E-Book - Educação Decolonial e Pedagogia Freireana
E-Book - Educação Decolonial e Pedagogia Freireana
E-Book - Educação Decolonial e Pedagogia Freireana
Organizadores
Walesson Gomes da Silva
Heli Sabino de Oliveira
Copyright 2021 –
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização do
editor ou autores.
Criado no Brasil
Editora Sareré
www.comeniuseducacional.com.br
[email protected]
34.099.458/0001-61
e-ISBN 978-65-994568-4-8 .
10
generizada, territorializada y generacional. Pandemias en las cuales
COVID-19 es una parte estratégica e instrumental.
¿No es todo eso parte del escenario político conservador y de los
desafíos de una educación emancipatoria y decolonial a que el título de este
libro se refiere?
De hecho, es el título del libro que me provoca escribir desde los
sentires, desde los horrores de esos tiempos que estamos viviendo hoy,
horrores y sentidos que permean mi ser, estar y sentí-pensar. Pero también
es mi relación con Paulo Freire, iniciada en los1980s cuando compartimos
espacios intensos de conversa y co-labor en Estados Unidos, espacios
enraizados en pedagogías críticas y en la praxis de reflexionar-pensar-
hacer-accionar transformaciones sociales de conocimiento, existencia,
vida. Para Paulo, la educación no podría ser contemplada fuera de los
contextos y tiempos actuales, las realidades vividas y la profunda
indignación. Me decía que no era lo mismo pensar la acción cultural, la
concientización, la educación como práctica de libertad o la pedagogía del
oprimido desde su experiencia de las décadas de los 60 y 70 en Brasil y
Chile, y pensar con las realidades que fue encontrando después en Guinea
Bissau, Cabo Verde, Europa y Estados Unidos. Eran los hombres y mujeres
en estos contextos, me decía, y especialmente las mujeres que le hacía ver
que la opresión que vivían no era marcada solo por lo económico y social-
cultural sino, y de manera aún más profunda, por el patriarcado y la
racialización. Así me hablaba, con lágrimas en sus ojos, de lo mucho que
tenía que aprender, desaprender y reaprender en este sentido.
Pienso en sus reflexiones que Paulo hacía en los últimos años de su
vida y expresadas en la Pedagogía de la esperanza y la Pedagogía de la
indignación, donde denunció las fuerzas dominantes que generan,
informan y moldean la injustica deshumanizante. Reflexiones que también
dieron centralidad a la digna rabia y su necesaria entretejer con la
esperanza ante la desesperanza y la desesperación. Así escribió sobre la
dinámica dialéctica entre denunciación y anunciación, de la esperanza
como las posibilidades presentes en la rebelión, la lucha y la acción, y en el
hacer de la historia como “hazaña de libertad”. Es allí en esta confluencia
que podemos encontrar algunos de los fundamentos de su pedagogía, una
pedagogía —o pedagogías— praxística(s) de ruptura con el sistema
dominante y de construcción de procesos y prácticas de liberación y
libertad. Una pedagogía y pedagogías que no ofrecían recetas o certezas,
11
sino herramientas para encaminar una otra educación, una educación
enraizada en la existencia, vida y realidad.
Hoy muchxs me preguntan si Paulo podría ser considerado
pedagogo y educador decolonial. Tal vez en este libro lxs lectorxs
encontrarán algunas pistas. Hace casi una década abrí una reflexión al
respecto, argumentando que Paulo, junto con otrxs intelectuales-maestrxs
ya ancestrxs —especialmente Frantz Fanon— “nos dan pautas para ir
tejiendo pedagogías como prácticas accionales y metodologías
imprescindibles para el aprendizaje, desaprendizaje y reaprendizaje
necesarios en encaminar el descolonizar”. 1 Allí hablé tanto de las
contribuciones como de las limitaciones de Paulo, incluyendo el problema
de su enraizamiento —todavía y en su tiempo— en la modernidad
occidental, lo que no le permitió ver su lado oscuro que es la colonialidad
del poder.
Sin embargo, y ante las celebraciones actuales de sus 100 años, no
puedo dejar de imaginar sobre cómo sería el pensar de Paulo hoy.
Sospecho, conociéndole, que Paulo ha seguido muy de cerca los cambios
profundos de las últimas décadas en Abya Yala y las múltiples luchas
decoloniales —indígenas, negras, de mujeres, grupos de LGTBI, entre
otras— que apuntan la dignidad, re-existencia y vida. Y sospecho,
conociéndole, que estos cambios y luchas han venido transformando a su
propia concepción de la opresión, ahora tal vez con miras hacía la
colonialidad.
Por eso, y todo lo dicho aquí, celebro la publicación que usted tiene
en sus manos, una publicación que abre reflexión y consideración sobre las
posibilidades de la educación decolonial y pedagogía freireana y su entre-
tejer en esos tiempos de un escenario político conservador que atenta
contra la existencia y la vida mismas.
Catherine Walsh
Quito, agosto 2021
1
Catherine Walsh, “Introducción. Lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo
caminos”, en Pedagogías decoloniales. Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y
(re)vivir, edit. C.Walsh, 23-68. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013, 62.
12
Prefácio Traduzido
13
extinção dirigida: racializada, sexuada, territorializada e geracional.
Pandemias em que COVID-19 é parte estratégica e instrumental.
Isso não faz parte do cenário político conservador e dos desafios de
uma educação emancipatória e descolonial a que se refere o título deste
livro?
Na verdade, é o título do livro que me faz escrever a partir dos
sentimentos, dos horrores dos tempos que vivemos hoje, horrores e
sentidos que permeiam meu ser, ser e sentir-pensar. Mas é também a
minha relação com Paulo Freire, que se iniciou nos anos 1980 quando
compartilhamos intensos espaços de conversação e colaboração nos
Estados Unidos, espaços enraizados em pedagogias críticas e na práxis de
transformações sociais refletir-pensar-fazer-ativar de conhecimento,
existência, vida. Para Paulo, a educação não poderia ser contemplada fora
dos contextos e tempos atuais, das realidades vividas e da indignação
profunda. Ele me disse que não era a mesma coisa pensar a ação cultural, a
conscientização, a educação como prática de liberdade ou a pedagogia dos
oprimidos a partir de sua experiência dos anos 60 e 70 no Brasil e no Chile,
e pensar com as realidades que ele encontrados então na Guiné-Bissau,
Cabo Verde, Europa e Estados Unidos. Eram os homens e as mulheres
nesses contextos, disse-me ele, e principalmente as mulheres que o fizeram
ver que a opressão que viviam não era marcada apenas pelos aspectos
econômicos e socioculturais, mas, ainda mais profundamente, pelo
patriarcado. e a racialização. Assim ele me falou, com lágrimas nos olhos,
de quanto eu tinha que aprender, desaprender e reaprender nesse sentido.
Penso nas reflexões que Paulo fez nos últimos anos de sua vida e se
expressou na Pedagogia da Esperança e na Pedagogia da Indignação, onde
denunciou as forças dominantes que geram, informam e configuram a
injustiça desumanizante. Reflexões que também deram centralidade à raiva
digna e seu necessário entrelaçamento com a esperança diante da
desesperança e do desespero. Assim, ele escreveu sobre a dinâmica dialética
entre denúncia e anunciação, da esperança como possibilidades presentes
na rebelião, na luta e na ação, e na construção da história como uma
“façanha de liberdade”. É aí nesta confluência que podemos encontrar
alguns dos fundamentos da sua pedagogia, uma pedagogia praxística (ou
pedagogias) de ruptura com o sistema dominante e de construção de
processos e práticas de libertação e liberdade. Uma pedagogia e pedagogias
que não oferecessem receitas nem certezas, mas ferramentas para orientar
14
outra educação, uma educação enraizada na existência, na vida e na
realidade.
Hoje muitas pessoas me perguntam se Paulo poderia ser
considerado um pedagogo e educador descolonial. Talvez neste livro os
leitores encontrem algumas pistas. Há quase uma década comecei a refletir
sobre o assunto, argumentando que Paulo, junto com outros professores-
intelectuais já ancestrais —especialmente Frantz Fanon— “nos dá
diretrizes para tecer gradativamente as pedagogias como práticas de ação e
metodologias essenciais de aprendizagem, desaprendizagem e
reaprendizagem necessárias na descolonização direta ” 2. Lá falei tanto das
contribuições quanto das limitações de Paulo, inclusive do problema de
suas raízes - ainda e em seu tempo - na modernidade ocidental, que não
lhe permitia ver seu lado negro, que é a colonialidade do poder.
Porém, e dadas as atuais comemorações de seus 100 anos, não posso
deixar de imaginar como seria o pensamento de Paulo hoje. Desconfio,
conhecendo-o, que Paulo acompanhou de perto as profundas mudanças
das últimas décadas em Abya Yala e as múltiplas lutas descoloniais -
indígenas, negras, mulheres, grupos LGTBI, entre outros - que apontam
para a dignidade, a reexistência e a vida. E suspeito, conhecendo-o, que
essas mudanças e lutas vêm transformando sua própria concepção de
opressão, agora talvez com vistas à colonialidade.
Por isso, e por tudo o que aqui foi dito, celebro a publicação que você
tem em mãos, uma publicação que abre a reflexão e a consideração sobre
as possibilidades da educação descolonial e da pedagogia freireana e seu
entrelaçamento em tempos de cenário político conservador. que ameaça a
existência e a própria vida.
Catherine Walsh
Quito, agosto 2021
2
Catherine Walsh, “Introdução. O pedagógico e o decolonial: traçando caminhos ”,
em Pedagogías decoloniales. Práticas insurgentes de resistir, (re) existir e (re) viver, editar.
C. Walsh, 23-68. Quito: Edições Abya-Yala, 2013, 62.
15
Prólogo
Parte I
Pensamento freireano em tempos conservadores
3
Grupo Modernidad/colonialidad (1988 - ...):
<https://es.wikipedia.org/wiki/Grupo_modernidad/colonialidad>
4
Proposta Sulear (vs NORTEar): <www.sulear.com.br>. Verbete Sulear na Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sulear . Existe também a revista interdisciplinary sulear.
https://revista.uemg.br/index.php/sulear
16
recorrentemente nos enfrentamentos e problematizações das relações
humanos-mundos-humanos. Nita ressalta que desde muito jovem Paulo
percebia no Brasil contradições e ambiguidades, havendo injustiças de toda
sorte. Nos anos 1930/1940 sentiu que o que mais incomodava aos pobres e
marginalizados era não saber ler e nem escrever. Entendendo esse mal-
estar dos analfabetos, considerava duas fases históricas que se sucederam à
“inauguração” do Brasil em 1500. Até 1850 era uma sociedade fechada,
latifundiária, escravocrata e patriarcal. Com a abolição da escravidão
transitou-se para uma sociedade aberta com a possibilidade de – saindo da
ingenuidade – exercer uma consciência transitiva crítica. Assim, no dizer
de Nita, Paulo arremata nossa história como sendo o seu legado “para ler
os mundos” e, entre todos os existentes na diversidade sociocultural do
País, também o “nosso” que no presente ainda há de ser aberto como um
mundo da boniteza ética, estética, política, da generosidade, da tolerância
e do respeito à dignidade humana.
O Capítulo 2 tem um aspecto peculiar. Depois de eu ter composto
esse prólogo, meus amigos editores Walesson e Heli me surpreenderam
prazerosamente com um convite para que também apresentasse um
capítulo para publicação. Retomei questões tratadas há mais tempo,
atualizando alguns aspectos e referências dentro de um artigo publicado
em 1999 numa revista que não mais existe. Nele discuto elementos da
Proposta SULear (vs NORTEar), procurando nas relações céu-terra e na
parte indesejável de influências que sofremos do eurocentrismo e da
colonialidade, levantar algumas questões e aspectos que nos valorizem no
ato de SULearmo-nos. Usei um recurso musical para indicar certos traços
que nos identificam de forma sulina entre o tango e a MPB, passando
mesmo pelo simbolismo das comparações entre o norte da Europa e os
destinos ao Sol no Mediterrâneo.
No Capítulo 3, Heli e Débora analisam criticamente o Movimento
Escola Sem Partido (MESP) que propõe como dever da escola cuidar
apenas do ensino por transmissão de conteúdo, enquanto as famílias dos
alunos assumem a educação. Essa proposta e sua defesa de neutralidade
representam a antítese da insistência de Paulo Freire para que sempre
ocorra uma relação de diálogo educando-educador nas suas leituras do
mundo (contexto) e da palavra (texto) para a construção do conhecimento.
Autora e autor refletem por argumentos educacionais, filosóficos e
políticos enriquecidos de exemplos contra o absurdo de se exigir uma
17
escola marcada pela “neutralidade”, portanto, apolítica e “sem partido” que
afinal se configuraria, de fato, como escola de partido único.
No capítulo 4, Natalino parte do fato que a Educação Popular é
concomitante às defesas da Educação de Adultos e que exemplos históricos
dos anos 1960 guardam a forte presença de Paulo Freire. Daí é defendida
uma Educação Popular Negra (EPN) como um conjunto de ações
sociopolíticas, educativas, religiosas e culturais que têm sido promovidas
por entidades afro-brasileiras desde o início do século XX e numa visão
antirracista da educação como prática da liberdade. Como construção de
uma agenda de pesquisa na FaE/UFMG e na perspectiva de EPN, visa-se
compreender o modo como os atores sociais mobilizam seus saberes locais
para a valorização da cultura afro-brasileira e africana e como eles próprios
integram os processos de transformação social.
Parte II
Pedagogia freireana como
Práxis Educativa Transformadora
18
integrado às desigualdades de raça, classe e gênero. As autoras estimularam
essas mulheres em classes de EJA pela apresentação de expoentes em dizer
sua negritude através da ‘escrita autobiográfica’ como tão bem fez Carolina
Maria de Jesus. Essa experiência das mulheres negras na EJA permitiu na
alfabetização e no dizer de Paulo Freire (1979), que um dos aspectos mais
importantes fosse conquistado. Ou seja, "aprender a escrever a sua vida,
como autor[a] e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se,
existenciar-se, historicizar-se".
O capítulo 7, Orlando Chemane relaciona Freire e sua ‘Pedagogia do
Oprimido’ com a “pedagogia” associada à ‘Práxis Revolucionária Africana’
(PRA) nas guerras da independência. São duas pedagogias entre Brasil e
África que sofreram com escravidão e colonialismo, afirma o autor que a
PRA tenha se inspirado na pedagogia freireana. As nações se tornaram
independentes sob uma enorme diversidade tribal, cultural e linguística.
Desse modo, restou a dificuldade da construção de estados-nações que nas
transições emprestaram dos colonizadores suas línguas nacionais. Talvez
por isso o autor mencione como dilemas os desafios da práxis
revolucionária para “colaboração, unidade, organização e síntese cultural”.
O apelo a uma “síntese cultural”, talvez seja importante para a construção
de uma nação. No entanto é uma síntese causadora de arrepio nos
antropólogos da moderna antropologia pós evolucionismo social
unilinear.
Djalma e Rafael criticam no capítulo 8 a escola conservadora, não
dialógica e não libertária que tem como tendências vigiar, controlar,
modelar, corrigir, esquadrinhar os corpos dentro de classificações
“normais”. Contra a aceitação de uma escala contínua entre as noções de
masculinidade e feminilidade impõe-se uma rígida dualidade masculino-
feminino juntamente às prescrições de comportamento social “normal” e
dual segundo os preceitos da escola que segue as tradições proibidoras do
livre pensar, atuar e vivenciar. Com isso, negam a pluralidade de gêneros
por terem ‘esquecido o corpo para fora da escola’. Contra isso Djalma e
Rafael recorrem, entre outras, a teorias de Foucault contra o ‘vigiar e punir’
e Bourdieu contra o adestramento pela ideologia dominante. A
necessidade da união inteligível-sensível na escola encontra eco na dupla
de amigos Paulo Freire e Augusto Boal com a pedagogia e o teatro do
oprimido. Nesta inspiração, o teatro pode provocar, perturbar,
desestabilizar e subverter o cotidiano normatizado da escola com
movimentos de rebeldias e assim exercitar um “corpo desacostumado”,
19
imergindo-o em situações fictícias, imaginárias que pode dar lugar a
desaprendisagens – dentro ou fora do teatro - que despertem no cotidiano
da escola outros olhares sobre a educação e a arte, estética e política,
palavras-chave no pensamento de Paulo Freire.
Parte III
Pensamento decolonial e pedagogia freireana:
um diálogo possível
20
de 1927 com a Escola Nova, ainda que com ideais liberais, veio a
preocupação que os alunos tivessem mais capacidade de criação pela união
de inteligência e imaginação. Nessas frentes estiveram Anisio Teixeira,
Fernando de Azevedo e Augusto Rodrigues, este teve importante
influência nas mentes da época através da criação da Escolinha de Arte do
Brasil (1948 – Rio de Janeiro). O texto traz relatos críticos dos retrocessos
pós-1964 e pós- 2019 que têm desprestigiado a educação, a cultura e
fortemente as artes reivindicando ainda o respeito à interculturalidade,
bem-marcado pela lutadora e educadora das artes Ana Mae Barbosa. Ao
final os autores e a autora salientam que “O percurso do ensino de arte e
do ensino da história da arte no Brasil se confunde com o processo de
decolonização dos saberes e das culturas no país.
Parte IV
Paulo Freire e a educação como
prática de liberdade no sistema prisional
21
resistência ao contexto insalubre da prisão e quem sabe, trazer lampejos de
uma educação libertadora almejando a liberdade e sua prática.
No capítulo 12, Walesson, Walter, Victor e Douglas discutem o lazer
numa prisão dos arredores de Belo Horizonte onde, para além do
compulsório, a Associação de Proteção aos Condenados (APAC)
desenvolve atividades de lazer. Em particular, é criada uma academia de
ginástica com autogestão dos apenados. Ainda que autorizada pela direção
do presídio, ocorrem algumas ingerências originadas na velha dicotomia
trabalho-lazer, este último sempre considerado secundariamente.
Distanciamentos como esses do sistema prisional clássico – punitivo,
estigmatizante e acusatório – são de difícil atribuição de valor por
autoridades que junto a “tropas” de ideologias de direita reduzem a pessoa
do apenado aos delitos que cometeu. Aqui o autoritarismo cultiva sempre
o exercício do poder como verbo, nunca como substantivo. Apesar desse
texto de Walesson, Walter, Victor e Douglas trazer valores positivos e
marcar o poder como verbo, os autores lamentam que o discurso social da
APAC não abra espaço pedagógico para desenvolver a sociabilidade dos
sujeitos. Segundo eles, e unidos com Paulo Freire e os apenados seguimos
no esperançar de ação e não de espera passiva pela reinvenção das
liberdades.
Boa leitura!
22
Apresentação
23
acordo com a definição dos sistemas de ensino. Na
prática, com essa determinação, a lei diminuirá as
atuais 2.400 horas que devem ser dedicadas para a
integralização dos conteúdos escolares do Ensino
Médio para um máximo de 1.800 horas, à escolha dos
sistemas de ensino.
24
de meninos e meninas. Por meio de um pânico moral (categoria usada por
Bauman para designar um conjunto de procedimentos adotados por tais
grupos para gerar fobias e ódios em relação às minorias), os conservadores
e fundamentalistas passaram a atuar basicamente em três frentes distintas
e complementares.
A primeira frente é a educação doméstica, popularizada como
homeschooling. A escola, mesmo particular, é um espaço sociocultural,
marcado pela diversidade cultural (DAYRELL, 1995). Ao lidar com o
diferente, com o estranho, as vivências culturais de um determinado grupo,
os indivíduos se descentram, passando a ampliar sua visão de mundo, suas
escalas de valores, bem como seus conceitos e concepções. Assim, os
conservadores que questionam a abertura para a alteridade, para
interculturalidade, passam a defender o direito de as famílias investirem
numa educação doméstica, reconhecida formal e legitimamente pelo
Estado brasileiro. Assim, estudantes oriundos de grupos socialmente
abastados não teriam que aprender a conviver com formas de pensar e de
agir distintos de seus núcleos familiares. Nos lares, com professoras e
professores contratadas/os e controladas/os pelas/os responsáveis legais 5 ,
seus filhos e filhas teriam uma educação segura.
A criação de escolas civil militares é outra reivindicação dos grupos
conservadores e fundamentalistas 6 . O foco dessas escolas é a disciplina e o
respeito às hierarquias. Tendo como referência o pensamento positivista,
sua concepção de educação é tradicional, concebendo o conhecimento
como um conteúdo fixo, abstraído de seu contexto de produção.
5
A institucionalização da escola doméstica é um tema polêmico. A legislação
vigente, lei 9394/96, estabelece que a educação básica deve ser presencial. No entanto,
tais debates já se instalaram nas casas legislativas, conforme se pode constatar na
reportagem a seguir. Disponível em https://cbncuritiba.com/projeto-do-
homeschooling-e-aprovado-em-redacao-final/ acesso em 26 de setembro de 2021.
6
Para Miguel Arroyo, professor emérito da Faculdade de Educação da UFMG, a
criação das escolas civis militares é uma forma de se criminalizar a infância. Disponível
em https://www.cartacapital.com.br/educacao/miguel-arroyo-escolas-militarizadas-
criminalizam-infancias-populares/ acesso em 29 de setembro de 2021.
25
de significados fixos, imóveis e transcendentais
(SILVA, 1999, p. 15).
7
Disponível em https://www.cartacapital.com.br/educacao/miguel-arroyo-
escolas-militarizadas-criminalizam-infancias-populares/ acesso em 26 de setembro
26
sociais quanto nas relações de trocas e nas interações pedagógicas. Dessa
forma, a dimensão política dos saberes escolares se tornará um dos
princípios basilares da formação docente. Tendo como referência Apple
(2007), as/os professoras/es poderão ser desafiadas/os a interrogar sobre o
conhecimento de quem vale mais em uma sociedade de classes, marcada
pela estratificação e pela hierarquização social. Além disso, tal como nos
propõe Freire (1995), os saberes escolares deverão a ser examinados, tendo
como questionamentos os seguintes pontos, a saber: a favor de quê e de
quem? Contra o quê e contra quem os saberes escolares se apresentam nos
materiais didáticos pedagógicos? Em outras palavras, a formação docente
não somente levarão em conta as dimensões técnicas, epistemológicas e
metodológicas dos saberes escolares, mas principalmente, os aspectos
políticos e as relações sociais de poder aos quais estão ligados os saberes
escolares.
Uma educação decolonial se debruça sobre as relações de poder e de
saber, tendo como pando de fundo o conceito de colonialidade. Os
epistemicídios, mortes de saberes considerados subalternos, constituem,
conforme Santos (2006), uma das formas de manter vivo a colonialidade.
Aníbal Quijano (2015) distingue a colonização da antiguidade da
colonização da modernidade. Grosso modo, na antiguidade, a metrópole
buscava espoliar as riquezas das colônias, deixando a colonização do ser e
do saber dos colonizados num segundo plano. Na modernidade, as
metrópoles, com o conceito de cultura e de civilização, procurava colonizar
o ser e o saber dos colonos.
27
Numa educação emancipatória, a pergunta é a base do processo
educativo. O caráter dialógico e problematizador é o eixo estruturante
dessa perspectiva pedagógica, cuja finalidade é a interculturaldiade. De
acordo com Walsh (2001), a interculturalidade significa um processo
dinâmico que envolve permanente relação, comunicação e aprendizagem
entre culturas, considerando legitimidade mútua, simetria e igualdade,
bem como um intercâmbio que se constrói entre pessoas, saberes e práticas
culturalmente diferentes. Para a autora, a interculturalidade requer tanto
espaço de negociação e de tradução, desvelando assimetrias sociais,
econômicas e políticas quanto relações de poder que precisam ser
reconhecidas e confrontadas. “Uma tarefa social e política que interpela ao
conjunto da sociedade, parte de práticas e ações sociais concretas e
conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade e uma
meta a alcançar” (WALSH, 2001, p. 10).
A educação decolonial e a pedagogia freireana não são formas
herméticas de se pensar a educação. Elas não se circunscrevem apenas aos
círculos universitários. Pelo contrário, buscam, antes de tudo, disputar o
senso comum, as formas pelas quais os sujeitos sociais dão inteligibilidades
às suas práticas sociais e culturais. Assim, tais pensamentos procuram se
instalar no cotidiano, nas vivências e na cultura das pessoas.
Dessa maneira, a obra Educação Decolonial e Pedagogia Freireana:
desafios de uma educação emancipatória num cenário político
conservador pretende se constituir como um instrumento de luta, de
resistência aos ataques à educação. Sua principal intenção é criar um
ambiente para se questionar hierarquias, processos de estratificação,
relações de poder que promovem desigualdades e injustiças sociais.
Boa leitura
Heli Sabino de Oliveira
Walesson Gomes da Silva
28
Referências
29
Parte I
Pensamento freireano em tempos conservadores
30
Capítulo 1
“A boniteza de dizer o sim
através do não, em Paulo Freire”
Nita Freire
31
O socialismo não seria uma construção dos indivíduos de determinados
grupos, mas etapas pré-estabelecidas pela “teoria” comunista, pela ditadura
do proletariado.
Paulo desde muito jovem percebeu que o Brasil era um país cheio
de contradições e ambiguidades. De injustiças de toda sorte. Procurou
conhecer a razão de ser de tal fato. Percebeu que o que mais incomodava
aos homens e às mulheres pobres e marginalizados de nosso país (nos anos
1930/1940) era não saber ler e nem escrever. Pesquisou este fato,
radicalmente, e concluiu que estes eram atos próprios dos Homens e das
Mulheres, faziam parte dos seres humanos, isto é, era
um quefazer ontologicamente humano, essencialmente o que caracteriza o
corpo e a condição humana porque foi uma construção coletiva dos
indivíduos, a milênios, que por isso se tornaram seres humanos. Então,
Paulo entendeu esse mal-estar dos analfabetos, a sensação de vazio, de não
ser nada ou de ser apenas uma sombra, um cancro negro ao estudar a
formação da sociedade brasileira, desde seus primeiros momentos, a partir
de 1500. Definiu duas fases históricas bem delineadas e uma de transição:
Situação 1: Desde 1500 até os anos 1850.
Sociedade: “Sociedade fechada”, escravocrata, latifundiária, elitista,
patriarcal, machista (mando total do homem nas escolhas de vida da
esposa, das filhas, que tinham seus maridos escolhidos pelo pai e decidiam
pelos filhos até a idade adulta), exportadora da monocultura (açúcar da
cana para o mercado externo), interditora de produções locais tais como a
cachaça (que era jogada fora na fabricação do açúcar), tecidos, livros,
ausência de escolas etc, prática de torturas contra os escravos e escravas,
separação entre os escravos de diferentes senhores, que a distância entre os
32
latifúndios determinava. Estes quando vendidos nos Mercados de Escravos
eram separados para senhores diferentes indivíduos da mesma família. O
critério de escolha dos escravos era pela perfeição dos dentes e da arcada
dentária, da mesma maneira como faziam para escolher os cavalos a
comprar.
Assim, criaram a Casa Grande, com todo o conforto possível na
época e a Senzala, onde se amontoavam escravos e escravas. A ama-de-
leite, “as que pertenciam ao senhor”, as mais bonitas que o serviam
sexualmente e, eventualmente, aos filhos homens da família, iniciados
desde a puberdade. As crianças surgidas dessas relações eram criadas, na
Casa Grande, pelas esposas do Senhor. As fazedoras dos doces e dos sucos
de frutas e dos quitutes para regalo apenas dos moradores da Casa Grande.
Uma sociedade com tais características determina leituras de mundo
míticas, místicas e fanatizadas. Sem povo, alienada, anti dialógica, sem
mobilidade social vertical ascendente, com negros e negras que eram
proibidos de praticar suas religiões e crença, comandada por uma elite que
lhe nega tudo, tinha, evidentemente, a mentalidade fechada: a consciência
intransitiva da realidade. Sociedade sem experiência democrática ou
como dizia Paulo marcado pela inexperiência democrática. Homens e
Mulheres, quase todos, imersos, adaptados, sem condições de optar e de
deliberar.
Surgem pequenas mudanças: a vinda de europeus para trabalhar o
café, uma mineração incipiente, pequenos núcleos urbanos, algumas
escolas, então a sociedade brasileira rachou-se.
Sociedade em transição entre a sociedade fechada e a sociedade
aberta. Fim das leis escravagistas. A Família Real se transfere para o Rio de
33
Janeiro, e, logo no 1º lugar de atracação, em Salvador, a Coroa “Abre os
Portos para as Nações Amigas”, gesto sutil para recolher impostos. Surgem
escolas e institutos de pesquisas. Crescem as cidades e os empregos urbanos
e o novo tipo de pensar, uma nova leitura do mundo mesmo que sem
criticidade. É um tempo anunciador do novo. Do saber que surge com o
desenvolvimento econômico, agrícola e industrial. Do automóvel, das
ferrovias e das estradas que surgem depois da II Guerra Mundial. Homens
e Mulheres passam a ter Consciência transitiva ingênua, pois estão
emergindo da sociedade fechada, ainda sem a capacidade crítica, presos aos
slogans, aos discursos prontos sem nenhuma reflexão.
Situação 2. Meados dos anos 1950:
Sociedade aberta. Os homens se inserem nela, não mais se adequam
ou se adaptam. Adquirem capacidade de mudar. Alguns emergem
completamente, criam condições, através dos estudos sistemáticos,
passaram a ter consciência transitiva crítica. Conhece as ciências, a
filosofia, as religiões e as artes. Desenvolve tecnologias de alta
complexidade tanto no setor da saúde quanto no setor industrial e
bancário. Viajaram até a LUA e preparam incursões mais ousadas para
breve. Tem pretensões de vida com o máximo de bem-estar social.
Aumenta consideravelmente sua taxa de anos de vida e diminuiu
grandemente a taxa de morte dos recém-nascidos. Passa a comer com
critérios para ter boa saúde, mas nos últimos anos com as mulheres
também trabalhando fora de casa elas e os homens da família fazem
refeições fugazes fora de casa sem se preocuparem com a obesidade e outras
comorbidades.
Conclusão: o estudo parte da situação de nossa sociedade com a
chegada do homem branco no nosso território, sem levar em conta a
34
população nativa, que ocupava todos os espaços da nação. Paulo, com sua
imensa sabedoria, vai fazendo seu discurso contínuo como se fora apenas
uma narração sequencial, mas, na realidade ele vai dizendo o sim (o que
ele acreditava) através do não (o que ele repudiava e combatia), e
o não através do sim. Na 1ª parte ele denuncia uma sociedade sórdida,
malvada e sem compaixão, fechada, que anunciava um novo que viria. Diz
sem palavras condenatórias, mas com suficiente linguagem humanista nas
linhas e entrelinhas as suas denúncias. Arremata a história brasileira como
um legado seu “para ler os mundos”: a leitura de mundo aberto que poderia
ser o mundo da boniteza ética, estética, política, da generosidade, da
tolerância e do respeito à dignidade humana, em contraposição, ao mundo
fechado sem diálogo, sem ter o Tu como o Não-Eu com o qual dividiria o
mundo da beleza, do respeito e da solidariedade. Estes dois mundos estão
descritos nas situações 2 e 1. No 2 o mundo que poderia ser,
hipoteticamente, de felicidade se os H e as M transformassem a si mesmos
em Seres Mais. Viveríamos as utopias e os sonhos possíveis da Boniteza.
Da Boniteza da vida, do amor de ser amada e amar, de amar a natureza
respeitando-a e cultivando-a. No mundo 1, que descreve a real realidade
brasileira, sequer há possibilidades de sonhar os inéditos viáveis, porque
seus indivíduos da elite sempre impõem a condição de Seres Menos aos
que deveriam ser seus pares.
É preciso que saibamos que este status é possível pela capacidade de
Paulo pensar dialeticamente, nunca como uma série de fatos e eventos que
tem o processo caminhando num só sentido (unívoco), mas, ao contrário,
como um processo biunívoco, que gera uma linguagem ímpar de beleza,
de poeticidade, de uma certa certeza, de rigor e de BONITEZA autêntica.
Nita Freire, fim de tarde de 17 de março de 2021.
35
Capítulo 2
SULear vs NORTEar: Representações e apropriações
do espaço entre emoção, empiria e ideologia II 8
Oswald de Andrade
Introdução
8
CAMPOS, M. D., "SULear vs NORTEar: Representações e apropriações do espaço
entre emoção, empiria e ideologia ", Documenta, VI, No 8, Programa de Mestrado e
Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social & (EICOS)/Cátedra
UNESCO de Desenvolvimento Durável/UFRJ, Rio de Janeiro, 1999. pp. 41-70.
9
<[email protected]>; <www.sulear.com.br>;
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Sulear>
10
Sobre SULear e Paulo Freire, ver
36
"Lugares do Sul" de frente para o Norte
11
(FREIRE e CAMPOS, 1992)
37
chegam a Florianópolis (SC), enquanto europeus, a partir de junho buscam
no sul do continente o Sol das praias do Mediterrâneo. De todo modo a
digressão referente a sul e norte nos casos particulares carioca e portenho
tem apenas um aspecto de curiosidade, sem que possamos levantar
quaisquer conclusões ou regras marcadas por algum determinismo
geográfico 12, cujas ideias difundiram-se entre os séculos 19 e 20 antes de
serem bastante criticadas.
Por um ponto de vista mais geográfico e até mesmo geopolítico,
consideremos que mercadorias, conceitos e regras "práticas" relativas a
noções de espaço são exportadas do Hemisfério Norte para o Sul, e aceitas
mesmo que não sejam apropriadas aos nossos locais de vida. Esse é o caso
do ensino de orientação espacial via pontos cardeais, no qual o Sul é
renitente em tomar por convenção preferencial a direção norte. Nesse caso,
mesmo que todas as evidências demonstrem que a estrela Polar não pode
ser vista do Hemisfério Sul regras práticas de orientação aqui ensinadas
parecem ter crença no contrário, o que torna as noções de espaço muito
mal compreendidas e assimiladas no nosso hemisfério. A análise desse
problema é rica de reflexões de caráter extremamente interdisciplinar,
além de proporcionar interessantes desdobramentos inesperados. É
notável, por exemplo, a presença da conotação ideológica nessa
inapropriada referência ao Norte com os quais carregamos o germe da
dominação e as marcas do período colonial, algumas delas manifestando-
se sob formas renovadas até hoje. Este germe explicita-se com frequência
nas oposições do tipo: Norte/Sul, acima/abaixo, subir/descer,
superior/inferior, central/periférico, desenvolvido/em desenvolvimento e
mesmo Oriente/Ocidente em menor grau e marcado por casos mais
específicos.
Mario Benedetti (1986), intelectual uruguaio com uma diversificada
produção literária, nos dá o mote para toda essa reflexão e ilustra bem as
oposições N/S no poema "El Sur También Existe" (quadro 1), também
cantado, entre outros, pelo catalão Juan Manuel Serrat 13 e recitado em
38
português por Demétrio Xavier 14. As antinomias Norte/Sul e
"arriba/abajo" 15 complementam-se com sarcasmo e ironia como na
referência à "Escola de Chicago" e sugerem de forma clara o caráter
ideológico dos referenciais 16 do Norte quando importados para um uso
não apropriado no Sul.
14
O Sul Também Existe (M. Benedetti) poema – Tradução e leitura por Demétrio
Xavier. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=sLLdw5btNGc>. Acesso em
5 out. 2021.
15
Matematicamente, essa correlação pode ser formalizada usando-se as duas
notações de razões e proporções: (N/S) = (acima/abaixo) ou N : S :: acima : abaixo . Nos
dos casos podemos ler, juntando alguma interpretação: O Norte está para o Sul, assim
como o superior está para o inferior.
16
A ideia de referencial (referência + al, onde –al significa pertinência) é fundamental
nessa discussão onde a utilizamos como o "lugar", o ponto de "vista" de onde se percebe
ou se interpreta ou se lê o referente (em semiologia: aquilo que o signo designa;
contexto). Subjetividade e reflexividade são importantes características de nossa relação
com o contexto. Destacam-se, entre os significados de referencial: 1. "o que constitui
referência ou que a contém"; 2. "relativo a". 3. sistema em relação ao qual são
especificadas coordenadas espaciais e temporais de eventos, ou seja, o sistema de
referência ou sistema de coordenadas. Com uma associação dos sentidos 2 e 3, tem-se
à ideia da relatividade dos referencias. Entre as funções da linguagem (características de
um enunciado linguístico), a função referencial é aquela "na qual predominam as
mensagens centradas no referente ou contexto". A função referencial é também
denominada função denotativa ou função cognitiva. (FERREIRA, 1975, 1996).
39
Quadro 1
Mario Benedetti
40
A marca da superioridade do Norte é também encontrada nos
globos terrestres que são fabricados em bases de apoio de onde o eixo polar
aponta para Norte e para o alto, qualquer que seja o hemisfério ou o local
em que estejamos. Isso traz muita confusão entre os conceitos de 'plano do
horizonte tangente a um ponto do globo' e o de 'vertical de um lugar' –
perpendicular, ou melhor, a normal a um desses pontos do plano
horizontal que aponta para o centro da Terra. Apesar dessas confusões,
todos sabemos que qualquer pedra jogada para a alto – seja no Brasil, seja
no Japão – cairá sempre para baixo na mesma direção vertical do "fio de
prumo": instrumento usado pelos pedreiros para determinar a vertical de
um lugar.
Globos terrestres devem ser observados como se fossemos
astronautas – observadores a partir de um referencial fora da atmosfera
terrestre. Nesse caso, não existe nem acima nem abaixo, a atração
gravitacional terrestre é quase nula e o observador não pesa, "flutua" no
espaço. No entanto, o próprio astronauta exerce, ainda que pouca pela sua
massa, alguma gravitação.
As subjetividades das relações N/S, aliadas ao fato de que o que é
percebido, depende "de onde" se percebe explicita a relatividade dos
referenciais de forma concreta e subjetiva, ilustrada pela análise de uma
composição e interpretação de Ricardo Arjona. Sendo ele um guatemalteco
que circula pelo México, suas atividades preponderantes ocorrem
próximas da latitude de 20oN, portanto no hemisfério norte pouco ao sul
do Trópico do Câncer (23o1/2N) 17. Um de seus discos leva o título de uma
das músicas, escrita em San Juan de Puerto Rico (1995): "Si el Norte fuera
el Sur" 18. Ao contrário das bússolas convencionais que põem o Norte em
destaque, o disco é ilustrado por uma bússola antiga com uma seta que
salienta a direção Sul para cima. No dizer do próprio autor: "Este disco tiene
influencia de Caribe, a donde me escapé huyendo de lo establecido. Tiene
sabor a vino, tequila y resaca. Tiene amores que mueren. Tiene brújulas
locas. Tiene olor a tabaco. Tiene historias, cuentos, anécdotas, sueños. Tiene
hambre de fuga, quiere irse y quedarse. (...)"
17
Quase simetricamente, o Rio de Janeiro fica na latitude 22o 54' S a partir da linha
do Equador (latitude 0o) está ao Norte do Trópico de Capricórnio (22o 27' S).
18
Ricardo Arjona, “Si el Norte fuera el Sur”, CD, CDPL 485254, Columbia, (Sony Music),
México. A letra e a gravação estão disponíveis em <https://www.letras.mus.br/arjona-
ricardo/2160/>. Acesso em 5 out. 2021.
41
Na letra da música, permanece a antinomia N/S como se verifica no
estribilho:
19
Esta linha passa pelo Equador e muito próxima do marco zero de Quito (Lat.:
0°13′47″ S; Long.: 78°31′29″). No entanto foi a linha que deu nome ao país. O nome da linha
deriva do latim medieval aequator que por sua vez, origina-se de aequare (igual). A frase
latina “circulus aequator diei et noctis” significa 'círculo que equaliza dia e noite', da
palavra latina aequare que significa igual. Por isso equinócio corresponde aos dois
momentos nos quais o Sol atravessa a linha do Equador para prover os verões
respectivos e opostos no tempo dos dois hemisférios.
42
Esses nomes aparecem como na página de um caderno sobre a mesa cujo
texto de fato apresenta nesse caso, quatro lados perpendiculares, todos no
mesmo plano horizontal. Por referência ao nosso corpo e por um certo
abuso de linguagem, associa-se aos dois dos lados à nossa frente
respectivamente, os lados de baixo e do alto da página. Tanto o caderno
quanto um livro, só apresentam seu alto e baixo se depositados
verticalmente numa estante. Ao ver um texto convencional superposto a
um mapa sobre uma mesa, surge a ideia absurda, de que possa existir uma
"vertical" Norte-Sul sobre um plano horizontal, a qual não mais se dirigiria
para o centro da Terra. Um exemplo decorrente é que com frequência,
ouvimos de pessoas que se deslocam entre Porto Alegre e Rio de Janeiro e
vice-versa, dizerem que vão subir para o Rio ou descer para Poá.
É interessante notar o modo como nos referimos aos termos planta
e mapa. Por um lado, denominamos planta ou carta aos artefatos usados
para nossa orientação nas casas, na cidade ou no mar. Por outro lado, em
maiores escalas usamos mapa para designar as mesmas coisas, salvo que as
cidades estão agora representadas por pontos sem dimensão. Embora só
importe aqui a mudança de escala enquanto conceito unificador, reserva-
se plano ou carta para uma cidade com ruas representadas em diferentes
sentidos com seus nomes correspondentes escritos "desordenadamente"
em todos os sentidos das ruas., Nos servimos destes no plano horizontal
dentro dos carros, mesas e pranchetas, alinhando-os com uma rua
conhecida para nos orientarmos. Se a escala aumenta, casas desaparecem e
cidades viram pontos desaparecendo a prática de orientação na cidade;
ocorreu a descontinuidade socialmente construída entre, por um lado,
carta ou planta e por outro, mapa. Aí está uma descontinuidade aparente
quando a planta "vira" mapa e o texto ordenado com em cima e em baixo
análogos a norte e sul vai para o plano vertical na parede com o Norte no
lado de cima. Nesse caso, a utilidade do mapa se enfraqueceu e com ela
vários outros conceitos importantes também. Mapas e plantas são
representações no plano horizontal. Paredes são lugares impróprios para o
uso dos mapas que só reforçam a prevalência do Norte, a contradição entre
horizonte e vertical de um lugar, portanto um e um absurdo geográfico,
além da inutilidade de uma bússola que só funciona na horizontal.
Quando conscientemente construímos nossas representações e
referenciais locais, há conflitos frequentes com a aceitação indiscriminada
de importações estranhas aos contextos socioculturais locais em que essas
importações se instalam. Isso ocorre quando nos furtamos a conferir o que
43
é importado a fim de verificar se as novas representações simbólicas são
coerentes com o contexto de vida local e consequentemente, à produção
material e simbólica própria do lugar. Vários conflitos ocorrem entre
fenômenos naturais e sociais, seus dados ou indícios 20 e conceitos por
vezes importados. Numa visão esquemática de um sistema de dupla
entrada e saída, a figura 1 ilustra essa questão. Nela, o ser humano é o
mediador, — a partir de seus saberes, técnicas e práticas locais — da
operação de contextualização: articulação e apropriação dos dados e
representações simbólicas que entram no sistema. Por exemplo, o Norte
para cima nos mapas e globos, entrou no Hemisfério Sul como
representação simbólica e não se contextualizou na relação com os dados e
indícios do contexto local. Permaneceu símbolo, enquanto no Hemisfério
Norte essa representação, além de simbólica, é também conceitual e,
portanto, passível de ser utilizada na prática.
Figura 1
SER HUMANO
REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS
20
A noção de indício e de grande importância para essa discussão e sobretudo para
considerações interdisciplinares de relaxamento de fronteiras entre ciências naturais e
sociais e da, por vezes, tênue fronteira entre evidência empírica e indício que a elas se
associa respectivamente. Ver a excelente discussão de Carlo Guinsburg (1989: p. 143-179)
em "Sinais: Raízes de um paradigma indiciário".
44
Nessas discussões, a consciência da situação histórica, geográfica e
sociocultural em geral, é fundamental para a construção do conhecimento
no ato de conhecer ou sobretudo das problematizações subsequentes ao
longo da vida como nos propõe Paulo Freire 21. Negligências sistemáticas
ou ocasionais de contextualização podem trazer bloqueios e impasses
importantes na construção de saberes, ainda que em práticas das mais
corriqueiras e cotidianas. Em especial para a vida, e para pesquisa e
educação, a diversidade de contextos socioculturais exige muita
flexibilidade interdisciplinar e alguma especialização. De fato, essa
flexibilidade requer um bom jogo de cintura no manuseio dos feudos da
academia e da compartimentação das disciplinas - muitas vezes traduzível
em exercícios de poder. É necessária muita prontidão com respeito à
dialogicidade e aos enfrentamentos dos ‘obstáculos epistemológicos’
(Bachelard), das ‘situações limites’ e do ‘inédito viável’ (FREIRE, 1981;
CAMPOS, 2021, p. 212-226) com que nos deparamos 22.
Em nossas práticas, servimo-nos ou criamos recursos sempre
limitados (entrevistas, diálogos, modelos, artefatos, representações), para
interpretar e traduzir/expressar as realidades pesquisadas. Por sinal,
algumas dessas limitações já apareceram nas considerações sobre mapas e
globos. Esses recursos devem estar atrelados a uma escolha criteriosa das
disjunções metodológicas do tipo biológico/social, individual/social ou
observador/observado 23 que utilizamos no exercício da pesquisa.
Essa constante tensão sob a qual exercemos atividades de pesquisa
no interior das antinomias e disjunções metodológicas, se manifesta de
várias formas e entre vários autores como: representações
individuais/representações coletivas (Mauss,1924), determinações
técnicas/determinações mentais (Descola,1986:2), natureza/cultura e
cultura/culturas (Leach,1985:67-135), tempo/espaço (Leach,1978:43-46;
21
Ver ‘Da leitura do mundo à leitura da palavra e subsequentes releituras’ e ‘A
problematização e a boniteza do ato de educar’ (CAMPOS, 2021, p. 208-212).
22
Para os conceitos dialogicidade, obstáculo epistemológico e paradigma, ver
respectivamente, Paulo Freire (1981), Bachelard (1970) e Kuhn (1964).
23
Nessa antinomia que parece sugerir um observador distante e neutro em relação
ao observado, vale mencionar um conceito originário da física, o de "participador". Ele nos
permite refletir sobre 'pesquisa participante' em ciências sociais da mesma forma que na
física do microcosmo que se constituiu a partir do século XX. Nela, observador, materiais,
métodos e objeto de estudo, encontram-se tão interrelacionados que segundo o físico J.
A Wheeler, "para descrever o que aconteceu tem-se que abandonar a palavra ''observador'
e substituí-la pela nova palavra 'participador'. Em certo sentido, o universo é um universo
participatório" (The Phisicist's conception of Nature, J. A. MEHRA (ed.), Dorbrecht
(Holland), D. Reidel, 1973).
45
61-66), sincronia / diacronia (Cardoso de Oliveira,1988:13-25), espírito
científico/espirito pré-científico e simetria/assimetria (Latour,1983), estar
lá/escrever aqui (Geertz,1989). Como diria Edmond Leach, muitas vezes
elas não se separam por fronteiras rígidas, mas por interseções de
ambiguidade sujeitas a tabu entre zonas normais de espaço-tempo social
(Leach,1978:45).
Seguindo o curso inspirado por Benedetti que nos atenta com
clareza para o sentido nada ingênuo dos pontos e sentidos cardeais,
aproveitemos os conteúdos ideológicos e históricos representados nas
antinomias Norte/Sul para uma reflexão que transcende a escrita e leitura
dos textos alfabéticos e numéricos convencionais. Atentemos para outras
escritas e leituras do mundo que por vezes aceitamos sob formas ingênuas
de apropriação do que pode parecer óbvio 24 sem problematizar e procurar
o que há de conceitual por trás das representações simbólicas que entram
no esquema da figura 1. Após uma reflexão sobre essas questões,
passaremos a uma discussão mais específica sobre os pontos cardeais e a
seguir sobre as buscas de lugares ao Sol entre os dois hemisférios.
Ainda que não pertença à comunidade dos especialistas em
linguagem, ousarei discutir alguns atos não convencionais de leitura e de
escrita. Como um aparente paradoxo, considero esses atos, não só referidos
à chamada "sociedade ocidental de tradição científica", mas também a
outras culturas e populações que em nossa pulsão de classificação 25
denominamos como “ágrafas”.
Muitas vezes - além da leitura de texto escrito, alfabético - o que
percebemos ao nosso redor é lido com o auxílio de nossos sentidos e
gravado em nossa memória. Fenômenos são como que emitidos a partir de
espaços, tanto construídos pelo ser humano como constitutivos do
ambiente natural. Em nossas interações que incluem práticas e
transformações da estabilidade de lugares em espaços que sempre são
construídos socialmente, manifestam-se processos nos quais leituras,
24
Ver discussão sobre “O óbvio que não foi pensado” (CAMPOS, 2021, p. 74).
25
Ver a ironia ao nosso desejo compulsivo de classificação em Jorge Luis BORGES,
“El idioma analítico de John Wilkins”, in Otras Inquisisiones, in Jorge Luis Borges, obras
completas, 1923-1972, pp. 706-709, Buenos Aires, Emecé, 1974. Esse texto gerou
importantes análises críticas referindo-se às classificações como forma de exercício de
poder como bem resume o prefácio de Michel Foucault, As Palavras e as Coisas: uma
Arqueologia das Ciências Humanas, São Paulo, Martins Fontes, 1992. Para uma
discussão complementar com aspectos das relações céu-terra, ver o capítulo “VI.
Relações homem/natureza entre céu e terra: uma dinâmica maior do que o jogo das
regras classificatórias” (CAMPOS, 1995, p. 33-51).
46
desejos, pensamentos e escritas representam-se sob formas as mais
variadas, indo de escritas alfabéticas e numéricas convencionais até uma
vastíssima gama de modos pelos quais os humanos marcam a sua presença
pelas formas de inscrever no mundo. São grafitagens, construções,
comportamentos animais e humanos, rituais, ornamentos, obras de arte,
arquitetura e muitas outras. Esses elementos são, portanto, alternativas de
escrita que nos desafiam a desenvolver uma capacidade diversificada de
leitura do mundo 26 num jogo incessante do individual e do social entre
eventos, signos, significados e simbolizações. Segundo Michel De Certeau
(1990, p. 173):
26
Freire e Campos (1991).
27
Tradução livre do autor.
28
Ver nota 77.
47
representa extrema concordância e satisfação dos indianos. Nós, por outro
lado, o lemos como rejeição ou negação. A noção de sistema de
coordenadas ou de referencial como um ponto de vista ou sistema de onde
se observa, toma uma conotação bastante subjetiva em função do contexto
cultural onde ocorre. Por exemplo, o abano de cabeça de concordância dos
indianos carrega um código de comportamento distinto do nosso,
marcando assim um modo cultural diferente para se expressar.
Para que um encontro dialógico entre indivíduos de duas culturas
distintas se realize pode ser necessário estabelecer alguns ajustes como, por
exemplo, decidir a língua a ser falada como também, ao longo do diálogo,
haver formas de traduzir mutuamente as peculiaridades de inscrição e
leitura nos, e dos, mundos de cada um dos interlocutores. Poderíamos
denominar esses momentos como ajustes dos referenciais mútuos para o
diálogo.
Dos pontos de vista nos diálogos interpessoais, possemos agora a
uma escala maior de relações entre continentes, nações, suas respectivas
partes ou até entre os Hemisférios Norte e Sul. Estas relações abrangem um
vasto domínio de referenciais de análise que vão das relações hemisféricas,
geopolíticas, econômicas e socioculturais envolvendo também as
polarizações entre dominador/subalterno, rico/pobre,
colonialista/colonizado, colonialidade/ decolonialidade 29
29
Ainda que a era do colonialismo se limite ao período anterior à independência das
colônias, a colonialidade liga naquele período o vínculo com o presente no qual
permaneceram como que “arraigados aqui no peito” os sentimentos das memórias
individuais e sociais vivenciadas e hoje acrescidas do peso das formas modernas do
neocolonialismo com certo apoio no moderno neoliberalismo que intensifica a
desigualdade. É exercida uma colonialidade do poder, do saber e do ser que “opera
através da naturalização de certos padrões nas relações de poder e da naturalização de
hierarquias raciais, culturais, territoriais, de gênero e epistêmicas.” Dessa forma, apesar
dos movimentos decoloniais, a colonialidade subalterniza certos grupos de seres
humanos garantindo sua dominação, exploração e ignorando seus conhecimentos e
experiências.” Ver o verbete ‘colonialidade’ disponível em <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Colonialidade>. Acesso em 4 out. 2021.
48
SULear vs NORTEar
nortear
verbo transitivo direto
1. encaminhar em direção ao norte
Ex.: n. uma embarcação
Verbo transitivo direto e pronominal
2. Derivação: sentido figurado.
guiar(-se) numa dada direção moral, intelectual etc.; orientar(-
se), regular(-se)
Ex.: <a ambição profissional norteia todas as suas iniciativas> <norteia-
se na vida pelos ensinamentos paternos>
49
Por analogia com a estrela guia do Norte, no Sul a guia noturna
consagrada é a constelação do Cruzeiro do Sul com a qual o processo para
nos guiarmos não é tão imediato quanto o do Norte, mas ainda bastante
simples30.
Justamente, se o processo é o de nos guiarmos no Sul com tudo o
que isso envolve de um ponto de vista da educação básica, assim como
geopolítico, moral e intelectual, importa para o Hemisfério Sul que
tenhamos um termo apropriado ao contexto na qual vivemos. Por isso
criamos em 1991 o termo SULear para no Sul, nos guiarmos SULeados
(CAMPOS, 2019). Esse assunto será tratado com alguns detalhes mais
adiante.
Vamos trabalhar no que se segue algumas características particulares
de processos, registros e da empiria ligada às relações céu-terra diurnas ou
noturnas no Hemisfério Sul.
No Templo do Sol em Cuzco os Incas marcaram quatro direções
principais que separam os quadrantes denominados "suyus", sendo aqui o
quadrante que se assemelha ao nosso sudeste o que mais nos interessa. Das
quatro direções, três apontam para pontos do horizonte que coincidem
com os nossos três pontos cardeais norte, leste e oeste. A quarta direção
principal não aponta para o sul e contraria assim o nosso apego a simetrias
apontando para um ângulo (nesse caso um azimute) de cerca de 146o a
partir do sentido norte (Figura 2).
Gary Urton (1972), antropólogo americano que pesquisa relações
céu–terra entre populações atuais Quíchua descendentes dos Incas
interpreta os alinhamentos desses “pontos cardeais” como mostra a figura
2. A mudança do angulo de azimute ao longo do tempo se deve a um dos
movimentos da Terra, a Precessão dos Equinócios. Collasuyu (SE) e
Cuntisuyu (SW) são as denominações quíchua dos dois quadrantes
desiguais do lado Sul. O cálculo de Urton da variação no tempo do azimute
na parte sul do quadrante parece sugerir que o valor de 146° por ele medido
no local corresponde à construção do Templo do Sol entre 500 e 1.000 anos
A.C. Este é um método interessante para obter a data de construção de
prédios ou monumentos que contenham alinhamentos de astros
convenientes para esse tipo de datação.
30
Ver ‘SULear: uma nova leitura do mundo’, disponível em
<https://sulear.com.br/beta3/ >. Acesso em 5 out. 2021.
50
Figura 2
N
146 o
W L
51
do círculo meridiano (N-S) da esfera celeste31. Em regiões intertropicais, o
Sol do meio-dia passa “a pino”, ou seja, na vertical do lugar que “fura” o
céu no ponto Zênite, apenas duas vezes por ano. É apenas duas vezes ao
ano na região intertropical, e não todos os dias, que se “pisa na própria
sombra” ao meio-dia solar.
No horizonte do Hemisfério Sul, ao se aproximar o inverno, o Sol
vai sendo percebido a cada dia mais baixo para os lados do Hemisfério
Norte que recebe o verão a partir de junho. Enquanto isso, no Sul vai se
aproximando o inverno. Os pontos extremos do percurso do Sol entre os
dois solstícios são os Trópicos de Capricórnio e Câncer, respectivamente a
23o27' de latitudes S e N. Por isso mesmo que nas regiões temperadas não
ocorre o “Sol a pino”.
Nesse movimento cíclico anual, se observarmos o Sol a partir da
latitude de Cuzco, os 13o31'S, são pequenos o suficiente para, numa
observação a olho nu do Sol no “alto” do céu, não se perceber tanta
diferença entre as posições do Sol de meio-dia acima Cuzco e acima do
Equador quando por ele passa o Sol nos equinócios de março e setembro.
Por outro lado, os poucos 10°S até o Trópico de Capricórnio não mostram
um Sol tão baixo assim visado na direção sul ao meio-dia. Bastante baixo
no meio-dia, aí sim, ele estará no final de junho quando ocorre o início do
verão do Norte. Logo, entre o nascente e o poente, a inclinação mais
marcante é a do Sol para o Norte no do inverno do Sul. Não sendo
marcantes esses fenômenos solares na direção sul, os Quichua optaram por
um fenômeno estela, portanto, noturno.
Aqui aparece a consciência dos povos Quíchua a respeito dos
fenômenos observáveis no seu horizonte. Como, grosso modo, o Sol não
se desloca muito visivelmente para o sul ao meio-dia, aquela quarta direção
assimétrica para o lado sul no Templo do Sol toma importância e se refere
ao céu noturno. A constelação do Cruzeiro do Sul tem a estrela mais
brilhante “aos pés da cruz” que é α, Cruxis ou Estrela de Magalhães que
repetidamente nasce numa direção que faz aproximadamente um ângulo
(azimute) de 146° a partir da direção norte no sentido horário. Pelo menos
nascia a um azimute de 146° na época da construção do Templo do Sol.
É uma característica muito frequente em populações indígenas e
rurais mais afastadas dos grandes centros, a atenção desenvolvida para os
31
Sobre ‘A esfera celeste’, ver nota do Instituto Astronômico e Geofísico (IAG-USP):
disponível em <http://astro.if.ufrgs.br/esf.htm>. Acesso em 5 out. 2021.
52
fenômenos à sua volta e o modo como estes se integram num sistema de
saberes e práticas coerente com os fenômenos próprios daquele ambiente
e com os modos de vida e produção locais. No Templo do Sol, os Quíchua
representaram simbolicamente o que de fato é observado em seu ambiente.
Vê-se que, segundo o sistema da figura 1 a mediação entre dados locais e
as representações simbólicas foi realizada e o sistema de orientação é de
fato contextualizado. As representações simbólicas estão também
impregnadas de representações conceituais.
Entre o símbolo e o conceito, Dan Sperber elabora várias perguntas
e indica algumas linhas de reflexão interessantes em O Simbolismo em
Geral (1978 [1974]), ampliando-as para uma discussão das taxinomias
zoológicas no artigo “Porque os animais perfeitos, os híbridos e os
monstros são bons para pensar simbolicamente?” (1975). Sua discussão
sugere uma reelaboração da nossa figura 1 nas considerações seguintes
sobre as representações corporais dos pontos cardeais. Sperber considera a
simbolicidade como não sendo uma propriedade dos objetos ou dos
enunciados, mas sim das ‘representações conceituais’ que os descrevem e
os interpretam. A representação conceitual caracteriza-se por dois
conjuntos de proposições, um descreve uma informação nova, o outro
estabelece ligação entre aquela e o saber previamente adquirido. Se essa
ligação não se faz, a representação conceitual defeituosa que falhou em
tornar assimilável seu objeto, é "posta entre aspas pelo acionamento do
dispositivo simbólico " e torna-se por sua vez, objeto de uma segunda
representação: a representação simbólica (1975:5). 32
32
Para tentar esclarecer os questionamentos de Sperber (1975), vale extrair alguns
trechos de seu livro (1974). Sperber considera que o conhecimento cultural mais
interessante é o “conhecimento tácito” –o que não é explicitado, onde os dados
fundamentais são os da intuição. Este, se explicitado pelos que o possuem, torna-se
‘conhecimento implícito’. Se há incapacidade de explicitá-lo será então o 'conhecimento
inconsciente’. Sperber e defende que a representação simbólica se apoia sobre um
conhecimento implícito e obedece a regras inconscientes.
“Uma representação conceitual compreende, portanto, dois conjuntos de proposições:
proposições focais, que descrevem a nova informação; proposições auxiliares, que
formam o elo entre a informação nova e a memória enciclopédica. Se umas fracassam
na descrição, e as outras malogram em formar esse elo, a informação nova não pode ser
integrada ao conhecimento adquirido”.
Embora pareça que a representação conceitual possa ser rejeitada por não tornar uma
informação nova assimilável à memória, a própria representação conceitual torna-se
objeto possível de uma segunda representação: “o dispositivo conceitual jamais trabalha
em vão; quando uma representação fracassa em estabelecer a pertinência de seu objeto,
ela própria se torna objeto de uma segunda representação. Esta segunda representação
não nasce mais do dispositivo conceitual que se revelou impotente, mas do dispositivo
simbólico, que toma então seu lugar. O dispositivo simbólico tenta estabelecer por seus
próprios meios a pertinência da representação conceitual defeituosa.
53
Assim como no hemisfério norte, nós do Sul também nos
orientamos pelo lado do Oriente onde nasce o Sol. Nesse caso há
coincidência no ato de tomar o lado do nascente do Sol para se ORIENTar
(ORIENTE + ar). No entanto, mesmo nesse caso, quando se trata de
associar um esquema corporal aos pontos cardeais para encontrá-los, nota-
se que as regras, importadas para o Hemisfério Sul, são práticas apenas para
o Norte. Lá, assim como nós, eles se ORIENTam pelo Sol nascente, Apesar
disso e ao contrário de nós, eles se NORTEiam pela estrela Polaris. A
Estrela Polar se situa em coincidência com o Polo Norte celeste
(prolongamento do eixo polar terrestre “furando” o céu) e por isso é
também chamada de Estrela do Norte ou a "Estrela que Nunca se Move”,
segundo algumas populações indígenas que vivem no território dos USA.
O hemisfério norte que vê a Polar, não vê o Cruzeiro do Sul. Isso
acontece também em Portugal, situado bem mais ao norte (no entorno de
40oN) do Trópico do Câncer. No entanto, nota-se indistintamente nos
dicionários portugueses e brasileiros a presença única do verbo nortear
(NORTEar) como orientar-se para o Norte e também dirigir, orientar,
guiar. Na noite do Hemisfério Sul, o encontro da direção Sul apoiado pelo
Cruzeiro do Sul deveria enquadrar apenas na ideia de "SULear-se", palavra
que não consta dos dicionários brasileiros 33. As convenções norteadoras
em nosso hemisfério, como vimos na discussão das antinomias do tipo
Norte/Sul, sugerem a conotação ideológica de dominação já discutida.
54
Sabemos que, em nossas escolas, continua a ser ensinada a regra
prática do Norte pela qual, ao apontarmos a mão direita para o lado do
nascente (lado leste), tem-se à esquerda o oeste, na frente olhamos na
direção norte e nos colocamos de costas para o lado sul. Essa pseudo-regra-
prática, nos deixa de costas para o Cruzeiro do Sul, a constelação
fundamental para o ato de 'SULear-se'. Esta constelação aparece próxima à
região mais brilhante de toda a Via Láctea, a ponto dos Quíchua a
denominarem como O Rio ("Mayu") e se representarem dois rios que se
encontram nessa região próxima do polo sul celeste simbolizando o brilho
observado como se houvesse aí uma espécie de "pororoca luminosa".
Se estendêssemos a mão esquerda para o lado do nascente
poderíamos atender ao requisito de respeito ao conceito de lateralidade,
tão exigida em alfabetização da palavra nas escolas, mas desprezada para a
alfabetização e leitura do mundo 34. Com isso construiríamos uma
representação simbólica, na qual, também com a consciência do corpo, nos
colocamos aptos a olhar para o Sul, adaptando-nos assim ao contexto local
do Hemisfério Sul nas relações céu-terra: Polar, sempre abaixo do nosso
horizonte visível e o Cruzeiro do Sul girando em torno do polo sul celeste
e distante dele cerca de quatro vezes e meia o braço maior da cruz da
constelação. Encontrado dessa forma o polo sul celeste, basta abaixar a mão
como se traçássemos um uma perpendicular para – "SULeando-se" - mirar
o sul geográfico. Parte da regra prática poderia funcionar se
readaptássemos a ideia da representação corporal importada. O que
acontece segundo a citação a Sperber é que importou-se o que é conceitual
no Norte mas a representação conceitual não tornou-se, no Sul, assimilável
ao seu objetivo. O conceito e a regra prática de lá foram postos entre aspas
como representação simbólica inutilizando aqui a utilização do Norte e
reforçando o caráter ideológico de dominação 35.
Dado que um esquema simbólico corporal deve gozar de
praticabilidade na orientação espacial, pelo menos em nosso país isso não
é o que se passa. Nos países do hemisfério norte, a regra corporal mais
34
Ver (FREIRE, CAMPOS, 1991).
35
Os problemas colocados por essas questões são inumeráveis e demandam certa
sutileza na percepção. Certa vez numa oficina para professores, cedo pela manhã os raios
intensos do Sol entravam por uma porta lateral da sala quando perguntei a alguém
sentado com o lado esquerdo do corpo dirigido para a porta, onde estava o Norte. A
resposta imediata foi: "Na minha frente". O lado esquerdo para o leste indicava o Sul na
frente, no entanto ocorre como se colássemos uma etiqueta do Norte na Testa e que,
qualquer que seja o lado para onde olhamos, este seja sempre o Norte. Atento para o
fato de que essa resposta é bem mais comum do que possa se pensar.
55
praticável representa melhor a citação anterior de De Certeau sobre o
espaço como lugar praticado. Existe uma maior consciência da orientação
a partir dos percursos nas ruas e da frequentação das igrejas que em geral
são construídas segundo um orientação solar, notando-se um
coloquialismo familiar no uso da orientação com os pontos cardeais com
referências frequentes a esses pontos no dia-a-dia e presentes no universo
simbólico e conceitual das pessoas. Na discussão a seguir nos referimos à
orientações práticas e simbolismos na busca do Sol por habitantes das
Zonas Temperadas.
Figura 3
N Trópico
do Câncer
Linha do
Equador
Trópico de
S Capricórni
56
paralelos à vertical do lugar, não projeta sombra no chão. Entre os
Trópicos, pode-se "pisar" na própria sombra apenas duas vezes por ano;
nos Trópicos uma vez só. 36
De toda a Europa, e mesmo no início do verão, enxerga-se o Sol
sempre numa direção afastada do Zênite local em direção ao Sul.
Examinando um globo ou mapa do Planeta, podemos verificar algumas
localidades próximas do Trópico do Câncer como: Cuba, Sul da Argélia e
do Egito, Calcutá, Hong Kong e Taiwan. Do Trópico de Capricórnio se
aproximam Antofagasta (Chile), Ubatuba (SP), Pretória (África do Sul),
Alice Springs (centro da Austrália).
Nos lugares frios, a vontade de gozar de um verão mais quente e
tropical gera vontades e desejos programados para o tempo quente das
férias. Nessas regiões, como por exemplo na França, nota-se uma explosão
da Primavera com as amendoeiras em flor, as capas e sobretudos deixados
em casa e substituídos pelas roupas coloridas, tudo repentinamente
espalhando um "clima" de sensualidade que paira no ar. Barbara – poeta,
compositora, cantora e pianista – mostra muito disso em “Gare de Lyon”,
uma canção símbolo dessa explosão da Primavera.
"Gare de Lyon" se refere a uma das quatro principais estações
ferroviárias de Paris que além de se situarem para os lados das quatro
direções cardeais a partir do centro da cidade, levam os passageiros de Paris
para essas direções correspondentes. Da “Gare de Lyon”, toma-se
necessariamente a direção do Sul, a do “Midi” da França, ou mesmo da
Itália, mencionada por Barbara na sua composição e poesia com o nome
da estação 37.
Na França, a palavra “Midi’ (mi- + diem) está associada ao meio do
dia e por extensão, ao lugar do Sol do meio-dia ou às regiões mais
ensolaradas do sul do continente europeu de onde mira-se o Sol para o sul
que no máximo se aproxima da latitude do sul da Argélia. É mais comum
36
O Sol “chega” em cada um dos dois Trópicos em junho no de Câncer e em
dezembro no de Capricórnio. Nesses dois momentos, pelo horóscopo, ele está também
situado respectivamente nas casas zodiacais de Câncer e Capricórnio. E interessante
lembrar duas palavras associadas a esse movimento do Sol, seus tempos e lugares.
Quando o Sol chega a um dos Trópicos ele “para” e volta. esse momento chama-se
Solstício [do latim: Sol + stare (parar)]. Quando o Sol passa pela Linha do Equador a
duração do dia claro é igual à duração da noite escura, cada período tem 12 horas
precisas. esse é o instante chamado Equinócio [do latim: aequinoctium = aequus + nox,
noctis]. Traduzindo e lembrando que a palavra dia é omitida: [ (dia claro) igual à noite
(escura) ].
37
Barbara, «Gare de Lyon». Letra e música com legendas em espanhol disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=240PZokiaTg>. Acesso em 5 out. 2021.
57
o uso dessa expressão para referir-se ao sul da França nas regiões
mediterrâneas, lugares habitados por “les gens du Midi” (gente) que falam
com “l’Accent di Midi”, sotaque nitidamente distinto do parisiense. O
Dictionnaire Petit Robert, referindo-se ao Midi, caracteriza bem esse
“clima”:
38
“O Norte vale talvez mais pela moral. Mas o Midi vale mais pela vida”
58
Procuremos conjeturar sobre o que poderia significar "Sur" para os
portenhos. A partir de Buenos Aires, o Barrio Sur que de fato situa-se mais
para Sudeste, é uma zona marcada pela história do tango e bem
representada pelos bairros San Telmo e Boca. Além do time de futebol Boca
Júnior, localiza-se na Boca o Caminito – colorida ruela tradicional
consagrada no tango "El Caminito" de Juan de Dios Feliberto e Garbino
Corría Peñaloza (1926) e cantado, entre outros, por Carlos Gardel.
Também a partir da “Capital Federal”, sabe-se o quanto sua população
guarda uma forte referência em seus modos de vida e relações afetivas com
a Europa. Poderíamos nos perguntar se apesar dessa marca eurocêntrica,
não haveria uma referência às terras e tradições olhadas na direção da
Patagônia. "Sur" poderia tomar outra conotação numa escala maior,
quando carregado de saudade durante viagens ou mesmo no exílio europeu
por conta dos laços afetivos e culturais locais que existem e muitos.
Fernando “Pino” Solanas (1936-2020) que há pouco nos deixou pela
pandemia, nos instiga nesses questionamentos em dois de seus filmes —
"Tango: el Exilio de Gardel" e "Sur"39 – além da música “Vuelvo al Sur” 40
de A. Piazzolla com letra de Solanas, reproduzida no quadro 2.
39
Tangos: El Exilio de Gardel, Fernando Ezequiel Solanas, Tercine (Paris)/Cinesur
(Buenos Aires), França/Argentina, 1984).
SUR (Le sud), Fernando Ezequiel Solanas, Cinesur SA/Production Pacific/Canal Plus
Productions, 1988
"Palabras del director Fernando E. Solanas Premio al mejor director. 41º Festival
Internacional del Film De Cannes:
Quiero decirles que Sur nos cuenta una historia de amor. Es el amor de una pareja y es
tambien una historia de amor de un país.
Es la historia de un regreso.
Sur nos recuerda a aquellos argentinos que en la película he llamado los de "la mesa de
los sueños". de ellos aprendí.
Ellos, más allá de sus convicciones políticas, nos dejaron como herencia una obra y un
compromiso.
Sur nos habla del reencuentro y de la amistad. Es el triunfo de la vida sobre la muerte,
del amor sobre el rencor, de la libertad sobre la opresión, del deseo sobre el temor.
también quiero decirles que Sur, es un homenaje a todos los que, como mi personaje
tartamudo, supieron decir no.
Fueron los que mantuvieron la dignidad. Ellos dijeron no a la injusticia, a la opresión, a la
entrega del país.
Queridos amigos, aquí está Sur. fue hecha con el corazón y ahora les pertenece." (FONTE:
na Internet: http://www.cineargentino.com/sur.html)
40
"Vuelvo al Sur" é cantada por Caetano Veloso em Fina Estampa, Polygram, 522745-
2, 1994.
59
Quadro 2
Vuelvo Al Sur
60
se move 41 para NORTEar a todos. Mas resta saber qual o referencial? De
onde se vê ou se imagina o céu às avessas?
Solanas coloca essa música no final de seu filme "Tango: o
exílio de Gardel". É o momento em que a família exilada em Paris a
canta em conjunto, justo antes da volta para Buenos Aires, marcada
por expectativas e imprevisibilidades. A partir de Paris – referencial
do Norte – o céu é imaginado ao revés e portanto, Paris, de onde eles
cantam " Sueño el Sur, ..., cielo al revés," nos dá a pista para o
significado de "Sur" nesse caso.
'Céu às avessas' ainda que "fale" do Norte, sugere também a
consciência da diferença entre o olhar hegemônico e aquele que SULeia-se,
como os Incas no Templo do Sol em Cuzco. Embora seja uma razoável,
sutil e irônica crítica do autor que mostra como o Norte nos vê, a expressão
“cielo al revés” traz uma sensação de vazio. Vazio em um Mundo
consagradamente norteado que contesta a identidade do Sul e ainda nos
coloca sob tensão, possivelmente na busca de uma referência perdida ou
ainda não encontrada em algum depois....
Na mesma estrofe que fala de um céu às avessas, surge "El tiempo
abierto y su después...”. O advérbio 'depois' pode exprimir circunstâncias
de tempo, lugar, modo, dúvida e até mesmo esperança. Referindo-nos aos
41
Como o nome indica, a estrela Polar situa-se na direção do polo Norte celeste. No
entanto essa situação não é eterna. O eixo terrestre é inclinado em relação a uma normal
(perpendicular) ao plano que contêm a órbita de revolução anual da Terra em torno do
Sol. Com essa inclinação de 23o27', a Terra e seu eixo giram por rotação em torno dessa
vertical, completando uma volta em cerca de 26000 anos, é o movimento de Precessão
dos Equinócios. Com isso, já dentro de uns 2000 anos a Estrela Polar não será mais polar,
estará deslocada do polo Norte e só voltará a sê-lo daqui a aproximadamente 26000
anos. Por essa razão diz-se agora que estamos entrando na era de Aquário. O Sol do
equinócio de março está numa transição entre as casas zodiacais: Peixes e Aquário. Em
cada uma das 12 casas do Zodíaco, o Sol permanece cerca de 2167 anos (26000 / 12 =
2166,7).
41
Uma vastíssima fonte enciclopédica sobre vários aspectos do Tango está
disponível em < https://www.todotango.com/?cul=es>. Disponível em 5 out. 2021.
A seguir destaca-se a poesia de Manzi, SUR...
61
dois trechos do Quadro 2, em "Vuelvo al Sur", ali esse advérbio ‘depois’ é
temporal. Por outro lado e em outro tango, a circunstância de lugar se
exemplifica. Trata-se de "Sur...", outro clássico nas palavras do
extraordinário poeta do tango, Homero Manzi que fala de um "Paredón y
después...", e — ainda que pareça reticente — no rumo do "Sur...", cuja letra
aparece no Quadro 3.
Quadro 3
SUR...
San Juan y Boedo antiguo San Juan y Boedo antiguo,
Y todo el cielo. Cielo perdido,
Pompeya y mas allá la inundación, Pompeya y al llegar al terraplén.
Tu melena de novia en el recuerdo Tus veinte años temblando de cariño
Y tu nombre florando en el adiós. Bajo el beso que entonces te robé.
La esquina del herrero, Nostalgia de las cosas que han pasado,
Barrio y Pampa, Arena que la vida se llevó,
Tu casa, tu vereda y el zanjón Pesadumbre de barrios que han cambiado
Y un perfume de yuyos y de alfalfa Y amargura de un sueño que murió.
Que me llena de nuevo el corazón.
Sur...
Sur... Paredón y después.
Paredón y después. Sur...
Sur... Y una luz de almacén.
Y una luz de almacén. Ya nunca me veras como me vieras,
Ya nunca me verás como me vieras Recostado en la vidriera y esperándote.
Recostado en la vidriera y
esperándote. Ya nunca alumbraré con las estrellas
Nuestra marcha sin querellas
Ya nunca alumbraré con las estrellas Por las noches de Pompeya.
Nuestra marcha sin querellas Las calles y las lunas suburbanas
Por las noches de Pompeya. Y mi amor y tu ventana
Las calles y las lunas suburbanas Todo ha muerto ya lo se.
Y mi amor y tu ventana,
Todo ha muerto ya lo se.
62
Aqui o simbolismo se complica. Se por um lado, "El tiempo abierto
y su después..." sugere o tempo da volta do exílio, expectativas e
imprevisibilidades. Por outro, a referência espacial a "Sur... paredón y
después'' , além de sugerir uma muralha numa origem mais do espanhol,
também é a parede ainda erguida numa ruína ou ainda um paredão de
fuzilamento como na expressão "Al Paredón!".
Horácio Salas, em El Tango, una guia definitiva (1996), nos
informa que o simbolismo espacial nos poemas de Homero Manzi é
marcado pelos tempos e paisagens da infância desse poeta, dramaturgo,
cineasta. Com 6 anos de idade em 1913, mudou-se de Añatuya, no campo
a cerca de 600km ao noroeste de Buenos Aires, para essa capital instalando-
se com a família nas proximidades de Boedo e Garay que na época, ainda
eram parte do subúrbio portenho. De seus poemas dedicados à cidade, os
mais exemplares são "Barrio de Tango" (1942) e "Sur" (1948). Os dois têm
as marcas dos impactos sobre esse camponês, surpreso ao mudar-se para a
cidade grande. O primeiro lembra os tempos de Manzi no colégio em Nova
Pompeya. "Sur...", segundo Salas, evoca a amplitude do "suburbio, en la que
se intuye la proximidad de la pampa. El aire de límite ciudadano se
encuentra en las palabras y todo el cielo, y en el perfume de yuyos y de alfafa
que descubre la presencia del barrio y de la pampa que confluían en un
costado difuso de la ciudad en pleno desarrollo" (cf. 190).
De um lado, se o espírito crítico e a consciência social ou mesmo a
ironia de Solanas, trazem um "céu às avessas" que explicita um olhar da
Europa para “baixo". Em contraponto, ele ressalta a saudade da "imensa
lua" e o "cielo" do Sul, uma constante no saudosismo e na melancolia dos
tangos. Essas miradas para o sur e para o Barrio Sur e da tradição "tanguera"
para a direção sul têm uma expressão cheia de sentimento na música e
letra42 de Eladia Blázquez, “El corazon al sur” (1975). Intérprete e
compositora de seus temas cuja obra baseia-se, de forma realista, num
Buenos Aires nada fantasioso onde Eladia mantém sua forte consciência
crítica do contexto em que vive e ainda assim não deixa de ter “el corazón
mirando al sur” como no estrato do quadro 4.
42
Disponível em <https://www.todotango.com/musica/tema/45/El-corazon-al-
sur/>. Acesso em 5 out 2021.
63
Quadro 4
Eladia Blázquez
64
Orestes Cúfaro e Azucena Maizani; Manuel Romero
43
"Não existe pecado ao Sul do Equador", Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra,
1972-1973. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=bh4Fi__2Yj8>. Acesso
em 5 out. 2021.
44
"Oriente", Gilberto Gil (compositor e intérprete), 1972. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=AO8SW-0YD0g>. Acesso em 5 out. 2021.
65
Bibliografia
CAMPOS, Marcio D’Olne. Por que SULear? Marcas do Norte sobre o Sul,
da escola à geopolítica, p. 10-35. In CAMPOS M. D. (Ed.) Revista
Interdisciplinar Sulear - Edição Especial Dossiê SULear, ano 2, No. 2,
setembro, 2019. Disponível em
<https://revista.uemg.br/index.php/sulear/issue/view/277>. Acesso em 5
out. 2021.
66
CAMPOS, Marcio D’Olne. Sociedade e Natureza: Da Etnociência à
Etnografia de Saberes e Técnicas. In “Discussão Teórico-Metodológica:
Aspectos Etnocientíficos”, Cap. III, pp. III-3.1 a III-3.10, Relatório
Técnico-Científico do Projeto Temático FAPESP: “Homem, Saber e
Natureza”, vol. I, Campinas, Aldebarã: Observatório a Olho Nu -
UNICAMP, 1995. (mimeo). Disponível em
<https://www.sulear.com.br/texto04.pdf>. Acesso em 5 out. 2021.
67
KUHN, Thomas S., A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo,
Perspectiva, 1964.
68
Capítulo 3
Movimento Escola sem Partido e o pensamento
freireano: tensões e impasses entre duas
perspectivas educacionais antagônicas
45
Coordenador da Linha de Educação de Jovens e Adultos no Programa do
Mestrado Profissional em Educação da FaE/UFMG e professor do Departamento de
Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG.
46
Professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de
Educação (FaE/UFMG) e professora de Ensino de Filosofia e Estágio Supervisionado da
Faculdade de Educação (FaE/UFMG)
47
O título de patrono da educação brasileira foi outorgado pela PL 12612, em 13 de
abril de 2012. Integrantes do Movimento Escola Sem Partido, sob alegação de que se
trata de um filósofo de esquerda, cujo método tem sido responsável pelos resultados
educacionais catastróficos, solicitam, no entanto, que o referido título fosse cassado
pelo Congresso Nacional. Disponível em:
https://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano/10862-proposta-quer-retirar-
o-titulo-de-patrono-da-educacao-de-paulo-freire. Acesso em: 29 out. 17. Todavia, a
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH) rejeitou, em
14/12/2017, a sugestão legislativa (SUG 47/2017) que visava a cassação do título de
patrono da educação brasileira a Paulo Freire. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2017/12/cdh-rejeita-sugestao-de-
retirar-de-paulo-freire-o-titulo-de-patrono-da-educacao. Acesso em: 23ago.18.
48
Utilizaremos o termo “Movimento” para se referir ao Movimento Escola Sem
Partido por compreender que não se trata apenas de uma proposta de projeto político
definido, mas sim de um movimento social decorrente da organização civil de um grupo
que busca uma determinada transformação social e está voltado para a realização de
objetivos comuns, sob orientação, mais ou menos consciente, de princípios
compartilhados e com uma organização diretiva definida. Para uma discussão detalhada
desse tema, ver: GOHN, 1997.
69
relação entre educação e política e (3) a concepção freireana de leitura do
mundo.
Como bem ensinou Paulo Freire (1989, p.9), toda leitura crítica
implica a percepção das relações entre o texto e o contexto, visto que
linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Nesse sentido, é preciso
compreender qual é o contexto em que o referido Movimento se assenta e
quais são os valores subjacentes às suas propostas educacionais. Seriam
esses valores condizentes com as bases da educação escolar?
Criado em 2004, pelo advogado e procurador do Estado de São
Paulo em Brasília, Miguel Nagib, o Movimento Escola Sem Partido faz
parte da chamada “nova direita”. Para esse Movimento, a educação é uma
prerrogativa da família e da Igreja, cabendo à escola apenas o ensino,
compreendido como conjunto de instruções e procedimentos que não
questionem valores e crenças dos estudantes e de suas respectivas famílias.
Veiculado por meio de um sítio na internet desde 2004, esse Movimento
ampliou sua visibilidade em 2014, com a tramitação de projetos de lei sobre
o tema no Congresso Nacional, em algumas Assembleias Legislativas e
Câmaras Municipais 49 (FERNANDES, 2017). Nesse período, a fim de
coibir a suposta “doutrinação ideológica” dos professores50, começaram a
circular notícias de docentes que foram intimidados por notificações
extrajudiciais. O modelo de notificação encontra-se disponível no site do
movimento, que instiga a denúncia de professores que abordam, no
contexto escolar, temáticas classificadas como doutrinação política e
ideologia de gênero. Cumpre sublinhar que, ao longo de 2015, o
Movimento Escola Sem Partido alinhou-se a outras organizações de
direita, como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online, defendendo
nas ruas e redes sociais, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff
(RIBEIRO, 2016).
Na perspectiva do Movimento Escola Sem Partido, o professor não
pode se valer da “audiência cativa” dos estudantes para defender seus
49
Os projetos de lei do Movimento Escola Sem Partido, que tramitam nas casas
legislativas do país, notabilizam-se pela recorrência dos mesmos artigos que os
compõem. Eles contêm seis “Deveres do Professor” a serem afixados na porta das salas
de aula, que podem ser observados no Projeto de Lei nº867 de 2015, da Câmara dos
Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf.
Acesso em 27ago. 2018.
50
Para garantir uma melhor fluidez na leitura, optamos por extinguir as distinções de
gênero “educador” e “educadora”, “professor” e “professora”, “educando” e “educanda”,
“aluno” e “aluna”. No entanto, os autores reconhecem a importância e a pertinência de
tais distinções.
70
pontos de vista políticos e religiosos. A esse respeito, o líder desse
Movimento afirma em uma entrevista, concedida em 2015, que “em sala
de aula, o professor não pode ter liberdade de expressão. Ali, ele é obrigado
a transmitir o conteúdo.” E acrescenta: “Não é prudente que se debatam
assuntos que estão no noticiário dentro de sala de aula, por exemplo. O
debate pode trazer problemas para a escola” (RESENDE, 2015).
Ora, o que significa a ausência de liberdade de expressão do
professor? Quais os desdobramentos do debate acerca de temas da
atualidade em sala de aula? Por que esse debate seria prejudicial para a
escola? A referida entrevista não abarca essas questões, mas poderíamos
dizer que nela estão implícitas um conservadorismo, à medida que
transforma o professor em um simples transmissor de conteúdo, tal qual
uma máquina registradora ou provedora de informações. Além disso, esse
Movimento parece conferir às temáticas da atualidade ou aos “assuntos do
noticiário” um caráter indiferente na educação escolar, configurando uma
cisão entre a vida particular e a vida escolar; ou melhor, entre os âmbitos
da vida privada e da vida pública, considerados como instâncias
particulares e independentes.
Desse modo, poderíamos entender que o Movimento Escola Sem
Partido propõe o ensino de um “conhecimento asséptico e pasteurizado”,
sem nenhuma conexão com seu contexto de produção, sem articulação
com interesses de classes, de gênero, raça e região. Assim, pode-se dizer
que, conquanto se apresente como um movimento neutro, sem ideologia,
que busca apenas uma escolarização que proteja as famílias contra
doutrinadores políticos e professores inescrupulosos, que corrompem a
sexualidade e os valores morais dos estudantes, o Movimento Escola Sem
Partido tem outras finalidades: a) cercear, nos espaços escolares, estudos e
debates que questionem relações de poder e hierarquias que alicerçam as
desigualdades sociais no Brasil e b) negar a alteridade e a diversidade como
elementos inerentes à humanidade.
Muitos são os vieses pelos quais poderíamos analisar este
Movimento: pela dimensão jurídica, confrontando-a com a legislação
nacional sobre a educação; pela dimensão político-partidária, analisando
as características dos partidos políticos que propõem projetos de lei do
Movimento Escola sem Partido etc. Optamos, no entanto, pela análise da
neutralidade na educação que fundamenta essa proposta, contrapondo-a
ao pensamento de Paulo Freire, sendo este o primeiro aspecto que
pretendemos analisar.
71
A concepção de neutralidade
72
1 Tese da neutralidade temática: a ciência é neutra
porque o direcionamento da pesquisa científica, isto
é, a escolha dos temas e problemas a serem
investigados, responde apenas ao interesse em
desenvolver o conhecimento como um fim em si
mesmo.
2 Tese da neutralidade metodológica: a ciência é
neutra porque procede de acordo com o método
científico, segundo o qual a escolha racional entre as
teorias não deve envolver e, de maneira geral, não tem
envolvido valores sociais.
3 Tese da neutralidade factual: a ciência é neutra
porque não envolve juízos de valor; ela apenas
descreve a realidade, sem fazer prescrições; suas
proposições são puramente factuais. (OLIVEIRA,
2008, p.98).
51
A respeito dessa crise das ciências ver as reflexões do filósofo alemão Edmund
Husserl (2002).
73
pois existem valores que orientam a escolha de determinadas investigações,
como os valores subjetivos, econômicos e políticos. Além disso, a escolha
de um método em detrimento de outro, usado para explicar determinada
teoria, pressupõe também valores sociais implícitos.
Uma vez entendida que a neutralidade da ciência não implica uma
ausência de valores, retomamos a discussão sobre a neutralidade na
educação defendida pelo Movimento Escola sem Partido.
Poderíamos pressupor que essa neutralidade do professor seja uma
neutralidade factual em que ele seria um transmissor da racionalidade
científica, isto é, de um saber puramente racional e objetivo. Assim
entendido, a prática pedagógica, na perspectiva da neutralidade, seria uma
prática tradicionalista em que o professor sabe e ensina e o aluno não sabe
e aprende. Sendo este último depositário de saberes que o professor lhe
transmitirá e este deverá devolver exatamente como lhe foi transmitido. O
que será avaliado e mensurado consistirá rigorosamente na quantidade de
informações que foram apreendidas e reproduzidas, de acordo com as
exigências do professor. O comportamento do aluno será, muitas vezes,
determinado por normas rígidas, em que ele deverá controlar as suas
emoções, a sua imaginação, a sua sensibilidade e a sua afetividade 52.
Ora, assim como a neutralidade da ciência não implica uma ausência
de valores, a suposta neutralidade na educação não pode desconsiderar
esses valores; eis aí um problema fundamental no discurso do Movimento
Escola sem Partido: a desconsideração da dimensão valorativa de toda ação
humana, isto é, sua dimensão ética.
A esse respeito, Paulo Freire foi enfático ao afirmar uma ética
universal do ser humano, enquanto marca característica de nosso ser no
mundo, em relação com os outros seres e com o próprio mundo. Em
decorrência disso, ele afirmará a natureza ética da prática educativa que
implica uma congruência entre seu preparo científico e sua retidão ética.
Isso por entender que “formação científica, correção ética, respeito aos
outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente” são
indispensáveis à convivência humana e, consequentemente, à vida escolar
(FREIRE, 2017, p.18).
O ser humano, ao relacionar-se com os outros e com a natureza,
transformou a própria natureza em sua morada, criou cultura, criou
52
Cf. BERTRAND; VALOIS, 2005, p. 101. Para esses autores, esta prática pedagógica
é própria do paradigma tecnológico e, embora não utilizem o termo positivista,
concebemos que a origem desse paradigma é o positivismo.
74
valores, criou linguagem. O conhecimento é uma construção humana e,
como tal, não pode ser destituído de valor: não existe conhecimento
neutro, assim como não existe educação neutra, visto que todo conhecer,
todo aprender, todo agir no mundo está imerso de significação pela própria
dimensão constitutiva do ser humano. Ninguém escolhe só por escolher,
ninguém faz só por fazer, pois estas ações trazem em si mesmas toda a
bagagem de valores que constitui nossa humanidade, bem como o contexto
ao qual estamos inseridos.
Tanto a prática científica quanto a prática pedagógica estão prenhes
dos valores do contexto em que elas se realizam. Mesmo que um
profissional da educação que atue dentro de e a partir de uma perspectiva
de neutralidade afirme a sua desvinculação de qualquer tipo de valores,
estará, implicitamente, fazendo uma opção pelo status quo, pois é
impossível alguém não ter valor, ser amoral. A sua falta de desvinculação
já mostra um valor, aquele da moralidade da instituição em que trabalha.
A educação, como reprodutora do status quo, também foi objeto de
análise de denúncia de Paulo Freire (2003). Isso porque ela seria fonte de
conformismo, falta de compromisso e desorganização do processo
educacional. Se o educador tem dificuldades em perceber sua tarefa
cotidiana como uma ação histórica e política, a educação que realiza se
reduz a uma mera transmissão de informações, sem procurar saber por
quê, para quê e para quem ela se direciona. O não posicionamento do
professor não implica que ele seja neutro, mas que ele deixou-se guiar por
escolhas alheias ao seu próprio agir, aos seus próprios valores, enfim,
renunciou à sua autonomia.
Passemos agora ao segundo eixo da discussão: a relação entre
educação e política.
75
Educação e política
53
Disponível em: https://pt-br.facebook.com/escolasempartidooficial/. Acesso em:
27 ago. 2018.
54
http://www.escolasempartido.org/educacao-moral/415-professor-nao-e-
educador
76
O pensamento de Moreira, celebrado pelo Movimento Escola Sem
Partido, limita, dessa forma, a função da escola à difusão de conhecimentos
técnicos instrumentais. Sua ênfase incide sobre habilidades procedimentais
(habilidade de leitura, escrita e cálculos matemáticos, por exemplo), não
permitindo que se indague sobre o sentido dos saberes escolares nas
práticas sociais, nem sobre os lugares ocupa ocupados pela técnica no
processo de estratificação da sociedade. Trata-se, assim, de uma visão
pedagógica tecnicista e reprodutivista, amplamente difundida na educação
brasileira na década de 1960 e 1970 55.
O conceito de educação, apresentado por Moreira (2013) possui, por
sua vez, um caráter reducionista. Em vez de ser compreendida como
processos formativos que se desenvolvem, dentre outros espaços, nas
relações familiares, no trabalho, movimentos sociais, organizações da
sociedade civil, manifestações culturais instituições de ensino e pesquisa e
escola, a educação é pensada como uma matéria que se circunscreve, de
forma exclusiva, no seio familiar. Educar é, para ele, um ato de amor, algo
impensável para profissionais que possuem parcos salários. Com efeito, o
intuito dos professores, ao defender o caráter educativo da escola, é
promover a doutrinação marxista, inserindo elemento estranho à
escolarização: a partidarização política.
Em Paulo Freire, educação e ensino e educação e política são
elementos indissociáveis. Daí a aversão do Movimento Escola Sem Partido
a esse pensador. No entanto, pode-se afirmar que a dimensão política da
escola remonta à Grécia Antiga.
Platão, em sua República, já evidenciava a importância de uma
sociedade justa, fundamentada na educação de seus membros. Aristóteles,
em sua Política, apresenta três características específicas do homem que o
distinguem dos demais animais: a fala, as qualidades éticas e a
comunicação. A primeira qualidade, a fala, possibilita indicar não somente
a dor e o prazer, mas também o justo e o injusto. As qualidades éticas
possibilitam a percepção do bem e do mal, bem como do justo e do injusto
(Pol. I, 1, 1253a 14-18). E, conclui Aristóteles, “a comunicação faz a casa e
a cidade.” (Pol. I, 1, 1253a 18-19). Aristóteles dirá que o homem é um
animal político e a finalidade da política consiste em organizar a sociedade,
de tal modo que nela se possa viver uma vida virtuosa e feliz e não apenas
55
Para uma compreensão detalhada dessa visão, ver SAVIANI, Dermeval. Escola e
Democracia. 42ed. São Paulo: Autores Associados, 2018.
77
materialmente confortável. Para tanto, é preciso que o ser humano tenha a
capacidade de discernimento, através da educação, distinguindo
racionalmente o útil do inútil, o verdadeiro do falso, o justo do injusto.
Por essa via, a política se dá como uma prática racionalmente
orientada para a construção e manutenção do bem comum. Essa
concepção de política é enfatizada nas obras de Paulo Freire, especialmente
na Pedagogia da Autonomia, último trabalho publicado pelo autor em vida.
Na concepção pedagógica freireana, pode-se dizer que existem
saberes indispensáveis aos educadores e um deles reside no fato de que
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua
construção. Para tanto, é imprescindível a experiência dos educandos que
podem refazer/recriar o ensinado, apropriando-se desse saber no contexto
de sua própria realidade. Freire sustenta que a prática educativa precisa se
assentar no diálogo e na problematização, por meio de perguntas
destabilizadoras, que despertem curiosidades e que provoquem novos
desafios aos educandos.
Freire rejeita qualquer proposta educativa que apresente o educador
como facilitador do processo pedagógico, como um mediador, cuja
principal tarefa seja transferência de conhecimentos. Para ele, subjacente à
concepção de transferência de conteúdo, celebrada pelos modismos
pedagógicos, encontra-se a noção de que conhecimento é uma coisa ou
abstração, com vida própria, sem conexão com indivíduo e sociedade.
Todavia, o conhecimento não é, para ele, uma entidade autônoma e neutra,
nem um elemento reificado da cultura e da sociedade.
Pode-se dizer que Paulo Freire compreende o conhecimento como
uma construção social, fruto de relações de poder. Com efeito, não se trata
apenas de uma construção técnica, guiada por princípios epistemológicos
e regras metodológicas. O caráter inescapavelmente político e ideológico
do conhecimento esconde, todavia, intenções e interesses. Portanto,
questionar relações de saber e de poder é algo inerente às práticas
pedagógicas emancipatórias. Afinal de contas, o conhecimento precisa ser
pensado em favor de quê, de quem ou contra o quê e contra quem.
Em uma passagem da Pedagogia da Autonomia, Freire (2017, p.21)
sugere, de maneira explícita, que o professor tome, como objeto de
reflexão, em sala de aula, experiências discentes em áreas periféricas dos
grandes centros urbanos. Tendo como foco de observação aspectos da
cidade negligenciados pelo poder público, Freire sugere que se discuta com
alunos a questão da poluição dos riachos e dos córregos e dos baixos níveis
78
de bem-estar das populações, bem como a presença de lixões e os riscos
que oferecem à saúde das pessoas. Trata-se, pois, de uma abordagem
dialógica e problematizadora, que tem como cerne o questionamento de
relações de poder.
79
Creio que nunca precisou o professor progressista
estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza
com que a ideologia dominante insinua a
neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é
reacionário, o espaço pedagógico, neutro por
excelência, é aquele em que se treinam os alunos para
práticas apolíticas, como se a maneira humana de
estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira
neutra. Minha presença de professor, que não pode
passar despercebida dos alunos na classe e na escola,
é uma presença em si política. Enquanto presença não
posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções.
Devo revelar aos alunos a minha capacidade de
analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar,
de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não
falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser
o meu testemunho (FREIRE, 2017, p.95-96).
80
consciente da impossibilidade da neutralidade da
educação, é forjar em si um saber especial, que jamais
deve abandonar, saber que motiva e sustenta sua luta:
se a educação não pode tudo, alguma coisa
fundamental a educação pode (FREIRE, 2017, p.70).
A leitura de mundo
81
captura o mundo inocentemente. Na fotografia, o ângulo, a luz, o corte, a
edição são dispositivos usados pelo fotógrafo, alterando o real. Dessa
forma, ao invés de reproduzir, de forma fidedigna, a realidade, a fotografia
institui visões particulares acerca do mundo social e natural.
Sobre assistir reportagens na televisão, outra atividade corriqueira, é
um ponto que precisa ser considerado. A linguagem televisiva, inspirada
no cinema, na literatura, no teatro e no circo, conta com a mobilização dos
sentidos, provocando emoção, fantasia e a imaginação. Suas programações
não podem ser vistas como algo inocente e ingênuo. Pelo contrário, estão
inescapavelmente envolvidas no processo de produção de identidades
sociais e de subjetividades. De certo modo, o estudo sobre a linguagem
televisiva pode ser visto como uma oportunidade para se compreender
sobre o lugar ocupado pela televisão no processo de construção social da
realidade. Muniz Sodré, na obra a “Comunicação do Grotesco”, já havia
tratado desse aspecto, conforme se pode notar nas palavras do autor:
82
estabelecimentos, o ordenamento dos artigos de consumo busca induzir os
consumidores a comprar mais do que as pessoas realmente precisam.
Assim, os gêneros de primeira necessidade ficam nos fundos, obrigando o
indivíduo a entrar em contato com outros produtos. Enquanto as
mercadorias supérfluas ficam à altura dos olhos, os materiais de limpeza e
higiene pessoal ficam na parte de baixo das prateleiras. Os artigos enlatados
e nocivos à saúde possuem embalagens sedutoras, com imagens e dizeres
que estimulam o desejo de consumir tais produtos. Nem mesmo a presença
da padaria no fundo dos supermercados é algo desinteressado. Sua
instalação, nesse estabelecimento, é fruto do resultado de estudos que
demonstram que o cheiro do pão desencadeia no cérebro humano o desejo
de se alimentar. Ou seja, o pão assado deixa de ser, no supermercado,
apenas um alimento, para se tornar uma estratégia de venda.
Assim, o ato de ler não se restringe apenas à questão de
decodificação da palavra, como defende o Movimento Escola Sem Partido.
Para Freire, como destacamos anteriormente, a leitura de mundo precede
a leitura da palavra. Isso significa que ler é um ato de reescrever o texto,
uma busca permanente para compreender suas articulações com o
contexto social, político e econômico. Para o autor, ler é, acima de tudo,
uma forma de reescrever, de transformar o texto através de uma prática
consciente. Nas palavras de Freire: linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
Paulo Freire contribui, assim, para o aprofundamento de uma
questão epistemológica: a leitura de mundo. Do ponto de vista freireano, o
conhecimento é sempre “intencionado”, isto é, está sempre direcionado
para alguma coisa. Essa intencionalidade aproxima-se da compreensão de
“intencionalidade da consciência” do filósofo alemão Edmund Husserl 56.
Para esse filósofo, devemos voltar às coisas mesmas, não mais concebidas
como fatos, mas como sentido construído na própria correlação entre o
fenômeno (o que aparece) e a minha consciência desse fenômeno (o que
aparece para mim). Daí afirmar que “toda consciência é consciência de
algo” (HUSSERL, 2012). Isso implica o caráter intersubjetivo de nossa
56
A compreensão fenomenológica de Husserl busca uma via intermediária entre o
subjetivismo e o objetivismo para compreender o modo pelo qual conhecemos as coisas.
Nesse sentido, ele defende que o conhecimento não depende exclusivamente de uma
racionalidade inata ou de uma razão absolutamente segura de seus pressupostos
cognitivos, nem tampouco depende exclusivamente do modo pelo qual as coisas nos
impelem a conhecê-las pela linguagem e pelos sentidos (OLIVEIRA, 2008a).
83
consciência, decorrente de nossa relação com o mundo da vida, isto é, com
o mundo comunicativo, natural, intuitivo e estético da experiência. Nesse
sentido, o mundo da vida é tudo aquilo que pode ser intuído por nós e é
fundamento do sentido.
Cabe destacar que o ato de conhecer também não é visto por Paulo
Freire como ato isolado, individual. Pelo contrário, conhecer envolve
intercomunicações, intersubjetividade. Nessa concepção, os seres
humanos mutuamente se educam, intermediados pelo mundo cognoscível.
Por essa razão, Freire (2001) concebe o ato pedagógico como ato dialógico.
O que não acontece com a chamada educação bancária, pedagogia voltada
para subjugação e domesticação dos educandos. Aqui, o processo
educativo se baseia na informação de conceitos e dados descolados das
experiências imediatas do educando.
Segundo Freire (1981, p. 5), o conhecimento está articulado a
questões como “conhecer em favor de quê? conhecer em favor de quem?”
O que vale dizer: conhecer contra quê? Conhecer contra quem? Para Paulo
Freire, não existe conhecimento neutro. O que faz com que o ato de
conhecer se torne um ato político.
Na perspectiva freireana, o conhecimento está estritamente ligado à
possibilidade de transformação das condições sociais a que estão
submetidos os grupos socialmente desfavorecidos. Nessa concepção, está
implícita a suposição de que o conhecimento “descobre” o real,
assegurando a passagem de um conhecimento ingênuo, caracterizado pelo
misticismo e superstições, para um conhecimento crítico. Não se trata, no
entanto, de um saber doado por especialistas e grupos de vanguardas para
os educandos, como acontece nas propostas autoritárias. O que se busca na
concepção freireana é a construção de um saber forjado com o discente. A
função do educador é criar condições para que o educando sistematize o
conhecimento. Nas palavras de Paulo Freire (1989, p. 25), o conhecimento
sistematizado é indispensável à luta popular. Ele vai facilitar os programas
de atuação dos educandos. Esse conhecimento deve percorrer o caminho da
prática.
84
Considerações finais
85
Referências
ARISTOTE. Politique.Trad. Jean Aubonnet. Paris: Les Belles Lettres, 1986.
BERTRAND, Yves; VALOIS, Paul. Paradigmas Educacionais: escola e
sociedades. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
FREIRE, Paulo. Política e educação. 8.ed. São Paulo: Villa das Letras, 2007.
86
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
87
Capítulo 4
Educação Popular Negra:
uma agenda de pesquisa para a EJA 57
57
As reflexões aqui desenvolvidas foram apresentadas, inicialmente, como palestra
intitulada: Educação Popular Negra, proferida durante o evento: EJA e Educação como
Prática de Liberdade em Tempos de Políticas Conservadoras, organizado pela Linha de
EJA do Mestrado Profissional Educação e Docência (PROMESTRE) na Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no dia 11/06/2021.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Qn7V8z9kHr4>.
58
Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UFMG.
88
Rodrigues (1920-1987), negro, pobre e filho de mãe solo. Ele estudou em
um dos melhores colégios da sua época, o Pedro II, e graduou-se em
Direito. Foi um dos fundadores, com Abdias do Nascimento, do Teatro
Experimental do Negro (TEN) no Rio de Janeiro. Lá atuava como educador
em turmas de alfabetização.
89
do processo de conscientização racial, são características singulares dessas
práticas de educação popular.
Quanto ao conceito de Educação Popular (EP), compartilhamos da
definição de Oscar Jara (2020, p. 24): trata-se de “um fenômeno
sociocultural vinculado à história latino-americana e que se refere a
múltiplas práticas que têm em comum uma intencionalidade
transformadora, mas que ainda não foram identificadas e avaliadas
suficientemente”.
Uma primeira aproximação conceitual ampliada de Educação
Popular Negra (EPN) significa entendê-la como um conjunto de ações
sociopolíticas, educativas, religiosas e culturais, as quais foram
historicamente promovidas e agenciadas por entidades e associações afro-
brasileiras desde o início do século XX. Nessa direção, identificar e
conhecer melhor essas práticas sociais e educativas populares permite-nos
compreender melhor os saberes resultantes das lutas de libertação e
emancipatórias protagonizadas pela população negra brasileira.
Práticas sociais são consideradas aqui como parte de “ações
educativas criando conceitos fecundos na relação práticas-teoria e
produzindo conjuntos instrumentais ancorados em uma reflexão sobre
suas utilizações e suas finalidades, em contextos complexamente
considerados” (GATTI, 2010, p. 67). O desenvolvimento da noção de EPN
é, portanto, resultante de uma praxiologia em que o pensar se origina da
prática e a ela retorna.
Nesse sentido, os cursos de alfabetização de adultos, conforme
promovido pelo TEN, somam-se a outras inúmeras experiências possíveis
de serem verificadas em todo território nacional. Todavia, essas práticas
têm sido pouco visibilizadas, por exemplo, a experiência de educação
popular desenvolvida pela Frente Negra Brasileira, como apresentada na
epígrafe.
Portanto, tomar conhecimento dessas práticas de educação popular
a partir de uma perspectiva de EPN contribui para entendermos os
diferentes tipos de agenciamentos que foram realizados, sobretudo, por
parte da população afro-brasileira no que concerne à conquista do direito
social e humano à educação.
O caráter intencional dessas práticas se dá por meio da promoção de
valores sociocomunitários, políticos e culturais articulados com a luta por
transformação e justiça sociorracial. Assim sendo, no campo da EP há
determinado entendimento de que:
90
[...] a educação popular é sempre uma posição política
e política-pedagógica, um compromisso com o povo
frente ao conjunto de sua educação e não se reduz a
uma ação centrada em uma modalidade educativa, tal
como a educação não formal, ou a um recorte dos
setores populares, tal como os marginalizados, ou a
um grupo geracional, como os adultos, ou a uma
estratégia determinada como a alfabetização rural
(PUIGGRÓS, 1994, p. 59).
59
Entende-se por negro as pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, segundo
os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
91
1. De uma leitura classista ortodoxa da sociedade à
incorporação de outras perspectivas e categorias
analíticas como hegemonia, movimentos sociais,
sociedade civil e sujeitos sociais; 2. De uma leitura
revolucionária da “tomada de poder” como única
vida de mudança à ampliação do sentido do político a
todas as esferas da vida social, à reivindicação da
democracia como forma de governo e defesa do
público. 3. De uma visão econômico política dos
sujeitos sociais a uma visão integral deles, que dá
especial importância aos processos culturais de sua
identidade e de suas dimensões individual e pessoal;
4. De uma ênfase na tomada da consciência ao
enriquecimento da subjetividade individual e coletiva
em todas as suas dimensões (intelectual, emocional,
corporal...); 5. Das seguranças metodológicas
centradas no método dialético e o uso instrumental
de técnicas participativas à reivindicação do
pedagógico da EP, à incorporação de outras correntes
pedagógicas e ao interesse pelo diálogo de saberes
(CARRILLO, 2007, p.78).
92
Desse ponto de vista, indagamos: quais são as contribuições de uma
abordagem relacionada à EPN às práticas educativas realizadas na
Educação de Jovens e Adultos (EJA)? São inúmeras. Entretanto, antes de
dizer algumas delas, é importante apresentarmos a nossa compreensão
dessa modalidade de ensino. O texto da Constituição Federal de 1998 a
define como direito social para pessoas com 15 anos ou mais de idade.
Ampliando um pouco mais esse entendimento e corroborando com o
posicionamento de Analise da Silva (2020, p. 2), é possível considerar a EJA
como um direito social e humano. Em suas palavras, “a EJA é, portanto,
um Direito Humano. Humano porque, quando ele é negado ao sujeito,
outros direitos também o são e o gozo da Educação potencializa e viabiliza
a prática de outros direitos”.
Partindo desse princípio, o racismo, o preconceito e a discriminação
racial colocam em risco a garantia desse direito social e humano. Nesse
caso, a efetividade de práticas educativas de EJA só se concretizará,
verdadeiramente, no momento em que elas forem capazes de
resguardarem a proteção e a dignidade integral da pessoa humana.
O texto da Lei nº 10.639/03 60 e de suas Diretrizes61 é bastante nítido
quanto aos objetivos de valorização sociopolítica e cultural da população
negra e indígena. No Plano de implementação das DCNERER (2009, p. 56),
norteiam algumas das ações possíveis de serem realizadas na EJA:
60
A Lei 10.639, considerada pelo movimento negro uma medida de Ação Afirmativa,
altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9.394/96) que passou a
vigorar acrescida dos artigos: Art. 26-A, Art. 79-A (Vetado) e o Art. 79-B. A Lei 10.639 prevê
a obrigatoriedade do ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira e Africana na
educação básica ofertada nos estabelecimentos de ensino públicos e particulares. Em
2008, a Lei sofreu uma alteração para a Lei nº. 11.645 e passou a incluir a História e Cultura
dos Povos Indígenas Brasileiros.
61
Após a sanção da Lei 10.639/03, o Conselho Nacional de Educação aprovou o
Parecer CNE/CP nº. 003/2004 e a Resolução CNE/CP nº. 001/2004, que institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. As diretrizes constituem um
documento legal de orientação para as escolas da educação básica no desenvolvimento
de práticas pedagógicas.
93
de pesquisa, desenvolvimento e aquisição de
materiais didático-pedagógicos que respeitem,
valorizem e promovam a diversidade, a fim de
subsidiar práticas pedagógicas adequadas à Educação
das Relações Étnico-Raciais; Incluir na formação de
educadores de EJA a temática da promoção da
igualdade étnico-racial e o combate ao racismo.
94
parcela da população. Afinal de contas, as pessoas jovens, adultas e idosas
possuem lugares sociais, identitários, geracionais, de raça, de classe, de
gênero e de orientação sexual diversos. Contudo, nem sempre a
singularidade desses marcadores sociais é levada em consideração na
efetivação dessas práticas.
Outra contribuição possível de ser dada consiste em realizar
cartografias participativas na EJA 62. O termo cartografia aqui utilizado é
inspirado no conceito de automapeamentos elaborado por Viana Jr. (2016),
que diz respeito à forma como os próprios sujeitos (povos originários,
quilombolas, ribeirinhos, etc.) se autoclassificam de maneira participativa
em seus territórios. Nessa perspectiva, construir automapeamentos com a
participação dos próprios atores sociais pode contribuir para evidenciar
ações sociopolíticas e culturais de lutas, enfrentamentos e resistências
negras.
Assim, nunca é demais lembrarmos que, sob o ideário da razão
iluminista, a construção moderna relacionada à raça, ao racismo, ao negro,
ao branco, entre outros faz parte de um projeto burguês-colonial-
capitalista de dominação dos povos oriundos dos continentes: africanos,
asiáticos e latino-americanos.
Esse projeto histórico é de “longa duração”. Utilizando o conceito
do historiador Fernand Braudel (1902-1985), ele se estrutura em processos
de dominação, hierarquização, inferiorização e opressão socioeconômica e
cultural, produzindo consequentemente desigualdades material e
simbólica que incidem sobre os povos vistos como inferiores, incivilizados,
diferentes.
Logo, a atitude de contar com a participação ativa dos próprios
atores sociais no processo de produção relacionados às práticas educativas
de EJA significa romper com determinadas práticas de escolarização de
caráter bancária. É por meio dessa abertura que se concretiza, nas palavras
de Freire (1967), a educação como prática de liberdade.
Nesse sentido, é necessário permanecer vigilante em relação à
coisificação (ser humano, natureza etc.), de modo a desenvolver a nossa
capacidade de nos humanizarmos. Em se tratando de compreender a
maneira como foram estabelecidas as relações étnico-raciais na periferia do
62
Para saber mais a respeito de possibilidades de abordagens cartográficas em
práticas educativas de EJA, acesse:
<https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/cartografias-
participativas-na-eja/>
95
capitalismo, o desafio de superar esse estado de coisas também está posto
para os profissionais da educação que atuam nessa modalidade de ensino.
96
Essa narrativa revela a importância do caráter transgeracional no
que concerne à transmissão dos saberes da benzeção. O observar-vivenciar,
a presença-relacional e a corporeidade-afeto-cognição são características
inerentes ao processo de aprendizagem. E mais, a aquisição dos saberes
tradicionais se organiza a partir de outras lógicas que não a científica. No
caso específico das benzedeiras, eles estão vinculados à fé, à crença, à
tradição e aos valores construídos e transmitidos por meio da cultura negra
quilombola, entre outros.
Os saberes tradicionais afrodiaspóricos e populares se realizam, pois,
por meio de práticas sociais adquiridas a partir de experiências socioafetivas
as quais se encontram profundamente enraizadas nas relações
estabelecidas na vida comunitária. Assim, essas experiências são por nós
interpretadas como parte de um conjunto de práticas sociais
intrinsecamente relacionado às formas simbólicas de produção-recriação-
reprodução de práticas afrodiaspóricas e populares.
Desse modo, essas práticas são portadoras de aprendizagens,
saberes, tradições, valores, entre outros. Se tomarmos, como exemplo, a
narrativa apresentada por Chica, é possível considerar que a benzeção
configura em si mesma uma experiência socioafetiva relacionada à
preservação, ao reconhecimento e à resistência da cultura africana e afro-
brasileira.
Nessa perspectiva, o trabalho de pesquisa consiste em
compreendermos o modus operandi no qual essas matrizes epistêmicas de
saberes são geradas. Sem perder de vista, devemos considerar as condições
materiais e simbólicas de sua produção-reprodução imersas na
modernidade-tardia no contexto Latino-Americano. Daí emerge a
contribuição interpretativa EPN.
Seguindo a trilha aberta por Jara (2020), a realização desse trabalho
interpretativo tem como intencionalidade também identificar e
sistematizar os fundamentos éticos, políticos e educativos que subjazem a
realização desses saberes. Como parte de um exercício reflexivo,
elucidamos algumas das dimensões importantes de serem observadas em
relação à abordagem dessas práticas, conforme apresentado na Figura 4.
97
Figura 4. Trabalho compreensivo-interpretativo
com base na perspectiva da EPN.
Práticas educativas
populares negras
FUNDAMENTOS
EPN ÉTICOS, POLÍTICOS
E EDUCACIONAIS
Saberes
afrodiaspóricos
e populares
Palavras finais
99
entendermos melhor as ausências e emergências epistêmicas verificadas no
campo de produção de conhecimento da EP. A esse respeito, sem
desconsiderarmos os distintos marcadores sociais (classe, gênero, etário,
orientação sexual, local, etc.), o perfil discente hoje presente na EJA é
majoritariamente negro. Não seria adequado, então, pensarmos em termos
de uma EJA popular negra?
Nessa perspectiva, as práticas educativas realizadas nessa
modalidade de ensino necessitam de implementar a Educação das Relações
Étnico-Raciais (ERER). O ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana vincula-se, portanto, a uma perspectiva complexa que segue em
direção à criação e recriação dessas práticas. Isso implica necessariamente
ampliar os referenciais epistemológicos formativos. As contribuições de
uma abordagem de EPN para o campo da EP e para a EJA advêm daí.
Outra contribuição diz respeito à forma de interpretarmos os
saberes afrodiaspóricos e populares resultantes de diversas práticas
sociopolíticas, religiosas e culturais. Nesse caso, a partir de uma perspectiva
de EPN, é possível compreendermos o modo como os atores sociais
mobilizam esses saberes, no que concerne à valorização da cultura afro-
brasileira e africana e, ao mesmo tempo, como eles próprios participam de
processos de transformação social.
Neste ano do centenário de Paulo Freire, pensar a respeito de
possibilidades investigativas acerca da EP significa reafirmar a nossa
capacidade de esperançar! Afinal de contas, estamos enfrentando uma crise
mundial de saúde causada pelo Severe Acute Respiratory Syndrome
Coronavirus (SARS-CoV-2), conhecido popularmente por Covid-19.
Enquanto registramos essas palavras finais, os noticiários informam que já
passamos a marca de 500 mil mortos (subnotificado) ocasionado pelo
Coranavírus no Brasil. Tudo isso está acontecendo em meio há uma
profunda crise social, política e econômica que tem atingido de maneira
mais contundente as populações indígenas, negras e quilombolas,
moradores de vilas e favelas.
Por fim, se considerarmos que, nesta parte do globo, essa parcela da
população, desde sempre, vive sob a égide de um Estado de exceção
permanente, abrir uma agenda de pesquisa relacionada à perspectiva da
EPN significa a possibilidade de tomarmos conhecimento de saberes de
libertação e emancipatórios populares agenciados especialmente pelo
sujeito político negro(a) voltados para a valorização da cultura africana e
afro-brasileira.
100
Referências
101
CARRILLO, Alfonso Torres. La Educación Popular, trayectoria y actualidad.
Bogotá: El Búho, 2007.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1967.
Jornal A Voz da Raça. Encerramento das Aulas na FNB. São Paulo, v. XII, nº 50,
31 de Dez. de 1935. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/acervo-digital/voz-
raca/845027>. Acesso em: 15 jun. 2021.
102
RODRIGUES, Ironides. Diário de um negro atuante. THOTH. Informe de
distribuição restrita do senador Abdias do Nascimento, nº 3 (1997) - Brasília:
Gabinete do Senador Abdias do Nascimento, 1997.
SILVA, Analise de Jesus da. EJA direito social e humano. Pensar a Educação em
Pauta. Disponível em:
<https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/eja-direito-social-e-
humano/>. Acesso em: 20 set. 2020
SILVA, Natalino Neves da. Educação Popular Negra: breves notas de um conceito.
Educação em Perspectiva, Viçosa, MG, v. 11, p. 1-15, 2020. Disponível em:
<https://periodicos.ufv.br/educacaoemperspectiva/article/view/8488>. Acesso
em: 17 jun. 2021.
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
103
Parte II
Pedagogia Freireana como Práxis
Educativa Transformadora
104
Capítulo 5
Paulo Freire, intelectual da Classe Trabalhadora
Resumo:
63
[email protected]. Licenciado, Bacharel, Mestre e Doutor em História (UFMG).
Professor de História na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade
acadêmica Ibirité (formação de professores). Líder do Grupo de Pesquisas José Carlos
Mariátegui e autor de livros, capítulos e artigos na imprensa universitária.
105
Introdução
106
introjeção de uma ideologia e inculcação de valores que transitavam pelo
ethos e cosmovisão europeus, naturalmente tributários das heranças
culturais greco-romanas de feição cristã.
Nesse último aspecto, por óbvio, cabe ressaltar a defesa dos
postulados das academias de ciência desde que acomodados aos preceitos
cristãos, tornados os únicos aceitos em territórios de além-mar onde
tremulasse a bandeira del’Rei e se fixassem em decorrência, as letras da sua
lei, preparados em códigos da sua jurisprudência, textos esses sempre
estampados em idioma metropolitano, sob as regras gramaticais e
semânticas também metropolitanas.
Ao inquirir o pensamento e obra de Paulo Freire enquanto
intelectual orgânico da classe trabalhadora em trânsito pela
decolonialidade, caberá também tentarmos decifrar acerca dos tempos
pretéritos que permitiram as condições de tal pensamento, apontando para
autores que, ainda que não nativos à América Latina, contribuíram mesmo
que indiretamente, para a afirmação das possibilidades heurísticas de
compatibilização do marxismo heterodoxo, como José Carlos Mariátegui,
ao pensamento decolonial. Nesse sentido, os gregos da Antiguidade
Clássica, com seu pensamento educacional marcado pela organicidade,
bem como Jean-Jacques Rousseau, nos portais da Modernidade, passam a
oferecer algumas achegas a pensarmos as origens históricas possíveis de
vital importância na obra de Paulo Freire.
107
(CAMBI,1999), a qual se encontrava “ligada à mesma língua, ao mesmo
alfabeto, a uma atividade mitopoiética comum.” (CAMBI, 1999, p.76).
Os poemas atribuídos a Homero, a Ilíada – a ira de Aquiles – e a
Odisseia, o retorno de Ulisses, de Tróia, onde lutou na guerra, ao seu reino,
Ítaca, expressam versões de uma educação que é heróica e prática ao
mesmo tempo, que enaltece os valores ligados à força e à destreza, mas
também aos recursos da filosofia e da oratória. Em Homero, tornado
grande educador da Antiguidade 64, esses recursos se combinam, para
formar o elemento imprescindível a algo maior, que era a sobrevivência em
um mundo abertamente assumido como hostil e perigoso. Estudioso
singular da Educação na Grécia Antiga, Werner Jaeger alinhou uma obra
tornada clássica, a intitulando com nome análogo ao seu objeto de estudo.
Nesse clássico, o objetivo de Jaeger era apresentar a formação do homem
grego – a paideia – tanto no seu caráter particular, quanto no seu
desenvolvimento histórico.
De acordo com Werner Jaeger, “foi sob a forma de paideia, de
‘cultura’, que os gregos consideraram a totalidade da sua obra criadora em
relação aos outros povos da antiguidade de que foram herdeiros”
(JAEGER, 1979, p. 7). Identificados por esse autor como um povo filosófico
por excelência, expressão da qual considerou a ideia platônica como
produto único e específico do espírito grego, e chave para interpretar a
mentalidade grega em muitas outras esferas, Jaeger, esclarece que essa
característica do espírito grego teria ajudado a aclarar a apreensão das leis
do real, uma tendência que sabemos patente em todas as esferas da vida,
seja do pensamento, da linguagem, da ação e das diversificadas formas de
arte, e que, segundo ele, radica-se na concepção do ser, “como estrutura
natural, amadurecida, originária e orgânica” (JAEGER, 1979, p.10). Ainda
segundo o autor, a genuína paideia grega não brotaria de alguém, em
termos individuais, mas de uma idéia. Era a esse ideal formativo que
aspiravam os educadores gregos, mas também, seus poetas, filósofos e
artistas. O homem seria genérico, em sua validade universal, porém, em
sua essência, a educação consistiria na modelagem dos indivíduos pela
norma da comunidade. Assim, o homem grego em sua formação mantém
64
Henri-Irénée Marrou (MARROU, 1969) nos informa que o ideal homérico de herói,
com sua ética, sobreviveu na época clássica da Antiguidade grega, e entende que tal fato
parece se dever à conservação dos mencionados poemas de Homero como texto base
e centro de todos os estudos. Cambi (1999) reitera a posição dos poemas homéricos
como texto de formação, por séculos, das classes dominantes.
108
o princípio espiritual dos gregos, que é o humanismo, mas recolhe e aceita
– continuamos a seguir a Werner Jaeger – a totalidade das transformações
do seu destino e as fases do seu desenvolvimento histórico.
De acordo com Franco Cambi (1999), na polis grega, a formação dos
cidadãos se dava mediante o conhecimento das leis e ritos, dos jogos
agonísticos ou ginásticos – masculinos e femininos – e da atividade teatral.
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes foram, enquanto dramaturgos, grandes
educadores da polis, mediante a educação comunitária pelo teatro. Franco
Cambi assinalou que os jogos agonísticos educavam pelo desafio, que era
físico, mas também de inteligência, pela chamada ‘razão astuta’. O
resultado poderia ser uma espécie de ‘vitória pacífica’, onde a raça e a
excelência poderiam se manifestar em sua forma esportiva. Segundo o
autor: “ a Arete masculina e feminina encontrava nos jogos agonísticos e
nas suas provas um momento de tensão formativa e de apelo à excelência
que estabelecia com o corpo e com seu domínio uma precisa e harmoniosa
atividade espiritual” (CAMBI, 1999, p. 79-80).
Ao longo do processo de formação da democracia ateniense, valeria
dizer, das instituições democráticas básicas, é sabido que a nobreza tornou-
se plutocrática, perdendo paulatinamente sua unidade e consistência
originais. A Atenas do século V, embora governada em nome do povo,
seria uma cidadela da aristocracia, democrática quando comparada ao
despotismos orientais. Milcíades, Temístocles e Péricles eram filhos da
antiga nobreza. Poetas e filósofos como Píndaro, Ésquilo, Heráclito,
Parmênides, Empênides, Empédocles, Heródoto e Tucídides, e até os
comediógrafos – cultores de uma arte que afinal seria essencialmente
democrática – eram aristocratas, alguns cabe dizer se não de origem, por
visão de mundo, e colocavam-se ao lado da aristocracia e da reação, da
mesma forma que plebeus como Sófocles e Platão, não integrantes da
nobreza, identificavam-se com essa. Algumas exceções foram anotadas por
Arnold Hauser, e pareciam resumir-se ao sofistas e a Eurípedes.
E foi justamente Eurípedes – autor de peças como Medeia, Electra
ou As Troianas – severamente criticado por Aristófanes, que o acusou de
corroer velhos ideais éticos da aristocracia, bem como os antigos cânones
idealistas da arte. Coube a Aristóteles, em sua Poética, citando a Sófocles,
se pronunciar no entendimento que Aristófanes retratara os homens como
deviam ser, ao passo que Eurípedes os havia retratado tais como eram.
De acordo com Hauser, partisse de Sófocles, de Aristófanes ou de
Aristóteles, o estilo clássico ou ainda, a arte clássica seriam representativas
109
de um mundo melhor, mais normativo e composto por seres eticamente
superiores. Observa Hauser que esse ponto de vista caracterizava uma visão
de mundo aristocrática, que prevalecia na época clássica e revelou-se
decisiva na escolha dos assuntos a serem representados. Dessa forma, a
tragédia veio a tornar-se, na opinião de Arnold Hauser,
110
O espírito a orientar o teatro oficial seria ainda menos popular que
o seu público, o qual aliás, não exercia qualquer influência na escolha das
peças encenadas, bem como nos prêmios que ocasionalmente a essas eram
atribuídos. Pois tais escolhas ficavam nas mãos dos cidadãos ricos, aos
quais cabia arcar com os custos das representações, ao passo que a
atribuição de prêmios era tarefa de representantes do conselho, decisão que
colocava em primeiro lugar as considerações de ordem pública. Dessa
forma, a entrada gratuita no teatro, bem como as compensações em
dinheiro pelo tempo nele gasto, serviam como fatores de inibição das
massas para exercer qualquer influência nos destinos dessas encenações,
fatores que podemos inferir, seguindo ainda a Hauser que, um teatro sob
tais parâmetros não era um teatro do povo, conforme tentaram crer os
românticos.
O verdadeiro teatro do povo, segundo Arnold Hauser (1982) teria
sido a farsa mimada, a qual resultara de uma evolução muito mais longa e
contínua que o chamado teatro oficial, e que não era subvencionada pelo
Estado, não recebendo, portanto, diretivas do poder constituído,
atendendo não obstante, em seus princípios artísticos, a experiência
imediata que provinha do contato com o público. Nessa forma de teatro,
as cenas eram naturalistas e curtas, esquemáticas – portanto, não haviam
dramas estruturados compostos por personagens heróico-trágicos de
origem nobre e ações sublimes – mas a vida cotidiana mais trivial,
conectada aos gostos populares e ao seu bom senso. Afinal, o objetivo da
farsa mimada não era instruir, mas distrair o público. Conforme explica
Hauser, os mímicos – atores da farsa mimada – podiam até ser atores
profissionais, mas mantiveram-se populares, ao menos enquanto a farsa
mimada não se tornou moda.
A produção teatral que compunha a farsa mimada – que não era tão
somente muito mais antiga que a tragédia, mas ligada às danças mágico-
simbólicas, ritos de colheita, magia da caça e culto dos mortos – foi quase
totalmente perdida. A tragédia grega ao contrário, provinha de uma forma
de arte não dramática – o ditirambo – e foi provavelmente buscar a sua
feição dramática – cabe dizer com o autor, da transformação de atores em
personagens fictícias e transposição do passado épico ao presente – à forma
mimada. A tragédia, definitivamente se propunha a atingir outros fins
aquém da mera distração do público, com o elemento dramático sempre
subordinado ao elemento lírico e didático, além obviamente do efeito
dramático do coro.
111
Assim, na avaliação de Hauser,
112
No portal da Modernidade, a ‘primeira volta
do parafuso’: Jean-Jacques Rousseau,
e o elogio da diversidade
65
Américo Vespúcio, o cosmógrafo da segunda expedição da exploração
portuguesa aos territórios americanos parece ser um daqueles que inauguram uma
longa série de comentários pejorativos aos povos nativos do continente, seguido por um
dos nossos primeiros historiadores, Pero de Magalhães Gândavo, português de Braga,
que estampou em 1573 o ‘Tratado da Terra do Brasil’ (GÂNDAVO, 1980), uma história que
seria na opinião de Capistrano de Abreu, antes natural que civil, sendo seu projeto
mostrar as riquezas da nova terra, tendo inspiração utilitária que visa a imigração. Para
Gândavo, as imensas riquezas do Brasil não combinavam com os indígenas que aqui
habitavam, “tam fugitivos e mudáveis” (1980, p.42). Ainda de acordo com esse historiador
quinhentista, “A língua deste gentio toda pela Costa He, huma: carece de três letras –
scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm
Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.” (1980,
p.52). Dos dois lados do Atlântico, os interessados na escravidão negra haviam utilizado
do mito de Noé (cap. IX do Gênesis), onde, pela interpretação moderna, os filhos de Cam
(identificados com os negros africanos) poderiam escravizar seus irmãos. Reforços
científicos aos mitos de natureza religiosa foram oferecidos pelo naturalista sueco Lineu.
Para este, os nativos da América, naturais das selvas (‘selvagens’) seriam coléricos,
amantes da liberdade, governados pelo hábito (BARROS, 2009, p. 76)
113
bom selvagem66. Considerado como dado a arroubos românticos,
Rousseau inverteu a lógica de uma longa tradição de posições nada
amistosas aos trópicos americanos, onde, se seus habitantes podiam ser
denominados por selvagens, esses selvagens – etimologicamente
habitantes das selvas – poderiam ser também, puros, bons e
‘romanticamente’ enobrecidos 67.
Para Rousseau, contudo, a selvageria não seria antecedente à
civilização, mas antes, sua consequente, pois considerava a corrupção
como um desvio do curso espontâneo da natureza. Também por suas
contribuições à ciência da Educação, ao retomar a relação dialógica
oferecida por Platão, e o deslocamento paidocêntrico que caracteriza sua
trajetória, Rousseau re-colocou o aluno no centro das atenções do debate
educacional, mobilizando o discurso acerca da educação, agindo pela
reanimação desse mediante o alinhamento aos ideais de liberdade da era
das Luzes, porém em uma espécie de aprofundamento sob o fio de navalha
que o levou ao rompimento com os limites demarcados pela philosophie 68.
Autores dos mais diversos quadrantes colocaram em relevo as
contribuições de Jean-Jacques Rousseau: Frederick Eby o considerou o
‘Copérnico da civilização moderna’ (EBY, 1973); Franco Cambi (CAMBI,
1999), lhe deu o título de “ ‘Pai’ da Pedagogia contemporânea”; Elizabeth
S. Lawrence (LAWRENCE, s.d.) evidenciou o apelo em favor da realidade,
do interesse do aluno e da experiência direta na Educação, enquanto que
Mario Alighiero Manacorda (MANACORDA, 1996) defendeu que o
pensamento educacional rousseauniano é complexo, se alinha ao
conhecimento das coisas úteis e se perfila a aspectos de relevância social.
Essas observações merecem um maior aprofundamento, pois parecem
fazer das proposições de Rousseau uma espécie de novo paradigma, que,
ao mesmo tempo oferece uma ponte para a Modernidade, mas que também
66
Frederick Eby anotou que Rousseau teria ficado extremamente impressionado
com o Robinson Crusoé de Defoe, e prescrevera o livro para constituir toda a biblioteca
do seu Emílio, durante a juventude. (EBY, 1973, p.279)
67
Além dos já mencionados Vespúcio, Gândavo ou Lineu, havia uma literatura em
profusão voltada a propagar a degeneração que entendiam marcar o continente
americano. Essa discussão foi apresentada de maneira magistral por Antonello Gerbi
(GERBI, 1996), onde são apresentados os discursos de Raynal, De Pauw e Voltaire, entre
outros.
68
É essa a opinião de Giovanni Reale e Dario Antiseri (REALE; ANTISERI, 2009) acerca
do ambiente que favoreceu tal rompimento, contexto no qual foram alinhados a Nova
Heloísa (1761); o Contrato Social (1762); e, finalmente, o Emílio (1763).
114
recupera antigas lições quanto à utilidade do conhecimento para a vida
prática, como desejavam os gregos antigos.
Em relação a essa passagem para a Modernidade caberia confrontar
tal desafio com o programa do Terceiro Estado, talvez aqui sirva melhor a
expressão burguesia, cujo núcleo de intelligentsia 69mais influente à época
de Rousseau era representado pelos enciclopedistas. Rousseau acabou por
romper com esse grupo, denunciando a faculdade de raciocínio concebida
por esses como egoísta, cínica e desdenhosa em relação às massas (EBY,
1973, p. 282). Assim, Rousseau não pretendia afastar-se da civilização, mas
contribuir com esforços para regenerá-la, daí as suas teorias sociais –
sobretudo a presente em seu ‘O Contrato Social’, e educacionais (A nova
Heloísa; Emílio ou da Educação) se encontrarem em íntimo contato.
Para Rousseau, o Estado em sua forma ideal deveria permitir a
participação direta dos cidadãos, e ele tomava como exemplos Esparta na
Antiguidade, e Genebra, em seu tempo de vida. Para esse filósofo, não
deveria haver representação: o povo, entendido como a reunião de
indivíduos, ajudaria na elaboração das leis, dado que a essas estaria
doravante sujeito. Pensava que nada mais justo que fosse delas o autor.
Porém, uma vez deliberada em praça pública acerca de alguma questão, o
desejo manifesto da maioria transmutava-se em uma ‘vontade geral’, aqui
entendida como um bem universal.
Em compromisso com suas proposições especificamente políticas,
de um Estado voltado à realização do povo pela expressão da vontade geral,
Rousseau passou a tratar da Educação interpelando as necessidades
daqueles a quem mais interessava o processo educativo, tudo em
compromisso com as lições da natureza, em um curso natural de
desenvolvimento.
A criança passava a ser considerada como uma criatura da natureza,
despidos os pressupostos da cosmologia medieval – lembremos que a luta
dos philosophes que estabeleceram o discurso contra o ancién régime era
basicamente contra os privilégios do clero e da nobreza, esses dois
estamentos medievais – que a tratavam como uma miniatura de adulto.
Assim, a Educação passava a ser um processo em continuidade e
conformidade ao desenvolvimento orgânico (natural) da criança, onde esta
69
Emprego o termo na concepção que lhe deu Karl Mannheim, a qual seria de um
grupo social que se considera apto para tarefas dirigentes de grande magnitude, e a
partir de tal constatação, passa a se atribuir uma singular missão, que consistiria em dotar
uma sociedade de uma interpretação do mundo.
115
deveria adquirir hábitos, habilidades e atitudes, em consonância à tradição
acumulada pelo processo civilizatório.
O Emílio (ROUSSEAU, 1968), é um romance pedagógico que
acompanha a trajetória do personagem que lhe dá título, no espaço
temporal compreendido entre o nascimento e o matrimônio do
protagonista. Órfão, Emílio é levado para o campo sob a orientação
vigilante de um preceptor. Composto por cinco livros, o tratado educativo
romanceado alinhado por Rousseau quase sempre é citado para dar vazão
ao empenho do filósofo em reverter o quadro palavroso, baseado no verbo,
no símbolo destituído de significado, e na sobrecarga de conhecimentos
para digerir. Rousseau valoriza o raciocínio e a motivação. Pelos roteiros
do Emílio, a aprendizagem se faz pelo jogo, onde a criança até sofre, mas
sem coação, e sem lamentações, pois a atenção que dispensa à atividade faz
parte dos seus interesses e dos seus desejos.
Porém, esse tratado tão singular não se limita à educação de crianças,
pois o quinto e último livro alcança um Emílio já adulto, consciente e
disposto a intervir como cidadão, a ampliar horizontes intelectuais e a
conhecer outros povos, não por ouvir falar, mas pela sempre valorizada
experiência das viagens. Para Rousseau, seria insuficiente a um homem
educado conhecer somente o seu próprio povo. Conhecer desprovido de
preconceitos, é um princípio educativo presente em Rousseau
(LAWRENCE, s.d., p. 190), mas que também encontramos afirmado no
pensamento decolonial.
Assim, o último capítulo do tratado educativo parece oferecer um
horizonte de formação continuada que autoriza inscrever o autor no
universo da educação voltada aos adultos. Utilizando de princípios que
hoje identificaríamos como de teor andragógico, Rousseau finalmente
reverte impressões que figuravam como um aparente desprezo pelos livros,
e parte a citar autores clássicos como Tácito; Heródoto; Plínio; Platão;
Grotius; Montesquieu, e o Telêmaco de Fénelon, o que acabará por incluir
Homero. Rousseau chega a mencionar um dos contratualistas – Thomas
Hobbes – o qual acusa de apoiar-se em sofismas (ROUSSEAU, 1968, p.
552), certamente para denegar a idéia do ‘pacto social’ presente no famoso
‘Leviatã’.
Caberia ao leitor adulto, animado pela motivação e pelo interesse
sem coação, conceitos que transitam por Rousseau, mas também pelas
questões que gravitam pela Educação de Jovens e Adultos, responder a
esses apelos em uma aventura pelo conhecimento, de forma autônoma?
116
A segunda ‘volta do parafuso’ na Modernidade:
Karl Marx
70
Utilizo a noção de ideologia no sentido formulado por Clifford Geertz (GEERTZ,
1989), ou seja, como um sistema simbólico no qual os homens passam a ser
conscientizados acerca dos seus conflitos, e do lugar que ocupam na sociedade. Dessa
forma, se pretende afastar a concepção valorativa – Geertz dirá pejorativa – em voga
atualmente, nas Ciências Sociais.
117
criativo. O discurso burguês de progresso e libertação humana dos rigores
extenuantes do trabalho foram diluídos pelo sistema capitalista, com a
concorrência pelo mercado contribuindo para coisificar não somente o
trabalho, mas o próprio homem, do qual foi subtraída a possibilidade do
desenvolvimento pleno do seu caráter.
Em suma, as relações de produção impostas pelo capitalismo,
haviam reduzido o homo sapiens em homo faber, ser unidimensional. Essas
linhas tentam sumarizar a peça acusatória marxiana ao modo de produção
capitalista. Uma situação que se destaca pela contraditoriedade, pois
continua a manter o homem com seu trabalho, como o principal elemento
das forças produtivas, que constituem afinal, as condições materiais de
toda a produção, e principal elemento dessas forças, sendo o responsável
por fazer a ligação entre a natureza, a técnica e os instrumentos, mas
alienado sistematicamente da posse desses meios de produção, e
consequentemente, do produto final dessa produção.
Para Marx, a História humana havia sido, até então, um embate
contínuo entre dominantes e dominados, cujos modelos de família,
religião, leis e idéias políticas plasmariam em termos funcionais, a visão dos
grupos dominantes em cada época. Era preciso portanto libertar a
humanidade da exploração material, e de tantas outras opressões, de
natureza simbólica.
Cabe ressaltar no entanto que, à época da juventude de Marx, as lutas
do proletariado deveriam visar prioritariamente o estabelecimento de uma
plataforma de ideias que fosse coerente em sua análise de conjuntura e que,
concomitantemente a isso, lograsse reunir os trabalhadores em forte
organização de classe, condição que nos favorece a tratar o marxismo tanto
como uma ciência em construção, quanto como uma estratégia de lutas
sociais. O ‘Socialismo Científico’ de Karl Marx e Friedrich Engels já surgiu
dotado de sofisticada elaboração teórica, francamente em contradição às
drásticas limitações de acesso à cultura formal sofridas pelos trabalhadores
da época. Não foi mero acaso que os principais fautores a que tais idéias
libertadoras tenham vindo a lume, ganhando vida, e se espraiado até as
lutas hodiernas por pão, paz e terra tenham sido dois intelectuais de origem
burguesa.
O marxismo havia sido elaborado como uma crítica à sociedade
burguesa, a partir de uma interpelação científica à economia política
inglesa, ao socialismo francês e à filosofia clássica alemã. Essa crítica da
sociedade burguesa apareceu em notável amplitude nos Manuscritos
118
Econômico-Filosóficos (MARX; 2010), lavrados em 1844. Marx realizara
ao longo dessa pequena obra uma apreciação de caráter ético que
descortinava a subversão dos valores vinculados ao trabalho, quando
submetidos aos pressupostos estruturais da sua subordinação aos
interesses do capital.
Marx apoiara-se então em crenças que envolviam não somente a
realização humana decorrente do trabalho, mas também naquilo que
poderíamos chamar como a própria salvaguarda dos valores morais e
éticos que deveriam cimentar a continuidade da trajetória humana, os
quais se viam em risco, face ao estancamento da humanidade inerente ao
trabalhador, pelos processos desumanizadores experimentados e
decorrentes nas relações de trabalho.
O estranhamento causado pelas determinações do sistema de
propriedade privada, com a apropriação de parte do trabalho pelo capital,
aparece então como objeção sócio-econômica à realização humana,
levando à negatividade do trabalho que passaria a produzir não mais
realização e promoção do ser humano, mas desigualdades sociais cada vez
maiores, replicadas não somente nas condições materiais de existência,
mas transmitidas também, conforme propõe o conceito marxista de
alienação, nas manifestações do espírito humano, como as atividades
próprias à cultura.
Cabe lembrar que à época de Marx já havia uma produção teórica
que sustentava o que poderíamos chamar por estética marxista, à qual
agrupava algumas formulações que teorizavam acerca da divisão de
trabalho imposta aos homens na sociedade de classes sob o sistema
capitalista, ou seja, que nos permitem pensar que atividades a envolver o
intelecto e a criatividade não deveriam ser apanágio de indivíduos
considerados excepcionais, que a priori estariam autorizados por suas
habilidades e talentos, a desligar-se da massa do povo.
Segundo o marxismo, uma sociedade que visasse um futuro sob o
socialismo não poderia permitir as amarras que pretendiam fazer do
homem um ser unidimensional, sob uma esfera exclusiva de atividades,
mas alguém que venha a se tornar completo no ramo no qual desejar, ou
como escreveu Tom Bottomore, fazendo “uma coisa num dia e outra coisa
amanhã, caçar pela manhã, pescar à tarde, cuidar do gado ao entardecer e
dedicar-se à crítica depois do jantar, sem que, por isso, o indivíduo deva
tornar-se caçador, pescador, pastor ou crítico” (1988, p.18).
119
Conforme o que Mario Alighiero Manacorda (2017) nos oferece, a
unilateralidade, espécie de defeito congênito ao que o modo capitalista de
produção levou a sociedade, incapacita para a vida tanto aos trabalhadores,
quanto aos burgueses, mutilando a ambos em suas potencialidades físicas
e morais. Alienados da vida estaria o proletariado, mas também o seu
patronato capitalista. Contudo, caberia à classe trabalhadora romper esse
círculo vicioso, e ao libertar-se, também romper as amarras viciantes de
prazeres e consumos inveterados dos seus dominantes.
Na emancipação do operário estaria então implícita, a emancipação
humana geral, conforme grafou Marx em seus Manuscritos Econômico-
Filosóficos. Mas para que isso ocorresse, uma outra forma de revolução
teria que se instaurar, na forma do rompimento de limites de uma
experiência limitada, no que cumpriria alçar novos voos que permitam
estabelecer formas de domínio da natureza muito além do estreito controle
de uma ferramenta de trabalho. Assim, na sociedade moderna, o
preenchimento das lacunas que fazem do homem um ser unilateral se daria
pelo desejo consciente em instruir-se em um movimento de re-integração
das estruturas da ciência com a produção. A sociedade moderna, com seus
constantes desafios de variações tecnológicas estaria cumprindo um papel
histórico no sentido de pavimentar a inadiável tarefa da classe trabalhadora
no sentido de articular teoria e experiência. Se já fora adiantado por Jean-
Jacques Rousseau, a partir de então ficava ratificado por Karl Marx o papel
do interesse e da motivação que movimenta as proposições de uma
Educação voltada a trabalhadores, ou, em novo sentido, a Jovens e Adultos.
120
Paulo Freire, e a EJA, em articulação
com o pensamento decolonial
121
saber, a dimensão do político (poderíamos dizer do poder); do científico
(falaríamos então, da verdade); e, da estética (ou se preferirem, da beleza).
Esses critérios já estavam presentes em Homero, mas também nos
dramaturgos gregos da tragédia: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
A Educação, assim como a História, remete, assim defendemos, a
uma constituição de sentido. Assim, o discurso educacional, estando
vinculado a um poder, deve contudo, constituir-se pelo respeito aos
direitos humanos. O direito à educação e à vida, por exemplo, deverá ser
garantido pelo Estado; na dimensão da ciência, os princípios
metodológicos serão associados à discursividade argumentativa, logo, todo
e qualquer cogito terá de ser submetido ao escrutínio de uma avaliação que
comprove sua veracidade, eis o critério científico da sua validação. Em
outros termos, essa discursividade corresponde à palavra. Para Freire, é
pela palavra que os homens se constituem.
Em Educação e Atualidade Brasileira (FREIRE, 2001), sua tese,
Paulo Freire dialoga com ideias de luminares da Educação, como Fernando
Azevedo e Anísio Teixeira, mas também de liberais e conservadores que,
de forma conseqüente, contribuíram para que se pensasse o Brasil, como
Hélio Jaguaribe e Roland Corbisier, ou marxistas do porte de Nélson
Werneck Sodré e Florestan Fernandes, auferindo valiosas lições. Na sua
grandeza, Paulo Freire conseguiu conviver de forma respeitosa e
harmoniosa com teses de contrários, nunca entendidos como inimigos a
serem eliminados, mas ouvidos respeitosamente em suas razões. Na figura
5, temos as consequências da antinomia fundamental da atualidade
brasileira identificada por Paulo Freire (FREIRE, 2001):
122
Figura 5: Resultantes da antinomia da
atualidade brasileira, segundo FREIRE, em 1959
123
participação ativa nas demandas a serem inscritas na agenda pública,
contraposta ao reacionarismo das antigas elites fundiárias, sócias
minoritárias do capital internacional. Líderes populistas, falando não por
delegação do povo, mas por transferência de suas responsabilidades, que se
sabia, inalienáveis, prosperavam. Derrotado em sua tese de concurso para
a Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de
Pernambuco (FREIRE, 1959), o professor Paulo Freire voltou-se aos seus
projetos em benefício dos oprimidos.
No início dos anos de 1960, Paulo Freire cumpria seus encargos
docentes como Professor da Escola de Serviço Social da Universidade de
Pernambuco (atual UFPE). Em uma aula da turma do primeiro ano de
Pedagogia, resolveu mostrar às suas alunas uma revista da UNESCO
(FERNANDES; TERRA, 1994), onde era descrito um método de
alfabetização de adultos realizado com ajuda de recursos audiovisuais. O
experimento era franco-africano, e havia sido realizado por um padre
haitiano.
Como era de se prever, a classe manifestou grande interesse, e assim,
Freire trouxe um aparelho projetor, bem como algumas transparências
desenhadas em papel vegetal, por seu assistente, um aluno de medicina,
militante no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, que
desenvolvia um método de alfabetização com uma turma noturna de
adultos tiradores de areia do rio Capibaribe. O salão paroquial da Igreja
Nossa Senhora da Saúde, localizada no Poço da Panela, próxima à moradia
dos Alunos, servia então como sala de aula. À época, Paulo Freire era o
Diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Pernambuco.
O método de alfabetização parecia responder, com exigência de poucos
recursos, aos desafios daquele tempo. As alunas em questão, e o Professor
Paulo Freire identificaram nesses quesitos uma grande oportunidade, no
que hoje conhecemos por método Paulo Freire.
O método oferecia inauditas possibilidades e exigia reduzidos
recursos para um projeto de educação de base. São bastante conhecidas as
experiências dos programas de educação popular no início da década de
1960, como o Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à Igreja
Católica; o Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP); a Campanha
de Pé no chão, também se aprende a ler, Natal/RN (BEISIEGEL, 1995).
Porém, o método do professor Paulo Freire fora testado e avaliado como
solução aos problemas continentais do analfabetismo, conforme
preconizava a Carta de Punta Del Este. Paulo Freire foi convidado a
124
coordenar o Programa Nacional de Alfabetização do governo do
presidente João Goulart (COSTA, 2021). Trabalhadores, computados em
cifras de milhões, seriam incorporados na condição de novos eleitores no
processo consciente de decisão – lembremos que o alistamento eleitoral era
vedado aos analfabetos – pari passu à redução que seria cada vez mais
crescente, do universo de analfabetos.
A reação não se fez por esperar. Na madrugada de 31 de março de
1964, um golpe militar apoiado por setores conservadores da sociedade
civil, e impulsionado financeira e logísticamente por alianças espúrias do
capital internacional, sob o beneplácito do governo norte-americano,
ganhou as ruas das principais cidades brasileiras. O Programa Nacional de
Alfabetização foi uma das primeiras vítimas desse rompimento
institucional. O que tanto amedrontava as forças reacionárias? Carlos
Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1981) nos oferece algumas pistas. Em
primeiro lugar, o método Paulo Freire não visava somente a alfabetizar,
mas a libertar, propondo a criação e a transformação, re-humanizando
aqueles que haviam sido deserdados do mundo. Era uma forma criativa de
educar, e não de ‘ensinar’, no sentido de tentar a ‘domesticação’ do
indivíduo.
Um dos pressupostos do método – voltado como sabemos para o
ensino de Adultos – seria a idéia de que ninguém educa ninguém, e ningué
se educa sozinho. A educação face ao método Paulo Freire deveria então
ser um ato coletivo, solidário, amoroso, e conforme esse último
sentimento, não poderia ser imposto. O método cumpria etapas
pedagógicas – seguimos a Carlos Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1981),
e iniciava pelo levantamento do universo vocabular. O objetivo imediato
era a obtenção dos vocábulos mais utilizados pela população local,
considerados mais adequados para uso na alfabetização. Reuniões eram
então aproveitadas para pesquisa, tais como rezas, festas, assembléias de
sindicato. Reduziam-se ao máximo a distância entre os pesquisadores e os
pesquisados, a quem eras dadas vez e voz. Enfim, o mundo da comunidade
era revelado em temas e palavras geradoras. O material do método, em
evidência, as fichas de cultura, podiam ser criadas na própria, e pela própria
comunidade. O trabalho se completava nos círculos de cultura, uma
inovação semântica para substituir a palavra sala de aula. Como podemos
perceber, um método carregado nas fortes cores da organicidade.
Assim, para Paulo Freire, a liberdade, resultante da palavra e das
ações, é uma conquista, e não uma doação. Por seu turno, a estética
125
freireana inspirada na relação seminalmente hegeliana do senhor-escravo
é fundamentalmente dialética, sua práxis é libertadora, e é nessa busca
incessante pela liberdade que ela se retroalimenta para compreender e
intervir na realidade, de forma precisa e orgânica, com vistas a superar as
contradições, e realizar o parto que dará à luz o homem novo. Esse temática
acompanha Paulo Freire ao longo da sua Pedagogia do Oprimido (FREIRE,
1978). Observemos a figura 6, abaixo:
126
Em suma, numa de suas mais conhecidas obras, recorro novamente
à Pedagogia do Oprimido, na qual se inspirou a figura acima, Paulo Freire
(FREIRE, 1978) se aproxima de Karl Marx, grande humanista como Freire,
para defender, com base nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos
(MARX, 2010), o pertencimento do homem em relação aos frutos do seu
trabalho, ao mesmo passo que realça a liberdade humana face a esses
produtos. E mais, se apropria da sabedoria de líderes revolucionários como
Mao-Tsé-Tung e Ernesto “Che” Guevara, que, no calor da hora, souberam
se posicionar em relação às necessidades de seus povos.
Do “Grande Timoneiro da Revolução Chinesa”, extrai a
correspondência que deve existir entre a visão de mundo das massas
urbanas ou camponesas na incidência das ações dos projetos
revolucionários. Quanto ao “Che” caberia mencionar, é citado em segunda
mão por Paulo Freire, no que frisava que um autêntico revolucionário
correria o risco de parecer ridículo, caso não fosse guiado por grandes
sentimentos de amor. Caberia lembrar que é com uma poética declaração
de amor aos esfarrapados do Mundo, que Freire iniciou sua paradigmática
obra Pedagogia do Oprimido.
Considerações finais
127
maneira simbiótica em relação à sua polis, dado que foram estabelecidas
funções que o preservam dos trágicos destinos daqueles antigos, apesar de
encerrá-lo nos encargos familiares e paternos, em uma afetividade de foro
íntimo, enquanto preceptor dos próprios filhos.
O recurso à natureza ao qual Emílio deve parte da sua formação
representaria assim uma reserva de opções, caso a sociedade não se re-
encontrasse à espécie de elo perdido que Rousseau procura oferecer com o
seu Contrato Social. Em todo caso, já adulto, o Emílio não seria um exilado
dos tesouros da civilização, pelas sugestões contidas no último livro do
tratado educativo que lhe é homônimo.
Por sua vez, Karl Marx nos oferece de acordo com a metáfora que
propomos, a segunda volta do parafuso na Modernidade, pois se J-J.
Rousseau havia atualizado a formação do cidadão, o ‘corifeu da filosofia
crítica’ veio oferecer uma realidade desnuda de ilusões em relação às
promessas da dupla revolução do século XVIII. Ao vincular a necessidade
da Educação como condição sine qua non à libertação da classe
trabalhadora, Karl Marx emancipou a humanidade, inclusos os dominados
e os dominantes, das amputações que conduzem à unilateralidade do
indivíduo, formulando um programa educativo que transita com
habilidade, rumo à ominilateralidade, ao mediar trabalho intelectual e
manual.
Cabe ressaltar que os gregos da Antiguidade, na fronteira entre o
Ocidente e o Oriente acolheram as conquistas do espírito de diferentes
povos, alteridade hoje reputada como um dos componentes do seu sucesso.
Rousseau apontou para esse valor, ao elevar, ainda que com boa dose de
romantismo, as virtudes e conhecimentos de civilizações localizadas fora
do espaço europeu. Karl Marx, de certa forma, aproximou as populações
de todos os continentes, com preeminência para aqueles que se
encontravam alheios aos espaços de determinação do poder, apontando
para a necessidade de uma drástica alteração nas relações de produção, o
proletariado – Marx falará no seu Manifesto de 1848, ‘proletários de todo
o mundo, uni-vos’ – deveria assumir o protagonismo das ações.
Foi sob a inspiração desses luminares que Paulo Freire surgiu, no
bojo de um processo histórico que continha – sob o discurso nacional-
desenvolvimentista levado a efeito no Brasil, sobretudo ao término da
Segunda Guerra Mundial – de forma acessória, mas nem por isso menos
importante, a indeclinável tarefa de resolução da antinomia fundamental
entre a inexperiência democrática que permeava a população brasileira,
128
pelo histórico autoritário e patriarcal, cuja continuidade não era autorizada
pela emersão do povo na vida nacional.
Para Paulo Freire, esse adiado protagonismo do homem comum na
agenda pública não surge como um pesadelo do surgimento do ‘monstro
da lagoa brasileira’ que povoava os piores pesadelos da crônica
conservadora do início do século XX. Pois para Freire, a tônica do
desenvolvimento somente faria sentido se acompanhada pela formação de
uma consciência transitivo-crítica, peça fundamental à democracia.
Paulo Freire mantém afinidade com o que havia de melhor na
herança das formas do pensamento educacional, conforme viemos
pontuando. Assim ele não rompeu com os cânones que afinal, se revelaram
transhistóricos, deles se apropriando de forma dialética, cujas marcas
fundamentais seriam a organicidade, o diálogo, a autenticidade, a
historicidade, e o compromisso com os saberes daqueles que respeitosa e
solidariamente identificou como sendo os ‘esfarrapados do mundo’.
129
Referências
130
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 4.ed. São Paulo: Mestre
Jou, 1982.
MARX, Karl & ENGELS, Friederich. A Ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1991.
131
Capítulo 6
Dizer-se: Paulo Freire e a escrita
autobiográfica feminina negra na EJA
132
DIZER-SE: o ensino da escrita literária e
autobiográfica no PROEMJA/ UFMG
71
A escrita autobiográfica feminina na Educação de Jovens e Adultos: subjetividade
e memória. Pesquisa de Mestrado do Promestre/FAE/UFMG, realizada junto aos
Educandos e Educandas do Centro Pedagógico/UFMG, por Maria Marlete de Souza sob
orientação da Professora Míria Gomes de Oliveira.
133
Mulheres da Educação de Jovens e Adultos: um
recorte interseccional
134
acesso a direitos universais, incluindo a educação básica. Para além das
especificidades dos sujeitos da EJA, elas buscam trilhar caminhos para
enfrentar as diversas opressões estruturais, ancoradas na sobreposição
desses marcadores de diferença e buscam sair do não lugar atribuído a
elas, marcado desde a infância até a vida adulta. Após cuidar da família e
com os filhos crescidos, estas mulheres voltam para a escola em busca de
valores atribuídos ao mundo da escrita, objetivando a conclusão do Ensino
Médio, fazer faculdade e ter uma profissão socialmente valorizada.
De acordo com pesquisa do IBGE, referente aos dados de 2018, 11,3
milhões de pessoas no Brasil (6,8% da população) com 15 anos ou mais são
analfabetas. Desse total, 9,1% são pretos ou pardos enquanto a taxa de
analfabetos de pessoas brancas é de 3,9%. O número de analfabetos está
concentrado na região Nordeste seguido do Norte (7,98%), Centro Oeste
(5,40%), Sudeste (3,47%) e Sul (3,63%). Do total de analfabetos divulgados,
6,6% são mulheres, enquanto que 7,0% são do sexo masculino. Os números
levantados no PROEMJA-CP/UFMG corroboram esta pesquisa, pois
mostram um número significativo de mulheres que após criarem os filhos
e cuidarem da família, retomam o percurso escolar com o objetivo de
aprender a ler e escrever, de adquirirem autonomia e o exercício de sua
liberdade para além das demandas familiares. Esses dados nos levam a
pensar no quadro de exclusão da mulher na educação escolar brasileira.
Sobre isso, relata Carolina 1:
135
dois anos de estudos) da população negra com relação à branca
(FERRARO, 2010, pp. 513-514). O referido autor enfatiza, ainda, que existe
uma relação direta com as questões sociais, de gênero e raça/cor.
No caso das mulheres negras, há um duplo enfrentamento das
desigualdades no que se refere às questões de gênero (sua relação frente ao
homem) e raça (frente às mulheres brancas). Esse enfrentamento, aos
poucos, mostra que é preciso resistir para mudar as estruturas racistas
presentes nas instituições brasileiras.
Segundo Conceição EVARISTO (2016), apesar das condições
adversas que as mulheres negras vêm enfrentando, “elas têm e tiveram
papel importante na formação da identidade brasileira, empreendendo
lutas contra o racismo e o desmascaramento do mito da democracia racial,
além de atrair interesses de outros segmentos da sociedade civil organizada
(p. 109).
Nos últimos anos, esse enfrentamento vem ocorrendo em várias
frentes contra a violência doméstica e ao racismo, bem como a luta pelo
direito e acesso ao ensino público de qualidade. De acordo com GOMES
(2011), assistimos atualmente no Brasil, a articulação da comunidade negra
organizada pela implementação de políticas e práticas educacionais
específicas para a comunidade negra, como as Políticas de Ações
Afirmativas, reivindicando acesso à educação, saúde, trabalho, etc. ( p. 89).
Ainda segundo a autora, “o movimento negro trouxe a discussão sobre a
desigualdade racial para a arena política, para o debate público e para as
práticas e currículos escolares da educação básica, da universidade e
também da EJA.” (GOMES, 2011, p. 90).
Diante dos dados apresentados, constatamos que não há como
pesquisar os sujeitos da EJA no Brasil sem trilhar os caminhos das
desigualdades de classe, de gênero e raça. São questões que caminham
juntas e, por isso, constituem a condição perversa reservada às mulheres
negras na sociedade do capital. O perfil sociocultural traçado a partir de
questionário e as histórias de vida contadas em textos autobiográficos,
reiteram os dados do IBGE em relação às educandas do PROEMJA:
mulheres, em sua grande maioria, negras podres que interromperam os
estudos, ou não frequentam a escola para cuidar dos filhos, além de todo
trabalho doméstico.
Freire (1979), ao falar sobre a importância da alfabetização, declara
que seu ponto mais exato seja, talvez, "aprender a escrever a sua vida, como
autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-
136
se, historicizar-se". Na medida em que o sujeito se vê como testemunha de
sua própria história, ele constrói uma consciência reflexiva e se torna
responsável por ela. Mais ainda, se torna consciente dos seus direitos para
"aprender a dizer a sua própria palavra, seu mundo, sua história na qual se
sabe autor" (FREIRE, 1979, p. 4). Assim, também, podemos dizer que no
processo de aprendizagem da escrita de si, mediado pela leitura das obras
autobiográficas de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo, as
educandas se engajaram, em um processo de afirmação identitária, fazendo
viva e cheia de significados a palavra traçada para representar cada
experiência vivida.
Se um dos caminhos para a liberdade é a educação, para as
educandas da EJA, a escola é, também, realização e superação. Essa
liberdade, que segundo Freire "é uma conquista, e não uma doação, exige
uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável
de quem a faz". (FREIRE, 1979, p. 35). Assim Carolina 2 afirma em seu
texto:
137
A escrita autobiográfica no PROEMJA-CP/UFMG:
escrevivências
Paulo Freire
138
gêneros padronizados e específicos que exigirá diferentes tipos de
habilidades.
Philippe LEJEUNE (2008) define autobiografia como "... narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade." (p.14). Considerando-se a diversidade de gêneros textuais
que retratam a escrita de si, como por exemplo, biografias, autobiografias,
romances autobiográficos, autoficção, autobiografias ficcionais etc., torna-
se difícil distinguir de forma objetiva as diferentes formas de
autobiográficas possíveis. Segundo o autor, para que haja o chamado pacto
autobiográfico é necessário que esteja presente no texto a reunião das
seguintes categorias: escrita em prosa, que o tema seja referente à vida
individual, que haja marca da identidade do narrador e do personagem e
que seja uma narrativa retrospectiva. Quem é esse eu que fala? Ou quem
diz algo sobre mim? A construção do texto autobiográfico é marcada pelo
uso do pronome em primeira pessoa eu, identificando aquele que fala,
marcando sua identidade enquanto sujeito da enunciação e do enunciado.
No capítulo A autobiografia dos que não escrevem, LEJEUNE (2008)
declara:
139
censuradas assim como os assuntos liberados tinham que pertencer
a um conjunto de temas predeterminados e aceitos pela sociedade da
época. Portanto, sendo as produções literárias, no século XIX,
dominadas pelos homens, as mulheres, para se livrarem da crítica e
da opinião pública, assinavam seus escritos com pseudônimo
masculino.
No caso específico das práticas e textos literários trazidos à sala
de aula de Língua Portuguesa, vale destacar que desde o final do
século XIX, as escolas brasileiras têm sido um dos principais
contextos que legitimam obras literárias através da ideia de clássicos
nos currículos escolares. Ao longo do século XX, a grande maioria
da produção literária foi escrita por homens brancos de alta classe.
O sistema escolar acumula, ainda, a exclusão escolar da população
negra. É importante lembrar que, a lei de educação n. 1, de 1837 e o Decreto
nº15 de 1839 (BRASIL, 1837, art. 3º), dispunha que “os escravos e os pretos
africanos, ainda que sejam livres ou libertos” estavam proibidos de
frequentar escola pública. Em 1879, cai o veto mas o racismo segue
coagindo a pessoal e emocionalmente os estudantes negros. A partir de
1911, a implantação de realização de exames admissionais e a cobrança de
taxas nas escolas, garantem a exclusão da população negras em escolas
públicas.
Os escritos autobiográficos das educandas do PROEMJA-
CP/UFMG trazem as marcas do peso de cada fator de exclusão. Mais: a
escrita representa, por um lado, a denúncia da opressão ainda guardada na
memória e, por outro, a oportunidade de DIZER-SE e de resignificar fatos
vivenciados e a partir do tempo presente. Momentos em que percebem que
o mérito não é algo subjetivo mas em diálogo com as condições sociais da
sociedade em que está inserido.
Os textos elaborados pelas educandas da EJA deixam ver o eu, citado
por Lejeune (2008), ao mostrarem o caminho percorrido pelas autoras e
apresentarem suas escrevivências de um campo discursivo comum, através
de uma linguagem comum ao grupo. São mulheres negras que, mais do que
escrever suas autobiografias, querem contar suas trajetórias como
protagonistas e autoras a partir de suas perspectivas de vida. Como nos
ensina Conceição Evaristo, sobre o ato de escrever vivências:
140
A base desse conceito atual traz como fundamento
uma escrita que representa o coletivo... de mulheres.
Não é que os homens não posam trabalhar com isso.
A mola propulsora disso é quando eu penso em
mulheres, quando eu penso também na condição
étnica. Não é que as pessoas brancas não possam criar
suas escrevivências, criam, entende, não é isso que eu
estou dizendo. Mas eu quero dizer é que tem aí atrás
dessa fala, desse conceito essa imagem histórica [...] e
também é um conceito que ele nasce chamando o
coletivo, eu não digo a minha escrita, eu digo a nossa
escrita. Então tem também essa ideia de coletivo,
dimensão do coletivo. Um coletivo que está ali no
centro da cena, estão as mulheres negras.
(EVARISTO, 2019).
141
O compromisso subversivo e libertário está no centro da mediação
do conhecimento trazido pelo professor, fazendo das práticas de leitura e
escrita o lugar de conscientização das exclusões de raça e gênero. A escolha
das obras literárias e a organização do currículo, exerce grande influência
nas práticas de leitura e escrita dos educandos e educandas. Por isso, a
importância da Lei 10.639/03, ao garantir a inclusão da Literatura, História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação. A lei abre
caminhos para a discussão da diversidade étnico-racial brasileira em
contextos escolares, ampliando momentos de tomada de consciência sobre
as peculiaridades do racismo à brasileira.
Os textos autobiográficos apresentados pelas educandas da EJA
apontam para o fato de que, mesmo estando em outros espaços e em outros
tempos, a memória construída ao longo dos anos mantém viva a trajetória
percorrida por cada uma durante todo esse tempo e, mostram que, mesmo
passando por situações de racismo e dificuldades financeiras, elas
acreditam na educação e na reconstrução de uma vida melhor ao
retomarem o percurso escolar.
É recorrente, nos textos, a negação do direito à educação relacionada
ao casamento e à necessidade de sustento da casa. Além das questões
socioeconômicas, a questão de gênero é um marcador de diferença no que
se refere à maternidade como dever exclusivo das mulheres, conforme
relata Carolina 3:
142
Podemos observar, por meio das narrativas, a superação das
dificuldades enfrentadas pelas educandas, cujos textos estão permeados
por questões sociais, políticas e econômicas em que a pobreza leva ao
abandono da escola para lutar pela sobrevivência. A questão de gênero é
um marcador de diferença no que se refere à maternidade como dever
exclusivo das mulheres conforme trechos do texto de Carolina 4 abaixo:
143
buscada, muitas vezes, na alma e trazida para a superfície junto com um
sentimento duplo de tristeza e superação.
Escrever a autobiografia é uma chance de voltar ao passado e trazê-
lo, via memória, ao presente. É dizer o passado a partir da luz do presente.
É importante ressaltar que as educandas da EJA se posicionam, através da
escrita, sobre o tempo passado com a linguagem dos conhecimentos que
têm no presente e com perspectivas de futuro. Assim, Carolina 5 escreveu:
144
A metáfora do analfabeto como um cego em nossa sociedade conota
o papel dado ao mundo da escrita na perspectiva de Carolina 6. A leitura
é percebida como a responsável por tirá-la do mundo da cegueira,
modificando sua vida, ainda que esse fato não implique necessariamente
em ascensão econômica. Para ela, estudar é seguir em frente, sugerindo
atraso daqueles que não seguem, que permanecem à margem.
Lembrar-se do passado, contar sua própria história e registrá-la no
papel, após todo processo de leitura e discussão de obras de autoria negra
tornou-se uma espécie de denúncia, de afirmação e um desabafo. No
depoimento de Carolina 7, recortamos:
Considerações Finais
146
Referências
147
LEJEUNE, Philippe, O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
148
Capítulo 7
A Pedagogia do Oprimido e a
Práxis Revolucionária Africana: 1960- 1980 72
Resumo
72
Este artigo possui elementos contidos na minha tese de doutorado
149
Abstract
150
Introdução
73
http://www.sahistory.org.za/archive/definition-black-consciousness-bantu-
stephen-biko-december- 1971-south-africa. Acesso em 07 Jun. 2018
151
reflexão sobre as condições concretas de opressão. Esta tanto pode ser a
simples prática pedagógica como o próprio livro Pedagogia do Oprimido.
A nossa ideia é que a PO encontrou eco na PRA pela sua capacidade
de denúncia de um sistema social desumano e o anúncio de esperança para
todos os homens e mulheres da terra. Com efeito, alguns autores tinham
dado já indicação de que a Pedagogia do Oprimido tinha significado, em
PF, maior radicalidade do seu pensamento (PAIVA, 2000; SCOCUGLIA,
1999), por um lado. Por outro, autores há que já consideraram que a
Pedagogia do Oprimido não só tinha sido a denúncia de opressão, como
ecoava uma mensagem bíblica de libertação (SEMERARO, 2009, p. 20):
terá sido talvez por isso que o próprio PF afirmara que a Pedagogia do
Oprimido se destinava aos homens e mulheres radicais quer marxista ou
cristãos (FREIRE, 2014b). O que pretendemos acrescentar é que a PO se
entrelaça com a PRA pelas mesmas circunstâncias históricas em que ambas
estiveram envolvidas, como pela crítica ao mesmo sistema, bem como pela
mesma ânsia de libertação.
Para demonstrarmos a nossa cogitação, num primeiro momento,
tomamos como pretexto a obra Pedagogia do Oprimido para seguirmos o
que o próprio autor teceu sobre as condições e circunstância da sua
concepção (FREIRE, 2014a) e comparamos com as histórias dos
revolucionários africanos. No segundo momento, usamos a PO como
chave para ilustrarmos as aplicações das ideias da PO ou as coincidências
entre esta e a PRA. Iniciamos a nossa abordagem com a história da PO, que
se parece com a dos revolucionários africanos.
152
As Histórias da Pedagogia do Oprimido
e da Práxis Revolucionária Africana
153
agitaram a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Eduardo Mondlane
criou em 1949 o Núcleo dos Estudantes Secundários de Moçambique
(NESAM). Paulo Freire criou o Movimento de Cultura Popular (MCP).
Como PF, alguns dos líderes africanos tiveram o que se pode
considerar de origem pequeno-burguês, pelo menos, do ponto de vista de
ideias. Já na vida adulta, tanto os fundadores dos movimentos de libertação
africanos dos países colonizados por Portugal, como o autor da PO
defendiam a transformação radical das sociedades, e a maior parte deles
pretendia a construção de Estados socialistas. O líder tanzaniano Julius
Neyere foi o autor de UJAMAA, um socialismo baseado no comunitarismo
africano.
A PO foi escrita no exílio e, as revoluções africanas, por sua vez,
tiveram como bases para a sua atuação países de empréstimo, como a
Tanzânia para a FRELIMO 74; o Senegal para o PAIGC 75; a Zâmbia para o
caso do MPLA 76.
Mas a PO de PF encontrou-se com as revoluções africanas
especialmente na sua assunção da condição de oprimido que veio a
sustentar-se de forma nada casual em obras africanas como as de Alberti
Memmi 77 e Frantz Fanon 78. Por isso, PF foi rapidamente conhecido nos
movimentos de libertação e, em seguida, convidado pelos seus líderes a
contribuir, como veremos à frente.
74
FRELIMO: Frente de Libertação de Moçambique
75
PAIGC: Partido para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde
76
MPLA: Movimento Popular de Libertação de Angola
77
MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido de Retrato do Colonizador. Rio de
Janeiro. Civilização Brasileira. 2007
78
FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1968
154
A Pedagogia do Oprimido nos
Movimentos de Libertação Africanos
79
Áreas libertadas ou espaços geográficos que eram reconquista do colonialismo
155
PF voltou a se encontrar com Lúcio Lara e outros guerrilheiros
angolanos em Kitwe, na Zâmbia, a caminho da Tanzânia, provavelmente
em 1970. Nesse encontro, segundo ele próprio conta (FREIRE, 2014a;
FREIRE; MACEDO, 1990) juntos assistiram filmes, conversaram sobre o
decurso da guerra e da educação que o MPLA oferecia às populações e o
seu papel na libertação do país africano (nas zonas libertadas).
No início dos anos 70, PF fez algumas viagens para Tanzânia levado
pela PO para apoiar na alfabetização e para trabalhar na Universidade de
Dar-Es-Salam. Numa das ocasiões ele proferiu uma palestra, no
departamento de Educação de Adultos daquela instituição de ensino
superior, sobre a sua metodologia, mais concretamente em relação ao
trabalho de campo.
Foi por ocasião de uma das suas visitas a Dar-es-Salam, em 1972, que
um membro do governo tanzaniano pediu a PF para conhecer o setor da
educação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Segundo
o próprio Freire conta (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 46), avistou-se na
cidade tanzaniana com a Janet Mondlane, viúva do primeiro presidente da
FRELIMO, Eduardo Mondlane. Ele tivera contatos também com o então
chefe do departamento da Educação da FRELIMO, Eduardo Coloma, e
com alguns professores moçambicanos e estrangeiros. Freire (FREIRE;
MACEDO, 1990, p. 46), afirma que teve com os membros da FRELIMO
conversa sobre educação e seu papel na libertação do país.
Durante o seu contato com o pessoal da FRELIMO houve
entendimento de Freire orientar um seminário de capacitação, em
Bagamoyo (Tanzânia), de alfabetizadores que estavam a ser preparados
para atuar no interior de Moçambique. Segundo dados a que tivemos
acesso, o referido seminário culminou com a produção de um livro de
alfabetização com base nas ideias de PF:
156
cartas que na altura escrevemos a familiares e amigos.
Depois do seminário com Paulo Freire, um grupo de
professores da escola elaborou um livro de
alfabetização 80.
80
Entrevista via e-mail concedida por Jan Drasma, dos Países Baixos, um ex-
professor das escolas da FRELIMO durante a guerra, a quem agradecemos
imensamente.
81
Cartas gentilmente cedidas pelo Prof. Jan Drasma a quem muito agradecemos
157
não como um técnico frio, mas como alguém que concordava com as
políticas dos respectivos governos e que, por isso, estava nessas nações
como militante engajado numa certa luta (FREIRE, 2011a; FREIRE,
2014b).
Na Guiné-Bissau, por exemplo, vimo-lo conceber e organizar a
entrada para esse país seguindo passos que evitavam tudo o que se pudesse
parecer com invasão cultural. Ele recorre ao diálogo para se relacionar com
o governo e o povo guineenses, em que nos demonstra de forma inequívoca
que este é algo muito profundo e que ele inicia mesmo com a procura das
palavras geradoras. No país africano não mergulhou na prática pela prática,
nem chegou com rasgados conhecimentos com vista à transformação da
realidade africana.
A primeira das suas preocupações foi a sua preparação e a da sua
equipe do IDAC para tentar contribuir. Ele começou por estudar a
realidade guineense, procurando conhecer a sua História, a sua cultura, o
que já tinha sido feito e o que se estava a fazer em matérias da educação e,
mais concretamente, da alfabetização (FREIRE, 2011a). Depois que
começou a atuar, procurou ser parte dos guineenses e das suas
preocupações.
Na sua primeira visita à Guiné, PF divide as suas atividades em dois
momentos principais: nomeadamente o primeiro, o da análise e, o
segundo, da síntese (FREIRE, 2011a). No primeiro, ele se predispôs a
encontrar-se e a ouvir tanto os diferentes Comissariados da Educação, o
governo, bem como as populações, os militares, os alfabetizadores,
alfabetizandos, dirigentes políticos, etc. Visitou as antigas zonas libertadas
para se aperceber das lições que os aldeões tinham tirado da revolução, bem
como o que pensavam da reconstrução nacional. Enquanto efetuava essas
visitas, ele e a sua equipe iam fazendo anotações de toda índole, sobre a
vida quotidiana das populações, o processo de alfabetização, a vida militar,
a militância, o cultivo da terra, etc. De quando em quando, ele, a sua equipe
do IDAC e os dirigentes nacionais trocavam impressões sobre o que viam
e ouviam. Os dados colhidos e as suas reflexões eram enriquecidos com as
informações mais diversas, dentre elas o que liam, por exemplo, da
imprensa, como o jornal Nô Pintcha 82.
No fim, participaram na reunião de trabalho do Comissariado da
Educação, onde foi feita a reflexão sobre o trabalho realizado no período
82
Nô Pintcha: jornal diário que circulava na altura na Guiné-Bissau
158
da presença do IDAC. Neste encontro, a realidade cindida (FREIRE,
2011a), segundo Freire, foi sendo vista como uma totalidade, visão do todo
que vinha ocorrendo ao longo da etapa anterior (p. 59). No encontro com
a equipa nacional, o IDAC aproveitava para ter a percepção dos nacionais
sobre o que tinha sido observado. No fim, Freire e sua equipe faziam o
ponto de situação considerando o que tinham recolhido no terreno e o que
ouviram da equipe técnica dos guineenses. Freire chama atenção que neste
momento eles também falaram, não tendo se limitado a colher dados dos
nacionais: deixavam as suas opiniões sinceras sobre o que achavam do que
estava decorrendo na alfabetização e na educação em geral.
Em outro registo da experiência de assessor no continente africano,
Freire escreve sobre a sua presença num círculo de cultura de São Tomé e
Príncipe (FREIRE, 2011b, p. 57). O círculo de cultura, segundo ele, estava
num povoado chamado Monte Mário e, na sessão, a palavra geradora era
bonito, nome de um peixe comum em Monte Mário, e tinha como
codificação um desenho de Monte Mário com a sua vegetação, o rio e um
pescador carregando um bonito.
Conta Freire que, de repente, quatro alfabetizandos levantaram e
aproximaram-se do desenho e, ao mesmo, tempo desataram a gritar “é
Monte Mário”, e afirmaram surpreendidos que afinal a sua aldeia era como
eles a viam naquele momento na imagem e que “não sabiam”. A admiração
dos aldeões era o despertar da curiosidade, atitude necessária para uma
educação problematizadora. Os alfabetizandos tomavam distância da sua
realidade cotidiana e poderiam nomeá-la, como questioná-la.
Como explica Freire (2011b, p. 58), a emersão da realidade vivida é
importante para o processo de alfabetização e fundamental ainda para a
fase posterior da pós-alfabetização. Na primeira etapa
159
Para Freire (2011b), esta relação não existe enquanto o alfabetizando
for tomado como objeto da sua aprendizagem. A PO de PF e a PRA
encontram-se, entre outros aspectos, sobretudo na preocupação de
devolver o protagonismo na história aos oprimidos, isto é, torná-los
sujeitos. A seguir, mostramos como as ideias da PO, consciente ou
inconscientemente, estiveram presentes na PRA.
160
Os oprimidos da África conseguiram entender que só a sua práxis
libertadora poderia transformar realmente a situação colonial em que
viviam. Portanto, as lutas políticas e armadas que travaram não foram uma
mera ação revolucionária, como juntaram a esta a reflexão. Os pais das
independências africanas tinham hábito de estudar as situações antes de
nelas atuarem, ou a sabedoria que tiravam das suas lutas servia para corrigir
ou dirigir sua ação, como podemos ver na entrevista de Eduardo Mondlane
a Aquino de Bragança de 1968 (BRAGANÇA; WELLESTEIN, 1971):
161
Por isso as revoluções foram caracterizadas também por adesões,
crises, dissidências e reagrupamentos. Era preciso que se descobrissem
hospedeiros do opressor para participarem da elaboração da pedagogia
realmente libertadora.
Tinha, por um lado, o povo imerso e a pequena burguesia alienada
e, do outro, uma liderança e uma parte do povo com uma forte clareza
política. Geralmente a pequena burguesia alienada tinha a tendência, dado
o seu espírito elitista, de ocupar o lugar do opressor. Assim, diria Amílcar
Cabral (1978, p. 144):
162
para criar na nossa terra, Guiné e Cabo Verde, uma
realidade nova (CABRAL, 1978, p. 146).
Por isso a libertação foi um parto difícil, foi um processo que exigiu
a radicalidade e uma forte clareza política. A libertação foi parto de um
Homem Novo e da Mulher Nova, isto é, um homem e mulher que se
libertavam em luta permanente. Para Machel, o Homem Novo seria aquele
liberto da mentalidade colonial e de aspectos negativos da tradição
africana, como o obscurantismo, a superstição e a interpretação metafísica
do mundo: “A tarefa principal no ensino, nos livros de textos e programas,
é inculcar em cada um de nós a ideologia avançada, científica, objectiva,
colectiva, que nos permite progredir no processo revolucionário”
(MACHEL, 1973a, p. 5). Machel levou longe esta ideia que acabou se
radicalizando e combatendo até a cultura popular.
Durante as lutas de libertação nacional, os movimentos de libertação
iam organizando a vida das populações das regiões que conquistavam do
colonialismo, as chamadas zonas libertadas. Nestas áreas, as populações
deveriam estar em condições de se defenderem das escaladas do inimigo,
como deveriam produzir alimentos, arranjar seu vestuário, educarem-se,
ter escolas, recrearem-se, etc. Na ação militar, como na reconstrução
nacional, houve necessidade de diálogo.
163
massas populares. Desse modo, o fato de todos terem se descoberto
explorados, oprimidos e espoliados facilitou o diálogo.
Pode-se perceber que os vários encontros de aproximação das
lideranças entre si, e destas com o povo, foram marcados pela procura de
um vocabulário mínimo, sob o qual haveria o diálogo entre os
nacionalistas. A vontade comum de libertação levou as palavras geradoras
como colonialismo, exploração, humilhação, terra, machamba 83, arma,
luta, vitória, Independência, unidade, educação, saúde, escola, criança,
mulher, etc.
O diálogo aconteceu através de uma linguagem de transformação.
Os diferentes grupos envolvidos na revolução foram dialogando à medida
que transformavam a realidade. A compreensão, a ampliação e o
aprofundamento dos conceitos, palavras e a gramática, decorreram das
tarefas da luta, da organização da vida dos territórios que eram
reconquistados e na construção e afirmação da identidade nacional. O
diálogo punha em perspectiva dialética a cultura étnica/tribal do povo e a
cultura urbana e moderna da liderança. Ambos os grupos iam se
universalizando, o primeiro elevando sua humanidade do local para o
universal e o segundo reencontrando-se com a sua particularidade e se
universalizando cada vez mais (CABRAL, sd).
A linguagem também foi de luta. O diálogo que ocorria no processo
de transformação ontológica e histórica dos homens nas décadas de 50 e
60 na África era acompanhado, no resgate da dignidade daquele povo, pela
luta política e armada levada a cabo pelos movimentos de libertação e não
só. O diálogo foi realizado com a recuperação dos territórios perdidos, da
humanidade e da mentalidade corrompida e/ou alienada pela ideologia
colonial. Por isso, foi deflagrada uma guerra que era um verdadeiro
anúncio 84.
83
Roça
84
A guerra foi o último recurso que os povos africanos dos países colonizados por
Portugal encontraram para se libertarem depois de esgotados os esforços de convencer
aquele país europeu a conceder pacificamente as Independências àqueles territórios.
164
O nosso povo hoje sente bem que a luta é sua de fato,
não só porque são os seus filhos que têm as armas nas
mãos, não só porque são os seus filhos que vão
estudar para se formarem como quadros,
enfermeiros, médicos, engenheiros, agentes técnicos,
etc., não só porque são os seus filhos que dirigem, mas
também porque, mesmo nas tabancas, os milicianos
ou a população pegaram naquela coisa principal que
simboliza a nossa luta: a arma (CABRAL, p. 100).
165
Colaboração, unidade, organização e síntese cultural
85
É preciso explicar que alguns movimentos africanos dos países que estiveram sob
domínio de Portugal foram fundados na segunda metade da década de 1950, como o
PAIGC e o MPLA, ambos em 1956
166
uma formação mais formal e geral ajudaram, por exemplo, os camponeses
e operários a conhecer outras ideologias no mundo e a manejar os artefatos
modernos da guerra, enquanto os camponeses ajudavam no conhecimento
do território, a cultura, os mitos e a canção popular, por exemplo.
O combate ao colonialismo foi feito através da luta armada, bem
como pela luta política. Por isso, a escola foi disseminada em várias áreas,
tanto para o exército, como para as populações. Ensinava-se a ler e a
escrever a palavra e a ler e a escrever o mundo (FREIRE). Ensinava-se a
compreender os objetivos da luta, a distinguir o inimigo, que não era, por
exemplo, o povo português ou o branco, mas o sistema colonial português
e todo o sistema de exploração do homem pelo homem. A orientação dos
movimentos de libertação era que o pouco que cada um deles soubesse
deveria transmitir aos outros (PAIGC, 1962, apud BRAGANÇA;
WELLESTEIN, 1978, p.177):
86
Massacre de Pidjigit: ocorreu quando trabalhadores do porto de Bissau (Guiné-
Bissau), estivadores e marinheiro que reivindicavam por um aumento salarial foram
violentamente reprimidos pelas autoridades coloniais, tendo se registado cerca de 50
mortos e uma centena de feridos.
87
Distrito da província de Cabo Delgado, Moçambique. O massacre teve lugar
quando um grupo de camponeses se manifestava contra o governo colonial em 1960.
168
a par e passo poderão resolver todos os problemas complicados que nascem
diariamente” (FRELIMO, 1968).
Os movimentos de libertação, a partir dos seus primeiros
Congressos, elaboraram Estatutos e Programas que continham os seus
objetivos, os direitos e os deveres dos membros, métodos de trabalho,
estrutura e organização (MUIUANA, 2006). Quanto aos programas,
podemos verificar, por exemplo, que a FRELIMO, em 1962, propôs-se:
liquidar o colonialismo português; realizar a unidade de todo o povo
moçambicano e mobilizá-lo para a luta de libertação; construir um
Moçambique Independente, desenvolvido e próspero, onde o poder
pertence ao povo; aplicar uma política externa de solidariedade e
cooperação com todos os povos, governos e organizações anticolonialistas
e anti-imperialistas (MUIUANA, 2006)
No processo de organização da vida das populações as atenções
foram viradas para a produção agrícola, serviços de saúde e de educação. A
FRELIMO, por exemplo, no seu II Congresso, determinou o seguinte para
o setor da educação:
169
g) Estabelecer um sistema que permita aos estudantes
interromperem temporariamente os estudos para participarem
nas campanhas de ensino e de alfabetização;
A guisa de conclusão
170
assessor. A partir desta experiência, a PO, como prática pedagógica, dá um
salto da simples transformação das consciências para a transformação da
base material. Por isso, pode-se afirmar que a PO e a PRA fecundaram-se
mutuamente, passando ambas às etapas qualitativamente novas. Elas não
se fertilizaram somente como complementares, ou como simples
diferentes, mas como duas realidades que foram submetidas às mesmas
circunstâncias históricas particulares, a opressão, e que por isso passaram
a ter as mesmas preocupações e as mesmas aspirações: eram Menos e
queriam ser Mais. Daí que, inspirados pelas palavras de Steve Biko,
possamos afirmar que condições de opressão, sejam quais forem seus
matizes, conduzem a uma atitude mental: a busca da libertação. Os
oprimidos da América Latina, ou da África, ou de qualquer outra parte do
mundo distinguem-se menos pela sua história, mas mais pelo seu destino
comum, o que justifica a necessidade de laços cada vez mais fortes, forjados
pelas gerações precedentes, como os jovens dos anos 60.
171
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 57. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2014b.
172
FRELIMO. Resoluções do II Congresso. 1968.
173
Capítulo 8
ESQUECERAM O corpo fora da escola
Djalma Thürler88
Rafael Garcia 89
88
Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade
(IHAC/UFBA). Pesquisador do NuCus. Salvador. Brasil. [email protected]
89
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade
(IHAC/UFBA), bolsista FAPESB. Integrante da Linha Culturas e Artes do NuCuS. Salvador.
Brasil. [email protected]
174
Assim, na primeira seção, trataremos de questões ligadas à educação,
ao corpo, ao gênero e à sexualidade, especialmente a partir de Guacira
Lopes Louro (2000; 2010; 2014a; 2014b; 2016), que desenvolve uma visão
queer de educação no Brasil. Louro estabelece um diálogo com autores
clássicos, como Michel Foucault, além de reflexões acerca dos
transgressivos e insurgentes movimentos queer, que tem como uma de suas
expoentes mundiais, a filósofa norte americana Judith Butler.
Na segunda seção, traçaremos um diálogo com Tomaz Tadeu Silva
(2004) e suas abordagens acerca das teorias do currículo e suas reflexões, a
partir de Pierre Bordieu, ligadas à relação entre a educação e a dominação
das classes. Ainda nessa seção, traremos, também, reflexões acerca da
pedagogia do oprimido, proposta pelo educador e pensador brasileiro
Paulo Freire, destacando suas reverberações libertárias nas teorias sobre
educação para a transgressão, desenvolvidas pela feminista negra norte
americana bell hooks (1999; 2013), e de suas inter-relações com as causas
de gênero, sexualidade e educação no mundo.
Na terceira seção, traremos dos pensamentos de Augusto Boal (2003;
2005; 2007; 2009) e sua proposta nomeada teatro do oprimido, em relação
às leituras de Cilene Canda (2009; 2018; 2020) e às provocações de Djalma
Thürler (2018; 2019) referentes aos saberes da desaprendizagens, que são
para o autor potentes dispositivos “estéticos” para refletirmos e buscarmos
a produção de novas políticas de subjetivação e lutarmos pela politização
das identidades e o culto à convivência com a diferença.
Por fim, tentaremos sugerir caminhos mais libertários para a
educação, fomentando a necessidade de abordagens críticas acerca das
hegemonias sociais e culturais presentes no modelo capitalista, e ainda
refletidas nos modelos educacionais. O intuito é demonstrar como a
abordagem somático-performativa, que partilha uma perspectiva mais
integralizada do corpo vivo e pulsante, é voltada à “consciência de si”, em
experiências colaborativas que podem apontar caminhos alternativos para
os processos educacionais, mais libertários e afirmativos das singularidades
e das diferenças.
175
O corpo foi deixado fora da escola
176
Um processo que, ao supor "marcas" corporais, as faz
existir, inscrevendo e instaurando diferenças.
(LOURO, 2000, p.61).
90
Espécie de política de subjetivação que procura formatar subjetividades
cisgêneras e heterossexuais, a partir de um conjunto bem delimitado de normas, reforços
e punições.
177
de enxergar ao longe, sentir, ouvir, esquadrinhar as paredes, os cabelos e
comprimentos, percorrer corredores e salas, deterem-se nas pessoas, nos
gestos, nas roupas, nos modos de se olharem, de se portarem de maneira
“normal”. Essa ordem “normal” (SEGATO, 2018) esconde, na verdade, um
longo processo de aprendizado cisheteronormativo “através de um
aprendizado, eficaz, contínuo e sutil, um ritmo, uma cadência, uma
disposição física, uma postura, parecem penetrar no sujeito, ao mesmo
tempo que estes reagem, e envolvidos por tais dispositivos e práticas,
constituem suas identidades escolarizadas” (LOURO, 2010, p. 61), ou seja,
em suas práticas e currículos pedagógicos, a escola continua a agir sobre os
corpos a partir da reiteração da norma central, ensinando apenas um modo
adequado, legítimo, normal e moral de masculinidade e feminilidade e uma
única forma sadia e normal de sexualidade, “se afastar deste padrão
significa causar desvio, sair do centro, tornar-se excêntrico” (LOURO,
2010, p.43-44).
Apesar disso, é importante salientar que muitos avanços tem sido
conquistados no campo da educação básica, no que se refere às questões
ligadas à cisheteronormatividade e, nesse sentido, podemos citar, por
exemplo, a crescente repercussão das lutas pela visibilização de temáticas
como a questão de gênero e sexualidades; a conquista do direito a utilização
do nome social e a multiplicidade das vivências não binárias nos corredores
e nas salas de aula. Podemos considerar, também, um expressivo aumento
da presença e da afirmação de profissionais da educação que assumiram
uma agenda progressista, produzindo conhecimento acadêmico, reflexões
e metodologias pedagógicas inclusivas e afirmativas das diferenças.
Acompanhamos, ainda, a criação de cursos de formação, educação
continuada, graduações, especializações voltadas a educadores das redes
públicas de ensino, voltadas diretamente para inclusão e formação de
populações LGBT+.
É nessa perspectiva que consideramos que as artes do corpo e da
cena, em suas abordagens pedagógicas somático-performativas 91,
possibilitam através de suas maneiras técnicas, sensíveis, sensoriais e
somáticas e de seus artifícios expressivos, simbólicos, criativos e
91
Segundo a artista e pesquisadora do corpo e da dança, a professora doutora Ciane
Fernandes, da Universidade da Bahia, a Pesquisa Somático-Performativa fundamenta-se
na educação somática e na performance para criar um arcabouço das artes cênicas para
as artes cênicas, em diálogo ilimitado com outras áreas do conhecimento. A Pesquisa
Somático-Performativa insere-se no contexto da Prática como Pesquisa.
178
emancipatórios, a invenção e a investigação de outros corpos de
conhecimento, relação, identidades e identificações. Modos que
transcendem os sentidos estabelecidos pela linguagem e seu império da
significação. Fundamentos que valorizam os saberes experienciados,
somados, corporificados e expressados em procedimentos artísticos de
criação, expressão e emancipação.
179
também transmitido através do código cultural dominante. Conforme o
autor, é desse modo que as classes dominantes continuam a fortalecer o seu
capital cultural. Isso se dá, pois os saberes hegemônicos são repassados para
as crianças das classes dominantes de maneira naturalizada. Ou seja, estes
saberes já fazem parte do cotidiano, da realidade destas crianças junto a
seus familiares e, por este motivo, são mais comuns e compreensíveis para
estas crianças que, pertencentes as essas classes mais instruídas, a partir
dessa lógica hegemônica de ensino, já estão mais familiarizadas com estes
“privilégios educacionais”.
Por outro lado, afirma Bourdieu, as classes dominadas, não
contempladas por estes saberes dominantes em seus ambientes familiares,
passam a encarar suas culturas nativas como inferiores, desvalorizadas e,
por esse motivo, apresentam maiores dificuldades em compreender os
saberes das classes dominantes, pois não conseguem reproduzir de forma
familiarizada esses códigos, metodologias e práticas do saber, cotidianos
aos espaços privados das classes mais abastadas. É essencialmente a partir
dessa reprodução cultural, repetida também nos currículos, que as classes
dominantes “(...) mantêm separações, e explorações sociais por classes, da
maneira como elas sempre existiram, e ainda perpetuam existir até hoje.”
(SILVA, 2004, p.15).
Estas questões agravam-se ainda mais em um país em que as
desigualdades predominam e onde a educação pública de qualidade torna-
se raro privilégio. Como escreve Cilene Canda (2020),
180
A partir da citação, podemos observar que, de um lado, há classes
sociais privilegiadas no aceso a uma educação de qualidade, enquanto os
filhos das classes populares, enfatiza a Candas, aludindo a Paulo Freire:
“tendem a ter a sua vocação negada na injustiça, na exploração, na
opressão, na violência dos opressores” (FREIRE, 1987, p. 16). Para
empreendermos outras formas possíveis de vida social, a educação
necessita de um tipo de formação “afirmada no anseio de liberdade, de
justiça, de luta dos oprimidos pela recuperação da sua humanidade
roubada”. (FREIRE, 1987, p. 16), por isso, devemos valorizar um tipo de
educação que revele as causas sociais, históricas e políticas da realidade da
vida.
Neste sentido, faz-se urgente a construção de pedagogias que façam
“da opressão e suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que
resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que
esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 1987, p. 17). Além disso, como
enfatiza Candas, é importante pautarmos nesse debate, e esta é a mais
importante de nossa tarefa, “a educação como motor de mudança social,
mais do que mera adaptação do sujeito no mundo” (CANDA, 2020, p. 26).
Ainda como pensa Augusto Boal,
181
Tais considerações de Augusto Boal, segundo Canda, coadunam
com o entendimento de Paulo Freire a respeito das repressões e violências
vividas cotidianamente nas escolas, “[...] espaços sem vida, sem magia, com
desejos silenciados e corpos reprimidos e padronizados com uniformes,
com tempos e espaços reduzidos para o convívio entre os jovens, marcados
pela ausência ou reprodução de experiências artísticas, marcas sociais da
violência material e simbólica, do estigma, do abandono e da opressão”
(CANDA, 2020, p. 24).
O que podemos refletir, a partir dessas considerações, é que essa
realidade educacional, ainda operada no Brasil, não dá conta da formação
complexa e emancipada de sujeitos no contexto social contemporâneo
marcado por estes inúmeros desafios políticos e humanísticos. Podemos
compreender, também, que educar vai muito além da mera instrução e
reprodução. “[...] É necessário que construamos cenários educativos que
provoquem o olhar sensível e estético para o aprendizado advindo das
experiências corporais no mundo, unindo o inteligível e o sensível nos
processos educacionais” (CANDAS 2009, p.24).
Outro fator importante, ligado aos processos de educação dos
sentidos, é levantado por bell hooks. Em seu livro Educando para a
Transgressão (2013), inspirada por Paulo Freire, hooks afirma que, como
professores, devemos criar estratégias para gerar a “conscientização” na
sala de aula, traduzindo esse termo como “consciência e pensamento
crítico”. Neste pensamento, todos alunos e alunas devem ser participantes
críticos e ativos dos processos de ensino e aprendizagem, não apenas
consumidores passivos de metodologias pré-estabelecidas e depositadas na
consciência dos estudantes. Freire (1967) afirma que a educação só poderá
ser libertadora quando todos os cidadãos tomarem posse do
conhecimento. O trabalho deve ser feito nas práxis, como em uma
plantação, onde devemos agir e refletir nosso mundo, a fim de modificá-
lo.
Se metodologias de ensino, planejamentos político pedagógicos,
teorias da linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação e
currículos podem ser vistos, seguramente, enquanto dispositivos de
criação, controle e dominação da experiência dos corpos no mundo, a
teoria queer, na contramão dos antigos pensamentos acerca da educação e
do corpo, tem propagado um pensamento que busca compreender a
singularidade dos corpos e dos gêneros na contemporaneidade, como
modos de viver e formas sociais em constante construção.
182
Como destaca Silva (2004), não se pode ignorar as estreitas conexões
entre conhecimento, educação, identidade de gênero e poder, e propõe
uma radicalização no questionamento da fixidez das identidades. Seu
objetivo é complexificar a questão da identidade sexual e, indiretamente,
as questões de identidade cultural e social; perturbar a tranquilidade da
pretensa normalidade, ainda reproduzida nos processos sociais de ensino
e aprendizagem.
A escola, em suas práticas e currículos pedagógicos, continua a agir
sobre os corpos a partir da reiteração da norma central, ensinando apenas
um modo adequado, legítimo, normal e moral de masculinidade e
feminilidade e uma única forma sadia e normal de sexualidade, a
heterossexualidade. “Se afastar deste padrão significa causar desvio, sair do
centro, tornar-se excêntrico. A burocratização desses saberes serve de
parâmetro para a concepção do corpo normal social. Assim, os
comportamentos considerados “anormais” são desqualificados
“marcados” como sujeitos ilegítimos, imorais ou patológicos.” (LOURO,
2004, p.82).
Neste cenário, algumas perguntas se tornam urgentes, quando
refletimos que as normas regulatórias continuam a agir sobre os corpos nos
processos de educação, impondo limites de sanidade, de legitimidade, de
moralidade. Por que ainda somos educados para a
cisheteronormatividade? Por que não podemos incorporar o corpo na
educação? Porque não pensarmos, ou melhor, agirmos, através de outras
perspectivas de desaprendizagens? Por que os jovens não podem expressar
seu lugar de corpo na escola?
Pois é disso que se trata esse texto, não podemos ignorar que um
processo de política de subjetivação vinculado a um jogo político de poder
limite os corpos sensíveis, as experiências ininteligíveis, coagindo
liberdades, constrangendo identidades. Assim, é de extrema importância
desenvolvermos uma crítica aos modos como a escola reproduz as
desigualdades sociais, étnicas e de gênero. É urgente dar capacidade e
visibilidade às experiências da multiplicidade da sexualidade humana.
183
As artes do corpo e da cena
e os saberes de desaprendizagens
184
capacidades sociais necessárias. Desaprender a
hierarquizar as diferenças, mas, também, torná-las
posições políticas aliadas, com compromisso com a
visibilização das identidades subalternizadas
(THÜRLER, 2019, p.19).
185
esta que vem pautando os currículos a partir de um “ser ideal”
cisheteronormatizado a ser construído e buscado.
Neste sentido, a educação lida com pessoas reais, com corpos
concretos que vivem, desejam, transitam e transam, formam e se formam
em uma sociedade real e não idealizada. No pensamento de Boal, o teatro
é uma experiência social, portanto, humana, por isso, seu uso não está
limitado a atores profissionais; ele é uma ferramenta política do povo, os
cidadãos devem se apropriar de meios de produção cultural. O Teatro do
Oprimido, pode ser compreendido conforme Canda
186
aconteça, deve ser a sala de aula na escola pública, de qualidade e para todas
as pessoas.
As identidades, constituídas no contexto da cultura e na escola,
ainda são produzidas em meio a disputas, classificações, ordenamentos e
hierarquias que legitimam os modos e os gestos a serem seguidos e
repetidos nos processos de aprendizados e diferenciação dos corpos. Além
disso, porque os estudantes continuam a ser ensinados a permanecerem
sentados, enfileirados, calados em frente a um quadro, parados, repetindo
métodos de ensino obsoletos, pautados em misticismos e no patriarcado,
submetidos a meios pedagógicos atrelados a ideais militaristas e
neoliberalistas a serem conquistados? Ainda mais grave, as escolas estão
sendo militarizadas, as famílias estão sendo armadas, as tribos indígenas
estão sendo evangelizadas.
Se é a escola que impõe limites restritivos às experiências subjetivas
em seu cotidiano, o teatro pode ser uma matéria insurgente e insubmissa,
para criarmos dispositivos de resistência às mazelas de uma escola
autoritária, isso, por sua potência pedagógica, para sensibilizar,
conscientizar os corpos, além de por sua vocação e potencialidade de
provocar, perturbar, desestabilizar a vida cotidiana acostumada da escola,
do bairro, da cidade.
Além disso, através dessas pedagogias das insurgências, da
desobediência, podemos ressignificar a sala de aula como um espaço do
não julgamento de valor, como espaço de experimentação de si em relação
ao outro, em experiências de desaprendizagem dos gêneros
cisheteronormativos binários, forma através do qual o biopoder é
somatizado nos corpos, coagidos pela linguagem. A sala de aula pode se
abrir ao lugar de corpo desses estudantes, pode ser espaço para exercitamos
um “olhar desacostumado”, como escreve Thürler, pode ser espaço de
desaprendermos o teatro binário da vida real e recriarmos um corpo
desconhecido, inexplorado, em constate busca, porém sempre a ser
revelado, corpos outros que não estejam socialmente coagidos e
institucionalizados.
187
Considerações finais
188
Referências
189
LOURO, G. L. Gênero sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-
estruturalista 16.ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2014a.
190
Parte III
Pensamento decolonial e pedagogia freireana:
um diálogo possível
191
Capítulo 9
Contribuições ao pensamento decolonial
na Educação de Jovens e Adultos
Roberto da Silva 92
Resumo
Introdução
92
Professor Associado do Departamento de Administração Escolar e Economia da
Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
192
Um ponto de partida para tais análises pode ser dado por Roger
Dale, da Universidade de Bristol e seus colaboradores, ao recuperar o
conceito de “Cultura Educacional Mundial Comum” e propor, em
contraposição, a “Agenda Global Estruturada para a Educação” como
forma de explicar os efeitos da globalização sobre a Educação e situar os
campos em disputa. Explica ele que
193
mecanismos de deslegitimação do negro como
portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência
material e/ou pelo comprometimento da autoestima
pelos processos de discriminação correntes no
processo educativo. Isto porque não é possível
desqualificar as formas de conhecimento dos povos
dominados sem desqualificá-los também,
individual e coletivamente, como sujeitos
cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a
condição para alcançar o conhecimento legítimo ou
legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a
racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila
a capacidade de aprender. É uma forma de sequestro
da razão em duplo sentido: pela negação da
racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural
que em outros casos lhe é imposta. (2005, p. 97).
194
Entretanto, nem todos concordam que os efeitos sejam equânimes
nesta polarização em dois blocos, quaisquer que sejam os nomes que lhes
deem.
Kimberle Crenshaw, professora de Direito da Universidade da
Califórnia e da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, por
exemplo, chamou a atenção para o que se convencionou chamar de teoria
interseccional, inicialmente empregada para fazer distinção quanto aos
impactos em grupos de mulheres brancas e negras dentro do movimento
feminista e que hoje pode ser generalizado para análise de múltiplas
situações. Ela usa este exemplo para explicar a teoria da
interseccionalidade:
195
desconhecimento e à pouca profundidade com que se discute
epistemologia e teoria do conhecimento.
Que todo ser humano é potencialmente produtor de Cultura está
tranquilamente assentado na literatura especializada. Roberto da Silva
ensina que esta cultura consiste em um “conjunto de códigos, símbolos e
valores marcada pela intencionalidade de modificar o pensamento, o
comportamento e a ação do outro e que esta intencionalidade é o próprio
ato de educar” (2018, p. 54). A questão que se coloca é: quais os meios que
determinado grupo dispõe para fazer a comunicação de sua Cultura?
O mesmo autor adverte que
196
Creio que este arrazoado seja suficiente para entender a escola e o
currículo como o principal espaço de disputa das narrativas dos diferentes
grupos que produzem cultura que nos interessa resgatar e preservar.
Em outras abordagens, Roberto da Silva (2018, p. 48) aprimora a
conceituação de “capitalismo científico” genericamente empregado para se
referir ao domínio científico, tecnológico, econômico e informacional do
Ocidente. Silva apresenta o corpo humano como uma matriz de
aprendizagem, da qual derivam praticamente todas as ferramentas, as
técnicas, tecnologias e processos existentes, cuja base é a decodificação da
estrutura, organização e funcionamento dos cinco sentidos, dos órgãos,
aparelhos e sistemas corporais. E o autor não está sozinho na defesa deste
argumento. Vem de longa tradição o interesse por dissecar e decompor o
corpo humano para entender não apenas a sua anatomia, mas também sua
estrutura e suas funções.
Andreas Vesalius (1543 – 1564), contemporâneo de Leonardo da
Vinci é o autor de De Humani Corporis Fabrica Libri Septem ou
simplesmente […] Da Organização do Corpo Humano), um livro de
anatomia humana, considerado um dos mais influentes livros científicos
de todos os tempos. […].
Gilbert Simondon (1924 – 1989) foi um filósofo e tecnólogo francês
que se ocupou de estudar o design do corpo humano e das máquinas
buscando simetrias e assimetrias entre ambos (Du mode d’existence des
objects techiniques, 1958). O acoplamento do homem à máquina começa
a existir a partir do momento em que pode ser descoberta uma codificação
comum às duas memórias para que se possa realizar uma convertibilidade
parcial de uma na outra, para que uma sinergia seja possível (SIMONDON,
1958, pg. 123), dizia ele.
Roberto da Silva (2006) vai mais longe mostrando que
197
para a interação com o meio ambiente e para a nossa
sobrevivência. Neste estágio primário da constituição
biológica do ser humano, as informações apreendidas
do meio ambiente, do ponto de vista estritamente
epistemológico, são conhecimentos, porque o corpo
precisa apreender, armazenar e processar esta
informação para seu próprio uso.
198
Colonialidade e decolonialidade
na Educação de Jovens e Adultos
199
Somente pelo fato de estar no mundo, de interagir com ele e, de
alguma forma, tentar modificá-lo para atender suas necessidades de
sobrevivência, ele exercitou intensamente seus sentidos sensoriais e com
isso alimentou a formação de uma memória visual, de uma memória
auditiva, de uma memória corporal/cinestésica, de uma memória gustativa
e de uma memória olfativa.
Estas memórias, quando interligadas por meio das sinapses,
transformam informações eletromagnéticas em conhecimento e a pessoa
passa a associar imagens com sons, com sensações, com cheiros, gostos e
sabores e, eventualmente, com pessoas, eventos, datas e locais. É esta
capacidade de intercambiação dos conteúdos das memórias sensoriais que
ativa o processamento cerebral, base para o desenvolvimento da cognição,
que é a capacidade de processamento do cérebro.
Àquelas cinco memórias originais, derivadas dos cinco sentidos se
soma mais uma, a memória cognitiva. Diferentemente das outras, que não
acumulam dados, mas sim resultados de aprendizagens, a memória
cognitiva é um processo cumulativo que retem dados e informações para
possibilitar novas relações.
É da interação entre os conteúdos das cinco memórias sensoriais que
surge também a memória afetiva, que atribui sensações e sentimentos a
imagens, sons, cheiros e sabores, associando-os a momentos, datas, locais
e pessoas.
A estas sete memórias assim constituídas correspondem sete formas
distintas e específicas de expressões da inteligência humana, que Howard
Gardner vai denominar Inteligências Múltiplas. Inteligências visual,
auditiva, corporal/cinestésica, gustativa e olfativa são permanentes no ser
humano e podem ser continuamente estimuladas e resgatadas a qualquer
momento, diferente das memórias e inteligências cognitivas que
dependem da capacidade de estabelecimento de trocas por parte dos
neurônios para fazer novas conexões.
As memórias sensoriais assim como as inteligências delas derivadas
são essenciais para as atividades do Mundo da Vida que requerem,
basicamente, adaptação ao meio que cerca o indivíduo, observação do
entorno e experimentação constante.
O Mundo da Escola privilegia os atributos da memória cognitiva
porque visa desenvolver a inteligência cognitiva, ou seja, a capacidade de
processamento do cérebro humano.
200
Ainda não temos métricas para avaliar os conhecimentos
constituídos no Mundo da Vida. Considere uma pessoa de 60 anos de idade
que estudou até o equivalente à 4ª série do Ensino Fundamental, mas que
criou 12 filhos, construiu sua casa, plantou sua roça e vive dos rendimentos
de seu próprio trabalho: ele sabe ou não sabe alguma coisa? Certamente
que sim, mas se ele for para uma sala de EJA, for submetido a um exame
diagnóstico para efeito de classificação, ele vai ser remetido à mesma 4ª
série e ser tratado como um aluno de 10 anos de idade: é a infantilização da
EJA.
Nesta aparente incompatibilidade entre os saberes constituídos no
Mundo da Vida e os saberes exigidos pelo Mundo da Escola, os saberes
constituídos no Mundo do Trabalho parecem ter potencial para fazer uma
ponte entre eles.
É aqui então que assume proeminência saber como a pessoa
construiu o seu conhecimento, que uso faz dele e como faz a mediação
deste conhecimento com os outros. E esta é uma abordagem a se fazer no
momento da matrícula e antes do início das aulas regulares. No livro
Didática o Cárcere II (SILVA, 2018) sugerimos que sejam dedicadas de oito
a dez encontros para que se possa, a partir da História de Vida 1) proceder
à organização dos saberes que a pessoa tem; 2) sistematizar os saberes que
a pessoa tem, mas não sabe que tem; 3) mostrar que a pessoa sabe muito
mais do que pensa que sabe.
Cada uma destas estratégias tem seus recursos e procedimentos
próprios no âmbito da Didática no Cárcere: em um primeiro momento,
visa situar o indivíduo no mundo, no espaço e no tempo, mostrando que
ele vem de uma genealogia, de uma ancestralidade e que pode estar
meramente reproduzindo inconscientemente o que já aconteceu em sua
linhagem, inclusive os históricos de doenças, vícios, comportamentos e
forma de resolver as situações complexas da vida.
No segundo momento torna-se importante mostrar ao sujeito que
os conhecimentos que ele constituiu, seja no Mundo da Vida ou no Mundo
do Trabalho, possuem rudimentos de conhecimentos científicos que estão
em todas as áreas científicas e os professores destas áreas podem ajudá-lo a
sistematizar estes saberes com fundamentação científica.
A fase seguinte significa que este aluno pode ser introduzido no
currículo, nos saberes do Mundo da Escola, sem os estranhamentos que
provocam os conteúdos de Matemática, Física, Química ou Biologia
201
porque ele conseguirá contextualizar os conceitos científicos com aquilo
que ele já sabe empiricamente.
Não é incomum que um adulto que exerça determinado ofício cujos
fazeres ele aprendeu na prática, na base da tentativa e erro, saiba melhor o
seu ofício do que um profissional da mesma área com formação de curso
superior.
Tais argumentos ajudam a afirmar alguns pressupostos
epistemológicos importantes:
202
com as leis naturais (tempo, temperatura, espaço, equilíbrio) e
com a natureza (reprodução, alimentação, habitação).
• O as memórias sensoriais retem aprendizagens e não conteúdos.
Da mesma forma, o adulto retem aprendizagens e não conteúdos,
pois ele aprendeu testando hipóteses, na base da tentativa e erro.
Assim como o corpo humano, o adulto simplesmente sabe, é
capaz de demonstrar na prática seus conhecimentos e é um erro
querer enquadrar estes conhecimentos nos sistemas de notação
das disciplinas tradicionais como Matemática, Física, Química,
Biologia ou Linguística.
203
teorias e conteúdos curriculares mais reproduz saberes estandartizados do
que os controe propriamente dito.
No livro A ordem do discurso Michel Foucault assevera com
propriedade que
204
Referências
205
RIBEIRO, Katiúscia. Kemet, escolas e arcádeas: a importância da
filosofia africana no combate ao racismo epistêmico e a lei 10.639/03.
Dissertação (Mestrado em Filosofia e Ensino) – Programa de pós-
graduação em Filosofia e Ensino, CEFET, Rio de Janeiro, 2017b.
Disponível em:
https://filosofiaafricana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/kati%C3
%BAs cia_ribeiro_-_dissertac%CC%A7a%CC%83o_final.pdf
206
Capítulo 10
Ensino de arte e da história da arte no
Brasil – um percurso rumo à decolonialidade
Introdução
93
Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG –
Ibirité).
94
Mestre em Artes pelas Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais (EBA – UFMG), Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG –
Ibirité).
95
Doutoranda em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais (EBA – UFMG), Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG –
Ibirité).
207
A função das artes na formação da imagem da
identidade lhe confere um papel característico dentre
os complexos aspectos da cultura. Identificação é
sempre a produção de “uma imagem de identidade e
transformação do sujeito ao assumir ou rejeitar
aquela imagem reconhecida pelo outro”.
208
neoclássica, valorizavam-se principalmente as habilidades manuais, os
‘dons artísticos’, os hábitos de organização e precisão, mostrando ao
mesmo tempo uma visão utilitarista da arte.” (GRUMAN, 2012, p. 206).
Em 1856, Bethencourt da Silva (1831-1911) inaugurou o Liceu de
Artes e Ofícios no Rio de Janeiro, que se incumbiu de formar tanto os
artífices quanto os operários que se interessavam pela arte. Nas escolas
particulares para adolescentes, porém,
209
Foram os liberais quem implantaram efetivamente seus ideais no
ensino de desenho nas escolas, graças às suas contribuições na reforma
educacional de 1901.
210
compreensão do mundo. As práticas pedagógicas,
que eram diretivas, com ênfase na repetição de
modelos e no professor, são redimensionadas,
deslocando-se a ênfase para os processos de
desenvolvimento do aluno e sua criação (BRASIL,
1997, p. 23).
211
Quando é imposta a ditadura militar de 1964, as escolas
experimentais foram aos poucos sendo moldadas aos padrões do Estado.
De acordo com Diniz-Pereira (2011), citado por Alvarenga e Silva (2018,
p. 1010) “No início do período militar (1964-1985), havia uma demanda
por mais escolas e pela universalização da educação básica, além da
carência de docentes”. Nas escolas públicas predominou-se a sugestão de
temas e desenhos que remetem a comemorações cívicas, religiosas e outras,
e nem mesmo estas sugestões significaram que houvera realmente um
trabalho efetivo em arte; no ensino público secundário, o desenho
geométrico prevalecia. Já nas escolas particulares e de prestígio, em 1969,
seguia-se a metodologia de variação de técnicas.
Entre os anos de 1968 e 1972, em algumas escolas especializadas de
arte, começaram a surgir ideias de um ensino voltado à criatividade e ao
desenvolvimento cognitivo dos estudantes, que junto de outras, formaram
diversos professores que atuaram no Ensino de Arte daquele tempo.
No meio desses anos, especificamente em 1971, com a LDBEN
nº5692/71, a Educação Artística tornou-se componente obrigatório nos
currículos da educação básica e superior, porém, com viés completamente
tecnicista. Tal política ajudou a aumentar a discrepância entre o que se
ensina nas escolas públicas e privadas, pois as públicas não estavam dotadas
de toda a infraestrutura requerida para o ensino técnico, enquanto as
privadas continuavam a formar os seus alunos para o ensino superior.
Além disso, o ensino de arte foi concebido como uma atividade educativa,
e não como uma disciplina propriamente dita.
212
As artes visuais, o teatro, a música e a dança deveriam ser ensinadas
por um mesmo professor. Isso abriu as portas para uma formação rápida
de professores, e em dois anos, vários profissionais estavam formados nessa
polivalência. Os professores, capacitados por cursos de curta duração,
necessitam apoiar-se em documentos oficiais e livros didáticos, porém,
estas fontes não deixavam de forma explícita e clara os fundamentos da
disciplina e nem mesmo as bibliografias específicas para consultas.
213
com a orientação de Ana Mae Barbosa (UNESP, 2011,
p. 30).
Foi apenas no ano de 2016 que uma emenda foi aprovada para
alterar o parágrafo sexto da LDB, e o ensino de arte finalmente foi
reconhecido como não só puramente único, mas com suas especificidades
de dança, música, teatro e artes visuais. Quanto aos PCN's, não apresentam
obrigatoriedade de implementação como a LDB, porém, são essenciais
ainda na atualidade para que as instituições de ensino e educação possam
214
implementar em seus currículos especificidades do ensino de arte presentes
no documento.
215
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 já se
previa uma base nacional, em seu artigo 210. Alguns anos depois, na LDB
de 1996, aponta-se novamente a necessidade da criação de uma base. Mais
de uma década depois, o Plano Nacional de Educação (PNE de 2014),
estabelece 20 metas para se cumprir até o ano de 2020, e uma delas seria a
elaboração da tão sonhada Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Assim, em 2015 deu-se início ao processo de elaboração desse documento.
Diversos especialistas de todas as áreas do conhecimento foram
convocados para traçar os “conhecimentos básicos de direito a todos os
estudantes brasileiros”. Logo na primeira versão do documento, os arte-
educadores já se preocuparam, pois, o ensino de arte perde a qualidade de
área do conhecimento e é agrupado junto à Educação Física, Língua
Portuguesa e Língua Estrangeira em uma grande área denominada
“Linguagens”.
216
sociedade. A impressão que se tem é que há a tentativa
de esvaziar o ensino de Arte do seu teor crítico e
reflexivo, para formar sujeitos dóceis e conformados
(PERES, 2017, p. 31).
217
Assim, para a BNCC, a articulação da história com a política e a
sociologia, contribuem para a formação integral dos indivíduos, pois com
o desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos ao longo de sua
trajetória no ensino fundamental, seria possível melhor entendimento dos
costumes e valores presentes nas diversas culturas. A educação
intercultural, termo comumente adotado nas artes, como afirma Fleuri
(2014, p. 92) contribui para “a construção de um projeto comum, mediante
o qual é possível integrar dialeticamente as diferenças. Sua orientação está
focada na construção de uma sociedade plural, democrática e
eminentemente humana, capaz de articular políticas de igualdade com
políticas de identidade”.
Ainda de acordo com o autor,
218
Tabela 1 – Destaque de algumas habilidades do
1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Unidade Objeto de
Habilidade
Temática Conhecimento
(EF15AR01) Identificar e
apreciar formas distintas das
artes visuais tradicionais e
Contextos e contemporâneas, cultivando a
Práticas percepção, o imaginário, a
capacidade de simbolizar e o
repertório imagético. (BRASIL,
Artes 2018, p. 200-201).
Visuais
(EF15AR03) Reconhecer e
analisar a influência de distintas
Matrizes matrizes estéticas e culturais das
Estéticas e artes visuais nas manifestações
Culturais artísticas das culturas locais,
regionais e nacionais. (BRASIL,
2018, p. 200-201).
(EF15AR25) Conhecer e
valorizar o patrimônio cultural,
material e imaterial, de culturas
diversas, em especial a brasileira,
incluindo-se suas matrizes
Artes Patrimônio indígenas, africanas e europeias,
Integradas Cultural de diferentes épocas,
favorecendo a construção de
vocabulário e repertório
relativos às diferentes linguagens
artísticas. (BRASIL, 2018, p. 202-
203).
219
Ao examinar a tabela, observa-se que o repertório imagético é uma
habilidade considerada como importante nos primeiros anos do ensino
fundamental, considerando principalmente as de âmbito local, analisando
a inter-relação das produções de diversos povos ao longo da história. Nas
Artes Integradas observa-se um destaque para os três principais povos que
tornaram o país diversificado.
Historicamente a relação entre povos vêm se constituindo numa
perspectiva colonial (FLEURI, 2014). Se considerarmos os Livros sobre a
história da arte, como o de Ernst Gombrich, estaríamos satisfeitos com a
quantidade de informações sobre as produções europeias presentes em seu
extenso manual, porém, estaríamos faltosos em relação às produções
indígenas e africanas, em primeira instância, pela pouca quantidade de
material informativo sobre essas produções em relação aos que se referem
à produção europeia, e em segunda instância, e talvez a mais problemática,
pela falta de incentivo e insistência em trazer essas fontes – que já são
escassas – para os cursos de formação de Arte-educadores.
Os anos finais, a segunda metade, do Ensino Fundamental deve
garantir aos alunos o acesso e ampliação o acesso à diversidade artística e
cultural.
220
Tabela 2 – Destaque de algumas habilidades do 6º ao 9º ano do EF.
Objeto de
Unidade
Conheci- Habilidade
Temática
mento
221
Pode-se refletir que, em relação às dos anos iniciais, as habilidades
dos anos finais possuem maior nível de complexidade, principalmente se
considerarmos uma demanda por maiores reflexões acerca dos temas
propostos, para o desenvolvimento de habilidades críticas. Damos um
destaque especial à habilidade (EF69AR33), que propõe uma
problematização das narrativas históricas pautadas no eurocentrismo.
Assim, ao se deparar com grandes guias históricos como o de Gombrich,
citado anteriormente, o professor deve ter consciência de que precisará
realizar um trabalho de reflexão profundo com os alunos para que possam
debater os motivos que acarretaram as escolhas do autor, e, apesar de serem
recomendações para o ensino fundamental, estas reflexões também devem
ser consideradas na formação dos professores.
222
como referência nas mais importantes universidades
com alunos de graduação em artes visuais, que
acabam perpetuando a visão de que apenas o ocidente
possui arte (BEVILACQUA, 2010, p. 3).
223
arte ainda é parte do cotidiano, ainda está sendo produzida atualmente, é
contemporânea como nós, do século XXI.
Outro aspecto que deve permear nossas reflexões é apontado por
Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua, Doutora em História Social e
pesquisadora no Museu de Arte de São Paulo. Ela apresenta em um dossiê
do Museu a dificuldade em encontrar estudiosos brasileiros que tratam da
temática africana na cultura material, por exemplo.
224
produções. Isso gera um equívoco por parte dos pesquisadores, que
utilizam padrões europeus para classificar essas enigmáticas obras. Outro
erro bastante comum que ocorre por parte dos pesquisadores é o de não
conseguir analisar os objetos por suas características estéticas, se limitando
a analisá-las dentro de seus contextos (BEVILACQUA, 2010).
As considerações da autora coadunam com a promulgação das leis
n° 10.639/03 e n° 11.645/08 que modificaram a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional com o objetivo de inserir a obrigatoriedade das
temáticas da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, fruto de lutas
políticas e sociais que resultaram na inserção desses temas no ensino
fundamental e médio (GOMES, 2011).
As respectivas Leis corroborem com a ideia de uma educação para a
interculturalidade. Entretanto, faz-se necessário que o Arte-educador
desenvolva pesquisas e auxilie os alunos a refletirem sobre essa diáspora
que marcou os povos que hoje compõe o Brasil em sua diversidade, afinal,
é explícita em lei e urgente para a população brasileira a necessidade do
estudo de nossas raízes para além do monopólio cultural da Europa. No 2º
inciso do artigo 26-A da LDB, por exemplo, fica claro que se torna
obrigatório o estudo da história indígena e afro-brasileira, e em especial na
área de educação artística.
225
Considerações Finais
226
Referências
227
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: arte / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília:
MEC/SEF, 1997. 130p.
228
Parte IV
Paulo Freire e a educação como prática
de liberdade no sistema prisional
229
Capítulo 11
Escolarização e mulheres privadas de liberdade: é
possível pensar uma educação libertadora?
Introdução
96
Psicóloga e professora na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
[email protected].
97
Psicólogo e professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP) - [email protected]
230
As práticas da denominada educação bancária vêm sendo
disseminadas hegemonicamente nas práticas educativas em nosso país, e
no ambiente prisional a situação não é diferente - não podemos nutrir, a
priori, muitas esperanças de encontrar práticas que possam levar a uma
educação libertadora na prisão. De acordo com Paulo Freire (2014), a
educação bancária é aquela que visa, prioritariamente, a reprodução de
conteúdos do educador que, em vez de comunicar-se com os educandos,
98
RAMOS, Ellen Taline de. Entre salas, celas e vozes: relatos sobre formação escolar
em prisões femininas. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2019.
231
possibilidades da realização de uma educação emancipadora nestes espaços
tão hostis e repletos de desumanidade.
Ao longo de todo o contato estabelecido com as mulheres em
situação de cárcere, foi possível perceber que, independente do que
fizeram, têm histórias de vida, famílias, vivências: são humanas e isso
deveria bastar para que recebessem atendimentos e atenção digna;
infelizmente, não é o que acontece. Quanto às professoras e professores,
pode-se notar o quão marginalizados estão em suas funções, e que a
“escolha” por lecionar nas prisões se deu pela “oportunidade” e não pelo
desejo; porém, a partir de suas experiências, a vivência docente no cárcere
traz novas perspectivas e possibilidades diante da docência.
Ainda que brevemente, este trabalho pretende direcionar os olhares
aos bancos escolares, por detrás das grades, objetivando abrir as portas
deste universo esquecido e abandonado, ressoando algumas das vozes que
protagonizam este espaço perpassado por inúmeros significados e valores.
232
Além disso, acabam por vivenciar uma “absoluta solidão, o retorno
forçado ao próprio eu, cujo ser se reduz à elaboração de um material no
ritmo monótono do trabalho”, o que faz com que delineiem “como um
espectro horrível a existência do homem no mundo moderno”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.211). A prisão se apresenta como um
ataque violento a estes indivíduos, pois viver “em liberdade” em um mundo
cada vez mais administrado já constitui uma tarefa desafiadora; viver
encarcerado potencializa ainda mais essa administração da vida cotidiana
em que obrigatoriamente todos os passos e atitudes são calculados e
supervisionados.
Mas quais seriam os motivos para tal instituição seguir existindo?
Diante desta pergunta pode-se inferir que a prisão se mantém, ainda que já
pudesse ter sido extinta, pois aqueles que são considerados infratores
apresentam-se à sociedade como um sinal da necessidade de coerção para
que a civilização possa se desenvolver, e têm como função alertar os demais
indivíduos sobre a possibilidade de sofrerem punições, caso tentem cindir
com a ordem. Por outro lado, podemos pensar: será que o indivíduo
considerado socialmente criminoso não seria aquele que apresenta
resistência às amarras do capital, uma vez que explicita impulsos
repudiados pela sociedade racionalizada e que, por essa tentativa de
rompimento com o estabelecido, precisa ser aprisionado e treinado para se
transformar no “bom burguês”?
Frente a estas reflexões é possível compreender o ódio àqueles que
rompem com o socialmente estabelecido, pois estes expõem desejos
latentes e reprimidos da sociedade e seus indivíduos, que também se
mostram fragilizados egoicamente e, por meio de atitudes irrefletidas,
voltam sua fúria ao indivíduo “errante”, reproduzindo a barbárie e
viabilizando o desenvolvimento do preconceito e a manutenção do sistema
penitenciário. O combate à violência extrema, ao preconceito e à ausência
de consciência, constantemente reproduzidos, pode ser possibilitado por
meio da ascensão e emancipação do indivíduo; no entanto, para que ocorra
o fortalecimento do indivíduo, são necessárias também alterações na
sociedade no sentido da superação da semiformação e da onipotência da
técnica, o que poderia ocorrer com uma participação efetiva da educação
(ADORNO, 1995).
Quando pensamos nas prisões atuais, essa longa moléstia citada
pelos autores se potencializa, pois encarceram-se os “doentes” de
determinada classe social, ou seja, os pobres, como amplamente discutido
233
por Löic Wacquant (2004; 2008). Cabe aqui expor brevemente as
características gerais da população prisional brasileira. A apresentação
destas estatísticas se faz a partir de um esforço por manter a humanidade
para além dos números. Ao tratarmos de dados, facilmente podemos cair
na armadilha de analisá-los friamente, sem considerar que são vidas e
histórias. Se vivemos em uma realidade em que parece que cada vez mais
negamos nossas humanidades, talvez escancarar números seja uma
estratégia importante e necessária para que algumas pessoas, encouraçadas
pelas alienações de nosso tempo, sejam capazes de encontrar pequenas
clareiras de humanidade reconhecendo os horrores de nosso Sistema
Carcerário, e porque talvez só assim consigam entrar em contato com o
que resta de sua humanidade.
Além disso, acredita-se que apresentar estes números e também as
pessoas por detrás deles, por meio das entrevistas, contribua para o
reconhecimento de
234
De acordo com estes dados, há 678.506 mil pessoas privadas de liberdade,
o que significa uma taxa de ocupação de 151,9%, escancarando um dos
problemas mais evidentes quando se fala em prisões: a superlotação
(BRASIL, 2020).
Em relação às mulheres, atualmente o Brasil ocupa o 4º lugar, em
números absolutos, totalizando 36.999, com taxa de ocupação de 115,3%.
Embora quantitativamente o número de mulheres encarceradas seja
consideravelmente menor que o de homens, a situação em que elas se
encontram é preocupante, visto que, desde a aprovação da Lei antidrogas
11.343 de 2006, temos observado um aumento substancial no
encarceramento feminino.
Essa preocupação se justifica pois, com a taxa crescente de
encarceramento e o aumento abrupto de homens e mulheres privados de
liberdade, vemos, além da superlotação, a precariedade do sistema penal
brasileiro que por sua morosidade acaba por manter encarceradas/os
pessoas que não necessariamente deveriam estar privadas de sua liberdade.
Além disso, vemos uma deficiência em se manterem direitos essenciais,
como a saúde, nestes espaços tão inóspitos, o que foi ainda mais
evidenciado com a pandemia da covid-19.
Outros dados são importantes para contextualizarmos a população
prisional no Brasil. Majoritariamente, as pessoas privadas de liberdade são
jovens - 41,81% das pessoas privadas de liberdade têm entre 18 e 29 anos -
, negras e pardas - 66,31% das pessoas privadas de liberdade -, (BRASIL,
2020) e com pouca ou nenhuma escolaridade.
Ao falarmos da população feminina, estes dados seguem a mesma
tendência: são mulheres jovens, em sua maioria negras e pardas, com baixa
escolaridade e que têm filhos. Esta última informação caracteriza uma das
especificidades do cárcere feminino, a maternidade, que marcou muitas
das falas das entrevistas ao longo da pesquisa de doutorado, pois ter filhos
era um dos motivadores para o retorno aos bancos escolares como
podemos ver na fala de Bruna.
235
mando o caderno, mando... [...] Eu pretendo sair e
ajudar eles muito, demais e tá em cima, tá
favorecendo eles na educação que eu tive. E tipo
assim, minha mãe tá estudando, se a minha mãe com
33 anos tá estudando, 32 anos que seja, isso é um
incentivo muito grande” (Bruna99 – aluna).
99
Todos os nomes foram alterados, a fim de manter o anonimato das alunas e
professores. Além disso, os áudios foram transcritos literalmente respeitando as
características de fala das participantes.
100
O termo utilizado aqui faz referência ao texto: Marcela Temer: bela, recatada e “do
lar”. Publicado na Revista Veja em 18 de abril de 2016. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/. Acesso em: 23
abr. 2021.
236
Essas informações demonstram quão subalterna é sua inserção no
crime, uma vez que seu envolvimento com o tráfico, por um lado, está
atrelado às relações afetivas ou familiares, e por outro, é comum o relato de
que, antes de serem encarceradas, essas mulheres eram, por diversos
motivos, “chefes de família” que, devido às suas necessidades
socioeconômicas e ao baixo nível de escolaridade, acabaram recorrendo ao
tráfico como possibilidade de sustento familiar e sobrevivência (DRIGO,
2010; TEIXEIRA, 2010).
Além disso, considerando as características do capitalismo desigual
da sociedade brasileira,
101
Entrevistas realizadas com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos do IPUSP e da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo, processo n. 48424015.8.3001.5563.
237
Encontros e desencontros: da educação bancária à
possibilidade da educação libertadora
238
Educação Básica a jovens e adultos que se encontram em situação de
privação de liberdade no Sistema Prisional do Estado de São Paulo”
respectivamente.
Um ponto a ser destacado é que, embora nas Diretrizes Nacionais de
2010 apareça o retorno da responsabilidade da educação nas prisões às
Secretarias de Educação, somente em 2015, por meio da Lei 13.163, é que
se modifica a Lei de Execuções Penais garantindo a integração do ensino
nas prisões ao sistema estadual e municipal (BRASIL, 2015).
Outra questão importante e considerada um avanço nas questões
penais é que, a partir de 2011, as presas e presos passam a ter direito a
remição de pena por meio do estudo, o que ocorria, anteriormente,
somente com o trabalho. De acordo com a Lei de Execução Penal, a cada
12 horas de frequência escolar que devem ser divididas, no mínimo, em 3
dias, é concedido um dia a menos na pena.
Diante do exposto acima, considera-se que a transição da educação
da FUNAP para a Secretaria da Educação é importante, pois apresenta a
possibilidade de uma melhora na qualidade da educação disponível nos
estabelecimentos prisionais, além de responsabilizar o Estado pela oferta e
garantia de direitos às pessoas privadas de liberdade, uma vez que, como
constatado por Ramos (2013), as condições para a educação escolar no
sistema penitenciário encontravam-se em situação extremamente precária,
com falta de locais adequados para a realização de aulas, com ausência de
material, além de em muitas unidades não haver uma monitora com
formação para desenvolver tais atividades.
Essas precariedades, que extrapolam a educação e podem ser
observadas de forma generalizada nas prisões, potencializam-se quando
voltamos nossos olhares para as mulheres presas, pois sabemos que
historicamente são discriminadas devido ao lugar em que são postas em
nossa sociedade: desprovidas de agressividade e consequentemente dóceis,
o que as excluía e exclui de oportunidades e direitos que deveriam ser
garantidos a todos. Ademais, vemos a luta travada pelas mulheres durante
anos em prol da igualdade de direitos, como o direito à educação, que foi
durante muito tempo compreendido como oposto à feminilidade, pois,
entre outras coisas, poderia “retirar” a mulher do lar (PERROT, 1988).
Pensar a educação nas prisões femininas e como ela ocorre contribui
para lançar luz a duas populações invisibilizadas, mulheres e pessoas
presas. É importante que, como discutido por Onofre (2016), os holofotes
sejam direcionados à população prisional feminina e sobretudo às práticas
239
escolares que ocorrem intramuros. Silenciadas são as vozes dessas
mulheres que ao serem privadas de sua liberdade são também privadas de
seus papéis sociais e de sua visibilidade, silenciadas são também as vozes
das professoras e professores que atuam nestes espaços, distantes de seus
colegas de trabalho, expostos aos procedimentos de vigilância e disciplina
das prisões. Dentre as professoras e os professores encontrados ao longo
das entrevistas, a maioria encaixa-se na categoria mais precarizada do
Estado de São Paulo, a denominada categoria “O” 102. Diante da situação
segregada que alunas e professoras/es enfrentam no ambiente prisional, os
encontros se potencializam e vemos tanto nas alunas como nas professoras
e professores a valorização deste encontro entre excluídas e excluídos.
Com as chamadas monitoras presas, a educação realizava-se, assim
como com os professores, em salas multisseriadas, e as monitoras
selecionadas nas unidades lecionavam, de fato, os conteúdos vinculados
aos anos escolares correspondentes (Ensino Fundamental I, Ensino
Fundamental II e Ensino Médio). Embora houvesse materiais didáticos
disponíveis, o desrespeito com a monitora em decorrência de “serem como
elas” era visível, frequente (RAMOS, 2013) e revalidado nas entrevistas
realizadas ao longo do doutorado:
102
Para mais informações a respeito destas categorias acessar o Manual do Professor
disponível na página da APEOESP <http://www.apeoesp.org.br/publicacoes/manual-
do-professor/>.
240
“Companheiras nossa jogava, num jogava nem na
lousa, ficava sentada ali, ganhava o dela. Hoje não,
hoje os professor é tem tipo uma cobrança, entendeu?
Vamo em cima, eles ficam em cima e a gente fica em
cima também. Se não tiver, nós cobra uma caneta, nós
cobra um caderno nós cobra... Oh professora a gente
num sabe isso, tem como tá falando? Não falar a
resposta, né? Mas até chegar num ponto que a gente
vai entender Por que igual eu falei, tem muitas
pessoas que faziam muito tempo que não estudavam,
até eu mesmo, entendeu? Então isso daí a gente cobra
bastante, aonde a gente vê uma grande diferença [...]
Tá bem melhor, bem melhor. Num quero nem
enganar, tá bem melhor! Porque se eu fosse estudar
igual o de prova de Ribeirão Preto eu ia sair burra,
burra. Burra assim né, no sentido de falar, né? Ia obter
conhecimento da minha parte, mas se dependesse da
minha companheira, eu ia sair leiga” (Bruna – aluna).
“Você descobre que você realmente é inteligente. E eu
sou muito inteligente. E tá sendo muito bom vir pra
escola porque eu tô me reeducando. Porém tá sendo
bom vir pra escola porque agora a professora é da rua.
[...] Porque quando era a Funap não era legal. Eu não
gostava de estudar com presa. [...] Elas não têm o
mesmo conhecimento que a professora da escola. [...]
não tem formação. Como que uma pessoa que não
tem formação vai me ensinar alguma coisa? [...] Pra
pegar o livro ali, passar a lição do livro na lousa pra
gente fazer a continha eu mesma faço na cela, eu
sozinha. Eu pego o livro e vou estudar. [...] Nada
contra as presas, mas pra mim é pela qualidade. [...] É
a qualidade. E hoje em dia vale a pensa estudar. É a
melhor coisa. Sou muito mais estudar do que
trabalhar” (Patrícia – aluna).
241
docentes “da rua”, o que também é reproduzido nos dizeres das/os
professoras/es, como exemplificado por Wagner.
242
“Tinha essa vaga pra trabalhar dentro do projeto
prisional. É, confesso que eu fiquei bem... – como
posso falar pra você? – eu fiquei bem insegura por ser
dentro de um presídio pra trabalhar com presas. Eu
fiquei com um pouco de medo. [...] Nesse tempo que
eu trabalho dentro das unidades prisionais, eu acho
assim, que foi... Não me arrependo. Muitas pessoas
falam ’Ai, mas você não tem medo?’. Pra todas as
professores que trabalham lá, ’Aonde você trabalha?
Aonde você dá aula?’ e eu falo ’Dentro do presídio’ e
as pessoas me ques..., todas, me questionam. Falam
’Nossa, mas você não tem medo?’ “Qual que é a
experiência?’. Eu não me arrependo de ter entrado.
Eu gosto muito, né? Porque, queira ou não, você..,
aqui dentro, eles tem um novo olhar. Lá fora muitos
professores amigos meus têm mais dificuldade em dar
aula, né, do que aqui dentro. Porque aqui dentro tem
a disciplina, né?” (Rosângela – professora).
243
Os adjetivos “animal” e “bicho” não são as únicas referências
pejorativas que permeiam o discurso das alunas. Há também o sentimento
de ser “não merecedora” desses esforços educacionais, perceptível quando
dizem ter a “oportunidade”, o “privilégio” de estudarem na prisão, e
valorizarem os professores “da rua”, pois não teriam “obrigação” de
lecionar nas unidades prisionais. Afirmam isso como se não fossem dignas
e/ou não tivessem o direito de estudar pelo fato de serem mulheres, pobres
e presas.
Frente às situações expostas podemos questionar: será que é possível
falarmos em uma educação de fato libertadora neste ambiente?
Um dos pontos positivos da transição ocorrida nas escolas prisionais
para a Secretaria de Educação é o fato de que sua organização, ainda que
demasiadamente precária, estruturalmente falando, ficou mais semelhante
à das “escolas da rua”, com a presença de docentes vinculadas/os à
Secretaria Estadual de Educação. No entanto, as possibilidades libertadoras
se mostram ineficientes.
“Não há docência sem discência” (FREIRE, 1996, p.21) - ao longo
das falas das/os professoras/es, vislumbra-se a importância que dão às suas
alunas. Porém, tal importância parece não superar a lógica da educação
bancária em que o educador é quem detém todo o conhecimento e o
deposita sobre os educandos, desconsiderando-os como sujeitos
detentores de saberes válidos para o processo educacional (FREIRE, 2014).
Tal lógica bancária foi vista tanto nas observações das aulas como nas
entrelinhas das entrevistas realizadas, como podemos ver nas falas abaixo:
244
Sempre ando com um livro. Eu saio daqui e eu vou
andando pra casa lendo. Aí eu vejo um exercício
bacana, já circulo ele pra passar pra elas [...] Aí na
hora da prova, né, da avaliação, eu só cobro de onde
elas chegaram. As vezes eu tô carrasco, as vezes cobro
tudo. Não quero saber, vai estudar (Wagner –
professor).
245
los” para a prova, além de deixar clara a verticalidade da relação,
características bancárias.
Se de um lado temos esta imposição bancária reinando nos bancos
escolares prisionais, podemos visualizar, ainda que com muito esforço,
possibilidades para potencializar uma educação que possa vir a se tornar
libertadora. O principal ponto que traz um lampejo de uma educação
libertadora é o fato de que, embora a escolha das professoras por lecionar
nas prisões não tenha sido exatamente voluntária, pois necessitavam do
trabalho por questões econômicas, nota-se que, por meio do contato
constante com as mulheres encarceradas, há um processo de humanização
destas, que podemos inferir que é influenciado pelo processo de
identificação, não apenas como seres humanos, mas também pelos espaços
invisibilizados em que ambos os grupos - professoras/es precarizadas/os e
mulheres presas - estão postos na sociedade.
Tais possibilidades de rompimento com a lógica bancária
despontam, pois, os seres humanos têm como vocação ontológica
humanizarem-se, e, neste sentido, “podem, cedo ou tarde, perceber a
contradição em que a ‘educação bancária’ pretende mantê-los e engajar-se
na luta por sua libertação” (FREIRE, 2014, p.86).
As relações criadas, mesmo que limitadas diante de um sistema que
impõe papéis muito bem definidos de professores e alunos, apresentaram-
se como genuínas e capazes de romper os preconceitos e as
desumanizações, como vimos em uma das falas da professora Rosângela.
Quanto à humanização, esta aparece intensamente nas falas das
alunas, como explicitado na fala de Patrícia, apresentada anteriormente.
O olhar pejorativo e discriminatório sobre as mulheres presas é
percebido de forma mais ampla quando as professoras e os professores
relatam o que outras pessoas pensam sobre seu ofício:
246
mais coração, não consegue sentir sentimento de
bom, bom por ninguém, que só vai fazer o mal, que
ninguém pode encostar. Sabe o modelo a não ser
seguido? Pronto, é esse” (Luana – Professora).
247
pena, fato considerado saudável, pois pode indicar uma forma de
resistência ao contexto insalubre da prisão, além de ressaltar os lampejos
de uma educação libertadora.
248
comparação, a repetição, a constatação, a dúvida
rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que
supera os efeitos negativos do falso ensinar. Esta é
uma das significativas vantagens dos seres humanos –
a de se terem tornado capazes de ir além de seus
condicionantes. Isto não significa, porém, que nos
seja indiferente um educador “bancário” ou um
educador “problematizador” (FREIRE, 1996, p.25).
249
Referências
250
Penitenciárias INFOPEN: Atualização – Período de Janeiro a Junho de
2020 Disponível em: < https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen>. Acesso
em: 22 mai. 2021.
251
ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano. A PRISÃO: INSTITUIÇÃO
EDUCATIVA?. Cad. CEDES, Campinas , v. 36, n. 98, p. 43-
59, Apr. 2016 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32622016000100043&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 30 Set. de 2018.
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: Operários, Mulheres e
Prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
RAMOS, Ellen Taline de. Entre salas, celas e vozes: relatos sobre formação
escolar em prisões femininas. 352 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social).
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
252
Capítulo 12
Juventudes no cárcere: sentidos e significados
nas práticas de lazer do universo apaqueano
103
Pós-Doutor em Estudos da Ocupação, Doutor e Mestre em Estudos do Lazer
EEFFTO-UFMG. Professor e Pesquisador da UEMG. Professor Colaborador do
PROMESTRE Mestrado Profissional em Educação da FaE/UFMG. Minas Gerais Brasil.
Correio eletrônico: [email protected]
104
Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (1981), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993)
e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2000). Pós-Doutorado na
Universidade Federal Fluminense (2006-2007); Pós-doutorado na Universidade Federal
de Juiz de Fora (2013). Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de
Minas Gerais, no Programa de Pós-graduação Promestre/EJA. Correio eletrônico:
[email protected]
105
Acadêmico de Relações Internacionais PUCMinas e acadêmico de Educação
Física EEFFTO/UFMG. Correio eletrônico: [email protected]
106
Pedagogo, Historiador. Professor do Departamento de Educação e Ciências
Humanas (DECH-Ibirité), e da Faculdade de Educação (FaE-CBH) da Universidade do
Estado de Minas Gerais – UEMG. Professor do Instituto DH – Pesquisa, Promoção e
Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania. Correio eletrônico [email protected]
253
Resumo
254
Abstract
255
Introdução
256
De encarcerados a recuperandos: os modos
de compreender e operar do “sistema” APAC.
257
mais humanista nos seus propósitos de reintegração social, entendemos
que não atinge os pilares produtores da desigualdade social no país, pois
permanece na lógica de encarceramento dos oprimidos por uma sociedade
patriarcal, colonialista e capitalista.
De todo modo, tal característica coloca-se inclusive como aposta na
propositura de imbricada articulação das ideias de autogestão e
espiritualidade. Metodologia esta que repercute em contingente ínfimo de
funcionários, denominados “inspetores de segurança”; quadro que se
organiza quando da avaliação proporcional do número de recuperandos e
trabalhadores no sistema. Importa ainda destacar que parte dos
trabalhadores da APAC advém da atuação de voluntários, que
corporificam desde os quadros gestores ao grupo de formadores que em
seu interior atuam.
Por fim, como se pôde perceber através do que foi destacado até
aqui, outro relevante aspecto diz respeito à forma adotada pelo sistema
quanto à abordagem conferida ao sujeito apenado. Ali, os encarcerados são
entendidos enquanto recuperandos, compreensão esta que lhes garante o
tratamento pelo próprio nome; algo que também reflexo é do processo de
humanização em que se subvenciona. Esses recuperandos, por meio de
uma abordagem mais humanizante, sendo devidamente reconhecidos em
seus nomes, que os identifica e os expressa na sua singularidade, são
implicados nas atividades cotidianas da instituição. Dela fazendo parte, em
enredos de privação; especialmente atípicos e notáveis em sua propositura
como se observa no clássico sistema prisional brasileiro.
A despeito das controvérsias do termo recuperar, o qual remete para
políticas tradicionais marcadas pelo prefixo “re” – como reeducar,
ressocializar, reintegrar, e outras denominações que remetem para visões
reformistas, funcionalistas e pragmáticas – compreendemos que o modelo
traz perspectivas renovadoras que necessitam ser evidenciadas e
problematizadas para o avanço de práticas inclusivas no campo prisional.
258
Juventude(s): possibilidades conceituais
e indagações a partir da diversidade
259
Apesar da diversidade de modelos, é possível
considerar que algumas formas constituem
dominância e passam a orientar a experiência
concreta dos jovens, mas adaptadas às peculiaridades
que decorrem de classe social, sexo, etnia, extração
religiosa, condição de vida urbana ou rural. (2005,
p.143).
260
Enquanto a socialização é algo mais rígido, fruto da interação com
instituições, a sociabilidade é algo fluido, fundado na associação com o
outro:
261
enquanto momento da constituição do sujeito; refletindo seu caráter de
subjetivação. Segundo Rey (2003), o desenvolvimento de uma teoria da
personalidade centrada na constituição subjetiva só é possível se:
262
Lazer: dimensões culturais
dialeticamente estabelecidas.
263
Diante dos apontamentos de Gomes (2004), parece-nos razoável e
abrangente a compreensão do lazer como uma dimensão da cultura repleta
de possibilidades para a produção humana. Contudo, a despeito dessa
constatação, é comum identificar, nas produções acadêmicas e práticas
sociais, perspectivas que privilegiam dimensões pontuais acerca do
fenômeno, reduzindo-o a uma única dimensão na abordagem dos seus
conteúdos culturais.
Tal redução se dá quando, associando-o, por exemplo, à experiência
individual, o lazer é compreendido como fruto de produção exclusiva do
indivíduo e, portanto, fora de um contexto mais amplo; ratificando o
caráter reducionista dessa perspectiva.
Se distintas são as compreensões acerca do lazer, também variados
são os espaços a partir dois quais pode ser ele investigado; dando-nos
indicativos da riqueza e profundidade que pode esse debate fomentar. E é
no sentido de estimulá-lo, ao passo que atentamos para espaços
historicamente invisibilizados, que nos propusemos a refletir mais detida e
aprofundadamente na discussão referente às práticas de lazer dentro dos
presídios.
Sendo o lazer um direito social previsto na Lei de Execuções Penais
- LEP, dentre outras coisas, cabe ao Poder público competente avaliar as
produções artísticas e culturais advindas dos presídios como produções de
trabalho, proporcionando, assim, direito à remição e estímulo a novas
vivências.
Nessa perspectiva, no contexto prisional, o lazer representa uma
possibilidade concreta de gerar sociabilidade e socialização para os sujeitos
privados de liberdade, ao romper com seu confinamento centrado em
processos exclusivamente punitivos.
Sob esses enredos, as subjetividades se constroem, os sentidos e
significados ganham contornos nas tessituras tantas dos sujeitos que
histórica e socialmente podem compreendidos ser. É a partir desse
universo, amplo e plural, que buscaremos ainda outros conceitos tatear
para, então, dizermos das práticas identificadas no contexto investigativo.
264
Concepção de Significado e Sentido
265
Nessa perspectiva, o lazer representa uma prática social atravessada
por processos que configuram a subjetividade humana, esfera esta na qual
os sentidos e os significados se entrelaçam de forma contraditória e
complementar.
É nesse bojo de compreensões, e tendo assinalado a pesquisa desses
elementos nas práticas culturais e sociais, que a investigação aqui proposta
pretende visibilizar esses intercâmbios tantos no contexto prisional. Isso
posto, a seguir, apresentamos as práticas de lazer na unidade prisional
pesquisada e seu potencial pedagógico em um contexto periférico.
266
Segundo destacam os autores, ao buscarem as academias, as
finalidades das pessoas são bem diversificadas e ultrapassam a busca de
condicionamento físico. Ademais, exercícios físicos nesses espaços, para
muitas pessoas, constituem experiência que implica em descarga de energia
e estresse, possíveis no espaço que também entendido é como zona de
relaxamento.
É também Marcellino (2003) que, sob essas compreensões,
apresenta o autor Devide (2000), para quem as práticas das academias
estruturam-se como função de lazer. Tais percepções nos possibilitaram o
conceber da organização da academia do presídio a partir de novas
compreensões investigativas. E é tendo-as como suporte que nos
dedicaremos a analisar, bem como discutir, a concepção e organização da
academia na APAC pesquisada.
A academia funcionava de segunda a sexta-feira, em 2 (dois)
horários: pela manhã e pela tarde. No turno matutino, estava disponível de
7h30min às 8h15min. Para esse funcionamento, eram designados 2 (dois)
apenados, que seriam os “responsáveis pelo espaço”; a fim de que
“administrassem” aquele lugar de encontro e atividades físicas.
No período vespertino, o funcionamento era de 17h00min às
18h50min. Neste turno, ao se encerrarem as atividades, era obrigatória a
organização do espaço, para que a academia ficasse devidamente arrumada
para o dia seguinte. Os responsáveis tinham, contudo, apenas 10min (dez
minutos) para essa organização, já que, às 19h00min., todos deveriam se
recolher às suas galerias e dormitórios. Após às 19h00min, era-lhes possível
apenas assistir à televisão.
Cotidianamente disponível, à exceção dos finais de semana, a
academia era espaço em que muitos compareciam. Lá estando,
exercitavam-se, auxiliavam-se, fortaleciam o incentivo de quem “dá conta
sô”. Enfim, construíam as possíveis vivências que aquele contexto os
permitia.
Quando da busca por compreender a percepção dos recuperandos,
muitos foram os relatos que, coletados, ofertaram-nos importantes
indícios acerca do que ali sentiam. Em relação à academia, vale ressaltar
este depoimento de um dos entrevistados:
267
[e]u pratiquei, agora eu estou mais afastado. Gostava
da academia porque a APAC é um regime
diferenciado, mas não deixa de ser um presídio, sabe.
Às vezes a gente passa raiva aqui dentro, passa raiva,
então pra gente não descontar a raiva num
recuperando, ou até num funcionário da casa, eu
procurava aquilo ali como válvula de escape pra mim,
sabe?! Quando eu tava meio chateado com alguma
coisa, ia pra academia e descontava nos pesos, sabe?!
Tirava minha raiva ali, deixava minha raiva ali, na
hora que eu saía, já saía bem, sabe?! E fora a
autoestima da gente, né, você ver seu corpo mudando
de estilo, sabe?! É muito bacana a academia e, como
se diz, a academia nossa aqui sempre foi improvisada.
Agora que nós tá conseguindo juntar um dinheirinho
pra poder comprar os equipamentos. Já chegou um
gladiador já, sabe?! Tem uma bicicleta ergométrica
também (Sujeito 3).
Para além de certa reprodução dos apelos sociais que, sob contextos
diversos (inclusive midiáticos a que tinham também acesso a partir de
19h00min., por meio da televisão), pregam a cultura do corpo perfeito e
sua simbolização/valorização padronizada enquanto objeto de desejo
sexual, o sentido atribuído pelos apenados à prática do lazer foi
apresentado como algo distinto, produzido pela configuração subjetiva dos
sujeitos (REY, 2003), que articulam o significado de um modo singular,
diferenciado do prescrito pela instituição.
Essas nuances, no entanto, não são captadas de forma direta, porque
são expressas por meio da emoção simbolizada nas práticas sociais que
necessitam ser verbalizadas, para que se dê a produção de novos sentidos
no campo relacional do sujeito.
Nessa mesma fala transcrita acima, fica-nos perceptível a
importância dos exercícios físicos para o equilíbrio físico e emocional do
apenado. Entretanto, em que pese a importância assinalada (e aqui por nós
não desconsiderada), não devemos creditar a esse “instrumento” todos os
benefícios para a qualidade de vida dos condenados. Afinal, durante a
observação participante, foi possível constatar um grande número de
detentos que buscava essa atividade; fator que, em alguns momentos, fez
com que necessário fosse organizar uma lista de espera, dando-nos
268
dimensão da limitação/insuficiência do espaço e das possibilidades de
descontentamento disso advindas.
Outro detalhe importante observado diz respeito ao fato de ser o
referido espaço buscado tanto por jovens quanto por adultos já mais
velhos. Essa configuração possibilitou trocas variadas, muitas delas
expressas pela ajuda mútua durante a bateria de exercícios. Dicas, toques,
trocas e revezamentos de aparelhos, dentre outras ações compunham
aqueles enredos e as sociabilidades que, por deles e neles, se expressavam.
Ainda que fosse espaço de expressiva significância e de constituição
de sentidos para aqueles sujeitos, em dado momento, o universo aqui
assinalado pareceu restrito a alguns recuperandos, e essa restrição em nada
tinha a ver com o desejo de estar no espaço.
Conforme informou um dos apenados da APAC, a academia estava
deixando de ser um espaço democrático. A afirmação imponente (inclusive
em razão dos impactos que teria naquelas configurações que ainda se
apresentavam e que dá-nos a complexidade dos sentidos, significados,
apontando-nos ainda para as subjetividades e processos de sociabilidades
ali instaurados) tinha uma razão de ser: a instituição da cobrança, a partir
daquele mês, de uma taxa de R$ 5,00 (cinco reais), que, segundo afirmou,
seria para comprar alguns equipamentos novos, em substituição aos
artesanais que lá estavam (conforme se pode verificar nas figuras 7 e 8,
abaixo relacionadas).
Naquele momento, diante de tal informação, o recuperando foi
indagado acerca da situação daqueles apenados que, sem quaisquer
condições e/ou possibilidades financeiras de arcar com a taxa, ao espaço
que regularmente frequentavam. Basicamente, o intento era compreender
como se daria a participação destes a partir de então. Frente a essa
indagação, a não se obteve resposta, ocultando arranjos para a
permanência naquela atividade.
O silêncio assertivo, em certa medida, evidenciava a perplexidade
diante da mudança a ser instaurada, ou, conforme ele mesmo apontou,
diante da não democrática decisão. Em dado momento, o estarrecedor
silêncio interrompido foi pelo seguinte comentário:
269
[...] a gente tamo caçando uma forma, tipo, uma
inscrição, aí a inscrição você ajuda com cinco reais
pra dar manutenção nos materiais e até mesmo pra
tentar comprar material. [...] Como a bicicleta que a
gente conseguiu, outros materiais mais adequados.
270
Ainda que de modo breve (dadas as limitações que se impõem a este
exercício de escrita), por meio dos relatos colhidos e das informações aqui
dispostas, é-nos possível perceber que a academia representava, para os
recuperandos, espaço de sociabilidade e lazer; a partir do qual se
expressavam, aprendiam, teciam relações repletas de significâncias e
símbolos.
Por outro lado, à instituição, o espaço e as atividades ali possíveis
pareciam por tantas vezes se configurar, a partir do que propunha sua
equipe gestora, como espécie de barganha, de troca por bom
comportamento.
Nesse sentido, aquilo que pela unidade prisional poderia ter
significados múltiplos, limitou-se a prescrições não raro pífias, que em
pouco contribuíam com a ensejada recuperação, a despeito do modelo
institucional singular que apresentava.
Nos enredos apaqueanos, o potencial, por exemplo, educativo que
teria essa atividade não foi explorado. No discurso social que embasa a
APAC, pareceu não haver espaço para a Pedagogia, aquela que, sendo
social, conforme assinala Silva (2009), pois poderia estar voltada ao
desenvolvimento da sociabilidade dos sujeitos, por meio de atividades
reflexivas com populações em situação de vulnerabilidade social.
Ao fim, fica o esperançar, como imperativo social e histórico (Freire,
2002) de que possa ela implementada ser, produzindo novos sentidos,
significados. Impactando subjetividades e fomentando redes de
sociabilidade em que sujeitos se expressam, percebem e reinventam as
liberdades que lhes são possíveis.
Considerações Finais
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configura o sistema prisional. Sendo assim, propor lazer a condenados,
dentro dessa lógica, contrapõe toda uma concepção condenatória aos
oprimidos da sociedade.
Nesse âmago, ainda que sob os cenários de modelos singulares,
como o método apaqueano, quando presente está, o lazer confunde-se com
prática utilitarista; visando esgotar as energias dos detentos, como quem
acredita dessa maneira prevenir a violência entre apenados. Mais uma vez,
fica-nos evidente a necessidade de se refletir, inclusive com e a partir dos
sujeitos apenados, as tensões, sentidos e significados presentes nas práticas
sociais de lazer que enredadas são nos espaços de suas vivências-clausura;
conforme nos indicaria Rey (2003).
Acreditamos que um sistema prisional que pretende libertar os
condenados pela sociedade das amarras que os isolam de vínculos sociais
mais amplos promotores de cidadania não pode reproduzir práticas
punitivistas, destas que associam o trabalho institucional à
instrumentalidade de controle e barganha frente a possíveis práticas
transgressivas.
Este trabalho, ao contrário, se em contornos outros executado
poderia representar atividade humana geradora de pertencimento e de
inclusão social, que possui caráter libertador, educativo e emancipador
para o exercício da cidadania; contexto expresso quando da busca por
dignidade a todos os sujeitos. Tarefa esta que, por sua vez, estruturada pode
ser por meio do lazer, visto que se constitui como direito social capaz
também de atender as necessidades humanas nos seus modos de
expressividade cultural, momentos lúdicos e práticas esportivas. Esses
elementos, dialogicamente complementares e antagônicos, necessitam ser
debatidos nas tensões geradas por suas possiblidades de socialização e
sociabilidade.
Esperamos que as questões suscitadas pela discussão levantada por
este estudo possam provocar reflexões sobre o valor educativo presente no
contexto do lazer sob as tantas interlocuções que possíveis lhes são, como
no âmbito do trabalho e do espaço prisional.
272
Referências
273
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Poder Executivo,
05 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 19 dez. 2019.
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Manuela Almeida e Silva. Rio de Janeiro: Difel, 1997.
275
LEAL, C. E. G. O sentido da inclusão para o sujeito com Síndrome de
Asperger. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do
Piauí, Teresina, 2011.
276
PINTO, L. M. S. M. Lazer. In: SOUZA, J. V. A.; GUERRA, R. (Org.).
Dicionário Crítico da Educação. Belo Horizonte: Presença Pedagógica,
2014. p. 44.
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sua evolução e diferenciação na teoria histórico-cultural. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação, São
Paulo, EDUCA, 1995/1999.
278
Complexidade: diálogos Brasil - Cuba, Belo Horizonte: Argumentum,
2010. p. 83-89.
279
Autores organizadores
Autores
280
Curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1285407435165636 E-
mail: [email protected]
282
MARCIO D’OLNE CAMPOS é doutor em Física de Sólidos (1972,
FR). Na UNICAMP atuou no Inst. de Física e no Dep. de Antropologia
(1972-93-98). Prof. visitante em antropologia: UERJ, UFF, UENF,
UNIRIO. Temas de educação e pesquisa incluem etnografia das relações
sociedades-humanos-natureza, saberes locais, relações céu–terra, ritmos e
temporalidades e antropologia da comida. Interlocutores principais:
Kayapó, caiçaras e descendentes italianos (ES e MG). Criou o termo e a
Proposta SULear (vs NORTEar. 1991- ).
[email protected] | http://www.SULear.com.br |
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sulear
283
NATALINO NEVES DA SILVA é doutor em Educação, professor
Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais (FaE/UFMG), Departamento de Administração Escolar (DAE).
Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Docência,
PROMESTRE (FaE/UFMG), na linha Educação de Jovens e Adultos (EJA)
e Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UNIFAL-MG). E-
mail: [email protected]
284
VICTOR ARTHUR LADEIRA GOMES é graduando em Educação
Física pela UFMG, graduando em Relações Internacionais pela PUC-
Minas, graduando em Ciências Contábeis pela Faculdade Pitágoras.
Revisor da Revista Científica Interdisciplinar Sulear da Editora UEMG, e
revisor da Editora Saci.
285
286