C r i s t o s e j a r e v e l a d o à n o s s a vista, p o d e m o s c r e r e a m a r
aquele que é invisível, p o d e n d o exultar " c o m alegria indizível e cheia de glória"
(1.8). " P o r i s s o " , e s c r e v e P e d r o , " c i n g i n d o o v o s s o e n t e n d i m e n t o , s e d e s ó b r i o s
e esperai inteiramente n a graça q u e vos está sendo trazida n a revelação de Je-
sus C r i s t o " ( 1 . 1 3 ) .
Portanto esta esperança é firme. Se participamos dos sofrimentos de Cristo
(4.13), certamente participaremos de sua glória (5.1); e p o d e m o s estar seguros
de que os sofrimentos que p a d e c e m o s estão purificando nossa f é c o m o o f o g o
p u r i f i c a o o u r o (1.7). E s p e r a n ç a , r e a l m e n t e ! A f r a q u e z a a t u a l s i m p l e s m e n t e
a p o n t a p a r a a f u t u r a f i r m e z a : " O D e u s d e t o d a a graça, q u e e m C r i s t o v o s c h a m o u
à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por u m pouco, ele m e s m o vos h á de
aperfeiçoar, firmar, fortificar e f u n d a m e n t a r " (5.10).
Esta insistência no f u t u r o de D e u s é u m a das ê n f a s e s vitais da s e g u n d a carta
d e P e d r o , e s p e c i a l m e n t e d e 2 P e d r o 3. A q u i e l e se i n s u r g e c o n t r a os
" e s c a r n e c e d o r e s " (2 P e d r o 3.3), q u e p õ e m e m d ú v i d a a r e a l i d a d e d o j u í z o f i n a l .
E l e primeiramente insiste que virá realmente u m F i m (3.3-7), e e m seguida
e x p l i c a s u a a p a r e n t e d e m o r a (3.8-10): isto se d e v e à " p a c i ê n c i a " d e D e u s , p o r q u e
138 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Leitura adicional
Menos exigente:
Carsten P. Thiede, Simon Peter: From Galilee to Rome (Exeter: Paternoster, 1986)
Edmund P. Clowney, The Message of 1 Peter: The Way of the Cross (Leicester: IVP,
1988)
"João", o autor
A identidade do " J o ã o " que escreveu Apocalipse é tão indistinta, c o m o foi h á
m i l e o i t o c e n t o s a n o s . R e u n i m o s a l g u m a s c o i s a s s o b r e ele d o p r ó p r i o livro:
1. E l e r e g i s t r a a r e f e r ê n c i a d o a n j o s o b r e " t e u s i r m ã o s , o s p r o f e t a s " , a q u a l
s u g e r e q u e e l e é t a m b é m u m p r o f e t a ( 2 2 . 9 ) e seu livro é u m a " p r o f e c i a " (1.3;
2 2 . 1 0 ) . Isto s i g n i f i c a q u e e l e e s t a v a p r o f u n d a m e n t e c ô n s c i o d e s e u c h a m a d o
s o l e n e p a r a t r a n s m i t i r a p a l a v r a d e D e u s a o s s e u s leitores ( 2 2 . 1 8 ) .
2. A o m e s m o t e m p o ele d e s e j a ser c o n h e c i d o a p e n a s c o m o o " i r m ã o " d e s e u s
leitores, e c o m o seu " c o m p a n h e i r o n a t r i b u l a ç ã o , n o r e i n o e n a p e r s e v e r a n ç a ,
e m J e s u s " (1.9).
3. N a é p o c a e m q u e e s c r e v e ele se e n c o n t r a n a ilha d e P a t m o s , n o m a r E g e u ,
p a r a o n d e f o i e n v i a d o p o r c a u s a d a p a l a v r a d e D e u s e d o t e s t e m u n h o de J e s u s
(1.9).
4. S u a p r o f e c i a é e n d e r e ç a d a às sete p r i n c i p a i s i g r e j a s d a p r o v í n c i a r o m a n a d a
Á s i a (1.11), n o c o n t i n e n t e n ã o m u i t o d i s t a n t e d e P a t m o s (1.9). E s t á c l a r o q u e
e l e c o n h e c e as c o n d i ç õ e s l o c a i s ( t a n t o g e o g r á f i c a s c o m o e s p i r i t u a i s ) , e s a b e
que p o d e escrever-lhes c o m u m a autoridade que eles reconhecem.
5. E l e u s a u m e s t i l o g r e g o e x t r a o r d i n á r i o , q u e t e m c o n f u n d i d o o s leitores d e s d e
então. Alguns concluíram que o grego não era sua primeira língua, enquanto
o u t r o s u g e r e m q u e e l e d e l i b e r a d a m e n t e q u e b r a as r e g r a s d a g r a m á t i c a g r e g a
porque está descrevendo coisas que ultrapassam a capacidade da linguagem
humana.
6. E l e e r a p r o f u n d a m e n t e v e r s a d o n a s E s c r i t u r a s d o V e l h o T e s t a m e n t o , o q u e
s u g e r e q u e ele e r a j u d e u . A l é m disso, ele t a m b é m e s t a v a c l a r a m e n t e f a m i l i a r i z a d o
n a t r a d i ç ã o " a p o c a l í p t i c a " . Isto é i l u s t r a d o n o V e l h o T e s t a m e n t o p o r D a n i e l e
Zacarias, e vários outros judeus "apocalípticos" sobreviveram nos períodos
intertestamentário e neotestamentário. Apocalipse tem muito e m c o m u m c o m
eles, m a s t a m b é m d i f e r e n o t a v e l m e n t e d e l e s .
N ã o p o d e m o s c o l h e r m a i s d o q u e isto d o p r ó p r i o livro. A p r i m e i r a vista,
todos estes pontos p o d e r i a m ajustar-se à tradicional atribuição do livro a João,
o apóstolo de Jesus e filho de Zebedeu. Contudo, o quinto ponto apresenta u m a
d i f i c u l d a d e . F o i D i o n í s i o , b i s p o d e A l e x a n d r i a ( 2 4 7 - 6 5 d.C.), q u e m p r i m e i r o
discordou dessa atribuição, por causa das diferenças tanto na l i n g u a g e m c o m o
n o conteúdo entre Apocalipse e os outros escritos atribuídos a João: "Ele mal
tem u m a sílaba e m c o m u m c o m eles!" E então conclui: " N ã o posso de boa
v o n t a d e concordar que o autor foi o apóstolo, o filho de Zebedeu, o irmão de
Tiago."
Isto l e v o u E u s é b i o , a n t i g o h i s t o r i a d o r d a i g r e j a , q u e r e l a t o u o p o n t o d e v i s t a
d e D i o n í s i o p a r a r e f e r i r - s e à v i s ã o d e P a p i a s , b i s p o d e E s m i r n a p o r v o l t a d e 125
d.C., q u e havia duas figuras proeminentes c h a m a d a s " J o ã o " n a velha igreja:
João, o apóstolo, e outro a quem Papias chama de "João, o presbítero". Eusébio
sugeriu que este segundo João fosse o autor de Apocalipse, e muitos estudiosos
modernos têm adotado sua sugestão.
H á mais a ser dito, entretanto. D i f e r e n ç a s p o d e haver, m a s há t a m b é m
semelhanças marcantes entre o Evangelho de João e Apocalipse. Por exemplo:
• E x c l u s i v a m e n t e estes livros c h a m a m J e s u s d e " o V e r b o " ( J o ã o 1.14; A p o c a l i p s e
A MENSAGEM DE APOCALIPSE 143
E m seguida, à medida que descreve o que via (1.12-16), João usa a linguagem
extraída de vários lugares do Velho Testamento:
• S e u c a b e l o e r a c o m o o d o p r ó p r i o D e u s ( D a n i e l 7.9).
• Seus olhos e seu cinto e r a m c o m o aqueles do poderoso anjo que apareceu a
D a n i e l j u n t o a o rio T i g r e ( D a n i e l 10.5,6).
• S u a v o z e r a c o m o a v o z d e D e u s q u e E z e q u i e l o u v i u ( E z e q u i e l 1.24).
• Sua boca era c o m o a do grande "servo do Senhor", cuja vinda foi revelada a
I s a í a s (49.2).
• S u a s v e s t e s e r a m c o m o a q u e l a s d o s u m o s a c e r d o t e ( L e v í t i c o 8.7), e e l e e s t a v a
de p é ao lado de u m candeeiro c o m o o que havia no Tabernáculo onde o sumo
sacerdote ministrava (Êxodo 25.37).
Inspirado pelo Espírito, João tece todos esses temas juntos, enquanto descreve
s u a v i s ã o s o b r e o C r i s t o r e s s u r g i d o e m s u a glória. A s s i m f a z e n d o , J o ã o r e c o r r e
a velhos temas para dizer alguma coisa nova: estes diferentes textos e temas
v i e r a m juntos, c o n v e r g i n d o sobre Jesus Cristo. À m e d i d a que este processo é
repetido seguidas vezes através de Apocalipse, Jesus torna-se a chave para a
compreensão de todo o Velho Testamento.
P o d e m o s imaginar o Velho Testamento c o m o u m filme e m branco e preto.
Apocalipse é " u m filme sobre a produção do filme", em cores gloriosas. S o m o s
l e v a d o s p a r a trás d a s c e n a s e v e m o s a a ç ã o r e a l , s o m o s a p r e s e n t a d o s a o D i r e t o r
e temos permissão para ouvir por que o Diretor rodou o filme e por que agora
r e s o l v e u c o n t i n u a r a h i s t ó r i a n u m s e g u n d o f i l m e , t e n d o c o m o e s t r e l a seu P r i n -
cipal Executivo.
M a s A p o c a l i p s e n ã o a p e n a s n o s l e v a atrás d a s c e n a s d o V e l h o T e s t a m e n t o .
M a i s d o q u e isto, ele n o s l e v a atrás d a s c e n a s d o p r ó p r i o m u n d o . E s t e " f i l m e
sobre a p r o d u ç ã o d o f i l m e " leva-nos diretamente ao escritório do Diretor—isto
é, a o t r o n o d o p r ó p r i o D e u s — e o o b s e r v a m o s p r o d u z i n d o a h i s t ó r i a d o m u n d o ,
e m p a r c e r i a c o m seu P r i n c i p a l E x e c u t i v o . I s t o é " a p o c a l í p t i c o " , u m a p a l a v r a
q u e s i g n i f i c a l i t e r a l m e n t e "tirar o v é u " , p a r a q u e p o s s a m o s v e r o q u e g e r a l m e n t e
fica escondido.
Isto nos leva à terceira qualidade que João nitidamente possuía:
deusa " R o m a " . O governo local era envolvido n o culto. Festas anuais e r a m
p r o m o v i d a s , m a r c a d a s n ã o s o m e n t e p e l a idolatria, m a s às v e z e s p o r g r a n d e
i m o r a l i d a d e — e t o d o s t i n h a m d e c o n t r i b u i r p a r a o c u s t o delas, a l é m d e participar.
Q u a n d o a p r o c i s s ã o p a s s a v a , as p e s s o a s a p r e s e n t a v a m s a c r i f í c i o s e m p e q u e n o s
altares do lado de fora de suas casas. N a q u e l e t e m p o a Ásia era pacífica e
p r ó s p e r a , e as p e s s o a s a g r a d e c i d a s a t r i b u í a m isto a o g o v e r n o r o m a n o .
Q u a n d o o s c r i s t ã o se a f a s t a v a m d e t u d o isso, e r a m t i d o s c o m o i n g r a t o s e
d e s l e a i s . O s n i c o l a í t a s p a r e c e m ter c e d i d o a e s s a s p r e s s õ e s e a c o n s e l h a d o o s
c r i s t ã o s a c o n c o r d a r c o m a p r á t i c a p a g ã ( v e j a o q u a d r o a c i m a s o b r e As cartas às
Sete Igrejas). M a s p a r a m u i t o s a c o n f i s s ã o " J e s u s é S e n h o r " (1 C o r í n t i o s 12.3)
significava que eles não p o d i a m aspergir incenso sobre o f o g o que ardia diante
da estátua do imperador e dizer "César é Senhor". Teria sido por isso q u e J o ã o
foi exilado e m Patmos?
A l é m desse conhecimento das condições imediatas das igrejas, João t a m b é m
s a b i a c o m o r e a l m e n t e e r a a v i d a n e s t e g l o b o . P o r trás d a p r ó s p e r a f a c h a d a d a
Á s i a u m a i m a g e m m u i t o m a i s f e i a se o c u l t a v a . O p o d e r d e R o m a b a s e a v a - s e n o
p o d e r militar, n a g u e r r a , n a e x p l o r a ç ã o e c o n ô m i c a , n o t r á f i c o d e e s c r a v o s , n o
c u l t o i d ó l a t r a d o d i n h e i r o e d o p o d e r , e — J o ã o o c o n s t a t o u p o r si m e s m o — n a
temível autoridade do dragão, o próprio Satanás, e nas m e d o n h a s "bestas" a
q u e m ele d e l e g a v a p o d e r . A d o r a r R o m a e r a a d o r a r o p r ó p r i o d r a g ã o , r e c e b e r n a
f r o n t e s u a m a r c a ( 1 3 . 1 6 , 1 7 ) . O i m p é r i o r o m a n o p o d e ter p a r e c i d o p r ó s p e r o e
p a c í f i c o , m a s era, n a r e a l i d a d e , u m a p r o s t i t u t a , m o n t a d a n a s c o s t a s d a b e s t a d o
d r a g ã o (17.3), " e m b r i a g a d a c o m o s a n g u e d o s s a n t o s " (17.6), v i v e n d o e m l u x ú r i a
às e x p e n s a s d o m u n d o e p r o n t a p a r a a d e s t r u i ç ã o ( c a p í t u l o 18).
Os "selos" no capítulo 6 retratam a realidade do governo romano: exercendo
o p o d e r i m p e r i a l ( 6 . 1 , 2 ) , a p o i a n d o - s e n a g u e r r a (6.3,4), p r o v o c a n d o a m i s é r i a
e c o n ô m i c a (6.5,6), e s p a l h a n d o a m o r t e (6.7,8), e i m p o n d o o m a r t í r i o a o s s e r v o s
d e D e u s (6.9-11). J o ã o retira o v é u d e c i m a d e t o d o e s s e horror, j á e x p e r i m e n t a d o
por muitos cristãos, de m o d o que p o d e t a m b é m revelar a maravilhosa vitória
conquistada por Deus por m e i o de seu Cristo, e prometido por Cristo a seus
servos. Ele tinha visto Jesus, ressurgido, triunfante, glorioso, invencível,
s u s t e n t a n d o as i g r e j a s e m s e g u r a n ç a c o m s u a f o r t e d e s t r a . E s t a f o i a v i s ã o q u e a
igreja perseguida necessitava.
Interpretando Apocalipse
C o m o d e v e m o s c o m p r e e n d e r e s t e livro? E l e f o i o p á t i o d e r e c r e i o d o s e x c ê n t r i c o s
d e s d e q u e f o i e s c r i t o — e a i n d a é. E x i s t e a l g u m m e i o d e n o s c e r t i f i c a r m o s d e
que estamos lendo este livro do m o d o que João pretendeu?
H á essencialmente quatro alternativas para a interpretação deste livro. Todos
os esforços para desvendar seu sentido utilizam u m a dessas alternativas, ou
tentam combinar duas ou mais. Vamos expô-las e avaliá-las u m a a uma,
e s p e c i a l m e n t e à luz d a f o r m a c o m o J o ã o i n t r o d u z seu t e x t o n o p r i m e i r o c a p í t u l o .
J o ã o e x p l i c a seu t r a b a l h o l o g o n o p r i m e i r o v e r s í c u l o : " R e v e l a ç ã o d e J e s u s
C r i s t o , q u e D e u s l h e d e u p a r a m o s t r a r a o s s e u s s e r v o s as c o i s a s q u e e m b r e v e
d e v e m a c o n t e c e r " (1.1). M a s d e v e m o s p e r g u n t a r : " Q u a i s s e r v o s ? " e " Q u e f u -
turo está sendo revelado?"
• A a l t e r n a t i v a preterista enfatiza o sentido de Apocalipse para seus primeiros
leitores, e q u e s t i o n a q u a l q u e r i n t e r p r e t a ç ã o q u e n ã o o s t e m f i r m e m e n t e n a m e n t e .
A MENSAGEM DE APOCALIPSE 147
Ruínas do templo p r o b a b i l i d a d e e l a s n ã o s ã o m u t u a m e n t e t ã o e x c l u d e n t e s c o m o p a r e c e m . P o r é m
de Artêmis em é fundamental ouvir o próprio João, pois sua introdução nos dá u m a clara
Sardes. A igreja de o r i e n t a ç ã o p r e c i s a m e n t e s o b r e e s t e p o n t o .
Sardes estava
entre as sete 1. João define os recipientes da revelação.
igrejas, sobre as
D e u s , p o r i n t e r m é d i o d e J o ã o e d o a n j o q u e l h e e n v i o u (1.1), d e u e s s a r e v e l a ç ã o
quais João
exerceu aos " s e u s servos". N a s a u d a ç ã o q u e se segue, esses " s e r v o s " são e n t ã o
supervisão. mencionados:
• " J o ã o , às s e t e i g r e j a s q u e s e e n c o n t r a m n a Á s i a : G r a ç a e p a z a v ó s o u t r o s , d a
p a r t e d a q u e l e q u e é, q u e e r a e q u e h á d e vir, d a p a r t e d o s s e t e e s p í r i t o s q u e se
a c h a m d i a n t e d o seu t r o n o , e d a p a r t e d e J e s u s C r i s t o . . . " (1.4,5).
O livro abre c o m o u m a m e n s a g e m específica, das três pessoas da Trindade
p a r a as s e t e i g r e j a s . P o r t a n t o , A p o c a l i p s e t i n h a u m g e n u í n o c o n t e x t o h i s t ó r i c o .
J o ã o e v i d e n t e m e n t e e x e r c e u a l g u m t i p o d e s u p e r v i s ã o s o b r e as i g r e j a s e m E f e s o
e E s m i r n a , P é r g a m o e Tiatira, S a r d e s , F i l a d é l f i a e L a o d i c é i a (1.11). E l e até
m e s m o as r e l a c i o n a n a o r d e m e m q u e s e r i a m a l c a n ç a d a s p o r u m m e n s a g e i r o
v i a j a n d o a o l o n g o d a e s t r a d a c i r c u l a r q u e as u n i a . E c o m o v i m o s a c i m a ( n o
q u a d r o s o b r e as c a r t a s às s e t e i g r e j a s , p á g . 145), as n e c e s s i d a d e s p a r t i c u l a r e s d e
cada igreja são tratadas.
Este contexto histórico definido ajuda-nos em nossa avaliação dessas
a l t e r n a t i v a s a n t a g ô n i c a s . A a l t e r n a t i v a preterista deve conter u m importante
elemento de verdade, ao passo que a escola estritamente/wíMráfa de interpretação
n ã o p o d e ser c o r r e t a . S e a m e n s a g e m d o l i v r o s e r e f e r e i n t e i r a m e n t e a o p e r í o d o
i m e d i a t a m e n t e anterior à volta do Senhor, então ela não tinha n e n h u m a
m e n s a g e m p a r t i c u l a r p a r a as i g r e j a s às q u a i s J o ã o d i z q u e e s c r e v e u .
Entretanto, c o m o t a m b é m vimos acima, há evidência de que uma audiência
m a i s a m p l a e s t á t a m b é m e m vista. I s t o i n d i c a r i a q u e a e s c o l a preterista não tem
m o n o p ó l i o s o b r e a p r e c i s ã o . A m e n s a g e m p o d e ter s i d o d i r i g i d a p r i m a r i a m e n t e
aos m e m b r o s das sete igrejas, m a s ela t e m relevância para todos os cristãos e m
t o d o s o s l u g a r e s . P a r a i l u s t r a r isto, c o n s i d e r e m o s u m a d a s m a i s i m p o r t a n t e s
v i s õ e s d e J o ã o , a d o d r a g ã o e as b e s t a s .
U m das mais horripilantes imagens e m Apocalipse é a da m u l h e r m o n t a d a
n u m a b e s t a d e sete c a b e ç a s (17.1 -6). E n q u a n t o a v i s ã o se d e s e n r o l a , e s s a m u l h e r
é nitidamente identificada c o m o R o m a . A s sete cabeças da besta " s ã o sete
montes, nos quais a mulher está sentada" (17.9). R o m a era f a m o s a c o m o a
c i d a d e c o n s t r u í d a s o b r e sete c o l i n a s . A m u l h e r é r e a l m e n t e c h a m a d a " B a b i l ô n i a ,
a g r a n d e " (17.5), m a s os primeiros leitores não teriam n e n h u m a dúvida sobre
sua verdadeira identidade. A s s i m , toda a visão era plena de sentido para eles. A
m e d i d a q u e l i a m as p a l a v r a s d e J o ã o , v i a m a l u x ú r i a d e R o m a , o c o m é r c i o d o
q u a l e l a se n u t r i a , s u a idolatria, a e x p l o r a ç ã o e s s e n c i a l d o s i s t e m a e c o n ô m i c o
q u e ela c o n t r o l a v a — e s u a q u e d a v i n d o u r a .
M a s , se a m u l h e r é R o m a , q u e m o u o q u e é a b e s t a s o b r e a q u a l R o m a se
assenta? Esta m e s m a besta de sete cabeças j á havia aparecido, e m 13.1-10.
J o ã o v ê a b e s t a e r g u e n d o - s e d o m a r , o l u g a r d e c a o s e lar d e t o d a s as f o r ç a s
hostis a D e u s (13.1). Daniel tivera u m a visão de quatro bestas erguendo-se do
m a r (Daniel 7.1-7), que se tornaram representantes de quatro impérios futuros
( D a n i e l 17.17). A b e s t a ú n i c a q u e J o ã o v ê c o m b i n a n u m a só f i g u r a as q u a t r o
características distintivas de cada u m a das bestas de Daniel. Essas bestas-
i m p é r i o s p a r e c i a m - s e r e s p e c t i v a m e n t e c o m u m leão, u m u r s o , u m l e o p a r d o e
150 HOMENS COM UMA MENSAGEM
t e n t a e s q u e c e r seu p r i n c í p i o e s s e n c i a l . D e i x a n d o t o t a l m e n t e d e l a d o a v a r i e d a d e
d e i n t e r p r e t a ç õ e s q u e o s historicistas s u g e r i r a m , a o b j e ç ã o p r i n c i p a l a este m é t o d o
de interpretação é que ele perde de vista tanto a necessidade da igreja c o m o o
Senhor da igreja. O que u m a igreja perseguida necessita não é u m a previsão
d e t a l h a d a d o s e v e n t o s f u t u r o s , a q u a l t e m d e ser l a b o r i o s a m e n t e d e c i f r a d a , m a s
u m a visão de Jesus Cristo para confortar o abatido e animar o cansado.
O propósito de João é prático, não acadêmico. Ele não é apenas u m visionário;
ele é t a m b é m u m pastor. S e u d e s e j o n ã o é o d e s a t i s f a z e r n o s s a c u r i o s i d a d e
s o b r e o f u t u r o , m a s e s t i m u l a r n o s s a f i d e l i d a d e n o p r e s e n t e . E l e repetiu, é v e r d a d e ,
" q u e e m b r e v e d e v e m a c o n t e c e r " (1.1), m a s o f u t u r o que ele antevê está
totalmente e m estreita ligação c o m Jesus Cristo, que está reinando agora c o m o
" s o b e r a n o d o s reis d a t e r r a " (1.5), e q u e b r e v e m e n t e v i r á (1.7). É p a r a E l e q u e
João dirige nossa atenção, não apenas para o futuro. Ele é representado por
uma variedade de formas:
• P r i m e i r o v e m o - l o entre os candeeiros, supervisionando, investigando,
e s t i m u l a n d o as i g r e j a s ( 1 . 1 2 - 2 . 1 ) .
152 HOMENS COM UMA MENSAGEM
Parte do aqueduto
construído para
s u p r i r a antiga
Laodicéia. A água
n e s t a á r e a é rica
em minerais;
depósitos de
calcário p o d e m ser
vistos nas paredes
internas do
aqueduto.
c. Muito embora alguns dos detalhes não sejam "significativos " por si mesmos,
basicamente todas as coisas no livro devem ser olhadas como simbólicas, e
não literais. A l g u m a s c o i s a s s ã o o b v i a m e n t e literais, tais c o m o as r e f e r ê n c i a s
aos nicolaítas (2.6,15) e a p r ó x i m a prisão de alguns dos cristãos de E s m i r n a
(2.10). M a s , se n e n h u m a r e f e r ê n c i a literal f o r ó b v i a , e n t ã o u m s e n t i d o s i m b ó l i c o
d e v e ser b u s c a d o — m e s m o q u a n d o e s t e j a c l a r o q u e u m a c a r a c t e r í s t i c a " l i t e r a l "
da vida na Ásia M e n o r esteja e m mente. Por exemplo, havia u m a indústria
f a r m a c ê u t i c a e m L a o d i c é i a q u e p r o d u z i a u m f a m o s o colírio. M a s , q u a n d o C r i s t o
154 HOMENS COM UMA MENSAGEM
• Capítulos 1-3: A vida da igreja em Cristo. Esta parte é dominada pela visão
d o C r i s t o l e v a n t a d o e g o v e r n a n d o n o c a p í t u l o 1. S u a i g r e j a p o d e ser f r a c a ,
s o f r e d o r a , a t é c o m p l a c e n t e , m a s ela d e s c a n s a e m s u a s m ã o s e E l e m i n i s t r a p a r a
as n e c e s s i d a d e s d e l a .
Números em Apocalipse
Os números são usados simbolicamente em todo sugerindo que a extensão da perseguição é
Apocalipse, principalmente quatro, sete, dez, predeterminada por Deus (2.10). De modo
doze e múltiplos destes. semelhante, os dez chifres e coroas da besta
• Uma vez que há quatro pontos na bússola e (13.1; compare com 17.12) sublinham a
quatro ventos na terra (7.1), o número quatro soberania final de Deus sobre os poderes do mal.
parece representar o universo criado. Os quatro A mesma idéia é transmitida quando outro
"seres viventes" que adoram em volta do trono número é multiplicado por dez. Exemplo:
(4.6-9) parecem simbolizar toda a criação 144.000 (7.4; 14.1) é 12 x 12 x 1.000, e
animada em sua dependência do Criador. claramente representa todo o povo de Deus
redimido de ambos os Testamentos, cuja
• O número sete denota completitude e perfeição,
extensão é exatamente conhecida por Ele. Do
provavelmente porque a história da criação cobre
mesmo modo, os "mil dias" de 20.2-4,7 devem
sete dias no livro de Gênesis. As sete igrejas da
quase certamente ser entendidos para simbolizar
Ásia, portanto, embora históricas, também
um longo e não especificado período, cuja exata
representam a igreja universal. Este simbolismo
extensão é determinada por Deus.
sustenta o ponto de vista de que cada u m dos
• Outro número importante é três e meio, u m
"setes" de Apocalipse apresentam um retrato
período simbólico que João extraiu de Daniel
completo do mundo visto de um "ângulo"
(Daniel 7.25; 9.27; 12.7). Este período pode ser
particular. Ele também sugere a interpretação do
considerado como "três dias e meio" (11.9). "um
"número da besta", em 13.18: 666 indica a total
tempo, tempos, e metade de um tempo" (12.14),
imperfeição, alguma coisa que se esforça para
quarenta e dois meses (11.2; 13.5) e 1.260 dias
parecer perfeita, mas é notoriamente deficiente.
(11.3; 12.6). Se o mês é contado como trinta
• Doze é o número do povo de Deus, porque dias, este período é o mesmo em cada caso. Ele
houve doze tribos no Velho Testamento e doze parece ser a idade da nova aliança, todo o tempo
apóstolos no Novo Testamento. Os vinte e quatro decorrido entre a primeira e a segunda vindas de
anciãos assentados em volta do trono devem Cristo, quando a igreja dá testemunho e é
portanto simbolizar a igreja adoradora de ambos perseguida, sendo confortada e alimentada por
os Testamentos. Este simbolismo figura na Deus em face da grande oposição.
descrição da nova Jerusalém, em 21.12-14.
• O número dez parece indicar o soberano
conhecimento e propósito de Deus. Os cristãos de
Esmirna terão uma "tribulação de dez dias",
d o s i n i m i g o s d a i g r e j a é s e g u i d a p e l a v i s ã o d e s u a d e s t r u i ç ã o . O s selos ( c a p í t u l o s
6 e 7) m e n c i o n a m o q u e D e u s permite neste m u n d o . A s trombetas (capítulos 8-
11) m o s t r a m c o m o D e u s adverte seu m u n d o . A g o r a as t a ç a s ( c a p í t u l o 16)
i n d i c a m c o m o D e u s julga seu m u n d o . D e p o i s a d e s t r u i ç ã o d e R o m a é r e t r a t a d a
( c a p í t u l o 18), s e g u i d a p e l a d e s t r u i ç ã o d o s três i n i m i g o s , n a o r d e m c o n t r á r i a à
o r d e m e m q u e f o r a m a p r e s e n t a d o s n o s c a p í t u l o s 12 e 13.
Leitura adicional
Menos exigente:
John Stott, What Christ Thinks of the Church (Milton Keynes, UK: Word, 1990)—uma
exposição de Apocalipse 2 e 3
Michael Wilcock, The Message of Revelation. I Saw Heaven Opened (Série "The Bible
Speaks Today") (Leicester: IVP, 1975)
Michael Williams, The Power and the Kingdom. Power, Politics and the Book of Rev-
elation (Eastbourne: Monarch, 1989)
índice estilo 7 0
estrutura 70, 7 8 - 8 0
J o ã o Batista 33
J u l g a m e n t o 105
A p o c a l i p s e 141-156 Justificação 92-96
autoria 142-143 Latim, língua
estrutura 154-155
no Evangelho de Marcos 14
interpretação 146-154
Lucas 46-48
Apóstolos, ver Discípulos e nomes individuais
Lucas, Evangelho 46-67
A t o s 59, 61-67
estilo 4 7 - 4 8
estrutura 61-67 estrutura 59-61
Batismo 95 temas 49-67
C o b r a d o r e s de i m p o s t o s 31-32,53-54 M a r c o s 12-24
Cura 51-52
a b a n d o n a P a u l o 16
Discipulado 12,27-28
c a s a m a t e r n a 14
Discípulos
M a r c o s , E v a n g e l h o 12-28
m e d o 16-17
b a s e a d o e m P e d r o 19-20
ver também nomes individuais estilo 21
E d i f i c a ç ã o 100-102 estrutura 2 2
E s p e r a n ç a 137-138 propósito 23-24
Evangelhos t e m a s 12-13
relação entre 13, 29-31, 6 9 - 7 0 Mateus 29-38
ver também nomes individuais conversão 32-34
Fariseus 35, 38 e J o ã o Batista 33
F é 73-77, 117 Mateus, Evangelho 29-45
Filho de D a v i 37 estilo 38
Filho de D e u s 4 2 - 4 4 estrutura 37
Filho d o H o m e m 4 4 - 4 5 temas 39-45
G l o r i f i c a ç ã o 102-105
u s o d o Velho T e s t a m e n t o 36, 3 7
G n o s t i c i s m o 81
M e l q u i s e d e q u e 110-112
H e b r e u s , C a r t a aos 107-118
M e s s i a s 26-27, 36-37, 39
autoria 108
M i s e r i c ó r d i a , ver P e r d ã o
t e m a s 108-118
Mulheres 50-52
Isaías
N u m e r o l o g i a 147, 154
nas epístolas d e P e d r o 136 Oração 56-67
Jesus Paulo 86-106
autoridade 26, 39 c o n v e r s ã o 87-91
c o m o Filho de D a v i 37 e Lucas 48-49
c o m o F i l h o de D e u s 4 2 - 4 4 viagens m i s s i o n á r i a s 6 3 - 6 7
c o m o Filho d o H o m e m 4 4 - 4 5 Paulo, Epístolas 9 1 - 1 0 6
c o m o M e s s i a s p r o m e t i d o 26-27, 36-37, 39 P e d r o 128, 130-134
c o m o rei de Israel 35-36, 4 5 e M a r c o s 19-20
m o r t e 14, 25-27, 44, 112-116, 135-136 seu n o m e 131
s e g u n d a v i n d a 104-105 Pedro, Epístolas 128-140
J o ã o (autor de A p o c a l i p s e ) 1 4 2 - 1 4 3 autoria 128-129
J o ã o (autor do E v a n g e l h o e das epístolas) 68- t e m a s 134-140
72 Perdão 34-35
João, Epístolas 68, 80-85 Pobreza 55
João, E v a n g e l h o 6 8 - 8 0
158 HOMENS COM UMA MENSAGEM
l i » . !STA U N I D A