Eduardo-Iconografia Musical

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ICONOGRAFIA MUSICAL

Eduardo Magalhães – Musicólogo

1. Conceito

Considerando a etimologia da palavra, e de uma forma abreviada e denotativa, Iconografia significará a


«escrita por imagens» ou a disciplina que tem como objecto a descrição das imagens.
Adaptado o conceito para Iconografia Musical pode, então, entender-se como o ramo da história da música
que se relaciona com a análise e a interpretação de um objecto musical em trabalhos de arte.
O século XVI assistiu ao desenvolvimento da imprensa e o entusiasmo renascentista pela cultura da
antiguidade levou ao aparecimento de obras escritas que citaram essas manifestações artísticas. O termo
iconografia ou iconologia foi atribuído ao estudo de emblemas, moedas, retratos ou outras imagens da
arqueologia antiga. Ambos os termos se referem às imagens, mas, enquanto iconografia se refere à
descrição do objecto reproduzido, iconologia tem a ver com a interpretação da imagem desse objecto.
Os finais deste século XVI (1593) viram aparecer, em Roma, uma obra descritiva de imagens e emblemas
desde a antiguidade até então, da autoria de Cesare Ripa Perugina1, um estudioso de arte. Chamou-lhe
Iconologia overo Descrittione dell'Imagini universali cavate dell’antichità et da altri luoghi 2. E acrescentou
opera non meno utile che necessaria à Poeti, Pittori, & Scultori, per rappresentare le virtù, vitii, affetti,
passioni humane. Constituiu-se uma obra de referência que, como ele próprio o apresenta, tinha por
objectivo servir os poetas, pintores e escultores, para representar as virtudes, os vícios, os sentimentos e as
paixões humanas. Apresenta as descrições por ordem alfabética, em jeito de enciclopédia. Citando Elena
Moreno Pulido (2007, p. 185)3, para Ripa

só existem dois tipos de conceitos possíveis de transformar em alegorias, os naturais, representados


filosoficamente pelos deuses, para torna-los mais compreensíveis ao povo, e os próprios do ser
humano, vícios, virtudes ou costumes. Parte da máxima renascentista de que o homem é a medida de
todas as coisas, pelo que se não podem considerar como imagens aquelas que não reproduzam a
forma do homem ou da mulher. (…) Para ele, toda a personificação deve possuir um carácter
enigmático, para que não possa ser entendida facilmente sem uma explicação precisa.
1
Cesare Ripa nasceu em Perugia em ca 1555 e faleceu em Roma em 1622.
(https://www.metmuseum.org/art/collection/search/370219, acedido em 23 de Abril de 2018). A obra foi dedicada ao seu patrono,
o cardeal Anton Maria Salviati.
2
T.A. «Iconologia ou descrição de imagens universais extraídas da antiguidade e de outros lugares».
3
T.A. «sólo existen dos tipos de conceptos posibles de alegorizar, los naturales, representados filosóficamente por los dioses, para
hacerlos más comprensibles al pueblo, y los propios del ser humano, vicios, virtudes o costumbres. Arranca de la máxima
renacentista de que el hombre es la medida de todas las cosas, por lo que no se pueden considerar como imágenes aquellas que no
reproduzcan la forma del hombre o la mujer.´(…) Para él, toda personificación debe poseer un carácter enigmático, de forma que
no pueda ser entendida fácilmente sin una precisa explicación».
Ainda na leitura de Elena Pulido, ela sintetiza de uma forma bastante concisa os autores de relevo que se
seguiram a Ripa, na perspectiva de que uma obra tinha tanto mais valor quanto menos pessoas pudessem
compreender o seu significado pleno. Apresenta a Iconologie de Jacques Baudoin (1644) que já mostra as
imagens como um símbolo do pensamento e afirma que através dela é possível conhecer a mentalidade
filosófica e teológica da sociedade que a criou. Já em pleno século XVIII se encontram outros teóricos, como
Gravelot y Cochin (Iconologia ou Tratado de Emblemas e Alegorias, numa tradução castelhana pelo
mexicano Luis Pastor em 1866), que alteram o significado da Iconologia para uma instrução académica dos
jovens e como a ciência das imagens que ensinam a pintar alegorias, emblemas, símbolos, para
caracterizar todos os seres morais e metafísicos (p. 185).
A partir do século XIX, quando a História da Arte se transformou em disciplina académica, os termos
referiam-se ao conteúdo e à forma ou estilo do objecto, respectivamente (Tillman,
http://www.grovemusic.com).
Nos princípios do século XX, Abraham (Aby) Warburg1, professor da Universidade de Hamburgo,
transformou a sua biblioteca privada em meio pública, ao permitir a consulta da sua colecção bibliográfica
aos estudiosos. Este historiador considerava redutor o estudo da arte apenas pela perspectiva estilística,
defendendo uma abordagem mais interdisciplinar. A sua colecção particular deu origem ao Instituto
Warburg que, na guerra nazi, se transferiu para Londres. Um dos principais nomes relacionados com esta
escola é o de Erwin Panofsky que definiu iconografia e iconologia como «o ramo da história da arte que diz
respeito ao próprio objecto ou ao significado da obra de arte, por oposição às suas formas.» (Brown, 1995,
p. 11)
Segundo a professora da Universidade Complutense de Madrid, Rodriguez Lopes2, o pensamento de
Panofsky defende uma concepção sincrónica:

(…) as obras de arte convertem-se em ideias, em elaborações intelectuais puras e deixam de ser meras formas.
O seu conhecimento requer uma análise integral que investigue tanto a sua forma como o seu significado. (…)
A tarefa primordial do historiador de arte, segundo esta concepção, mais não é do que tentar reconstruir os
fundamentos sociológicos e de progresso sobre os quais foram elaboradas as obras de arte ou escritos os
textos que se lhes referem. Nas suas próprias palavras, a obra de arte é um produto da mente que,
culturalmente cristalizada, dava lugar à forma (p. 4).3

É também Panofsky (1983, p. 47 e ss.), no seguimento dos estudos com Warburg, quem subdivide a leitura
de uma obra de arte em três níveis:
 Pré-iconográfico: significado primário ou natural da obra de arte (não exige conhecimentos).

1
Alemão, nascido em 1886 e falecido em 1929
2
http://pendientedemigracion.ucm.es/centros/cont/descargas/documento4795.pdf (acedido a 14 de Agosto de 2016)
3
T.A. «las obras de arte se convierten en ideas, en elaboraciones intelectuales puras, y dejan de ser meras formas. Su conocimiento
requiere de una análisis integral, en el que se investigue tanto acerca de su forma como sobre su significado. (...) La tarea
primordial del historiador del arte, según esta concepción, no es outra que la de intentar reconstruir aquellos fundamentos
sociológicos y de progreso en los que fueron elaboradas las obras de arte o escritos los textos referidos a ellas. En palabras del
próprio Pasnofsky, la obra de arte es un produto de la mente que, culturalmente cristalizada daba lugar a la forma.»
Este nível permite a observação básica do que está representado: pessoas, elementos da
natureza, objectos, etc. e a percepção expressiva que transmitem, como a dor, a alegria, etc.
Panofsky chama-lhe o mundo dos motivos artísticos. É à enumeração destes motivos que ele
chama uma descrição pré-iconográfica.
 Iconográfico: significado secundário ou convencional (exige alguns conhecimentos culturais).
Ao observarmos uma imagem, identifica-se o seu significado: uma santa com um órgão portátil na
mão é Santa Cecília; doze pessoas sentadas a uma mesa, de determinada forma, representam a
«Última Ceia»; uma figura de capa e de foice (gadanha) na mão representa a Morte… Para estas
«convenções», é necessário conhecimento cultural. Associam-se, assim, os motivos artísticos a
conceitos ou temas que conduzem a um significado secundário ou convencional.
 Iconológico: significado intrínseco ou conteúdo (exige investigação de fontes escritas e
conhecimento do contexto cultural da obra de arte)
Todas as obras de arte condensam em si princípios subjacentes a uma determinada nação, a
classes sociais, a crenças religiosas ou outras. Manifestam-se quer pelos métodos de composição
quer pela significação iconográfica .
Maria Adelina Amorim e Vítor Serrão (2012, p. 125-26), a propósito da História crítica da arte, defendem
uma visão globalizante da obra de arte [os itálicos são dos autores]:
No âmbito de uma disciplina científica como é a História crítica da Arte, que visa, à luz dos seus próprios
conceitos e modos de fazer, dar a conhecer melhor as obras de arte, estimular o ato da suas [sic] leitura na sua
componente de integralidade, saber avaliá-las como produtos específicos de conjunturas, épocas e situações
do tempo histórico (e além do tempo histórico), é tarefa dos estudiosos que a pratiquem saber situá-las em
contexto, entendê-las como objectos [sic] vivos dotados de fascínio duradoiro e como testemunhos estéticos
dotados de carga trans-memorial, a fim de poder justamente unir, tanto quanto for possível, as regras do
gestor das artes com a do historiador-crítico e com a do connoisseur de obras artísticas, sem esquecer que
muitas dessas peças são, também, objetos de culto e, por isso, mantêm incólume as suas dimensões de
intermediários de fé, não deixando por isso de ser também e sempre obras de arte. Estudar-se a música no
contexto da sua representação em obras do Património artístico nacional impõe sempre o reconhecimento
destas vertentes.

Para além de Panofsky, outros autores mais ou menos seus contemporâneos lêem a obra de arte nas suas
características iconográficas de uma forma idêntica ou com pequenas diferenças, particularmente no que
se refere ao conceito/definição de Iconologia/Iconografia. Para mostrar a actualidade deste tema musical
nas suas ligações com as artes visuais, seleccionam-se algumas perspectivas de representantes desta
«disciplina» de iconografia musical.
Para o austríaco Emanuel Winternitz (n.1898-m.1983), «iconologia musical» pretende que a pintura pode
ensinar a história da música. Numa definição mais elaborada, afirma que pode ser «a análise e a
interpretação, através da história da música, das representações pictóricas de instrumentos musicais, os
seus executantes, os cantores, grupos de intérpretes musicais e toda a espécie de cenas musicais.» 1 (Brook,

1
«the analysis and interpretation, by the historian of music, of pictorial representations of musical instruments, their players,
singers, groups of performing musicians, and all other kinds of musical scenes».
1993, p. 80). Neste contexto, a iconografia musical é mais uma fonte importante a ter em conta na história,
num sentido em que nos revela hábitos musicais no seu contexto interpretativo.
Em Musical Iconography, o norte-americano James Mckinnon (n.1932-m.1999), como que apurou a
definição de Iconologia, afirmando que ela «procura penetrar no significado real de uma obra de arte em
particular, após a realização da tarefa comparativamente prosaica de determinar o seu significado
convencional ou iconográfico». 1 Para ele, a iconologia lida com ideias e não com a simples figuração
instrumental. O carácter essencial da iconografia é o pensamento musical, por oposição à identificação do
mero instrumento. (Lassetter, 1991)
Richard Leppert (n.1944), professor na Universidade de Minnesota (EUA), define Iconologia como «o
estudo das imagens, a sua formulação, transmissão, transformação e o seu significado intrínseco» 2, distinto
de Iconografia que, para ele, implica «o estudo descritivo e classificativo das imagens com o objectivo de
compreender o significado directo ou indirecto do objecto representado» 3. (Leppert, 1977, p.39)
Florence Gétreau (n. 1951) é uma referência da história de arte e da musicologia em França. Autora de
várias obras, publicou recentemente (2017) mais uma sobre Iconografia Musical: «Voir la Musique». Afirma
que «se entende por iconografia musical, o estudo das representações figuradas da música nas artes
visuais, seja qual for a técnica utilizada.»4 (Gétreau, 2003)
A propósito da prática musical na Idade Média, Edmund Bowles (1983, p. 10) escreve que para quem
investiga, a Iconografia Musical reveste-se de particular importância, «já que permite um grande número
de informações visuais sobre actividades musicais, sobre os executantes e o contexto social (…)».
Recomenda, no entanto que se utilizem estas informações com prudência uma vez que estas obras de arte
não foram produzidas como documentos históricos. 5

Iconografia Musical – uma inventariação


No IV Congresso Nacional de Musicologia, John Henry van der Meer (1987) apresentou uma comunicação
sobre iconografia relacionada com a organologia. Para além dos exemplares instrumentais antigos que se
conservam e são uma fonte directa para o conhecimento musical da época, realça a importância para a
organologia (mas não só) das fontes que ele chama indirectas: testemunhos escritos e testemunhos de
representação. Diz ele:

Na maioria dos casos dependemos quase inteiramente destes testemunhos indirectos para o conhecimento da
Antiguidade e da Idade Média. (…) podem mencionar ou representar instrumentos que já não existem (…) e

1
«seeks to penetrate to the real meaning of a particular art work after the comparatively prosaic task of determining its
conventional or iconographic meaning has been performed».
2
«the study of images, their formulation, transmission, transformation and their intrinsic meaning».
3
«the descriptive and classificatory study of images with the aim of understanding the direct or indirect meaning of the subject
matter represented».
4
«On entend par iconographie musicale, l’étude des représentations figurées de la musique dans les arts visuels, quelle qu’en soit la
technique».
5
«car elle fournit un grand nombre d’informations visuelles sur les événements musicaux, les executants et le context
sociale».
deles se podem deduzir indicações relativas à maneira de tocar, à atitude dos músicos (de pé, sentados), à
formação de conjuntos musicais – muito importante na época em que as prescrições instrumentais faltam, isto
é, antes de 1597 (Giovanni Gabrieli, Sacrae Symphoniae) –, à distribuição destes conjuntos, à disposição do
baixo contínuo, aos ambientes em que certo tipo de música era interpretado. ( p. 58)

Para Mário Vieira de Carvalho, no prefácio à edição de «Iconografia Musical – Autores de Países Ibero-
Americanos e Caraíbas» (Dias, 2015, p. 3),

“Fazer música” contempla o todo holístico em que ela ocorre: quem a toca; quem a ouve ou quem com ela
interage de alguma outra maneira, ainda que imóvel e em silêncio; e também o contexto cultural, histórico-
social. A comunicação está sempre vinculada a uma situação social concreta, a qual, no limite, pode ser a da
comunicação do músico somente consigo próprio. A iconografia musical interpreta as imagens que captam ou
têm alguma relação com a música – mormente com o ato de fazer música. Antes da era da reprodutibilidade
técnica, que permitiu a reprodução fonográfica e de imagens em movimento e, mais tarde, de imagens sonoras
em movimento, não havia senão testemunhos mudos das culturas musicais do passado. Nas tradições de
música notada, só sobrevivia do gesto sonoro a sua tentativa de representativa simbólica. Nas outras tradições,
as mais antigas e predominantes, nem isso: apenas o silêncio enigmático das imagens; a representação de
diferentes formas, situações e artefactos de uma comunicação musical cuja substância sonora se perdeu para
sempre.

Só nos anos mais recentes começou a ser dada importância musicológica a estas fontes e a merecerem
uma atenção mais cuidada, valorizadas pela riqueza de informação histórica que contêm.
Especialmente a partir do momento em que a Música entrou nas universidades como formação académica
em paridade com os demais cursos, os trabalhos aí produzidos também se focaram nesta área da história
da arte, tendo sido apresentadas teses de mestrado e doutoramento que revelam a riqueza musical
existente e já inventariada, mas apontam também para a grande quantidade de obras que jazem
desconhecidas (na iconografia musical) por todo o país, desde igrejas, museus, cemitérios ou colecções
particulares.
Sónia da Silva Duarte (2011, p. 21 e ss)1 inventaria cronologicamente as tentativas para os levantamentos
iconográficos musicais:
A primeira tentativa ocorreu em 1940, levada a cabo pelo musicólogo Mário Sampaio Ribeiro. Foi-lhe
encomendado o levantamento dos aspectos musicais da pintura portuguesa no âmbito da exposição «Os
Primitivos Portugueses»2. Este trabalho veio a ser publicado três anos depois, sob o título Aspectos
Musicais da Exposição de «Os Primitivos Portugueses». Segundo a autora, este trabalho de interesse
localizado e não de âmbito nacional, mesmo assim resultou incompleto porque o musicólogo deixou
escapar uma quantidade de quadros cheios de elementos musicais. Apesar disso, tem que se lhe
reconhecer o seu pioneirismo nesta área musical específica.

1
O Contributo da Iconografia Musical na Pintura Quinhentista Portuguesa, Luso-Flamenga e Flamenga em Portugal, Para o
Reconhecimento das Práticas Musicais da Época: Fontes e Modelos Utilizados Nas Oficinas de Pintura. Lisboa: FCSH Universidade
Nova de Lisboa: Dissertação de Mestrado em Ciências Musicais
2
Inaugurada em 11 de Junho de 1940.
Continuando na «leitura» de Sónia Duarte, volta a encontrar-se bibliografia em 1962, com a publicação de
um pequeno catálogo de onze tábuas do Museu Nacional de Arte Antiga, aí expostas, sob o título Temas
Musicais nas obras de arte do Museu Nacional de Arte Antiga.
Dez anos se passaram até 1972, altura em que foi publicado um estudo sobre o Retábulo de Santa Auta
pelo Centro de Estudos de Arte e Museologia, com dois pequenos artigos relativos à iconografia musical de
dois painéis, assinados por Manuel Morais e Sérgio Guimarães de Andrade.1
Em Março de 1976, Humberto d’Ávila, ainda então como inspector-chefe na Direcção-Geral do Património
Cultural, diligenciou uma tarefa, pela primeira vez, de âmbito nacional: o Levantamento da Iconografia
Musical e Registo de Instrumentos. Criou-se um formulário que foi enviado às Juntas Distritais, Câmaras
Municipais, Governos Civis, Bibliotecas, Arquivos e Museus com responsabilidades nas áreas da sua
jurisdição. A resposta ao Formulário pretendia o

levantamento e o registo fotográfico da iconografia musical existente no País, qualquer que fosse o suporte em
que se apresentasse (livro, pintura, gravura, azulejo, decoração, lavor, etc.) e, bem assim, dos exemplares de
instrumentos músicos com interesse histórico ou artístico.

Para este trabalho, nomearam-se equipas multidisciplinares e pediu-se a colaboração da população. Sónia
Duarte (2011, p. 25), que consultou os Processos (manuscritos) de Iconografia Musical elaborados para essa
finalidade2, sintetiza:

As respostas, que tardaram em chegar, apontavam essencialmente quatro problemas:


1. Queixavam-se da falta de apoio da população e arciprestados que seriam os mais aptos a dar respostas
rápidas;
2. Queixavam-se da falta de verbas para que fosse feito o trabalho de campo (deslocações, refeições);
3. Pediam verbas para aquisição de material fotográfico que não tinham;
4. Mesmo após o envio de verbas para a prossecução do levantamento em campo, estes eram
sistematicamente interrompidos por motivos de doença, de desmotivação e por falta de pessoas na vila
capazes de fazer o trabalho.

Como se poderia ter previsto e como ficou expresso nos Processos, houve maior ou menor envolvência
nesta louvável tentativa. Com excepção de alguns museus nacionais 3, particularmente o de Arte Antiga, de
Lisboa, ou o Museu de Lamego, e como afirma esta autora, os resultados gerais foram magros de
informação. Para além da pouca envolvência que se exigia, os próprios formulários, com apenas cinco
campos, a mais das vezes vinham apenas preenchidos com dois. Mais não serviu como um conhecimento
aproximado do estado da questão.

1
Respectivamente: Os instrumentos musicais no Retábulo de Santa Auta e Os músicos negros do Retábulo de Santa Auta.
2
MM Processos de Iconografia Musical 5.1.3, 1976-78
3
Segundo a autora, o levantamento em Lisboa foi exaustivo no que respeita à escultura, arquitectura, azulejaria e iluminura, com
dois profissionais de fotografia envolvidos: António Augusto Marques de Almeida e José Pessoa (este no Museu Nacional de Arte
Antiga). Fora de Lisboa, o trabalho foi levado a sério na Casa-Museu Dr. Fernando de Castro, no Museu Nacional Soares dos Reis,
Museu de Lamego, Museu de Évora, Museu José Malhoa e Museu Nacional Machado de Castro.
Permitindo-se a uma espécie de brio bairrista, o autor gostaria de destacar que uma das raras pessoas
empenhadas neste processo de importância musicológica foi o Padre Ângelo Minhava4, natural de Mondim
de Basto (Ermelo) que, através do Jornal Voz de Trás-os-Montes de 30 de Abril de 1976, pede a colaboração
dos leitores e de que se transcreve a notícia (o texto a negro é do Sr. Padre):

Louvável iniciativa!
A Direcção-Geral do Património Cultural vai proceder ao Levantamento da Iconografia Musical em Portugal e
Registo de Instrumentos. Explicando melhor: Aquela Direcção vai mandar fotografar e registar esculturas,
pinturas, gravuras, azulejos, decorações, enfim, tudo que tenha relação com a Arte dos sons, mesmo que seja
uma simples iluminura em qualquer livro, nomeadamente nos velhos missais. Há por vezes nas igrejas figuras
de anjos cantores ou tocando trombeta, festões, ornamentais, gárgulas, capitéis, tímpanos, tábuas pintadas a
óleo, órgãos ou harmónios antigos que interessam, pelo aspecto cultural. Ainda que mais raramente, também
aparecem em capelas e casas particulares, bibliotecas, arquivos, museus, etc. (…) Se os prezados leitores
quiserem ter a gentileza de colaborar nesta louvável iniciativa, poderão endereçar as notas e referências
colhidas à Redacção deste semanário (in Duarte, 2011, p. 26).

Isabel Freire de Andrade (1987, p. 60), no IV Encontro Nacional de Musicologia, refere-se a este
levantamento condensando em cinco tipos as respostas que chegaram e responsáveis pelo resultado da
iniciativa:

a) Entidades que afirmavam desconhecer a existência de quaisquer espécies iconográficas;


b) Entidades que, embora não tendo pessoal que pudesse colaborar no levantamento projectado, se mostraram
prontas a prestar todo o apoio a quem eventualmente viesse a inventariar o material iconográfico que
assinalam;
c) Entidades que remetem o organismo inquiridor para inventários artísticos da região, onde se deverá –
segundo elas – encontrar toda a informação desejada;
d) Entidades que, além de assinalar a existência de material iconográfico de interesse, facultam uma lista de
possíveis colaboradores na tarefa em vista;
e) Museus que devolveram, devidamente preenchidas, as folhas apropriadas nas quais se registava cada
espécie, sua localização e descrição (museus de Lamego, Nacional Soares dos Reis, de Évora, de José Malhoa,
Nacional Machado de Castro, Nacional de Arte Antiga).

Este levantamento nacional, sem sucesso, emudeceu até 1985, ano em que o director do Instituto
Português do Património Cultural (João Palma-Ferreira) confirmou uma parceria do departamento de
Musicologia do Instituto com os alunos de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, no intuito do levantamento iconográfico musical em Portugal.

2. Música e Instrumentos Musicais

É perfeitamente aceite que as representações musicais iconográficas reflectem as práticas da música à


época da obra de arte, bem como os instrumentos aí representados, sejam individuais sejam em formação
de conjunto. Porém, também é consensual que nem todos os artistas visuais possuíam competências e

4
Autor de vários hinos (Mondim de Basto e Vila Real, entre outros), assim como do Cancioneiro de Mondim e de Montalegre e
envolvido em muitas outras actividades musicais no seu percurso sacerdotal.
saberes suficientes que lhes permitissem reproduzir com fidelidade os aspectos musicais que introduziram
nas suas obras. Significa isto que não se pode interpretar com fé absoluta toda a iconografia musical
produzida sem se comparar com a história da música da época retratada. Exceptuam-se desta consideração
a maioria das iluminuras, dado que recriam com fidelidade a vida quotidiana do período no que respeita às
interpretações vocais ou instrumentais.1
Os testemunhos mais antigos de «escrever» a música nas obras de pintura e de escultura chegam dos
povos da Mesopotâmia e do Antigo Egipto, documentando, por exemplo, o uso da harpa há mais de 3000
anos a.C. As civilizações mais representativas dos séculos posteriores, particularmente a grega e a romana,
absorveram este costume figurativo nas suas manifestações artísticas e decorativas. Mas a queda do
Império Romano e a crescente cristianização do território fez com que estas representações musicais na
iconografia se tornassem mais raras, praticamente inexistentes.
Os hábitos musicais, sob a influência do cristianismo em expansão, modificaram-se. A utilização da música
nos serviços litúrgicos resumiu-se, durante alguns séculos, ao uso da voz humana, sem qualquer
acompanhamento instrumental. A Voz humana é o instrumento principal deste período medievo. A religião
absorveu e deixou-se influenciar pela riquíssima cultura helenista. Lembre-se, por exemplo, a própria
etimologia das palavras Zeus e Deus que entroncam na mesma palavra grega Theos (θεός) ou pode até
considerar-se uma corruptela fonética do «θ» do étimo grego. O mensageiro grego (άγγελος) origina os
mensageiros celestes judaico-cristãos, os anjos. O Olimpo transforma-se em Paraíso e as Musas,
primitivamente um coro feminino, passam, posteriormente, a inspiradoras e patronas das nove artes e
servem de etimologia à palavra música (literalmente, o que se refere às musas). Os deuses podem
facilmente associar-se ao conceito dos santos cristãos, patronos de uma diversidade grande de coisas. Estes
santos protectores tanto passam pelas forças da natureza, como Santa Bárbara, como de profissões, do
género de S. Crispim, protector dos sapateiros, ou S. Floriano, patrono dos bombeiros, e mesmo patronos
de coisas impensáveis, como Santo Arnulfo de Metz, protector dos cervejeiros, Santa Batilde, protectora de
pessoas com cólica e diarreia ou Santo Estêvão, protector de pessoas com cálculos renais. 2
A proibição instrumental e de algumas melodias nos primeiros séculos do cristianismo, e em praticamente
toda a Idade Média, prende-se essencialmente com o corte radical que a incipiente igreja cristã quis fazer
com os hábitos musicais romanos, considerados profanos. No 1º volume da História da Música «Pelicano»
de Alec Robertson e Denis Stevens (1960, p.160), os autores transcrevem um protesto violento de S.
Clemente de Alexandria (falecido em 215 e um dos primeiros padres cristãos):

Devia ser banida esta música artificial que fere as almas e as leva a sentimentos hipócritas, impuros, sensuais e
até mesmo ao frenesim e loucura báquicas. Ninguém tem o direito de se expor à influência poderosa de modos
excitantes, langorosos, que pela curva das suas melodias leva à efeminação e à enfermidade. Abandonemos

1
Bowles, 1983, p. 10
2
https://www.koinonialivros.com.br/religioso/santododia/santos_sua_protecao.html (acedido a 30-01-2021)
harmonias coloridas [cromáticas] aos banquetes onde até uma pessoa se envergonharia da música ataviada de
flores e de prostituição!

E acrescentam que S. João Crisóstomo (m. 407) ainda vituperava contra estes mesmos costumes: que fosse
banido «tudo quanto lembrasse cultos pagãos, suas canções e seus actores». Para este arcebispo de
Constantinopla, cantar era «elevar a alma, dar-lhe asas, libertá-la das coisas terrenas, tal como um canto
divino onde o ritmo e a melodia constituíssem uma verdadeira sinfonia». (ib.)
Nesta linha de simbolismo, os papas proibiram que o canto fosse acompanhado nos dois ritos principais da
religião: a missa e o ofício das horas. Mais tarde, com o desenvolvimento do órgão, muitas igrejas
adquiriram este instrumento mas não era utilizado nem na Missa nem no Ofício Divino. Só mais tarde,
provavelmente no século XIII, permitiu-se a sua utilização nas cerimónias, mas tocando em alternância com
as vozes, nunca em simultâneo. O Concílio de Trento, em meados do século XVI, veio regulamentar, com
algumas cautelas, o uso deste instrumento dentro dos templos cristãos. A utilização do órgão foi
estabelecida obrigatoriamente em várias situações de solenidades mas sempre em substituição do coro e
nunca simultaneamente. Ou seja, o uso do alternatim (à vez, coro e órgão) ou a substituição do cântico por
música de órgão. Na alternância com o coro, o órgão improvisava, normalmente. Têm origem neste
costume, as pequenas peças para o instrumento que tomaram nomes como Tentos e Fantasias, assim
como o nome do canto que substituíam: Graduale, Offertorium, Communio, etc.
Não será, pois, de estranhar que a música tenha desaparecido da arte, reaparecendo, gradualmente, a
partir dos finais da Idade Média.
Neste período medieval, numa época ainda indefinida quanto às formações musicais que se padronizariam
ao longo do Renascimento, a música instrumental classificava-se pela sua intensidade: Alta ou Baixa e bem
assim os instrumentos que a produziam. De uma forma simples, música para exterior teria que ser «alta» e
para interiores, deveria ser «baixa». Além desta funcionalidade básica, a única que cumpria funções
populares era a música «alta», a música que se «fazia» nas festividades de cariz popular. Na função social
referente à nobreza, utilizavam-se as duas categorias, dependendo do contexto e do local onde a música se
executava.
Em circunstâncias festivas que requeressem maior aparato e impacto, visual e sonoro, poderiam misturar-
se os instrumentos de ambas as divisões, o que se comprova em alguma iconografia musical.
Segundo Edmund Bowles (1958, p. 155 e 156), a Idade Média tinha a sociedade muito bem ordenada, onde
cada pessoa tinha a sua função muito bem especificada, obedecendo ao que se acreditava ser a ordenação
divina. Assim, a sociedade dividia-se em três classes: os homens da guerra (bellatores), os homens da Igreja
(oratores) e os trabalhadores (laboratores). Estas três classes, embora distintas, dependiam umas das
outras. Esta base de organização feudal projectava-se em cada função social, em cada profissão e em
diversas actividades desta vida medieval, onde não escaparam a esta hierarquização social os instrumentos
musicais. A cada instrumento atribuíam-se características da classe com que se identifica, o que também
constitui uma perspectiva para a abordagem da iconografia musical. Assim, como conclui João Pedro
Romão Louro (2010, p. 26) na sua dissertação de mestrado sobre a Custódia de Belém,

Os critérios da intensidade sonora e do estatuto social formam os dois principais vectores de análise que, em
conjunto com um entendimento histórico do período, contribuem para a decifração da representação visual,
ou literária, da música.

Ainda actualmente se pode sentir uma hierarquização social no que se refere aos instrumentos musicais:
um instrumento utilizado nas orquestras ditas sinfónicas ou de música «clássica» é mais bem visto,
socialmente falando. Mas mesmo no interior deste agrupamento orquestral, as cordas superiorizam-se em
relação aos sopros, talvez na decorrência histórica de que os instrumentos «baixos» eram utilizados pela
nobreza.
A democratização instrumental nesta escala de valor conceptual ainda hoje está longe de se aperceber.
Todos reconhecem que tocar violino ou piano tem maior visibilidade e mérito social do que tocar acordeão,
cavaquinho ou outro qualquer instrumento da gama que se utiliza na música classificada como popular. A
própria viola, ou guitarra clássica, só há bem pouco tempo começou a ganhar este estatuto e só depois de
ser introduzida nos Conservatórios e Academias do ensino curricular da música.
É, portanto, quase no dealbar do Renascimento que a arte visual recupera tematicamente a música
especialmente nas suas representações instrumentais.
Irene Martinelli (2016, p. 9) dá conta do recomeço dessas aparições no século XIV:

Ter-se-ia que esperar o séc. XIV para que a música regressasse a ser uma actividade praticada de forma
constante pelas várias populações e voltasse a fazer parte do repertório figurativo. A partir deste período, as
praças e as ruas das cidades começaram a reanimar-se sempre com mais frequência com festas, bailes e danças
populares. (…) Nos frescos e nos livros iluminados dessa altura aparecem frequentemente as imagens de
grupos de pessoas de diferentes estratos sociais – da gente do povo aos nobres – representados enquanto
dançam acompanhados por tocadores.

As leituras iconográficas musicais na arte de qualquer período e de quaisquer cenários permitem


reconhecer uma quantidade de elementos musicológicos que se podem resumir em quatro categorias,
segundo o luthier Christian Rault (2004, pp 11 e 12), quando estabelece relações entre a iconografia e a
prática interpretativa:
1. O contexto da interpretação: cenas interiores, de caça, cenas litúrgicas, cenas cortesãs, etc.
2. Os meios utilizados para a interpretação: Vocal ou Instrumental; instrumentos apropriados para a
cena apresentada; análise ao instrumentário utilizado, etc.
3. Técnicas de interpretação: a forma de segurar e de tocar o instrumento e outros detalhes como a
forma de esticar as crinas do arco com os dedos, até, em imagens mais tardias, se pode deduzir o
acorde tocado pelo músico.
4. Os Instrumentos: a interpretação está condicionada pelas realidades materiais dos instrumentos, a
sua afinação, as cordas, orifícios nos aerofones, etc. Deduzem-se destes pormenores tecnológicos,
para além das possibilidades sonoras dos instrumentos, alguns elementos estéticos sonoros da
época.
Lassetter, em idêntica linha de reconhecimento da importância da leitura iconográfica, é um bocadinho
mais exaustivo na descrição afirmando que a prática de performance inclui
os aspectos acústicos e sociais do ambiente de uma performance: sua localização (dentro ou fora, por exemplo); sua
ocasião (festa, casamento, etc.); e o tamanho, constituinte e comportamento do público. As imagens fornecem
evidências para esses elementos da produção musical que as palavras não conseguem. Uma obra de arte retratando
uma orquestra, por exemplo, demonstrará quantos artistas desempenham cada parte (…), o arranjo espacial dos
músicos, se um grupo contínuo está a tocar e qual é sua composição; e quais os acessórios que estão a ser usados
(estantes de partitura, surdinas, etc.). A prática da performance também abrange o estrato social do músico e a
maneira pela qual a sociedade vê o compositor, o intérprete e a música em geral.   Por exemplo, o retrato de um
violinista da corte, que usa um uniforme de cetim elaboradamente bordado em brocado, informa-nos, pelo menos
parcialmente, sobre o status desse artista na sociedade. Da mesma forma, uma figura de Brueghel segurando uma
gaita-de-foles e dançando no meio de outros camponeses pode relatar muitos pormenores específicos (sobre o meio
musical, particularidades do instrumento etc.) que faltariam à maioria dos relatos escritos. 1

4. Anjos Músicos

A iconografia universal utiliza imensas vezes pequenas figuras rechonchudinhas para ilustrar musicalmente
representações de cariz religioso, ora em posturas vocais ora tocando instrumentos, conhecidos por putti,
termo italiano (putto, no singular).
Putus, em latim, significa puro, limpo¸ mas também significa menino (talvez numa acepção semântica!) As
suas formas, com ou sem asas, lembram o Cupido (Eros) da mitologia greco-romana. O amor humano
representado por esses Cupidos transforma-se em amor a Deus, particularmente na arte a partir da Contra-
Reforma.
Os putti já se podem encontrar na arte do antigo mundo clássico, então denominados genii (genius, no
singular), que os antigos acreditavam poder influenciar a vida dos humanos. Eram os mensageiros que
faziam a ligação entre os deuses e os homens.
Segundo Ana Sofia Simões (2012), e citando Réau, em Iconographie de l'art chrétien,

1
The term performance practice includes all those techniques that cannot be fixed in a written score, such as how performers hold
an instrument, specific hand and finger positions, which instruments are used in ensembles, and their relative placement, and so
on. Performance practice includes both the acoustic and the social aspects of a performance's environment: its location (in or
outdoors, for example); its occasion (festival, marriage, etc.); and the size, constituency, and behavior of the audience. Pictures
provide evidence for these elements of music-making that words cannot. An artwork depicting an orchestra, for example, will
demonstrate how many performers play each part (…), the spatial arrangement of the musicians, whether a continuo group is
playing, and what its makeup is; and what accessories are in use (music stands, mutes, etc.). Performance practice also
encompasses the social status of the musician and the manner in which society views the composer, the performer, and music, in
general. For example, a portrait of a court violinist, who wears a satin uniform elaborately bordered in brocade informs us, at least
partially, of this performer's status in society. Similarly, a Brueghel townsman cradling a bagpipe and dancing amid other peasant
folk can relate many specific details (about the music's milieu, the details of the instrument, etc.) that most written accounts would
lack. (https://symposium.music.org/index.php/31/item/2085-music-iconography-and-medieval-performance-practice)
a conceção do anjo tem origens persas mas a sua representação, tal como a arte cristã nos habituou,
é mais devedora da arte greco-romana, pois considera que a semelhança entre as Nikés gregas e os
anjos alados é demasiado evidente para ser ignorada, muito embora as primeiras fossem
representações femininas e os anjos, até ao final da Idade Média, fossem representados como sendo
do género masculino. (pp.33 e 34)

Durante o período da Idade Média desapareceram das representações artísticas, regressando à arte italiana
em meados do século XV, empenhados em recuperar a tradição artística do seu classicismo. Um dos
artistas a quem se deve o reaparecimento destes meninos foi o florentino Donatello que os imortalizou
num grande número das suas criações artísticas. Segundo Vertefeuille (2005:
ringlingdocents.org/putto.htm), «o putto entre os anos 1400 a 1600 era uma personificação do espírito e da
emoção humanas expressos na arte e era muito mais de que apenas um cativante e sentimental símbolo de
amor».1
Por vezes, os putti aparecem misturados com anjos, propriamente ditos. A etimologia da palavra «anjo»
advém da redução de «ângelo» cuja etimologia se encontra na palavra grega «ángelos» (άγγελος) com o
significado de mensageiro. Mercúrio era o deus mensageiro dos romanos, decalcado do deus grego
Hermes. Júpiter, para o tornar mais veloz, colocou-lhe asas nos calcanhares e no elmo. A mitologia pode ter
ido buscar a ideia das asas para o deus-mensageiro à utilização multimilenar do pombo-correio pelos povos
antigos como transportadores de mensagens. Segundo alguns achados arqueológicos, a existência do
pombo pode comprovar-se há 6.500 anos a.C. (http://www.fpcolumbofilia.pt/Factos.htm: acedido em 30
de Março de 2018).
O culto dos Anjos baseia-se nas tradições e crenças bíblicas da cultura judaico-cristã que, por sua vez, se
mistura com outras culturas orientais com quem os judeus conviveram ao longo dos séculos da sua história
antiga. Segundo frei Geraldo Dias Coelho (2012, p. 13 e 14) é especialmente após o exílio que os anjos são
mais citados nos textos sagrados. São anjos que aparecem a Abraão e à escrava de sua mulher Sara, Agar,
assim como são eles que lhe não permitem matar o seu filho Isaac. É um anjo que mata os primogénitos
egípcios, é um anjo que derrota e mata um exército assírio, inimigo de Israel e é até um anjo que indica o
caminho certo à burra de Balaão…
A representação de figuras semelhantes a anjos já chega da antiguidade oriental, representadas na arte da
antiga Mesopotâmia e da antiga Grécia. Eram, no entanto, representados sem asas. A primeira
representação alada destas figuras descobriu-se no sarcófago do Príncipe, na cidade turca de Arigüzel,
perto de Istambul, em 1930, e atribuído ao tempo de Teodósio I, nos finais do séc. IV
(http://obviousmag.org/archives/2014/02/pinturas_famosas_de_anjos.html: acedido em 30 de Março de
2018).

1
T.A. «the putto in the 1400's - 1600's was a personification of human spirit and emotion expressed in art and was much more than
just an endearing sentimental symbol of love».
Segundo João Lupi (2012, p. 8), da Universidade Federal de Santa Catarina, a masculinidade que se atribui a
estes seres insere-se na tradição judaico-cristã, uma cultura assumidamente patriarcal. Ainda segundo ele,
a juventude ou a meninice destas representações, [quando angélicas], representam a «vida sustentada e
eterna, e as asas a sua espiritualidade».
Como o Renascimento assenta na cultura clássica greco-romana, também rica na sua mitologia, os artistas
dos séculos XV e XVI buscaram aí inspiração, utilizando-a como recurso artístico para as suas criações. Por
vezes, estas imagens mitológicas aparecem cristianizadas, ao serviço da espiritualidade evocada a partir das
representações de arte.
O Pseudo-Dionísio (Martin, 2007: p. 124 e ss.) apresentou a corte celestial com uma hierarquia divina que,
para além da Trindade suprema, compreendia três níveis de entidades (tríades, também elas) que
mediavam entre a Trindade propriamente dita e os humanos. Eram elas, por proximidade da Trindade
Divina, a mais elevada, Serafins, Querubins e Tronos; a intermédia, Dominações, Virtudes e Potestades; a
inferior, mais perto dos humanos, Principados, Arcanjos e Anjos. A primeira hierarquia ou nível são
aqueles que estão em contacto directo com Deus; os da segunda presidem e governam as
comunidades humanas; e os da terceira têm funções e missões específicas e levam mensagens aos
homens (Muela, n. d.: pp. 101 e 102).
Os textos do Pseudo-Dionísio, que se apresentava como um discípulo de S. Paulo (e convertido pelo
apóstolo), até ao século XVI, eram considerados textos apostólicos, logo inquestionáveis. 1
Outra obra medieval, tida como precursora das Enciclopédias, De Proprietatibus rerum (sobre a
propriedade das coisas), escrita no século XII por um monge inglês, Bartholomeus Anglicus (Bartolomeu de
Inglaterra), apoia-se nesta teoria de Dionísio, a quem trata como santo. A obra foi traduzida para
castelhano em 1494 por frei Vicente de Burgos, editada em Tolosa por Enrique Meyer. Na apresentação do
II Livro el qual trata de los Angeles buenos y malos y de sus propriedades, o autor apresenta uma imagem
com as três ordens celestes, em grupos de quatro em cada nível. A última, a dos Principados, Arcanjos e
Anjos, é apresentada com cada um deles a tocar o seu instrumento musical: alaúde, rebab, trombeta e
pequena trombeta e tambor (anjo tamborileiro).
No capítulo IIII do livro II (Anglicus, 1494), o autor enumera os instrumentos nas mãos da última ordem
angelical:
(…) E tocam muito bem alaúde e instrumentos de harmonia com aqueles que são dignos e merecem
ser consolados por sua ajuda jamais não venha tristeza alguma. E trazem isso mesmo trombetas nas
mãos e tocam; com elas incitam e convidam sempre que aproveitemos nas boas obras e bons
desejos (f. 8).2

1
A partir desse século, começaram as controvérsias sobre a autenticidade histórica de Dionísio, passando a obra a ser colocada no
séc. V/VI e, a partir do século XIX e por causa disso, começou a ser conhecido como o «pseudo-Dionísio».
2
T. A. E tocam muy bien el laud y estrumentos darmonia, ca aquellos que son dignos y merece[m] de ser consolados por su ayuda
jamas no vienen en tristeza alguna. Y trahen eso mesmo trompetas enlas manos y tocam, ca ellos ynçitan y siempre conbidan que
aprovechemos enlas buenas obras y buenos deseos.
Numa leitura simbólica dos instrumentos nas mãos dos anjos, poderia perceber-se uma associação
à cultura grega que atribuía o simbolismo das cordas (raios do sol) a Apolo (espírito) e os sopros a
Baco (natureza humana): a mensagem, vinda de Deus e transmitida aos humanos.
Outra característica é a representação de toda a família instrumental da Idade Média: cordas, sopro
e percussão, as cordas, nas suas duas versões, dedilhadas e friccionadas.

Fig.1 Anjos Músicos: El libro De Proprietatibus Rerum (versão castelhana de Vicente de Burgos, fólio X v).
5. Iconografia Musical Vimaranense

Como em tantas outras localidades do país, a iconografia musical está representada na cidade, mas
também ainda à espera de se dar a conhecer e se permitir a um estudo cuidado e sério. Proporcionalmente
à arte existente na cidade, não é muita, esta iconografia. Guimarães, uma cidade cuja importância nacional
decresceu, ao longo da sua história, em favor de outras cidades, revela um potencial cultural que tem vindo
a impor-se de ano para ano (sem necessidade de recorrer ao ano 2012, em que se constituiu Capital
Europeia da Cultura).
A cidade é albergue de instituições que percorreram, com relevância, a nacionalidade desde a sua origem,
com memórias gravadas e visíveis da sua importância tanto ao nível monumental como ao nível de
documentação, seja ela escrita ou patente nas suas obras de arte. A Real Colegiada de Nossa Senhora da
Oliveira, «sobreposta» ao antigo Mosteiro de Santa Maria e S. Salvador, fundado a meados do séc. X por
Mumadona, o Mosteiro de Santa Marinha da Costa, fundado por Dona Mafalda, hoje transformado em
Pousada, a venerável Ordem Terceira de S. Francisco ou o Convento de S. Domingos, são algumas
instituições religiosas que se destacaram na vida da cidade, com particular relevo para o Mosteiro de Santa
Marinha e para a Real Colegiada, a única que «vingou» toda a monarquia, somente extinta no
aparecimento da República. Em Santa Marinha da Costa, embora por um período curto do século XVI,
funcionaram Estudos Gerais, sob a orientação de um grande humanista, Frei Diogo de Murça que,
futuramente, iria dirigir os de Santa Cruz de Coimbra.
Depositária de manifestações artísticas da cidade e outras que lhe chegaram de fora ao longo dos tempos,
também emigraram algumas para fora da Guimarães, especialmente para Lisboa. Pese embora a razoável
quantidade de arte ainda existente nas várias instituições, não existem muitos exemplos desta iconografia
musical.
Limitada em tempo e em espaço, a primeira abordagem iconográfica centra-se no Museu Alberto Sampaio
e, numa segunda etapa, no Paço dos Duques de Bragança, na Real Colegiada da Oliveira, na V.O.T. de S.
Francisco e na Sociedade Martins Sarmento (gravuras). Existe também alguma iconografia, já identificada,
em edifícios particulares, como o Café Oriental, Colégio de Vila Pouca, uma casa na Rua de Camões e
haverá quase com certeza noutros edifícios ainda não referenciados.
A apresentação desta iconografia vai transcrever a descrição existente nas instituições a que pertencem,
quando as haja.
Museu Alberto Sampaio (MAS)

Fig. 2 – Museu Alberto Sampaio (Foto de Eduardo Magalhães)

Situado em pleno centro histórico de Guimarães e ocupando espaços outrora da Real Colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira, o Museu Alberto Sampaio foi criado em 1928 para albergar as riquíssimas obras de
arte, a maioria de arte sacra, dos espólios pertencentes à Real Colegiada e a outras instituições religiosas da
cidade.
No que respeita à iconografia musical, têm especial relevo peças de ourivesaria, duas tábuas a óleo e um
fresco, este proveniente de uma igreja do concelho de Chaves.
Nesta viagem iconográfica vão-se ignorar alguns elementos que se podem (e deveriam) considerar
musicais, como é o caso de campainhas e tintinábulos existentes em variadíssimos objectos, especialmente
do culto cristão, como cálices, cruzes, custódias, etc., sagrados ou profanos. Integrados na sua função
sonora de «chamada», estas campainhas e sinetas encontram-se disseminadas por variadíssimos lugares,
quer na sua forma original quer em múltiplas representações iconográficas.
Custódia de Guimarães

Custódia em prata dourada com base polilobada, assente em esferas alternando com quatro animais fantásticos –
dois cavalos marinhos e dois leões. A base de secção hexagonal apresenta um maciço nó de feição arquitectónica, com
pingentes e as figuras dos quatro Evangelistas em nichos cobertos por baldaquinos rendilhados. O hostiário, de forma
circular, é encostado a dois botaréus, sendo suportado por um tabuleiro decorado com tintinábulos, de onde se
erguem quatro figuras de anjos tocando flautas, moldados em vulto pleno. Neste tabuleiro encontra-se a legenda que
data a doação. O coroamento da custódia é constituído por uma arcaria goticizante, centrando uma estrutura
semelhante ao nó com as figuras dos Santos, sobrepujadas por um coruchéu com arabescos, flores e querubins. Na
parte cimeira encontra-se a base de uma cruz, hoje desaparecida. (…)
A presença dos quatro anjos-músicos, de magnífica modelação de inspiração flamenga, rodeando o hosteário [sic],
encontra profunda relação com o Tesouro da Colegiada, celebrizado pelo grande anjo em prata, pertencente a D. João
de Castela e recolhido após a Batalha de Aljubarrota (…) (Santos; Silva, 1998: p. 88).

A iconografia musical presente nesta preciosa obra de arte é visível nos quatro anjos-músicos, dois de cada
lado do hostiário, em pleno acto de interpretação musical conjunta.
Em 1861, com texto de Vilhena Barbosa (historiador e arqueólogo), o Archivo Pitoresco (Barbosa, 1861)
publicou uma reprodução desta Custódia, desenhada por Nogueira da Silva a partir de um esboço feito por
Legrand. Como curiosidade histórica, transcreve-se um pouco do texto deste cronista que iniciou, neste
ano de 1861, uma série de crónicas sobre o Tesouro da Colegiada de Guimarães e viria a publicar também
outros textos sobre a cidade:

O magnifico thesoiro d’esta colegiada possue diversas custodias de bastante apreço. Porém, aquella de que
damos copia n’este numero é a mais valiosa, e de maior primor artístico (…) Por baixo do prato, que sustenta a
pyxide, figura a seguinte inscripção: Esta custodia foi acabada na era de 15341. Pena é que não diga o nome do
auctor ou auctores, e o da terra onde foi executada, pois que muita gloria lhe viria d’ahi. Que foram mãos de
portuguezes que delinearam tão esbelta e engenhosa traça, e que deram vida e graça ao duro metal,
esculpindo com tamanha perfeição e excellencia de arte tão graciosas figuras, tão formosos feitios, tão
exquisitos e variados lavores, é questão para nós fóra de toda a duvida.
Achando-nos em Guimarães, quando se tirou o desenho da custodia, de que é copia a nossa gravura,
alcançámos, á custa de algum trabalho e perseverança, a satisfação de saber que era um artefacto
inteiramente portuguez. Além d’esta noticia, que já não é pouco para lisonjear o nosso orgulho nacional, não
podemos achar luz para os outros pontos, que tanto desejávamos esclarecer. Todavia, algumas outras peças de
prata, que então alli vimos, igualmente de um trabalho perfeito e delicadíssimo, feitas em Guimarães no seculo
XVI, do que há boas provas, levam-nos a crer, que a custodia de que tratámos foi fabricada n’aquella
industriosa povoação. (p. 42)

1
Itálico no original do artigo.
Fig. 3 – Desenho da Custódia - Archivo Fig. 4 - Foto da Custódia - Santos, M.
Pittoresco: desenho de Nogueira da Alcântara e Silva, Nuno Vassalo
Silva (Ano IV-1861, nº 6, p. 41) A Colecção de Ourivesaria do Museu de
Alberto Sampaio p. 89

A descrição de Vilhena Barbosa, meticuloso, não esquece as dimensões e o peso desta obra de arte : pesa
«25 marcos e duas oitavas1, e tem de altura noventa e cinco centímetros, ou quatro palmos e duas
pollegadas; e quasi a mesma medida de circunferencia na base, incluindo as figuras em que descança.» 2
Esta custódia, uma das obras maiores da ourivesaria manuelina foi oferecida à Real Colegiada pelo cónego
Gonçalo Anes, acabada na era de 1534, conforme se lê na própria custódia. Sem certezas da sua autoria,
julga-se, no entanto, ter saído das mãos do ourives João Rodrigues a quem se atribui também a grande
Cruz Processional, do mesmo Tesouro da Colegiada (Santos; Silva, 1998: p. 88).

1
O Marco de Colónia é uma medida antiga de massa mais seguida na Europa. O Marco português diferia do de Colónia em 10 gr.
Equivalia-se a 229,50 gr, a 8 onças ou a ½ libra. Assim, duas oitavas significará duas onças. In Neves, António: Ordenações
Manuelinas, 500 anos depois – A reforma metrológica nas Ordenações Manuelinas. Museu Metrologia: Instituto Português da
Qualidade (http://www1.ipq.pt/PT/IPQ/historico_eventos/Documents/500anos/Antonio%20Neves.pdf, acedido em 30 de Março
de 2018)
2
O Catálogo do Museu é mais rigoroso nestas medidas: «a. 788 mm; l. 355 mm; Peso: 5.725 g.
A Música na Custódia

Fig. 5 e 6 – Custódia (Foto de Miguel Sousa - MAS)


Recuperando a descrição do Catálogo da Colecção de Ourivesaria, pode ler-se que O hostiário, de forma
circular, é encostado a dois botaréus, sendo suportado por um tabuleiro decorado com tintinábulos, de
onde se erguem quatro figuras de anjos tocando flautas, moldados em vulto pleno. Pela simples leitura
deste texto, a descrição dos anjos limita-se ao número (quatro), ao instrumento (flauta) e ao tamanho
(vulto pleno), sem quaisquer outros pormenores musicais. Analisem-se, então:

1. São quatro anjos, dispostos dois de cada lado da custódia;


2. São quatro Flautas, de tamanhos diferentes, formando um “consort” (família de instrumentos);
3. Pela postura dos anjos músicos, estão em pleno desempenho musical polifónico;
4. A postura das mãos nos orifícios está trocada num dos anjos (a do altus ou discant)
5. O modelo do instrumento é o da Flauta de 6 orifícios, um dos muitos modelos utilizados no
Renascimento.1
6. O círculo exterior frontal do hostiário está decorado com as cabeças de seis putti que poderão, sem
esforço, entender-se como em postura vocal, acompanhados pelo quarteto das flautas (ou em
alternância).

Sendo a custódia datada de 1534, musicalmente está-se em plena implantação da polifonia que, à imitação
de outras artes, como a pintura, chegou da Flandres. Músicos flamengos eram contratados para as mais
importantes cortes da Europa de então, influenciando e fazendo interpretar a sua música.
Apesar de a música vocal quase poder ser considerada definição de “música”, os instrumentos começam a
impor-se como acompanhadores das vozes ou alternando com elas (alternatim). Rui Vieira Nery (1991, p.
64) é explícito na informação da utilização de música instrumental no culto quer reforçando a execução do
reportório vocal quer surgindo autonomamente como uma segunda componente musical da liturgia. Para
além disso, alguns regimentos das Capelas das Sés mencionam por diversas vezes a expressão cantar aos
órgãos ou cantar com as frautas.

1
Philibert Jambe de Fer, da 1ª metade do séc. XVI, na sua Epitome Musical, apresenta esta flauta com a sua respectiva escala. Para
além deste tratado, é descrita também nos tratados de Sebastian Virdung (Musica Getutcht) e em Silvestro Ganassi (Fontegara).
Maria Isabel Lopes Monteiro (2010, p. 22) afirma que se não têm encontrado quaisquer indícios dos
modelos de flauta, muito menos quantos, que tenham sido usados em Portugal. Também não tem
quaisquer dúvidas em associar as flautas destes anjos ao modelo flamengo, descrito nos teóricos da
época. Neste seu trabalho, ela destaca a Custódia de Guimarães como um exemplo iconográfico de
grande valor.
O consort habitual de flautas, conforme Virdung1 o apresenta, só possui três elementos na família:
uma Baixo, em f, duas Tenores, em c’ e uma Discantus (soprano), em g’.

Fig. 7 – Flautas do séc. XVI (Sebastian Virdung - Enciclopédia dos Instrumentos Musicais, p. 32)

No entanto, contemporâneo de Virdung, outro compositor e teórico alemão, Martin Agricola,


escreveu novo tratado musical2, em 1529, onde o consorte de flautas já menciona as quatro divisões,
mas apresenta o mesmo desenho de Virdung, ou seja, a nível organológico, nada altera.
Admitindo a postura vocal das figuras no círculo do hostiário, encontra-se a interpretação que
começou a ser habitual do uso do alternatim: vozes e instrumentos à vez.
Concluindo com uma análise muito resumida e aceitando os três níveis propostos por Panofsky:
Nível pré-iconográfico: quatro anjos de corpo inteiro a tocar flautas de seis orifícios com tamanhos
diferentes e mais seis anjos (só cabeça), circundando o hostiário. Um dos anjos flautistas é canhoto.
Nível iconográfico: Pela classificação da época, instrumentos baixos, a postura musical das figuras
enquadra-se em música de interiores; a colocação na custódia evidencia interpretação de música
religiosa, vocal e instrumental, provavelmente para a Exposição do Santíssimo. O diferente tamanho
das flautas são indicação segura que interpretam música polifónica acompanhando as vozes ou em
alternância com elas.
Nível iconológico: As características organológicas dos instrumentos remetem para uma cultura
musical de influência flamenga, prenhe de compositores de renome neste período quinhentista. Os
anjos circundantes ao hostiário acompanhados pelos anjos flautistas, em baixo, revelam uma
linguagem de fé e uma atitude de devoção face ao «mistério» da hóstia consagrada, transformada (por
essa fé) em corpo vivo de um Deus que se adora e se exalta através da música, linguagem privilegiada
na oração.

1
Sebastian Virdung foi um compositor e teórico renascentista da segunda metade do séc. XV e primeira metade do séc. XVI. A sua
obra, de 1511, Musica getuscht, sistematiza e classifica os instrumentos.
2
Musica instrumentalis deudsch
Jarro (Gomil) e Lavanda (Bacia)

Gomil
A base, de forma circular e bordo liso é decorada com folhagens e enrolamentos. A pequena
haste e a parte interior do bojo são decoradas com acantos que se desenvolvem em caneluras
rematadas por um torçal. O bojo é decorado com três reservas, sendo duas idênticas,
representando uma sereia tocando violino, enquanto na outra um tritão toca viola. A terceira
reserva, na frente do jarro, possui a inscrição “VT POTIAR PATIOR” 1 e representa uma
borboleta esvoaçando em direcção a uma vela acesa sobre uma mesa. (…) (Santos; Silva,
1998: p. 112)

Lavanda
Lavanda oval de pé baixo e bordadura polilobada em fundo escavado. O bordo do pé é
decorado com meias esferas e estrias. A bordadura é contornada com folhas de acanto
que rematam em volutas. No interior, uma cartela com uma sereia emergindo das
águas e tocando violino, encontra-se oposta a outra, idêntica. Entre ambas, no centro
da bacia emoldurada por um filete perlado, destaca-se a inscrição “UT POTIAR PATIOR”
que encima uma composição constituída por uma borboleta que se aproxima de um
castiçal com uma vela acesa, pousado numa mesa, a que se sobrepõe uma pesada
cortina contraposta por uma janela. (…) (Santos; Silva, 1998: p. 113)

A origem do gomil e da lavanda, desconhece-se. Tem sido indicada como


«indo-portuguesa», mas os estudos actuais apontam para uma origem
«hispano-americana», cujas características se assemelham a estas duas peças de prata que serviram a
Colegiada de Guimarães. São peças do primeiro quartel do século XVIII que, até pela decoração
(musical incluída) só podem fazer parte de um mesmo conjunto. Pela riqueza e valor poderiam ter
servido na cerimónia da missa para o momento em que o sacerdote lava as mãos, nas missas mais
solenizadas ou quando celebradas pelo Dom Prior da Real Colegiada ou ainda para a cerimónia do
Lava-Pés, na quinta-feira santa2.

A Música no Conjunto

1
T. A. Para mandar, tenho que sofrer.
2
Ainda hoje, no Vaticano, o Papa utiliza um gomil e uma lavanda semelhantes a estes exemplares.
Fig. 8 e 9 – Frente e Verso (Foto de Miguel Sousa - MAS)

Fig. 10 e 11 – Base e Topo da Lavanda (Foto de Miguel Sousa - MAS)

Os instrumentos representados em ambos os objectos são o Violino e a Viola dedilhada, ambos eles
muito utilizados no período atribuído à criação destas obras de arte. Em pleno período barroco, com
os instrumentos musicais a suplantarem em «vedetismo» a música vocal, com as orquestras
constituídas na sua quase totalidade ainda por cordofones, nada mais natural para o artista «ibérico»
decorar os seus objectos de arte com estes instrumentos. O Violino vivia a época dos grandes luthiers,
ainda hoje referenciados como inultrapassáveis na qualidade dos seus instrumentos.
Sendo dois utensílios relacionados com água, nada mais coerente terem sido utilizadas figuras de
Tritões e de Sereias. Quer uns quer outros são descritos na mitologia com ligação à música. As sereias,
através do seu canto sedutor e encantatório, sejam elas meio aves ou meio mulheres com cauda de
peixe; os tritões, a representação masculina das sereias e através dos seus búzios, anunciam o cortejo
de Posidon, o deus dos mares.
Este período musical barroco assentou as suas criações artísticas bebendo, uma vez mais, no
classicismo greco-romano e na sua mitologia, particularmente no seu género maior, a ópera.
Os instrumentos, quer do Gomil quer da Lavanda, são semelhantes, embora se possam observar
algumas pequenas diferenças:
1. Violino de quatro cordas.
a. Nem o do Gomil nem o da Lavanda possuem aberturas de ressonância («efes»), um
pormenor que pode informar sobre alguma ignorância organológica do artista. Típico
do barroco, o braço é mais curto que o do violino moderno. Nas imagens, o do Gomil é
exageradamente curto, o que pode supor um instrumento mais agudo que o da
Lavanda. Pode interpretar-se como um Violino e uma Violeta (viola de arco).
b. A curva média no Gomil encontra-se esculpida a meio do corpo do violino, fazendo com
que, sensivelmente, a curva inferior e a superior sejam do mesmo tamanho; na
Lavanda, encontra-se mais afastada, o que torna a curva inferior mais curta que a
superior.
c. A executante do Gomil coloca a mão na ponta do arco, o que pressupõe um talão mais
curto que o da Lavanda. Quer um quer outro são arcos ainda convexos.
d. A forma das volutas é diferente. A do Gomil, é mais fechada e a da Lavanda, mais
aberta. Ambas são decoradas.
2. Viola
a. Não são ambas do mesmo formato: a curva média no Gomil é mais pronunciada que na
Lavanda.
b. A cabeça e as cravelhas de ambos os instrumentos são diferentes.
c. Ambas parecem ter as seis cordas simples (inovação do século XVIII), embora a forma
de as prender na cabeça seja diferente.
d. A posição das mãos não define bem se o toque é rasgado se dedilhado.
e. A música que interpretam parece ser exclusivamente instrumental.
Para além da simbologia mitológica relativa à água, através da representação das figuras marinhas,
musicologicamente nada mais se consegue ler nestas duas peças de prata.
Tríptico de Prata

Fig. 12 – Tríptico (Foto de Miguel Sousa - MAS)


Tríptico rectangular realizado em prata, com aplicação de esmaltes sobre estrutura de madeira de cedro. É constituído
por um painel central e dois volantes laterais. (…)
Volante direito: de estrutura idêntica ao volante oposto, representa no segundo registo, a “Anunciação aos pastores”.
Notável cena bucólica que inclui a representação do solo com um rebanho e uma árvore. Um dos pastores colocado no
lado esquerdo toca numa gaita de foles, enquanto um outro, segurando um cajado, recebe a mensagem vinculada por
um anjo. (…)(Santos; Silva, 1998: p. 54)

Este tríptico medieval (finais do séc. XIV, inícios do XV) é uma das obras patrimoniais portuguesas mais
importantes. É também designado por frontal de altar. A história atribui a sua origem aos despojos da
batalha de Aljubarrota, como pertencendo a D. João I, de Castela. Terá sido oferecido após a vitória
dos portugueses, pelo Mestre de Avis, entre outros presentes que deixou na Igreja, onde veio
agradecer o resultado vitorioso da batalha.
Gaspar de Estaço (1754), dos finais do século XVI, afirma a nacionalidade do Retábulo relatando que D.
João I se fez pesar e com a prata correspondente ao seu peso o terá mandado fazer:

Mas primeiro elle armado de todas ellas [armas], se mandou pezar a prata, e a deu a Nossa Senhora de oferta.
Da qual se fez o retabolo de prata do Presepio de Christo Nosso Senhor, que nos dias solemnes se poe no altar
mayor, em que estaõ as armas deste Rey. (cap. XLVIII, p. 208).
O padre Torquato d’ Azevedo (1845), mais novo um século que aquele historiador, em 1692, rebate a
veracidade deste relato, apresentando o retábulo como tomado a D. João de Castela:

Igualmente ennobrece esta sachristia um retábulo de prata dourada, e esmaltado do presépio de Nosso Senhor
Jesus Christo, que el-rei D. João o 1.º deu de esmola a Nossa Senhora em gratificação da batalha que lhe
venceu em Aljubarrota contra el-rei D. João o 1.º de Castella, a quem nella foi tomado com mais doze anjos de
prata de sua capella real (…) (cap. 63, p. 211)

A historiadora Maria Emília Amaral Teixeira (1958, pp. 426 e 427) discorreu sobre a possível origem
nacional deste tríptico. Após ter feito uma retrospecção aos inventários de diferentes séculos, acabou
por concluir que
o altar não foi tomado aos castelhanos, [mas] isso não significa necessariamente que ele seja português ou,
melhor, obra de artista ou artistas portugueses (…) Há que procurar, se possível, a solução para outro problema
que é o de saber a que meio artístico pode ser atribuído e se poderia ter sido obra portuguesa ou não. (…) O que
nós desconhecemos é a capacidade de concepção de uma peça de tal magnitude, que é o que choca, e inclina
muitos a admitir imediatamente a paternidade estrangeira. É assunto que merece ponderada apreciação e
envolve pormenores de análise estética que não cabem no âmbito destes apontamentos e justifica um outro
trabalho.

Colocando de lado a origem do retábulo, mas não resistindo a ter deixado estes poucos elementos
interrogativos sobre ela, esta peça de arte religiosa contém um elemento de iconografia musical no
segundo registo do volante direito, na cena da Anunciação aos Pastores, uma gaita-de-foles.

Fig. 13-Volante direito do tríptico com a iconografia musical (Foto de Miguel Sousa – MAS)
Este instrumento também se encontra noutra peça do Museu Alberto Sampaio, um óleo em madeira,
dividido em duas portadas, mas constituindo uma cena única.
Óleo em Madeira

Fig. 14 e 15 – Tábua e pormenor do pastor músico (Foto de Miguel Sousa – MAS)

Esta peça encontra-se exposta atrás do retábulo de prata, por ter servido de «tampa» protectora para
guardar este tríptico. O tema, obrigatoriamente, é a Natividade e as duas portadas existentes retratam
a anunciação aos pastores, à semelhança do tríptico. Também à sua semelhança, o instrumento
musical nas mãos do pastor é a gaita-de-foles.
Tomando como referência a grande obra de Ernesto Veiga de Oliveira (2000, p. 222 e ss.) sobre os
instrumentos populares, a gaita-de-foles é um instrumento muito antigo espalhado um pouco por
todo o mundo. Com vários formatos e tamanhos é, no entanto e em todos, constituído pelos mesmos
elementos, variando de número: tubo melódico e um outro, insuflador. O ar entra no reservatório
(odre) e faz vibrar a(s) palheta(s), no seu interior. A quase totalidade destes instrumentos possui um
outro tubo melódico, do tipo pedal (som sempre da mesma altura) que, por ser da zona dos graves,
tomou o nome de roncador.
Nero, reconhecido na história como um imperador músico, também tocava este instrumento a que
Suetónio chamou tíbia utricularis (ou simplesmente utricularium) que, de uma forma livre, se poderia
traduzir por flauta de pequeno odre.
Reconhecendo que todos os instrumentos musicais possuem uma espécie de estatuto social, o da
gaita-de-foles é variado, assim como a sua utilização. Até ao século XV, aparece representada em mãos
de anjos, o que lhe confere um carácter de respeito e, por inerência, funções religiosas ou profanas
com dignidade. No Reino Unido, continua a ser um instrumento utilizado em desfiles reais ou militares
e, na Galiza, é mesmo considerada como instrumento nacional. No entanto, desde a Idade Média que,
na maioria dos países europeus, é um instrumento de jograis e hoje, definitivamente, é um
instrumento de festejos de carácter popular e tradicional, não sendo por isso, e ainda na opinião de
Veiga de Oliveira, que tenha perdido a respeitabilidade e, assim, também utilizada em procissões e
outras festas de natureza religiosa.
A partir da criação dos presépios por Francisco de Assis, nos inícios do século XIII, a gaita quase ganhou
estatuto de instrumento natalício, porque é o preferido para colocar nas mãos dos pastores, na
anunciação do nascimento do menino. Transforma-se quase na simbologia musical da iconografia
cristã do Natal.

A Música no Retábulo e na Tábua

Repetindo a descrição que consta do Catálogo do Museu, um dos pastores colocado no lado esquerdo
toca numa gaita de foles, enquanto um outro, segurando um cajado, recebe a mensagem vinculada
por um anjo.
A análise organológica do instrumento musical, e como a peça é castelhana, mas mesmo sendo
portuguesa, remete sumariamente para o tipo de gaita-de-foles que Veiga de Oliveira apelida de
ocidental caracterizada por tubo(s) melódico(s) (ou ponteira) munido de palheta dupla e um ou mais
roncões com palheta(s) simples.
A gaita-de-foles das tábuas é semelhante à do tríptico com diferenças pouco significantes:

a. No Tríptico, o tubo, em relação à totalidade da gaita é curto e relativamente grosso; na Tábua,


é mais proporcional ao tamanho total da gaita;
b. O Tubo melódico do Tríptico tem uma campânula pouco acentuada, ao contrário das Tábuas,
cuja campânula é bem pronunciada;
c. Em ambas as gaitas se identificam oito orifícios no tubo melódico;
d. Ambas possuem um só roncador, completamente visível nas Tábuas e semitapado no Tríptico;
e. O pastor músico veste trajes orientais e, embora com o tubo insuflador na boca, não parece em
atitude de repor o ar, ao contrário do pastor do Tríptico: em roupas ocidentais medievais,
aparenta estar em plena reposição do ar através do insuflador.

A leitura iconológica destes dois quadros é idêntica, com relevância para a das Tábuas, porque
encimada por dois anjos que, sobre as nuvens, seguram uma filactera com o início da grande
«doxologia» gloria in excelsis Deo: o anúncio da vinda de um Deus à Terra em forma humana. A
música, representada na gaita-de-foles, assumida como instrumento simbólico da Natividade,
complementa esta leitura.
Fresco: O Padre Eterno abençoando

Fig. 16 –Padre Eterno Abençoando (Foto de Eduardo Magalhães – MAS)

O fresco, de grandes dimensões (a. 1.990 mm e l. 2.495 mm), foi destacado da igreja de Nossa Senhora
da Azinheira, de Outeiro Seco, Chaves. Encabeçava outro fresco, o Baptismo de Cristo: Deus-Pai,
presente no baptismo do Filho.
O Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, no seu número 112, de Junho de
1963 descreve um pouco da história desta igreja. É um exemplar do românico trasmontano do século
XIII, a aceitar a primeira menção que dela se conhece num pergaminho da Sé Primacial de Braga, no
ano de 1235 (p. 6).
As paredes da nave da igreja estiveram todas revestidas de pinturas a fresco, datadas do século XVI.
No fresco do Baptismo de Cristo pode ler-se a data de 1535. Os anos e a falta de manutenção periódica
conduziram à degradação inevitável, com estragos significativos nas suas pinturas murais.
A partir de 1937, iniciaram-se obras de restauro na igreja, impondo-se para alguns frescos a
necessidade de serem destacados pela dificuldade ou impossibilidade, à luz das técnicas da época, de
intervenção no seu local. Foram então removidos alguns deles, cabendo a Guimarães estes dois
painéis, seguindo outros para Lisboa e para o Porto.
A Música no Fresco ‘Padre Eterno Abençoando’

Como se tem vindo a mencionar, o século XVI é o período em que a música instrumental já se
começou a afirmar e a impor por si mesma e não como simples acompanhadora da música vocal. A
magnificência dos rituais religiosos e da vida da nobreza apressou a sua utilização e,
consequentemente, favoreceu o aperfeiçoamento de muitos instrumentos.
Por outro lado, o órgão, um instrumento que alcançou o seu estatuto de instrumento indispensável na
igreja ocidental, mais ou menos, um século antes, a arte não esquece esse facto e começa a introduzi-lo nas
suas representações. Na sua evolução, o órgão aparece em diferentes tamanhos, consoante a função que
lhe era atribuída e, naturalmente, as possibilidades e as necessidades de quem os mandava construir. Um
deles, porque tocado pousado, era o órgão positivo e requeria duas pessoas: o tocador e o «foleiro». O
órgão portativo era de dimensões mais pequenas, facilmente transportável e o fole era accionado pelo
próprio artista. O instrumento aqui representado encontra-se pousado e tem um anjo «foleiro».
A leitura musical pré-iconográfica deste quadro pode dividir-se em quatro partes:
1) Parte inferior esquerda do painel – três figuras:
a. Um anjo, canhoto, toca uma espécie de charamela1;
b. Anjo organista, toca um pequeno órgão positivo. A irregularidade do tamanho dos 13
tubos que deveriam ser decrescentes em tamanho, pode indiciar um fraco
conhecimento do instrumento por parte do artista;
c. Um terceiro anjo dá ao fole com o braço esquerdo (anjo foleiro).

Fig. 17 – Órgão Positivo (pormenor do Fresco – Foto de Eduardo Magalhães)

2) Parte direita do Painel – 4 figuras:


a. Um anjo segura um livro com música, ladeado por outros três;
b. O anjo da esquerda parece cantar ao mesmo tempo que dirige com a mão direita
(marcando o tactus);

1
Citando Correia de Sousa, «o aerofone cuja configuração parece ser uma charamela apresenta uma embocadura que se
assemelha à das flautas doces, mas o tubo é ligeiramente cónico, o que não é comum naquele tipo de instrumentos» ( Speculum
Musicae -Iconografia Musical na Arte do final da Idade Média em Portugal. Lisboa: 2010, p. 397).
c. O da direita parece seguir com o dedo a música ou texto que estão a ser cantados.

Fig. 18 – Livro de Canto (pormenor do Fresco – Foto de Eduardo Magalhães)

3) Interior da Mandorla do Padre Eterno:


a. Quatro anjos (cabeças e asas), na parte inferior do círculo e distribuídas
simetricamente, parecendo em atitude vocal;
b. Quatro anjos (corpo inteiro), dois de cada lado do círculo, mais esbatidos,
especialmente o que está à direita, em posição mais elevada. Todos, de mãos erguidas,
aparentam uma postura de reza.

Fig. 19 – Anjos: 4 na mandorla e 4 no seu interior (pormenor do Fresco – Foto de Eduardo Magalhães)

4) Parte exterior da Mandorla, duas figuras:


a. A da esquerda, aparentemente a segurar na própria mandorla, estará seguramente a
tocar um instrumento dedilhado do tipo da harpa ou lira que o tempo apagou;
b. A figura da direita está a tocar uma espécie de trompa curva de caça.
Fig. 20 e 21 – Anjos músicos no exterior da Mandorla (pormenor do Fresco – Foto de Eduardo Magalhães)

Elementos não musicais

Na parte superior à Mandorla, encontram-se quatro Filacteras, cada uma das quais com uma parte de
uma frase latina que se pressupõe laudatória já que se não conseguem ler na totalidade. Por sua vez, e
simetricamente colocadas, encontram-se duas figuras patriarcais (profetas?) que seguram, também
elas, uma filactera cada uma, com texto ilegível. Do texto da filactera da figura à (nossa) direita,
conseguem ler-se algumas letras finais: (…) REG(?)U (…) ELORUM que bem poderia ser regnum
celorum (reino dos céus). A filactera da figura oposta é completamente ilegível.
O texto nas quatro filacteras maiores, com excepção da segunda, ainda está visível: ADES O DEUS/OI
(…) OR/ET FILLIUS1/ET SP[IRITU]S SA[NCTUS]: Estás presente, ó Deus/…/E o Filho/E o Espírito Santo.
No momento do Baptismo de Cristo, o pintor dá relevo à sua condição divina, através da evocação
trinitária.

1
Um L a mais em Filius.
Leitura Iconográfica e Iconológica

Na apresentação deste Fresco, o Museu Alberto Sampaio refere que, antes de ser removido da parede
da Igreja de Outeiro Seco, encimou um outro fresco, o do Baptismo de Cristo, constituindo ambos um
mesmo conjunto. Tomando como certa esta afirmação, ter-se-á que fazer, então, a leitura iconográfica
nessa perspectiva, o da glorificação do Filho de Deus, na hora do seu baptismo por João Baptista.
Encontra-se representada a música nas suas diferentes manifestações: instrumental, vocal e
vocal/instrumental, bem como a Música Profana e Religiosa.
1. Admitindo que o Anjo do lado esquerdo superior tocará mesmo um instrumento do tipo da
harpa/lira (embora deteriorado, uma suposição bastante plausível), estão representados os tipos de
instrumentos ao serviço da música neste período renascentista português e, através deles, a música de
carácter profano e carácter religioso. Exceptuam-se, naturalmente, os de Percussão.
2. Os dois anjos de corpo inteiro, um com a harpa/lira e o outro com a trompa de caça curva, remetem
para os dois grupos de instrumentos desta época, instrumentos baixos e instrumentos altos.
3. Os dois conjuntos inferiores, o órgão e a charamela, e os anjos com o livro onde sobressai o texto
gloria in excelsis, apontam para a música religiosa, tanto a instrumental como a vocal. De destacar o
facto do livro estar virado de frente para se poder ver o conteúdo, quer musical quer textual.
4. O órgão e a charamela, ao mesmo nível dos 4 anjos cantores, também supõem uma forma de cantar
usual neste e nos períodos subsequentes: o alternatim (alternadamente). Utilizou-se esta alternância
especialmente em cânticos estróficos, em que o órgão se substituía ao coro, como os salmos, por
exemplo ou o Kyrie eleison das missas.
O conjunto dos instrumentos e das vozes neste fresco invocam uma grandiosidade musical condicente
com um grande acontecimento religioso, num tempo bem perto em que a única música que se ouvia
nos templos era a intimista música vocal monódica (cantochão). O baptismo de Cristo por João
Baptista, na simbologia cristã, representa a entrada na sua missão terrena e é um dos momentos a que
todos os evangelistas dão relevo, conjuntamente a outros quatro momentos: transfiguração,
crucificação, ressurreição e ascensão. Pela sua natureza divina, o pintor quis dar o justo realce ao
acontecimento, apresentando no fresco uma corte celestial onde o Padre Eterno é o centro,
acompanhado dos anjos músicos que, quais musas no Olimpo, engrandecem o momento através das
suas vozes e instrumentos e encimado pelas filacteras com expressões laudatórias.
O PAÇO DOS DUQUES DE BRAGANÇA

1. A Construção

As residências da nobreza medieval, até aos finais do século XIV, não eram de grandes comodidades e
conforto, talvez pela razão de uma mobilidade frequente que lhes não permitia fixarem-se por longos
períodos num só local. Sempre que necessitassem, os reis ou outra nobreza pernoitavam nos
mosteiros ou conventos, em celas preparadas para os receber. Caso os não houvesse, procuravam,
então, residências particulares ou recolhiam-se dentro dos castelos. (Marques, 2010, p.94) Em
localidades onde a sua fixação fosse mais prolongada, construíam-se paços, mas sem o conforto que o
termo possa sugerir. A parca existência de vestígios arqueológicos ou a ausência de documentação
escrita que mostrem com clareza como seriam esses paços pode considerar-se uma prova razoável da
modéstia e da fragilidade dessas construções que não resistiram ao tempo. (Silva, 2010, pp. 78 e 79)
O século XV pode considerar-se o século da mudança. Aconteceu por toda a Europa. A realeza e a
nobreza passaram a mostrar interesse pelo conforto e até por algum luxo arquitectónico nos paços
onde fixavam residências. Despertou neles uma vontade de se fixarem perto dos seus principais
domínios e os paços, para além de residência, também transmitiam a importância social, nobre ou
económica dos seus possuidores. É deste período, e assente neste conceito «moderno», que se
enquadra o Paço dos duques de Bragança, em Guimarães.
D. Afonso, filho de D. João I e de Inês Pires de Esteves, bastardo como seu pai o era, foi o seu
primogénito, nascido entre 1370 e 1377. Acarinhado pela própria rainha, D. Filipa de Lencastre, viveu
na corte, pelo menos a partir de 1398, ano em que foi armado cavaleiro por seu pai. Em 1401, é
legitimado para poder casar com a filha do Condestável, Dona Beatriz Pereira. Com este casamento, o
casal ficou dono de todo os senhorios de Nuno Álvares de Entre Douro e Minho. (Pereira, 2016, p. 24)
É a partir desta data que D. Afonso recebe o título de conde de Barcelos que, com o condestável, eram
os únicos títulos nobiliárquicos de então. Em 1405, acompanhou a Inglaterra sua irmã Beatriz que aí foi
casar com o conde de Arundel. Permaneceu lá vários meses e pode ter sido daí que lhe tenha nascido
o gosto por obras de arte e por paços luxuosos à semelhança da corte inglesa. (Pereira, 2016, p. 26)
Após a morte de D. Beatriz (1414), D. Afonso contraiu segundas núpcias, em 1420, com D. Constança
de Noronha, filha do conde de Dijon, também ele Afonso de nome. E é para esta condessa que o conde
de Barcelos vai mandar erigir o luxuoso paço de Guimarães, obras cujo início se julga ter acontecido
logo após o casamento, mas ainda sem provas documentais. Documenta-se a existência de um
carpinteiro do conde de Guimarães em 1412. (Fernandes & Oliveira, 2004, p. 88). Documenta-se
também que, em 1428, D. Afonso já assina no paço vimaranense um documento relativo aos filhos do
seu primeiro casamento. (Brito, 2003).
O ducado de Bragança, na dimensão que se tornou com D. Afonso e sucessores, teve o seu início à
morte do duque D. Duarte, em 1442, senhor deste território, e sem filhos que lhe sucedessem. O bom
relacionamento que D. Afonso mantinha com seu meio-irmão D. Pedro, à altura regente do reino,
incentivou-o a pedir-lhe a posse deste ducado nortenho. Mas como fora prometido a seu filho
Fernando, conde de Ourém, D. Afonso fez um trato com ele e D. Pedro nomeou-o duque de Bragança,
o 3º ducado do país, a par com o de Coimbra (do próprio D. Pedro) e do de Viseu (de D. Henrique),
instituídos por D. João I. (Pereira, 2016, p.54)
Uma das razões apontadas para a sua pretensão ao ducado de Bragança, extensível à anterior
construção do luxuoso paço de Guimarães, terá a ver com as suas origens bastardas, apesar de
legitimado pelo pai. Deste modo, como que ascendeu socialmente e a sua bastardia diluiu-se com a
sua importância no reino, onde as suas possessões rivalizavam com as do próprio rei.
O brilho da vida do paço de Guimarães teve o seu auge durante a vida do seu primeiro duque. Após a
sua morte, em 1461, começou o seu declínio. Os restantes anos de sua vida ocupou-os Dona
Constança em gestos caritativos, transformando o paço numa espécie de hospital-enfermaria, a tratar
doentes e a valer aos mais necessitados, repartindo com eles os seus bens. (Pimentel, 2005, p. 11).
A morte de D. Constança, em 1480, apressou o declínio do paço. Passou a edifício desabitado e a
deterioração, por falta de utilidade residencial, foi-se estendendo inexoravelmente pelo tempo. No
início do século XIX (1807), passou a aquartelamento militar com o Regimento de Infantaria 15 como
seu primeiro inquilino. Esta ocupação prolongar-se-ia até 1935. O Ministério da Guerra, em 1933,
entregou ao Ministério da Instrução Pública o Paço dos Duques e o Castelo, mas mantendo o usufruto
de uma parte do Paço, até 1935, para depósito do Regimento de Infantaria 20, a última unidade militar
a ocupá-lo.

2. O Restauro

Em 1929, foi criada a Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) e entre as suas
atribuições constava a de elaborar projectos completos para obras de reparação, restauro e
conservação de monumentos e palácios nacionais, bem como a sua execução fosse directa ou fosse
por empreitada. O Estado Novo, oficialmente proclamado após a Constituição de 1933, veio a servir-se
destes projectos como uma forte acção de propaganda política cultural no país.
O restauro do Paço dos Duques enquadra-se neste projecto da DGEMN e o seu processo iniciou-se em
1936, sob a responsabilidade inicial do arquitecto Rogério de Azevedo. Um ano depois, e sob a
supervisão da DGEMN e do seu director, arquitecto Baltasar de Castro, iniciaram-se as obras de
restauro. O edifício estava muito degradado devido às adaptações que, ao longo de mais de um século,
os diferentes regimentos militares foram fazendo. Uma das intenções próximas deste restauro era que
o Paço viesse a servir de residência ao presidente da República nas comemorações dos 800 anos da
nacionalidade, com comemoração programada para 1940. Mas a complexidade das obras iria arrastar-
se no tempo, só vindo a ficar prontas duas décadas depois, em 1957. Outra das intenções era de
concentrar num mesmo edifício instituições culturais da cidade: numa primeira intenção, o Museu de
Alberto Sampaio, criado em 1928 e inaugurado em 1931 nos claustros da Colegiada da Oliveira e,
posteriormente, em Maio de 1936, que acumulasse então as forças culturais da cidade: arquivo,
museus e bibliotecas.
Uma das grandes figuras envolvidas em todo este processo de restauro foi Alfredo Guimarães e no seu
empenho junto de Salazar para lhe dar andamento. Trouxe-o, de forma mais ou menos incógnita a
Guimarães, no dia 4 de Setembro de 1933. Visitou a Penha, o Museu Alberto Sampaio e o Paço dos
Duques, conforme relatou o Comércio de Guimarães de 8 de Setembro desse ano:

O snr. Dr. Oliveira Salazar esteve em Guimarães na 2.ª e 3.ª feira, almoçando no pitorêsco monte da Penha. Fugindo a
exibições que repugnam ao seu caracter, viajou sob o mais rigoroso incógnito. (…) S. ex.ª visitou também o Museu Alberto
Sampaio, aonde foi conhecido, e os Paços dos Duques de Bragança.

À criação do Museu, em 1928, Alfredo Guimarães foi nomeado representante do estado para
acompanhar as obras de restauro. A inauguração oficial deu-se no dia 1 de Agosto de 1931 e, em
Outubro do ano seguinte, Alfredo Guimarães foi nomeado seu director.
As Tapeçarias da tomada de Arzila

1. À volta da história

O conhecimento em Portugal destas obras de arte em tapeçaria chega nos inícios do século XX
quando, em 1915, Reinaldo dos Santos, médico-cirurgião e historiador de arte, na companhia de José
de Figueiredo, director do Museu Nacional de Arte Antiga, souberam, em Madrid, da existência de
umas tapeçarias em que estariam representadas armas portuguesas. A terra, Pastrana, na província
castelhana de Guadalajara, era-lhes desconhecida mas a curiosidade levou-os até lá, proporcionando-
lhes a descoberta de um conjunto de tapeçarias portuguesas arrecadadas na igreja local onde,
facilmente, reconheceram um património nacional notável e desconhecido até então. Vale a pena ler o
relato que Reinaldo dos Santos faz desta descoberta (Santos, 1925, p.9):

À luz de velas, começámos então a identificar pormenores, que logo ao começo nos perturbaram e por fim alucinaram.
Primeiro, o escudo de Portugal com a cruz de Avis, ora pendente de trombetas, ora no alto de pendões e até nos taipais
duma trincheira. (…) Por fim, e já alvoroçadamente, reconhecemos em guiões vermelhos «o rodízio espargindo gotas» —
emblema de D. Afonso V. E, na confusão de muralhas duma cidade fortificada, surgiam cabeças de turbante, alfanges no
ar, estandartes com o crescente, emquanto ao fundo, numa esquadra de naus e galés, reapareciam os emblemas de
Portugal e do Africano. Estávamos diante de tapeçarias que exaltavam a tomada duma praça marroquina por D. Afonso V,
certamente Arzila, o que dois novos panos da mesma série, encontrados mais tarde noutra dependência da igreja e com
extensa legenda em latim, definitivamente confirmaram.

Quando Reinaldo dos Santos e José de Figueiredo regressaram ao país, este comunicou oficialmente a
descoberta numa conferência apresentada na Academia das Ciências de Lisboa, a 9 de Dezembro de
1915, datando as tapeçarias dos finais do século XV. A pintura dos cartões que serviram de modelo às
tapeçarias atribuiu-os a Nuno Gonçalves, o mais famoso pintor português da segunda metade do
século XV. Esta atribuição fundamentou-se na semelhança estilística entre os tapetes e os Painéis de S.
Vicente, obra deste pintor, como também os pormenores e a clareza do armamento representado.
Para além disso, desde 1450 que Nuno Gonçalves era o pintor régio de D. Afonso V. (Araújo, 2012, pp.
44 e 45)
Com as dificuldades que a 1ª guerra mundial arrastou consigo, Reinaldo dos Santos só voltaria a
Pastrana em Outubro de 1924, acompanhado de um fotógrafo amigo, Alfredo da Silva, que fotografou
as tapeçarias permitindo, assim, um estudo mais pormenorizado.
A primeira referência a estas tapeçarias conhecida pertence ao historiador Manuel Faria e Sousa
(1590-1649), fidalgo de Felgueiras (Pombeiro), mas a viver em Espanha. Na sua obra Europa
Portuguesa, e a propósito da tomada de Tânger e de Arzila, refere-se às tapeçarias nestes termos
(Tomo II, p. 391):

Aqui se quede solamente en memoria que destas expugnaciones se labraron valerosas Tapicerias. Una dellas se conserva
oy en la Casa del Infantado en Castilla. Muchas vezes la vimos. Dadiva fue deste excelente Principe al Señor daquel
Estado.

Em 1906, aparece uma nova referência às tapeçarias, num artigo de Elías Tormo y Monzó publicado no
Boletín de la Sociedad Española de Excursiones, sob o título «Las tapicerías de la Corona y de otras
colecciones españolas» (pp. 33 e 34):

En el pasado mes de Abril tuve ocasión de examinar la notable colección de tapices, de un interés histórico excepcional,
que los Pastranas recebirían probablemente de Filipe II cuando la conquista de Portugal – pues una serie, con toda
seguridad, y otra, según yo acerté á creer, fueran trabajadas para casa real portuguesa en Flandres en el siglo XV,
ensalzando las glorias de D. Afonso V el Africano la primera, y quizá, en mi opinión, las todavía mas transcendentales del
Infante D. Enrique el Navegante la segunda; (…)

As tapeçarias de Pastrana podem considerar-se uma excepção aos exemplares que chegaram aos dias
de hoje, pois representam factos contemporâneos à sua elaboração, ao contrário das suas congéneres.
Consideradas um luxo para a época, eram pertença do alto clero e da alta nobreza, com poder
económico para as mandar fazer. Pelo estatuto que conferiam aos possuidores, eram até
transportadas nas viagens que estes tinham que realizar para possível decoração dos espaços vazios
em que teriam que permanecer.
Fabricadas no interior dos mosteiros e conventos até ao final do séc. XI, as tapeçarias começaram a
gerar corporações de tecelões, à semelhança de outras profissões. A corporação de Tournai, na
Flandres, constituiu-se em 1423 e influenciou as outras oficinas e as do norte de França. Será nesta
cidade que Afonso V terá mandado tecer os grandes panos, hoje conhecidos como Tapeçarias de
Pastrana, localidade para onde, infelizmente, a história as conduziu! Não existem registos da
encomenda da manufactura desta obra, pelo que a única fundamentação que se possa ter, deduz-se
da proximidade da coroa portuguesa a Filipe-o-Bom da Borgonha, casado com a infanta portuguesa
Isabel, filha de D. João I. A própria atribuição da autoria a Pasquier Grenier não reúne consenso já que
não parece ter sido tapeceiro, mas sim comerciante de tapetes. (Araújo, 2012, pp. 34 e 63)
Afonso Dornelas, investigador, arqueólogo, escritor e heraldista, foi um interveniente importante no
estudo destas tapeçarias. Começou a interessar-se por elas a partir de 1922. Conseguiu do arcebispo
de Toledo autorização para se removerem das paredes para o exterior da igreja, de forma a permitir
uma maior luminosidade para se obterem fotografias com qualidade. As primeiras fotos foram
realizadas em Novembro de 1924 e as restantes em Março de 1925:

Apresentei imediatamente essas reproduções na Academia das Sciencias e comecei estudando detalhadamente o pouco
que é fácil estudar, pois o estado de deterioração da maioria dos panos é tão adeantado que é difícil definir detalhes, se
bem que a fotografia tem a vantagem de salientar minudencias que não há facilidade de descobrir olhando para os
originais. (Dornelas, 1928, p. 20)

Reinaldo dos Santos (1925, 36 a 40) justifica a ida para Pastrana destas tapeçarias por vontade de
Filipe II (I de Portugal). Esmiúça a história buscando a explicação através de um amigo de infância
deste rei, Rui Gomes da Silva dos senhores da Chamusca, que, em 1552, casou com a filha dos condes
de Melito, D. Ana de Mendoza y Cerda. A influência que lhe trouxe a amizade com Filipe II, de quem se
tornou valido, era tanta que havia quem lhe chamasse até «Rei» Gomes da Silva, em vez de Rui. Em
1569, Rui Gomes da Silva comprou a vila de Pastrana aos Mendozas, seus proprietários, acabando por
tornar-se o 1º duque de Pastrana quando a transformou na capital dos seus domínios.
Foi este primeiro duque quem fundou a Igreja, transformada posteriormente em Colegiada 1. Dos três
filhos de D Rui, o segundo filho, D. Fernando, seguiu a vida religiosa, adoptando o nome de Frei Pedro
Gonzalez de Mendoza. Tornou-se um dos prelados mais importantes de Espanha, governando várias
sés que restaurou, restaurando também a igreja colegial de Pastrana que, no essencial desse restauro,
se mantém até hoje.
É neste contexto que Reinaldo dos Santos fundamenta a sua opinião de que terá sido Filipe II a
oferecê-las à Colegiada de Pastrana. Contrariando Manuel de Faria e Sousa na sua Epitome de las
historias portuguesas, fundamenta a opinião de que não poderia ter sido D. Afonso V desta maneira:

1
Colegiadas eram igrejas paroquiais mas nas quais os cónegos a ela adstritos praticavam uma Regra comum, à
semelhança dos conventos ou mosteiros.
D. Afonso V não mandava fazer tapeçarias exaltando o feito mais glorioso do seu reinado, para as dar; nem D. João II,
para quem elas representavam padrão da sua iniciação nas armas. D. Manuel, que fizera tecer as da India, ia dar as de
África? Mesmo D. João III alienaria uma tapeçaria da coroa desta importância histórica? Enfim, D. Sebastião, i visionário
da conquista africana, a quem precisamente Cid Abdelcherim restuira Arzila nas vésperas de Alcácer Kibir (1577) e para
quem as tapeçarias, que exaltavam a sua primeira tomada, foram talvez um dos estímulos do seu sonho de glória — ia dá-
las a Espanha?
Parece-me supérfluo insistir na inverosimilhança destas hipóteses para concluir muito mais logicamente, como as datas
citadas no-lo sugerem, que os panos se expatriaram no tempo dos Filipes.

E remata com a dedução, lógica para ele, da possibilidade filipina, através de Frei Pedro, com
argumentos que valida através de factos históricos:

As relações já citadas, dos filhos de Rui Gomes da Silva com os negócios de Portugal, o extraordinário favor régio que
disfrutaram, o seu particular amor às tapeçarias, a representação, nestas de Arzila, de um dos seus mais ilustres
antepassados — João da Silva — ao lado do príncipe de quem fora camareiro-mor, explicam que os Felipes, para quem a
vitória do Africano e a decoração histórica dos nossos paços tinham um interêsse secundário, cedessem aos senhores de
Pastrana um tão belo título de magnificência e honra
Se passaram, pois, para Espanha só depois de 1589 e antes de 1628 (data da primeira alusão de Faria e Sousa), dentre os
filhos de D. Rui Gomes foi naturalmente D. Frei Pedro (+ em 1637) quem as levou para Pastrana, porque foi êle que,
reedificando a igreja, fêz dela panteon dos duques e lhe doou as alfaias e ricas colgaduras a que se refere o seu epitáfio.

Por sua vez, Afonso Dornelas explica a sua ida, primeiro para Guadalajara e posteriormente para a
Colegiada de Pastrana, como tendo sido um presente que D. Afonso V enviou ao marquês de
Santilhana para que se tornasse seu aliado na pretensão que sustentou em se casar com D. Joana,
herdeira do trono de Castela. Posteriormente, veio a descobrir-se que esta princesa não tinha direito
ao trono, pelo que o marquês, primitivamente defensor das pretensões de D. Joana, acabou por apoiar
D. Isabel, a católica, tia de D. Joana, que viria a tornar-se rainha de Castela. O marquês de Santilhana
foi elevado a duque do Infantado com o solar no palácio de Guadalajara.
D. Catarina, 8ª duquesa do Infantado, casou com D. Rodrigo, 4º duque de Pastrana. Durante as suas
vidas estas tapeçarias acabaram por ser levadas para Pastrana e oferecidas à Colegiada. No relato
deste investigador (Dornelas, 1928, p. 24),

Foi durante a vida dos 4º duques de Pastrana e 8º do Infantado que as tapeçarias de D. Afonso V foram transferidas de
Guadalajara para Pastrana, dizendo-me Frei Lourenzo Perez, franciscano do Convento de Pastrana, que pelos documentos
que encontrou na Colegiada, as Tapeçarias entraram nesta Villa como doação á Colegiada em 1667.
Foi ainda Frei Lourenzo Perez que me disse, em rectificação ás conclusões do meu estudo sobre a vida destas tapeçarias,
que tinham sido dadas para todo o sempre á Colegiada e não com condições como primitivamente deprehendi das
minhas investigações.
Os seis panos que constituem as tapeçarias referentes ás façanhas do Rei D. Afonso V, estão mutilados vendo-se que os
cortaram para os adaptarem ás paredes.

Afonso Dornelas aceita a versão apresentada por Manuel de Faria e Sousa quando, na Epitome, ele
descreve a alteração das armas no escudo do reino, que D. João I efectuou (Sousa, 1628, p. 468):
Reduxo el Rei a cinco los diez puntos que tenia cada uno de los escudetes, quedándose por debaxo dello la Cruz de Avis
po ser su Maestre, como también (em memoria de haber tenido la insignia Real Inglesa de San Jorge) acrecentò por
timbre una Sierpe alada: i de aquí tuvo principio en Portugal llamar a San Jorge en las batallas. Vèse en muchas partes, i
repetido por banderas i estandartes en la rica tapizeria de la toma de Arzila, que el adorno de las salas Reales Portuguesas
se texia de hasañas i triunfos de sus Reyes i vasallos:este es ol de la casa del Duque del Infantado, a quien lo dio D. Afonso
V en el tiempo de sus pretensiones con Castilla.

Como a edição da Epitome é de 1628, as Tapeçarias já se encontravam em Pastrana antes desta data.
Margarita García Calvo (2020, p. 21), que desenvolveu a sua dissertação de doutoramento à volta dos
tapetes de Pastrana, menciona o documento do inventário realizado após a morte do 3º duque do
Infantado, Diego Hurtado de Mendoza, em 1532, onde as tapeçarias são citadas pela primeira vez
como propriedade da Casa do Infantado. Deste modo, cai por terra a tese de que foi Filipe II a
autorizar a ida para Espanha das Tapeçarias, continuando, assim, sem resposta quem as doou à Casa
do Infantado.

2. As réplicas

Em 1720, Filipe V trouxe, de Ambères para Madrid, o tapeceiro Jacobo Vandergoten para criar uma
manufactura de tapetes e alcatifas de luxo, à semelhança das produzidas nas oficinas francesas. 1
Nasceu, assim, a que viria a tornar-se a Real Fabrica de Tapices de Santa Bárbara que, até à criação de
uma fundação, nos finais de 1996, foi sempre dirigida pelos descendentes desta família, com excepção
nos anos da guerra civil (1936-1939).
A fábrica nasceu num século em que arte tapeçaria começara a perder o lugar cimeiro na arte que
sempre teve nos vários séculos anteriores. Os pintores, os criadores dos cartões, começaram a exigir
uma maior fidedignidade das suas criações na transferência para os panos, ignorando as
particularidades dessa arte e acabando por transformar os tapeceiros em meros reprodutores. Como é
impossível coadunar a arte da pintura a óleo com a arte da tapeçaria, esta acabou por se transformar
numa banal e má imitação dos grandes pintores da época. No último quartel do século XVIII, Goya, o
mais célebre pintor da Real Fabrica de Tapices, enfrentou os tintureiros e os tecelões exigindo-lhes que
copiassem os seus cartões com toda a exactidão, que não foram capazes de o fazer entender as
diferentes particularidades de cada arte. (Vian, 2010, pp. 244 e 245)
A Revolução francesa acabou por ajudar neste descrédito artístico, uma vez que as tapeçarias eram um
símbolo da sumptuosidade da classe nobre que se viu derrotada e obrigada a camuflar-se em gostos
mais populares para não chamar a atenção da parte vencedora. Muitos chegaram mesmo a esconder
ou destruir este seu legado artístico. Mas, na primeira metade do século XIX, levantou-se uma voz em
defesa deste património medieval: o francês Achille Jubinal, a partir de 1837, começou a insurgir-se
contra a marginalização desta manifestação de beleza e arte medieval. Mas só para quase no final do
século, os seus protestos ganharam crédito e conseguiu restaurar o interesse por esta arte
marginalizada e depreciada.
Em Espanha, demorou mais tempo. A Real Fábrica acabou mesmo por fechar em 1871. Com a subida
ao poder de Afonso XII, o monarca voltou a interessar-se por esta indústria artística e mandou fazer
um inventário da tapeçaria da coroa, mandando restaurar 130 tapetes na fábrica, reaberta para esta
encomenda real. Afonso XII morreu de tuberculose aos 27 anos e a sua viúva, D. Maria Cristina de
Habsburgo, fez trasladar a fábrica da Porta de S. Bárbara para um edifício novo em Atocha, permitindo
ao seu director Gabino Stuyck Dulongval aceitar contratos de particulares e não exclusivamente da
coroa, desafogando, assim, os constrangimentos económicos da fábrica. Dirigiu a fábrica até 1917, ano
da sua morte, sucedendo-lhe, como era da tradição, o seu filho Livinio Stuyck Millenet. Nos nomes
desta descendência de directores da fábrica, manteve-se um costume (original!) de alternarem os
nomes ao filho mais velho: um Livinio baptizava o filho de Gabino e um Gabino, ao filho mais velho, de
Livinio. Mantiveram-se à frente da fábrica durante sete gerações (três Gabinos e quatro Livinios). 2
Em Abril de 1931, caiu a monarquia para dar lugar à segunda república, constituindo-se o governo
republicano o fiel depositário da colecção de tapeçarias, integrada no que se denominou, então, por
Património da República. Um ano depois, o governo de Manuel Azaña Díaz aceitou um projecto de
1
https://www.eldiario.es/madrid/Gobierno-desahucia-exdirector-Fabrica-Tapices_0_625038315.html
2
https://www.eldiario.es/madrid/Livinio-Stuyck_0_625737928.html
Stuyck e Miguel Utrillo (pintor e historiador de arte) que, para a revitalização da Fábrica, propunham
que se reproduzissem as quatro tapeçarias de Pastrana, para além do restauro dos quatro tapetes
originais. O projecto foi aceite, começando-se pelo restauro dos originais. Mas, em 1936, deflagra a
guerra civil e o restauro só ficou parcialmente feito sem nenhuma das réplicas começada ainda. Para
proteger estas obras de arte mudaram-se para Valência e Barcelona, atravessando mesmo a fronteira
francesa, em 1939.
Retornadas a solo espanhol, após o final da guerra (1 de Abril de 1939), a Real Fábrica retomou a
manufactura dos originais e das respectivas réplicas que se deram prontas em 1949, altura em que
foram expostas, em Madrid. Um ano depois, a Sociedade de Amigos da Arte, anuindo a um pedido do
embaixador português, António Carneiro Pacheco, que revelou o interesse do governo português
adquirir as réplicas das tapeçarias, oferecendo o valor de 1.950.000 pesetas, promoveu uma nova
exposição com os originais e as suas cópias. Já em 1931, Portugal pedira as tapeçarias que foram
mostradas na Exposição de Arte Antiga, em Paris. Uma década depois, Portugal tentou, sem sucesso,
comprá-las ou mandar executar umas novas cópias. Esta oferta financeira do governo português
agradou especialmente ao director de então da Real Fábrica, enterrada em dívidas por falta das
contribuições financeiras que o governo espanhol prometera mas não cumprira. A dívida já ia a
caminho das 700.000 pesetas. A compra beneficiaria ambas as partes. Assim, em 1952, o governo
espanhol aprovou a transacção e as obras vieram para Portugal no ano seguinte. A entrega fez-se, com
solenidade, nas instalações da Real Fábrica a 19 de Fevereiro. A chegada das quatro tapeçarias ao país
constituiu um acontecimento noticiado pela principal imprensa nacional e, em Março, foram
mostradas na Biblioteca do Ministério das Finanças, na presença de Salazar e de outros ministros.
Seguiram, depois, para o Museu das Janelas Verdes e, em 1957, viajaram para o Paço dos Duques de
Bragança, em Guimarães, onde permanecem expostas, até hoje.
Três das tapeçarias, agora pertença deste Paço ducal, narram a tomada de Arzila, formando uma
trilogia dos acontecimentos: o desembarque, o cerco e a tomada da cidade. O quarto tapete (o único
sem elementos musicais) refere-se à conquista de Tânger.

O desembarque

A tapeçaria mede 10,840 por 4,820 metros. Reproduz-se aqui a descrição que o Paço dos Duques
apresenta na ficha de inventário desta obra:

Esta tapeçaria tem como tema o desembarque de D. Afonso V e suas tropas em Arzila. A metade inferior da peça é
ocupada por barcos e batéis ocupados pelos cavaleiros e soldados, destacando-se no primeiro plano a nau capitoa que
transporta o rei, como indicam os estandartes de Portugal e as armas reais - rodígio espargindo gotas - nos mastros. Na
metade direita superior observa-se a segunda parte do desembarque, em que o rei e o príncipe, já em terra e a pé,
rodeados da sua comitiva vão a caminho de Arzila. A cidade vê-se ao fundo à direita, com os seus muros, minaretes e
telhados.

O texto latino que encima este grande tapete descreve, com algum pormenor, a partida de Lisboa e o
desembarque em Arzila. A tradução para português é da responsabilidade de um latinista, Dr. José
Maria Rodrigues, que a escreveu a pedido do então director do Museu de Arte Antiga, Dr. José de
Figueiredo (Santos, 1925, p. 19):

O sereníssimo e vitoriosíssimo Afonso V, pela graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves daquém e de além-mar em
África, como já muitas outras vezes (o tinha feito), para exaltação da fé católica, assim também no ano do Senhor de
1471, a 15 do mês de Agosto, festa da Beata Virgem (Maria), navegando do pôrto de Lisboa, juntamente com o
sereníssimo príncipe (D.) João, seu filho único, primogénito e herdeiro, passou à África com uma frota de quatrocentas
naus e outras embarcações e com um exército de 30.000 homens, a-fim-de combater contra os mouros, pela fé de Cristo.
E como na terça-feira, sexto dia depois da partida, entrasse no pôrto de Arzila, opulentíssima cidade dos mouros, no dia
seguinte, quarta-feira, ainda que o mar, pela sua braveza, tornasse perigosíssimo o desembarque, contudo o Rei, de
ânimo esforçado para tôdas as dificuldades, considerando que, por muitos motivos, nada lhe era mais perigoso nesta
conjuntura do que a demora e a hesitação, suplantado o risco da vida pelo grande ardor da fé, saiu para terra, afundando-
se em volta muitos batéis e perecendo submergidos pelas ondas alguns homens nobres, com suma dor dêle.

A pressa com que D. Afonso V quis desembarcar, levou-o a ignorar as condições adversas do mar, o
que provocou cerca de duas centenas de mortos, entre soldados e nobres, e se perdessem algumas
embarcações.
Neste quadro, à esquerda, vêem-se as naus já ancoradas e a prepararem-se para o desembarque. Na
primeira nau, reconhece-se a nau-capitã, identificando-se com clareza D. Afonso V e o futuro D. João II,
pela riqueza das armaduras e, no caso do rei, pela coroa que encima o capacete. O cesto das gáveas
dos mastros ostenta o emblema real: um rodízio espalhando gotas.

O Cerco

A tapeçaria, à semelhança da anterior, também mede 10,840 por 4,820 metros. A descrição da ficha de
inventário é a seguinte:

A segunda peça da série trata do cerco imposto à cidade de Arzila. Antes da batalha tentou-se a negociação com os
mouros. Reproduz com grande exactidão e pormenor o acampamento das tropas portuguesas que envolvem os muros da
cidade, atrás dos quais se eleva o casario dos mouros, com uma tranqueira, vendo-se alternadamente as armas de S.
Jorge e o escudo de Portugal. É junto aos portais do arraial que se encontram o rei e o príncipe ambos a cavalo. O rei
junto ao portal direito, vestido com uma armadura dourada, empunha na mão direita o bastão de comando. Em volta do
rei encontram-se cavaleiros e peões. Simetricamente colocado do lado esquerdo o príncipe D. João, também ele enverga
uma rica armadura revestida de brocado e está rodeado da sua comitiva. Entre o emaranhado de cotas, capacetes,
armaduras, picos e escudos, podem ver-se as bocas de fogo, apontadas à muralha. Nas muralhas surge uma figura
oriental, de barbas e turbante, fazendo um gesto com a mão direita (alcaide?). Das ameias surgem mais cabeças
mouriscas, lanças, armas, escudos e bandeiras com o crescente. A mesma legenda de fundo vermelho com letras góticas,
mas aqui estão cortadas impossibilitando a leitura.

Esta tapeçaria é a única a quem falta o texto na parte superior, conseguindo-se perceber apenas a
última linha da descrição que conteve (embora com falhas).

O Assalto

Ligeiramente maior que as duas anteriores, a tapeçaria mede 10,57 por 4,90 metros. A ficha de
inventário tem a seguinte descrição:

Falhadas as negociações dá-se finalmente o assalto. Os muros da cidade defendidos pelos muçulmanos são atacados
pelos cavaleiros e soldados portugueses. O rei parece participar na luta empunhando uma espada e o príncipe o bastão
de comando. As lanças e espadas cruzam-se, os pendões do rei e nobreza elevam-se bem alto, tendo por fundo os
mastros e os cestos das gáveas das naus ancoradas na praia. Em volta dos muros concentra-se o assalto. Três cavaleiros
de espada em punho, protegendo-se com os seus escudos, sobem as escadas encostadas à muralha. Ao centro, um deles
luta corpo a corpo com um mouro. Vêem-se nas ameias as armas dos defensores da cidade mas, no seu interior, uma
parte das hostes portuguesas consegue entrar e avança pela esquerda. Legenda de fundo vermelho com letras góticas
narrando a cena que se desenrola em baixo.

eee
No dia seguinte, porém, sábado, festa de S. Bartolomeu, 24 do mesmo mês de Agosto, antes do nascer do sol, exortando
o rei aos homens de armas, uns pelas recentes brechas do muro, outros encostando escadas à vista (do inimigo), entram
com sumo ímpeto a cidade, onde também se travou uma luta acérrima e houve grande mortandade nos que já
combatiam a pé quedo. Depois a maior parte dos mouros refugiam-se tumultuariamente no fortificadíssimo castelo,
onde, assim como era mais difícil a entrada, assim também foi maior o perigo e maior a mortandade que se seguiu.
Prolongou-se até o meio-dia por tôda a parte, um combate atroz, qual o costuma ser entre vencedores cheios de ira e
vencidos desesperados. De mouros de ambos os sexos que sobreviveram ao grande morticínio e de riquezas, fez-se maior
presa do que era de supor, em vista do tamanho da cidade. É que era o principal empório desta região. O liberalíssimo Rei
deu todos os despojos aos soldados.

A música na guerra e na intermediação com o divino

A história da música entrecruza-se com a história da civilização humana já que, de uma forma ou de
outra, sempre esteve associada à vida das pessoas, cumprindo funções diversificadas, tanto na sua
forma vocal como instrumental.
Presença constante nas sociedades desde a antiguidade mais profunda, a música foi sempre utilizada
especialmente em festas, cerimónias religiosas (rituais, nascimento e morte) e, por inerência de
algumas suas características, também foi de uso obrigatório em contexto militar, particularmente em
situações de guerra ou sua preparação.
Aceitando como verdade que a voz/canto terá sido a primeira manifestação musical na sua evolução
comunitária, o homem sentiu necessidades para além desta comunicação corporal, buscando e
descobrindo outras formas de produção sonora. Citando André Schaeffner (1965, p. 92 e 93) 1,

(…) o homem experimentou a necessidade de produzir de outro modo que não pela voz, ou pelo ruído do seu corpo, uns sons
quaisquer. Serviu-se de instrumentos, fosse para acompanhar o canto, ou para mais ou menos o substituir. Procurou fora da sua
própria pessoa, entre os materiais que a natureza lhe oferecia ou que a sua indústria já havia talhado, aquilo que parecia mais
próprio a uma intenção musical a que a voz isolada sem dúvida não se adaptava. Se no número dos instrumentos que primeiro se
inventaram figuram sobretudo instrumentos de ritmo, é porque a voz ou o corpo, não marcava esse ritmo com eficiência. (…)
Quanto os nossos conhecimentos acerca das hodiernas sociedades nos permitem ajuizar, a construção de instrumentos primitivos
não revela que se tenha querido reproduzir o quer que fosse respeitante ao canto humano e ainda menos imitar esse canto na sua
totalidade.

Estes instrumentos evoluíram para múltiplas funções. Entre outras: caça, comunicação, afugentar
inimigos ou espíritos maus, agraciar ou aplacar os deuses e até mesmo para vencer o medo. Na sua
grande maioria, os instrumentos musicais mantiveram estas funções rituais e práticas até ao final da
Idade Média. (Oling & Wallash, 2004, p. 29).
O uso da música conferia aos seus utilizadores, como os druidas gauleses, os feiticeiros ou pajés índios,
os xamanes siberianos ou os oráculos gregos, um poder sobrenatural que convencia aqueles que
pediam as suas intervenções. Era uma linguagem intermediária entre o terreno e o divino. A
sublimação dos sons musicais aproximava as pessoas aos entes superiores. A fala é humana, o canto é
divino!
Buscando uma fonte mais próxima da civilização ocidental, a Bíblia cristã está cheia destes apelos
musicais para tarefas variadas. Na maioria das citações, aparece a trombeta, um instrumento «alto»,
como instrumento de chamamento e de incentivo de ânimos ou bélicos. A harpa, um instrumento
«baixo», aparece como instrumento intimista e propiciador da ligação do terreno ao divino.
Os exemplos que se transcrevem, a seguir, são esclarecedores do aproveitamento da música em
diferentes situações.

1
Schaffner, André (1965) – «Génese dos Instrumentos de Música» in A Música 1. Lisboa: Editora Arcádia, Limitada.
Moisés, na sua chegada ao Monte Sinai após a fuga do Egipto, foi contactado por Deus que o avisou
que se iria mostrar ao povo judaico, no cimo do monte, proibido de ser acedido por quem quer que
fosse, sob pena de morte por apedrejamento ou por flechas (Êxodo, 19, 16-20):

Na manhã do terceiro dia, houve trovões e relâmpagos, uma espessa nuvem cobriu o monte e o som da trombeta retiniu com
fragor. A multidão que se encontrava no acampamento tremia. Moisés mandou sair o povo do acampamento para ir ao encontro
de Deus e pararam junto do monte. Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor havia descido sobre ele no meio de chamas. O
fumo que se elevava era como o de um forno e todo o monte estremecia violentamente. Os sons da trombeta repercutiam-se cada
vez mais. Moisés falava e a voz divina respondia-lhe.

As trombetas, em simbiose com os elementos sonoros da natureza preparam e atemorizam o povo


judeu para a revelação do seu deus. O deus do Antigo Testamento, particularmente o deus descrito no
livro do Êxodo, é um deus distante, severo e castigador que não admite desobediências (quem tocasse
no Monte, animal ou pessoa, teria que morrer!). As trombetas anunciavam a presença deste ente
superior.
Num contexto sonoro semelhante, mas um pouco diferente, está a queda dos muros da cidade de
Jericó, um exemplo já clássico sobre o poder «mágico» da música mas, neste caso, em simultaneidade
com o poder das vozes unidas (Josué, 6, 16 e 20):

Quando os sacerdotes tocavam as trombetas à sétima volta, Josué disse ao povo: «Gritai porque o Senhor nos entrega a cidade. (…)
O povo gritou e os sacerdotes tocaram as trombetas. Logo que o povo ouviu as trombetas, ergueu um grande clamor, e as
muralhas da cidade desabaram e os filhos de Israel subiram à cidade cada um pela brecha que tinha em frente de si.

A música também ajudou a superar a inferioridade numérica do exército israelita contra os opressores
medianitas, através do profeta Gedeão (Juizes, 7, 16-22):

Gedeão chegou aos limites do acampamento, com os seus cem homens, no princípio da segunda vigília, ao render das sentinelas.
Começaram, então, a tocar as trombetas, quebrando, ao mesmo tempo, as ânforas que tinham na mão. Os três batalhões tocaram
igualmente as trombetas e quebraram as ânforas. Tomando as tochas na mão esquerda e as trombetas na mão direita para
tocarem, gritaram todos: «Pelo Senhor e por Gedeão»! (…) Com isto, todas as tropas de Madian se alvoroçaram e fugiram aos
gritos. Os trezentos homens continuaram a tocar as trombetas, enquanto que, por todo o acampamento, o Senhor fez com que
todos os de Madian apontassem a espada uns contra os outros degolando-se mutuamente.

A música como bálsamo auditivo e elemento de bem-estar, até (porque não?) como primeiro exemplo
de musicoterapia, pode encontrar-se no 1º livro de Samuel quando o jovem David, com os sons da sua
harpa, acalmava as fúrias neuróticas do rei Saul (I Samuel, 16, 14-17 e 23):

O espírito do Senhor retirou-se de Saul, que era atormentado por um espírito mau, enviado pelo Senhor. Os criados de Saul
disseram-lhe: «Eis que um espírito mau te atormenta. Se tu, nosso amo, deres ordens, teus servos, aqui presentes, procurarão um
homem que saiba tocar harpa, para que, quando o mau espírito estiver sobre ti, ele a toque a fim de te acalmar.» Respondeu Saul:
«Está bem, procurai-me um bom músico e trazei-mo». (…) E sempre que o espírito mau atormentava Saul, David tomava a harpa e
tocava. Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau deixava-o.

A música como intermediária entre o homem e Deus pode ler-se no segundo Livro dos Reis (II Reis, 3,
14 e 15) quando o profeta Eliseu foi consultado por Jorão, rei de Israel, que se juntara a Josafat, rei de
Judá e ao rei de Edom para combaterem o rei de Moab. No caminho, faltou-lhes a água.

Eliseu exclamou: «Pela vida do Senhor dos exércitos a Quem sirvo, se não fosse em atenção a Josafat, eu não faria caso de ti nem
sequer poria em ti os meus olhos. Mas, agora, trazei-me um tocador de harpa.» Enquanto o tocador tocava a harpa, a mão do
Senhor veio sobre Eliseu…
Porém, a música também aparece na Bíblia como elemento ligado a comportamentos menos próprios
como o são os noctívagos e os bêbados (Isaías, 5, 11-12):

Ai dos que madrugam para procurarem a embriaguez e se retardam pela noite inflamados pelo vinho! Tudo são cítaras e harpas,
pandeiretas e flautas e muito vinho nos seus banquetes; e não reparam nas obras do Senhor, nem consideram a obra das suas
mãos.

Esta incursão nos textos bíblicos comprova a ideia de que a música contém em si mesma poderes de
certa forma anímicos e que lhe permitem ser multifuncionais. A iconografia de guerra não dispensa os
músicos nas hostes militares de ambos os campos.

Os cantos «guerreiros» das claques futebolísticas são um acrescento a este conceito. Por outro lado,
também há que considerar que em algumas situações, a música pode ser entendida como uma
bandeira ao redor da qual se unem as pessoas em objectivos ou ideais comuns. Basta lembrar os
Hinos, quaisquer que eles sejam, que como poemas laudatórios congregam pessoas à volta de credos,
religiosos ou não, e tão representativos das instituições ou dos países, como as bandeiras que os
simbolizam. Funcionam como bandeiras sonoras.

Reflexão Conclusiva
A Iconografia musical na cidade está presente muito para além da descrita nesta primeira parte que se
fez incidir sobre o Museu Alberto Sampaio. Nos seus reservados, existem elementos musicais que aqui
não foram referenciados. Sê-lo-ão numa outra parte deste primeiro passeio pela iconografia musical
vimaranense. O Paço dos Duques de Bragança tem uma colecção de iconografia musical relevante em
pintura, em mobiliário e em tapeçaria. A Real Colegiada da Oliveira possui um fenestrão exterior onde
vinte e quatro anjos músicos se deterioram de dia para dia, à vista de toda a cidade que frequenta o
Largo da Oliveira, e nem se apercebem do valor artístico da oferta que Dona Filipa de Lencastre fez à
reconstrução da Igreja, patrocinada pelo seu marido, D. João I.
A Venerável Ordem Terceira de S. Francisco alberga alguns exemplos de iconografia musical, um dos
quais raro, já que a percussão não é muito vulgar nestas representações. Outros lugares da cidade
serão visita e descrição obrigatórias noutra parte que se fará deste roteiro patrimonial.
A importância musicológica destes espólios artísticos, para além da informação musical relevante e
contextualizadora das épocas a que pertencem, obriga a que se faça um levantamento e registo com
alguma urgência para que as gerações futuras possam usufruir de um bem cultural que nós sabemos
que existiu noutras épocas mas que o desleixo histórico não permitiu que hoje o conhecêssemos. Não
se faça o mesmo aos que vierem depois de nós!
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